o estado numa era de reformas: os anos fhc - parte 1

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O ESTADO NUMA ERA DEREFORMAS: OS ANOS FHC

Parte 1

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Coleção Gestão PúblicaBrasília2002

Ministério do Planejamento, Orçamento e GestãoSecretaria de Gestão

O ESTADO NUMA ERA DEREFORMAS: OS ANOS FHC

Parte 1

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NORMALIZAÇÃO: DIBIB / CODIN / SPOA

Presidente da RepúblicaFERNANDO HENRIQUE CARDOSO

Ministro do Planejamento, Orçamento e Gestão

GUILHERME GOMES DIAS

Secretário-ExecutivoSIMÃO CIRINEU DIAS

Secretário-Executivo AdjuntoPEDRO CÉSAR LIMA DE FARIAS

Secretária de Gestão

EVELYN LEVY

Secretário de Recursos HumanosLUIZ CARLOS DE ALMEIDA CAPELLA

Presidente da ENAPESCOLA NACIONAL DE ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

REGINA PACHECO

Equipe Editorial:MARIANNE NASSUNO

CRISTÓVÃO DE MELO

CARLOS H. KNAPP

MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO ORÇAMENTO E GESTÃOSECRETARIA DE GESTÃO

ESPLANADA DOS MINISTÉRIOS, BLOCO K – 4º ANDARCEP: 70.040-906 – Brasília – DF

FONES: (61) 429-4905FAX: (61) 429-4917

www.planejamento.gov.brwww.gestaopublica.gov.br

E-MAIL: [email protected]

Coleção Gestão PúblicaVOLUME 7 - PARTE 1

O ESTADO NUMA ERA DE REFORMAS: OS ANOS FHC - Parte 1Organizadores: Fernando Luiz Abrucio e Maria Rita Loureiro

Revisão: Helena Jansen

É permitida a reprodução total ou parcial desde que citada a fonte.

O Estado Numa Era de Reformas: Os Anos FHC - Parte 1/ Organizadores:Fernando Luiz Abrucio e Maria Rita Loureiro. – Brasília : MP, SEGES,2002.302p.

1. Reforma Administrativa 2. Administração Pública I. Abrucio,Fernando Luiz II. Loureiro, Maria Rita

CDU 35.08

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Em 1993, a Escola Nacional de Administração Pública/ENAP, encomendouum estudo ao Prof. Regis de Castro Andrade sobre a Administração PúblicaFederal. Da pesquisa resultou um diagnóstico consistente do funcionamen-to das organizações e uma caracterização ampla de sua burocracia1.

A importância daquele trabalho se fez sentir rapidamente quando, em1994, às vésperas das eleições presidenciais, ele serviu de orientação,aos diversos partidos em disputa, para que se posicionassem frente a umassunto tão estratégico. Aqueles volumes representaram, de fato, ummapa da burocracia federal, até então bastante remota em relação aorestante do país.

Por casualidade ou não, um dos pesquisadores envolvidos naqueleestudo, o cientista político Fernando Abrucio, teve, durante os dois man-datos do Presidente Fernando Henrique Cardoso, uma participação ativano desenvolvimento da Reforma, acompanhando-a de perto, subsidian-do-a com uma série de pesquisas e colaborando na formação de muitosdos servidores de carreira concursados no período. Tornou-se assim umdos maiores especialistas desse tema, reconhecido no país e no exterior.

Ao lado da Profa. Maria Rita Garcia Loureiro, com quem colaborou eminúmeros desses trabalhos científicos, Abrucio articulou um grupo amplode cientistas políticos e economistas para a realização desse livro. Sãotodos excelentes pesquisadores, trabalhando em diferentes universida-des, situadas em diversas regiões do país, constituindo assim o núcleoinicial de uma rede de estudiosos do tema da Gestão Pública e suarelação com a conformação do Estado no Brasil.

Ao apoiar a realização desses ensaios, o Ministério do Planejamento,Orçamento e Gestão teve por objetivo estimular o debate das questõesreferentes à Reforma do Estado na academia, entendendo que se faznecessário pensá-las de modo crítico, cada vez mais. É preciso criar

1ENAP (1993): Estrutura e Organização do Poder Executivo, Administração Pública Brasileira, Vol.2,

Regis de Castro Andrade e Luciana Jaccoud (org.), Centro de Documentação, Informação e DifusãoGraciliano Ramos, ENAP, Brasília.

APRESENTAÇÃOEVELYN LEVY

SECRETÁRIA DE GESTÃO

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competências internas que permitam tornar o Estado mais democrático eajustado às necessidades contemporâneas da sociedade brasileira.

Acreditamos que, em conjunto com as demais publicações que inte-gram a “Coleção Gestão Pública”2, essa coletânea dará aos leitores ele-mentos para dar continuidade ao aperfeiçoamento das instituições públi-cas do país.

2 A Coleção Gestão Pública é composta dos seguintes volumes: (1) Unidades de Atendimento Integra-

do: como implantar (versão português e espanhol); (2) Balanço da Reforma do Estado no Brasil: aNova Gestão Pública; (3) Cidadãos como parceiros: Manual da OCDE sobre Informação, Consulta eParticipação na Formulação de Políticas Públicas (OCDE tradução); (4) Liderança e Setor Público noSéculo 21 (OCDE tradução); (5) A Política de Recursos Humanos na Gestão FHC; (6) Responsabilida-de e Transparência no Setor Público (OCDE/OAS tradução); e (7) O Estado numa era de Reformas osanos: FHC (Fernando Abrucio e Maria Rita Loureiro)

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AGRADECIMENTOS 9

INTRODUÇÃO 11

ACCOUNTABILITY, REPRESENTAÇÃO E ESTABILIDADE POLÍTICA NO BRASIL

Fátima Anastasia & Carlos Ranulfo Melo 25

CONSTITUIÇÃO OU POLÍTICAS PÚBLICAS? UMA AVALIAÇÃO DOS ANOS FHC

Cláudio Gonçalves Couto & Rogério Bastos Arantes 75

A PRESIDÊNCIA BRASILEIRA E A SEPARAÇÃO DE PODERES (1988-2002)

Kurt von Mettenheim 121

AS REFORMAS E AS TRANSFORMAÇÕES NO PAPEL DO ESTADO: O BRASIL EM PERSPECTIVA

COMPARADA

Flávio da Cunha Rezende 163

REFORMA DO ESTADO E COORDENAÇÃO GOVERNAMENTAL: AS TRAJETÓRIAS DAS POLÍTI-

CAS DE GESTÃO PÚBLICA NA ERA FHC

Humberto Falcão Martins 209

O PERFIL DA BUROCRACIA FEDERAL (1995-2002)

Nelson Marconi 281

SUMÁRIO

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AGRADECIMENTOS

Os organizadores do livro dedicam este trabalho aos professores Régisde Castro Andrade e Luiz Carlos Bresser-Pereira, incentivadores seminaisdos estudos de reforma do Estado no Brasil. Na FGV, contamos com aajuda atenciosa e eficiente de Maria Inês Rezende. Ilza Valéria MoreiraJorge, sempre de bom humor, nos auxiliou na revisão dos textos. Gabriele Alice foram inspirações pessoais, com toda a alegria que nos transmiti-ram.

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Os dois governos de Fernando Henrique Cardoso foram marcados pelotema da reforma do Estado. O próprio presidente disse, logo na primeiraentrevista após a eleição de 1994, que seu maior objetivo seria substituir opadrão varguista de intervenção estatal por uma nova forma de orientar asações governamentais nos campos econômico, político e social. Propunha-se a construção de uma ordem mais adequada ao cenário internacional ecapaz de resolver os problemas que assolavam o país desde a década de80. Mesmo que esta meta não tenha sido realizada completamente, novasidéias e muitas transformações ocorreram nos últimos oito anos. Chegou ahora de começar a avaliar os sucessos e os fracassos desse projeto.

O Estado entrou numa era de reformas, norteadas por cinco grandesbalizadores: o êxito do Plano Real e a luta incessante pela estabilidademonetária; a busca de uma nova inserção internacional, exatamente nummomento recheado de promessas e crises; a necessidade de reformar aConstituição para implementar as propostas governamentais; a tentativa dereorganizar o aparelho estatal e redefinir suas funções; e, ainda, a modifi-cação das relações do governo com a sociedade, com o objetivo deaprofundar o processo de democratização do país.

Sob este cenário, os anos FHC realizaram várias mudanças substanciais.Entre as principais, destacam-se a redefinição do papel governamental naárea econômica, com a ampliação das privatizações, o fim de monopóliose a criação de agências regulatórias; a introdução de novos mecanismos deaccountability, tanto no Executivo como no Congresso Nacional; algumasreformulações na estrutura administrativa; investimentos em carreiras estra-tégicas do serviço público federal; o aprofundamento da descentralização,ao que se acrescentou ações de coordenação federativa; grandes modifica-ções nas relações financeiras intergovernamentais e na gestão fiscal, centronevrálgico de todo o período; inovações na área social, sobretudo no se-gundo mandato; e, principalmente, o reordenamento legal de boa parte doEstado, especialmente pela via das Emendas Constitucionais. O próximo

INTRODUÇÃO

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governo certamente será influenciado por estas transformações, uma vezque as alterações de rumos propostas serão feitas sobre as marcas dasreformas implementadas por Fernando Henrique.

Infelizmente, a avaliação dos anos FHC ainda é feita no registro exclusi-vamente dicotômico: ou se é contra todo o modelo, ou se é a favorvisceralmente. É preciso iniciar uma avaliação crítica do período. Esta é apretensão do presente volume.

Nossa inspiração intelectual foi o livro Estrutura e Organização do PoderExecutivo (dois volumes), feito em parceria pela Escola Nacional de Admi-nistração Pública (ENAP) e pelo Centro de Estudos de Cultura Contemporâ-nea (Cedec), com financiamento do Programa das Nações Unidas para oDesenvolvimento (PNUD). Editado em 1993, este trabalho foi a primeiraradiografia do Governo Federal depois da transição democrática. Sua análi-se centrava-se no funcionamento da administração pública brasileira, com-parando-a com a experiência internacional, e mostrando suas relações coma política, uma inovação acadêmica à época. Passados quase dez anos,temos de retomar o debate em outro patamar, pois o quadro foi bastantemodificado pelos anos FHC.

Para tanto, optamos por outro eixo analítico: o das reformas do Estado.Ou seja, lançamos nosso foco sobre os aspectos que, de um modo ou deoutro, colocaram em questão a realização de mudanças estruturais do apa-relho estatal. Mesmo com essa limitação, tivemos ainda de escolher aque-les que julgamos mais importantes do período, sem ter a preocupação derastrear cada um dos setores governamentais. Os estudos que abrangemmuitas dimensões normalmente tornam difícil a compreensão mais articula-da do processo de reforma. Constrói-se um mapa enorme, mas não seoferece aos leitores bússolas ou fios condutores que os orientem no cami-nho. Em vez da amplitude, preferimos apostar na profundidade, que ali-menta melhor a polêmica.

O objetivo do livro, portanto, não foi fazer uma radiografia de tudo o queaconteceu nos últimos oito anos. Por isso, não há análise específica sobrealgumas questões mais gerais, como o crescimento econômico ou a desi-gualdade de renda. Sem negligenciar a sua centralidade, tomamos tais temascomo pano de fundo de nosso trabalho, que concentra sua atenção nosefeitos do processo de reforma do Estado sobre as macroestruturas do país.

Em linhas gerais, foram adotados quatro parâmetros para avaliar o proje-to de reforma desenvolvido nos anos FHC. O primeiro diz respeito àcaracterização do Estado que foi construído e do processo político que o

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originou. O segundo parâmetro procurou entender os motivos que levaramdeterminadas propostas do governo Fernando Henrique a não serem apro-vadas ou a fracassarem na implementação. Outro objetivo foi detectar aspremissas e as escolhas que se mostraram equivocadas, com resultadosopostos aos esperados por seus idealizadores e condutores. Por fim, anali-samos as medidas bem sucedidas e o legado que deixaram. Esta orientaçãometodológica aparece, de um modo ou de outro, ao longo dos capítulos eé recuperada na conclusão do livro.

O formato de coletânea foi escolhido propositadamente por duas ra-zões. A primeira é que teríamos poucas chances de dar conta, com adevida qualidade, de todos os assuntos aqui abarcados. Além disso, o volu-me procurou se orientar por uma reflexão pluralista sobre as reformas. Poresta razão, determinados temas são tratados em mais de um capítulo, porvezes com visões diferentes acerca dos anos FHC. A conclusão faz umbalanço dos principais temas analisados e suas perspectivas, sem se preo-cupar em nomear a posição correta nas polêmicas travadas no livro. Estainterpretação fica por conta dos leitores.

Cada capítulo procura fazer uma análise exaustiva de um tema, relatandoas condições sob as quais se desenvolveu, para depois relatar os sucessos eos fracassos aí contidos. Sempre que possível, os textos propuseram suges-tões de políticas públicas, de reformas institucionais, de medidas administra-tivas ou de formas específicas de relacionamento com a sociedade. Desafiosque serão enfrentados pelo próximo governo também foram arrolados.

Os temas abordados normalmente exigiram a utilização de um referencialinterdisciplinar, mas o ângulo preponderante foi o da Ciência Política. Poresta via, privilegiamos a análise do ideário dos atores, das estratégias poreles adotadas, das formas de conflito daí resultantes - e se consensos foramalcançados ou não -, das formas institucionais e/ou organizacionais quecircunscreveram os processos de reformas e dos modelos de Estado e deinstituições políticas que foram constituídos ao final. Sem dúvida, há basesnormativas que orientam os estudos - plurais no universo do livro, ressalte-se novamente -, mas procuramos explorar ao máximo o trabalho de pes-quisa empírica exaustiva. Em alguns casos, isso levou ao uso da experiên-cia comparada; noutros, maior ênfase foi dada à coleta de dados quantitati-vos ou a entrevistas; e ainda houve os que procuraram mapear a produçãolegislativa daí resultante. De qualquer modo, tais estratégias de análisemuitas vezes se misturaram e, em todos os capítulos, o objetivo comum foidiagnosticar profundamente o assunto em tela, fornecendo informações

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valiosas à classe política, aos integrantes do futuro governo, à imprensa, aONGs e organismos internacionais, aos acadêmicos e ao público em geral.

O livro compõe-se de onze capítulos. A disposição dos textos obede-ceu à seguinte lógica: na primeira parte, foram selecionados os vinculadosmais especificamente à relação entre o sistema político e as reformas; nasegunda, ficaram aqueles que tratam mais diretamente de algumas refor-mas, começando pela temática administrativa (quatro capítulos) e passandodepois pelas áreas fiscal, previdenciária, federativa (descentralização e opapel do Governo Federal) e, por fim, regulatória.

O trabalho de Fátima Anastasia e Carlos Ranulfo sobre a accountabilitydemocrática abre o livro. Após fazer uma elucidativa discussão teóricasobre a representação política nas democracias contemporâneas, o textoconcentra-se no estudo do caso brasileiro. Em particular, o capítulo analisaas formas de responsabilização e democratização existentes entre o Exe-cutivo e o Legislativo e dentro da arena parlamentar. Mesmo pontuandoque houve avanços ao final do período, os autores revelam as mazelas denosso sistema político no que se refere à accountability, algumas atérealçadas nos anos FHC. Ao final, apresentam propostas de reforma dessemodelo, com ênfase nos sistemas eleitoral e partidário, nas relações inter-nas do Congresso Nacional - entre líderes e liderados e entre situação eoposição - e na dinâmica dos Poderes. Tais argumentos realçam a impor-tância da reforma política, que alguns já chamaram de “a mãe de todas asreformas”, embora ela seja sempre colocada em segundo plano e debatidaapenas pelo ângulo da governabilidade, esquecendo-se da importância damelhor representação dos cidadãos brasileiros.

O segundo capítulo trata das reformas constitucionais realizadas nosdois governos de Fernando Henrique Cardoso, só que por um ângulo aindainexplorado. Cláudio Couto e Rogério Arantes demonstram que a insistên-cia no árduo processo legislativo de emendamento deriva da própria con-cepção constitucional adotada em 1988. Nossa Constituição, dizem os auto-res, contém mais políticas públicas (policies) do que regras gerais queorientam a vida social (polity). Ora, as primeiras dizem respeito às propos-tas de governo, ao passo que as últimas se referem à estrutura fundamentaldo Estado. Se um ordenamento constitucional torna-se uma coleção depolicies, toda alternância efetiva de poder e de projeto colocará em ques-tão à Constituição vigente. Na perspectiva apresentada pelo texto, foi istoque condenou o presidente FHC a atuar em grande parte de seu mandatono terreno da “ditadura dos três quintos”. Tudo indica que Lula terá o

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mesmo destino e o reformismo constitucional permanecerá em cena.Completando esta parte do livro, Kurt von Mettenheim analisa a Presi-

dência da República sob o comando de FHC. Primeiramente, ele defende aidéia de que vivemos, como nos EUA, não no presidencialismo, mas numsistema de separação de Poderes, no qual os ramos de governos compe-tem entre si, imbricam-se e, em vez de serem vistos apenas como pontosde veto mútuos, podem atuar regularmente num jogo de soma positiva.Quanto mais forem independentes, buscarem espaços de atuação própriose, sobretudo, tiverem a negociação como base de relacionamento, melhora qualidade do sistema político. Kurt acha que é isto que está acontecendono Brasil desde 1988, e o período Fernando Henrique representa bem taltendência. Acompanhando a modificação democratizadora, o autor apontamais dois processos: Um eleitoral, no qual houve um realinhamento parti-dário de 1994 para cá, que solidificou um bloco governista (a coalizãotucana) e outro oposicionista (o PT), ambos bastante consistentes em suasações e extremamente maduros do ponto de vista do jogo político demo-crático. O segundo processo se refere às mudanças realizadas pelo presi-dente, que, de acordo com o autor, reformulou positivamente o modeloestatal, com transformações importantes em questões econômicas, sociais ede política externa.

O estudo comparativo de Flávio Rezende inaugura as análises específi-cas sobre reforma do Estado. A partir de um balanço exaustivo de altera-ções do aparelho estatal no plano internacional, ele tenta mostrar como oBrasil se insere neste processo. Destaca-se, em primeiro lugar, sua constataçãode que os países desenvolvidos praticamente não reduziram suas máquinasgovernamentais nos últimos vinte anos, em termos de gastos e escopo depolíticas, a despeito do avanço do ideário do “rolling back the state”,enquanto as nações mais pobres, em especial, adotaram um modelo maisminimalista. Nas palavras do autor, é demonstração clara de que “os Leviatãsestão fora do lugar”.

O outro ponto essencial deste texto é o estudo do caráter global dodiscurso e da prática do chamado New Public Management. Para Rezende,o modelo gerencial enfrenta um dilema em todo o mundo: sua proposta deorientar a gestão por resultados bate de frente com a dinâmica do ajustefiscal. Enquanto a primeira exige a redução dos controles centrais e aautonomização das agências, a segunda reforça a fiscalização processual, afim de garantir a redução dos custos. Há, aqui, uma “falha seqüencial”, naqual, mais do que um gap entre os dois pontos, ocorre uma vitória do

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ângulo fiscalista. Utilizando-se destas conclusões comparativas, o trabalhoanalisa o caso brasileiro, revelando suas congruências e especificidadesem relação à experiência internacional. Sua explicação acerca do fracassodo projeto de reforma administrativa do Governo Federal deve criar muitapolêmica na academia e entre os próximos comandantes das área econô-mica e da gestão pública.

O retrato mais minucioso da lógica das decisões na área administrativanos anos FHC encontra-se, sem dúvida alguma, no trabalho de HumbertoFalcão Martins. Ele descreve com impressionante nível de detalhes osprincipais atores e projetos que estiveram em disputa ao longo dos doismandatos, e procura explicar quais razões levaram à vitória de determina-do grupo ou proposta. O autor também faz um mapa completo de todas asestruturas administrativas criadas no período, avaliando sua trajetória. Nestecaso, demonstra preocupação com a falta de clareza que ainda persiste nadiferenciação entre Agências executivas e reguladoras, gerando um au-mento exagerados das últimas, sem que os órgãos criados preencham osrequisitos necessários para tal função. Pode estar aí o germe de uma novaconfusão institucional, como aquelas que resultaram da aplicação do De-creto Lei 200. Este é um dos maiores problemas organizacionais para opróximo governo.

No balanço do processo, um aspecto merece destaque: a análise doscaminhos e desventuras do Plano Diretor da Reforma do Aparelho doEstado. Humberto ressalta a novidade dessa experiência, mas mostra, commuita perspicácia, que este projeto foi bastante bloqueado dentro do go-verno, até o ponto em que seus defensores perderam a batalha política.Mas o aspecto analítico distintivo do capítulo refere-se aos problemas defragmentação e coordenação governamentais que atrapalharam aimplementação das políticas. O autor admite que não há como escaparcompletamente destas duas questões, porém, existem formas de melhorresolvê-las, tais como o papel das lideranças (particularmente a presidenci-al) e de certos arranjos integradores. O conhecimento destas saídas é vitalpara o próximo governo, antes que ele se veja, mais rápido do que imagi-na, emaranhado nos problemas de descoordenação.

O trabalho de Nelson Marconi traça um perfil das transformações porque passou o funcionalismo público federal nos últimos oito anos. Comoresultado de todo este processo, constituiu-se, por um lado, uma adminis-tração mais qualificada, dado que fica mais evidente pelo aumento geral deescolaridade. As mudanças mais intensas aconteceram no plano da alta

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burocracia. A reestruturação e ampliação das carreiras estratégicas foi, nes-te ponto, o fator mais importante e distintivo dos anos FHC, o que reforçouo núcleo gerencial do Estado, ao invés de desmontá-lo, como tanto sepropagou. Nesta mesma linha, destaca-se a elevação do contingente deservidores públicos alocados nos cargos em comissão, medida que tambémcaminha em prol da profissionalização burocrática. Pode-se concluir, ade-mais, que o próximo governo terá um quadro mais favorável devido àmelhor adequação entre as atividades-meio e os setores encarregados daelaboração ou execução das políticas. Uma última modificação foi a redu-ção significativa de pessoal do Executivo Federal, mas tal fenômeno resul-tou basicamente da maciça aposentadoria do funcionalismo civil. SegundoMarconi, o próximo governo encontrará a estrutura administrativa maisenxuta e equilibrada.

Por outro lado, a administração pública federal ainda contém uma sériede problemas. O primeiro é a idade média extremamente elevada dofuncionalismo, gerando fortes pressões para a Previdência Pública. Alémdisso, Nelson Marconi demonstra uma grande preocupação: a noção denúcleo estratégico está sendo pervertida pelo criação de várias carreiras,resultantes de mera pressão política e não de um planejamento estratégico.A questão salarial também precisa ser melhor equacionada. As diferençasde remuneração entre os Poderes federais podem dificultar a atração dosmelhores quadros ao Executivo e, o pior de tudo, redundar em mais pres-sões por isonomia, as quais levariam a uma situação fiscal insustentável nagestão do presidente Lula.

Escrito por Valeriano Mendes Ferreira Costa, o sétimo capítulo analisa astransformações da macroestrutura administrativa brasileira. Ele inicia suadiscussão mostrando a importância da relação entre as tentativas recentesde mudança organizacional com o ideário da Nova Gestão Pública (NGP).Para o autor, a NGP tornou-se uma fórmula global de resolução de proble-mas administrativos; todavia, a aceitação e a implementação desse modeloforam bem diferentes segundo a especificidade de países, regiões ou pa-drões administrativos, ao contrário do que defendem seus divulgadores.Não se trata de um embate normativo contra as propostas gerenciais, mas aconstatação do peso de certas variáveis político-institucionais na trajetóriadas reformas, tais como o sistema de governo, as formas de relação entre oLegislativo e o Executivo, em especial no preenchimento dos postos doalto escalão governamental, e a tradição estatal de cada nação.

Por este fio condutor, Valeriano analisa a evolução da administração

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pública federal desde a criação do DASP, na Era Vargas, até o períodorecente, nos anos FHC. Sua preocupação maior é mostrar como as mudan-ças na macroestrutura relacionam-se com a lógica do presidencialismo bra-sileiro. Ele destaca que há duas motivações básicas que perpassam todas asreformas administrativas de nossa história: a adoção de medidas voltadas aofortalecimento da Presidência da República para controlar os órgãos estra-tégicos e, a partir disso, o insulamento dessas áreas ante as pressões políti-cas, exatamente para alcançar os objetivos prioritários definidos pelo go-verno. Durante o varguismo, esta estrutura visava ao desenvolvimentoeconômico, com grande poder concentrado nas estatais; no período FernandoHenrique, essa fórmula teve como intuito garantir a estabilidade monetária,delegando um poderio enorme à equipe econômica.

A conclusão deste capítulo ressalta que o modelo político administrativobrasileiro acaba por produzir uma estrutura esquizofrênica: de um lado,uma organização insulada e protegida pelo presidente, constituída paraatingir um objetivo concentrado; e de outro, a sobrevivência de uma formaorganizacional normalmente destinada à negociação para a montagem demaioria congressual. Neste modelo, a consecução de mais de uma finalida-de - ajuste fiscal e modernização gerencial, por exemplo - e a tentativa deracionalização da máquina governamental tornam-se tarefas inglórias. Aúnica saída efetiva para este impasse, conforme o autor, é a reformulaçãodas relações entre política e burocracia.

No oitavo capítulo, Maria Rita Loureiro e Fernando Abrucio analisam atrajetória das finanças públicas brasileiras nos últimos vinte anos. Pelo ân-gulo da Ciência Política, eles invadem a seara dos economistas, partindo dosuposto de que a qualidade das reformas fiscais depende da combinaçãoentre a lógica da eficiência e a lógica democrática, numa nítida crítica àperspetiva tecnocrática que tem dominado os estudos deste assunto. Otrabalho empírico também foi orientado por dois eixos teóricos. O primeiroé o incrementalismo, segundo o qual as alterações no funcionamento doEstado ocorrem gradualmente e por “camadas”, além de serem baseadasem intenso processo de negociação. Trata-se um caminho diferente davisão totalizadora de reforma, que propõe uma transformação insulada,abrupta e total das regras e formas de funcionamento do aparelho estatal.Em certos momentos, no entanto, o avanço incremental encontra obstácu-los ou pontos de veto que dificultam a mudança. Aqui entra o segundoeixo orientador do texto: as chamadas “conjunturas críticas”, nas quais háuma modificação na posição relativa dos grupos, em termos de preferênci-

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as e poder. Com isto, torna-se possível a construção de coalizões paraalterar as estruturas vigentes. Embora pareçam conceitos antagônicos, osautores mostram, por meio da investigação da experiência brasileira recen-te, que o sucesso das mudanças depende da boa combinação entre eles,como ocorreu no eixo financeiro da Federação.

O país teve uma série de modificações em suas finanças públicas, quese iniciaram no início da década de 80, com o fim da “conta-movimento”do Banco do Brasil, e tiveram um caminho bastante gradualista até o PlanoReal, em 1994. O legado destas mudanças favoreceu as medidas tomadasnos anos FHC, seja pelo aprendizado adquirido pelos gestores econômicosnas experiências anteriores, seja porque já haviam sido construídas certascondições básicas, como, por exemplo, a Secretaria do Tesouro Nacional eo SIAFI (Sistema Integrado de Administração Financeira). O êxito técnico epolítico do plano de estabilização abriu o caminho para uma nova coalizão,que soube, no plano fiscal, mudar as estruturas sem jogar fora as conquistasanteriores. Além disso, estabeleceu-se um processo de convencimento enegociação com diversos atores para modificar os princípios de restriçãoorçamentária, principalmente os associados à Federação. Isto pôde serpercebido nas discussões do Senado sobre as regras do endividamentopúblico e na criação da Lei de Responsabilidade Fiscal. O resultado desteprocesso foi a racionalização das relações financeiras intergovernamentaise o aumento da accountability entre os entes governamentais, algo que nãohavia no período áureo de federalismo predatório (de 1982 a 1994), quan-do houve uma elevação de dívidas e o repasse de custos subnacionais àUnião.

Maria Rita e Fernando Abrucio assinalam que, após alterar as regrasbásicas do sistema pela via incremental, a equipe econômica procurouinsular mais suas decisões e diminuiu a accountability do sistema, reforçan-do a lógica tecnocrática em detrimento da lógica democrática. Os autoresadvertem para o perigo embutido nesta estratégia, que pode prejudicar aimplementação futura das políticas. É bom lembrar que políticas insuladase contrárias ao incrementalismo e à negociação não têm dado certo noBrasil, como demonstram os exemplos dos congelamentos de preços e dapolítica cambial conduzida no período 1994-1998, cujos resultados foramdesastrosos.

A reforma da previdência social é o tema do trabalho de Marcus AndréMelo. Ele mostra o impacto decisivo desta questão para a reformulação doEstado brasileiro, de modo que ela se tornou um dos pontos mais estratégi-

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cos da agenda política nacional. Isso fica claro, primeiramente, pelo enor-me crescimento das despesas nesta área e dos déficits daí resultantes. Semresolver este problema, os próximos governos terão cada vez menos re-cursos para outros setores e preocupações. Além disso, este capítulo res-salta que há diversas iniquidades no sistema previdenciário do Brasil, emespecial a diferenciação entre os regimes do setor público e o dos traba-lhadores enquadrados na CLT, criando uma situação redistributiva perversae regressiva em prol do funcionalismo público ante a um número muitomaior - e mais pobre - de pessoas que trabalharam no setor privado.

O governo Fernando Henrique participou de uma batalha legislativa nocampo da previdência social. Suas idéias, segundo Marcus Melo, foraminicialmente inspiradas pela agenda internacional, ela própria mutante aolongo da década de 90. Destaca-se aqui o estudo comparado dos modelosprevidenciários, que retrata de forma ampla as alternativas colocadas emprática em diversos países. Mais adiante, o autor analisa a estratégia refor-mista do primeiro mandato, contida na trajetória da Emenda 20, que visavaà aprovação simultânea das reformas dos regimes privado e público. Talescolha teve dois impactos negativos: a criação de mais pontos de vetocontra o projeto e a confusão de prioridades, uma vez que a alteração dosistema do setor público era mais importante. Melo faz uma descriçãominuciosa do processo legislativo, mostrando os erros cometidos pelosatores governistas e as lições que podem ser retiradas dessa história.

Ao fim e ao cabo, os anos FHC conseguiram implantar algumas medidasimportantes para equacionar os problemas previdenciários do país. Entre-tanto, como se destaca no título do capítulo, houve uma “transição incom-pleta”. Muitos aspectos do sistema continuam produzindo resultados nega-tivos dos pontos de vista fiscal e de justiça social. Diante desse diagnóstico,e analisando as idéias que o PT defendeu na campanha presidencial, MarcusMelo propõe, provocativamente, um modelo internacional que poderiaservir de base para a estratégia reformista do governo Lula: a reforma daprevidência à italiana. Os desafios para seguir esta linha são expostos, bemcomo as vantagens que o petismo teria de antemão.

O papel do Governo Federal no processo descentralizador brasileiro étratado por Fernando Luiz Abrucio. Trata-se de uma das questões maisimportantes da reforma do Estado, seja pela sua recorrência na experiênciade vários países, seja porque ela é multidimensional, uma vez que afetamuitos outros temas, tais como as políticas sociais, a questão tributária-fiscal, o ataque às desigualdades regionais e a reformulação das administra-

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ções subnacionais. O capítulo começa definindo o conceito dedescentralização - normalmente utilizado de forma imprecisa, diga-se pas-sagem - e analisa sua trajetória no plano internacional. O autor mostra,ademais, que esta temática tem uma natureza muito específica nas Federa-ções, constatação fundamental para o entendimento do caso brasileiro.Complementando esta parte histórico-conceitual, o texto argumenta que oeixo básico da relação entre descentralização e federalismo é o problemada coordenação intergovernamental, que deve equilibrar as tendências co-operativas e competitivas presentes no jogo entre os níveis de governo.

O capítulo inicia o estudo do caso brasileiro ressaltando que a trajetóriahistórica do federalismo criou um legado que afeta, em maior ou menormedida, a coordenação dos processo de descentralização. Para Abrucio, adicotomia entre centralização autoritária e descentralização oligárquica ecentrífuga acompanharam o desenvolvimento da Federação no Brasil, cri-ando inclusive uma falsa oposição entre processos centralizadores edescentralizadores no debate político e intelectual. A redemocratizaçãocolocou em novo patamar a discussão da descentralização, com avançosimportantes, em particular no controle social sobre as políticas públicas,mas também produziu modelos perversos de organização das relaçõesintergovernamentais, como o estadualismo, que levou a um endividamentocrescente e explosivo, a ilusão do municipalismo autárquico, que pensa osmunicípios como unidades capazes de resolverem sozinhas seus proble-mas, e a permanência de certas concepções tecnocráticas e centralistas naburocracia federal, recém estimulada pela falácia de que os recursos havi-am sido descentralizados sem que o mesmo tivesse ocorrido com os encar-gos - outra discussão estéril que prejudicou a melhoria da estrutura federa-tiva.

O sucesso do Plano Real e a crise financeira dos governos estaduaisfavoreceram o ataque às características predatórias da Federação brasileira,uma das medidas mais positivas dos anos FHC. Além disso, ressalta o autor,a preocupação com a reforma do Estado levou o Governo federal a atuarmais em conjunto com os entes subnacionais, em especial nas áreasfazendárias, administrativa e previdenciária, embora com impactos diferen-ciados em cada um destes assuntos - maior êxito no primeiro, crescentedesarticulação no segundo e acertos ao final do período, no terceiro caso.Formas de coordenação intergovernamental também ganharam destaqueem Educação e Saúde, com ótimos resultados. Na área de Assistência Soci-al, este caminho foi mais tortuoso e as políticas articuladas de renda demo-

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raram muito para serem formuladas, sete anos depois de o presidenteFernando Henrique ter assumido. Porém, houve fracassos na coordenaçãofederativa em pelo menos dois temas importantes: políticas urbanas e dedesenvolvimento regional. Ainda na linha dos equívocos, Abrucio faz questãode ressaltar a questão tributária, pois o modelo construído nos últimos oitoanos não acabou com a guerra fiscal e elevou gigantescamente a receita daUnião com contribuições sociais, escolhidas como fonte de receita porquenão são repartidas com estados e municípios. O pior é que essa opçãoproduz resultados econômicos perversos: ela onera a produção e afetanegativamente os investimentos e o nível de emprego.

A regulação é o último tema debatido pelo livro. Em mais uma partici-pação no volume, Marcus Melo analisa uma das maiores inovações dosanos FHC: a criação de agências regulatórias independentes. Trata-se deuma nova forma de intervenção estatal que substitui o modelo varguista,em particular na área econômica, com a saída quase completa do setorprodutivo. O padrão regulatório foi instituído nos setores de concessão dosserviços públicos, reordenado para atuar na esfera da concorrência econô-mica e criado em outras áreas nas quais a atividade governamental funcio-na como protetora de direitos dos cidadãos, como nos planos de saúde e naregulação da utilização da água. Se, por um lado, pode-se dizer que naquestão regulatória o presidente Fernando Henrique cumpriu sua promes-sa de acabar com o antigo modelo varguista, por outro, deve-se ressaltarque a formação de um novo ainda está no início. Além disso, os resultadossão muito desiguais no conjunto e não se sabe ao certo se todas as agênciasconstituídas deveriam ter esta identidade organizacional e se conseguirãosobreviver.

O texto de Marcus Melo faz um relato bastante rico da gênese do novomarco regulatório, sobretudo nos setores de telecomunicação, energia elé-trica e petróleo, nos quais havia monopólio estatal. Após uma discussãoconceitual sobre o sentido e as formas da regulação, o autor assinala trêsaspectos essenciais para o desenho institucional das agências: autonomia eestabilidade dos dirigentes; independência financeira, funcional e gerencial;e transparência. O fato é que a trajetória das agências regulatórias resolveude modo diverso tais questões e, por enquanto, na maior parte dos casos ofez de maneira insatisfatória. Outros desafios colocados para o sucesso domarco regulatório são a sua vulnerabilidade a choques endógenos eexógenos, a ausência de competências plenamente definidas e de coorde-nação intersetorial, o problema da captura das agências pelos interesses

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regulados, a capacidade de defender os consumidores e a formação deuma elite burocrática autônoma.

O federalismo regulatório é mais um aspecto tratado por este capítulo.Melo conta que foram criadas, desde 1997, dezenove agências reguladorasnos estados. O autor analisa pormenorizadamente a gênese e a forma deorganização dessas agências. A importância deste tema vincula-se a doispontos. O primeiro é a existência de interface com a ação federal emalgumas áreas estratégicas, como a energia elétrica. O potencial de conflitoé grande, e as formas de resolvê-lo são por ora incipientes. O segundoproblema é o do controle e autonomia das agências no seu relacionamentocom o Executivo e o Legislativo estaduais, como também com o Judiciário- o exemplo da Agergs, do Rio Grande do Sul, é elucidativo dos problemasdaí surgidos.

Ao final, Marcus Melo deixa a pergunta no ar: qual vai ser a ação dopróximo governo perante as agências independentes? Desta resposta de-penderá igualmente, como bem percebe o autor, a sorte do Banco Central,no que se refere à sua autonomia político-administrativa.

Na conclusão, o objetivo é aproveitar as avaliações e os desafios coloca-dos pelos capítulos para então elaborar um quadro explicativo mais amplosobre o processo de reforma do Estado nos anos FHC.

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ACCOUNTABILITY, REPRESENTAÇÃO EESTABILIDADE POLÍTICA NO BRASIL

Fátima Anastasia1

Carlos Ranulfo F. Melo2

INTRODUÇÃO

Este capítulo3 trata do problema da responsabilização política no Brasil.Como afirma Dahl (1983:11), apesar da controvérsia que o conceito sus-cita, existe um consenso de que a democracia, no mínimo, diz respeito a“processos através dos quais cidadãos comuns exercem um grau relativa-mente alto de controle sobre líderes”. Em que pesem os distintos arranjosinstitucionais que são compatíveis com a ordem democrática, é sabidoque alguns deles são mais conducentes à produção da estabilidade e dagovernabilidade, enquanto outros são mais compatíveis com a expressãoda pluralidade e da diversidade presentes em sociedades complexas.

Sabe-se, também, que a estabilidade é um atributo desejável da ordempolítica, desde que a sua busca não comprometa e não ponha em risco ocaráter democrático da ordem. Ou seja: espera-se que a democracia sejaestável e que a estabilidade seja democrática. O que implica o desafio deelencar outros atributos que, somados à estabilidade e à governabilidade,garantam que se trata de uma ordem, de fato, democrática, a saber, os daaccountability e da densidade democrática da representação:

“Accountability é um atributo da democracia que implica o controledos governantes pelos governados. O’Donnell (1998) propôs a diferencia-ção entre os mecanismos de accountability vertical, relativos às relaçõesentre os cidadãos e seus representantes e que são, classicamente, as elei-ções, e aqueles de accountability horizontal, referentes às relações entre ospoderes constituídos, consagrados pela literatura como os “checks and ba-lances” ou freios e contrapesos institucionais, através dos quais um Poder

1 Professora Doutora do Departamento de Ciência Política da UFMG.

2 Professor Doutor do Departamento de Ciência Política da UFMG.

3 Este capítulo baseia-se no argumento desenvolvido originalmente em - e reproduz partes de - um

paper, cujas versões preliminares foram apresentadas no VI Congresso Internacional do CLAD,realizado em Buenos Aires, em 2001 e no III Encontro da ABCP, realizado em Niterói, em 2002.

