o eu e o outro no ensino médio indígen - alto rio negro (am)

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445 Educ. Soc., Campinas, vol. 27, n. 95, p. 445-469, maio/ago. 2006 Disponível em <http://www.cedes.unicamp.br> O EU E O OUTRO NO ENSINO MÉDIO INDÍGENA: ALTO RIO NEGRO (AM) DULCE MARIA POMPÊO DE CAMARGO * JUDITE GONÇALVES DE ALBUQUERQUE ** O nosso ativíssimo prelado D. Pedro Massa insistiu para que fossem registrados, com a máxima fidelidade, os usos e costumes desses índios, porque mais tarde seria um tra- balho mais difícil de realizar, pelo fato de que a civiliza- ção e a moral avançam rapidamente naquela região, sendo educados e instruídos gratuitamente os pequenos índios mantidos nas escolas da Missão Salesiana, a saber, 400 crianças internadas nos três centros escolares de Taracuá, Iauaretê e Pari-Cachoeira. (Antonio Giaconne, 1949, p. 9) RESUMO: As reflexões apresentadas estão calcadas nas experiências vivenciadas por nós em projetos de formação de professores índios e nos dados coletados em uma pesquisa de campo, no alto Rio Negro, no que se refere: a) aos usos lingüísticos em sala de aula onde estu- dam alunos de dez a vinte etnias e línguas diferentes; b) ao projeto político-pedagógico das escolas; c) às dificuldades dos alunos em função de sua origem indígena. Para alcançar o objetivo proposto, apresentamos uma análise do ‘sistema preventivo’ de educação para jovens, proposto por D. Bosco, em meados do século XIX, e segui- do, ainda hoje, pelos missionários salesianos que atuam na região. Tais reflexões podem subsidiar, de um lado, a apresentação de pro- * Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-CAMPINAS). E-mail: [email protected] ** Mestre em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), doutoranda em Lingüística pela UNICAMP e professora aposentada da Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT). E-mail: [email protected]

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O eu e o outro no ensino médio indígena - Alto Rio Negro (AM)

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  • 445Educ. Soc., Campinas, vol. 27, n. 95, p. 445-469, maio/ago. 2006Disponvel em

    Dulce Maria Pompo de Camargo & Judite Gonalves de Albuquerque

    O EU E O OUTRO NO ENSINO MDIO INDGENA: ALTO RIO NEGRO (AM)

    DULCE MARIA POMPO DE CAMARGO*

    JUDITE GONALVES DE ALBUQUERQUE**

    O nosso ativssimo prelado D. Pedro Massa insistiu paraque fossem registrados, com a mxima fidelidade, os usose costumes desses ndios, porque mais tarde seria um tra-balho mais difcil de realizar, pelo fato de que a civiliza-o e a moral avanam rapidamente naquela regio, sendoeducados e instrudos gratuitamente os pequenos ndiosmantidos nas escolas da Misso Salesiana, a saber, 400crianas internadas nos trs centros escolares de Taracu,Iauaret e Pari-Cachoeira.

    (Antonio Giaconne, 1949, p. 9)

    RESUMO: As reflexes apresentadas esto calcadas nas experinciasvivenciadas por ns em projetos de formao de professores ndios enos dados coletados em uma pesquisa de campo, no alto Rio Negro,no que se refere: a) aos usos lingsticos em sala de aula onde estu-dam alunos de dez a vinte etnias e lnguas diferentes; b) ao projetopoltico-pedaggico das escolas; c) s dificuldades dos alunos emfuno de sua origem indgena. Para alcanar o objetivo proposto,apresentamos uma anlise do sistema preventivo de educao parajovens, proposto por D. Bosco, em meados do sculo XIX, e segui-do, ainda hoje, pelos missionrios salesianos que atuam na regio.Tais reflexes podem subsidiar, de um lado, a apresentao de pro-

    * Doutora em Educao pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e professora doPrograma de Ps-Graduao em Educao da Pontifcia Universidade Catlica de Campinas(PUC-CAMPINAS). E-mail: [email protected]

    ** Mestre em Educao pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), doutoranda emLingstica pela UNICAMP e professora aposentada da Universidade do Estado de Mato Grosso(UNEMAT). E-mail: [email protected]

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    postas que contribuam para a formulao de polticas de educaopara o ensino mdio indgena em todo o pas e, de outro, contribuirpara a construo de sistemas autnomos de educao, superandopolticas integracionistas. Nossos principais interlocutores so autoresligados perspectiva ps-colonial: Bhabha (2005), Hall (In: Sovik,2003), Souza Santos (2000) e Shiva (2003).

    Palavras-chave: Prticas pedaggicas. Formao de professores ndios.Ps-colonialismo.

    THE SELF AND THE OTHER IN INDIGENOUS SECONDARY EDUCATION:ALTO RIO NEGRO (AM)

    ABSTRACT: The reflections here presented are based on our expe-riences in projects to train Indian teachers and on the data collectedin a field research, in the alto Rio Negro, with regard to: a) the lin-guistic uses in classroom with students from ten to twenty differentethnic groups and languages; b) the political-pedagogical project ofthe schools; c) the difficulties faced by students because of their in-digenous origin. To meet the objective proposed, we present ananalysis of the prevention system of youth education, proposed byD. Bosco in the mid-XIXth century, and still used by the Salesianmissionaries who live in the region. Such reflections can support thepresentation of proposals that contribute, on the one hand, to for-mulate educational policies for indigenous secondary education inBrazil and, on the other, to build autonomous education systems,overcoming integrationist policies. Our main interlocutors are au-thors linked to the post-colonial perspective: Bhabha (1998), Hall(In: Sovik, 2003), Souza Santos (2000) and Shiva (2003).

    Key words: Pedagogical practices. Indian teacher formation. Post-colo-nialism.

    realizao de uma pesquisa de campo1 para conhecer as de-mandas e as condies de escolarizao em nvel mdio dos po-vos indgenas, na regio do alto e mdio Rio Negro (AM), faz

    parte de um trabalho mais amplo, desenvolvido pelo MEC/SEMTEC, quebuscou ter, assim, condies de apresentar propostas que possamcontribuir para a formulao de polticas de educao para o ensinomdio indgena em todo o pas, incluindo a formao de professoresindgenas. Tal diagnstico est inserido no Programa Diversidade naUniversidade e visa contribuir para a construo de sistemas autno-

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    mos de educao, superando polticas integracionistas que, ao longo desculos de colonizao, tentaram fazer desaparecer os ndios como naese como identidades individuais, na medida em que a educao lhes rou-bava a lngua, os costumes, a religio, a cultura. Trata-se de um esforocoletivo de superao da hegemonia do urbano, possibilitando a univer-salizao da educao bsica.