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controla e fiscaliza os atos e as omissões do outro” (ANASTASIA & MELO, 2002: 7)A densidade democrática da representação é um atributo da democra-

cia que envolve duas dimensões: a primeira refere-se ao método deconstituição do órgão decisório e à sua composição (SARTORI,1994); asegunda relaciona-se aos instrumentos e procedimentos através dos quaisa representação é exercida. Quanto maior for a densidade democráticada representação, mais a ordem política se aproxima da realização dosprincípios centrais da democracia, a saber: igualdade política e soberaniapopular.

Tratando do mesmo problema, Santos (1998:208) afirma que é precisoverificar se é poliárquica4 ou oligárquica a natureza dos sistemas repre-sentativos modernos, o que, em geral, não é levado em conta pelosanalistas:

“Sumariamente, ignora-se a hipótese de que existam pelo menos duasdescendências de sistemas representativos – oligárquicos e democráticos –com características e dinâmicas próprias”(SANTOS, 1998:208).

A partir da proposição dahliana, formulada em After the Revolution?,“de que quanto maior a sociedade, mais difícil e remota a participação,justificando-se o hiato representativo pelo princípio de economia”, Santosargumenta que “quanto maior a população, mais rala é a ‘representa-tividade’ da representação”5 (1998: 212/213). E afirma:

“Dado o crescente hiato entre as instituições políticas e o corpo social, évisível a necessidade de descentralização decisória e de que surjam orga-nizações intermediárias entre os representados e os órgãos representati-vos” (1998: 218).

4 “Por definição minimalista, mas estrita de poliarquia entendo um sistema político que satisfaça

completamente às seguintes condições”:(1) exista competição eleitoral pelos lugares de poder, a intervalos regulares, com regras explícitas, ecujos resultados sejam formalmente reconhecidos pelos competidores;(2)a participação da coletividade na competição se dê sob sufrágio universal, tendo por únicabarreira o requisito de idade limítrofe” (SANTOS, 1998: 210).“Creio que o caráter minimalista da definição seja pacífico, pois não exige a satisfação integral detodas as oito condições dahlsianas. Sua aplicação estrita, contudo, já permite distinguir poliarquiasde autoritarismos, os quais violam a condição 1, e de oligarquias, as quais não satisfazem a condição2” (SANTOS, 1998: 210).5 “O fundamento da legitimidade da representação encontra-se nos números – conforme a condição

2 da definição minimalista estrita de poliarquia -, organizados em obediência à condição 1 damesma definição. Da relação entre ambas resulta peculiar transferência de soberania, isto é, depoder monopólico sobre decisões coletivas. (...) refletir sobre a “representatividade” de um sistemarepresentativo requer, fundamentalmente, avaliar a amplitude competitiva em torno dos lugares derepresentação. São essas as condições que mudam, quando mudam as arenas, as agendas e osinteresses afetados” (SANTOS, 1998: 219).

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O arranjo institucional praticado no Brasil a partir da Constitui-ção de 1988, que combina presidencialismo com representação pro-porcional e multipartidarismo, tem sido adjetivado de “explosivo”por analistas políticos que o consideram propício à produção decrises de paralisia decisória e conducente à ingovernabilidade (LINZE VALENZUELA, 1994; MAINWARING, 1993).

Porém, como argumentam Figueiredo e Limongi (1999), os me-canismos constitucionais que concentram poderes legislativos nasmãos do presidente, especialmente o instituto das Medidas Provi-sórias (MPs), somados às regras regimentais que facultam a pro-dução de disciplina partidária no interior da organização legislativa,têm sido capazes de garantir a organização e a operação de umacoalizão política de sustentação do presidente.

O conceito de presidencialismo de coalizão tem sido mobi-lizado pela literatura (FIGUEIREDO E LIMONGI,1999) para carac-terizar o padrão de interação entre os poderes Executivo eLegislativo e para explicar a alta capacidade do presidente apro-var sua agenda mesmo no contexto de um Legislativo compostopor um número expressivo de agremiações partidárias. Como as-sinalam estes autores, é no presidencialismo de coalizão que deveser buscada a explicação para a estabilidade política e para ograu expressivo de governabilidade e de governança verificadosna ordem política brasileira pós-constitucional, contrariando osprognósticos pessimistas daqueles que baseavam suas análises ex-clusivamente nas variáveis externas à organização legislativa.

No entanto, o arranjo institucional que produz estabilidade po-lítica é o mesmo que limita, por outro lado, a accountability hori-zontal e diminui a densidade democrática da representação, difi-cultando a operação daqueles mecanismos que facultam aos dife-rentes agentes, especialmente aqueles situados na oposição,vocalizarem suas preferências e controlarem os atos e omissõesdos governantes.

Retomando argumento já desenvolvido em trabalhos anteriores, “laconcentración de los poderes legislativos y ejecutivos en las mismas manoses perniciosa para el ejercicio del control parlamentario (...) por lo tanto,bajo un régimen presidencialista com multipartidismo, los arreglosintitucionales que propician mayor estabilidad y maior capacidad de gobiernoson también los que resultan en una menor capacidad de control

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parlamentario de los actos y de las omisiones de los governantes” 6

(ANASTASIA: 2000, pp. 125; 135).Postula-se, neste capítulo, que o principal desafio da democracia con-

temporânea é aquele da interação virtuosa entre mecanismos que produ-zam estabilidade e instrumentos que maximizem accountability e densida-de democrática da representação.

Ao invés de deter-se em traços institucionais específicos, pretende-seanalisar os efeitos combinados de diferentes instituições no que se refere àprodução dos atributos considerados como desejáveis para a democracia:estabilidade e governabilidade, por um lado; accountability, responsivenesse densidade democrática da representação, por outro.

Desde este ponto de vista, o pressuposto central que norteia este traba-lho é o de que a interação entre instrumentos de accountability vertical ehorizontal pode ser desenhada de forma a incrementar concomitantementea responsabilização dos governantes pelos governados e a estabilidade dademocracia. Se isto procede, é defensável argumentar pela diminuição dospoderes legislativos do presidente e pela ampliação da densidade demo-crática da representação.

Dito de outra forma: acredita-se ser possível substituir o trade off atual-mente existente entre estabilidade, por um lado, e accountability e densi-dade democrática da representação, por outro, por um jogo de soma posi-tiva que resulte na produção combinada destes atributos. Trata-se, então,de desenvolver um esforço analítico no sentido de avaliar os impactos doarranjo institucional em operação no Brasil sobre estes atributos e, ao mes-mo tempo, discutir prospectivamente a possibilidade de aperfeiçoá-lo comvistas ao incremento do grau de poliarquização da ordem política.

No caso brasileiro como, de resto, em qualquer sistema presidencialista, osinstrumentos de accountability horizontal incluem, ademais dos mecanismosde controles mútuos entre os poderes Executivo e Legislativo, aqueles referi-dos à fiscalização de ambos pelo Poder Judiciário e pelo Ministério Público.

Não obstante a centralidade teórica e prática do papel tanto do poderJudiciário quanto do Ministério Público no que se refere ao controle dosatos e omissões do Executivo, tema que recentemente tem merecido aten-

6 “a concentração dos poderes legislativo e executivo nas mesmas mãos é prejudicial para o exercício

do controle parlamentar (...) portanto, sob um sistema presidencialista com multipartidarismo, osarranjos institucionais que proporcionam maior estabilidade e maior governabilidade são tambémos que resultam em uma menor capacidade de controle parlamentar dos atos e das omissões dosgovernantes” (ANASTASIA: 2000, pp. 125; 135).

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ção mais detida dos cientistas políticos brasileiros (ARANTES, 1997; SADEK,1997 e VIANNA, 1999), o mesmo não será objeto de análise no presentecapítulo. Em primeiro lugar, vale assinalar que os titulares dos cargos rela-cionados ao exercício das funções de Justiça não o são por delegação dacidadania, através dos mecanismos de representação política e não são,portanto, passíveis de serem controlados pelos cidadãos.

Como o propósito aqui é o de discutir e analisar os efeitos combinadosdos mecanismos de accountability horizontal e vertical sobre a ordempolítica, este texto se concentrará no estudo das interações entre os pode-res Executivo e Legislativo, que são, sob o sistema presidencialista, consti-tuídos através do processo eleitoral.

As eleições têm sido consideradas pela literatura como importantes,embora insuficientes, instrumentos de controle dos governantes pelos go-vernados (PRZEWORSKI, MANIN & STOKES, 1999). Ademais de serem osprocedimentos através dos quais a representação política é constituída, aseleições podem ser, e são, utilizadas pelos cidadãos como mecanismos deavaliação retrospectiva de seus governantes. No entanto, as possibilidadesde mobilização eficiente dos procedimentos eleitorais para fins do exercí-cio da reponsabilização política crescem na medida em que diminui aassimetria informacional entre representantes e representados. O grau deassimetria informacional, por sua vez, varia em função da distribuição derecursos políticos - materiais e de poder - entre os diferentes atores políti-cos: líderes de coalizão7, legisladores e cidadãos (ARNOLD, 1990); situa-ção e oposição(ões); governantes e governados; cidadãos organizados eatomizados, etc.

Postula-se, neste artigo, que o desempenho adequado dos mecanismos deaccountability horizontal incide positivamente sobre o exercício da accountabilityvertical, no plano eleitoral, na medida em que diminui a assimetria informacionalentre os atores. Postula-se, ademais, que o poder legislativo terá mais incen-tivos a atuar como órgão de controle sobre o poder executivo na medidaem que seja, ele próprio, passível de controle pelos cidadãos (SHUGART,MORENO e CRISP, 2000). Ou seja, o desempenho adequado dos mecanis-mos verticais incide positivamente sobre o controle horizontal.

7 Segundo Arnold, os líderes de coalizão não vivem em um mundo dicotômico, não estando limitados

a escolher entre pares de alternativas: eles definem as alternativas. O autor assinala que líderes decoalizão existem dentro e fora do Congresso (líderes de comissões, líderes partidários, membros dostaff do Congresso, o presidente, membros do staff do presidente, ministros, burocratas, líderes degrupos de interesses).

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Arnold (1990) desenvolve um instigante modelo analítico para expli-car “a lógica da ação congressual”. Seu objetivo é o de compreender opadrão decisório do Congresso americano, respondendo às indagaçõesde como e porque os legisladores escolhem determinados cursos de açãoe tomam determinadas decisões. A variável dependente é a produçãolegislativa, que vai ser explicada a partir das interações entre três atoresprincipais: os cidadãos, os líderes de coalizão e os legisladores. Arnoldafirma que, quando têm que tomar uma decisão, os legisladores pergun-tam, em primeiro lugar, qual das alternativas em competição contribuimais para as suas chances de reeleição.

Neste artigo, as interações entre estes três atores centrais – cidadãos,líderes de coalizão e legisladores – serão estudadas com o objetivo deexplicar seus impactos sobre a produção da accountability horizontal evertical. Portanto, no presente texto, a variável dependente é a responsa-bilidade política e não a produção legislativa.

Em trabalho recente8, foram apresentadas cinco proposições sobre aresponsabilização da administração pública por controle parlamentar, a saber:

Proposição 1: No que se refere às relações entre Executivo eLegislativo, quanto maior a concentração dos poderes de agenda e deveto nas mãos do Executivo, menor será a possibilidade do controleparlamentar.

Proposição 2: No que se refere ao Poder Legislativo, quanto maior aconcentração dos poderes de agenda e de veto em uma das Câmaras,menor a possibilidade do controle parlamentar. Quanto mais concentra-dos os poderes de agenda e de veto nas mãos da bancada governista,menor a possibilidade de controle parlamentar.

Proposição 3: No que se refere às relações entre os níveis nacional esubnacionais de governo, quanto maior o grau de centralização política,menores as possibilidades do controle parlamentar.

Proposição 4: Quanto maior a assimetria informacional entre os ato-res, menor a efetividade do controle parlamentar dos atos e omissões doExecutivo.

Proposição 5: A combinação de alta concentração dos poderes deagenda e de veto nas mãos de determinados atores (Executivo/governo

8 ANASTASIA, Fátima. “Responsabilización por el Control Parlamentario”, in: CONSEJO CIENTÍFICO

del CLAD (Coord.): 2 000. La Responsabilización en la Nueva Gestión Pública Latinoamericana..Buenos Aires, CLAD/EUDEBA.

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central/ bancada governista) e de alta assimetria informacional entre osatores favorece a autonomização das burocracias públicas e, por conse-qüência, dificulta o exercício da responsabilização política dos governantes.

O trabalho citado, no entanto, restringiu-se ao exame da distribuiçãodos poderes de agenda e de veto entre os poderes Executivo e Legislativo,ficando as demais proposições registradas como agenda de pesquisa aser posteriormente desenvolvida.

No que se refere a este primeiro aspecto, verificou-se que o textoconstitucional brasileiro reserva amplos poderes de agenda para o presi-dente da República: ele pode propor legislação ordinária, tem a prerro-gativa de iniciativa legislativa em matéria orçamentária e tem o poder deconvocar extraordinariamente o Congresso9 (ANASTASIA, 2000).

O presidente pode, além disto, requerer regime de tramitação extraor-dinária – pedido de urgência – para os projetos de lei de sua iniciativa;propor emendas à Constituição da República; editar Medidas Provisórias10

9 Em vários outros países presidencialistas latino-americanos – Argentina, Bolívia e Chile, por exemplo –

verifica-se a presença destas três atribuições presidenciais (ANASTASIA, 2000).

10 A Emenda Constitucional 32/2001 - 12.09.01 disciplinou e restringiu o uso das Medidas Provisórias,

com se pode observar pela nova redação do Artigo 62 da Constituição Brasileira:Art.62 - Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias,com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional.* (Redação pela EmendaConstitucional 32/2001 - 12.09.01) § 1º - É vedada a edição de medidas provisórias sobre matéria: *(Acrescido pela Emenda Constitucional 32/2001 - 12.09.01) I - relativa a: a) nacionalidade, cidadania,direitos políticos, partidos políticos e direito eleitoral; b) direito penal, processual penal e processual civil;c) organização do Poder Judiciário e do Ministério Público, a carreira e a garantia de seus membros; d)planos plurianuais, diretrizes orçamentárias, orçamento e créditos adicionais e suplementares, ressalvadoo previsto no art. 167, § 3; II - que vise a detenção ou seqüestro de bens, de poupança popular ou qualqueroutro ativo financeiro; III - reservada a lei complementar; IV - já disciplinada em projeto de lei aprovadopelo Congresso Nacional e pendente de sanção ou veto do Presidente da República. § 2º - Medidaprovisória que implique instituição ou majoração de impostos, exceto os previstos nos arts. 153, I, II, IV, V,e 154, II, só produzirá efeitos no exercício financeiro seguinte se houver sido convertida em lei até o últimodia daquele em que foi editada. * (Acrescido pela Emenda Constitucional 32/2001 - 12.09.01) § 3º - Asmedidas provisórias, ressalvado o disposto nos §§ 11 e 12 perderão eficácia, desde a edição, se não foremconvertidas em lei no prazo de sessenta dias, prorrogável, nos termos do § 7º, uma vez por igual período,devendo o Congresso Nacional disciplinar, por decreto legislativo, as relações jurídicas delas decorrentes.* (Acrescido pela Emenda Constitucional 32/2001 - 12.09.01) § 4º - O prazo a que se refere o § 3º contar-se-á da publicação da medida provisória, suspendendo-se durante os períodos de recesso do CongressoNacional. * (Acrescido pela Emenda Constitucional 32/2001 - 12.09.01) § 5º - A deliberação de cada umadas Casas do Congresso Nacional sobre o mérito das medidas provisórias dependerá de juízo prévio sobreo atendimento de seus pressupostos constitucionais. * (Acrescido pela Emenda Constitucional 32/2001 -12.09.01) § 6º - Se a medida provisória não for apreciada em até quarenta e cinco dias contados de suapublicação, entrará em regime de urgência, subseqüentemente, em cada uma das Casas do CongressoNacional, ficando sobrestadas, até que se ultime a votação, todas as demais deliberações legislativas daCasa em que estiver tramitando. * (Acrescido pela Emenda Constitucional 32/2001 - 12.09.01) § 7º -Prorrogar-se-á uma única vez por igual período a vigência de medida provisória que, no prazo de sessentadias, contado de sua publicação, não tiver a sua votação encerrada nas duas Casas do CongressoNacional. * (Acrescido pela Emenda Constitucional 32/2001 - 12.09.01) § 8º - As medidas provisórias terão

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e exercer poder delegado de decreto. Cabe a ele, exclusivamente, no-mear e exonerar os ministros de Estado, indicar 1/3 dos membros doTribunal de Contas da União, criar cargos e funções nas empresas públi-cas e na administração pública autárquica, definir a remuneração e oprovimento de cargos de servidores públicos, bem como criar, estruturare definir as atribuições de ministérios e órgãos da administração pública(ANASTASIA, 2000).

A Constituição permite, ainda, ao presidente, vetar, total ou parcial-mente, projeto de lei que considerar inconstitucional ou contrário aointeresse público11. Finalmente, lhe é concedido, pelo artigo 11 do Regi-mento Interno da Câmara, o direito de designar Deputados para exerce-rem a liderança do Governo, composta de Líder e três Vice-Líderes.

Dentre todas estas prerrogativas, o poder constitucional de decreto,consubstanciado na possibilidade de editar medidas provisórias com for-ça de lei, constitui, sem dúvida, o instrumento que mais concentra pode-res de agenda nas mãos do presidente. É fato que a Emenda Constitucio-nal número 32, de 2001, implicou alguma limitação deste poder, especi-almente no que refere ao número de reedições permitidas e aos prazos aserem observados. Não obstante, como assinala Pessanha (2002: 32/33):

“A emenda relaciona um conjunto de matérias insuscetíveis de regulaçãopor medidas provisórias. A maioria das proibições, entretanto, já constavado texto constitucional como temas impeditivos da delegação por parte doCongresso Nacional (...) Por outro lado, a emenda aumenta, de uma certaforma, a autonomia do Executivo sobre ‘a criação, transformação eextinção de cargos, empregos e funções públicas’ e reorganização de ‘Mi-nistérios e órgãos da administração pública’ no que se relaciona à sua

sua votação iniciada na Câmara dos Deputados.* (Acrescido pela Emenda Constitucional 32/2001 -12.09.01) § 9º - Caberá à comissão mista de Deputados e Senadores examinar as medidas provisórias esobre elas emitir parecer, antes de serem apreciadas, em sessão separada, pelo plenário de cada uma dasCasas do Congresso Nacional. * (Acrescido pela Emenda Constitucional 32/2001 - 12.09.01)§ 10 - Évedada a reedição, na mesma sessão legislativa, de medida provisória que tenha sido rejeitada ou quetenha perdido sua eficácia por decurso de prazo. * (Acrescido pela Emenda Constitucional 32/2001 -12.09.01)§ 11 - Não editado o decreto legislativo a que se refere o § 3º até sessenta dias após a rejeição ouperda de eficácia de medida provisória, as relações jurídicas constituídas e decorrentes de atos praticadosdurante sua vigência conservar-se-ão por ela regidas. * (Acrescido pela Emenda Constitucional 32/2001- 12.09.01)§ 12 - Aprovado projeto de lei de conversão alterando o texto original da medida provisória, estamanter-se-á integralmente em vigor até que seja sancionado ou vetado o projeto.* (Acrescido pela Emenda Constitucional 32/2001 - 12.09.01)

11 “A apreciação do veto presidencial será realizada em sessão conjunta das duas Câmaras e sua

rejeição dar-se-á pelo voto da maioria absoluta dos Deputados e Senadores, em escrutínio secreto(art. 66 & 4

º)” (ANASTASIA, 2000).

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criação e extinção” (grifos nossos).Como pode ser constatado pela leitura da tabela abaixo, Fernando

Henrique Cardoso foi o presidente que mais se utilizou do recurso àsmedidas provisórias, em todo o período pós-constitucional:

Por contraste, em todo o período analisado - 1988-2001 - apenas duasleis delegadas foram aprovadas, ambas relacionadas a gratificações deatividades para servidores públicos e ambas datadas do ano de 1992(PESSANHA, 2002, Tabela 2-B).

No que se refere ao Legislativo, a Constituição brasileira não lheconfere exclusividade de iniciativa legislativa, já que, como menciona-do anteriormente, o presidente pode, inclusive, propor projetos deemenda constitucional. Aos legisladores, no entanto, é permitido reque-rer tramitação extraordinária a projetos de lei e examinar e emendardecretos constitucionais (Medidas Provisórias) do Executivo. O Legislativopode, ainda, derrubar o veto do presidente à matéria aprovada peloCongresso, por maioria absoluta, em sessão conjunta das duas Casas;indicar 2/3 dos membros do Tribunal de Contas da União (TCU); aceitarou recusar os ministros do Tribunal de Contas da União (TCU) indicadospelo presidente e processar e julgar as autoridades nos crimes de res-ponsabilidade.

Em que pese o fortalecimento do Poder Legislativo, verificadodesde a vigência da Constituição de 1988, observa-se uma prepon-derância legislativa do presidente, como assinalam Figueiredo eLimongi:

“Os poderes legislativos obtidos pela presidência ao longo do regimeautoritário não foram retirados. (...) O Poder Executivo, em virtude deseus poderes legislativos, comanda o processo legislativo, minando assim o

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próprio fortalecimento do Congresso como poder autônomo. O resultadoé a atrofia do próprio Legislativo e a predominância do Executivo, princi-pal legislador de jure e de fato.” (FIGUEIREDO e LIMONGI, 1999: 41).

No artigo citado, Anastasia (2000) aponta uma concentração de pode-res de agenda e de veto nas mãos do Poder Executivo, o que inibe ocontrole de seus atos e omissões por parte dos legisladores. No presentetexto, argumenta-se que a dispersão dos poderes de agenda e de vetoentre os diferentes atores é propiciada pela interação virtuosa entre vari-áveis relacionadas ao método de formação do órgão decisório, à suacomposição e às regras de tomada de decisões (SARTORI, 1994).

Dessa forma, propõe-se que:• o número de atores e o número e o tipo de clivagens admitidos

na arena legislativa refletem a combinação dos efeitos produzidos pelotipo de sistema partidário e pelo tipo de cameralismo vigentes em cadapaís;

• a distribuição de poderes e de recursos parlamentares entreesses atores reflete as interações entre as regras eleitorais e as regrasdecisórias.

A mobilização dessas variáveis externas e internas permite analisar:• o número de agentes disponíveis para os cidadãos e seus perfis -

situação X oposição(ões); lideranças e legisladores;• os direitos parlamentares usufruídos por esses agentes, e• os recursos institucionais por eles controlados e seus padrões de

interação.O esquema analítico aqui desenvolvido será mobilizado para o exame

da Constituição brasileira de 1988 e do regimento interno da Câmara dosDeputados, com vistas a verificar o impacto provocado pelas regras dojogo sobre o comportamento político dos atores e suas conseqüências noque se refere às interações entre Executivo, Legislativo e cidadãos, bemcomo sobre os graus de accountability e de responsiveness da ordem.

Especial atenção será dada à analise da distribuição de poderes deagenda e de veto entre as bancadas governista e oposicionista, entrelideres e legisladores, bem como à natureza de suas interações. SegundoArnold (1990), nas democracias os cidadãos têm, no mínimo, dois agen-tes, a situação e a oposição: “The availability and talent of both coalitionleaders and opposition leaders also leaves a large imprint on congressionaldecisions. When one side is staffed by enthusiastic and talented leaders whilethe other attracts few leaders of any sort, the first side is powerfully advantag

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ed”12 (ARNOLD, 1990:120)13. Huber & Powell, Jr. (1994) apontam, porsua vez, o impacto provocado pelo padrão de interação política entreesses agentes: “… giving opposition parties significant weight in policy-making may improve congruence between what citizens want and whatpolicies result” (pag. 301).

Nas democracias, espera-se encontrar regras e procedimentos que garantama expressão política de diferentes forças políticas e que lhes confiram direitos erecursos institucionais para a vocalização das preferências de seus públicos epara a fiscalização dos governantes14. Esses mecanismos são absolutamente cruciaispara a ampliação dos graus de responsiveness e de accountability da ordemdemocrática e serão objetos privilegiados de análise neste texto.

O texto está organizado da seguinte forma: na próxima seção serãodescritas e analisadas as variáveis que afetam a constituição da represen-tação política e o exercício da accountability vertical, notadamente ossistemas eleitoral e partidário e os dispositivos constitucionais e regimen-tais que facultam a participação institucionalizada dos cidadãos na arenapolítica, nos interstícios eleitorais. Após, serão abordadas as variáveisrelacionadas ao exercício da representação política e da accountabilityhorizontal, com ênfase para as regras constitucionais e regimentais quedistribuem poderes de agenda e de veto15 entre os poderes Executivo e

12 “A disponibilidade e o talento de ambos, líderes de coalizão e líderes oposicionistas, também têm

conseqüências nas decisões do Congresso. Quando um lado é composto por líderes entusiasmados etalentosos enquanto o outro atrai poucos líderes de qualquer tipo, o primeiro lado encontra-se emposição muito vantajosa” (ARNOLD, 1990:120).13

Arnold assinala, ainda, que as decisões dos legisladores dependem fundamentalmente de quatrofatores: das propostas introduzidas pelos líderes de coalizão, das estratégias empregadas pelospropositores das matérias e por seus opositores, das ações que os cidadãos atentos e desatentospermitirão e das políticas preferidas pelos próprios legisladores (ARNOLD, 1990: 121/122).14

“In a democracy the preferences of all citizens, not just an electoral majority, should be taken intoaccount in the making of policies (…) The best guarantee that the majority will take account of minoritypreferences is to give the minority some valuable policy-making power)” POWELL, Jr., 2000:6. (Em umademocracia, as preferências de todos os cidadãos, não apenas de uma maioria eleitoral, devem serconsideradas na formulação das políticas (...) A melhor garantia de que a maioria vai levar em contaas preferências da minoria é dar à minoria alguns importantes poderes de formulação de políticas)15

“Por poder de agenda entendemos a capacidade de iniciativa política, entendida enquanto capa-cidade de inserir na agenda política alternativas que correspondam às preferências e/ou aos interes-ses dos atores. Esta capacidade engloba o direito de formular e de expressar preferências (DAHL,1997: 26); o direito de “ter suas preferências igualmente consideradas na conduta do governo”(DAHL,1997:26); o direito de propor, iniciar e modificar legislação; o direito de determinar ritmos e seqüên-cias de procedimentos ao longo do processo decisório (FIGUEIREDO e LIMONGI, 1999: 69); o direitode indicar e/ou nomear autoridades e funcionários públicos; a atribuição de execução de políticaspúblicas e o direito de fiscalizar a conduta dos agentes. (ANASTASIA, 2000: 123).“Por poder de veto entendemos a capacidade que qualquer ator tem de impedir a expressão depreferências e a ação política de outros atores, bem como a sua consideração na conduta dogoverno”. (ANASTASIA, 2000: 127).

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Legislativo bem como no interior de cada um desses poderes. Nas con-clusões, serão analisados os efeitos combinados produzidos pela interaçãoentre os instrumentos de accountability vertical e horizontal e seus im-pactos sobre a ordem democrática. Serão, ademais, apresentadas algumassugestões com o objetivo de incrementar o equilíbrio virtuoso entreaccountability e estabilidade democrática.

I - REPRESENTAÇÃO PROPORCIONAL, MULTIPARTIDARISMO E ACCOUNTABILITY VERTICAL

Esta seção visa examinar o funcionamento dos mecanismos de controlevertical no Brasil. O suposto é que as opiniões e os interesses do eleito-rado terão maiores chances de incidir sobre a ação dos representanteseleitos se: a) o Poder Legislativo se constituir enquanto espaço institucionalde expressão política das diferentes minorias, o que remete aos sistemaseleitoral e partidário16 e, b) existirem dispositivos constitucionais e regi-mentais capazes de permitir a participação institucionalizada dos cida-dãos, nos interstícios eleitorais.

O primeiro ponto a ser discutido, portanto, refere-se ao impacto dofuncionamento dos sistemas eleitoral e partidário sobre a constituição dopoder legislativo. Um sistema partidário tem função relevante na defini-ção: a) do número de agentes disponíveis para os cidadãos e de seusperfis, levando-se em conta, principalmente, os partidos efetivos (LAAKSOe TAAGEPERA,1979); b) do número e do tipo de clivagens processadasatravés dos partidos (LIJPHART,1989) e, c) da natureza da interação entreesses agentes, se de tipo moderada ou polarizada (SARTORI, 1982; SAN-TOS, 1986). Já um sistema eleitoral importa na medida em que encoraje aeleição de maiorias legislativas ou favoreça uma eqüitativa representaçãodos múltiplos partidos existentes.

O multipartidarismo é uma das marcas da democracia brasileira e,como sustenta Abranches (1988), perfeitamente compatível com o graude complexidade e heterogeneidade do país. Pode-se apontar, com ra-zão, para a fragilidade das atuais organizações partidárias, para os víncu-los um tanto precários destas com o eleitorado, para a alta incidência dasmigrações partidárias ou ainda para a profusão de legendas de aluguel. O

16 Não basta, é claro, que as minorias possam se fazer representar. É preciso que o Poder legislativo seja

organizado de forma a que os poderes de agenda e veto não estejam concentrados nas mãos dabancada governista. Mas este será o tema da próxima seção.

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que não se pode afirmar é que o sistema partidário torne artificial aexpressão da competição política nacional.

A atual configuração partidária reflete clivagens de caráter sócio eco-nômico e regional. De um lado, é possível distinguir os principais parti-dos brasileiros em um contínuo esquerda/direita, como já o fizeram di-versos autores (KINZO, 1990, 1993; NOVAES, 1994; FIGUEIREDO eLIMONGI, 1995, 1999) e sustentar que tal distribuição guarda relaçãocom diferentes pontos de vista encontrados na sociedade a respeito dequestões que vão desde as funções e o papel do Estado até a união legalde homossexuais. De outro, é evidente que os partidos também são umaexpressão do federalismo. Para além de favorecer, quase exigir, osurgimento de partidos descentralizados e dotados de clivagens territoriaisinternas, a existência de dinâmicas políticas sub nacionais – acopladas àdisponibilidade de recursos nos planos estadual e municipal capazes degarantir carreiras políticas exclusivamente locais e/ou regionais – atuacomo fator capaz de garantir a sobrevivência de organizações partidárias,guardada relativa autonomia face à dinâmica política nacional17.

O número efetivo de partidos no Brasil não se apresenta elevado,uma vez comparado às democracias européias (SANTOS, 1998a). Apartir das eleições de 1990, sete partidos passaram a controlar cerca de90% da representação política e a determinar os rumos do CongressoNacional atuando, ademais, de forma disciplinada em seu interior(FIGUEIREDO e LIMONGI, 1999; NICOLAU, 1997). Mais ainda, comomostra Melo (2002a), é possível destacar, no interior deste grupo umoutro, composto por PSDB, PFL e PT, que tem se credenciado comoorganizações em torno das quais tende a se estruturar o sistema partidá-rio no próximo período. Finalmente, em que pese o alto grau defracionamento do sistema partidário, é preciso considerar que asinterações no seu interior têm sido de tipo moderada, não se verifican-do a presença de partidos relevantes claramente anti-sistema nem deintensidades de preferências tão altas que inviabilizem a prática danegociação e da barganha – como mostra, por exemplo, uma compara-ção feita entre os programas dos principais candidatos à Presidência daRepública em 2002.

17 Melo (2002a) argumenta que o PMDB, apesar de ter sido deslocado pelo PSDB da condição de

ocupante ativo do centro e de não cumprir papel relevante nas disputas presidenciais desde 1989,consegue se manter entre os grandes partidos graças à dinâmica regional da política brasileira.

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Se os principais partidos podem ser, de fato, apontados como refle-tindo a diversidade e complexidade nacionais, o sistema de representa-ção proporcional, por sua vez, favorece a sua efetiva presença nopoder Legislativo aumentando as chances de que este Poder se consti-tua em um espaço institucional de expressão política das diferentesminorias. Sobre tais aspectos, pode-se dizer que o funcionamento dosistema político brasileiro favorece a dispersão de poderes entre osatores relevantes.

Existem, no entanto, alguns problemas que merecem atenção nesteponto, seja por incidirem sobre a constituição do poder legislativo, sejapor remeterem a nosso segundo ponto, qual seja, as chances dos eleito-res controlarem as ações de seus deputados.

Nos sistemas de representação proporcional os votos, independen-temente das opções de escolha conferidas ao eleitor, são contabilizadosem termos partidários, adotando-se posteriormente algum mecanismode transferência no interior das listas como forma de se chegar aoseleitos. Isso significa que o sistema eleitoral, ao transformar votos emcadeiras, procura avaliar a distribuição das preferências partidárias en-tre os eleitores como passo inicial para chegar à distribuição do poderparlamentar entre os partidos. Se isso é verdade, pode-se assumir, comSantos (1987), que quanto maior a correspondência entre o sistemapartidário eleitoral e o sistema partidário parlamentar, mais representa-tivo será o sistema político.

Analisado sob este ângulo, o sistema eleitoral brasileiro provoca umadistorção entre o conjunto de preferências manifestas pelo eleitorado e aefetiva distribuição de cadeiras entre os partidos. A cada eleição umasérie de cadeiras é colocada “fora do lugar”, de forma a comprometer aproporcionalidade entre os votos e os postos legislativos recebidos pelospartidos. Quatro fatores contribuem para tanto, sendo que três deles emer-gem diretamente da legislação eleitoral: a) a exclusão dos partidos quenão tenham alcançado o quociente eleitoral estadual da disputa pelassobras – o que favorece as maiores legendas em cada estado; b) a per-missão para a realização de coligações parlamentares, com a peculiarida-de de que as cadeiras conquistadas não são distribuídas proporcional-mente à votação de cada membro da coligação – o que faz com que ovoto dado a um partido seja computado para benefício de outro; e c) anão observância de critérios de proporcionalidade na distribuição dascadeiras na Câmara dos Deputados entre os colégios eleitorais estaduais

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– o que favorece as organizações partidárias com maior implantação nosestados menos populosos18. O quarto fator é a migração partidária nointerior do poder legislativo fenômeno que devido à persistência e mag-nitude com que ocorre desde 1985 (MELO 2000a e b, 2002b) faz comque a distância entre o que dizem os votos depositados nas urnas e adistribuição das cadeiras entre os partidos na Câmara dos Deputadoscontinue a aumentar depois de iniciada cada legislatura, com o agravantede que deixa de existir qualquer interferência do eleitor no processo.

O efeito combinado dos fatores acima é suficiente para fazer com queo Brasil se destaque, entre os países que adotam o sistema de represen-tação proporcional, pelos índices de desproporcionalidade alcançados.Exercício feito para as eleições de 1998 (MELO 2002b), levando emconta as bancadas estaduais eleitas para a Câmara dos Deputados, mostraque 37 foram colocadas fora do lugar nos estados devido ao efeito dascoligações; 43 devido à utilização do quociente eleitoral como cláusulade barreira19 e 94 como resultado da migração partidária verificada entreos anos de 1999 e 2001.

Quando se transita das bancadas estaduais para as nacionais, na Câma-ra dos Deputados, o quadro de cadeiras “fora do lugar” se altera, uma vezque partidos prejudicados em um estado podem ser beneficiados emoutros, e vice-versa. Perdas e ganhos podem se anular e, no cômputonacional, o número de cadeiras fora do lugar pode diminuir. De todomodo, a diferença entre o percentual de votos e cadeiras dos partidos se

19 Na realidade, 67 cadeiras foram deslocadas, nas bancadas estaduais, em 1998, em conseqüência

das coligações realizadas. Mas sabe-se que boa parte destas coligações pode ser explicada como umatentativa de fugir ao impacto do quociente eleitoral (QE). Se para as eleições de 1998, ao lado deserem proibidas as coligações, o QE tivesse deixado de funcionar como cláusula de barreira, onúmero de cadeiras a ser redistribuídas seria de 37, como está primeira linha, e não de 67. Ou seja,parte das cadeiras adquiridas em função da coligação o seriam de todo modo, pudessem os partidosdisputar as cadeiras não alocadas após a primeira divisão. Isolado o “efeito QE”, o impacto dascoligações cai. Por outro lado, as cadeiras colocadas fora do lugar em função do “efeito QE” chegama 43, indicando que a suspensão da barreira beneficiaria outros partidos, além daqueles que recor-reram às coligações.

18 Também a fórmula D’ Hondt, aplicada para a distribuição das cadeiras não ocupadas após a

primeira divisão, contribui para tornar menos proporcional a representação no Brasil por favoreceros grandes partidos (TAVARES, 1994; BLAIS e MASSICOTE, 1996). O mesmo podia ser dito sobre aintrodução dos votos em branco no cálculo do quociente eleitoral, o que deixou de ser feito após1998. A desproporcionalidade entre as unidades da federação viola, como lembram Lima Júnior(1997) e Nicolau (1997), o princípio constitucional do voto com “igual valor para todos”, promoven-do uma brutal “esterilização de votos” (TAFNER, 1997). O argumento contrário é apresentado porSantos (1987, capítulo V), ao dizer que estamos diante de um corretivo à fragilidade do federalismobrasileiro, abrindo a possibilidade de que os estados minoritários, do ponto de vista econômico,populacional e eleitoral, defendam seus interesses e compensem sua inferioridade.

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mantém em nível significativo. De 1982 a 1998 o valor médio para oÍndice de Desproporcionalidade (LOOSEMOORE and HANBY, 1971) foide 8,7. Mas, novamente, é preciso levar em conta a migração partidária.Dados apresentados por Melo (2002b) mostram que a diferença encon-trada entre as bancadas nacionais dos partidos no inicio e ao final de cadalegislatura, como resultado da troca de legenda, é ainda maior do que odesvio de proporcionalidade para o mesmo período, chegando a 17,220.

Finalmente, cabe ressaltar que o impacto da não correspondência en-tre os sistemas partidários eleitoral e parlamentar não se encontra igual-mente distribuído entre os diversos partidos políticos. Isto significa quena constituição do poder Legislativo federal e mais especificamente daCâmara dos Deputados determinados atores têm sido beneficiados deforma sistemática pelo atual arranjo, recebendo maior quinhão de poderparlamentar do que lhe deveria ser conferido a partir das urnas. O PFL,por exemplo, em todas as eleições que disputou até 1998 lucrou com anão observância de critérios de proporcionalidade na distribuição dascadeiras na Câmara dos Deputados entre os colégios eleitorais estaduais.No outro extremo, o PT foi severamente prejudicado pelo mesmo meca-nismo entre 1982 e 1994.

O segundo ponto a ser discutido nesta seção refere-se à existência eao funcionamento de mecanismos capazes de fazer com que os cidadãostenham a possibilidade de intervir, de forma contínua, no processo decisório.É amplamente aceito na literatura que cidadãos mais bem informados edotados de alternativas institucionais por meio das quais possam vocalizarsuas preferências encontram-se em melhores condições para instruir e/ou responsabilizar os seus representantes. Sendo assim, é inegável que,nos últimos anos, o país deu alguns passos à frente devido a medidas queaumentaram a possibilidade de controle, nos interstícios eleitorais, dosatos dos poderes Executivo e Legislativo, bem como ampliaram as chancesde participação popular.

No que se refere às iniciativas do poder Executivo merecem destaque:• O funcionamento a partir de 1998 do SIAFI, apontado como “o

principal instrumento de administração orçamentária e financeira da Uniãoque oferece suporte aos órgãos centrais, setoriais e executores da gestão

20 Trata-se do Índice de Mudança Parlamentar Agregada, proposto por Nicolau (1996), como forma de

dimensionar o impacto das trocas de legenda ao serem comparadas as bancadas nacionais eleitas comaquelas encontradas ao final de cada legislatura. O índice é calculado de mesma maneira que D.

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pública (...). Por meio do SIAFI são obtidas as informações que subsidiamo Balanço Geral da União e os relatórios de execução do orçamento e deadministração financeira, que compõem a demonstração das Contas apre-sentadas ao Congresso Nacional pelo Presidente da República, em confor-midade com a Constituição Federal” (www.stn.fazenda.gov.br/SIAFI/index.asp). O sistema é capaz de gerar dados em todas as fases doprocesso o que o torna ferramenta de controle e fonte de informaçõespara auditores externos e internos;

• O acesso, por meio de consulta, ao processo de transferência dosrecursos constitucionalmente destinados aos Estados e Municípios, emespecial o FPE e o FPM (www.stn.fazenda.gov.br/estados_municípios/index_dinamica.asp);

• A aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal, em maio de 2000,pelo Congresso Nacional de forma a instituir: a) objetivos e limites defini-dos em função de indicadores fiscais selecionados; b) mecanismos decorreção em caso de desobediência; e c) ações punitivas contra osgovernantes responsáveis pela implementação da política fiscal;

• A disponibilização pública de informações sobre a implementação eavaliação contínua do Plano Plurianual, através do site do Ministério doPlanejamento, Orçamento e Gestão (www.planejamento.gov.br);

• A disponibilização das informações necessárias à fiscalização roti-neira e detalhada da execução do Orçamento da União, o que pode serfeito através da Internet pelo PRODASEN, o sistema de processamentode dados do Senado;

• A criação da Corregedoria-Geral da União, por meio da Medida Provi-sória nº 2.143-31, de 2 de abril de 2001, com atribuições de correção,controle interno, auditoria pública e, a partir de 2002, de ouvidoria-geralno âmbito do Poder Executivo Federal, objetivando dar o devido andamen-to às representações ou denúncias fundamentadas, relativas a lesão ouameaça de lesão ao patrimônio público (www.presidencia.gov.br/cgu);

De forma geral, estas e outras iniciativas têm facilitado sobremaneira oacesso a informações sobre o exercício do governo no país. No quetange ao funcionamento dos mecanismos de controle vertical, a posse detais recursos, tanto possibilita aos parlamentares trazer para o debatepúblico eventuais problemas detectados, quanto facilita o processo deinstrução dos representantes no Legislativo pelo eleitorado.

Também no que se refere às interações entre cidadãos e legisladores,é possível apontar avanços. Mas antes de abordá-los, vale a pena discutir

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a maneira como estes nexos são estabelecidos desde o plano eleitoral. Adiscussão pode ter início com a lembrança de que no Brasil a representa-ção proporcional funciona através do sistema de lista aberta: o partidodefine uma lista não ordenada de candidatos, cabendo ao eleitor quedeseja validar seu voto sufragar um nome ou uma legenda. Existe umamplo consenso na literatura (ver, entre outros, MAINWARING, 1991;CAREY & SHUGART, 1995; TAVARES, 1998 e NICOLAU, 2002) segundoo qual este tipo de procedimento termina por incentivar o voto persona-lizado, ou seja, o voto definido com base nas características do candidatoe não do partido.

Em trabalho recente, Figueiredo e Limongi (2002) questionam a teseda predominância do voto pessoal no Brasil apresentando, como uma dasevidências em favor de seu argumento, as altas taxas de renovação parla-mentar para a Câmara dos Deputados nas últimas eleições. De acordocom os autores, “o mandato não traz a segurança na esfera eleitoral quedeveria ocorrer como uma conseqüência do voto pessoal” (p. 312).

Mas parece razoável sustentar que as altas taxas de renovação menci-onadas, muito mais do que desautorizar a tese do voto personalizado,remetem ao conjunto de características que tornam as eleições proporci-onais no Brasil extremamente competitivas e marcadas por uma brutalincerteza. Distritos de elevada magnitude; número de candidatos amplia-do pela quantidade de partidos e pela permissão a que cada legendalance uma quantidade maior de candidatos (uma vez e meia) do que asvagas disponíveis; competição instalada também no interior de cada par-tido e possibilidade de que o candidato à reeleição seja derrotado por umnome egresso de sua lista; realização de coligações proporcionais queaumentam ainda mais o número de candidatos competindo dentro damesma lista, ampliam as possibilidades de “dobradinha” e tornam compe-titivos candidatos de partidos pequenos que, de outra forma, não teriamchance de disputar uma cadeira; campanhas individualmente financiadase sem qualquer tipo de limite ou controle por parte dos partidos;inexistência de mecanismos partidários dotados de legitimidade para es-tabelecer prioridades eletivas internas; políticas de recrutamento eleitoralque tornam irrelevante a noção de carreira político-partidária, priorizam acooptação de puxadores de voto e/ou fazem do político outsider umaconstante ameaça a quem possui mandato. Tudo isso contribui para que,embora o sistema eleitoral gire em torno das características do candidatoe convide o eleitor a personalizar sua escolha, o processo funcione de tal

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forma que não se observe, mesmo com a seqüência das eleições, oestabelecimento de vínculos estáveis entre esses dois atores, ou para queos vínculos estabelecidos não sejam suficientes para garantir a continui-dade da carreira.

Não existem, é certo, evidências conclusivas quanto às reais dimen-sões do voto personalizado entre o eleitorado brasileiro. No limite, não épossível saber até que ponto um voto conferido a um candidato não étambém um voto conferido a seu partido. Mas existem, e em númerosuficiente, evidências indiretas de que o eleitor brasileiro, majoritaria-mente, escolhe o seu candidato sem levar em conta o partido. São elas:

1. O baixo percentual do eleitorado que vota na legenda – entre 1986e 1998 apenas 8,8% dos eleitores fizeram tal opção para a Câmara dosDeputados (NICOLAU, 2002), sendo que tal tipo de voto encontra-seconcentrado do centro para a esquerda e praticamente não é observadono caso dos partidos situados à direita do espectro político;

2. O elevado percentual de eleitores que não declara qualquer tipo depreferência partidária – pesquisas realizadas pelo IBOPE, DataFolha eVox Populi, mostram que o percentual destes eleitores manteve-se altoentre 1989 e 2001, com índices que variaram de 45% a 62% (MENEGUELLO,1994, MAINWARING, 2001; MAINWARING, MENEGUELLO E POWER,2000; Folha de São Paulo, edição de 07/10/2001);

3. A percepção de que mesmo as preferências manifestas são instá-veis, oscilando ao sabor da conjuntura, e não necessariamente guardandorelação com a opção de voto – em 1989, o DataFolha registrava 8,0% depreferência para o PRN e 9,8 para o PMDB. Três anos depois, o mesmoinstituto apontava 0,3% para o primeiro partido e 19,2% para o segundo(MAINWARING, 2001). O PPR, apontado como partido preferido por 2%nas pesquisas em 1994, amealhou 9,4% da votação nacional naquele ano(MENEGUELLO, 1994). PFL e PSDB, que por duas vezes elegeram oPresidente da República e juntos obtiveram 34% dos votos para a Câmarados Deputados em 1998, eram preferidos por apenas 8% do eleitoradoem 2001 (Folha de São Paulo, 07/10/2001).

4. O baixo grau de legitimidade conferido aos partidos pela sociedade– pesquisas de opinião têm revelado que o percentual dos que afirmamconfiar nos partidos é cerca de três ou quatro vezes menor do queaqueles que manifestam alguma simpatia por uma legenda (MAINWARING,2001; www.latinobarometro.org)

5. A percepção, entre os deputados federais, de que a atuação indivi-

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dual do candidato tem peso quase três vezes maior do que a legendapartidária para o sucesso eleitoral (CARVALHO, 2000);

6. As altas taxas de migração partidária encontradas em qualquer cor-po legislativo nacional – um dos fatores que contribui para que a troca delegenda mantenha-se de forma endêmica no Brasil é a suposição, feitapelos deputados, de que o eleitor não presta atenção à trajetória partidá-ria do candidato, o que torna a migração uma manobra de baixo custopolítico (MELO, 2002b).

A estas evidências pode-se acrescentar a suposição, altamente prová-vel ainda que não empiricamente verificada, de que o eleitor não temconhecimento de como opera no Brasil o mecanismo de transformaçãode votos em cadeiras e, portanto, dirige-se à cabine de votação acreditan-do que serão eleitos aqueles deputados que forem individualmente maisvotados. Tudo leva a crer, portanto, que o eleitor brasileiro faz do depu-tado, e não do partido, o seu agente.

Sendo assim, faz sentido supor que o posterior acompanhamento dotrabalho parlamentar será realizado, quando o for, de forma personaliza-da, mais do que em termos partidários. Para o eleitor brasileiro, naspalavras de Arnold (1990), a “incumbent performance rule” aparececomo mais plausível do que a “party performance rule”, quando se tratade raciocinar retrospectivamente. Os próprios legisladores assim perce-bem a questão. Basta acompanhar a atuação de qualquer deputado –mesmo aqueles que, como os petistas, revelam vínculos mais consisten-tes com o partido – na relação com o eleitor. Sua principal preocupação éconseguir os créditos pela sua atuação individual, seja ela de que tipo for– da doação de sacos de farinha à demonstração de aguerrida oposição a“tudo que ai está”, passando pela alocação de recursos orçamentáriospara sua região. Resta saber até que ponto a relação estabelecida nocenário eleitoral é capaz de fazer com que os legisladores levem emconta o que pensam os seus eleitores ao fazer suas escolhas no exercíciodo mandato.

Tal como feito há pouco para as iniciativas do Poder Executivo, épossível apontar, nos últimos anos, alguns avanços nas relações entrecidadãos e seus representantes no Congresso Nacional. Vale destacar:

• A comunicação direta com o cidadão a partir do funcionamento dasTvs Câmara e Senado – a primeira desde 1996 e a segunda a partir de1998 – bem como das Rádios Câmara e Senado;

• A disponibilização, através dos respectivos sites (www.camara.gov.br

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e www.senado.gov.br), de informação detalhada sobre o funcionamentode ambas as Casas;

• A criação, em 2001, da Ouvidoria da Câmara dos Deputados, com afunção de receber e examinar petições, reclamações, representações ouqueixas apresentadas por pessoas físicas contra atos ou omissões deautoridades públicas, ou imputadas a membros da Casa. No Senado, aOuvidoria é feita por meio de um serviço tipo 0800;

• A criação, também em 2001, da Comissão de Legislação Participativa,com poderes para acolher e transformar em proposição legislativa suges-tões apresentadas por associações e órgãos de classe, sindicatos e entida-des organizadas da sociedade civil ou pareceres técnicos, exposições epropostas oriundas de entidades científicas e culturais (Artigos 32 e 254do Regimento Interno da Câmara dos Deputados);

• A modificação, em 20/12/2001, do Artigo 53 da ConstituiçãoFederal, dando nova redação à questão da imunidade parlamentar etornando deputados e senadores passíveis de processo pelo SupremoTribunal Federal sem a necessidade de licença prévia da Casa – po-dendo esta, no entanto, sustar a ação por maioria de votos em umprazo de 45 dias.

Tais medidas, no entanto, não são suficientes para que se possa afir-mar que o eleitorado brasileiro esteja em condições de instruir e/ouresponsabilizar individualmente o seu representante na Câmara dos De-putados. Uma primeira razão para tanto é de ordem geral. O processo detomada de decisão no Brasil envolve uma série de atores com algumacapacidade de interferência: temos um Executivo que legisla e veta, duascasas legislativas com capacidade para modificar reciprocamente as inici-ativas, diversos partidos e instrumentos judiciais que cada vez mais temsido chamados a resolver questões de ordem política. No cipoal constitu-ído, não é simples para o eleitor identificar o quinhão de responsabilida-de de cada deputado individualmente21.

Um segundo ponto remete, como em qualquer órgão legislativo, àsestratégias regimentais disponíveis aos lideres partidários e cujo objetivoé o de evitar a exposição do deputado em questões onde o interesse doExecutivo (ou mesmo apenas do partido) apresenta elevado potencial de

21 Na recente campanha presidencial diversos assuntos colocados na pauta tiveram sua paternidade

disputada entre os candidatos. José Serra (PSDB), por exemplo, reivindicava a introdução dos gené-ricos e do seguro desemprego, no que era questionado pelo PT, que reivindicava para seus deputadosas iniciativas.

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colisão com interesses manifestos por parcelas da sociedade. Tal ponto,como se perceberá, será objeto da próxima seção.

Para além destas dificuldades, como nos lembra Nicolau (2002: 225),o monitoramento do deputado eleito depende de outros dois fatores:“que o candidato no qual o eleitor votou seja eleito e que o eleitor selembre em quem ele votou na eleição anterior”. Dados organizados peloautor mostram que, nas últimas quatro eleições para a Câmara dos Depu-tados, em média 35,5% dos eleitores votaram em um candidato vitorioso,de forma que a “incumbent performance rule” não faria sentido paraquase dois terços do eleitorado. Tampouco é possível afirmar que oeleitor se lembre do voto dado. Pouco antes da eleição de 1994, oDataFolha mostrava que 54% dos entrevistados não se lembrava em quehavia votado no pleito de 199022; pesquisa feita pelo IUPERJ na cidadedo Rio de Janeiro no mesmo ano, mostrava que, descontados os que nãovotaram ou anularam o voto, 76,9% não conseguia se lembrar do candida-to escolhido23! É provável que parte deste eleitorado tenha votado emcandidatos derrotados – o que certamente funciona como um incentivoao esquecimento. Mas também é razoável supor que mesmo entre oseleitores “vitoriosos”, uma parcela tenha chegado ao candidato apenas àsvésperas do pleito e que a opinião cristalizada no voto reflita menos umaescolha autônoma do que o acatamento de um pedido feito por alguémde seu círculo de relações pessoais 24.

Mas mesmo o eleitor que escolhe um candidato vitorioso e procuraacompanhar o mandato subseqüente pode perceber que existe um outroproblema: a existência de uma flagrante descontinuidade entre os cenári-os eleitoral e parlamentar no Brasil. Se, no primeiro, é o candidato afigura central, no segundo são os partidos, através de seus líderes, queimportam: conforme mostraram de forma convincente Figueiredo e Limongi(1999), os legisladores não dispõem de recursos para influir individual-

22 Jornal Folha de São Paulo, caderno De Olho no Voto, 18 de setembro de 1994, página 28. A

mesma pesquisa indica que 48% dos entrevistados pretendia votar em um candidato que não fossedeputado, o que mostra uma forte tendência a um voto prospectivo, um voto atento não ao desem-penho dos que estavam no Congresso, mas às características e propostas dos novos postulantes.23

Dados obtidos em Nicolau (2002).24

Eleições proporcionais despertam escasso interesse no Brasil. Às vésperas da eleição de 1998,segundo o DataFolha, mais de 80% do eleitorado não havia definido o seu candidato a deputado –um percentual que pode ser explicado como o resultado de uma confluência entre a ausência deinformação acerca dos competidores e a falta de interesse pela competição.

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mente na agenda e no processo legislativo no interior da Câmara dosDeputados.

Estamos, portanto, diante de um problema. Nas eleições proporcio-nais, o eleitor vota de acordo com as características do candidato supondoque este seja capaz, a partir de seu desempenho individual, de levar àfrente suas propostas. Mas o eleito, ao chegar à Câmara – e aqui épreciso considerar ainda que a renovação bruta na Câmara dos Deputa-dos tem girado em torno dos 50% – depara-se com um cenário no qual ospoderes de agenda e veto estão em outras mãos. Dito de outra forma, orepresentante eleito no contexto de uma relação na qual os compromis-sos assumidos com os eleitores são de ordem pessoal, encontrará nolegislativo, um contexto institucional que inibe a perseguição de taiscompromissos ou, pelo menos, que tais compromissos só poderão seratingidos desde que compatíveis com as preferências dos líderes partidá-rios. Pode-se dizer que, de certa forma, o cenário parlamentar “corrige”um problema do cenário eleitoral, ao introduzir com mais clareza ospartidos. Mas a comparação entre os dois cenários permite chegar àconclusão de que o eleitor acaba sendo levado a designar o agenteerrado. Dada a maneira como se estruturam os órgãos decisórios no Bra-sil, o eleitor teria mais facilidade de acompanhar o processo legislativo sedesignasse o partido, e não o candidato individualmente, como o seuagente.

No presidencialismo de coalizão brasileiro os legisladores encontram-se sob dois fogos. De um lado, precisam levar em conta toda uma sériede incentivos a que atuem de forma cooperativa com o poder Executivo.De outro, por representarem parcelas do eleitorado, devem procurar agirem nome de seus interesses. A literatura tem enfatizado, e valorizado, omodo como o arranjo institucional vigente após 1988 tem levado osdeputados a agirem de forma disciplinada e a conferirem razoável basede apoio aos presidentes eleitos (FIGUEIREDO e LIMONGI, 1999). Maspouco se tem discutido a possibilidade de que tal apoio se dê indepen-dentemente do que pensa o eleitorado.

Pelo que pode se observar nesta seção, os eleitores designam agentesque, pelos motivos acima expostos, não contam nem com bases de apoioeleitoral seguras o suficiente, nem com recursos de ordem regimental/institucional, com os quais possam contar para resistir às pressões doExecutivo e dos líderes partidários. Os deputados, por sua vez, sabemque os eleitores de um modo geral, ou são “desatentos”, ou enfrentam

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uma série de obstáculos para monitorar os mandatos individualmente.Logo, sempre que colocados entre dois fogos – o Executivo e o eleitor –em um contexto que não inclua mobilização social, os legisladores en-contrarão mais incentivos a ceder ao primeiro. Se tudo isso está correto,pode-se dizer que o sistema político brasileiro funciona de forma tal queos mecanismos de accountability vertical não tem sido capazes de incidirsobre os processos de controle no plano horizontal.

II - ORGANIZAÇÃO LEGISLATIVA, REPRESENTAÇÃO POLÍTICA E ACCOUNTABILITY HORIZONTAL

Nesta seção serão analisadas as variáveis que afetam a distribuição dospoderes de agenda e de veto no interior da organização legislativa e suasrepercussões sobre o exercício da accountability horizontal. Para tanto,será tomada como ponto de partida a proposição 225, citada anteriormen-te. O principal argumento aqui desenvolvido é o de que a possibilidadedo controle dos atos e omissões dos governantes pelo Poder Legislativocresce com o aumento da dispersão dos poderes de agenda e de vetoentre os atores no interior das Casas Legislativas. Este argumento estáfundamentado no pressuposto de que as regras que informam a constitui-ção, a composição e o funcionamento do Poder Legislativo produzemimpactos sobre a accountability horizontal.

A consideração da 8a. condição da poliarquia de Dahl26 remete àobservação dos padrões de interação entre agents e principals nosinterstícios eleitorais. Se as novas decisões a serem tomadas devem ob-servar as sete condições precedentes, porém em condições institucionaismuito diferentes, tal ocorre porque o locus privilegiado para a observa-ção da 8a. condição é o Poder Legislativo, principal responsável, nasdemocracias, pelas decisões tomadas entre uma eleição e outra.

25 “Proposição 2: No que se refere ao Poder Legislativo, quanto maior a concentração dos poderes

de agenda e de veto em uma das Câmaras, menor a possibilidade do controle parlamentar. Quantomais concentrados os poderes de agenda e de veto nas mãos da bancada governista, menor apossibilidade de controle parlamentar” (ANASTASIA, 2000).26

“Durante o estágio entre votações.8.1. Todas as decisões tomadas entre eleições são subordinadas ou executórias àquelas tomadasdurante o período de eleição, isto é, as eleições são, em certo sentido, controladoras;8.2. Ou as novas decisões, tomadas durante o período entre eleições, são pautadaspelas sete condições precedentes, operando, no entanto, sob circunstâncias institucionaismuito diferentes;8.3. Ou ambas as coisas” (DAHL, 1989:85 - grifos nossos).

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A aplicação das condições estipuladas por Dahl às organizaçõeslegislativas vigentes nos países ditos democráticos permitirá, provavel-mente, concluir que dificilmente poder-se-ia chamar de poliarquia à mai-oria dos Legislativos efetivamente existentes. E esta consideração refere-se, tão somente, aos requisitos mínimos necessários à introdução de qual-quer organização humana no universo das poliarquias, a saber, os princí-pios de igualdade política e de soberania da maioria. Obviamente, pro-blemas maiores surgem quando se trata de distinguir os graus depoliarquização das diferentes organizações, levando-se em conta, porexemplo, o direito de vocalização de preferências27 (condição 4a) e ademocratização da informação28 (condição 5a).

Pretende-se, aqui, investigar se há mecanismos institucionais queobstaculizam e, no limite, inviabilizam a operação dos princípios de igual-dade política e de soberania da maioria no interior das Casas Legislativasestudadas, considerando seus impactos no que se refere à natureza dasrelações entre as duas Câmaras e aos padrões de interação entre situaçãoe oposição, por um lado, e entre líderes e legisladores, por outro. Casosejam constatados mecanismos desse tipo, interessa, ademais, analisarcomo operam e quais são suas conseqüências no que diz respeito àsrelações entre os poderes Legislativo e Executivo.

Como foi verificado na seção anterior, a conformação dos sistemaseleitoral e partidário afeta a distribuição dos poderes de agenda e de vetoentre os atores no interior do Poder Legislativo, a qual é função, entreoutras coisas, do número e do perfil dos partidos e dos legisladores quecompõem as Casas Legislativas (método de formação do órgão decisório).

Interessa, agora, analisar as variáveis internas à organização legislativa,as quais têm importantes impactos sobre o processo decisório, seus resul-tados e sobre a capacidade dos legisladores controlarem os atos e asomissões do Poder Executivo. Tais variáveis são, fundamentalmente, onúmero de câmaras, o grau de simetria entre elas e as regras que distribu-em direitos parlamentares entre os legisladores e que lhes asseguramrecursos procedimentais, informacionais e materiais para o exercício darepresentação política.

27 “Cada membro que considera um conjunto de alternativas, pelo menos uma das quais acha

preferível a qualquer das alternativas apresentadas, pode inserir sua(s) alternativa(s) preferida(s)entre as apresentadas à votação” (DAHL, 1989:84).28

“Todos os indivíduos possuem informações idênticas sobre as alternativas” (DAHL, 1989:84).

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As regras que informam a natureza, as atribuições e a composição doPoder Legislativo são do tipo constitucional e regimental. Essas regrasincluem desde princípios constitucionais, relacionados ao número de câ-maras e às suas atribuições até mecanismos regimentais que permitem amanipulação das circunstâncias sob as quais as decisões são tomadas(ARNOLD, 1990).

As primeiras variáveis internas a serem examinadas referem-se aotipo de camaralismo vigente – unicameralismo ou bicameralismo, simétri-co ou assimétrico. Sua análise levará em conta, ademais do número decâmaras e do número de membros em cada uma, os princípios quepresidem sua formação e as suas atribuições.

O Brasil apresenta um Congresso bicameral, composto de um SenadoFederal, com 81 membros, e de uma Câmara dos Deputados, com 513membros. Para a questão que interessa analisar aqui, argumenta-se que acapacidade do Legislativo controlar os atos e as omissões do go-verno está associada positivamente à presença de umbicameralismo simétrico, formato mais compatível com a dispersão dospoderes de agenda e de veto entre os diferentes atores parlamentares.

No Brasil, país de organização federativa, verifica-se a presença dediferentes princípios de constituição das duas câmaras: a câmara baixa,composta pelos deputados que representam os cidadãos, eleitos segundoo método de representação proporcional, e a câmara alta composta porsenadores representantes dos estados, eleitos pelo sistema majoritário29.A existência de diferentes princípios para a constituição das duas câma-ras amplia as chances de expressão de diferentes clivagens e de forma-ção de diferentes maiorias a elas associadas no interior do Poder Legislativo.

No que se refere à distribuição de poderes e de atribuições entre asduas câmaras vale observar se há atribuições exclusivas a cada uma delase como se dá a distribuição dos poderes de iniciativa legislativa e deindicação, designação, fiscalização convocação, acusação e julgamentodas autoridades públicas entre ambas.

Segundo a Constituição brasileira, cabe privativamente à Câmara dosDeputados autorizar, por dois terços de seus membros, instauração de

29 Artigo 45 da Constituição brasileira: “A Câmara dos Deputados compõe-se de representantes do

povo, eleitos pelo sistema proporcional, em cada Estado, em cada Território e no Distrito Federal”. Art.46 – “O Senado Federal compõe-se de representantes dos Estados e do Distrito Federal, eleitossegundo o princípio majoritário”.

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processo contra as autoridades públicas e ao Senado julgá-las nos crimesde responsabilidade. À Câmara compete, ainda, cobrar contas do presi-dente quando não apresentadas dentro do prazo estipulado e ao Senadoaprovar, após argüição pública e por voto secreto, a escolha de autorida-des (Arts. 51 e 52) Ambas as Câmaras têm a atribuição constitucional deeleger membros do Conselho da República.

As atribuições de revisão são distribuídas de forma equilibrada entre asduas Câmaras, como rezam os Artigos 65 e 66 da Constituição brasileira30.

Embora pareça, à primeira vista, que tal equilíbrio favorece o exercí-cio da accountability horizontal, vale assinalar que a vigência de diferen-tes métodos de formação e, por conseqüência, de diferentes composi-ções das duas Câmaras recomenda cautela na análise desta questão: ora, aCâmara dos Deputados, considerados o número de seus membros e suaheterogeneidade, advinda da eleição via sistema de representação pro-porcional, é muito mais expressiva da diversidade e da complexidadepresentes na sociedade brasileira do que o Senado Federal, constituídocomo fórum de processamento das clivagens regionais.

Portanto, ao conceder ao Senado poderes revisores equivalentes àquelesconcedidos à Câmara dos Deputados, a Constituição brasileira permite aoprimeiro o poder de vetar decisões tomadas o âmbito da segunda, imis-cuindo-se desta forma, em issues que não lhe são pertinentes. Desde esteponto de vista, seria mais aconselhável que houvesse uma delimitaçãomais estrita das atribuições de revisão entre as duas Câmaras, especifi-cando-se os assuntos nos quais seria prudente limitar estes poderes, to-mando-se por parâmetro as características e as atribuições conferidaspelo texto constitucional a cada uma delas.

Outro aspecto a ser investigado refere-se à distribuição de direitos e deatribuições parlamentares entre legisladores individuais, grupos de legislado-res e o plenário (KREBBIEL, 1991), com especial atenção para a distribuiçãodos direitos legislativos entre as bancadas governista e oposicionista.

O ponto a ser enfatizado, aqui, refere-se à observância dos direitos deminoria (minority rigths) e aos instrumentos e recursos que esses direitos

30 “Artigo 65. - O projeto de lei aprovado por uma Casa será revisto pela outra, em um só turno de

discussão e votação, e enviado à sanção ou promulgação, se a Casa revisora o aprovar, ou arquiva-do, se o rejeitar.Paragrafo Único - Sendo o projeto emendado, voltará à Casa iniciadora.Artigo 66. - A Casa na qual tenha sido concluída a votação enviará o projeto de lei ao Presidente daRepública, que, aquiescendo, o sancionará”.

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disponibilizam para as forças de oposição. Binder (1997) afirma queesses direitos estão incorporados aos procedimentos que permitem quealguma minoria exerça poder de veto sobre ações legislativas das maiori-as. Segundo Feddersen (1999:91) “minorities have rights when a billrequires more than a simple majority to pass. The ultimate protection ofminority rights is unanimity31” .

Vale, no entanto, ressaltar que a garantia dos direitos das minorias nãodeve ferir o princípio poliárquico da soberania da maioria. Trata-se, aqui,de procurar o delicado equilíbrio entre igualdade política e regra majoritá-ria, de forma a evitar, concomitantemente, aqueles arranjos que redundemem tirania de qualquer tipo, seja da maioria, seja de qualquer minoria.

A análise da distribuição dos direitos, recursos e atribuições parlamenta-res entre os atores se restringirá à Câmara dos Deputados, órgão decisóriono qual esta distribuição afeta fortemente a capacidade dos legisladores deintervir no processo e na natureza das decisões ali tomadas.

O Regimento Interno da Câmara prevê um conjunto sofisticado de ins-trumentos que estruturam seu funcionamento, a saber: Mesa Diretora; Ban-cadas Partidárias; Blocos Parlamentares; Colégio de Líderes e Comissões.

A Mesa Diretora, órgão máximo da Casa, é formada a partir de elei-ção32. Na sua composição “será assegurada, tanto quanto possível, a re-presentação proporcional dos partidos ou Blocos Parlamentares que par-ticipem da Câmara33 ...” e será garantida a participação de um membro daminoria, mesmo quando pela proporcionalidade não lhe caiba lugar.

As Bancadas Partidárias constituem agrupamentos de deputados porrepresentações partidárias. Cada Bancada cuja representação for igual oumaior do que um centésimo da composição da Câmara poderá escolherum líder. Cada líder poderá indicar um vice-líder para cada quatro depu-tados de sua representação. As representações de dois ou mais partidos,por deliberação das respectivas bancadas (Art. 12), poderão constituir

31 “minorias têm direitos quanto uma lei exige mais do que maioria simples para ser

aprovada. A maior proteção dos direitos das minorias é a unanimidade”. (FEDDERSEN,1999:91)32

Art. 7o. : dispõe que a Mesa Diretora será formada através de eleição, com a presença da maioria

absoluta do deputados, por escrutínio secreto, sendo exigida a maioria absoluta dos votos. Caso estacondição não seja observada, no primeiro escrutínio, será realizado o segundo escrutínio, com aparticipação dos dois candidatos mais votados para cada cargo.33

Artigo 8, &1o: “Salvo composição diversa resultante de acordo entre as bancadas, a distribuição dos

cargos da Mesa far-se-á por escolha das Lideranças, da maior para a de menor representação,conforme o número de cargos que corresponda a cada uma delas”.

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Blocos Parlamentares e terão existência circunscrita à legislatura em vi-gor (& 5o)34.

O Regimento reza ainda, no seu Art. 13, que “constitui a Maioria oPartido ou Bloco Parlamentar integrado pela maioria absoluta dos mem-bros da Casa, considerando-se Minoria a representação imediatamente infe-rior que, em relação ao Governo, expresse posição diversa da Maioria35”.

O Colégio de Líderes, composto pelos líderes da Maioria, da Minoria,dos Partidos, dos Blocos Parlamentares e do Governo (art. 20), constitui oórgão deliberativo central na Câmara dos Deputados. A todos os seusmembros é assegurado o direito de voz, mas os líderes de partidos queparticipem de Bloco Parlamentar e o Líder do Governo não têm direitode voto. Este fórum decisório funciona como um comitê, na acepção deSartori (1994), sendo suas decisões tomadas, sempre que possível, atra-vés de processo deliberativo, expressando o consenso construído entreseus integrantes (Art. 20). Nas ocasiões em que não houver consenso,será adotada a regra da maioria absoluta, “ponderados os votos dos Líderesem função da expressão numérica de cada bancada”. Verifica-se, aí, umavez mais, o cuidado com a observância do critério de proporcionalidadedas representações partidárias.

O mesmo princípio de constituição da Mesa – representação proporci-onal dos Partidos e dos Blocos Parlamentares e inclusão de um membroda Minoria – aplica-se às Comissões36 (Art. 23). O sistema de comissõesconstitui uma das mais relevantes variáveis sob exame. Interessa, aqui,verificar se esse sistema está organizado de forma a dispersar ou a con-centrar os poderes de agenda e de veto entre os atores. Importante

36 As Comissões da Câmara, previstas no Art. 22 do RI, são permanentes ou temporárias:

Art. 22: “I -Permanentes, as de caráter técnico-legislativo ou especializado integrantes da estruturainstitucional da Casa, co-partícipes e agentes do processo legisferante, que têm por finalidade apre-ciar os assuntos ou proposições submetidos ao seu exame e sobre eles deliberar, assim como exercero acompanhamento dos planos e programas governamentais e a fiscalização orçamentária daUnião, no âmbito dos respectivos campos temáticos e áreas de atuação;II - Temporárias, as criadas para apreciar determinado assunto, que se extinguem ao término da legislatura,ou antes dele, quando alcançado o fim a que se destinam ou expirado seu prazo de duração”.Estas últimas, por sua vez, dividem-se em: Especiais; de Inquérito e externas(Art. 33).

34 Art. 12, & 3

o.: “Não será admitida a formação de Bloco Parlamentar composto de menos de três

centésimos dos membros da Câmara”.&4

o.: “Se o desligamento de uma bancada implicar a perda do quorum fixado no parágrafo anterior,

extingue-se o Bloco Parlamentar”.35

Parágrafo Único. “Se nenhuma representação atingir a maioria absoluta, assume as funçõesregimentais e constitucionais da Maioria o Partido ou Bloco Parlamentar que tiver o maior númerode representantes”.

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indicador do padrão de distribuição desses poderes relaciona-se aos cri-térios de constituição das comissões e seus impactos sobre os graus depluralismo das mesmas. Quanto mais heterogêneas forem as comissões,mais coerentes elas estarão com a observação do postulado majoritário(KREBBIEL, 1991).

Além disto, a heterogeneidade das comissões é um fator que afetapositivamente a capacidade de influência política37 das oposições:

“Conceptually, the role of the committee systems in providing anopportunity for opposition influence has two elements. First, the committeesystems themselves must be influential in shaping policy, not rubber stampsfor decisions made by the governing parties in the executive. Second, thecommittees must provide an opportunity for the opposition, not merelyindividuals in the ruling party(s), to affect policy38” (POWELL, 2000:33).

A análise dos textos constitucional e regimental permite afirmar que ascomissões possuem importantes atribuições e são fóruns decisórios rele-vantes no interior da Câmara dos Deputados. No entanto, vale sublinhardois pontos: primeiro, que algumas Comissões são mais importantes eprestigiadas do que outras, especialmente aquelas nas quais as matérias,urgentes ou não, têm tramitação obrigatória, como a de Constituição eJustiça; segundo, que a concentração de recursos e de atribuições naslideranças redunda, muitas vezes, no esvaziamento das comissões, fatoque ocorre, por exemplo, quando se aprova pedido de urgência para atramitação de determinadas proposições.

De acordo com o modelo informacional de organização legislativa(KREBBIEL, 1991), as comissões deverão organizar-se como ‘microcosmos’do Plenário. No caso da Câmara dos Deputados, a observação do princí-

37 “ Strom constructed a variable he called “ influence of the opposition” based on features of the

parliamentary committees: the number of standing committees, fixed areas of committee specialization,correspondence between committee jurisdiction and ministerial jurisdiction, restrictions on the numberof committee assignments per legislator, and the proportional distribution of committee chairs tolegislative parties (Strom 1990, 71)” (Powell 2000, 32). (“Strom construiu uma variável que eledenominou ‘influência da oposição’ baseada nas características das comissões parlamentares: onúmero de comissões permanentes, os temas de especialização das comissões, a correspondênciaentre as áreas de jurisdição das comissões e dos ministérios, a restrição do número de comissões àsquais pode pertencer cada legislador e a distribuição proporcional dos lugares nas comissões entreos partidos”)38

“Teoricamente, o papel que o sistema de comissões desempenha no fornecimento de uma oportu-nidade para a influência da oposição (sobre a formação das políticas públicas) possui dois elemen-tos. Primeiro, o próprio sistema de comissões tem que ser relevante na formação das políticas e nãoapenas ‘carimbativo’ das decisões tomadas pelos partidos da bancada governista. Segundo, as comis-sões devem providenciar uma oportunidade para a oposição, e não apenas para os membros dospartidos da situação, para participar efetivamente das decisões sobre as políticas” (POWELL, 2000:33).

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pio de proporcionalidade na sua composição, bem como a garantia departicipação de membros da minoria, falam a favor de graus expressivosde heterogeneidade das Comissões e de capacidade de influência dasoposições que é coerente com sua participação numérica na Casa. Poroutro lado, alguns atores no interior das comissões, especialmente seuspresidentes, desfrutam de posições e têm acesso a recursos privilegia-dos, o que desequilibra a equação a seu favor.

Vale, aqui, menção especial às Comissões Parlamentares de Inquéri-to39 (CPIs) dado o papel central que desempenham como mecanismos decontrole à disposição dos legisladores. Como assinala Figueiredo(2001:695),a Constituição de 1988 reforçou os poderes de investigação das CPIs,relativamente àqueles vigentes no regime de 46, observando-se, no en-tanto, um enorme hiato entre a aprovação de uma CPI pela Câmara dosDeputados e a sua conclusão. No que se refere à questão que interessaanalisar neste capítulo - a da distribuição dos poderes de agenda e deveto entre os diferentes atores - a autora chama a atenção para o fato deque “...uma CPI proposta por um parlamentar da oposição pode ser apro-vada, mas impedida de formar-se caso os partidos governistas não nomei-em membros para ela: constitucionalmente, a composição de uma CPIdeve ser proporcional ao número de cadeiras que cada partido tem naCasa e, pelo regimento interno, os líderes dos partidos são responsáveispela nomeação de seus membros” (FIGUEIREDO, 2001: 696). À título deilustração, vale registrar que, durante o governo Fernando Henrique Car-doso, no intervalo compreendido entre janeiro de 1995 e dezembro de1999, foram propostas 32 CPIs e apenas 5 foram concluídas (FIGUEIREDO,2001: 700). Figueiredo demonstra, ainda, que durante todo o período de1988 a 1999 “nenhuma CPI proposta por membros do partido do governoconcluiu suas investigações” (2001: 704) e assinala que este resultado seexplica, em parte, devido à estratégia governista de proposição e instala-ção de CPIs para evitar o funcionamento de outras do interesse da(s)oposição(ões).