    A pesquisa de campo permitiu coletar, de maneira sistemtica, osdados referentes demanda por ensino mdio no alto e mdio Rio Ne-gro, dados sobre a oferta desse nvel de ensino, analisando as condiesda oferta e focalizando, sobretudo, os graves problemas gerados para ascomunidades a partir da nuclearizao da educao escolar tanto do en-sino mdio, como tambm do ensino fundamental (5 a 8 sries). Taisdados permitiram, ainda, analisar as condies de funcionamento dasescolas de ensino mdio, levantar dados sobre a formao dos professo-res e as condies de vida dos alunos que deixam as prprias comuni-dades para estudar nos Centros Missionrios Salesianos ou na cidadede So Gabriel da Cachoeira.

    Esta coleta de dados e a posterior anlise provocaram um abaloquanto crena anterior de que as escolas da regio so indgenas,2 oque nos instigou a pensar com maior profundidade sobre o assunto; oobjetivo deste artigo descrever e analisar as condies da educao es-colar dos alunos indgenas, dentro e fora das terras indgenas: a) os pro-blemas de usos lingsticos em sala de aula, onde dividem o mesmoespao alunos de dez a vinte etnias e lnguas diferentes; b) o projetopoltico-pedaggico das escolas, contextualizando contedos e processosde ensino-aprendizagem; c) as dificuldades vivenciadas pelos alunos emfuno de sua origem indgena.

    Para alcanar o objetivo proposto, comeamos apresentando umaanlise do sistema preventivo de educao para jovens, proposto por D.Bosco para educar meninos internos, na cidade de Turim, Itlia, em me-ados do sculo XIX, e seguido, ainda hoje, pelos missionrios salesianosque atuam nesta regio, conforme se pode verificar no Regimento Esco-lar da Diocese de So Gabriel, o mesmo para todas as escolas.

    Para entender este sistema, tomamos como referncia a disserta-o de mestrado Homem: objetivao de uma sujeio (Gomes, 1991),na qual o autor mostra como funciona o sistema preventivo de educa-o de D. Bosco e como se situa teoricamente o sistema e a insuspeita

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    aliana entre o poder pastoral (sistema preventivo) e o poder discipli-nar (o poder das sociedades modernas) para educar o cidado honesto,isto , estudioso, dcil e bom cristo (p. 6). Tal referencial fundamen-ta nossa anlise no que diz respeito aos dados da oferta do ensino m-dio na regio, tomando por base quatro questes que foram colocadaspelos participantes do I Seminrio sobre Ensino Mdio em So Gabrielda Cachoeira, realizado em maro de 2004, e que se constituiu como oponto de partida para o trabalho de campo realizado.

    O sistema preventivo de educao salesiana para jovens

    O sistema de educao das escolas salesianas que atuam no RioNegro o Sistema Pedaggico de D. Bosco baseado no trinmio Razo-Religio-Amabilidade,3 bastante conhecido como sistema preventivo. Ofato de a educao escolar na regio ter estado, desde 1914, e estar ain-da, em grande parte, sob a responsabilidade dos missionrios salesia-nos,4 exigiu de ns a anlise do projeto poltico-pedaggico das esco-las, para que obtivssemos informaes de como funciona este sistemapreventivo de educao da juventude. Uma proposta que se propagoumuito rapidamente pelo mundo ocidental (e ocidentalizado), exata-mente porque coincidia com os cnones da sociedade disciplinar do in-cio do sculo XIX, descrita por Foucault (Gomes, 1991).

    O autor nos mostra como o poder pastoral5 desenvolvido na epela Igreja comeou a perder o seu vigor aps o sculo XVIII, quando,a partir dessa matriz, o Estado moderno props uma nova forma depoder pastoral. Em ampla pesquisa nos escritos do prprio J. Bosco,por um lado, e na obra de Foucault, por outro, o autor se dedicou aaprofundar-se sobre os sentidos do sistema preventivo de educaosalesiana. E justifica o seu interesse: pela simples razo de haver sido oestofo de gestao do atual poder disciplinar, o poder pastoral j mere-ceria cuidadosa ateno. Alm disso, se essa matriz de poder perdeu seuvigor, ainda no desapareceu (1991, p. 104. Grifos nossos).

    Concordando com Gomes e baseando-nos em sua pesquisa sobreo sistema preventivo, um corpo de idias que rene prticas que se torna-ram tradio, normas pedaggicas e regulamentos aplicados gesto das es-colas salesianas, desde a segunda metade do sculo XIX, tentamos mostrarcomo essa forma de educao introduzida nas comunidades indgenas

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    do alto e mdio Rio Negro continua produzindo seus efeitos coloniza-dores: (...) o ps-colonial marca a passagem de uma configurao ouconjuntura histrica de poder para outra. Problemas de dependncia,subdesenvolvimento e marginalizao, tpicos do alto perodo colonial,persistem no ps-colonial (Hall, in: Sovik, 2003, p. 56).

    Conforme Gomes (1991, p. 102), ou a obra de J. Bosco se ajus-tava aos cnones da sociedade disciplinar ou desaparecia, sufocada peloar rarefeito de aceitao tentativa de ser diferente. Este sistema deeducao no desapareceu, o que nos leva a concluir que ele se ajustous malhas do contexto da rede do poder disciplinar, que perpassa a so-ciedade ocidental desde o incio do sculo XIX.

    O poder pastoral uma forma complexa e muito particular depoder que combina procedimentos que dizem respeito ao conjuntoda populao e outros que atingem os indivduos de maneira a sujei-t-los e a faz-los produzir uma verdade sobre si mesmo. O objetivofinal assegurar a salvao dos indivduos no outro mundo (Gomes,1991, p. 105). Derivado do poder pastoral, o poder poltico cuidada salvao do indivduo aqui mesmo, neste mundo. A obra de J.Bosco prope, em resumo, formar bons cristos e bons cidados, daa freqente e eficiente aliana com o poder poltico, que sempre ca-racterizou o desenvolvimento dos trabalhos dos religiosos salesianosonde quer que se instalem; no Rio Negro no foi diferente: vieramdispostos a incorporar aquelas tribos civilizao brasileira e crist(D. Massa, 1965, p. 87, apud Silva, 1994). E como, no entendimentode J. Bosco, o bom cristo aquele que tem os ps na terra e a cabe-a no cu (Gomes, 1991, p. 106), o sistema preventivo articula umasrie de prticas e discursos que ajudam os adolescentes e jovens, sem-pre to dispersos e preocupados apenas com o momento presente(aqui e agora), a levantar os olhos para o alto (idem, ibid., p. 106),fazendo-os lembrar que esto neste mundo de passagem e que sua mo-rada permanente o cu.

    Nos internatos salesianos para os povos indgenas, incluindo osdo Rio Negro, alm dos gestos de contnuo rememorar das coisas docu, o sistema preventivo tem tambm a preocupao de fazer o inter-no viver em permanente estado de converso: para chegar a esse esta-do, havia o exerccio da boa-morte, acontecimento mensal que altera-va a rotina de todo um dia para que o aluno assistisse a conferncias,

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    nas quais se lembrava aos ouvintes o destino eterno de cada um e que asorte desse destino se joga nesta vida.

    E uma vez ao ano, geralmente na semana santa, havia os exerc-cios espirituais: cinco dias de silncio absoluto, com oraes e refle-xes. Tanto no exerccio da boa-morte como nos exerccios espirituaiscada aluno devia traar seu programa de vida e submet-lo apreciaodo diretor espiritual.

    Esse poder pastoral de salvao relacionado diretamente ca-pacidade de sofrimento do educador, que deve estar pronto para dar avida pela salvao do rebanho. Por isso, somente o cristo pode aplicarcom xito o sistema preventivo. O etnlogo padre Brzzi Alves da Sil-va (1975) confirma essa idia, em seu livro A civilizao indgena doUaups, ao comentar que a expulso dos jesutas da Provncia do Ama-zonas pelo Marqus de Pombal tinha feito fracassar os nobres planosde catequese e educao dos ndios.

    O padre Brzzi continua o seu relato, dando conta das boasobras que os poucos missionrios conseguiam fazer em alternados pero-dos de assistncia atentos aos ncolas do Rio Negro, at a chegada definiti-va dos salesianos:

    Em 1914, a Misso do Rio Negro e Uaups foi confiada pela Santa S Congregao Salesiana de S. Joo Bosco e inicia-se nova e mais promissorafase para aquelas tribos. (...) Os ndios so atrados para as margens dessesrios e aldeados em pequenos povoados. Para a mais perfeita assimilaocivilizadora, conforme os princpios cristos (...). (Silva, 1975, p. 20)

    Ficam evidentes, no texto citado, os objetivos da Misso, a mes-ma para qualquer parte do mundo, inspirada no fundador dos oratriosque, em todos os lugares, foram se transformando em internatos, ondea vigilncia contnua garante a transformao dos estudantes em cria-turas dceis e teis, moldando as individualidades segundo um padrodesejvel. Pois essa outra faceta do poder pastoral, o enquadramentodo comportamento individual para adequ-lo a um modelo divino,inalcanvel por definio, ficando o homem sempre cativo de uma d-vida infinita para com Deus.

    o filsofo contemporneo Gilles Deleuze (Abecedrio deDeleuze, 1996)6 que mostra como o poder separa as pessoas que esto aele submissas daquilo que elas podem fazer, restando a tristeza da inca-

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    pacidade, do jamais alcanar o que se pretende. Essa uma invenodo cristianismo. O padre inventou uma dvida infinita para com Deus.Nas sociedades primitivas, havia dvidas finitas. Para saldar as dvi-das, havia as trocas. A dvida precedia a troca. Aqui, no. A pessoa nas-ce, permanece, para sempre, devedora para com Deus e para com aque-las bondosas pessoas que se dedicam incansavelmente no trabalho daeducao. Essa dvida infinita uma inveno histrica do cristianis-mo (no de Cristo, certamente!). Outra forma de cativeiro. Assim, oobjetivo de se tornar bom cristo e honesto cidado to amplo edifuso que dentro dele cabem todas as exigncias dos superiores e so-mente eles tm o poder de decidir e avaliar toda e qualquer atividadedo aluno; no h uma medida exata para se atingir, com o estudo, apiedade, a alegria, mas somente eles podero dizer se a alegria sa-dia, se o sucesso do estudante no manifestao de soberba, se a pie-dade no fingida (...) (Gomes, 1991, p. 113).

    Para se chegar ao corao mesmo do sistema preventivo, os in-ternatos tm toda uma organizao interna de vigilncia constante que,aparentemente, no agride, como o sistema repressivo, que vigia paraidentificar as falhas e puni-las; aqui no, a vigilncia uma espcie deassistncia que coloca os jovens na impossibilidade de cometer falhas;nas instituies salesianas, cada aluno, ao chegar, discretamente de-signado para uma diviso: maiores, menores e mdios. Cada divisotem seu lugar marcado, sempre o mesmo, seu dormitrio, seu espaono refeitrio, na sala de aula, na sala de estudo, na igreja, no ptio. Ecada aluno, dentro da sua diviso, ocupa sempre a mesma posio, amesma carteira na sala e o mesmo lugar na mesa do refeitrio. Os deuma diviso so proibidos de conversar com os outros da outra diviso.No se pode afastar da diviso, sem avisar ao assistente. Durante 24horas por dia o aluno est sendo acompanhado, observado (assistido)pelos assistentes e vice-assistentes.

    E, por fim, o Regulamento, um conjunto de normas geral-mente muitas! que cria o modo uniforme segundo o qual as coisasdevem ser feitas. A observncia das regras produz santos, o que sepode deduzir do tom das narrativas da vida dos santos que so lidas nointernato. Jovens que so capazes de deixar uma palavra escrita na me-tade, porque tocou o sino e preciso obedecer. Os regulamentos, lon-gos e minuciosos, descrevem as funes de cada encargo, a maioria dasquais exercida pelos prprios alunos. Esta tcnica realiza uma dupla

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    imposio: impe aos que melhor se sujeitarem, o prmio de impor,aos colegas, os regulamentos da instituio (idem, ibid., p. 117).

    O poder pastoral se exerce plenamente na medida em que os su-periores puderem conhecer o que se passa na cabea das pessoas, explorarsuas almas, forando-as a revelar seus segredos mais ntimos. O mestreespiritual interroga o aluno, obrigando-o a falar das suas prprias moti-vaes, do vacilar da vontade, do lampejo do pensamento, dos deleitesdos sentidos (idem, ibid., p. 118) e ensina-os a fazer o exame de cons-cincia: olhar para o que se e no deveria ser, e olhar para o que deve-ria ser, mas ainda no se , a verdade-de-si, no de qualquer verdade,mas de uma verdade de salvao, a mesma para todos, inibindo a possi-bilidade de cada um fazer uma experincia de si diferente.

    O poder pastoral interfere claramente nos processos individu-ais de subjetivao e o sujeito pedaggico resulta, ento, da articula-o, por um lado, entre os discursos que o nomeiam e, por outro lado,das prticas institucionalizadas que o capturam, para torn-los dceise teis.

    Tomamos, para exemplificar a aplicao do sistema preventivo noRio Negro, um texto de 1949, do padre Antnio Giaconne, que relata aHistria de um indiozinho da Misso de Taracu, no rio Uaups (AM).