O exame desta gama diferenciada de órgãos decisórios, e das atribui-

39 Segundo o Art. 35, “A Câmara dos Deputados, a requerimento de um terço de seus membros,

instituirá Comissão Parlamentar de Inquérito para apuração de fato determinado e por prazo certo,a qual terá poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos em leie neste regimento”.Art. 35, & 4

o: “Não será criada Comissão Parlamentar de Inquérito enquanto estiverem funcionando

pelo menos cinco na Câmara, salvo mediante projeto de resolução com o mesmo quorum de apre-sentação previsto no caput deste artigo”.

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ções conferidas aos seus dirigentes, nos remete ao conceito de “líderesde coalizão” (ARNOLD, 1990). Estes constituem uma elite, que é com-posta: pelos membros da Mesa, especialmente, seu presidente; peloslíderes das bancadas, dos blocos parlamentares, da Maioria, da Minoria edo Governo que, juntos, constituem o Colégio de Líderes; e pelos presi-dentes de Comissões.

Esta elite controla importantes recursos políticos e desfruta de atribui-ções e de direitos parlamentares que a distinguem largamente da maioriados legisladores. Vale mencionar, à título de ilustração, que o presidenteda Câmara, de acordo com o artigo 17, controla importantes recursos devocalização de preferências e de informação. Compete a ele, ouvido oColégio de Líderes, organizar a agenda da Casa, com previsão das maté-rias que serão distribuídas aos legisladores, para serem objeto de apreci-ação no mês subseqüente. Cabe a ele, também, designar a Ordem do Diadas sessões, em consonância com a agenda mensal; desempatar as vota-ções ostensivas; deferir retirada de proposição da Ordem do Dia; deter-minar arquivamento ou desarquivamento de matérias, nos termos regi-mentais; proceder à distribuição de matérias às Comissões Permanentesou Especiais.

É-lhe permitido, por exemplo, “em qualquer momento, da sua cadei-ra, fazer ao Plenário comunicação de interesse da Câmara ou do País” (&3o. do art. 17). Reza, ainda, o mesmo artigo, que a ele é facultado “convo-car e reunir, periodicamente, sob sua presidência, os líderes e os presiden-tes das Comissões Permanentes para avaliação dos trabalhos da Casa, exa-me das matérias em trâmite e adoção das providências julgadas necessári-as ao bom andamento das atividades legislativas e administrativas”. O pre-sidente da Câmara pode, ainda, convocar períodos de sessões extraordi-nárias para discussão e votação de matérias constantes do ato de convo-cação40.

O Colégio de Líderes deve ser ouvido em questões da maior relevân-cia como, por exemplo, a organização da agenda da Casa pelo presiden-te, a fixação do número de Deputados, por Partido ou Bloco Parlamentar,que comporão cada Comissão Permanente; a elaboração do projeto deRegulamento Interno das Comissões; a nomeação, pelo presidente da

40 Art. 66, & 4: “o presidente da Câmara, de ofício, por proposta do Colégio de Líderes ou mediante

deliberação do Plenário sobre requerimento de pelo menos um décimo dos deputados, poderáconvocar períodos de sessões extraordinárias exclusivamente destinadas à discussão e votação dasmatérias constantes do ato de convocação”.

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CD, de Comissão Especial; a distribuição de proposições aos Deputados.Ele pode, também, prorrogar o tempo reservado à Ordem do Dia41 econvocar sessão secreta42.

Os líderes partidários têm importantes atribuições e prerrogativas re-gimentais, entre as quais se destacam amplos poderes de agenda e direi-tos de voz (art. 10o.), tais como: fazer uso da palavra no plenário e nascomissões; encaminhar votações, para orientação de sua bancada; solici-tar verificação de quorum para proceder a votação nominal; indicar mem-bros da bancada para participar das comissões; convocar períodos desessões extraordinárias. Nas sessões ordinárias, a qualquer momento, “oslíderes dos partidos, pessoalmente e sem delegação, poderão fazer co-municações destinadas ao debate em torno de assuntos de relevâncianacional” (Art. 66).

Os presidentes de Comissões também desfrutam de amplos poderesde agenda, como pode ser constatado pela leitura do artigo 41 do RI: aeles compete, entre outras coisas, convocar e presidir todas as reuniõesda Comissão; fazer a pauta das reuniões; designar relatores e distribuir-lhes a matéria para parecer; conceder a palavra; submeter a voto asquestões sujeitas à deliberação; solicitar assessoria ou consultoria técnico-legislativa ou especializada, de sua iniciativa ou a pedido do relator. É-lhes facultado, ainda, de acordo com o artigo 42, reunir-se com o Colégiode Líderes “sempre que isto lhes pareça conveniente ou por convo-cação do Presidente da Câmara, sob a presidência deste, para o exame eassentamento de providências relativas à eficiência do trabalho legislativo(grifos nossos)” .

Ademais dos amplos poderes de agenda e veto, os líderes de coalizãotêm à sua disposição diferentes estratégias: estratégias de persuasão43,

43 “Strategies of persuasion create, activate, or change the policy preferences of legislators, attentive publics,

and inattentive publics. The intent is to shape policy preferences, both inside Congress and among relevantpublics, to fit the original proposal” (ARNOLD, 1990: 92). (Estratégias de persuasão criam, ativamou mudam as preferências políticas dos legisladores e dos públicos atentos e desatentos. Oobjetivo é o de moldar as preferências políticas, tanto dentro do Congresso como entre o ospúblicos relevantes, de forma a encaixar na proposta original)”.

41 Art. 84. O tempo reservado à Ordem do Dia poderá ser prorrogado pelo Presidente, de ofício, pelo

Colégio de Líderes, ou pelo Plenário, a requerimento verbal de qualquer Deputado, por prazo nãoexcedente a trinta ou, na hipótese do art. 72, a sessenta minutos.42

Art. 92. A sessão secreta será convocada, com a indicação precisa de seu objetivo:I - automaticamente, a requerimento escrito de Comissão, para tratar de matéria de sua competência,ou do Colégio de Líderes ou de, pelo menos, um terço da totalidade dos membros da Câmara, devendoo documento permanecer em sigilo até ulterior deliberação do Plenário;

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estratégias procedimentais44 e estratégias de modificação (ARNOLD, 1990).Para fins da análise aqui proposta, serão consideradas apenas as estraté-gias procedimentais e as de modificação.

As primeiras são usadas “to manipulate the circumstances under whichlegislators are forced to take public positions. (...) Coalition leaders mayadopt procedural strategies that either strengthen or break the traceabilitychain for policy effects” (Arnold, 1990:99/100). As segundas envolvem“altering the various components of a policy, ranging from the policyinstrument to the incidence of costs and benefits. The aim is to mold apolicy so that it conforms better with legislators’ and citizens’ preferencesand potential preferences”45 (ARNOLD, 1990:92).

Distintas estratégias procedimentais e de modificação podem ser utili-zadas mobilizando as regras que definem os diferentes regimes detramitação das matérias: ordinária, urgente 46 ou de prioridade. Segundo oart. 52. do RI, as Comissões dispõem do prazo de cinco sessões, paraexaminar matéria em regime de urgência; dez sessões, quando se tratade matéria em regime de prioridade e de quarenta sessões, para matériaem regime de tramitação ordinária. Vale, ainda, assinalar que matérias em

45 “para manipular as circunstâncias sob as quais os legisladores são forçados a assumir

posições publicamente (...) Os líderes de coalizão podem adotar estratégias procedimentaisque reforcem ou que enfraqueçam a possibilidade de reconstituir a cadeia (causal) queproduz os efeitos políticos” (Arnold, 1990:99/100). - “a alteração de vários componentes deuma política, abrangendo desde os instrumentos de políticas até a incidências dos custos ebenefícios. O objetivo é formular uma lei que combine melhor com as preferências doslegisladores e com as preferências efetivas e potenciais dos cidadãos” (ARNOLD, 1990:92).46

Art. 153. A urgência poderá ser requerida quando: I - tratar-se de matéria que envolva a defesa dasociedade democrática e das liberdades fundamentais; II - tratar-se de providência para atender acalamidade pública;III - visar à prorrogação de prazos legais a se findarem, ou à adoção ou alteração de lei para aplicar-seem época certa e próxima; IV - pretender-se a apreciação da matéria na mesma sessão.Art. 154. O requerimento de urgência somente poderá ser submetido à deliberação do Plenário se forapresentado por: I - dois terços dos membros da Mesa, quando se tratar de matéria da competênciadesta; II - um terço dos membros da Câmara, ou Líderes que representem esse número; III - dois terçosdos membros de Comissão competente para opinar sobre o mérito da proposição.

44 “Procedural strategies attempt to influence legislator’s political calculations by adroit use of legislative

rules and procedures. The aim is to structure the legislative situation in a way that decreases the abilityof an instigator to rouse inattentive publics or of a challenger to make a campaign issue out of a specificroll-call vote”. (ARNOLD, 1990:92). (“Estratégias procedimentais procuram influenciar oscálculos políticos dos legisladores pelo uso habilidoso das regras e dos procedimentoslegislativos. O objetivo é o de estruturar a organização legislativa de forma tal quediminua a habilidade de um instigador provocar os públicos desatentos ou de um compe-tidor transformar um voto nominal específico em um tema de campanha”)

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regime de urgência sofrem restrições relacionadas ao uso do direito devoz no Plenário47.

A análise destes procedimentos permite concluir que aqueles atoresque não estejam interessados em uma discussão ampla e pormenorizadada proposição tentarão fazê-la tramitar em algum tipo de regime especi-al. No que se refere ao tema da accountability horizontal, é prudentelembrar que o presidente da República pode pedir urgência para asmatérias de sua autoria, sempre que assim lhe aprouver, e os líderespartidários poderão pedi-la quando representarem um terço dos mem-bros da Casa. A prioridade pode ser solicitada pela Mesa, pela Comissãopertinente ou pelo Autor da proposição se apoiado por um décimo dosmembros da Casa ou por líderes que representem este número.

Os líderes de coalizão dispõem, ainda, do recurso ao pedido de desta-que (arts. 161 e 162) de dispositivo ou de emenda, para aprovação,rejeição, votação em separado ou constituição de proposição autônoma.Podem, também, solicitar tramitação conjunta a duas ou mais proposiçõesque tratem de matéria correlata (Art. 142), estratégia mobilizada, muitasvezes, para embutir em um projeto de lei medidas e decisões que impli-quem em altos custos políticos para os parlamentares. Ademais, podemsolicitar preferência para o exame de determinadas matérias, sendo quea proposição para a qual for solicitada preferência pelo Colégio de Líde-res será apreciada logo após aquelas em regime especial (Art. 160, & 4).

Outra estratégia bastante utilizada pelos líderes de coalizão relaciona-se à limitação no direito de emendar determinadas matérias. As emendaspodem ser supressivas, aglutinativas, substitutivas, modificativas ou aditivas.Podem ser apresentadas em comissão, quando relativas a matéria sujeitaa apreciação conclusiva desta, ou no Plenário, observadas as seguintescondições:

“Art. 120. As emendas de Plenário serão apresentadas:I - durante a discussão em apreciação preliminar, turno único ou pri-

meiro turno, por qualquer Deputado ou Comissão;II - durante a discussão em segundo turno:

47 Art. 157, & 3: “Na discussão e no encaminhamento de votação de proposição em regime de

urgência, só o Autor, o Relator e Deputados inscritos poderão usar da palavra, e por metade do prazoprevisto para matérias em tramitação normal, alternando-se, quanto possível, os oradores favoráveise contrários. Após falarem seis Deputados,encerrar-se-ão, a requerimento da maioria absoluta da composição da Câmara, ou de Líderes querepresentem esse número, a discussão e o encaminhamento da votação”.

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a) por Comissão, se aprovada pela maioria absoluta de seus membros;b) desde que subscritas por um décimo dos membros da Casa, ou

Líderes que representem esse número;III - à redação final, até o início da sua votação, observado o quorum

previsto nas alíneas a e b do inciso anterior”.Há restrições para a apresentação de emendas às proposições urgen-

tes, ou que se tornarem urgentes: estas só poderão receber emendas deComissão, ou subscritas por um quinto dos membros da Casa, ou, ainda,se subscritas por líderes que representem este número. Em qualquerdestes casos, as emendas deverão ser apresentadas em Plenário antes doinício da votação da matéria (Art. 120, §4º).

Arnold aponta dois diferentes métodos utilizados pelos lideres de coa-lizão para encobrir a responsabilidade individual dos legisladores no quese refere às decisões que implicam altos custos políticos: delegação deresponsabilidade48 e segredo. A delegação de responsabilidades podeser observada, na Câmara dos Deputados, quando decisões que implicamaltos custos políticos são tomadas através de expedientes que permitemaos legisladores ‘lavarem suas mãos’ perante seus eleitores como, porexemplo, delegação de poder de decreto ao presidente.

O segredo, por sua vez, pode ser obtido através de um conjunto deprocedimentos que impeçam a reconstituição da cadeia causal que vincu-la demandas, políticas e resultados(ARNOLD, 1990:102): por exemplo,decisões tomadas atrás de portas fechadas e votações secretas.

“ While coalition leaders work to weaken or break the traceability chain,opposition leaders do everything in their power to strengthen it49” (ARNOLD,1990: 104). E vice-versa, obviamente.

A leitura do Regimento Interno da Câmara dos Deputados permiteidentificar um conjunto expressivo de mecanismos que dificultam areconstituição da cadeia causal através da qual os legisladores individuaispodem ser responsabilizados por seus atos e omissões. O artigo 48, por

49 “Enquanto os líderes de coalizão trabalham para enfraquecer ou quebrar a cadeia

causal (que vincula demandas a políticas e estas aos resultados), os líderes de oposi-ção fazem tudo em seu poder para fortalecê-la” (ARNOLD, 1990:104).

48 “One method of masking legislators’ individual contributions is to delegate responsibility for

making unpleasant decisions to the president, bureaucrats, regulatory commissioners, judges, or stateand local officials” (ARNOLD, 1990: 101). (Um método de mascarar as contribuições indivi-duais dos legisladores é delegar para o presidente, burocratas, comissões regulado-ras, juízes, oficiais locais ou estaduais, as reponsabilidades pela tomada de decisõesdesagradáveis.)

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exemplo, estabelece as condições sob as quais as reuniões das Comis-sões podem ser reservadas ou secretas50. As últimas só podem ser assis-tidas pelos próprios Deputados e Senadores. Ministros de Estado, quandoconvocados, ou testemunhas chamadas a depor nelas permanecerão ape-nas o tempo necessário e há regras estritas relacionadas à publicidadedas discussões e das decisões tomadas.51

Já o art. 92 trata das sessões secretas do Plenário, as quais podem serconvocadas - através de requerimento escrito e com indicação clara desua finalidade - por Comissão da Casa relacionada ao tema; pelo Colégiode Líderes; por, no mínimo, um terço dos membros da Casa ou pordeliberação do Plenário, a partir de requerimento subscrito por Líder oupor um quinto dos membros da Câmara. Também neste caso são bastanterigorosas as determinações relacionadas à posterior publicação, quandofor o caso, dos debates e das deliberações tomadas na ocasião. Finalmen-te, o artigo 184, que reza sobre votação das proposições, estabelece quea mesma “poderá ser ostensiva, adotando-se o processo simbólico ou onominal, e secreta, por meio do sistema eletrônico ou de cédulas”.

Vale ressaltar que o voto secreto é, e deve ser, direito inalienável docidadão. No entanto, há controvérsias quanto à sua utilização e/ou dovoto simbólico pelos legisladores que, por atuarem como representantesdos cidadãos, deveriam fazê-lo da maneira mais transparente possível, deforma a possibilitar sua responsabilização pelas escolhas feitas por eles epor suas omissões. No entanto, o que se observa na Câmara dos Deputa-dos é que o voto nominal, que deveria ser a regra, se transforma emexceção. Parte expressiva das matérias é deliberada através de votaçãosimbólica, outra parte é reservada para a votação secreta, sendo o pro-cesso nominal obrigatório apenas, segundo o Artigo 186 do RI, naqueles

50 Art. 48. As reuniões das Comissões serão públicas, salvo deliberação em contrário.

§ 1º Serão reservadas, a juízo da Comissão, as reuniões em que haja matéria que deva ser debatida coma presença apenas dos funcionários em serviço na Comissão e técnicos ou autoridades que esta convidar.§ 2º Serão secretas as reuniões quando as Comissões tiverem de deliberar sobre:I - declaração de guerra, ou acordo sobre a paz;II - passagem de forças estrangeiras pelo território nacional, ou sua permanência nele;51

Artigo 48, § 5º Deliberar-se-á, preliminarmente, nas reuniões secretas, sobre a conveniência de ospareceres nelas assentados serem discutidos e votados em reunião pública ou secreta, e se porescrutínio secreto.§ 6º A ata da reunião secreta, acompanhada dos pareceres e emendas que foram discutidos e votados,bem como dos votos apresentados em separado, depois de fechados em invólucro lacrado, etiquetado,datado e rubricado pelo Presidente, pelo Secretário e demais membros presentes, será enviada aoArquivo da Câmara com indicação do prazo pelo qual ficará indisponível para consulta.

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casos em que for exigido quorum especial de votação; quando assimdeliberar o Plenário, a partir de requerimento de Deputado; ou quandofor solicitada verificação de votação, respeitado o que prescreve o § 4ºdo artigo anterior52.

Figueiredo e Limongi (1999:10, 30 e 31) assinalam o fato de que oprocedimento mais utilizado na CD é o voto simbólico. Dadas as restri-ções contidas no dispositivo acima mencionado (Art. 185, &4) “do pontode vista prático somente os líderes partidários são capazes de ‘forçar’ umavotação nominal quando esta não é prevista regimentalmente” (1999:30)e mesmo eles têm que observar limites na sua utilização, dado o intervalode prazo (uma hora) que deve transcorrer entre uma votação e outra. Naspalavras dos autores (1999:30,31):

“Logo, os líderes partidários decidem quando é oportuno forçar umavotação nominal e, como seria de se esperar, usam esse recurso demaneira estratégica, com olhos nos efeitos da votação nominal para seuspartidos. Muitas vezes, interessa aos líderes que certas matérias sejamdecididas sob o manto protetor do prazo de uma hora que veda novavotação nominal. Por exemplo, há matérias em que interesses específi-cos estão em jogo e em que, para alguns parlamentares, seria muitocustoso seguir a linha partidária. Se essa decisão se der por voto simbóli-co, o deputado não precisará manifestar-se publicamente sobre a maté-ria. Da mesma forma, os partidos podem decidir qual matéria trazer avoto nominal com olhos nos custos políticos e eleitorais que causam aospartidos adversários”.

A extensa citação acima é bastante eloqüente e fala por si mesmasobre os devastadores efeitos que estratégias desse tipo podem ter sobrea capacidade das oposições, por conseqüência minorias, utilizarem avotação nominal como estratégia de responsabilização das maiorias go-vernistas pelas decisões tomadas e, além disto, sobre a capacidade doseleitores de cobrarem contas de seus representantes.

Os líderes de coalizão, segundo Arnold (1990), não vivem em ummundo dicotômico. Eles não estão restritos a escolher entre pares dealternativas, como ocorre com a maioria dos legisladores. São eles quefazem a agenda, que definem as alternativas.

52 Artigo 185, § 4º: Havendo-se procedido a uma verificação de votação, antes do decurso de uma hora

da proclamação do resultado, só será permitida nova verificação por deliberação do Plenário, arequerimento de um décimo dos Deputados, ou de Líderes que representem esse número.

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A expressiva concentração de poderes de agenda e de veto nas mãosdos líderes de coalizão observada na CD brasileira viola o princípiopoliárquico da igualdade política. Em alguns casos, viola, também, oprincípio da soberania da maioria, já que minorias numéricas – as lideran-ças – decidem sobre importantes questões, na suposição, controversa, deque suas decisões são sempre representativas das preferências de seusliderados. Na grande maioria dos casos, viola as condições 4a. e 5a. dapoliarquia, referidas, como já mencionado, ao direito de vocalização depreferências e à democratização da informação.

A assimetria de recursos e prerrogativas entre os membros da Casaacarreta que nem sempre a cada cabeça corresponda um voto e, ade-mais, que muitas vezes o voto de cada um não tenha o mesmo valor queo voto de qualquer outro.

Alguns analistas têm enfatizado os aspectos positivos decorrentes docontrole que dispõem os líderes, por força regimental, sobre importantesrecursos políticos. Figueiredo & Limongi (1999:31) afirmam que amobilização desses instrumentos permite aos líderes preservar e garantira unidade do partido e evitar o comportamento individualista e oportunis-ta dos legisladores. Estes autores assinalam, ainda, que o “argumentosupõe que os líderes representem os interesses de suas bancadas” (1999:31) e que “...os parlamentares têm muito a ganhar quando são capazesde coordenar sua ação, isto é, quando resolvem o problema de ação cole-tiva que enfrentam. Reunir-se em torno de partidos é uma solução paraesse problema” (1999: 35).

Não há o que discordar do argumento se, e sempre que, os deputadosconcordarem com as decisões tomadas por seus líderes. Mas, quais são asestratégias disponíveis para o parlamentar individual quando ele conside-rar que o seu líder está exacerbando de suas funções ou não está repre-sentando-o de maneira adequada? Supondo-se, obviamente, que ele pos-sa fazê-lo por motivações outras que não as estritamente oportunistas eindividualistas.

Vale enfatizar, aqui, que não se trata de recolocar a questão, já supera-da, se o partido é o não um bom sinalizador das preferências dos legisla-dores, mas, sim, de retomar dois problemas ainda mais velhos e, nãoobstante, absolutamente atuais: o perigo das tiranias, que ronda toda equalquer concentração de poderes nas mesmas mãos, e o da oligarquizaçãoda representação.

Supondo que os deputados identifiquem-se com seus partidos e, por-

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tanto, não queiram utilizar a estratégia de mudar de agremiação a cadavez que discordarem de suas lideranças (MELO, 2000), é razoável argu-mentar que, mesmo uma maioria de deputados insatisfeitos enfrentaráobstáculos de monta para substituir seu líder ou se contrapor a ele, exata-mente pelas dificuldades envolvidas no problema de coordenação men-cionado por Figueiredo e Limongi.

Em termos aritméticos, a equação é simples: em uma bancada de Nparlamentares, é preciso coordenar a ação de metade mais um de seusmembros para fazer frente a um único voto do líder que, por suposto, atodos representa. Dito de outra forma e repetindo o já dito: o voto decada qual não tem o mesmo valor que o voto de qualquer outro. Talproblema se agiganta em um contexto, como o da Câmara dos Deputa-dos, de assimetria informacional a favor das lideranças, e onde, a cadalegislatura, cerca de 50% dos deputados estão no exercício de seu pri-meiro mandato e, portanto, não estão suficientemente familiarizados comas regras do jogo.

Além disto, mesmo quando for possível superar os problemas de co-ordenação, pode-se aventar a hipótese de que as alternativas preferidaspelos deputados individuais simplesmente não estejam disponíveis naagenda, que é feita e controlada pelos líderes de coalizão, confrontandoos parlamentares individuais com um “universo de escolhas trágicas”.

CONCLUSÃO

O presente texto propôs-se a examinar as interações entre cidadãos,líderes de coalizão e legisladores, tomando a accountability como variá-vel dependente. Na primeira seção foi explicitado o modelo analíticoque informou o desenvolvimento do argumento. As interações entre ci-dadãos e legisladores foram objeto da segunda seção e aquelas relativasaos legisladores e líderes de coalizão, no interior do Poder Legislativo,foram estudadas na terceira seção do capítulo.

Interessa agora, para concluir o argumento, analisar as interações en-tre cidadãos, líderes de coalizão e legisladores, explorando os efeitos deum tipo de accountability sobre outro e os efeitos combinados de ambossobre o grau de poliarquização da ordem política brasileira atual.

O primeiro ponto que se quer assinalar aqui é o de que se desenvol-veu, nas instituições políticas brasileiras, uma parafernália institucional

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complexa para constituir a representação de forma democrática, emque pesem as distorções existentes, passíveis de correção. Mais ainda, aConstituição de 1988 aprovou uma série de medidas cuja intenção foi ade ampliar os poderes do Legislativo incluindo-se, neste rol, os referen-tes à fiscalização do Executivo. Como conseqüência, os legisladores to-mados individualmente têm à sua disposição canais e recursosinstitucionalizados por meio dos quais iniciar atividades de controle. Noentanto, ao tentar levar à frente suas iniciativas, estes mesmos legislado-res deparam-se com um tremendo obstáculo já que, paralelamente àparafernália acima referida, desenvolveu-se uma outra destinada a desti-tuir a representação de suas atribuições e direitos parlamentares ou, ditode forma mais suave, orientada para o cerceamento do seu exercício: asregras constitucionais e regimentais que organizam os trabalhos legislativos.Portanto, e seguindo a trilha aberta por Santos (1998a), pode-se afirmar ocaráter poliárquico da constituição da representação política no Brasil e asua concomitante limitação pelo caráter oligárquico do seu exercício noplano parlamentar.

Em artigo recente, Figueiredo (2001) reconhece que “um processodecisório centralizado – baseado em prerrogativas institucionais do presi-dente e dos líderes partidários – reduz o papel do Congresso como agentede cobrança horizontal de responsabilidades” (p. 715). As evidências apre-sentadas pela autora mostram: a) que os governos pós-88 conseguemevitar a instalação ou a conclusão de CPIs que os afetem diretamente e,b) “que apesar do aparato legal, informacional e organizacional disponí-vel, o Congresso não realiza uma fiscalização direta e rotineira” (p. 708/709), seja aquela que se deve à ação do TCU, seja a que se refere aopapel fiscalizador das Comissões Permanentes.

Figueiredo, no entanto, não considera que as evidências apresentadassejam suficientes para que se repense o atual arranjo institucional brasi-leiro, no que diz respeito ao trade off entre estabilidade e accountability.O argumento é de que, mesmo nas condições em que tem se realizado, aação fiscalizadora do Legislativo mantém sua utilidade, visto que tanto oslegisladores têm se mostrado capazes de reagir a eventuais “alarmes deincêndio” acionados pela sociedade, como a atuação do Congresso, noseu conjunto, tem possibilitado melhores condições para o disparo de taisalarmes.

Amorin e Tafner (2002) são ainda menos sensíveis à necessidade dese rediscutir os mecanismos de controle do Executivo pelo Legislativo no

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contexto institucional brasileiro. Tendo como base a análise das MPs edi-tadas entre 1988 e 2000, os autores argumentam pela existência de umasituação de equilíbrio na relação entre os dois poderes na medida em queo Congresso “sabedor de que não possui meios suficientes para avaliar emtempo exíguo os detalhes técnicos de complexos temas de políticas públi-cas (...) prefere esperar para escutar as reações dos grupos sociais afetadospor uma MP para, a partir daí, formar sua posição a respeito desta” (p.22). Mais ainda, o acionamento dos mecanismos de “alarme de incêndio”estaria a cargo da coalizão governista. Como dizem os autores, “o presi-dencialismo desenvolveu uma forma de interação entre o Executivo e oLegislativo que foge à visão clássica de que este deve controlar aquele pormeio de instrumentos legais e formais (...). O controle do Executivo peloLegislativo tem se dado, principalmente, pela compatibilidade dos incenti-vos políticos entre os membros das maiorias parlamentares e o chefe doExecutivo, compatibilidade que se obtém com a formação de gabinetes decoalizão” (p. 29).

Não é possível aceitar o argumento de Amorim e Tafner. Em primeirolugar, deve-se questionar a existência de uma situação de equilíbrio entreos poderes. A evidência decisiva quanto a isto está na aprovação daEmenda Constitucional n0 32, de setembro de 2001, que, entre outrascoisas, modifica o processo legislativo para as MPs, diminuindo o prazode sua apreciação pelo Congresso. Em segundo lugar, é notável perceberque os autores ignoram a importância da oposição como agente de con-trole à disposição do eleitorado; afinal, são os legisladores oposicionistasos que detêm maiores incentivos para se empenhar em atividades defiscalização, como fartamente demonstram os dados apresentados porFigueiredo (2001). Finalmente, parece um tanto ingênuo supor quedeputados governistas irão gastar seus escassos recursos no controle dasatividades de seu governo, o que parece ainda mais evidente em umcaso, como o brasileiro, no qual o Executivo apresenta elevada capacida-de para controlar a coalizão que o apóia (Figueiredo e Limongi, 1999).

Mas a questão é que o mecanismo de alarme de incêndio é seletivo.Nem todos podem acioná-lo.

Alternativamente ao que concluem os autores mencionados, o argumen-to aqui defendido, é o de que é preciso buscar um novo equilíbrio entre osdesideratos da estabilidade governamental e da accountability. Não é de-sejável que o controle do Executivo no Brasil termine sustentado quaseque exclusivamente pelo acionamento do chamado “alarme de incêndio”.

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Não obstante a importância de tais mecanismos, não é demais lembrar queseu acionamento depende da posse de recursos em escala suficiente paravencer os inúmeros obstáculos à ação coletiva e que tais recursos não seencontram suficientemente distribuídos na sociedade brasileira.

O segundo ponto analítico que se quer ressaltar nestas conclusões estáancorado na crítica de Przeworski (1996) à concepção ingênua das teoriaseconômicas da democracia, segundo as quais os legisladores são agentesperfeitos dos cidadãos. Interessa, aqui, recuperar seu argumento para criti-car o que tem de ingênuo na concepção expressa pela literatura de que, noParlamento, os líderes são “agentes perfeitos” dos legisladores individuais.

Três das quatro premissas equivocadas das teorias econômicas da de-mocracia serão mobilizadas neste texto, com vistas a assinalar que, nascondições em que exercem suas funções e prerrogativas, na CD, oslíderes não podem ser considerados agentes perfeitos de suas bancadas.

O primeiro equívoco apontado por Przeworski está baseado no mode-lo do eleitor mediano, segundo o qual os governantes, para se reelege-rem, deverão realizar as preferências da maioria numérica da população.De forma semelhante, aqueles que consideram os líderes na CD comoagentes perfeitos de suas bancadas afirmam que, se insatisfeitos, os legis-ladores poderiam destitui-los e substitui-los, possibilidade que, emboraformalmente contemplada pelo RI, é de muito difícil operacionalização,dados os problemas de coordenação envolvidos e a desigual distribuiçãode recursos e de direitos parlamentares na CD.

A segunda premissa equivocada das teorias econômicas da democra-cia considera o processo político como mera agregação de preferênciasdadas. Ora, preferências são formadas e transformadas no e pelo proces-so político - são endógenas, para utilizar a terminologia do novoinstitucionalismo. Ademais, como já ensinou Weber, o Parlamento é umcorpo coletivo exatamente porque se espera que, através da deliberaçãoe do debate entre seus membros, sejam identificadas e constituídas aspreferências mais gerais da sociedade. Portanto, o debate e a deliberaçãosão as condições essenciais para alçar o coletivo de representantes indi-viduais a portadores de interesses universais. O argumento de que oslíderes são agentes perfeitos de suas bancadas mostra-se frágil quando seconstata que não há mecanismos institucionalizados através dos quais oslíderes possam auscultar os membros de suas bancadas e promover aagregação, formação e transformação de preferências entre eles. Ade-mais, a maioria dos partidos não tem a prática de promover reuniões

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periódicas de seus membros. Portanto, fica claro porque, a cada novavotação no Plenário, o líder deve instruir sua bancada sobre o que elamesma prefere!

Finalmente, Przeworski (1996) refere-se à questão da distribuição dosrecursos de informação entre os atores, considerando equivocada a pre-missa da informação perfeita. O mesmo ponto desenvolvido pelo autorsobre a assimetria informacional que atravessa a sociedade pode sermobilizado para a análise da CD. O controle de recursos de informaçãopelos líderes de coalizão e sua utilização estratégica são fatores quelimitam sobremaneira a intervenção individual dos legisladores e que,muitas vezes, obscurecem sua percepção quanto ao leque das alternati-vas efetivamente disponíveis.

O terceiro ponto analítico importante que se quer abordar nestas con-clusões refere-se às interações entre os instrumentos de accountabilityvertical e horizontal. Shugart (2000) apontou os impactos da accountabilityvertical sobre a horizontal e a associação entre a primeira e os sistemaseleitoral e partidário. Przeworski (1996), Anastasia (2000) e Figueiredo(2001) assinalaram os efeitos da accountability horizontal sobre a vertical.

A questão relevante que interessa, aqui, ressaltar, é a de que areconstituição da cadeia causal que liga demandas a políticas e estas aosresultados é uma variável dependente dos efeitos combinados da opera-ção dos mecanismos de accountability horizontal e vertical. As possibili-dades de reconstituição desta cadeia causal estão positivamente relacio-nadas:

• à diminuição da assimetria informacional entre cidadãos e represen-tantes e entre legisladores individuais e líderes;

• à existência de mecanismos institucionais de interlocução entre ospoderes Legislativo e Executivo e os grupos organizados da sociedade;

• à admissão dos cidadãos como participantes do processo legislativo,através de mecanismos tais como a iniciativa popular, a comissão delegislação participativa e as audiências de comissão. Acredita-se que, aose combinar estes efeitos, produz-se um impacto sobre o grau depoliarquização da ordem.

Vale ressaltar que nos últimos anos do governo Fernando HenriqueCardoso houve avanços no que se refere a alguns destes aspectos, comomencionado na segunda seção deste capítulo. Não obstante, trata-se deiniciativas muito recentes e pontuais que não foram ainda capazes dealterar a distribuição dos poderes de agenda e de veto entre os atores.

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Portanto, pode-se afirmar que o trade off entre os atributos desejáveis daordem política continua sendo resolvido a favor da estabilidade e emdetrimento da accountability e da densidade democrática da representação.

Por um lado, o presidencialismo de coalizão no Brasil tem funcionadona medida em que concentra poderes nas mãos do Executivo e doslíderes partidários, significando que um presidente que consiga montaruma coalizão majoritária e coesa terá o Legislativo a seu favor. A oposi-ção terá reduzidas chances no jogo, o que diminui as possibilidades daaccountability horizontal.

Por outro lado, o processo eleitoral brasileiro abre muitas brechas paraque a representação, tal como constituída na CD, se afaste do que pensamos eleitores (baixo grau de informação do eleitor sobre os candidatos,distorção nos estados, transferência do voto na lista em um contexto devotação personalizada, coligações para eleições proporcionais e migraçãopartidária), o que diminui as possibilidades da accountability vertical.

Na democracia, os legisladores devem ser responsivos ao eleitorado.Fosse o Congresso responsivo aos eleitores haveria maior incentivo aocontrole do Executivo. No entanto, existe um gap entre os cenários elei-toral e parlamentar no Brasil, de forma que, mesmo que a representaçãoseja constituída de maneira razoavelmente responsiva, ela o será de for-ma personalizada, ao passo que a CD funciona de forma a bloquear aação individualizada dos parlamentares. Dito de outra forma, o repre-sentante eleito no contexto de uma relação na qual os compromissosassumidos com os eleitores são de ordem pessoal, encontrará na CD, umcontexto institucional que inibe a perseguição de tais compromissos, oumelhor, lhe diz que tais compromissos só poderão ser honrados, emalguma medida, sob o crivo dos líderes partidários. Pode-se dizer que, decerta forma, o cenário parlamentar “corrige” um problema do cenárioeleitoral, ao introduzir com mais clareza os partidos. Mas cria um proble-ma para o representante, ao tornar difícil um mandato coerente com oscompromissos assumidos.

A agenda pontual para a reforma política, que será apresentada aseguir, visa contribuir para a superação destes problemas e para a cons-trução de um equilíbrio virtuoso entre os atributos da accountability, dadensidade democrática da representação e da estabilidade.

Cabe, inicialmente, reafirmar que se advoga aqui pela manutenção dosistema de representação proporcional e do multipartidarismo, propon-do, no entanto, seu aperfeiçoamento através:

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• da substituição da lista aberta por lista fechada;• do fim das coligações para eleições proporcionais e• da proibição das migrações partidárias.Outro ponto importante refere-se à necessidade de promover uma

distribuição mais equilibrada dos poderes de agenda e de veto entre osdiferentes atores: cidadãos, líderes de coalizão e legisladores, através:

• do fortalecimento dos mecanismos de accountability vertical queconstituem contextos decisórios contínuos e

• da diminuição dos poderes legislativos do presidente, especialmen-te aqueles referidos ao poder de legislar por decreto;

No que se refere à organização legislativa, a idéia é a de transitar para um tipomisto, combinando mecanismos típicos do modelo partidário, atualmente em vigor,com o reforço de instrumentos próprios do modelo informacional, tais comomecanismos de interlocução com a sociedade civil e de democratização dainformação, o que se daria através de alterações no RI da Câmara deforma a:

• propiciar uma melhor distribuição dos recursos, direitos e atribui-ções parlamentares entre legisladores individuais e líderes de coalizão;

• possibilitar a adoção de mecanismos institucionalizados de socializa-ção dos novos membros e

• contribuir para o aperfeiçoamento da relação de representação en-tre líderes e suas bancadas.

Finalmente, vale sublinhar que a Câmara dos Deputados será tantomais poliárquica quanto mais os líderes de coalizão substituam as estraté-gias procedimentais e de modificação por estratégias de persuasão53

(ARNOLD, 1990). Esta seria uma maneira de resolver o déficit de repre-sentação existente no interior da Câmara dos Deputados e de aproximarum pouco mais os líderes da condição utópica de agentes perfeitos desuas bancadas.

53 “Persuasion involves creating, activating, or changing the policy preferences of legislators, attentive

publics, and (if necessary) inattentive publics” (ARNOLD, 1990: 92). (Persuasão envolve criar,ativar ou mudar as preferências de políticas dos legisladores, dos públicos atentos e,se necessário, dos públicos desatentos).

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CONSTITUIÇÃO

OU POLÍTICAS PÚBLICAS?UMA AVALIAÇÃO DOS ANOS FHC

Cláudio Gonçalves Couto1

Rogério Bastos Arantes2

INTRODUÇÃO

O problema constitucional brasileiro e a agenda de reformas (não necessaria-mente) constitucionais.Um dos aspectos mais evidentes e controversos da democracia brasileiracontemporânea diz respeito ao fato de que a nossa Constituição, promul-gada em outubro de 1988, não adquiriu até agora as condições de estabi-lidade e permanência que normalmente caracterizam os textos constituci-onais.

Observando-se a dinâmica política e a produção legislativa pós-1988,é possível afirmar, sem exagero, que o país permaneceu numa espéciede agenda constituinte, como se, paradoxalmente, o processo dereconstitucionalização não houvesse se encerrado em outubro daqueleano. Por razões que este texto pretende elucidar, o fato é que os gover-nos posteriores a 1988 se viram obrigados a desenvolver boa parte desua produção normativa ainda no plano constitucional, isto é, por meiode modificações, acréscimos e/ou supressões de dispositivos localizadosna própria Constituição. Tomar decisões e implementar políticas gover-namentais são atividades que, no Brasil pós-1988, não lograram adquirirapenas uma rotina infra-constitucional. Pelo contrário, boa parte dessasatividades teve lugar no nível superior da hierarquia legislativa, ou seja,na própria Constituição.