    Trata-se de episdio histrico em todas as suas particularidades, servin-do para revelar a grande dificuldade de educar e levar o ndio civiliza-o. Ns, salesianos, cumprindo a ordem do santo fundador, S. Joo Bosco,procuramos atrair a ns a juventude, colocando-a nos internatos, com es-colas, oficinas e trabalhos agrcolas. Verificamos, pela experincia, que esse, ainda, o melhor sistema para conduzir tambm os adultos civilizao e luz do evangelho. (Giaconne, 1949, p. 3. Grifos nossos)

    Conta o padre que, em 1927, apareceu na Misso um indiozinhode seus sete anos, acompanhando uma famlia de dessanos e que setornou logo conhecido por sua ndole fogosa e esperteza em tirar tudoo que pudesse servir para os seus dentes. O relato traz, com detalhes,os passos pelos quais o indiozinho, o pequeno vagabundo (assim onomeia o Padre) foi passando no doloroso processo de civilizar-se: Vi-via como um animal, (...) no tendo cama para dormir (...) passava asnoites no meio dos ces; arrancava a macaxeira e a roia como os ratosdo mato; girava pela misso como um cachorrinho esfaimado; alimen-

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    tava-se na misso e dormia fora, passando o dia na vagabundagem;quando um civilizado, de passagem pela Misso, quis lev-lo como em-pregado,

    O missionrio interveiu [sic] no contrato e no permitiu que fosse levado,porque sabia que o pobrezinho perderia para sempre a liberdade. Depoisde algum tempo, o pequeno rfo (...) entrou na misso como interno.No fcil descrever o que se passou naquela alma selvagem, at chegar auma completa transformao. O sistema de D. Bosco, apoiado todo na ra-zo, na religio e no carinho, aplicado entre os civilizados, deu, tambmaqui, timos resultados. (...) Depois de dois anos de luta, passou a ser ummenino dcil e obediente, e aprendeu no s a ler e a escrever, mas tambmo ofcio de carpinteiro, tornando-se elemento til ptria e motivo de sa-tisfao para os seus educadores. (1949, p. 83-85. Grifos nossos)

    Transcrevemos esses trechos da histria do indiozinho com oobjetivo de evidenciar como funcionam os dispositivos pedaggicos daeducao escolar entre os ndios, baseada no sistema preventivo, ecomo se articulam, por um lado, os discursos que nomeiam o ndioe, por outro lado, as prticas institucionalizadas que o capturam paratorn-lo dcil e til (...).

    So os dispositivos pedaggicos funcionando. Um sistema quetoca sem manchar, que amolda sem ferir. a vigilncia contnua colocan-do os internos na impossibilidade de cometer faltas, mas tambm este-rilizando toda possibilidade de fazer uma experincia de si diferente(Gomes, 1991, p. 142).

    Ensino mdio dentro e fora de terra indgena: propostas locais demudana

    Em geral, o ndio gosta de aprender e civilizar-se para vi-rar branco, como dizem, pois sero convencidos de que,uma vez educados, so capazes de fazer as mesmas coisasque fazem os civilizados. (Giaconne, 1949, p. 70)

    Em nosso entender, o Ensino Mdio Indgena ainda no existeem funcionamento no Alto Rio Negro. O tipo de ensino oferecido hojepelos missionrios, em Iauaret e So Gabriel, o mesmo que dadoem qualquer estado e municpio do pas, no trata das questes indge-

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    nas especificamente, no prioriza a cultura indgena, no organiza ocurrculo em torno dos projetos das sociedades indgenas. O trabalhofronteirio da cultura exige um encontro com o novo que no seja par-te do continuum de passado e presente. Ele cria uma idia do novocomo ato insurgente de traduo cultural (Bhabha, 2005, p. 27).

    As idias do autor, fundamentadas no ps-colonial, nos ajudam aperceber porque isso ocorre: o ensino mdio, desde a sua implantao,em So Gabriel (1976) e Iauaret (1988), no tem sido pensado pelos n-dios, est sendo feito para os ndios. Isso j traz dificuldade bsica porquequalquer tentativa de fora para dentro da sociedade indgena artificial, de fora! E imprime os objetivos da outra sociedade. E uma educaoescolar pensada por outra sociedade tende a enfraquecer a raiz de umpovo, o seu lado espiritual, a sua lngua, a sua cultura, o seu jeito depensar, o seu jeito de ver o mundo... Essas coisas que as pessoas recebemdo pai e da me, atravs da lngua, na mitologia, na histria, naquilo quecada povo foi construindo...

    Nesse momento ps-colonial, os movimentos transversais, transnacio-nais e transculturais, inscritos desde sempre na histria da colonizao,mas cuidadosamente obliterados por formas mais binrias de narrativi-zao, tm surgido de distintas formas para perturbar as relaes estabele-cidas de dominao e resistncia inscritas em outras narrativas e formasde vida. Eles reposicionam e deslocam a diferena sem que, no sentidohegeliano, se atinja sua superao. (Hall, in: Sovik, 2003, p. 114)

    Em So Gabriel da Cachoeira, h muito que as comunidades gri-tam por uma educao escolar prpria, ainda que embrionariamente eainda que contando com uma ao clara do poder pblico. Esse anseioteve uma expresso forte no seminrio Os povos indgenas no alto e m-dio Rio Negro e a educao escolar: construindo um ensino mdio espe-cfico, promovido conjuntamente pelo MEC/SEMTEC e pelo Conselho dosProfessores Indgenas do Alto Rio Negro (COPIARN), no perodo de 8 a 10de maro de 2004, com o objetivo de avaliar a situao do ensino mdioque est sendo oferecido na regio, discutir e formular diretrizes e polti-cas para implantao do ensino mdio especfico nas escolas indgenasdo alto e mdio Rio Negro.7

    Em suma, o I Seminrio veio atender aos anseios dos diversos po-vos indgenas do Rio Negro que, representados por lideranas, associa-es, escolas e entidades exigiram

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    uma postura mais responsvel (democrtica, solidria e de respeito)refletida em aes concretas por parte do poder pblico municipal (SEMEC),estadual (SEDUC) e federal (MEC/SEMTEC) na implantao do ensino mdioespecifico e diferenciado nas escolas indgenas assegurados pela Constitui-o Federal, pela Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional (Lei9394/96) pela Resoluo n 03/1999 do Conselho Nacional de Educa-o, pela Resoluo n 11 do Conselho Estadual de Educao do Amazo-nas e pela Lei Municipal n 135/2001, que reorganiza o Sistema Munici-pal de Educao Indgena de So Gabriel da Cachoeira. (I Seminrio,2004, p. 6)

    Este I Seminrio teve uma importncia muito grande na regio,porque foi um momento em que os professores participantes seposicionaram e pediram insistentemente que o regimento escolar daDiocese de So Gabriel da Cachoeira, em funcionamento, fosse substi-tudo por projetos poltico-pedaggicos das escolas e que pudessem seramplamente discutidos entre professores, pais, alunos, entidades ind-genas e a comunidade em geral, respeitando a diferena cultural dospovos indgenas, suas lnguas, seu patrimnio histrico; que cada esco-la, trabalhando de forma crtica, por meio da pesquisa, passasse a utili-zar os conhecimentos tradicionais das etnias, no dilogo com as outrasculturas.

    A partir do I Seminrio, as escolas de Pari Cachoeira, Taracu eAssuno do Iana comearam a realizar suas pesquisas com o objetivode fazer uma proposta de descentralizao e de implantao de um en-sino mdio prprio. Reivindicam um calendrio diferenciado, com umapreviso de durao dos cursos com o tempo necessrio para a forma-o do aluno e uma gesto indgena, substituindo as irms diretoras. uma dura batalha, uma vez que a diocese no se mostra favorvel re-tirada das irms da direo das escolas. Uma vez que as relaes quecaracterizaram o colonial no mais ocupam o mesmo lugar ou a mes-ma posio relativa, podemos no somente nos opor a elas mas tam-bm criticar, desconstruir e tentar ir alm delas (Hall, in: Sovik,2003, p. 119).