A hipótese mais usual sobre a permanência de uma agenda constituin-

2 Doutor em Ciência Política pela USP, professor do Departamento de Política da PUC-SP e pesquisa-

dor do IDESP.

1 Doutor em Ciência Política pela USP e professor do Departamento de Política da PUC-SP

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te no Brasil pós-1988 (comprovada pela intensa atividade de reforma dotexto constitucional nesse período) afirma que a Constituição teria cadu-cado logo após seu nascimento, isto é, o texto teria sofrido de um enve-lhecimento súbito, como se tivesse mais a ver com o passado do país doque com o presente. Esse descompasso seria especialmente perceptíveldiante da agenda de reformas estruturais do Estado e do sistema econô-mico que, gradualmente, foi-se impondo ao país como necessária para adesejada estabilização da economia e a retomada do desenvolvimentoem novas bases. Nesse sentido, o fato de a atividade governamental tercontinuado a ocorrer no plano constitucional seria conseqüência de umaincompatibilidade substancial entre o conteúdo da Carta de 1988 e osdesafios que a nova realidade econômica e política, nacional e internaci-onal, passou a impor ao país.

Desde a promulgação do texto constitucional, vozes dissonantes se le-vantaram contra a Carta, acusando-a de constituir, no plano econômico, umobstáculo à modernização do país e, no plano político, um desastre doponto de vista da governabilidade. Nesse sentido, a Constituição escritasob a égide da “remoção do entulho autoritário” do regime militar pós-64tornou-se ela mesma - e muito rapidamente - uma espécie de “entulhonacional-desenvolvimentista”, que precisaria ser removido para permitir aimplementação das chamadas reformas orientadas para o mercado.

Na perspectiva dessa hipótese substantiva, desde José Sarney (1985-1990) e, sobretudo, com Fernando Collor (1990-1992), questões funda-mentais do Estado e do modelo econômico no Brasil começaram a serlevantadas e o novo regime constitucional logo foi atacado por seu ana-cronismo, mal tinha ele nascido. Com Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), essa hipótese sobre uma incompatibilidade substancial entre aCarta e os novos desafios estruturais evidenciou-se na formação de umaampla coalizão de governo que, diferentemente do pouco sucesso deseus antecessores, conseguiu implementar um conjunto importante dealterações na Constituição.

Este texto pretende se distanciar dessa hipótese - que investe naincompatibilidade substantiva entre a Carta de 1988 e a agenda de refor-mas dos anos 90 - e deseja chamar a atenção para uma outra dimensão doproblema constitucional brasileiro: Para além de eventuais anacronismoslegados pela Constituição, nosso objetivo é demonstrar que ela nos legouum peculiar modus operandi de produção normativa, com conseqüênciassignificativas para o funcionamento da democracia brasileira. Nesse sen-

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tido, nossa hipótese é mais formal do que substantiva, pois se refere aomodo pelo qual o processo decisório e governamental vem-se dando noBrasil. Importa-nos pouco aqui o conteúdo concreto das agendas de go-vernos específicos. Se nossa hipótese se mostrar válida, a conclusãonecessária será que, independentemente do conteúdo de políticas gover-namentais específicas, levadas à esquerda ou à direita, por progressistasou conservadores (ou qualquer outra denominação ideológica que sequeira dar), a atividade de governo no Brasil seguirá ocorrendo em gran-de medida no plano constitucional, e estaremos fadados a uma dinâmicaconstituinte permanente, incapaz de pôr um ponto final no processoiniciado em 1988.

Nosso argumento principal é que a Carta brasileira de 1988 caracteri-za-se por ter consagrado formalmente como norma constitucional diver-sos dispositivos que apresentam, na verdade, características de políticasgovernamentais com fortes implicações para o modus operandi do siste-ma político brasileiro. Em primeiro lugar, a constitucionalização de políti-cas públicas fez com que os sucessivos governantes se vissem diante danecessidade de modificar o ordenamento constitucional para poderimplementar parte de suas plataformas de governo. Em segundo lugar,construir amplas maiorias legislativas passou a ser condição básica parasuperar o engessamento prévio a que foi submetida a agenda governa-mental pelo constituinte, algo especialmente difícil no contexto institucionalde um estado federativo e de um regime presidencialista multipartidáriocomo o brasileiro. Por fim, mas não menos importante, esse tipo especialde Constituição causou impacto significativo sobre o funcionamento dosistema de justiça, na medida em que o Judiciário e especialmente seuórgão de cúpula - o Supremo Tribunal Federal (STF) - passaram a sermais acionados para controlar a constitucionalidade das leis e demais atosnormativos, nem sempre relativos a princípios constitucionais fundamen-tais, mas freqüentemente relativos a políticas públicas.

Quais seriam as razões da grande presença de políticas públicas nointerior do texto constitucional? Acreditamos que uma das principais foi oformato que presidiu os trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte,favorecendo enormemente a introdução no texto de dispositivos de cu-nho particularista. Um bom resumo desse processo é dado por Souza &Lamounier (1990: 82):

“De acordo com as diretrizes legais estabelecidas pela chamada ‘EmendaSarney’, os deputados e senadores a serem eleitos em novembro de 1986

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reunir-se-iam unicameralmente, decidindo por maioria simples, como umaverdadeira Assembléia Constituinte. Quando esse novo Congresso iniciouos seus trabalhos, no princípio de 1987, houve tensos debates entre osconstituintes a respeito dos poderes de que se achavam investidos esobre a organização a ser adotada nos trabalhos. Predominou, no final,uma organização fortemente descentralizada: subcomissões e comissõestemáticas fariam os estudos iniciais, ouvindo a sociedade e votando rela-tórios preliminares; encerrada essa fase, uma Comissão de Sistematizaçãode 97 membros (cuja presidência coube também ao Senador AfonsoArinos), encarregar-se-ia de preparar o projeto final a ser votado peloplenário. O projeto constitucional foi finalmente levado a uma primeiravotação em plenário no princípio de 1988. Uma vez que não se formounenhum bloco monolítico no Congresso, o voto majoritário, na maiorparte dos artigos, teve que ser negociado e renegociado vezes sem con-ta. A segunda e última rodada ocorreu em setembro de 1988, sendo anova Constituição promulgada a 5 de outubro.”3

Este processo descentralizado, o quorum de maioria simples e a au-sência de um projeto-base do qual o trabalho dos constituintes pudessepartir4 constituíram-se em fatores favoráveis à introdução no texto dosmais variados dispositivos, bastando para isso que estes contassem com oapoio substancial de algum grupo de pressão ou bancada parlamentar enão ferissem os interesses da maioria congressual. Nesse sentido, pode-se dizer que as negociações travadas em torno da elaboração da novaCarta ocorreram sob a égide de um amplo log rolling: o apoio de umgrupo qualquer a medidas patrocinadas por outro poderia ter como retri-buição o apoio a uma medida própria posteriormente.

Coelho e Oliveira chamaram a atenção para a dinâmica extremamentedescentralizada que marcou os trabalhos constituintes, destacando a faltade paralelo de processos semelhantes na história constitucional brasileirae mesmo no direito comparado. Segundo esses autores, “a construção dofuturo Projeto deu-se de fora para dentro, de partes para o todo. Vinte equatro subcomissões temáticas recolheram sugestões, realizaram audiên-cias públicas e formularam estudos parciais. Estes foram reunidos em

3 “A feitura da nova constituição: um reexame da cultura política brasileira”. In LAMOUNIER, Bolívar

(org.). De Geisel a Collor: o balanço da transição. São Paulo: Idesp, Sumaré, 1990.4 O texto elaborado pela Comissão Especial de Estudos Constitucionais (Comissão Afonso Arinos) foi

descartado pelo presidente José Sarney.

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blocos de três a três, através de oito comissões temáticas. Só então aComissão de Sistematização organizou o primeiro anteprojeto, em 15 dejulho de 1987. A partir daí, tem-se uma tramitação formal, com emendas,pareceres e votações. Muitos impasses, negociações, confrontos. Ao todoforam apresentadas durante as várias fases de comissões, Sistematização,primeiro e segundo turnos de plenário 65.809 emendas. Existiram noveprojetos, desde o de 15 de julho de 1987 até o último, a redação final, emsetembro de 1988.”5

Embora uma análise mais detalhada dos resultados desse método defuncionamento da Constituinte seja recomendável antes de conclusõesgeneralizantes, parece-nos defensável a hipótese de que esse formatofoi o grande responsável pela introdução, no texto constitucional, de umagrande quantidade de dispositivos mais próximos de serem definidoscomo políticas públicas do que como princípios constitucionais gerais efundamentais. Nesse sentido, para além dos conteúdos específicos con-sagrados pela Carta, esse tipo de normatização constitucional engessouformalmente a agenda governamental futura e era mesmo de se esperar,como de fato ocorreu, que boa parte desses dispositivos se tornassefuturamente alvo de tentativas de reforma por parte de novas maioriasparlamentares ou de novas gestões à frente do Executivo. Assim, o baixograu de universalismo atingido pela Constituição e a grande quantidadede dispositivos particularistas e controversos presentes no texto são fato-res que ajudam a entender o porquê de ter a própria Constituinte progra-mado uma Revisão Constitucional geral para cinco anos após a promulga-ção (sob a influência da Constituição portuguesa, que possuía a previsãode revisões a cada cinco anos) por meio do artigo 3º do Ato das Disposi-ções Constitucionais Transitórias:

“Art. 3.º A revisão constitucional será realizada após cinco anos, conta-dos da promulgação da Constituição, pelo voto da maioria absoluta dosmembros do Congresso Nacional, em sessão unicameral.”

Por mais que alguns intérpretes da Constituição tenham tentado vincu-lar o artigo 3o do ADCT aos resultados do plebiscito sobre sistema degoverno realizado em 1993, prevaleceu a opinião de que a revisãoautoprogramada da Carta deveria ser irrestrita, podendo versar sobre todoo texto constitucional.

5 COELHO, João G. Lucas e OLIVEIRA, Antonio C. Nantes. A nova Constituição. Avaliação do texto e

perfil dos constituintes. Rio de Janeiro: INESC: Revan, 1989. pg. 20 (grifo nosso)

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A Constituição, que nasceu sob o signo da reforma em moto-contínuo,passou, entretanto, pela revisão constitucional de 1993/94 sem que mui-tas e prometidas alterações fossem feitas no texto original.6 SegundoMelo, em um dos estudos mais completos sobre as principais reformasconstitucionais no Brasil, o malogro da revisão de 1993/94 se deu emvirtude de uma conjunção de fatores, a despeito do potencial e dasexpectativas de mudança que antecederam o processo: comparativamen-te aos aspectos que favoreciam a mudança constitucional, “outras caracte-rísticas, no entanto, tais como o monopólio, pelo Legislativo, da iniciativapropositiva, a inexistência de policy advocates para as emendas e asimultaneidade de votações reduziam o potencial de mudança por partedo governo. A análise sugere que esse potencial, que o arranjo institucionalpropiciava, foi anulado pelo impacto devastador de fatores contextuais,tais como os constrangimentos eleitorais, a polarização da agenda públicae a estrutura de incentivos com que se deparavam o Executivo e oLegislativo na conjuntura da CPI do orçamento. O calendário eleitoral,como variável isolada, se constituiu no fator decisivo.” (Melo, 2002, 76)

A análise de Melo é em si reveladora de um aspecto fundamentaldisso que estamos chamando de o problema constitucional brasileiro:afinal de contas, por que o sucesso ou o fracasso de um processo derevisão constitucional deveria estar condicionado pelos interesses do “go-verno”, pela presença ou ausência de “policy advocates”, pelo efeitonegativo (devastador) de fatores “contextuais”, pela “conjuntura” políticae pelo “calendário eleitoral”, se não pelo fato de que essa Constituição éela mesma uma Carta de dispositivos tipicamente governamentais? Isto é,os fatores identificados por Melo para explicar o fracasso da revisãoconstitucional de 1993/94 são a própria confirmação do nosso argumentode que a Constituição criou um modus operandi de produção normativaque vincula os interesses conjunturais, de governo e dos policy advocatesao marco constitucional. É por essa razão que nossa agenda política se-guiu sendo uma agenda constituinte no pós-1988.

O outro exemplo que confirma o argumento sobre a peculiaridade do

6 Segundo MELO (2002): “Instalada em 13 de outubro de 93 e encerrada em 31 de maio de 94, a

revisão, ao longo de 80 sessões, votou apenas 19 mudanças, das quais 12 foram rejeitadas já noprimeiro turno das votações. Das 17 mil emendas relatadas - ou melhor, simplesmente ignoradas -pelo relator, deputado Nelson Jobim, apenas seis foram aprovadas. Destas últimas, a única emendarelevante é a que reduziu o mandato do Presidente da República, de cinco para quatro anos.” MELO,Marcus A.. Reformas Constitucionais no Brasil. Instituições políticas e processo decisório. Rio deJaneiro: Revan; Brasília: Ministério da Cultura, 2002, pg. 60.

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nosso ordenamento constitucional é justamente o processo de reformasconstitucionais conduzido durante os dois mandatos de Fernando HenriqueCardoso na presidência da República, objeto deste capítulo e que serámelhor discutida adiante. O maior sucesso do governo FHC naimplementação de mudanças constitucionais se explica pela conjunçãocomplexa, porém favorável de fatores como os mencionados acima porMELO, em grau suficiente para que a agenda governamental de umpresidente em particular pudesse vencer os obstáculos daconstitucionalização a que ela foi previamente submetida pelo modelode 1988.7

Ao longo de 14 anos de vigência da Constituição de 1988, 44 emen-das constitucionais foram aprovadas, sendo 6 durante o já mencionadoprocesso de Revisão - as Emendas Constitucionais de Revisão - e outras38 como Emendas Constitucionais comuns. Destas últimas, 34 foram apro-vadas somente durante o governo Fernando Henrique Cardoso (entre osanos de 1995 e 2002) tendo sido, na sua maior parte, propostas deiniciativa do Poder Executivo e recaindo majoritariamente sobre matériasque compunham uma agenda tipicamente governamental e não necessa-riamente constitucional, no sentido mais rigoroso que essa expressãopossa conter.

Para que possamos analisar com maior propriedade o processo deemendamento constitucional durante o período Fernando Henrique Car-doso, devemos antes estabelecer alguns parâmetros teóricos, referentes àcomparação embutida em nosso argumento entre as noções de políticaspúblicas e de normas constitucionais. Por meio desses parâmetros, nossaintenção nas seções seguintes é construir um modelo analítico que nospermita pôr à prova, com razoável dose de confiabilidade, a hipótese daconstitucionalização das políticas de governo no Brasil pós 1988.

7 Ao referir-se a este período, afirma Marcus MELO (2002, 73): “Ao contrário da revisão constitucio-

nal, o Congresso, na reforma em curso [1995-96], tipicamente reagiu às iniciativas que partiram doExecutivo. Os ministros se tornaram policy advocates das propostas. O Executivo deteve, assim, opoder de agenda durante a reforma.” Ou ainda, “embora o arranjo institucional que prevaleceutenha sido - em seu conjunto - menos favorável à mudança, os fatores contextuais favoreceramamplamente o processo de mudança. Na reforma constitucional [1995-96], apesar de a rotinautilizada exigir quorum qualificado, tramitação longa e processo descentralizado, o poder de agen-da do Executivo, num quadro de desideologização da agenda pública e ausência de constrangimen-tos eleitorais decisivos, favoreceu o governo.” (MELO, 2002, 76)

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POLITY, POLITICS, POLICY

Que papéis têm, nos regimes democráticos constitucionais, as regras dojogo político, a competição pelo poder e as decisões concretas de gover-no? Embora cada uma destas dimensões seja parte constitutiva do proces-so político na democracia, elas não têm o mesmo significado nem contri-buem da mesma forma para o funcionamento do regime democrático. Sequisermos, portanto, compreender corretamente a dinâmica política realdas democracias constitucionais, é indispensável verificar como regimesdesse tipo são capazes de distinguir e articular essas três dimensões doarcabouço institucional básico e da dinâmica política.

Em primeiro lugar, é importante considerar que regimes democráticosse distinguem em geral de regimes não democráticos pela presença dealguns elementos-chave, a saber:

1. o jogo político dá-se de acordo com regras preestabelecidas;2. as eleições são periódicas e ocorrem por meio de sufrágio universal;3. os mandatos dos eleitos são limitados tanto temporalmente como no

que diz respeito ao alcance de suas decisões e ações;4. a vontade majoritária da população prevalece nos limites das regras

preestabelecidas;5. a oposição é participante legítima do jogo e deve ter condições de

chegar ao poder pelo voto popular;6. os governantes são responsáveis perante o eleitorado;7. os direitos civis clássicos são garantidos.Estes elementos estabelecem as regras básicas do jogo político demo-

crático, conformando o que há de essencial na estrutura constitucional deuma poliarquia. Na medida em que delineiam os contornos básicos doregime são, em princípio, condições paramétricas estáveis para o exercí-cio do jogo político, não se confundido com este ou com seus resultados.Pelo fato de a estrutura constitucional conter tais parâmetros, é de seesperar que ela esteja baseada em um amplo consenso dentre os diver-sos atores políticos (os jogadores), ao menos no que concerne a seusaspectos centrais; por outro lado, dado que se trata de um acordo básico,um pacto entre os atores poliárquicos, é possível esperar que os disposi-tivos por ele estabelecidos tenham caráter não controverso, isto é, quenão encerrem motivo de dúvida ou de disputa.

Fixados os termos consensuais dessa estrutura constitucional básica, orelacionamento concreto entre os atores políticos, no âmbito de um regi-

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me democrático, dá-se em duas outras dimensões principais, mais visí-veis e perceptíveis no dia-a-dia das democracias do que a primeira:

1. a competição política;2. a decisão sobre questões governamentais.A competição política constitui o próprio jogo e nela estão implícitos os

enfrentamentos, as disputas, as negociações, os acordos e as coalizões. Trata-se da dimensão dinâmica da realidade política, enquanto as condiçõesparamétricas estáveis constituem a sua dimensão estática. Noutras palavras, ojogo político diz respeito à ação (e à interação), ao passo que as condiçõesparamétricas dizem respeito à estrutura, no âmbito da qual ocorrem as ações(e interações). É também no âmbito desta competição que se definem, noslimites das regras estabelecidas, os que ganham e os que perdem, os queocuparão os cargos públicos (eletivos ou não) e os que ficarão excluídos dopoder, os aliados e os adversários etc.

No entanto, além deste jogo que leva à definição de quem governa e decomo se governa, há também a importante dimensão da tomada de decisõessobre as ações de governo, que constitui outra esfera particular do regimedemocrático. Tais decisões são elas próprias um objetivo e uma decorrência- ao mesmo tempo - do jogo político. Afinal, por que motivos competem osjogadores nas poliarquias? Para ocupar postos de poder e influência, emprimeiro lugar, mas para definir políticas públicas, em segundo. Sobre estasúltimas, ao contrário das condições paramétricas estáveis, espera-se quesejam objeto de disputa, e não de um amplo consenso; também é de seesperar que, da mesma forma, tenham caráter controverso. Enquanto a pri-meira dimensão constitui a base para o jogo político, essa última representaseus resultados concretos, produzidos em meio ao conflito e à controvérsia.E da mesma maneira como este jogo se desenrola limitado pela estruturaconstitucional, o alcance dos resultados também está limitado por essa estru-tura - o que não significa dizer que seja predeterminado por ela.8

8 Embora numa perspectiva mais filosófica e menos institucional do que a adotada aqui, SARTORI

analisa a questão do consenso na democracia também em três níveis, do mais básico ao maissuperficial: 1. o nível básico que diz respeito ao consenso sobre valores supremos (tais como aliberdade e a igualdade) que habitam a cultura política; 2. o nível procedimental de consenso emtorno das regras do jogo político, indispensável ao funcionamento da democracia e 3; o nívelprogramático do processo político, marcado pela discussão sobre governos específicos e suas políticaspúblicas, âmbito no qual o consenso, se houver, está em permanente tensão e ajuste decorrentes dodebate acerca das ações políticas concretas. Em outras palavras, esse terceiro nível está mais para odissenso (que não ameaça o edifício institucional da democracia se o consenso procedimental estiverconsolidado) do que para o consenso. Ver SARTORI, Giovanni. A Teoria da Democracia Revisitada.Vol 1. São Paulo, Editora Ática, 1994. p. 127-132.

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À falta de termos apropriados e claramente diferenciados na línguaportuguesa para distinguir cada uma dessas três dimensões da realidadepolítica, podemos - recorrendo ao inglês - chamá-los, pela ordem em queforam apresentados acima, de polity, politics e policy. A polity correspondeà estrutura paramétrica estável da política e que, supõe-se, deve ser amais consensual possível entre os atores; a politics é o próprio jogopolítico; a policy diz respeito às políticas públicas, ao resultado do jogodisputado de acordo com as regras vigentes.9 O quadro 1, abaixo, resumea natureza e as características principais destas três dimensões do proces-so político democrático.

Deixaremos a partir de agora de tratar da dimensão dinâmica do pro-cesso democrático, a politics, para concentrarmos nossas atenções nahierarquia normativa que distingue o pacto constitucional (polity) de de-cisões governamentais (policy). A figura 1, a seguir, ilustra esta hierar-quia e diversos aspectos a ela relacionados.

9 Decidimos recorrer a esta terminologia pelo fato de que a utilização de termos em português perderia

em clareza e precisão. Não há termo em nossa língua que seja equivalente a polity. Mesmo aexpressão politéia, roubada ao grego, não é de uso corrente e sequer consta dos principais dicioná-rios. No que diz respeito a politics e policy, a palavra em português é a mesma para ambas: política.Neste caso, precisaríamos falar o tempo todo em “política” como atividade, e em “política pública”, ou“política governamental”, ou ainda em “políticas”. Por uma questão de economia de linguagem eclareza, optamos pelos termos em inglês.

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As normas constitucionais definem a estrutura do sistema político, es-tabelecendo as condições gerais de seu funcionamento. Por isto mesmo,caracterizam-se por uma maior generalidade, definindo os pressupostosbásicos do jogo político, assim como os limites deste e de seus resulta-dos. Num regime poliárquico, o ideal é que tal normatividade decorra deum pacto entre os atores políticos, sendo, portanto, estipulada da formamais consensual possível. A exigência de consenso quanto a essa dimen-são deve ser justamente alta para evitar que a Constituição, que temcaráter permanente, reflita uma vitória isolada de alguns setores da soci-edade sobre outros, consagrando seus interesses particulares e colocan-do-os fora do alcance do jogo político futuro. A pactuação consensual deprincípios constitucionais implica na normatização apenas dos interessescomuns aos diversos setores da sociedade, ou, no máximo, daquelesinteresses particulares inegociáveis, sem cuja garantia o convívio pacíficoe a competição política leal entre os diversos setores sociais e políticosseriam ameaçados. Na medida em que definem somente os parâmetros,princípios e limites do jogo político, as normas constitucionais devem tercaráter genérico, pois medidas específicas para sua efetivação serão to-madas conjunturalmente, tendo em vista as circunstâncias particularescom as quais terão que lidar os governos.

Condição básica do jogo político, resultantes de um pacto social, asnormas constitucionais encarnam a própria estrutura do Estado, da polity.São, portanto, normas de caráter soberano, em princípio não sujeitas àdiscussão cotidiana, decorrentes de um momento inaugural constituinte,no qual se iniciam o sistema e o jogo políticos; em virtude disto, é de seesperar que sejam protegidas contra modificações freqüentes. Tendo em

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vista tal finalidade, as regras decisórias que balizam o processo demodificação da normatividade constitucional costumam ser mais exi-gentes: quoruns ampliados de votação, prazos mais dilatados, poderde veto conferido a diversos atores institucionais e até mesmo avedação total a qualquer mudança pela legislatura ordinária median-te simples emendas constitucionais, requerendo-se nesse caso a rea-lização de uma nova Assembléia Constituinte. Noutras palavras, ograu de consenso necessário a decisões de tipo constitucional é mui-to mais amplo do que aquele aplicável às decisões da política gover-namental.

O governo age na conjuntura; sua ação baliza-se pela eficácia; suasdecisões podem - sem maiores problemas - constituir imposições daparte vitoriosa na disputa democrática (a maioria) sobre a parte derrota-da (a minoria), assim como podem ter caráter específico e sentidocontroverso. Tudo isto é possível, desde que as decisões de governonão contrariem a normatividade constitucional. É da natureza do própriojogo democrático o perde-ganha político; ora um grupo obtém o contro-le sobre os postos capazes de processar decisões governamentais, oraoutro. As oscilações decorrentes deste processo refletem-se diretamen-te sobre a formulação e implementação das políticas públicas (polici-es), que são objetos da avaliação do eleitorado o qual - com base numjuízo sobre o desempenho do governo - premia ou pune seus represen-tantes nas eleições subseqüentes, por meio das escolhas eleitorais. Se aalternância de grupos (partidos) no governo é uma condição do regimedemocrático, a variação das políticas públicas (policies) é uma conse-qüência prática inevitável (e desejável) desse princípio. A possibilida-de de que tal variação de policies ocorra é, portanto, pré-requisito deque a alternância de grupos (partidos) no governo tenha efeitos práti-cos. Daí as menores exigências das regras decisórias referentes à pro-dução de a policies.

CRITÉRIOS DE DISTINÇÃO DE MATÉRIAS CONSTITUCIONAIS E NÃO-CONSTITUCIONAIS

Se nossos argumentos sobre as dimensões de polity, politics e policyestão corretos, seria possível distinguir, no interior de uma constituiçãoescrita, os aspectos fundamentais do ordenamento político relativos àestrutura do Estado (polity) daqueles outros que, embora se refiram aoconteúdo material de ações estatais prováveis ou desejáveis (policies),

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foram abrigados pelo texto constitucional e assemelhados formalmenteaos princípios da polity.

Nossa intenção, nessa parte, é elaborar critérios objetivos que nospermitam classificar os dispositivos constitucionais como polity ou policy.A tarefa exige boa dose de argumentação, dado que o texto formal con-templa sem distinção esses dois princípios e estabelecer uma hierarquizaçãoentre eles é correr um risco considerável.

Como se sabe, o constitucionalismo moderno se desenvolveu a partirdo princípio liberal da limitação do poder político vis à vis a liberdadecivil e individual. De modo geral, os textos constitucionais modernospreocuparam-se em estabelecer os princípios fundamentais do Estado aomesmo tempo que procuraram definir os limites da ação estatal da ma-neira mais rigorosa possível. Poder e liberdade são considerados antitéticosna tradição liberal e essa oposição marcou decisivamente o surgimentodas primeiras constituições escritas do final do século XVIII.Contemporaneamente, o conjunto de dispositivos constitucionais relacio-nados à regulação desse antagonismo vem sendo difundido por meio dasnoções de Estado de Direito e Rule of Law. Posteriormente, com a ampli-ação do sufrágio, as Cartas também passaram a ter de lidar com a realida-de da incorporação de contingentes cada vez maiores da população aoprocesso político. Desta forma, às duas noções anteriores acrescentou-sea de Estado democrático.

Cremos que uma primeira classificação do texto constitucional, emtermos de polity e policy, deveria retornar às origens do constitucionalismomoderno e aos princípios liberais que marcaram a refundação do Estado,bem como aos princípios democráticos que vieram em seguida, especial-mente a ampliação dos direitos de participação. Neste sentido, os seguin-tes critérios poderiam ser adotados para identificar os dispositivos típicosda polity e, por exclusão, revelar aqueles que poderiam ser consideradosveículos de policy. Dentre os princípios de um regime liberal-democráti-co, formalizados constitucionalmente, apenas seriam típicos da polity:

(1) As definições de Estado e Nação, tais como o regime republicanoou monárquico, a organização federativa ou unitária, o exercício direto e/ou por via representativa do poder político pelo povo, a noção de nacio-nalidade e a estrutura do aparato estatal.

(2) Os direitos individuais fundamentais caracterizados pelas condi-ções básicas do exercício da cidadania individual. Consideramos comoprincípios da polity, nessa primeira classificação geral, as garantias da

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liberdade civil, que BERLIN10 reuniu sob a expressão “liberdade negati-va” (proteção do cidadão contra a ação arbitrária do Estado) e os direitospolíticos de participação democrática. Note-se que esse critério minimalistaafasta da definição constitucional da polity os direitos substantivos, indivi-duais e sociais, que normalmente vêm acompanhados de normas consti-tucionais programáticas.

(3) As regras do jogo, que organizam os processos de: participação ecompetição políticas, relacionamento entre e intrapoderes, interação en-tre níveis de governo e entre atores coletivos reconhecidos pela Consti-tuição como lidando com interesses de ordem pública. Tais regras estipu-lam: (a) a divisão de prerrogativas e funções entre os atores institucionais,(b) as regras operacionais do processo decisório governamental e (c) ostempos e prazos que balizam tais processos.

Os três critérios apontados acima partem da maior generalidade possí-vel da polity (critério 1) e vão ganhando especificidade até quase tocar,por duas vezes, o nível de policy. No critério 2, a menção à cidadaniapoderia nos levar a incluir direitos constitucionais substantivos que costu-mam requerer policies para tornar possível a sua efetivação. Todavia,nessa definição minimalista de polity, evitamos confundir direitos indivi-duais de proteção (contra o Estado e também contra outras pessoas) e departicipação na esfera política, com os direitos dependentes de promo-ção através de políticas governamentais. Segundo essa classificação inici-al, o primeiro tipo de direitos compõe a polity e, portanto, tem naturezaconstitucional. O segundo tipo aproxima-se da categoria de policy, apesarde sua inclusão na Carta conferir-lhe formalmente status constitucional.

A definição operacional de polity também se aproxima da de policyquando, no critério 3 (as regras do jogo), mencionamos as funções dosdiversos entes governamentais. Note-se, todavia, que o critério 3 destina-se a catalogar artigos constitucionais que organizam processos - dentreeles o da divisão de atribuições governamentais específicas entre osórgãos estatais - e não devem, portanto, ser confundidos com aquelesdispositivos que estabelecem funções promocionais do Estado e que se-rão classificados como policy. Nesse sentido, as funções de governo sóserão classificadas como parte componente da polity quando disseremrespeito a questões de ordem procedimental, relacionadas à distribuiçãohorizontal de poder entre os diversos entes estatais, ao funcionamento

10 BERLIN, I. Quatro Ensaios sobre a Liberdade. Brasília: Ed. UnB. 1981. p. 133-145.

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interno desses mesmos entes, à participação democrática dos cidadãos eà garantia de sua liberdade negativa. Nessa perspectiva, funções passí-veis de serem classificadas como polity provavelmente não serão aque-las que se referem a obrigações positivas do Estado, mas aquelas inspira-das nos princípios liberal do governo limitado e democrático do governoparticipativo. De outro lado, elas serão classificadas como policy justa-mente quando impuserem essas obrigações positivas, ao estilo “direitodo cidadão, dever do Estado”, numa perspectiva vertical de relação entreo governo e a sociedade, em torno de direitos substantivos cuja efetivaçãodepende da implementação de políticas públicas.

Entretanto, desde que Marshall11 definiu a composição tripartite dacidadania moderna em direitos civis, políticos e sociais e que os textosconstitucionais da segunda metade do século XX estabeleceram um am-plo leque de obrigações sociais do Estado, tornou-se bastante difícil de-fender um conceito de polity tão minimalista como o estabelecido acima.Em todos os países que recentemente adotaram o figurino liberal-demo-crático, gamas importantes de direitos sociais foram mencionadas noscapítulos constitucionais destinados aos direitos e garantias fundamentais.Nossas constituições atuais não se restringem a estabelecer os limitesnecessários à vigência da “liberdade negativa” e tratam de avançar nadireção da igualdade, impondo obrigações positivas ao Estado. É verdadeque a realização dessa igualdade é obstada pelo direito também constitu-cional da propriedade privada, não sendo demais lembrar que tal disposi-tivo é a pedra angular do Estado de Direito liberal. De qualquer forma,considera-se um grande salto de cidadania a constitucionalização de di-reitos de igualdade material entre os homens, mesmo que definiçõescomo “função social da propriedade” e “Estado Democrático de Direito”comportem boa dose de contradição, refletida em tensões no interior dotexto constitucional.

Por estas razões e apesar de os conceitos de cidadania e polity nãodesignarem a mesma coisa, decidimos trabalhar com dois tipos de classi-ficação: a minimalista, baseada nos três critérios acima, e uma maximalista,que além dos três anteriores, incorporaria um quarto critério:

(4) Os direitos materiais orientados para o bem-estar e a igualdade,assim como as funções estatais a eles associadas. Tais direitos e funçõesestatais não se confundem com os três critérios anteriores, dado que não

11 MARSHALL, T.H.. Cidadania, Classe Social e Status. Rio de Janeiro: Zahar. 1967. Cap.III.

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têm implicação direta sobre as definições de Estado e Nação, não consti-tuem direitos civis de proteção da liberdade nem direitos políticos departicipação democrática, nem configuram regras processuais da compe-tição pelo poder ou das relações entre e intra-órgãos e níveis governa-mentais. Todavia, não se trata aqui de fazer mera concessão a uma visãoda constituição como programa social de governo, mas de indicar quedeterminados direitos materiais podem sem considerados condições bási-cas para o funcionamento adequado do regime democrático. Tais direitostêm a importante função de promover a adesão ao pacto político demo-crático e suprimi-los poderia levar a democracia ao colapso. Enquanto osdireitos civis de liberdade e políticos de participação mencionados nocritério 2 podem ser considerados direitos operacionais indispensáveis àvida democrática, os direitos materiais aqui mencionados podem ser con-siderados direitos condicionantes do jogo político nesses regimes, namedida em que mantém a adesão social ao pacto político democrático.12

Por fim, independentemente do peso mais liberal-democrático ou maisigualitário das Constituições, seus textos devem estabelecer apenas osprincípios fundamentais do ordenamento político, não sendo convenien-te que desçam a detalhes que sejam objeto da politics infraconstitucionalcotidiana, momento da confecção de policies. Ao constitucionalizar nor-mas que poderiam ser temas do jogo político ordinário, acaba-se porextrapolar justamente o seu caráter constitucional, conformador do jogo,estipulando-se a priori e de forma rígida aquilo que seria passível demudanças freqüentes; limitam-se demasiadamente os resultados possí-veis do próprio jogo, pois se constrange a liberdade dos atores na politicscotidiana, tornando formalmente polity o que seria considerado policyem países dotados de constituições mais enxutas. Tendo isto em vista,decidimos incluir dois outros critérios, secundários, que deverão ser acio-nados na tarefa de classificar o texto constitucional.

(5) Critério de Generalidade. Deixarão de ser classificados como polityos dispositivos constitucionais não genéricos (muito específicos). Emborade difícil definição, o limiar entre a generalidade e a especificidadepoderia ser determinado da seguinte forma: são específicos os artigosderivados de princípios constitucionais superiores, mas cujo conteúdo

12 Estamos aqui tratando dos direitos sociais, mas também alguns outros direitos podem ser

condicionantes. É o caso do direito de propriedade, que não se enquadra na categoria de direitosocial de Marshall (e sim na de direito civil) mas se constitui num condicionante óbvio para ofuncionamento de quaisquer regimes políticos em sociedades capitalistas.

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pode sofrer alterações sem que isso ponha em risco os dispositivos maisamplos sob os quais esses artigos estão abrigados. Essa talvez seja umamaneira eficaz de distinguir polity de policy, uma vez que os textosconstitucionais contemporâneos tendem, metaforicamente, a assemelhar-se a árvores de cujo tronco vão saindo galhos que se ramificam até osúltimos detalhes. Nosso critério de generalidade poderia funcionar a exem-plo da poda, que corta pontas de galhos sem que isso ameace a vida daárvore: da mesma forma, existiriam artigos constitucionais cuja retirada dotexto constitucional não colocaria em risco o princípio fundamental aoqual ele está associado. Isto será particularmente útil na desclassificaçãoda condição de polity dos dispositivos relacionados ao estabelecimentode regras do jogo, mas que por serem demasiadamente detalhistas, espe-cificando processos que deveriam ser objeto de norma infraconstitucional,poderiam ser “podados” da constituição sem que a essencialidade doprincipio superior fosse afetada.

(6) Critério de Controvérsia. Também deixarão de ser classificadoscomo polity os dispositivos cujo conteúdo for tipicamente objeto da con-trovérsia político-partidária cotidiana, dizendo respeito às plataformasgovernamentais apresentadas pelos partidos em seu embate pelos postosde governo e não se enquadrando, portanto, na condição de normaparamétrica da politics que caracteriza dispositivos de tipo constitucional.Nesse sentido, via de regra não serão desclassificados como polity, pelocritério de controvérsia, os dispositivos constitucionais que estabelecemregras procedimentais.

As razões pelas quais adotamos estes dois últimos critérios são asseguintes. No que diz respeito à questão da generalidade, normas muitoespecíficas deixam de constituir parâmetros de funcionamento do siste-ma político, de desenrolar do jogo e de limitação do escopo das decisões,para se tornarem - por antecipação - as próprias decisões que caberiamaos atores políticos; por conta disto, perdem seu caráter constitucional.Ademais, é de se esperar que acabem por criar obstáculos à gestãopolítica conjuntural, na medida em que podem engessar a ação dosgovernantes e/ou dos atores sociais diante de situações imprevistas, mu-danças de condições sociais, novas tecnologias etc. Com isto, a Constitui-ção pode acabar se tornando não um instrumento que confira maior segu-rança à sociedade, mas que a impeça de dar cabo de seus problemas emtempo hábil e com a precisão necessária, devido ao congelamento cons-titucional de diversos assuntos.

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O mesmo raciocínio se aplica à questão da controvérsia - com umagravante. A constitucionalização de policies não apenas reduz demasia-damente a margem de manobra decisória dos atores, mas o faz em detri-mento da democracia. Isto porque acaba por restringir excessivamente -tendo em vista o leque ideológico e de interesses de uma sociedade numdado momento histórico - a possibilidade de que à alternância dos parti-dos e das lideranças no governo corresponda a uma modificação daspolíticas públicas implementadas. Com isto, a competição democráticanão é impedida no plano eleitoral, mas tem seus efeitos em certa medidaanulados ou restringidos no plano governamental. Pode-se supor que éjustamente para isto que servem as constituições - restringir a ação dosgovernos. Mas a suposição é incorreta se não leva em conta o fato de quetal restrição, caso seja demasiada, impede que a própria vontade popularse manifeste periodicamente por meio das ações dos representantes elei-tos. Mais do que isso, restringirá por demais o alcance das decisõespolíticas majoritárias, incentivando e permitindo que minorias desconten-tes recorram à Justiça para escapar de decisões legislativas ordinárias,pelo menos nos países que adotam algum tipo de controle constitucionaldas leis. Noutras palavras, a vontade momentânea de uma maioriaconjuntural impõe-se no longo prazo às futuras maiorias, cerceando-lhes.

Em suma, o critério da controvérsia aponta para o fato de que não élegítimo numa democracia constitucionalizar questões que sejam con-troversas. A Constituição deve procurar definir (no limite do possível)apenas o que é incontroverso: as condições básicas de funcionamentode um sistema político competitivo. Sob este ponto de vista, o que forobjeto de disputa deve ser resolvido na disputa, ou seja, nos processoeleitoral e decisório, dentro dos marcos poliárquicos. O quadro 2 resu-me os critérios de classificação do texto constitucional, relativos aosdois modelos possíveis desenvolvidos a partir do esforço teórico dessaseção.

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REFORMAS CONSTITUCIONAIS NO GOVERNO FHC

As 34 emendas constitucionais aprovadas durante os oito anos do gover-no de Fernando Henrique Cardoso são um indicador inconteste do fato deque durante este período o país viveu uma autêntica agenda constituinte,afinal de contas aprovaram-se na média 4,25 emendas por ano. Conside-rando-se que entre 1988 e 1994 apenas outras quatro haviam sido apro-vadas (excetuadas as seis Emendas de Revisão de 1994), o número im-pressiona13.

13 Em 1994, seis emendas constitucionais foram aprovadas no processo revisional, cinco delas incidindo

sobre aspectos típicos da polity e contando com a possibilidade de serem aprovadas por maioriaabsoluta (50% + 1), ao invés do quorum qualificado (3/5), normalmente exigido para a modificaçãoda Carta Magna. A única emenda referente a uma típica política pública (policy) aprovada nesse anofoi a que criou o Fundo Social de Emergência (FSE), cuja principal finalidade foi criar condições parauma maior concentração de recursos tributários na União. Tratava-se de uma modificação decaráter fiscal, primordial para viabilizar o sucesso do plano de estabilização monetária (Plano Real)capitaneado pelo então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso. Pode-se dizer, inclusive,que esta primeira mudança de policy em nível constitucional marcou antecipadamente o que seriaum padrão de relacionamento do Executivo com o Congresso durante a gestão FHC na Presidênciada Republica. Vale notar que, o FSE foi prorrogado por três vezes, todas elas por meio de emendasconstitucionais em 1996, 1997 e 2000, sendo rebatizado nas duas primeiras como Fundo de Estabi-lização Fiscal (FEF) e na última como Desvinculação das Receitas da União (DRU); noutras palavras,sua denominação foi cada vez mais correspondendo à sua real finalidade.

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O desafio que se coloca é o de saber de que tratam tais emendas.Sobre que tipo de matéria elas incidem? Levando-se em consideraçãoapenas a leitura das respectivas ementas, é possível antever um conteú-do fortemente caracterizado por dispositivos típicos da policy, mas ape-nas uma análise rigorosa do conjunto de artigos, parágrafos, incisos ealíneas seria capaz de confirmar essa impressão inicial. Nesta seção dotexto, nossa intenção é classificar esses dispositivos com base no modeloe nos critérios indicados na seção anterior.

Antes de procedermos à essa avaliação sistemática, convém lembrarque diante do frenesi modificador da Carta magna que acometeu o gover-no FHC, muitos se apressaram em afirmar que este governo vilipendiavaa Constituição, desrespeitando-lhe e jogando por terra boa parte das con-quistas obtidas em 1988, as quais consagravam anos de luta pelaredemocratização do país. Noutras palavras, a “Constituição Cidadã”, comolhe alcunhara Ulysses Guimarães, era alvo de uma fúria modificadora deconseqüências as mais funestas para a democracia, pois a Carta estariasendo objeto de um verdadeiro “desmanche”. Sentimo-nos na obrigaçãode dar aqui voz aos críticos das reformas constitucionais empreendidas,escusando-nos por fazê-lo mediante longas citações:

Um excelente exemplo de posição contrária às mudanças efetuadas éo que se segue, de autoria do advogado Marcello Cerqueira, então presi-dente do Instituto dos Advogados do Brasil:

“Com efeito, o espírito que animou a Constituição parcialmente jádeixou seu corpo. As reformas iniciadas no ‘governo’ Collor e retomadascom novo ímpeto pelo atual governo... mutilaram a Constituição. As vi-cissitudes políticas afastaram a prática da aplicação da Constituição dosideais que a escreveram. A proposta da criação de um Estado Democráti-co de Direito fundado na soberania, na cidadania, na dignidade, nosvalores sociais do trabalho e no pluralismo político foi substituída por umEstado liberal.

(...)“Desde a Revolução de 30, um pacto não escrito, impregnado de

contradições, a que não faltaram períodos demorados de autoritarismo,dava curso a um projeto nacional. Seu conteúdo era a busca do desenvol-vimento...

(...)“A Constituição cidadã teria vindo para conduzir o mesmo processo,

mas de forma a reduzir seus impactos negativos. Afinal, uma nação efeti-

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vamente para todos. Essa utopia foi frustrada pelas ‘reformas’ que, apou-cando o corpo da Constituição, afastaram seu espírito.

“O desmanche do pacto constitucional produzido pelas forças do mer-cado e seus subalternos operou-se em fraude à Constituição. A acumulaçãodemocrática e social que o processo constituinte (constituição material) fezdesaguar na Constituição em vigor é subtraída pela vontade do governofederal conjugada à maioria congressual de três quintos, que modifica otexto ao sabor dos interesses do mercado, de conveniências políticascasuísticas e, sobretudo, de insuportável pressão norte-americana.

“As ‘reformas’ estão atingindo os maiores valores da Constituição de1988: a soberania nacional e os direitos do cidadão”14.

Uma avaliação similar é defendida por um dos mais renomados juristasbrasileiros, Celso Antônio Bandeira de Mello, no mesmo volume de queretiramos a longa citação anterior. Em exposição relativa à data de dezanos da Constituição, Bandeira de Melo afirmou:

“Dever-se-ia este ano comemorar o décimo aniversário da Constitui-ção de 1988, dita Constituição Cidadã. Sem embargo, o que realmente seestá a assistir são os seus discretos funerais.

Com efeito, uma Constituição está viva quando sua fisionomia básicapermanece íntegra em seus dispositivos, ou quando ao menos os princi-pais deles são normalmente respeitados. Se um ou outro desses requisi-tos deixa de existir ou - pior do que isso - se ambos desaparecem,desaparece com eles a própria Constituição.

Foi o que ocorreu com a Lei Magna Brasileira.De um lado, sofreu um processo de desfiguração por via de emendas

que lhe subtraíram características básicas, amputando aspectos funda-mentais de seu projeto.”15

Posição similar foi advogada também pelo eminente jurista Eros Grau:“A Constituição moderna é, deveras, também um instrumento de defe-

sa da sociedade contra o abuso de poder. Destruído o ideal de solidarie-dade que anima a coesão social no Estado social - alvo maior doneoliberalismo -, agora se empenham os maravilhados na redução dasliberdades democráticas, mesmo porque da insegurança social e indivi-

14 CERQUEIRA, Marcello. “Várias são as formas de luta. A defesa da Constituição é uma delas”. In

FIOCCA, Demian & GRAU, Eros (orgs.). Debate sobre a Constituição de 1988. São Paulo: Paz e Terra,2001, pp. 123-5. Este volume contém diversas posições similares a esta.15

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. “Funerais da Constituição de 1988”. In FIOCCA, Demian &GRAU, Eros (orgs.). Debate sobre a Constituição de 1988. São Paulo: Paz e Terra, 2001, p. 35.

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dual, depende a fluência dos mecanismos de competição nos mercados.“Se a Constituição não o impede, se já não funciona como instrumento

de defesa da sociedade contra o tirano, pereceu...“Lembrando o poema - ‘eu vivo em um tempo sem sol’ - dou-me

desgraçadamente conta de que não é necessário que haja prisões e re-pressão para que se instale a ditadura...”16

Por fim, vale citar a breve pergunta enunciada pelo renomado juristaFábio Konder Comparato, conclamando seus colegas de academia:

“Quantos professores de direito, hoje no Brasil, terão a coragem deprotestar de público contra o esvaziamento da Constituição de 1988?”17

Note-se que não é nossa intenção aqui avaliar o mérito substantivo dasmodificações promovidas, mas apenas compreender em que medida asemendas aprovadas incidiram sobre as dimensões policy ou polity dotexto constitucional originário. Entendemos que avaliações como as enun-ciadas pelos ilustres juristas supracitados fariam sentido se referidas amudanças atinentes a normas constitucionais propriamente ditas (polity),mas não caso essas modificações tenham incidido sobre conteúdos típi-cos de políticas públicas (policy). Nessa segunda hipótese, os promoto-res das mudanças nada mais teriam feito do que encaminhar - segundosuas possibilidades políticas e em obediência aos procedimentoslegislativos constitucionais - o programa governamental com base no qualse elegeram. É fato notório que o governo FHC adotou uma clara orienta-ção liberalizante na implementação das mudanças constitucionais acercado papel do Estado e do modelo econômico no Brasil. Não pretendemosaqui avaliar o mérito de tais medidas nem suas conseqüências e resulta-dos práticos. Na verdade, o que procuramos demonstrar é que os desafi-os e dificuldades enfrentados por este governo no aspecto institucional (aconstitucionalização de políticas) poderiam ter sido (e deverão ser) en-frentados por quaisquer governantes portadores de outras orientaçõesprogramáticas. O problema normativo aqui presente não é, portanto, seas policies contidas na Constituição são substantivamente adequadas ounão (em boa parte acreditamos que o sejam), mas se os custos decisóriosimpostos por uma Constituição perm eada de policies são razoáveis ou

16 GRAU, Eros Roberto. “As Relações entre os Poderes no Décimo aniversário da Constituição de

1988”. In FIOCCA, Demian & GRAU, Eros (orgs.). Debate sobre a Constituição de 1988. São Paulo:Paz e Terra, 2001, pp. 75-6.17

COMPARATO, Fábio Konder. “Réquiem para uma Constituição”. In FIOCCA, Demian & GRAU, Eros(orgs.). Debate sobre a Constituição de 1988. São Paulo: Paz e Terra, 2001, p. 86.

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não, se o revestimento de questões específicas e controversas que deve-riam ser submetidas à decisão democrática é desejável ou não.

CONTABILIZANDO AS EMENDAS CONSTITUCIONAIS

Um primeiro conjunto de informações importantes para esta discussão,apresentado na tabela 1, diz respeito ao impacto quantitativo das emen-das aprovadas sobre o texto original. As 34 emendas do período FHCsomaram 495 dispositivos constitucionais.18 Para efeito de análise, cincodestes serão desconsiderados a partir das tabelas seguintes: quatro dispo-sitivos, por serem meramente repetitivos, não acarretaram mudança nemde conteúdo nem de localização na Carta (a rigor, nem deveriam constardas emendas) e um quinto que apenas mudou o nome de uma Seção daConstituição, sem com isso constituir dispositivo a ser quantificado.

Dos 495 dispositivos analisados, 61,2% vieram acrescentar novos pon-tos à Carta e 32,1% tiveram a finalidade de modificar dispositivos dotexto original. Embora em pequeno número, 13 dispositivos (2,7%) mar-caram uma espécie de looping das reformas constitucionais: modificaramdispositivos acrescidos e/ou modificados por emendas anteriores.19 Sete

18 Consideramos “dispositivo” a unidade básica que compõe o texto constitucional. Nesse sentido,

trabalhamos os artigos, parágrafos, incisos e letras que compõem a Constituição, decompondo-os e àsvezes agrupando-os até que pudéssemos circunscrever claramente o elemento constitucional queestava sendo veiculado. Esse trabalho resultou na descoberta de 495 dispositivos no conjunto de 34emendas constitucionais promulgadas nesse período.19

Houve pelo menos um caso que merece destaque: a Emenda Constitucional n. 25 (14/02/2000)modificou o art. 29, VI (relativo ao subsídio de Vereadores) que havia sido modificado pela EmendaConstitucional n. 19 (4/06/1998), que por sua vez havia modificado dispositivo introduzido pelaEmenda Constitucional n. 1 (31/03/1992), que não constava do texto original da Constituição.

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dos 495 (1,4%) vieram apenas renumerar dispositivos originais (sem con-tudo alterar seu conteúdo). Apenas oito dispositivos (1,6%) foram institu-ídos com a finalidade de revogar partes da Constituição original.

Observando-se mais atentamente cada um dos dispositivos modificadores,foi possível perceber que alguns, ao mexerem no texto original, acabavamindiretamente acrescentando ou suprimindo artigos, parágrafos ou alíneas.Já os 8 dispositivos autodenominados revogadores retiraram 18 dispositi-vos da Carta original. Considerando que a Constituição de 1988 contémoriginalmente 1.855 dispositivos (somados o texto principal e o Ato dasDisposições Constitucionais Transitórias), o impacto global desses 490 dis-positivos modificadores, aglutinadores e revogadores, contabilizados pelaanálise, foi o seguinte: ao fim e ao cabo, levando-se em conta todas asmodificações feitas (inclusive aquelas referentes a supressões e acrésci-mos implícitos em dispositivos modificadores) 320 novos dispositivos fo-ram acrescentados à Carta e apenas 36 foram suprimidos.

O saldo dessa operação nos permite dizer, ao contrário do que seafirma comumente no debate público, que a nossa Constituição não foimutilada, mas, pelo contrário, cresceu nada menos do que 15,3%, graçasàs emendas constitucionais promulgadas durante o período FHC (saldode 284 dispositivos em relação ao total de 1.855). Mais do que isso,digno de nota é o fato de que o Congresso Nacional promulgou 159dispositivos modificadores - o que equivale a cerca de 8,5% em relação a1.855 - mas estes dispositivos, associados aos 303 dispositivos aglutinadores,fizeram o texto crescer a uma taxa quase duas vezes superior a essa taxade modificação: 15,3%. Em suma, mais do que simplesmente mudar aConstituição, as reformas do período FHC fizeram-na crescer significati-vamente.

É importante observar que, em 12 casos, as emendas tiveram comoobjeto principal as Disposições Constitucionais Transitórias, ou seja, intro-duziram ou modificaram sobretudo dispositivos que por definição nãocomporiam o corpo principal da Constituição, mas que foram elevados àcondição formal de polity pelo constituinte, com a preocupação de esta-belecer prazos e regras de transição entre o velho e o novo ordenamentoconstitucional. A grande incidência de emendas sobre matérias típicas dapolicy reflete o fato de que a implementação de políticas públicas decurto e médio prazos - todavia relevantes para a agenda governamental -poder-se-ia chocar com dispositivos constitucionais vigentes, caso não seefetivasse mediante modificações da própria Carta; a maioria destas polí-

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ticas dizia respeito a questões da área fiscal ou orçamentária. A tabela 2,abaixo, quantifica o impacto das emendas constitucionais sobre o textoprincipal da Carta Magna e sobre o Ato das Disposições ConstitucionaisTransitórias.

Dos 490 dispositivos, 79,2% incidiram sobre o texto principal e 20,8%sobre o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. As reformasconstitucionais incidiram de maneira diferenciada sobre essas duas partesda Constituição: bem mais do que ocorreu na parte principal, as mudan-ças que incidiram sobre o ADCT foram, em 87,3% dos casos, destinadas aacrescentar novos dispositivos ao texto original e apenas 12,7% foramdispositivos modificadores. Nenhum dos 8 dispositivos revogadores incidiusobre o ADCT, confirmando o acordo consagrado no Congresso Nacionalde que os princípios que organizaram a transição do velho ao novoordenamento constitucional não poderiam jamais sofrer revogação. Quantoao texto principal, 55,2% dos dispositivos nele introduzidos foram deacréscimo e uma taxa maior do que a verificada no caso do ADCT sedestinou a modificações (37,6%).

Dos 482 dispositivos que modificaram ou aglutinaram novos elemen-tos constitucionais, nada menos do que 68,8% (332) foram classificadoscomo policy e apenas 31,2% (150) como polity. Considerando-os separa-

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damente, entre os dispositivos de natureza modificadora da Carta consti-tucional, 51% disseram respeito a polity e 49% a policy. Considerando osdispositivos originais sobre os quais os modificadores incidiram, havia54,1% de polity e 45,9% de policy; portanto, caso se levasse em contaapenas o impacto dos modificadores, os percentuais permaneceriam pra-ticamente os mesmos, ou seja haveria apenas um ínfimo acréscimo emfavor da dimensão policy no texto. Todavia, o resultado é surpreendenteentre os dispositivos aglutinadores: 82,2% foram classificados como policye apenas 17,8% foram classificados como polity. Isto é, o crescimentoverificado do texto constitucional no período FHC foi sobretudo marcadopela introdução de dispositivos típicos de políticas governamentais co-muns e que bem poderiam ter sido implementados no nívelinfraconstitucional, caso contássemos com o modelo típico-ideal de Cons-tituição delineado nas duas primeiras seções deste capítulo.

A distribuição de dispositivos polity e policy nas diferentes emendas,contudo, não foi uniforme. A despeito da predominância geral de policy,houve algumas emendas nas quais predominaram nitidamente dispositi-vos polity. Foram os casos, por exemplo, das Emendas Constitucionais22, 23, 24, 32 e 35. As de números 22 e 24 modificaram o funcionamen-to do Judiciário, a EC 23 criou o Ministério da Defesa, a EC 32 crioulimitações à edição de Medidas Provisórias e a EC 35 definiu condiçõesda imunidade parlamentar. Portanto, nossa aferição foi capaz de demons-trar no detalhe que as questões gerais enunciadas por estas emendas defato compõem o núcleo principal da Constituição, na medida em queatenderam principalmente aos critérios de 1 (Definição de Estado e Na-ção), 2 (Direitos Individuais) e 3 (Regras do Jogo), resumidos no quadro 2da seção anterior.

Um exemplo de dispositivo polity, tirado da EC 22, é o seguinte:Art. 1o É acrescentado ao art. 98 da Constituição Federal o seguinte

parágrafo único: “Art. 98. “Parágrafo único. Lei federal disporá sobre acriação de juizados especiais no âmbito da Justiça Federal.”

Este dispositivo foi classificado como polity por atender aos diversosrequisitos enumerados na seção anterior deste capítulo: diz respeito aquestão relacionada à estruturação do Estado em seu ramo judiciário,encaixando-se, portanto, no contexto da definição de Estado e Nação; égenérico e incontroverso.

Um outro exemplo, retirado da EC 32, é o que segue:§ 8º Havendo medidas provisórias em vigor na data de convocação

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extraordinária do Congresso Nacional, serão elas automaticamente incluí-das na pauta da convocação.

Este dispositivo também diz respeito a polity, pois estipula uma regrabásica do jogo político, além de ser também genérico e incontroverso.Numa questão que será melhor discutida adiante, vale notar que este étambém um dispositivo constitucionalizante, na medida em que cria no-vas restrições constitucionais, no caso, à ação legiferante autônoma doPoder Executivo por meio das medidas provisórias.

Casos muito distintos dizem respeito a emendas constitucionais comoas de números 10, 17, 20, 21, 33 e 37, por exemplo. As ECs 10 e 17prorrogaram a vigência do Fundo de Estabilização Fiscal; a EC 20 promo-veu a Reforma da Previdência, as ECs 21 e 37 foram prorrogações daContribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF) e a EC 33definiu condições para a cobrança de contribuições sociais. À primeiravista, tais questões nos sugeriram um forte conteúdo de policy e a análisedecomposta de seus dispositivos demonstrou que, de fato, foram emen-das que veicularam majoritariamente policies.

Um exemplo de dispositivo classificado como policy, retirado da EC10 é o que segue:

Art. 1º O art. 71 do Ato das Disposições Constitucionais Transitóriaspassa a vigorar com a seguinte redação: Art. 71. Fica instituído, nosexercícios financeiros de 1994 e 1995, bem assim no período de 1º dejaneiro de 1996 a 30 de junho de 1997, o Fundo Social de Emergência,com o objetivo de saneamento financeiro da Fazenda Pública Federal ede estabilização econômica, cujos recursos serão aplicados prioritariamenteno custeio das ações dos sistemas de saúde e educação, benefíciosprevidenciários e auxílios assistenciais de prestação continuada, inclusiveliquidação de passivo previdenciário, e despesas orçamentárias associa-das a programas de relevante interesse econômico e social.

Este dispositivo foi classificado como policy porque viola ao menosdois dos critérios exigidos para a condição de polity: é específico edetalhado, violando, portanto, o critério de generalidade; e é controver-so, pois fixa uma finalidade específica a recursos de uma contribuiçãosocial, sendo que diferentes governos poderiam optar por diversos usosdessa receita, violando, portanto, o critério de controvérsia - isto, a des-peito do dispositivo poder ser relacionado a direitos sociais (polity), jáque trata de políticas sociais (policy). Este dispositivo, contudo, tevecaráter desconstitucionalizante, pois tornou mais flexível a regra anterior-

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mente em vigor, ao definir “prioritariamente” a destinação dos recursos,enquanto o dispositivo original estabelecia uma vinculação obrigatória.

Outro exemplo de policy, desta vez em função de que o dispositivonão se enquadra em nenhum dos seis critérios para classificação comopolity, é o seguinte, retirado da EC 33:

Art. 1º O Art. 149 da Constituição Federal passa a vigorar acrescidodos seguintes parágrafos, renumerando-se o atual parágrafo único para §1º: “Art. 149. § 1º § 2º As contribuições sociais e de intervenção nodomínio econômico de que trata o caput deste artigo: I - não incidirãosobre as receitas decorrentes de exportação;

Este dispositivo define condições para a incidência de contribuiçõessociais,fixando, portanto, uma policy tributária. Nada aqui diz respeito adefinições básicas relacionadas à estrutura do Estado, à nacionalidade,aos direitos civis, às regras do jogo político ou aos direitos sociais. Sendoassim, sua classificação como policy é automática, sequer sendo necessá-rio lançar mão dos critérios de generalidade e controvérsia - trata-se deuma policy pura.

Casos mais complexos foram os das ECs 14, 18 e 19. Em todas elas, aparticipação de dispositivos polity e policy foi muito equilibrada, apesarde que uma apreciação superficial das mesmas poderia levar-nos a clas-sificar simplesmente a primeira e a terceira como policy e a segundacomo polity. A primeira criou o Fundo de Desenvolvimento da EducaçãoFundamental (FUNDEF), a segunda alterou o regime constitucional dosmilitares e a terceira correspondeu à Reforma Administrativa. No caso doFUNDEF, a divisão policy/polity se deveu ao fato de que boa parte dosdispositivos tratava de questões referentes à divisão de competênciasentre União, Estados e Municípios na questão da educação; e como setratavam de princípios organizadores da Federação foram classificadoscomo polity. No caso do regime constitucional dos militares, boa partedos dispositivos alterava condições administrativas referentes ao desem-penho de suas funções e regras previdenciárias próprias - tudo isto foiclassificado como policy. Por fim, no que diz respeito à Reforma Admi-nistrativa, a maior parte dos dispositivos (cerca de 55%) eram claramentepolicies referentes às formas de gestão do serviço público. Mas cerca de45% deles concerniam a condições gerais de funcionamento da burocra-cia pública, a regras e direitos básicos de funcionários públicos e outrosagentes estatais, de modo que foram classificados como polity.

O gráfico 1 dá uma noção geral da predominância de diferentes dis-

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positivos no interior de cada emenda constitucional. É possível ter idéiatambém da diversa dimensão de cada uma das ECs aprovadas durante ogoverno Fernando Henrique Cardoso (a listagem geral das emendas constado anexo), com destaque para as “twin towers” do reformismo constituci-onal brasileiro, as ECs 19 e 20 - respectivamente as Reformas Administra-tiva e Previdenciária - que beiram os cem dispositivos. Além delas, ape-nas outras quatro emendas constitucionais ultrapassam os vinte dispositi-vos, sendo que apenas uma diz respeito a polity: a regulamentação daedição de medidas provisórias. As outras três são todas referentes a poli-cies: financiamento de ações e serviços públicos de saúde (EC 29); co-brança de contribuições sociais (EC 33); e prorrogação da CPMF (EC 37)que, desta feita, foi muito mais detalhada que nos casos anteriores - porconta de uma série de regras visando tornar o mercado de capitais isentodo recolhimento dessa contribuição e devido ainda à inclusão de regrasrelativas ao pagamento de precatórios judiciais. Noutros termos, a EC 37tornou-se um grande “pacote” de políticas públicas implementadas medi-ante emenda constitucional.

Um outro aspecto importante que consideramos foi o efeitoconstitucionalizante ou desconstitucionalizante dos dispositivos aprova-

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dos. Noutros termos, procuramos verificar em que medida os novos dis-positivos aprovados tornavam o texto constitucional mais ou menosvinculador, comparativamente em relação ao texto original. Em algunscasos, o novo texto fazia com que a liberdade do legislador ou mesmo dogovernante se tornasse ainda menor do que era antes; sempre que issoocorreu, consideramos que a tendência do dispositivo era constituciona-lizante. Noutros casos, os novos dispositivos resultavam menos vinculadoresque os originais; quando isto ocorreu, classificamos o dispositivo comode tendência desconstitucionalizante. Houve também dispositivos neu-tros, ou seja, que não alt eravam a tendência anterior. Via de regra,dispositivos aglutinadores tenderiam a ser constitucionalizantes, na me-dida em que criam novas regras. Mas isto nem sempre ocorreu pois, emalguns casos, os novos dispositivos foram introduzidos para flexibilizarregras ou torná-las menos restritivas, tendo assim um efeitodesconstitucionalizante.

O caráter mais vinculador do texto pode se dar basicamente por duasrazões. Primeiro, em função de um maior detalhamento dos dispositivosno seu aspecto substantivo, fazendo com que mais dimensões da realida-de sejam por eles regulamentadas. Segundo, em decorrência do estabele-cimento de regras procedimentais mais rígidas do que as anteriores, tor-nando mais complexos os processos decisórios.

Um exemplo de constitucionalização pode ser retirado da EC 20, quetratou da Reforma da Previdência. Um dispositivo modificado por essaemenda apresentava - no texto original da Constituição - a seguinte reda-ção:

§ 4.º Os proventos da aposentadoria serão revistos, na mesma propor-ção e na mesma data, sempre que se modificar a remuneração dos servi-dores em atividade, sendo também estendidos aos inativos quaisquerbenefícios ou vantagens posteriormente concedidos aos servidores ematividade, inclusive quando decorrentes da transformação ou reclassificaçãodo cargo ou função em que se deu a aposentadoria, na forma da lei.

Passou a ter a seguinte redação:§ 8º - Observado o disposto no art. 37, XI, os proventos de aposenta-

doria e as pensões serão revistos na mesma proporção e na mesma data,sempre que se modificar a remuneração dos servidores em atividade,sendo também estendidos aos aposentados e aos pensionistas quaisquerbenefícios ou vantagens posteriormente concedidos aos servidores ematividade, inclusive quando decorrentes da transformação ou reclassificação

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do cargo ou função em que se deu a aposentadoria ou que serviu dereferência para a concessão da pensão, na forma da lei.

A criação de novos beneficiários (destacada em negrito) implica umaconstitucionalização,.na medida em que torna obrigatória a extensão aospensionistas dos benefícios antes prerrogativa apenas de servidores inati-vos. Em função disto, este dispositivo - classificado como policy tanto naforma original como na modificada - implicou também uma maior restri-ção normativa por parte do texto constitucional emendado.

Um exemplo de desconstitucionalização pode ser retirado da EC 19,que tratou da reforma administrativa. Dizia o texto original:

Art. 37. VII - o direito de greve será exercido nos termos e nos limitesdefinidos em lei complementar;

Passou a dizer o texto emendado:Art. 37. VII - o direito de greve será exercido nos termos e nos limites

definidos em lei específica;Como se pode notar nos destaques em negrito, o texto original exigia

legislação complementar para regulamentar o direito de greve do servi-dor público, já o texto emendado passou a aceitar que legislação ordiná-ria regulamentasse o assunto. Com isto, reduzem-se as dificuldades detramitação legislativa para a elaboração e/ou modificação da regulamen-tação do tema e, na medida em que as restrições constitucionais sãoreduzidas, reduz-se também o grau de constitucionalização.

A tabela 4 trás os dados referentes a essa classificação.No que diz respeito às tendências de constitucionalização e de

desconstitucionalização inerentes a cada um dos dispositivos que compu-seram as 34 emendas no período FHC, foi possível perceber que asreformas constitucionais realizadas entre 1995 e 2002 elevaram significa-tivamente o grau de constitucionalização da realidade política brasileira,bem ao contrário do que se ouviu esses anos todos no debate público.Apenas 15,3% (75) do total de dispositivos apresentaram sentido

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desconstitucionalizante, enquanto 66,1% (324) vieram para aumentar ograu de constitucionalização e 18,5% foram classificados como de ten-dência neutra, não alterando o grau de constitucionalização original dosdispositivos a ele associados. Quando analisados separadamente, os da-dos são ainda mais surpreendentes: dentre os dispositivos modificadoresda Carta, apenas 30,2% deles foram elaborados com a finalidade dedesconstitucionalizar princípios, 32,7% apresentaram tendência inversa e37,1% foram considerados neutros. Dentre os dispositivos aglutinadores,como era de se esperar, 87,4% apresentaram tendência constitucionalizante,6,6% eram neutros e 6% tiveram o efeito prático de desconstitucionalizarprincípios.

Decompondo os dispositivos originais classificados como polity, sobreos quais incidiram emendas constitucionais, foi possível perceber quequase a metade deles dizia respeito a regras do jogo (47,4%) e outros24,8% eram uma combinação dessa dimensão da polity com definição deEstado e Nação (item “e” da tabela 5). O fato é que, se somarmos os itens“a”, “c” e “e” da tabela 5, verificaremos que nada menos do que 76,3%dos dispositivos constitucionais submetidos à alteração diziam respeito aaspectos organizacionais do próprio Estado, sejam eles substantivos (es-trutura administrativa, federativa ou envolvendo os três poderes), sejameles processuais (relações entre e intra poderes, divisão de prerrogativase funções entre os atores institucionais e regras e prazos do processodecisório governamental). Contrariando muito do que se disse sobre oprocesso de reforma constitucional, apenas 15,5% dos dispositivos origi-

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nais emendados diziam respeito a direitos materiais e nenhum ponto daCarta relativo a direitos individuais de liberdade e participação políticafoi tocado pelas reformas constitucionais no período 1995-2002.

Dos 8 dispositivos revogadores (dentre os 495 que compuseram asemendas promulgadas durante o período analisado), 5 deles incidiramsobre a dimensão da polity e 3 sobre a dimensão da policy. Nenhum dos5 dispositivos revogadores de polity atingiu direitos individuais ou mate-riais originais da Constituição. Todos eles diziam respeito às regras dojogo.20

Seguindo a mesma tendência dos modificadores, os dispositivosaglutinadores de polity destacaram-se pela presença mais acentuada deregras do jogo (59,3%), conforme mostra a tabela 6. Cerca de 14,8% dosque foram incorporados à Constituição diziam respeito à definição deEstado e Nação. Dispositivos que carregavam esses dois sentidos simulta-neamente (“a” + “c”) perfizeram 14,8% do total. Somados então os itens“a”, “c” e “e” da tabela 6, o resultado surpreende: quase 90% do que foiacrescentado à Constituição em termos de polity se refere a aspectosorganizacionais e processuais do Estado e das instituições públicas. Ape-nas 2,0% de direitos materiais foi acrescentado à polity constitucional e

20 Dentre as emendas que continham dispositivos revogadores, duas concentraram o maior número

deles: a Emenda Constitucional n. 6, uma das primeiras do período FHC (15/8/95) revogou o art. 171da Constituição e com ele sete dispositivos que diziam respeito à definição de empresa brasileira.Outros seis dispositivos foram revogados pela EC n. 24, com vistas à extinção da figura do juizclassista da Justiça do Trabalho.

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nenhum direito individual novo surgiu por essa via de reforma da Carta.Um exemplo de dispositivo aglutinador que diz respeito a polity/

definição de Estado e Nação é o seguinte, retirado da EC 19:§ 5º Lei da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios

poderá estabelecer a relação entre a maior e a menor remuneração dosservidores públicos, obedecido, em qualquer caso, o disposto no art. 37, XI.

Trata-se de polity porque, de forma genérica e incontroversa, apenasestipula a possibilidade de que seja estabelecida uma relação entre maio-res e menores salários na administração pública dos três níveis de gover-no. Define portanto um princípio geral para o funcionamento do gover-no, sem contudo determinar exatamente o que poderá ou não ser feito. Odetalhamento é deixado ao alvitre dos governantes do dia, que têm sualiberdade governativa ampliada, na medida em que o dispositivo deixaclaro que não há impedimentos constitucionais para que a normatividadelegal estipule tal relação de vencimentos.

Já um exemplo de dispositivo concernente a polity como regra dojogo é o seguinte, retirado da EC 7:

Art.2º Fica incluído o seguinte art. 246 no Título IX - “Das DisposiçõesConstitucionais Gerais”: “Art.246. É vedada a adoção de medida provisó-ria na regulamentação de artigo da Constituição cuja redação tenha sidoalterada por meio de emenda promulgada a partir de 1995.”

Na medida em que este dispositivo define uma condição importantepara a relação e independência entre poderes - a vedação de uso demedida provisória sobre matérias constitucionais emendadas - ele defineuma regra básica do funcionamento da democracia. É, ao mesmo tempo,genérico e incontroverso.

Sintetizando os resultados das tabelas 5 e 6, parece evidente que osdispositivos que modificaram a polity original ou acrescentaram novos ele-mentos a essa dimensão incidiram majoritariamente sobre a organização esta-tal e as regras processuais de funcionamento de suas instituições, confirman-do que de fato tivemos uma significativa reforma do Estado no Brasil dosanos 90. Os mesmos dados, entretanto, nos permitem afastar definitivamentea idéia de que direitos individuais ou materiais tenham sido reduzidos nesseprocesso. É verdade que não houve acréscimo significativo de direitos nonível da polity (apenas 3,7% segundo a tabela 6) e 15,5% dos dispositivosmodificadores incidiram sobre direitos materiais originais (em 15 casos). To-davia, no que diz respeito à tendência dessas modificações nos direitosmateriais, houve empate quase matemático: três foram constitucionalizantes

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(uma sobre trabalho de menores de 16 anos - condição de aprendiz - e duasrelativas à seguridade social e reforma da previdência) todas elas introduzidaspela reforma da previdência (EC 20); quatro foram desconsti-tucionalizantes(uma sobre universalização do ensino médio gratuito - EC 14 - e três querecaíram sobre os servidores públicos, desconsti-tucionalizando as questõesde remuneração - EC 18 -, direito de greve e critérios diferenciados paraconcursos de admissão na carreira - estas duas últimas introduzidas pelareforma administrativa, EC 19) e oito foram neutras.

Finalizando a contabilidade das emendas constitucionais do períodoFHC, pode-se verificar pela tabela 7 que, dentre os 332 dispositivosclassificados como policy, quase a metade (45,2%) apresentou conteúdoindisfarçável de política pública, enquanto 34% deles foram assim classi-ficados por serem excessivamente específicos (não resistiram ao critériode generalidade, apresentado na terceira seção deste capítulo) e 11,4%por apresentarem conteúdo que bem poderia ser objeto de disputa polí-tica convencional (caíram no critério de controvérsia, apresentado naterceira seção deste capítulo), compondo uma típica agenda de políticasgovernamentais. Do total, 9,3% eram específicos e controversos ao mes-mo tempo. Em suma, mesmo que aproximadamente metade dos disposi-tivos policy tenha sido classificada por meio do recurso aos dois critériosoperacionais de especificidade e controvérsia, outros 45,2% eram pura-mente policies21, que teriam recebido outro tratamento legislativo nãofosse boa parte de nossa Constituição um programa de governo.

21 Essas policies puras puderam ser mais facilmente classificadas como tais pelo fato de que não se

enquadravam em nenhuma das quatro categorias de polity supramencionadas e, portanto, não“perderam” a condição de polity por serem controversas ou específicas, mas por estarem completa-mente fora de seu âmbito.

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PERSPECTIVAS DA AGENDA POLÍTICA E CONSTITUCIONAL

Não devemos nos espantar se, dentro de alguns anos, a Constituiçãobrasileira contar em suas Disposições Transitórias com inúmeros disposi-tivos ali inseridos por conta de necessidades governamentais de conjun-tura. É o caso de nos questionarmos se isto não se deve ao fato de que aConstituição impede que diversos aspectos típicos da policy sejam objetode processo legislativo ordinário, transformando automaticamente qual-quer decisão normativa nesse nível em ataque e violação ao texto consti-tucional. Por outro lado, nada leva a crer que as conjunturas que obriga-ram a gestão Cardoso a modificar freneticamente a Carta desapareçam nofuturo mesmo que distante. Além disso, é possível prever que novosproblemas e novos governos, sejam eles quais forem, sigam a orientaçãoque seguirem, permanecerão amarrados a essa dinâmica política constitu-cional, graças ao formato da Carta - sua imensa abrangência e seudetalhamento - e às exigências que ela impõe ao processo governamen-tal. Um bom indicativo disto é o fato de que, no momento em que conclu-ímos este capítulo, a agenda constitucional apresenta um total de 16 Pro-postas de Emenda Constitucional (PECs) de autoria do Executivo Federal,em tramitação no Congresso Nacional, conforme mostra o quadro 3.

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Das 16 PECs encaminhadas pelo Executivo e ainda não apreciadas atéo momento da redação deste texto, é difícil dizer que qualquer uma delasdiga respeito propriamente a polity. Mesmo aquelas que tratam de ques-tões relacionadas ao funcionamento dos Poderes (no caso, do Judiciário)dizem mais respeito a trâmites específicos do que à fixação de princípiosou normas básicas. Um dado interessante, merecedor de análise maisaprofundada no futuro, é o fato de que ao longo dos oito anos do gover-no FHC, foram aprovadas 34 Emendas Constitucionais, contra apenas 31Leis Complementares. Estas exigem um quorum menor para sua aprova-ção e um trâmite legislativo mais simplificado (a maioria absoluta emambas as Casas, em duas votações), sendo portanto - em tese - de maisfácil implementação. Entretanto, os dados parecem indicar que o cami-nho das reformas constitucionais mostrou-se, para as agendas governa-mental e congressual em voga, mais importante.