    Nos relatos dos participantes do I Seminrio h claramente umaansiedade por mudanas significativas. As propostas aparecem quasesempre no sentido, por um lado, de mudar a gesto das escolas, pas-sando essa responsabilidade para quem tem as melhores condies deresponder por ela, ou seja, os prprios ndios; de cada escola ter seu

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    prprio projeto pedaggico, pensado, elaborado e executado pelosprprios ndios, de forma a valorizar os saberes tradicionais dos po-vos, as suas lnguas (todas!) e cultura. Por outro lado, ao mesmo tem-po em que as falas so lcidas e decididas, na prtica, h uma espciede paralisia, um medo de assumir, que os imobiliza. Por que istoacontece? isso que nos perguntamos, uma vez que a reivindicaopor ensino mdio indgena tem sido decisiva em vrios lugares da re-gio: J esperamos demais! Se no for aprovado, vamos comear domesmo jeito! Queremos assumir nossas escolas! Temos pessoas comcapacidade para isso!

    O que significa este posterior e este ir alm? (...) Posterior significa omomento que sucede o outro (o colonial), no qual predomina a relao co-lonial. No significa (...) que o que chamamos de efeitos secundrios dodomnio colonial foram suspensos (...). Contudo, reafirma-se aqui o fato deque configuraes emergentes, porm relacionadas, de poder-saber come-am a exercer seus efeitos especficos. (Idem, ibid., p. 119)

    Nesses lugares, os professores e outros participantes realizaramassemblias com as comunidades, para comunicar os resultados do ISeminrio, tomar as decises locais e fazer os encaminhamentos neces-srios para a implantao j decidida e apoiada pelas autoridades pre-sentes. Para nossa surpresa e, quem sabe, desencanto, em dois dos trslugares, as assemblias haviam aprovado que a gesto das escolas deve-ria ser feita pelos ndios, mas somente dentro de um ou dois anos. Mo-tivo: No temos experincia... No estamos preparados. A isso queestamos chamando de medo que paralisa, apesar das configuraesemergentes de que nos fala o autor. A educao para a docilidade, paraa obedincia e submisso continua produzindo efeitos.

    Com a colonizao e, conseqentemente, com o ps-colonial, nos situ-amos irrevogavelmente dentro de um campo de foras de poder-saber. justamente a distino falsa e impeditiva entre colonizao enquanto siste-ma de governo, poder e explorao e colonizao enquanto sistema de co-nhecimento e representao que est sendo recusada. (Hall, in: Sovik,2003, p. 119)

    Por isso, qualquer esforo de mudana precisa ser acompanhadodo entendimento profundo do que causou/causa esse medo. A educa-o no sistema preventivo, como aponta Gomes (1991), chama para a

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    obedincia e para a submisso, no para a criao, para a iniciativa. Osdispositivos pedaggicos do sistema preventivo atuam sobre os proces-sos de subjetivao: conduzem a uma experincia de si controlada, auma verdade, sempre a mesma para todos; os internatos indgenas fo-ram um mal necessrio, afirmou o Bispo no I Seminrio. Tudo feito commuita bondade e com muita dedicao por parte dos missionrios. O queno est posto que existe um perigo maior do que no ter educaoescolar: o perigo de a educao escolar obstruir a vida enquanto potn-cia criadora, por meio dessa prtica de subjetivao dominante: aceitarser o que os outros acham que bom para si. Isso em todos os aspectos,inclusive o religioso.

    As diferenas sociais no so simplesmente dadas experincia atravs deuma tradio cultural j autenticada; elas so os signos da emergncia dacomunidade concebida como projeto ao mesmo tempo uma viso e umaconstruo que leva algum para alm de si para poder retornar, comum esprito de reviso e reconstruo, s condies polticas do presente.(Bhabha, 2005, p. 21-22)

    O autor chama a ateno para o fato de que as culturas coloni-zadas podem ser contingentes modernidade, resistentes opressoassimilacionista; porm, elas tambm so resultado do hibridismocultural de suas condies fronteirias para traduzir e, portanto,reinscrever, tanto o imaginrio social da metrpole como da moderni-dade. Assim, ele pode criar uma idia do novo como ato insurgentede traduo cultural (idem, ibid., p. 26). Para Bhabha, no espaoda traduo a construo sempre nova. um sinal de que a histriaest acontecendo porque torna possvel a negociao de instncias con-traditrias e antagnicas, que abrem lugares e objetivos hbridos deluta (p. 51).

    Frente ao exposto, acreditamos que o que precisa mudar o con-ceito de educao: educar para qu? Essa resposta que tem que nascerdentro das comunidades; essa resposta no est em nenhum livro domestre, o que significa que a educao indgena diferenciada no exis-te como modelo: cada comunidade ter que inventar essa educaonova, voltada para os interesses dos povos e das pessoas; essa educaopode ajudar cada indivduo a fazer a experincia de si, na comunhocom seu povo, nas relaes que julgar boas para si. Mas que ele e seupovo julgarem serem boas.

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    Por isso, mudana em educao no significa: cadastrar a escolacomo indgena; aumentar algumas disciplinas na parte diversificada dagrade curricular da SEDUC, quase sempre Lngua Indgena, Arte Ind-gena, Agricultura Indgena... Certamente, isso tem representado umesforo, mas em termos de mudana real tem tambm se revelado comoum esforo intil, porque o difcil no fazer essas trocas ou acrscimos,o difcil romper com as formas de ensino, com os mtodos e contedosfixados historicamente. Difcil fugir das manobras do conhecimento te-rico dominante, que pode usar a poltica cultural da diferena para ex-cluir o Outro, fazendo-o permanecer como o dcil corpo de diferena(Bhabha, 2005, p. 59). Difcil encarar as possibilidades de mexer naestrutura mesma da educao, incluindo a os objetivos, os calendrios,as formas de organizao das turmas e de progresso, as formas de avalia-o e de registro. Difcil produzir o material de apoio necessrio paraalcanar os objetivos previstos.

    No adianta remendar (o remendo novo em pano velho aumen-ta ainda mais o furo), porque essa educao foi estruturada sobre basesconceituais, das quais, hoje, a comunidade indgena discorda. Tantodiscorda que aproveita um momento importante do I Seminrio e cla-ma: queremos construir nossa Escola Indgena!

    As transmutaes e tradues de tradies nativas, em sua oposio au-toridade colonial, demonstram como o desejo do significante e a indeter-minao da intertextualidade podem estar profundamente empenhadosna luta ps-colonial contra as relaes dominantes de poder e conhecimen-to. (Bhabha, 2005, p. 61)

    Lembrando, ainda, que os ndios que esto fazendo sucesso navida, fora ou nas comunidades, esto fazendo sucesso como ndios.Quem deixou de ser ndio e desapareceu na sociedade nacional est emalgum cantinho, amargando uma tristeza profunda de no saber quem, afinal. Se a educao corta a raiz indgena, ele perde a chance de sedar bem na vida, na prpria comunidade ou em outra sociedade. Nes-se sentido que o efeito-escola pode esterilizar a potncia de vida.