Durante sua gestão, Fernando Henrique Cardoso viu-se obrigado aconstruir uma ampla coalizão de governo, que lhe permitisse aprovar noCongresso a sua agenda constituinte (Couto, 1997; 1998a). Essa coalizão

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chegou a congregar mais de 75% dos parlamentares e cinco partidos -PSDB, PFL, PMDB, PPB e PTB (Figueiredo & Limongi, 1999). Isto permi-tiu ao Executivo relativo sucesso em sua empreitada, como indica ogrande número de emendas aprovadas, dentre elas a que garantiu aopresidente (e a seus sucessores, claro) o direito à reeleição. Cabe questi-onar se é plausível supor que outros governantes desfrutarão das mesmaspossibilidades que permitiram a Cardoso montar esta ampla coalizão.Caso não contem com tais trunfos, terão eles condições de implementaras políticas que prometeram a seus eleitores, ou mesmo aquelas que sefizerem necessárias em decorrência das oscilações da conjuntura? Temospoucas razões para acreditar que o desafio dos futuros governantes sejamenor do que o enfrentado pelo atual. A despeito da distinta feiçãoideológica do sucessor de Fernando Henrique Cardoso, sua agenda degoverno estará condicionada pela Constituição e dependente de amplacoalizão política para ser implementada.

Não será surpreendente se, ao final do governo Lula, a Constituiçãoestiver ainda maior do que está hoje. Todavia, a maior fragmentaçãocongressual que resultou das eleições de 2002 talvez dificulte esta tarefaao novo presidente. Nenhum dos partidos alcançou sequer 1/5 das cadei-ras na Câmara dos Deputados. Somados, os 9 partidos que deram apoio aLula no segundo turno das eleições (PT, PL, PC do B, PMN, PPS, PSB,PDT, PTB e PV), mais o PMDB, contam com 293 deputados, somando57,1% dos votos; menos, portanto, do que o mínimo necessário para seaprovar uma emenda constitucional. Caso o PMDB não participe da coa-lizão de centro esquerda que reuniria os 9 partidos, o governo iniciariacom uma base de apenas 42,7%. Considerando-se, porém, que por setratar de uma apenas provável coalizão de 10 partidos, o risco de defec-ções é alto, ainda mais árdua se torna a tarefa. Isto deixa claro que oemendamento constitucional durante o governo Lula deverá requerer aconstrução de coalizões que transcendam a base de apoio governamen-tal. No momento em que concluímos este texto, parece pouco provávelque o governo petista acabe por incorporar às suas bases, além do PL edo PTB, outras agremiações mais a direita, como o PPB (9,6% das cadei-ras) ou o PFL (16,4%). É bem verdade que os dois “parceiros conservado-res” do presidente petista poderão ser úteis na atração de adesões deparlamentares do campo conservador - mas é difícil avaliar em que grauisto ocorrerá.

Caso consideremos o Senado Federal, curiosamente, a tarefa do presi-

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dente eleito parece um pouco mais fácil. Somados os partidos que apoi-aram Lula no primeiro e segundo turnos ao PMDB, perfaz-se um total de49 senadores, ou 60,5% das cadeiras. Sem o apoio peemedebista, contu-do, o apoio cairá para apenas 35,8%. Este cenário, somado àquele queapontamos acima para a Câmara, dá uma boa medida da importância que,diante da necessidade de novas mudanças constitucionais (e mesmo paraa constituição de uma base majoritária de apoio) terá o PMDB para onovo governo22. De qualquer forma, trata-se de conjecturas. E, além dis-so, algumas das mudanças constitucionais que se apresentam ao novogoverno como necessárias (ou prováveis) - tomando em conta declara-ções de lideranças próximas ao presidente eleito - são talvez aquelas quemais necessitem da costura de amplos acordos, que em muito ultrapas-sam a formação de bases de sustentação parlamentar de um ou outropresidente. Referimo-nos aqui às reformas tributária e (novamente)previdenciária. São de tal modo controversas e atingem de tal maneirafortes interesses (de entes da Federação, de grupos sociais relevantes)que exigirão muita habilidade política e muita negociação para que pos-sam ser levadas adiante. Noutras palavras, talvez a agenda constitucionalde Lula seja ainda mais árdua do que aquela que teve pela frente FernandoHenrique.

22 O PMDB contaria inicialmente com 19 senadores, logo após as eleições. Obteve, contudo, a adesão

do senador João Batista da Mota (até então sem partido), suplente do governador eleito do EspíritoSanto, Paulo Hartung (PSB).

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23 Considerando-se também algumas mudanças de partidos noticiadas pela imprensa e ocorridas

após as eleições e antes da posse dos novos congressistas.

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A PRESIDÊNCIA BRASILEIRA E ASEPARAÇÃO DE PODERES

(1988-2002)Kurt von Mettenheim

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“O Presidente não é a Presidência.A Presidência não é o Governo.

O nosso sistema não é presidencial.”

Charles O. Jones,The Presidency in a Separated System.

Este artigo parte de uma argumentação de Charles Jones para esclarecernosso objeto de pesquisa. Analisamos a Presidência brasileira como orga-nização e suas relações com outras esferas e níveis de governo, ao invésde uma pessoa ou de um constructo abstrato como o presidencialismo. Avisão separacionista de Jones proporciona uma alternativa aoeurocentrismo e ao reformismo liberal que freqüentemente permeiamestudos comparados das instituições políticas brasileiras, especialmenteno que se refere a debates que opõem as formas de governo presidenci-al e parlamentar2. Procura-se aqui colocar a Presidência brasileira nocontexto mais amplo das mudanças políticas, sociais e econômicas ocorri-das após a Constituição de 1988.

O presente estudo não se limita à teoria. Alguns princípios fundamen-tais da separação dos Poderes encontram forte sustentação empírica emconclusões recentes de análises institucionais da política brasileira, quetêm apresentado volume substancial de provas de empowerment nostrês ramos do Governo Federal - Executivo, Legislativo e Judiciário -.desde pelo menos o estabelecimento das regras políticas ditadas pelanova Constituição. Ademais, sustentamos que, ao invés de reduzir o po-

1 Doutor pela Universidade de Columbia e Professor da Fundação Getúlio Vargas (SP).

2 Sobre as distorções do eurocentrismo e do reformismo liberal, ver: O’Donnell,(1996)” Ver, também:

Mettenheim, Kurt. (1997.)

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der da Presidência, a separação e difusão de Poderes a partir de 1988levaram a um processo político cada vez mais complexo e de somapositiva.

As evidências acumuladas sugerem que o processo político tende aenvolver de forma crescente os três Poderes de diversas maneiras, tantoformais quanto informais. Embora as instituições políticas brasileiras se-jam significativamente diferentes do sistema norte-americano centrado noCongresso, determinados conceitos centrais da política dos Estado Uni-dos, como a divisão do governo e a separação de poderes, proporcionamnovas perspectivas sobre as mudanças nas instituições políticas e nademocracia brasileiras desde 19883.

Concluir que os três Poderes do governo brasileiro (assim como asesferas estaduais e municipais) ampliaram suas capacidades políticas desdea transição da ditadura militar somente é paradoxal se se mantiver umaconcepção de soma zero acerca das instituições políticas4. Em vez deopor um ramo ou nível de governo aos demais, a tradição pluralista e asanálises empíricas das políticas dos Estados Unidos tendem a se concen-trar nas suas interações de maneira geral. Por exemplo, a pesquisa sobrea Presidência norte-americana dá ênfase à negociação, às trocas e à inter-ferência como chaves para o sucesso no relacionamento com os outrosPoderes. Greenstein alude ao conceito de mão oculta não para afirmar asvirtudes dos mercados, mas para capturar a concepção e o caráterminimalista da Presidência dos Estados Unidos5. O Presidential Power, deNeustadt, também descreve as instituições políticas dos EUA como sendo“instituições separadas que compartilham poderes” e cita a persuasão, abarganha, a reputação, o prestígio e as trocas como sendo as característi-cas responsáveis pelo sucesso ou fracasso dos presidentes, argumentosque apontam claramente para os conceitos liberais e pluralistas do gover-no e para a difusão de poder.

Num sentido mais amplo, a tradição de pluralismo, pragmatismo eseparação de Poderes inclui trabalhos como Nerves of Government, deDeutsch, que se concentra na capacidade cognitiva das instituições políti-

5 Greenstein, 1982.

3 Estes novos padrões presentes no Brasil são mais semelhantes à excepcional experiência dos EUA.

Sobre comparações de maior semelhança, ver Lijphart, 1994.4 Tsibelis sustenta que a diferença fundamental entre as formas de governo esteja no número de

pontos de veto. Esta análise segue outra linha e sugere que os pontos de iniciativa e acesso nasinstituições democráticas podem ser encarados de forma mais voltada para a soma positiva.

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cas como um todo. Deutsch apresentou a doutrina da separação dospoderes em termos de um processo político aberto fundado em teoriascognitivas da organização. Nesta mesma linha, Organizations de HerbertSimon continua a ser uma referência crucial para os que analisam oprocesso político dos EUA, na medida em que representa uma teoria desoma positiva baseada na interação do Executivo, do Legislativo e doJudiciário em consonância com doutrina de separação dos poderes.6

Divided We Govern, de D. Mayhew, e The Separated System, de C.Jones, são exemplos mais recentes de que, ao contrário do que sustentamas idéias genericamente aceitas em análise política comparada sobre osriscos de ingovernabilidade associados ao presidencialismo, como os tra-balhos de Juan Linz e Arturo Valenzuela, a separação de Poderes conce-bida para produzir conflito permanente entre princípios contrastantes derepresentação encontra-se no âmago dos governos e das presidênciaseficazes.7

Em suma, este estudo adota uma nova perspectiva comparada paraexaminar a Presidência brasileira; uma perspectiva que dá ênfase a umprocesso político que envolve instituições separadas num conflito acercados poderes compartilhados de governo. Em poucas palavras, a separa-ção de Poderes.

Esta análise também dá ouvidos ao alerta de O’Donnell a respeito dese evitar as distorções do reformismo liberal e do eurocentrismo. ComoO’Donnell advertiu que opiniões idealizadas de poliarquias não devemservir como paradigmas para a análise política posterior a transição de-mocrática no Sul e no Oriente, os estudiosos foram cautelosos no sentidode evitarem “ilusões de consolidação”. Entre estas ilusões, podemos citarmuitos itens das agendas legislativas que procuram promover ampla re-forma das instituições políticas brasileiras. Sob este aspecto, há notáveissemelhanças entre os reformistas do passado e do presente. Comparem-

6 Segundo Jones: “Nos Estados Unidos, a estrutura de governo prescrita pela Constituição, pelas

sentenças judiciais e pela tradição aumenta enormemente o volume de barganha necessário paraque possam ser adotadas políticas... A necessidade de barganha constante está embutida na própriaestrutura americana de governo.”7 Observam Dahl e Lindblom: “A conseqüência estratégica deste arranjo, como era a intenção

evidente da Convenção Nacional, era a de que não houvesse nos Estados Unidos representantesunificados, coesos, reconhecidos e legítimos da “maioria nacional”. Com freqüência, o presidentesustenta representar uma maioria nacional e o Congresso (ou uma maioria das duas Casas), outra.A convenção foi tão bem-sucedida que até quando uma maioria no Congresso pertence nominal-mente ao mesmo partido que o presidente, este e aquela não costumam falar com a mesma voz.” R.Dahl and C.E. Lindblom, Politics, Economics, and Welfare. pp. 335-6.

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se, por exemplo, as propostas de reforma da American Political ScienceAssociation em 19508 com as agendas de reforma política amplamentedebatidas nos Brasil. Ambas envolvem crítica dos sistemas existentes epropostas amplas de agilização do processo político, concentrando opoder e diminuindo o debate, a contestação e a separação de Poderes,algo que lembra os conceitos simples e lineares do governo por repre-sentação parlamentar.

Uma perspectiva “separacionista” da Presidência brasileira tambémdifere das percepções legais e funcionais mais habitualmente aceitas.Tais descrições do processo político procuram demarcar os Poderes Exe-cutivo, Legislativo e Judiciário por meio de funções diferentes - e separa-das -, freqüentemente organizadas por uma forma linear de representa-ção e formulação de políticas para que os representantes reflitam commaior fidelidade a soma das preferências individuais9. O Diagrama 1representa os modelos funcionais de representação mais ao estilo parla-mentarista do processo político como uma seqüência linear que, em tese,melhor transforma a preferência dos eleitores em lei.

9 Sobre a teoria de representante-representado e a separação de poderes ver: Przeworski, et.al. 2000.

8 O modelo partidário necessário deve ser democrático, responsável e eficaz. Um sistema partidário

eficaz exige, em primeiro lugar, que os partidos sejam capazes de propor programas com os quaispossam se comprometer e, segundo, que os partidos disponham de coesão interna suficiente paraimplementar seus programas. O requisito fundamental para tal responsabilidade é um sistemabipartidário em que o partido de oposição possa agir como crítico do partido de situação, desenvol-vendo, definindo e apresentando as políticas alternativas necessárias para que haja real escolha naconsecução de decisões públicas. (American Political Science Association, Toward a More ResponsibleTwo Party System: A Report of the Committee on Political Parties. New York: Rinehart, pp. 1-2) O painelque celebrou o 50º aniversário do Comitê de Partidos Políticos analisou diversos acontecimentos dasegunda metade do século XX, como o uso da televisão, a consultoria de campanha e a queda dopartidarismo entre os eleitores e representantes, o que exige, evidentemente, uma reavaliação domodelo de partido responsável. Para Maisel & Bibby, as leis eleitorais e as regras partidárias tambémmudaram a política americana de maneira não esperada para Schattschneider e outros cientistaspolíticos envolvidos no documento de 1950. Especificamente, a emergência da TV e a ascensão dosconsultores de campanha desafiaram as premissas críticas quanto à necessidade de um sistemapartidário mais responsável, dados os diferentes níveis e o caráter das informações no contexto domarketing político (MAGLEBY, 2000). Até as virtudes do partidarismo são colocadas em dúvida porPomper, Weiner e Weisberg em vista da recente tendência identificada no Congresso e, entre eleitores,de se cruzar a linha entre partidos. Ao invés da maior clareza e simplicidade levarem a um processopolítico ágil, como pretendia o Comitê sobre Partidos Políticos em 1950, as crescentes complexidadee diversidade das alianças sugerem que as premissas reformistas liberais estejam erradas (POMPER EWEINER, 2000; WEISBERG, 2000)

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Diagrama 1 - Eleições e Formulação de Políticas em Modelos DemocráticosLegais, Funcionais e Parlamentares

Eleição ����� Legislatura ����� Executivo ����� Burocracia ����� Lei

Opondo-se a esta visão tradicional de que o Legislativo legisla, o Execu-tivo executa e o Judiciário julga, trabalhos recentes sobre as instituiçõespolíticas dos EUA e de outros sistemas com separação de poderes, suge-rem que a apresentação, debate, aprovação, implementação e revisãoconstitucional da legislação envolvem uma série de momentos comple-xos que combinam constantemente a Presidência, o Congresso e os Tri-bunais, além de cargos executivos, burocracias, grupos de interesses eorganizações não-governamentais em contestação política.

Este processo político mais complexo e contestado pode ser repre-sentado como no Diagrama 2. Ao invés de uma trajetória simples quetransfere as preferências dos eleitores com base em programas e ideolo-gias partidários claros, numa legislatura livre de distorções e numa buro-cracia autônoma encarregada de aplicar a lei, o processo político é defi-nido por diversas trajetórias.

Diagrama 2 - Eleição e Formulação de Políticas no Modelo Presidencial Demo-crático da Separação de Poderes

� Executivo �Eleição � Legislativo �Judiciário

Eleição � Presidência � Burocracias � �Lei� Grupos de Interesse �� ONGs �

A Presidência encontra-se, neste modelo separacionista, no interior deum processo político pluralista, gradualista e eivado de interferência, quedifere consideravelmente dos que buscam reformar as instituições políti-cas e aumentar a governabilidade por meio da agilização da política e dacentralização do poder.

Este estudo examina o argumento de que a separação de Poderes noBrasil se deu a partir de 1998, avaliando as modificações históricas porque passaram as instituições políticas federais e a Presidência da Repú-blica. Neste caminho, analisa-se primeiro o realinhamento eleitoral das

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campanhas presidenciais e, depois, a dinâmica das supercoalizões brasi-leiras.

Mais adiante, passa-se para o estudo específico da Era FHC, analisan-do o impacto das reformas tucanas do período 1995-2002 e o papel daPresidência na política econômica e social, no processo orçamentário ena política exterior. Por todo o texto, há a preocupação de examinar sesurgiu ou não uma maior separação de Poderes entre as instituiçõespolíticas brasileiras e do impacto disto sobre a governança, colocando aPresidência da República num contexto mais amplo de mudanças sociaise econômicas que ocorreram no Brasil.

I - PESQUISAS RECENTES SOBRE A SEPARAÇÃO DE PODERES NO BRASIL

O conhecimento acumulado sobre as instituições políticas brasileiras resul-tantes das mudanças de 1988 revela a crescente importância de cada ramodo governo10. Para vários trabalhos, houve uma judicialização da política noperíodo recente, pois os Tribunais brasileiros aumentaram sua participaçãona formulação de políticas e na tomada de decisões11. Da mesma forma,análises do Congresso Federal e do Senado sustentam que o Legislativobrasileiro aumentou sua influência sobre o processo político12.

A pesquisa sobre as instituições políticas brasileiras logo deslocou-separa a questão mais complexa das relações entre Poderes. Figueiredo eLimongi sustentam que a Presidência brasileira predomina sobre oLegislativo por meio do uso de Medidas Provisórias (MPs); em razão dasleis advirem, em sua maioria, de iniciativas do Executivo; e em virtude damaior rapidez processual dos projetos de lei do Governo Federal, pelasvias de urgência que ele pode utilizar13. Embora Figueiredo e Limongi,Amorim Neto e outros descrevam o crescente uso de MPs na década de90 como uma usurpação da autoridade do Congresso, a análise empíricados decretos na Argentina e no Brasil sugere que, mesmo neste casoextremo de “decretismo” e de domínio do Executivo, houve separaçãode Poderes e difusão da formulação de políticas14.

14 Ver: Vasconcelos, 2001 sobre a dinâmica entre o executivo e o legislativo na negociação de decretos

no Brasil e na Argentina.

13 Figueiredo & Limongi, 2000.

11 Vianna, et.al. 1999; Castro, 1995; Sadek, 1998; Arantes, 1999.

10 Ver Palermo, 2001.

12 Santos, 1999 e 2001 sobre instituições políticas brasileiras.

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Devemos observar, ademais, que as mudanças das regras interpoderese as emendas constitucionais aprovadas em 2001 e 2002 reduziram dra-maticamente os poderes de decreto da Presidência brasileira. O Senadoaprovou (em 6 de setembro de 2002) uma Emenda constitucional quelimita a vigência das Medidas Provisórias a dois períodos de sessentadias. A decisão do Senado (66 pró, 3 contra e 1 abstinência) refletiu omesmo acordo amplo entre o governo e a oposição que prevalecera em21 de junho do mesmo ano, quando os deputados federais votaram, por417 a 1, pelo fim da reedição de MPs. Esta lei é importante por encerraro uso indiscriminado das Medidas Provisórias, ao mesmo tempo em quemantém a capacidade do Governo Federal para adotar rapidamente polí-ticas econômicas sem, com isso, excluir a supervisão do Legislativo.

Além disso, o uso das Medidas Provisórias não deve obscurecer o fatode que a maior parte da legislação passa por um processo bastante com-plexo de dupla votação num sistema bicameral. De acordo com a Consti-tuição de 1988, a aprovação de legislação - seja ordinária ou complemen-tar - depende de duas votações tanto no Senado quanto na Câmara dosDeputados.

II - A PRESIDÊNCIA NA HISTÓRIA DO BRASIL

Uma breve análise sobre a história do Brasil também sugere o valor deuma perspectiva “separacionista”. Charles Pessanha sustenta que a Cons-tituição de 1988 difere consideravelmente das Cartas Magnas brasileirasanteriores no tocante às relações entre Executivo e Legislativo15. Ao con-trário dos sistemas anteriores, que privilegiavam o Congresso (1946-1964)ou o Executivo (1967-1988), a Constituição de 1988, de acordo comPessanha, “inova por estabelecer um equilíbrio entre os três poderes dogoverno, além de estabelecer um poderoso Ministério Público”16.

Além das diversas relações entre os três ramos do governo, Pessanhaenfatiza o novo papel do Tribunal de Contas da União (TCU) e a inde-pendência adquirida pelo Ministério Público, que se separou do Executi-vo, como mudanças fundamentais trazidas pela Constituição de 1988.Outra modificação é a grande variedade de meios pelos quais se podedar origem a leis. Projetos de legislação complementar e ordinária podem

16 Pessanha, op.cit. p. 1992.

15 Ver também: Figueiredo, 2001.

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ser propostos por membros individuais ou por comissões da CâmaraFederal, do Senado, pelo presidente, pelo Supremo Tribunal Federal,pelos Tribunais Superiores Regionais, pelo Procurador Geral da Repúbli-ca e até mesmo por cidadãos do país.

Trabalhos clássicos sobre as instituições políticas brasileiras já mostra-ram como se deram as relações Executivo-Legislativo ao longo da histó-ria. Maria do Carmo Campello de Souza afirma que a predominância doExecutivo nas questões centrais de política econômica entre 1930-1964 éuma das principais causas dos vícios democráticos e da irresponsabilidadelegislativa no período17. Barry Ames, Amorim Neto e outros tambématribuem ao excesso de emendas a dinâmica das relações entre Poderesnesta mesma época18.

O colapso da democracia, a intervenção militar e o autoritarismo buro-crático que ocorreram entre 1964 e 1985, criaram um processo políticoexcludente centrado na Presidência e em superministérios descritos porFernando Henrique Cardoso como um conjunto de círculos de influênciaconcêntricos19. Ademais, as políticas de liberalização implantadas entre1974 e 1985 procuraram manter o controle político centralizado na Presi-dência e nos superministérios20.

Segundo a perspectiva mais ampla adotada pelo institucionalismo his-tórico, a Presidência expandiu sua capacidade administrativa e incluiuagentes políticos durante períodos críticos de mudança política. Desde osprimórdios da República, em 1891, o número de ministérios e seu carátermudaram não por evolução gradual, mas como reação a transformaçõesperiódicas e dramáticas do Governo Federal brasileiro. Estudos recentessobre análise histórica comparada enfatizam a importância de tais mo-mentos políticos para a trajetória da mudança institucional21. Análises daPresidência americana também sustentam que as modificações políticas ede regime tendem a ser a melhor explicação para a trajetória de suaevolução administrativa.

21 Steinmo, Thelen, (1992)

17 Souza, Maria C.C. de. 1976.

18 Amorim Neto. 1994

19 Sobre a descrição de círculos concêntricos de influência sob regime militar, ver: Cardoso, F. H, 1975

20 Sobre o projeto Geisel-Golbery, ver: Mettenheim, 1995.

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TABELA 1: NÚMERO DE MINISTÉRIOS POR MANDATO PRESIDENCIAL, 1899-2002

O estabelecimento de novos ministérios parece ser maior duranteperíodos de mudança de regime e menor durante períodos de continui-dade política. Assim, a Presidência e o executivo brasileiros expandiram-se em termos de complexidade organizacional após três grandes episódi-os: a revolução de 1930, a intervenção militar de 1964 e a transição dogoverno militar para o civil em 1985.

O número, a natureza e o momento das inovações organizacionaissugerem a necessidade de uma explicação política. A concepção ideoló-gica e a visão administrativa do Estado Novo implicaram claramente naexpansão do número e da função de ministérios, além dos cargos direta-mente ligados à Presidência. É menos evidente o aumento substancial deministérios e órgãos executivos durante o governo militar, dado o caráterexcludente da ideologia militar de segurança e desenvolvimento nacio-nais. Finalmente, o aumento do número de postos ministeriais e agênciasque se reportam diretamente ao Presidente após a transição do governomilitar em 1985 nos leva a crer, novamente, que as nomeações ministeri-ais servem para cimentar novos regimes.

Em suma, duas das três principais mudanças de regime no Brasil pare-ceriam ser favoráveis à redução das funções administrativas do GovernoFederal. Mas ocorreu o contrário. Tanto os presidentes militares do finalda década de 60 quanto os primeiros presidentes civis após a transição,em 1985, aumentaram consideravelmente o número de ministérios. Con-clui-se que o uso de nomeações presidenciais para cargos ministeriais eadministrativos durante períodos de mudança política parece ser crucialpara solidificar novos regimes.

III - A PRESIDÊNCIA BRASILEIRA APÓS 1988: IMPEACHMENT, PLEBISCITO E A EMERGÊNCIA DA

NOVA LIDERANÇA.

Embora muito se tenha dito sobre as virtudes e os defeitos dos governos

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presidenciais e parlamentares, diversos fatos no Brasil solidificaram oapoio ao sistema presidencial de governo desde a Constituição de 1988.Os proponentes do parlamentarismo freqüentemente enfatizam a remo-ção dos governantes pelo voto parlamentar como sendo uma característi-ca exclusiva, mas a experiência do impeachment evidencia o contrário.O primeiro presidente diretamente eleito no Brasil após a transição dogoverno militar sofreu um processo de impeachment, motivado por acu-sações de corrupção. Em 29 de setembro de 1992, a Câmara dos Deputa-dos suspendeu, por 441 votos a 38, o mandato do presidente FernandoCollor de Mello e iniciou um julgamento formal no Senado, cujos mem-bros posteriormente aprovaram o impeachment, em 29 e 30 de dezem-bro, por 76 de 81 votos22.

Esta remoção inédita de um presidente brasileiro teve início em maiode 1992, quando o irmão do então presidente o acusou de envolvimentocom corrupção, de usar fundos de campanha para fins pessoais e partici-pação no tráfico de influência organizado pelo tesoureiro de sua campa-nha. O impeachment de Collor, no fim de dezembro de 1992, neutralizouas campanhas pela adoção do governo parlamentar. No plebiscito reali-zado em 21 de abril de 1993, ao invés de votar com aqueles que procu-ravam reformar as instituições brasileiras, 55,4 % dos eleitores optarampor manter a forma presidencial de governo.

No que se refere à geração de uma nova liderança política, as elei-ções presidenciais também foram essenciais para a política pós-autoritá-ria. De fato, a campanha de 1994 trouxe à baila dois dos mais importan-tes críticos do governo militar. Líder das greves de metalúrgicos nossubúrbios industriais de São Paulo no final dos anos 70, Luiz Inácio daSilva fundou e ajudou a liderar o Partido dos Trabalhadores (PT), que setransformou na principal força da esquerda política brasileira durante osanos 80 e 90. A trajetória de Fernando Henrique Cardoso não foi menosinovadora em termos de carreira política. Sociólogo de renome internaci-onal, ele entrou para o Senado em 1982 e tornou-se personagem centralna negociação da transição (1985) e na redação da Constituição de 1988.Após a tomada do PMDB por políticos liderados por Orestes Quércia(Governador de São Paulo, 1986-1990), FHC desligou-se daquele partidopara fundar o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), juntamentecom outros dissidentes de centro-esquerda do PMDB.

22 Para análises do processo de impeachment, ver: Weyland, Kurt. 1993. pp. 1-37

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Numa perspectiva comparada e histórica, a emergência de um presi-dente reformista e de um partido trabalhista independente, na qualidadede oposição leal, como as duas principais forças políticas brasileiras apósa transição, é um acontecimento notável. As seções que seguem susten-tam que uma nova divisão entre tucanos e PT surgiu na democraciabrasileira graças, em grande parte, à dinâmica das campanhas presidenci-ais e às coalizões de governo.

IV - POLÍTICA PARTIDÁRIA E ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS (1988-2002)

Uma breve análise das eleições nacionais desde 1988 revela que a cam-panha de 1994 foi uma eleição crítica, que realinhou as forças políticasnacionais, e a partir da qual formaram-se alianças amplas em torno dogoverno tucano e consolidou um grupo oposicionista. Embora as teoriasde eleições críticas e de realinhamento eleitoral concentrem-se em inter-valos de tempo maiores do que as três disputas ocorridas desde 1994, ascampanhas presidenciais de 1994, 1998 e 2002 parecem ter criado umanova divisão nacional entre os que apoiavam as reformas tucanas e osque a elas se opunham. Esta seção concentra-se em diversas característi-cas emergentes da política partidário-eleitoral brasileira desde a Consti-tuição de 1988, que podem indicar a validade deste argumento quanto aeleições críticas e realinhamento partidário em campanhas presidenciais.

Em termos genéricos, o caráter plebiscitário das campanhas presiden-ciais brasileiras advém de seu apelo mais direto, livre de mediação, alémde serem fluidas e atreladas a personalidades políticas e concepçõessubjacentes de justiça substantiva23. Numa perspectiva histórica, a tradi-ção populista dotou as relações entre Estado e sociedade no Brasil demaior “transparência” e imediatismo, em comparação aos eleitorados maisrígidos da Europa e dos Estados Unidos. Mas estas características não sãoapenas uma conseqüência do passado brasileiro. Em muitas democraciasestabelecidas, cientistas políticos encontram tendências recentes em dire-ção ao apelo popular direto por parte dos candidatos a cargos majoritári-os e de campanhas voltadas para a mídia. Assim, os eleitores em todo omundo tendem, cada vez mais, a julgar diretamente os candidatos, odesempenho econômico e os partidos políticos sem as influências mode-radoras que tiveram importância no passado, como ideologias políticas,

23 Sobre a dinâmica da opinião pública brasileira, ver: Mettenheim, 1995 e Carreiro, 2002

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noções de grupos de interesse ou outras identificações partidárias ou declasse de longo prazo.

Uma característica central das campanhas presidenciais brasileiras é avolatilidade das preferências dos eleitores. A velocidade e a amplitudedas flutuações das intenções de voto durante as campanhas presidenciaisrecentes (tais como medidas pelas pesquisas comerciais) demonstram ocaráter mais plebiscitário e centrado nos cargos executivos da represen-tação eleitoral brasileira. Desde 1988, os últimos seis meses das campa-nhas nacionais assistiram deslocamentos dramáticos das preferências po-líticas. Nas primeiras eleições presidenciais após a ditadura militar, odesconhecido Fernando Collor começou com uma pequena porcentagemde votos e acabou por derrotar o candidato do PT, Luiz Inácio da Silva,por uma diferença de mais de 8% no segundo turno. Em 1994, o entãoMinistro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, passou de 7% naspesquisas de abril para mais de 54% na eleição, derrotando o candidatopetista no primeiro turno. Em 1998, o presidente FHC passou de 36% emabril para mais de 53% ao final do primeiro turno, novamente derrotandoLula. A velocidade e a amplitude de variação das intenções de voto noBrasil são consideravelmente maiores do que as variações entre 3 e 5 porcento que tradicionalmente ocorrem durante as campanhas eleitorais na-cionais européias24.

O princípio central por detrás da fórmula de representação eleitoralbrasileira é contrabalançar as tendências plebiscitárias das eleições dire-tas para o Executivo por meio da combinação de eleições em separadodos legisladores, com a aplicação de regras bastante liberais de represen-tação proporcional. Esta combinação de eleições separadas e diretas paracargos executivos com a representação proporcional dos legisladoresvem sendo mantida no Brasil desde o Código Eleitoral de 1932, inspiradopor Assis Brasil.

A este respeito, deve-se observar que a corrida presidencial de 1989deu-se à margem da norma histórica das eleições brasileiras por ter ocor-rido “descasada” do pleito proporcional e da disputa pelos governosestaduais. Fernando Collor de Mello pôde, assim, dominar os primeirosseis meses da campanha através de aparições na TV e de denúncias decorrupção contra o governo Sarney. Depois de atingir mais de 45% dasintenções de voto em junho, Collor recusou-se a participar dos debates

24 Sobre estabilidade e mudança eleitorais na Europa, ver: S. Bartolini, e Peter Mair,, 1990.

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no primeiro turno. Ele obteve mais de 28 % dos votos no primeiro turno,enquanto o segundo colocado, Luiz Inácio da Silva (PT), obteve 16%.Embora Lula tenha dominado o primeiro debate televisivo do segundoturno e arrancado nas pesquisas, empatando com Collor meros dez diasantes da eleição de 15 de dezembro, o candidato petista não teve desem-penho tão bom no segundo debate e não foi capaz de anular os danoscausados pela publicidade negativa feita nos últimos dias da campanha.Collor convenceu os eleitores de que uma vitória de Luiz Inácio da Silvadesestabilizaria a sociedade e faria com que o Brasil voltasse às costas aum mundo em processo de liberalização, lançando uma série de ataquespessoais e políticos sete dias antes do dia de votação. Em 15 de dezem-bro, Collor obteve 35.089.998 votos (42,7 por cento), contra 31.076.364votos (37,8 por cento) de Lula.

Em 1994, os mecanismos tradicionais da política partidário-eleitoralbrasileira - apelo popular direto somado a amplas e heterogêneas alian-ças com candidatos aos governos estaduais e ao Legislativo - descrevembem a capacidade de Fernando Henrique Cardoso para vencer a eleiçãopresidencial no primeiro turno, em 15 de novembro. A aliança eleitoralentre o PSDB (Partido da Social Democracia Brasileira) de FHC e o con-servador PFL (Partido da Frente Liberal) foi criticada por outros tucanos,por jornalistas e por intelectuais brasileiros por causa do risco de perdade eleitores de esquerda. Até o líder da campanha de FHC em 1994afirmou que a coligação com os pefelistas levaria eleitores tradicionaisdos tucanos nas áreas urbanas do Sudeste a se deslocarem para o Partidodos Trabalhadores. Mas a perspectiva aqui adotada não é a de que adimensão ideológica determine o voto. O conceito mais amplo de elei-ções críticas e realinhamento eleitoral nos leva a sustentar que a aliançaPSDB-PFL e a posterior coalizão governista tenham criado uma novadivisão política entre governo e oposição na política brasileira.

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A campanha presidencial de 1998 reforçou a tendência do eleitoradobrasileiro no sentido de dividir-se entre a aliança governista tucana e osgrupos de oposição liderados pelo PT. Novamente, as teorias das elei-ções críticas e do realinhamento eleitoral sugerem que a consolidação dademocracia brasileira desde 1988 tem a ver com a mobilização das má-quinas partidário-eleitorais na disputa entre governo e oposição por gran-des blocos de eleitores.

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A dificuldade que tiveram os candidatos dos pequenos partidos paracontestar a predominância do PSDB e do PT sugere que, após a eleiçãoexcepcional de 1989, estes dois partidos tenham consolidado alianças decentro-esquerda e centro-direita a partir de 1994. A vitória da coalizãoPT-PL em 2002 confirma o fato de que uma aliança partidária trabalhistade centro-esquerda tenha chegado ao poder muito mais rapidamente doque no histórico comparado dos partidos socialistas e trabalhistas euro-peus.

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Como ideologia, identificação partidária e outros fatores de longo pra-zo não são as principais determinantes da intenção de voto no Brasil, osdebates e a propaganda eleitoral na TV são os fatores centrais que deter-minam a eleição presidencial brasileira. Dado que o marketing políticodo País influenciou quatro eleições presidenciais desde a Constituição de1988 (sem falar em eleições estaduais, municipais e legislativas), a dinâ-mica das campanhas revela que o eleitorado brasileiro tenha sido seg-mentado em blocos de eleitores governistas e de oposição.

Tabela 5 - Tempo de Exposição na TV por coalizão (Duas Vezes aoDia)

O tempo de exposição na TV é importante porque a vasta maioria doseleitores brasileiros das classes C, D e E se revela indecisa quanto aovoto presidencial até pouca semanas antes da eleição. Eles representam

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aproximadamente 40% dos eleitores e são atingidos predominantementepela televisão.

A ascensão e queda de Roseana Sarney e de Ciro Gomes como candi-datos à Presidência em 2002 também confirma a importância da TV e avolatilidade das preferências dos eleitores nas campanhas presidenciaisbrasileiras. Uma campanha publicitária e um tour de âmbito nacional emdezembro de 2001 e janeiro de 2002 trouxeram a governadora do Maranhão,pertencente ao conservador PFL, para a vanguarda da política brasileira,com uma campanha concentrada de mídia, um estilo político bem afinadoe forte apoio dos eleitores de seu estado. As pesquisas de janeiro de2002 indicavam que a “potencial” candidata derrotaria o candidato LuizInácio da Silva por 46% a 44% se eles fossem adversários no segundoturno.

Mas as campanhas publicitárias de Roseana Sarney fracassaram frentea investigações realizados pelo Ministério Público e pela Polícia Federalsobre o envolvimento da governadora e de seu Secretário Estadual dePlanejamento (e marido) no desvio de recursos da extinta SUDAM.

A popularidade de Ciro também aumentou e diminuiu abruptamente.Ele teve uma audiência brutal na TV, bem maior que a dos outros candi-datos, elevando sua pontuação nas pesquisas de 10%, no início de junho,para 27% no início de agosto. Após o afastamento, em junho, de seucoordenador de campanha, José Carlos Martinez, por sua suposta associ-ação com o tesoureiro de campanha do ex-presidente Collor, PC Farias, ede mais um episódio de investigações sobre o candidato a vice-presiden-te, Paulinho, (por causa da suspeita de malversação de recursos do Minis-tério do Trabalho destinados a programas de treinamento promovidos porsindicatos trabalhistas), Ciro Gomes caiu, em um mês, de 27% para 12%das intenções de voto. Imagens nas quais ele se referia a um ouvinte,num programa de rádio, como um “burro” e outros momentos de aparen-te excesso emocional, enfraqueceram ainda mais sua candidatura justa-mente porque sua popularidade se baseava em imagens de honestidadepessoal e paternalismo gentil.

Mais uma observação sobre a volatilidade das intenções de voto emeleições presidenciais está ligada a fatores geográficos. As campanhaspresidenciais brasileiras são vencidas ou perdidas no contexto de gran-des blocos de eleitores indecisos em estados com grande população. Dos114 milhões de eleitores brasileiros em 2002, 25,6 milhões residem noEstado de São Paulo, enquanto Minas Gerais tem 12,6 milhões e o Rio de

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Janeiro, 10,2 milhões. Após estes grandes estados, vem a Bahia, com 8,5milhões de eleitores, o Rio Grande do Sul, com 7,3 milhões e o Paraná,com 6,6 milhões. Embora os eleitorados de Pernambuco (5,4 milhões) edo Ceará (4,8 milhões) sejam consideráveis, o número de eleitores porestado cai dramaticamente daí em diante. Isto significa que a vasta maio-ria dos votos capaz de determinar o resultado de uma eleição presidenci-al deve ser obtida nestes grandes colégios eleitorais.

Outro aspecto importante da eleição de 2002 foi a ação do SupremoTribunal Federal em prol da verticalização das coalizões eleitorais. Essadecisão trouxe problemas para as candidaturas dos pequenos partidos.Ao limitar as coligações na esfera estadual à repetição das alianças adotadaspelos partidos no nível nacional, o amplo espectro de máquinas e líderespartidários e de suas alianças nos 27 estados brasileiros viu-se dramatica-mente limitado. Uma conseqüência dessa verticalização foi a redução donúmero de possíveis parceiros das alianças eleitorais.