    A linearidade fragmentada do saber dominante rompe as integraes entreos sistemas. O saber local resvala pelas rachaduras da fragmentao. eclipsado com o mundo ao qual est ligado. Desse modo, o saber cientfi-co dominante cria uma monocultura da mente ao fazer desaparecer o es-pao das alternativas locais, de forma muito semelhante das monocul-

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    turas de variedades de plantas importadas, que levam substituio e des-truio da diversidade local. (Shiva, 2003, p. 25)

    As instituies salesianas da regio, tanto as de ensino fundamen-tal quanto as de ensino mdio, ainda acreditam nas vantagens do sis-tema preventivo sobre outros mtodos e processos pedaggicos (Go-mes, 1991, p. 147). Depois de quase um sculo de educao escolarpreparando os alunos para serem bons cristos e bons cidados, coma utilizao de mtodos e processos eficientes de integrao do ndio sociedade nacional, mediante uma postura de converso constante, ainda constante ouvir falar em dificuldades dos alunos em funo desua origem indgena. Uma professora indgena declarou:

    (...) os alunos indgenas sofrem vrios obstculos, discriminao, sobre-tudo. So discriminados pelos no indgenas porque no pertencem mesma cultura (a branca). Eles so diferentes porque tm lngua, cultu-ra, cor diferentes da civilizao branca. So lentos na aprendizagem por-que acham difcil compreender tudo o que ensinado (...). A dificulda-de que percebo nos alunos indgenas na expresso e na socializao.Eles no conseguem expressar suas idias. Quanto s outras condies,desconheo.

    Essa observao de que os alunos indgenas so tmidos mui-to comum; uma explicao natural, que opera como uma forma desilenciamento, como se a timidez fosse uma caracterstica prpria decrianas e jovens do interior. No entanto, se fizermos uma compara-o com os alunos das escolas Pamali (baniwa-coripaco) e Utapino-pona (tuyuka), tal explicao no se sustenta. So duas escolas-piloto,duas experincias que tm sido vistas como uma possibilidade de seconstruir uma educao indgena aliada luta pela afirmao das cul-turas e dos saberes locais, adotando um sistema de sustentabilidadeescolar, educao plurilnge e intercultural e onde as lnguas tmfunes definidas e um espao de uso e reproduo, de criao de his-trias de traduo cultural como alternativas quelas impostas pelo do-mnio colonial.

    Os alunos destas duas escolas impressionam pela facilidade daexpresso, pela alegria e pelo entusiasmo com que falam e expem osresultados de suas pesquisas e de seus trabalhos; falam na aula o tem-po todo, perguntando, contestando, ajudando os colegas; a ltimacoisa que um visitante diria de um desses alunos que so tmidos.

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    Perspectivas de mudanas: caminhos em busca da emancipao?

    1. Propostas a partir das escolas indgenas Pamali (baniwa-coripaco) eUtapinopona (tuyuka)

    Ainda que se trate de duas escolas de ensino fundamental, apre-sentamos a descrio destas experincias porque so escolas que nasce-ram da deciso de dois diferentes povos com o mesmo objetivo, po-rm, com encaminhamentos diferentes. O objetivo da criao destasescolas-piloto, como foram concebidas, foi oferecer s comunidades apossibilidade de seus filhos terem uma educao escolar que rompesseradicalmente com os modelos conhecidos at ento, na regio, orienta-dos pelo sistema preventivo de D. Bosco. forte essa influncia por-que a presena salesiana uma presena estimuladora, animadora e re-ligiosa que, exprimindo-se em relaes interpessoais, radicadas em umafundamental confiana nos jovens (art. 52), produz efeitos duradou-ros porque trabalha com amor e dedicao; assiste o corpo, mas cap-tura a alma para libert-la das foras interiores, como ocorreu com oindiozinho da misso de Taracu: no fcil descrever o que se pas-sou naquela alma selvagem at chegar a uma completa transformao.

    Contra esse eficaz sistema, levantaram-se para valer dois povos os baniwa-coripaco e os tuyuka que se propuseram, a partir de doisprojetos, a inventar a prpria educao escolar que, talvez, no seja umsistema to bem estruturado, mas tem deciso e princpios bem claros.E a prtica, continuamente avaliada, vai dizendo como deve ser.

    Os dois projetos fazem parte de um projeto maior de educaoque a FOIRN desenvolve na regio, em parceria com o Instituto Socioam-biental (ISA); essas organizaes, por sua vez, contam com recursos exter-nos e, no caso do Projeto de Educao, contam com o apoio de Horizon-te 3000/Governo Federal da ustria e Rainforest Foundation/Noruega.Contam, ainda, com o apoio da Secretaria Municipal de Educao de SoGabriel da Cachoeira, da FUNAI, administrao local, do Conselho Esta-dual de Educao Escolar Indgena do Amazonas e da Coordenao Ge-ral de Educao Indgena/MEC. Tm, ainda, o apoio de profissionais doInstituto de Polticas Lingsticas (IPOL) e de outros pesquisadores.

    No incio do ano de 2004, foi feita uma avaliao externa e inte-grada dos projetos em parceria FOIRN/ISA na regio do Rio Negro. Do

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    Relatrio, apresentado pelos cinco avaliadores, destacamos e transcre-vemos trs pargrafos que sintetizam os aspectos fundamentais que re-velam a relevncia das experincias, considerando como critrio a abor-dagem que os projetos fazem das necessidades das pessoas que deles vose beneficiar:

    Observou-se que a Escola Tuyuka foi iniciada pela comunidade, desen-volvida segundo seus desejos e vem se constituindo em um longo proces-so de discusses sobre os mais diversos assuntos. As iniciativas em seu m-bito vm sendo desenvolvidas seguindo o seu prprio ritmo. A posse edireo da escola pelos componentes um componente muito forte.Quanto Escola Pamali, avaliou-se que esta se encontra efetivamente vol-tada para a formao de cidados Baniwa orientados para as responsabili-dades de trabalho em sua comunidade, para a criatividade, o respeito aosvalores prprios e para o dilogo intercultural. O Projeto Poltico-Pedag-gico dessa escola destaca-se por marcar uma diferena com as demais esco-las municipais e missionrias. A nfase na formao de pessoas orientadaspara o trabalho na comunidade coerente com a viso de bem-estar e de-senvolvimento sustentvel que preconiza o movimento indgena, e temuma expresso clara na organizao da escola, na proposta curricular, no ca-lendrio, e no funcionamento da escola.Ambas as escolas foram consideradas pelos avaliadores no apenas relevan-tes para as poucas comunidades que esto agora envolvidas, mas potenci-almente relevantes tambm para todas as comunidades indgenas que de-sejam valorizar suas lnguas e culturas. (Relatrio Final Avaliao Externa,2004, p. 26).

    2. Propostas a partir da implantao recente do ensino mdio em PariCachoeira, Taracu e Assuno do Iana

    O processo de implantao de ensino mdio indgena nas ter-ras de Pari Cachoeira, Taracu e Assuno do Iana foi o resultado deinmeras reivindicaes das comunidades envolvidas. Na ocasio, a rei-vindicao maior foi a da abertura imediata do ensino mdio nesses trsdistritos, os quais esto espera dessa iniciativa h muitos anos: PariCachoeira tem ensino fundamental desde 1976, com mais de 500 alunosque terminaram a 8 srie; Taracu, com ensino fundamental completodesde 1979, com 228 alunos que concluram at 2003; Assuno doIana, com 102 alunos que j concluram o Fundamental, desde 2000at 2003; esses distritos, todos em rea indgena, nunca tiveram a ofer-

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    ta de ensino mdio, apesar das inmeras reivindicaes Secretaria deEstado de Educao do Amazonas.

    Por isso, pode-se afirmar que o I Seminrio foi decisivo, porqueali se costuraram os compromissos entre comunidades interessadas,MEC/SEMTEC e SEDUC/AM. Em poucas semanas, os distritos se organiza-ram, convocaram assemblias para discutir alguns pontos e tomar deci-ses fundamentais, de maneira que foi possvel, no espao de dois me-ses, dar incio s aes de implantao do ensino mdio nesses trsdistritos.

    O ensino mdio indgena est se propondo comear agora, nes-ses centros missionrios de Pari Cachoeira (no Tiqui), Taracu (noUaups) e Assuno (no Iana), com uma grande vitria dos professo-res:8 a deciso de oferecer uma educao escolar voltada para as necessi-dades e projetos das suas prprias comunidades e, finalmente, com osprofessores e lideranas desses distritos assumindo a gesto das escolas;os professores que acabam de assumir a responsabilidade do ensino m-dio nesses trs distritos no tm experincia em educao escolar dife-renciada e ser preciso inventar essa escola, uma vez que toda a suaformao tem sido feita no sentido de preparar o ndio para sair da al-deia e viver em outra sociedade.

    Como conseqncia, at ento, o sonho de cada adolescente doensino fundamental e do mdio (onde este j existe) est sendo prepa-rar-se para ter um emprego na sociedade dos brancos. O resultado temsido desastroso: os jovens terminam o ensino mdio, o emprego deseja-do no existe pelo menos no para todos , eles saram das prpriascomunidades para estudar, no aprenderam quase nada da sua prpriacultura, no sabem trabalhar, pois passaram a viver fora do seu contex-to familiar; o ensino mdio tambm no os preparou nem para o vesti-bular (outra iluso!), nem para algum tipo de trabalho profissional; nogostam mais de viver nas aldeias, alimentam sonhos de viver nas cida-des, a maioria no volta para as comunidades.

    Enfim, uma escola diferenciada

    Por sua imensa capacidade de resistir, as naes indgenas no de-sapareceram ao longo dos 500 anos de colonizao e de massacre cul-tural, mas sofreram grandes perdas; sobretudo na prtica das suas reli-

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    gies, da sua cultura, algumas perderam a lngua de origem; perderammuito da cincia da sade e da alimentao sadia, tendo sido a funodos pajs uma das mais perseguidas pelos missionrios, considerada,tanto por catlicos como por protestantes, como rituais diablicos.

    Atualmente, h um movimento muito interessante, na regio, devolta s prprias razes, de pesquisar a prpria cultura, de revitalizar aslnguas maternas, de criar condies de bem-estar e prazer de viver nasprprias aldeias, enfim, de reinventar a vida, investindo em projetos deauto-sustentabilidade; as organizaes indgenas vem a educao esco-lar como uma tima aliada, desde que modifiquem seus mtodos e ob-jetivos, seus programas, seus calendrios, enfim, sua filosofia.

    Os enormes esforos empreendidos, atravs dos anos, no apenas por es-tudiosos da academia, mas pelos prprios praticantes da cultura, de jun-tar ao presente essas rotas fragmentrias, freqentemente ilegais, e re-construir suas genealogias no-ditas, constituem a preparao do terrenohistrico de que precisamos para conferir sentido matriz interpretativae s auto-imagens de nossa cultura, para tornar o invisvel visvel. (Hall,in: Sovik, 2003, p. 42)

    H uma vontade forte de mudar essa situao; prova isso o fatode, nos trs centros missionrios onde o ensino mdio est comeandoagora, os professores e lideranas terem assumido a gesto das prpriasescolas, fato indito e corajoso, quando se sabe que foram educados paraa docilidade e submisso, sempre levados a se entenderem como inca-pazes e tendo que receber essa educao dirigida por pessoas de fora,porque essa era a escola boa; as outras eram coisa de ndio, de segun-da. Tanto assim que as outras escolas, as das pequenas comunidades, eram(so ainda em muitos casos!) chamadas de escolinhas ou de escolas ru-rais, num sentido bem pejorativo.

    O desafio dos professores indgenas do Rio Negro de gerir e le-var adiante o ensino mdio, segundo seus objetivos atuais, traados poreles, juntamente com as lideranas de comunidades, exige um investi-mento contnuo na formao dos professores. Alguns deles esto cur-sando o terceiro grau na Universidade Federal do Amazonas (UFAM) ouna Universidade do Estado do Amazonas (UEA), em cursos de frias, massem nenhum preparo para uma educao diferenciada.

    Nesse sentido, o propsito de fazer o ensino com pesquisa, deorganizar os currculos por projeto, de produzir material didtico nas

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    lnguas maternas, para dar suporte s escolas de ensino fundamentalna regio, precisa de assessoria especializada, com urgncia.

    Ao levantar essas questes por ocasio das primeiras assembli-as para definir os rumos que devero tomar os cursos de ensino m-dio, os professores entenderam que, se bem trabalhadas em continu-adas sesses de estudo, essas questes estariam trazendo os elementosmnimos para a elaborao do projeto poltico-pedaggico de cada es-cola. Realmente, para definir esses pontos, muitos debates tero queacontecer. Essa certeza apontou para outra necessidade: a da forma-o contnua desses docentes.

    Consideraes finais

    Ao apontarmos os dispositivos pedaggicos em funcionamento noensino mdio no alto e mdio Rio Negro, focalizando os efeitos que osistema preventivo da educao salesiana tem produzido ao longo dessetempo todo, desde 1920 at hoje, no ignoramos os esforos de mudan-a que se tem feito nos ltimos anos, no sentido de adequar os prin-cpios cristos cultura indgena. Diversas circunstncias provocaramessa reviso por parte dos missionrios: a prpria Igreja Catlica ps-con-clio Vaticano II, por um lado, fazendo a opo preferencial pelos po-bres, que teve grande repercusso em toda a Amrica Latina, sinalizando,em relao os ndios, no Brasil, a criao do Conselho Indigenista Missio-nrio (CIMI), ligado Confederao Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB),que se colocou como objetivo a denncia s agresses sofridas pelos n-dios e o apoio s suas reivindicaes e direitos.

    De outro lado, o prprio movimento indgena, a partir de umagrande resistncia, retomou a sua prpria histria e no permitiu o desa-parecimento de suas culturas, apesar de todo o tipo de massacre, escravi-do e aculturao. Este foi um dos pilares que balanou a segurana dosmissionrios, obrigando-os a rever suas estratgias. Quando os ndios co-mearam a manifestar a sua desconfiana na palavra divina como fontede verdade escrita ou falada pelos missionrios, foi preciso encontrarcatequistas nativos, que traziam consigo suas prprias ambigidades econtradies culturais e polticas, muitas vezes sob grande presso de suasfamlias e comunidades (Bhabha, 2005, p. 62).

    Cabalzar Filho (1999) cita um livro do padre salesiano CasemiroBetska (Adaptao, 1969), no qual ele mostra que foi um erro querer

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    ocidentalizar tudo no trabalho com os ndios e que a Igreja corria o riscode ser vtima dessa atitude; que preciso, antes, aproveitar os simbolis-mos e adaptar-se aos costumes para que eles possam assimilar melhor amensagem do Evangelho, j que os ndios so, no mago de suas almas,naturalmente cristos (1999, p. 372). Houve, ainda, a partir de 1970,um movimento para mudar as estratgias pastorais, que passaram a utili-zar-se de objetos de artesanato para enfeitar a Igreja, produtos indgenaspara ofertar na missa, de modo a recuperar costumes que haviam sidofortemente condenados antes.

    Segundo o autor, em 1982, o padre Afonso Casasnovas fez umaavaliao do processo de evangelizao no rio Iana, em artigo publica-do na revista Centenrio em Foco (n. 5), onde alerta:

    No deveramos ter medo de perder tempo, estudando bem a cultura ea lngua deles (dos ndios) para prepararmos uma corajosa reviso dos nos-sos mtodos educativos, evangelizadores e de promoo humana. S co-nhecendo o pensamento mtico dos nossos ndios e descobrindo os seusvalores poderemos educar e transmitir a Boa Nova de uma maneira efici-ente e respeitosa. Estamos sempre estudando sua cultura, sua lngua, suaslendas. Acreditamos que so eles, os baniwa, que nos vo dar o modo deviver e transmitir a Mensagem, atravs de uma liturgia encarnada na suarealidade. (Apud Cabalzar Filho, 1999, p. 372)

    O problema que os dois padres propem apenas a reviso dosmtodos, no se colocando jamais a possibilidade de questionar o pro-psito de querer fazer dos ndios bons cristos. Tudo o que mudouatualmente foi querer que eles sejam bons cristos sem deixar de serndios, ressalta Cabalzar Filho.

    Na rea da educao ocorre o mesmo: no se fez nenhuma mu-dana substancial nas escolas de orientao salesiana. A mudana fei-ta no Regimento da Diocese, em 2000, prova disso. Incluem-se al-gumas citaes da nova legislao e dos objetivos traados, em nvelnacional, para a educao escolar indgena, fala-se em fortalecer a ln-gua materna de cada etnia, dar formao especfica aos professores,em desenvolver currculos e programas especficos de acordo com asexigncias da clientela a ser atendida, desenvolver a memria histri-ca dos povos, suas tradies e lnguas (...) (arts. 76-79). Mas, naprtica, as escolas sequer tm um levantamento das etnias que freqen-tam cada sala de aula, no se tm dados das lnguas que so faladas/

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    escritas pelos alunos e pelas comunidades a que pertencem; e os curr-culos e programas so exatamente os mesmos formulados pelo Estadopara todos os estudantes do Amazonas.

    (...) os sistemas locais de saber no mundo inteiro (...) tm sido subjugadospor polticas de eliminao, no por polticas de debate e dilogo (...). Pri-meiro fazem o saber local desaparecer, simplesmente no o vendo, negan-do sua existncia (...). Quando o saber local aparece de fato no campo daviso globalizadora, fazem com que desaparea negando-lhe o status de umsaber sistemtico (...). (Shiva, 2003, p. 21-23)

    O Estado ignora as especificidades, seja em relao formao dosprofessores, seja no incentivo elaborao e publicao de materiais ade-quados ou flexibilizao de calendrios e de formas de avaliao e regis-tros. No nosso entendimento, primeiro se faz uma proposta, se experi-menta, se avalia e, somente ento, se regimenta, se for o caso, paragaranti-la. No caso do Rio Negro, se regimentou antes de se ter umaproposta. Ou melhor, neste caso, a proposta a que est clara no Regi-mento: o sistema preventivo est garantido no Regimento da Diocese,como conceito e formas de operacionalizao.

    Como, para Hall (in: Sovik, 2003, p. 44), a questo no o queas tradies fazem de ns, mas o que ns fazemos das nossas tradies,resta-nos observar se os ndios vo continuar regimentados no modode ser do sistema preventivo ou vo construir o ensino mdio indge-na no alto e mdio Rio Negro a partir de um processo de se tornar,de se fazer a partir de suas tradies!

    Recebido em maio de 2006 e aprovado em junho de 2006.

    Notas

    1. Pesquisa realizada por Judite Gonalves de Albuquerque, em maro de 2004.

    2. Se considerarmos as etnias e o nmero de alunos que delas fazem parte, com certeza, a afir-mao verdadeira, mas se considerarmos os objetivos, as metas, os mtodos, enfim, oscurrculos que orientam as aes dessas escolas, possvel chegar a outras concluses.

    3. Ver Regimento Escolar da Diocese de So Gabriel (2000), art. 3.

    4. Os estabelecimentos de ensino pertencentes Diocese de So Gabriel da Cachoeira, em cujaadministrao esto as Filhas de Maria Auxiliadora, so hoje em nmero de onze, nos mu-nicpios de Barcelos, Santa Isabel e So Gabriel da Cachoeira.

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    5. Poder pastoral uma denominao dada ao poder da Igreja por Foucault.

    6. Abecedrio Gilles Deleuze: testemunho, entrevista a Claire Parnet, gravada em vdeo, en-tre 1988-1989, e s publicada aps a sua morte. [Verso francesa disponvel em: http:/cura.free.fr/28deleuze.html].

    7. A partir daqui, todas as referncias a esse Seminrio sero indicadas, simplesmente, pelaexpresso I Seminrio e as citaes sero tiradas do Relatrio feito pela equipe do Conse-lho de Professores Indgenas do Alto Rio Negro (COPIARN).

    8. Insistimos que o Ensino Mdio Indgena est comeando agora, no Rio Negro, porqueem Iauaret nica escola em rea indgena que oferece ensino mdio e nas escolas deensino mdio em So Gabriel da Cachoeira fora de rea indgena , ainda que 90% dosalunos sejam indgenas e as escolas estejam cadastradas como indgenas (desde 1997),no o so, como estamos tentando demonstrar.

    Referncias bibliogrficas

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