V - OPINIÃO PÚBLICA SOBRE O DESEMPENHO PRESIDENCIAL

Uma preocupação central dos estudiosos das presidências é a dinâmicada opinião pública na avaliação do desempenho presidencial. Embora oselevados índices positivos que predominaram durante grande parte doprimeiro mandato do presidente FHC (1994-1998) tenham decaído, asavaliações durante seu segundo mandato (1998-2002) parecem refletirum novo padrão. As pesquisas mostravam que o número de brasileirosque considera o desempenho do governo Fernando Henrique “regular”mantinha-se relativamente constante, no nível de cerca de 40%. Por outrolado, a porcentagem de brasileiros que considerava seu desempenho“ruim” ou “bom” flutuou consideravelmente face aos fatos. Por exemplo,em setembro de 1998 as pesquisas do Datafolha revelaram que apenas17% dos brasileiros desaprovavam fortemente a gestão FHC. Um anoapós, em 1999, a reprovação aumentou para 56%; dezoito meses depois,em setembro de 2001, ela diminuiu para 30%.

A volatilidade também caracterizou as percepções positivas sobre opresidente, decaindo de 43% em setembro de 1998 para 13% um anodepois, elevando-se novamente até atingir um pico de 26% em março de2001. Assim como se dá com os níveis de intenção de voto em campa-nhas presidenciais, as pesquisas revelam que a percepção do desempe-nho do presidente flutua dramaticamente.

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VI - A PRESIDÊNCIA BRASILEIRA E O GOVERNO DE COALIZÃO

Um fenômeno central da política brasileira após as eleições é a formaçãode coalizões multipartidárias para dar sustentação às iniciativas legislativasdo Executivo. Dado que o sistema multipartidário tende a impedir aformação de maioria simples no Legislativo, as relações entre os Poderesexigem a manutenção de maiorias formadas depois do pleito.

Tais coalizões governamentais não são baseadas, a priori, em discipli-na partidária ou proximidade ideológica. Mesmo assim, em vários mo-mentos os presidentes obtêm supermaiorias no Legislativo para garantir aaprovação de leis essenciais. Embora haja necessidade de análise maisaprofundada, um exame inicial dos padrões desde 1988 sugere que aspressões geradas por crises econômicas ou outros momentos políticostende a gerar alianças legislativas e períodos concentrados de produtivi-dade legislativa.

Por exemplo, durante o primeiro semestre de 1995, o presidenteFernando Henrique conseguiu aprovar uma série de Emendas Constituci-onais e de leis ordinárias e complementares, todas com grande impactona vida econômica e social do país. E estes períodos não se limitam à lua-de-mel que se segue às eleições presidenciais. Uma sessão extraordiná-ria convocada por FHC em fevereiro de 2001 transformou em lei 23 de75 Medidas Provisórias.

Qual a lógica destas supercoalizões flutuantes? A análise empírica hámuito confirmou a importância das nomeações políticas em sistemas deseparação de Poderes. Desde as agudas observações feitas por Bryce eWeber sobre as indicações presidenciais para cargos executivos, os estu-diosos reconhecem que a prerrogativa de que gozam os governantespara distribuir postos entre seus aliados é, em grande parte, responsávelpela singular trajetória do desenvolvimento político nos Estados Unidos25.

Embora as reformas do funcionalismo público americano nas décadasde 10, 70 e 90 do século XX tenham reduzido o número de indicaçõesque os presidentes podem fazer para cargos administrativos, as nomea-ções nos sistemas presidenciais são claramente diferentes da autonomiadas burocracias e dos quadros executivos de primeiro escalão dos siste-mas parlamentares26. Na década de 60, Arnold (1986), concluiu que uma

25 Hoogenboom, 1968; Ingraham, 1995; Johnson; 1994.

26 Schultz & Maranto, 1998; Stewart, 1989; Skowroneck,1982

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mudança de administração envolvia aproximadamente 150 nomeaçõesna Grã-Bretanha, contra cerca de 10.000 distribuídas pelos presidentesdos Estados Unidos. Após uma série de três reformas realizadas após osestudos de Arnold, pesquisas recentes sugerem que os presidentes dosEUA nomeiem aproximadamente 3.000 pessoas para cargos executivos27.

É evidente que as nomeações movem a política entre os Poderes noBrasil. Amorim (2001) analisou dados de períodos anteriores da democra-cia brasileira, e as evidências obtidas a partir do fim da ditadura militarparecem convincentes. Em 1985, Tancredo Neves construiu a aliançademocrática entre o PMDB e dissidente do PFL através de uma listagigantesca de nomeações, posteriormente publicada pela revista Veja.Desde a Constituição de 1988 e a reforma do Governo Federal brasileiroocorrida na década de 90, o número de indicações políticas para cargosexecutivos caiu, apesar de ser muito alto para os padrões internacionais.

Longe de representar indício de desperdício ou incompetência, esteelevado número de nomeações diz respeito à formação do governo decoalizão no sistema de separação de Poderes do Brasil. A análise empíricadas nomeações presidenciais confirma sua importância para a sustenta-ção das coalizões governistas no Legislativo28. No caso da aliança PSDB-PFL que sustentou o presidente FHC e às reformas tucanas entre 1995 e2001, embora ela tenha se esfacelado em março de 2002 com a saída dospefelistas, a administração foi capaz de garantir votações importantestípicas das supercoalizões do governo federal brasileiro.

27 Michaels, 1997, Dolan, 2000

28 Durand & Abrucio, 2000

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Além disso, a escolha dos presidentes do Senado e da Câmara em2001 redefiniu a coalizão legislativa de apoio ao presidente FernandoHenrique Cardoso. A derrota do grupo apoiado pelo senador AntonioCarlos Magalhães para o senador pemedebista Jáder Barbalho, assim comoa eleição de Aécio Neves, do PSDB, à presidência da Câmara, mudaram acorrelação de poder na aliança governista, acabando por enfraquecê-la.

Em suma, as alianças que deram sustentação ao governo tucano foramproduto de negociações oscilantes e circunstâncias mutáveis. Por exem-plo, apesar de preocupações generalizadas quanto à governabilidadeapós a saída do PFL da coalizão governista, a prorrogação da CPMF paraalém de 18 de junho, essencial para os propósitos do governo, foi apro-vada nas duas Casas. A votação se deu porque o presidente suspendeu aliberação de R$5,3 bilhões do orçamento de 2002 para cobrir perdas dereceita que adviriam da não confirmação da CPMF. Embora o PFL continu-asse a resistir, após o real cair 10% em relação ao dólar e o risco-Brasilexplodir, o Congresso aprovou a prorrogação desse tributo em 12 dejunho.

VII - A PRESIDÊNCIA BRASILEIRA E AS REFORMAS TUCANAS (1995-2002)

Após dois mandatos de quatro anos, Fernando Henrique Cardoso prepa-ra-se para deixar a seu sucessor uma Presidência substancialmente dife-rente. Neste período, o presidente conseguiu aprovar uma série de Emen-das constitucionais que deram fim a monopólios estatais e criaram novasagências federais com o objetivo de regular as empresas sob concessão.Surgiram novos mercados e ordenamentos jurídicos em setores como osde petróleo, gás natural, telecomunicações, energia elétrica, mineração etransportes. Os serviços sociais foram cada vez mais descentralizados aosgovernos estaduais e municipais. Foram fundadas agências reguladorasnas áreas de energia elétrica (ANEEL), petróleo (ANP) e telecomunica-ções (ANATEL). A reforma administrativa reduziu o número de servidoresfederais de mais de 700 mil, quando da posse de FHC, para cerca de 500mil, em 2002, além de ter modernizado e agilizado as burocracias fede-rais. As reformas financeira e fiscal adquiriram maior importância desdeque uma série de crises dos mercados emergente abalou as finançasinternacionais durante o final da década de 90, fazendo com que taxas decâmbio flexíveis, metas de inflação e a busca de superávits primáriostornassem-se políticas cruciais a partir de 1999.

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Em termos mais amplos, as mudanças organizacionais da Presidênciabrasileira durante a gestão FHC podem ser descritas como pertencentes àterceira onda de reformas administrativas, no sentido que este termo temno âmbito internacional, que visavam à reorganização da governança. OMinistério da Administração e Reforma do Estado (MARE) propôs, noinício de 1995, uma série de metas de reforma administrativa que tinhapor objetivo reformular o Governo Federal por meio do uso de métodosde administração de empresas e repassar políticas aos governos estaduaise municipais e a organizações não governamentais.

A tabela abaixo apresenta uma lista dos cargos executivos mais próxi-mos da Presidência, partindo das principais secretarias do Palácio doPlanalto ou que sejam de interesse especial para as reformas tucanas. Emseguida, vêm os ministérios de política econômica, os de política social eos militares, com variação considerável de poder dependendo do mo-mento político e da liderança do cargo.

Dada a separação física entre os ministérios e os cargos executivos lotadosno Palácio do Planalto, a Presidência tende a passar autoridade às suas prin-cipais Secretarias políticas que administram as relações com o Legislativo, oJudiciário e os ministros. Desde 1995, as questões políticas concentraram-sena Casa Civil e na Secretaria Geral, enquanto a Secretaria da Comunicaçãolida com a mídia e a imprensa e o Procurador Geral trata de questõesjurídicas. O Gabinete da Segurança Institucional concentra-se em questõesde segurança interna e a Secretaria de Negócios Estratégicos é responsá-vel pelo planejamento de mais longo prazo. O presidente fez grande usodos líderes partidários no Legislativo para fazer ligações entre os Pode-res, ao invés de nomear representantes para lidar com o Congresso.

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Outra dimensão das reformas tucanas tem a ver com os bancos doGoverno Federal. Embora muitos encarem os anos 90 como um períodode neoliberalismo no Brasil, a verdade é que em 2002 as três maioresinstituições financeiras brasileiras ainda são estatais federais. Após umadécada de investimento externo e reformas financeiras concebidas paraenquadrar os bancos brasileiros no Acordo da Basiléia II, o Executivo,comandado pela Presidência, continua mantendo iniciativas financeiras epolíticas consideráveis junto aos bancos estatais federais.

O Banco do Brasil (BB) é o principal agente de crédito e desenvolvi-mento rural, concentrando-se, também, em programas de comércio exte-rior e exportações. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico eSocial (BNDES) oferece crédito de longo prazo a setores econômicostidos como críticos pelo Governo Federal no que se refere ao desenvol-vimento social e econômico. O BNDES também coordenou o programafederal de privatização e ofereceu recursos à exportação. O Banco doNordeste (BNB) e o Banco da Amazônia (Basa) atuam em desenvolvi-mento regional. Finalmente, a Caixa Econômica Federal dedica-se tradici-onalmente ao desenvolvimento urbano, especialmente saneamento e imó-veis residenciais, e à transferência de benefícios governamentais, comopensões, programas de poupança pública e FGTS.

Em 22 de junho de 2001, o ministro da Fazenda, Pedro Malan, anun-ciou um amplo programa de refinanciamento dos bancos federais brasi-leiros. O refinanciamento injetou R$12,5 bilhões nos bancos federaispara que atendessem aos requisitos do Acordo de Capital da Basiléia e àResolução 2.682/99 do Banco Central do Brasil, que estabelece diretrizesquanto a provisões para fazer frente ao risco de crédito. As diretrizesestabelecidas pelo ministro Malan têm por objetivo salvaguardar a sobre-vivência desses bancos como agentes para a implementação de políticasdo Governo Federal, ao mesmo tempo em que cria uma proteção contrao surgimento de grandes passivos. Numa perspectiva comparada, os ban-cos estatais federais são uma excelente ferramenta para a implementaçãode políticas pelo presidente, o que sugere que as reformas tucanas estãolonge de uma redução neoliberal do Estado. Por exemplo, o investimentototal do BNDES quadruplicou durante a Administração FHC, atingindouma estimativa de 25,5 bilhões de reais em 1997 (quando a moedaestava sobrevalorizada), muito mais do que os investimentos de institui-ções financeiras internacionais como o Banco Mundial e o Fundo Monetá-rio Internacional.

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VIII - A PRESIDÊNCIA E O PROCESSO ORÇAMENTÁRIO

As reformas tucanas incluem novos mecanismos de propositura, debate eimplementação do Orçamento federal. O primeiro plano trienal foi pro-posto em 1996, ao passo que a Lei da Responsabilidade Fiscal e a Lei doOrçamento Anual foram aprovadas em 2000. O governo também abriumais o processo político orçamentário ao escrutínio público. A MedidaProvisória 1550 estabeleceu, em 1995, novos procedimentos para o Sis-tema de Planejamento e Orçamento Federal. A Lei do Orçamento Anual ea Lei da Responsabilidade Fiscal estabeleceram regras claras para trans-formar as projeções orçamentárias dos Planos Plurianuais (de 3 a 5 anos)em metas anuais de gastos, que passaram a ser rigidamente aplicadas sobsupervisão do Legislativo e do Judiciário, além de ter sido estabelecidaresponsabilização penal dos administradores que não cumprissem certosparâmetros orçamentários.

A Administração FHC também criou o Sistema Trienal de Acompanha-mento Orçamentário, concebido para monitorar os gastos do governo eproporcionar informações precisas e atualizadas às comissões de examedos Poderes Executivo e Legislativo. Estes novos procedimentos orça-mentários têm por objetivo complementar as iniciativas de reforma admi-nistrativa. Em suma, ao contrário dos antigos padrões de emendas exces-sivas e lutas para liberar recursos, os gastos governamentais de 2003deverão refletir o orçamento proposto ou exigirão aprovação do Con-gresso para que mudanças sejam feitas.

Outro fato crucial para o processo orçamentário é a modernização dacaptação de impostos. Durante os sete anos do governo Fernando Henrique,a arrecadação cresceu 42,7% em termos reais. A carga tributária brasileira em2001 superou 34% do PIB, um nível consideravelmente mais elevado doque o da maioria das economias emergentes e semelhante à carga tradicio-nalmente elevada dos países europeus. Embora os economistas enfatizemde forma consistente as vantagens teóricas da simplificação do sistema deimpostos brasileiro, os recentes esforços de reforma tributária fracassarampor ameaçarem alterar dramaticamente os fluxos de recursos para os níveisfederal, estadual e municipal. Os políticos brasileiros não foram capazes defirmar acordos aceitáveis para os diversos entes federativos.

O caráter gradualista das relações entre os Poderes pode ser visto nofracasso de iniciativas mais amplas de reforma tributária. O presidenteFHC foi mal sucedido em três importantes tentativas de mudar os impos-

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tos desde sua posse em 1995. Naquele ano, o então Ministro do Planeja-mento, José Serra, propôs alterar o ICMS. Mas alertas vindos das autorida-des fiscais federais e a oposição feita pelos governadores impediram queo projeto se transformasse em lei. Em 1997, novas iniciativas com vistas àsubstituição do ICMS geraram cinco projetos no Congresso, mas nenhumdeles foi aprovado. Em 1999 o Congresso tentou aprovar uma lei quetinha por objetivo eliminar os impostos cumulativos e alterar o cálculo doICMS, mas o Secretário da Receita Federal, Everardo Maciel, alertou quehaveria uma queda dramática da arrecadação se as medidas fossemimplementadas, gerando um novo veto no sistema. Finalmente, em 1999,criou-se uma comissão com representantes do Congresso, do Ministérioda Fazenda e dos governos estaduais para criar uma agenda legislativapara a reforma tributária. E apesar do caráter gradualista das reformas,finalmente submetidas à apreciação do Congresso durante 2001 (paraunificar a legislação do ICMS e eliminar o acúmulo das contribuições parao PIS-Pasep), o projeto continuou encalhado nas Comissões do Congres-so. Em suma, até que surja entre os políticos e os governos federal,estaduais e municipais um consenso mais amplo, parece que as reformastributárias não serão capazes de angariar apoio.

As reformas tucanas foram concebidas para aumentar a capacidade daPresidência em atingir metas prioritárias. Durante seu segundo mandato,Fernando Henrique conduziu esforços governamentais presentes em 355programas, os quais serão concluídos até o final de 2002. Eles se concen-tram em gargalos de infraestrutura, educação fundamental e trabalho in-fantil, saúde e outros projetos de desenvolvimento social e econômico.Apesar das dificuldades em cumprir programas tão amplos, o “AvançaBrasil” dispõe de recursos consideráveis no orçamento para 2002, mes-mo com os ajustes referentes ao cumprimento das metas do FMI29. Ade-mais, estes 355 programas do Avança Brasil serão implantados por umageração recém-contratada de administradores federais, que respondemdiretamente à Presidência e são treinados para implantar programas queenvolvam diversos ministérios e agências governamentais, organizaçõesnão-governamentais e autoridades estaduais e municipais.

29 Metas do Avança Brasil: Ministério das Minas e Energia R$20,488 bilhões, Ministério do Desenvol-

vimento, Indústria e Comércio Internacional R$11,950 bilhões, Ministério da Saúde R$9,055 bilhões,Secretaria Especial do Desenvolvimento Urbano R$6,952 bilhões, Ministério da Educação R$6,107bilhões, Ministério do Desenvolvimento Agrário - PRONAF R$4,979 bilhões, Ministério dos Transpor-tes R$2,729 bilhões, Ministério da Comunicação R$1,025 bilhões.

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Finalmente, um desafio crucial no que tange aos orçamentos é garantira continuidade administrativa durante mudanças de governo. Neste senti-do, a Administração FHC introduziu uma série de mecanismos para facili-tar a governança após as eleições de outubro de 2002. O presidenteconvidou os quatro principais candidatos para uma reunião, em 19 deagosto, a fim de discutir os mecanismos de transição e quais são asobrigações futuras nos termos do acordo com o FMI. Além disso, FernandoHenrique, pela primeira na história brasileira, autorizou a criação de 50cargos e a instalação de espaço físico para a equipe de transição dopresidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, estabelecendo também umaagenda que determina quais são as questões mais prementes que baterãoà porta do novo governo nos primeiros cem dias.

IX - A PRESIDÊNCIA E A POLÍTICA ECONÔMICA

Numa perspectiva mais ampla, a política econômica do primeiro man-dato do presidente Fernando Henrique pode ser descrita como umdeslocamento em relação ao tradicional modelo brasileiro do desen-volvimento encabeçado pelo Estado para um novo regime que procu-ra basear-se no equilíbrio entre as forças do mercado e a regulaçãogovernamental. A legislação necessária para este novo regime, basea-do no fim dos monopólios e em agências reguladoras, foi concluídaentre 1995 e 1998, abrangendo diversas Emendas Constitucionais -que exigem maioria qualificada de dois terços dos votos tanto noSenado quanto na Câmara dos Deputados - e diversas leis comple-mentares concebidas para concluir as privatizações e garantir a com-petição no mercado.

Novas agências federais foram criadas para regular os setores de ener-gia elétrica (ANEEL) e de telecomunicações (ANATEL), enquanto a Agên-cia Nacional do Petróleo (ANP) substituiu o monopólio da Petrobrás pormeio de novos mecanismos de concessão, privatizações e joint-ventures.Os leilões de concessões de exploração e extração de petróleo em áreasanteriormente reservadas à Petrobrás, realizados em junho de 1999, sãoexemplo das mudanças fundamentais que se deram na estrutura da eco-nomia brasileira. Ao invés do tradicional modelo de planejamento centrale investimento dirigido por empresas estatais, o novo regime consiste deagências reguladoras que procuram garantir a presença de mercados com-petitivos.

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A seqüência de liberalização, ajuste e crescimento econômico (apesardas crises e dos choques econômicos) que se deu nos anos 90 alteroucaracterísticas fundamentais da economia brasileira. Iniciativas amplas deliberalização e privatização iniciadas pelo presidente Collor, em 1992,continuaram com Fernando Henrique, apesar de uma sucessão de criseseconômicas internacionais. Com a abertura comercial em andamento, oPlano Real (julho de 1994) reduziu a inflação e levou a um período decrescimento econômico gerado pelo consumo popular.

Após a liberalização e de um período de crescimento causado peloconsumo, a economia brasileira passou, em 1996-1997, para um novoperíodo em que o crescimento foi movido por investimentos de capital,basicamente estrangeiro. A maior concorrência por parte de produtosimportados, uma explosão de gastos de consumo entre as classes popula-res (por breve que tenha sido) e um período subseqüente de investimen-tos de capital parecem ter modernizado consideravelmente a indústria eo comércio brasileiros, ao passo que a volatilidade da economia interna-cional elevou os custos do ajuste e perturbou periodicamente os fluxosde capitais. Estas tendências internas se deram apesar de uma série decrises monetárias no exterior (México, no final de 1994, Ásia em 1997,Rússia em 1998, Argentina em 2001) que abalaram a confiança dos in-vestidores internacionais nas economias emergentes em geral.

Esta combinação de uma política econômica interna mais aberta comfinanças internacionais mais voláteis durante os anos 90 alterou a estrutu-ra básica da economia brasileira. Mas longe de simplesmente incorporara ideologia neoliberal, as políticas tucanas foram inspiradas por teoriasheterodoxas de inflação inercial e por uma coalizão interna em nome docrescimento. A capacidade de sustentar a redistribuição de riqueza paraos setores populares durante a redução da inflação, e as medidas deliberalização econômica entre 1995 e 1997, diferem significativamenteda pobreza crescente causada pela política econômica neoliberal emeconomias avançadas como as da Inglaterra e dos EUA, ou nos vizinhosChile e Argentina.

A Administração FHC vendeu um número inédito de empresas estataisno período 1995-1998, com o objetivo de iniciar esta transição das políti-cas antigas de desenvolvimento encabeçadas pelo Estado para o novoregime das agências reguladoras. Durante o primeiro mandato do presi-dente Fernando Henrique, foram leiloadas 22 empresas estatais, numvalor total de mais de 36 bilhões de dólares. A venda da TELEBRÁS em

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30 de julho de 1998 exemplifica esta mudança da política econômica. Oleilão de quatro companhias de telefonia fixa e oito mercados celularescindidos do monopólio estatal de telefonia deu-se em 30 de julho de1998, atingindo um total de 22,058 bilhões de dólares, mais de 63% alémdo lance mínimo estabelecido pelo governo.

A privatização da TELEBRÁS coroou o novo desenho de governançapresidencial, com sua passagem dos monopólios estatais em setores es-tratégicos para um novo regime baseado em agências reguladoras. Estapassagem da administração direta de monopólios estatais para a regulaçãode empresas privadas e mecanismos de mercado foi concebida parareduzir os gastos federais, diminuir o custo dos serviços básicos e moder-nizar a infra-estrutura brasileira em setores que passaram por notáveisavanços tecnológicos nos últimos anos.

Os níveis de investimento estrangeiro direto caíram desde o pico deaproximadamente US$ 33 bilhões em 1999 para uma previsão de 16bilhões em 2002. As três políticas econômicas centrais estabelecidas des-de 1999 - taxa de câmbio flexível, metas de inflação e disciplina fiscal -sugerem que tenha ocorrido, desde 2001, um ajuste por meio da desvalo-rização. O acordo stand-by de US$15.65 bilhões firmado em setembro de2001 entre o Brasil e o Fundo Monetário Internacional, como o acordoanterior de 1998, difere substancialmente dos acordos tradicionais do FMIpor estabelecer metas de desempenho, mas não as políticas (tradicional-mente ortodoxas) a serem adotadas. Em outras palavras, o governo brasi-leiro é responsável por atingir metas de superávit primário, inflação edívida pública por intermédio das políticas que julgar necessárias.

Desde 1999 o Brasil vem atingindo todas as metas estabelecidas nosacordos com o FMI. Em setembro de 2001, fez-se outro acordo com oFMI para aliviar as preocupações quanto às intervenções do governo nosmercados de câmbio e suas obrigações vindouras em moeda estrangei-ra30. O último acordo aconteceu no final de agosto de 2002, concebidopara superar o período de campanhas eleitorais e transição governamen-tal, nos quais houve um enxugamento das linhas de crédito internacio-nais.

Se comparado ao acordo anterior entre os Brasil e o Fundo, o novo

30 As metas do acordo com o FMI de setembro de 2001 incluem: Superávit Primário do Setor Público

de R$40,2 bilhões, Dívida Externa Privada com Garantia Pública de US$94,8 bilhões, Dívida ExternaPública Não-Financeira de US$3,5 bilhões e Reservas Internacionais Líquidas de US$20,0 bilhões.

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exige cortes adicionais de R$1,69 bilhões dos gastos do governo durante2002 para garantir um superávit primário (desconsiderados os pagamen-tos de juros) de 3,88% do PIB (contra 3,75 por cento, ou de R$48,66bilhões para R$50,35 bilhões). O governo brasileiro também concordouem limitar os hedges indexados pelo câmbio para impedir a inflação dadívida atrelada ao dólar, mas manteve o piso de US$5,0 bilhões para asreservas em moeda estrangeira.

O acordo entre o Brasil e o FMI também contém novas metas de reformasestruturais a serem implementada a partir de setembro de 2002, inclusive odesenvolvimento de indicadores de solidez bancária, a expansão dos sistemas demonitoramento dos dados contábeis dos bancos e a conclusão de uma auditoriainterna do Banco Central do Brasil. Além disso, o acordo exige que haja avanços,até dezembro de 2002, no que toca à transformação dos atuais tributos PIS eCofins (impostos sobre o faturamento total das empresas) em impostos sobre ovalor agregado, a conclusão de leis que criam fundos de pensão complementarespara funcionários públicos federais, avanços em relação à privatização dos quatrobancos estaduais que ainda se encontram sob a autoridade do Governo Federal eprogresso na substituição de futuras quedas de arrecadação que se darão se a alíquotada CPMF diminuir de 0,38% para 0,08% cento em janeiro de 2004. Emsuma, os acordos com o FMI foram cruciais para a implementação dereformas econômicas e financeiras durante o período de transição entreos governos.

X - A PRESIDÊNCIA E A POLÍTICA SOCIAL

A política social tucana procurou, basicamente, descentralizar aimplementação e mobilizar organizações sociais para reduzir custos, au-mentar a eficiência e dar maior poder de participação à sociedade. Para-doxalmente, os maiores avanços na área social decorreram da políticaeconômica. A redução da inflação em 1994 aumentou de forma significa-tiva os salários das classes populares, ganhos estes que foram sustentadosaté 1997. Desde então, os programas de Saúde, Educação e o Comunida-de Solidária, mesmo não resolvendo completamente as enormes desi-gualdades sociais brasileiras, desenvolverem estratégias fundamentalmentenovas de iniciativa presidencial em termos de política social.

O programa Comunidade Solidária foi anunciado em 1995 como umesforço para mobilizar organizações sociais e recursos governamentaisexistentes em diferentes ministérios, com ênfase no auxilio aos municípi-

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os mais pobres do país. As diferenças de caráter entre estas duas atribui-ções levou à separação da Comunidade Solidária em dois programas cadavez mais diferenciados: a Secretaria Executiva, que procura ligar progra-mas federais, e o Conselho Solidário, que tem por missão mobilizar e darpoder à sociedade civil. A Secretaria Executiva procurou diminuir a po-breza concentrando-se nos municípios (1.369 em 1997) que apresentamos piores indicadores sociais, segundos os levantamentos do IBGE ligan-do, diversos programas federais existentes (principalmente nas áreas deEducação Fundamental, Saneamento, Moradia e Mortalidade Infantil). OConselho da Comunidade Solidária concentrou-se na mobilização de vo-luntários junto à sociedade civil e organizações sociais para implementaruma série de novos programas concebidos para abordar o analfabetismo,oferecer treinamento profissional, organizar a participação de voluntáriosem programas contra a pobreza e reforçar a sociedade civil por meio doesclarecimento dos parâmetros aplicáveis às entidades sem fins lucrati-vos e às organizações não-governamentais brasileiras.

Alguns programas na área educacional tiveram destaque. Primeiro, alei que criou o Fundo para o Desenvolvimento da Educação Fundamental(FUNDEF), baseado na distribuição direta de 15% das receitas do ICMS edo IPI entre estados e municípios (FPE e FPM). Os recursos passaram aser distribuídos diretamente a 4.000 municípios, de acordo com o númerode alunos matriculados no ano anterior (com base nos dados do CensoEscolar do Ministério da Educação). O Governo Federal oferece umagarantia adicional de um mínimo de R$300 por aluno. Estas medidasreforçam a descentralização da educação fundamental. O Programa Esco-la Pública - Gestão Eficiente foi criado para regular esta liberação diretade recursos para as escolas e mobilizar organizações sociais, ao invés dedepender das instituições política tradicionais do plano subnacional. O

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número de escolas secundárias que recebem recursos diretamente doMinistério da Educação elevou-se de 6%, em 1996, para 45 %, em 1997.

A Administração FHC também desenvolveu diversas iniciativas na áreade Saúde, com medidas que procuram elevar e melhorar a prestaçãouniversal, facilitar o acesso a serviços básicos em áreas rurais e regiõesmenos desenvolvidas e programas voltados a problemas de saúde espe-cíficos. Primeiro, a lei do Piso Assistencial Básico (PAB), que determinouos níveis mínimos de gasto por pessoa, aplicáveis aos municípios brasi-leiros. Em segundo lugar, para criar a infraestrutura e os serviços necessá-rios para utilizar esta quota, foi criada uma série de iniciativas para des-centralizar os gastos, mobilizar grupos sociais e ligar municípios isolados.Uma nova Norma Operacional Básica alterou os regulamentos do SistemaÚnico de Saúde, delegando responsabilidades e gastos para autoridadesestaduais e municipais, processo condicionado à participação social e àsalocações orçamentárias. Em 1998, 4.554 municípios foram beneficiadospor quotas do Fundo Nacional de Saúde.

Além das mudanças estruturais de descentralização e mobilização so-cial, as políticas tucanas procuraram deslocar gastos do tratamento hospi-talar para a medicina e a saúde preventivas. O Programa ComunidadeSolidária dirigiu esforços consideráveis para o treinamento de agentes desaúde comunitários, equipes médicas locais treinadas em procedimentosde saúde familiar e implementação de medidas voltadas para mães ebebês nos municípios mais pobres do Brasil. Finalmente, o presidenteFHC anunciou, em maio de 2002, um novo Cartão da Cidadania, concebi-do para agilizar a distribuição de serviços sociais aos pobres e evitar otradicional controle das políticas sociais pelas máquinas políticas. No Or-çamento para 2002, cinco programas existentes foram unificados em umsó cartão eletrônico, qualificando-se para receber estes serviços sociaisas famílias que ganham menos de meio salário mínimo31. Os recursosalocados em 2002 para estes serviços, num total de R$29,4 bilhões,foram administrados por meio do Cartão da Cidadania.

31 Despesas com alimentação infantil: R$15,00 por criança até três anos de idade (R$300 milhões com

208 mil beneficiários, meta de R$1,6 bilhão para 2002), Despesas no combate ao trabalho infantil,para crianças entre 7 e 14 anos de idade: R$25,00 em áreas rurais e R$40,00 em áreas urbanas(R$411 milhões, 801 mil beneficiários, meta de R$813 milhões para 2002), Despesas com educação:R$15,00 por criança matriculada de até três anos de idade (R$2,1 bilhões, 8,5 milhões de beneficiários,meta de 10,2 milhões de beneficiários para 2002), Despesas com a juventude brasileira, para adoles-centes entre 15 e 17 anos de idade: R$65,00 por mês (desembolso de R$52 milhões meta de 100 milbeneficiários para 2002), Tíquetes de gás de cozinha: R$7,50 (R$956 milhões no orçamento de 2002,beneficiando mais de 9 milhões de famílias).

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Finalmente, as reformas tucanas incluem assentamentos agrícolas. Osnúmeros, o porte e a complexidade dos programas de reforma agráriasugerem a ocorrência de grandes mudanças políticas durante os manda-tos de Fernando Henrique Cardoso. Documentos emitidos pelo governoafirmam que foram beneficiadas mais de 287 mil famílias em 2.356 as-sentamentos de reforma agrária durante os quatro primeiros anos da Pre-sidência FHC (1995-1998). A área abrangida supera sete milhões dehectares desapropriados por serem improdutivos, mais dois milhões vin-dos de outras fontes, totalizando mais de nove milhões de hectares. Noque se refere a investimento, crédito e garantias, o Governo Federalcontribuiu com 1,243 bilhões de reais, com investimento adicional de 35milhões destinados a áreas do Nordeste atingidas pela seca32.

Além disso, foram criadas por Medida Provisória e posteriormenteconfirmadas pelo Congresso, em 1996, leis que regulamentam as condi-ções de desapropriação e avaliação judicial de áreas litigiosas. A Lei doRito Sumário foi concebida para acelerar a desapropriação, a adjudicaçãoe o assentamento. Esta lei reduziu o tempo médio de assentamento de467 dias, em 1995, para 131, em 1998. A Lei 9.415/96 também conce-deu à União poderes para intervir em disputas por terras e supervisionara devolução ou distribuição de terras após a sentença judicial. Estas leissimplificaram aceleraram e pacificaram a desapropriação de terras aodefinirem os critérios que definem áreas improdutivas, limitando a 15dias os atrasos causados pela não-citação, aumentando os impostos inci-dentes sobre litígios fundiários e proibindo a desapropriação de terrasocupadas unilateralmente por movimentos de trabalhadores rurais. ODecreto 2.250/97 também permitiu que as organizações de trabalhadoresrurais indicassem áreas para possível desapropriação, por meio de notifi-cação dos proprietários pelo governo, pela análise de sentenças judiciais,e, uma vez demarcadas as áreas, para o assentamento de sem-terra.

32 Ao unir diversos programas federais existentes, a Administração FHC também procurou aumentar

os investimentos em infra-estrutura em áreas de reforma agrária. Empregou-se um total de R$ 419milhões para instalar eletricidade (9.275 km de cabos), estradas rurais (27.000 km), mais de 1.200poços artesianos, instalações de armazenagem e celeiros, escolas rurais (323) e postos de saúde(366). Mais de 115 mil famílias de áreas de reforma agrária também participaram de um programa decrédito (o Programa de Crédito Especial para a Reforma Agrária, PROCERA) que financia a constru-ção de imóveis residenciais no valor de até R$2.500,00 por família com taxas de juros reduzidas.

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XI - A PRESIDÊNCIA E A POLÍTICA EXTERNA TUCANA

Desde a passagem de Fernando Henrique Cardoso pelo Ministério dasRelações Exteriores, entre 1992 e 1993, a política externa brasileira pro-curou estabelecer o país como uma plataforma de comércio global,aprofundar a integração regional (com o Mercosul e a América do Sul) eexpandir as agendas dos países em desenvolvimento na OrganizaçãoMundial do Comércio e nas Nações Unidas, ao mesmo tempo em queeram mantidas alianças cruciais com os EUA e o hemisfério ocidental.Uma década após o Tratado de Assunção, o comércio no Mercosul atin-giu US$18 bilhões em 2000 (antes da crise econômica), enquanto o in-vestimento estrangeiro nos seus países membros chegou a US$135 bi-lhões entre 1998 e 2000. Apesar do impacto da crise econômica naArgentina e no Uruguai, as negociações para ampliar os acordos comerci-ais do Mercosul para que incluam tarifas externas comuns e aceitar novosmembros continuaram durante 2000 e 2001. A política externa tucanaprocurou expandir e aprofundar a integração regional no contexto daaproximação das negociações da ALCA, em 2005.

A reunião de cúpula de chefes de Estado sul americanos realizada emBrasília, em setembro 2000, aprofundou a agenda da Iniciativa deIntegração da Infra-Estrutura Regional Sul Americana, definindo tanto ei-xos específicos de integração quanto comitês para a implementação deprojetos. Os projetos de integração de infra-estrutura serão financiadosprincipalmente pelo setor privado, encabeçado pelo Banco Mundial, peloBanco Interamericano de Desenvolvimento e pelos governos. Em setem-bro de 2001 foi criada por Medida Provisória uma Comissão Interministerialque envolve os ministérios brasileiros das Relações Exteriores, do Plane-jamento, das Minas e Energia, das Comunicações e do Transporte paraimplementar os projetos de infraestrutura que visam a integrar a Américado Sul nos próximos dez anos e elevar os níveis de desenvolvimentoeconômico e social.

As negociações comerciais também estiveram no centro das atençõesda política externa brasileira durante os anos 90, com disputas perante aOrganização Mundial do Comércio com governos da União Européia, como Canadá e os Estados Unidos, trazendo à baila divergências fundamentaisquanto a barreiras tarifárias e não-tarifárias contra exportações agrícolas (eindustriais) brasileiras, ao mesmo tempo em que foram desenvolvidas re-gras mais claras sobre anti-dumping e subsídios à exportação.

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A crescente separação entre os Poderes também parece caracterizar acondução da política externa durante a década de 90. Ao invés do tradici-onal monopólio por parte da Presidência e do Ministério das RelaçõesExteriores, as Comissões de Relações Exteriores da Câmara dos Deputa-dos e do Senado, além de comissões temáticas, juntamente com as Co-missões de Comércio Exterior - que envolvem a comunidade empresarial- aumentaram sua presença, antes quase insignificante, o que sugere quea política externa tenha se tornado mais complexa e esteja mais dispersaentre as instituições políticas brasileiras. De fato, foram estabelecidos nosestados brasileiros escritórios regionais do Ministério das Relações Exteri-ores e outras iniciativas privadas aumentaram o número de agentes e deinfluências sobre a formulação e a implementação da política externabrasileira.

Medidas adotadas pelos Estados Unidos desde 2001 para aumentar astarifas sobre o aço (5 de março), expandir os subsídios agrícolas concedi-dos sob a Farm Bill e emendar a legislação pelo Trade Promotion Authoritynecessária para que o Presidente Bush negociasse pactos comerciais,afetaram as políticas externas adotadas pelo governo brasileiro. Ao invésde um consenso relutante quanto à inevitabilidade do acordo da ALCAsob a liderança hemisférica dos Estados Unidos, o governo FHC recorreuaos parceiros do Mercosul, à Comunidade Européia e a países asiáticospara compensar o temor de se perder o acesso aos mercados americanos.Isto reforçou a visão do Brasil como plataforma global de comércio comrelações dispersas entre cinco regiões.

CONCLUSÃO

Este estudo apresenta um breve panorama da trajetória da Presidência daRepública e das instituições políticas brasileiras desde a Constituição de1988. Em linhas gerais, a conclusão central é a de que houve uma cres-cente separação de Poderes. Numa perspectiva mais ampla de sociologiapolítica, que procura inserir as instituições políticas em seu contextosocial e econômico, constatou-se que o fim da inflação elevada, em1994, criou uma conjuntura critica para a política brasileira. No que tangeàs políticas de governo, houve uma passagem dos modelos tradicionaisde substituição de importações e desenvolvimento encabeçados peloEstado para um novo tipo de atuação que envolve a privatização deempresas estatais selecionadas em áreas capazes de atrair avanços

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tecnológicos, a reforma da administração governamental e a redefiniçãodos elos entre o aparelho estatal e a sociedade, por meio de uma maioração das organizações não-governamentais e da descentralização de atri-buições e poder aos governos estaduais e municipais.

Constatou-se, também, no terreno da política partidária e eleitoral quea corrida presidencial de 1994 pode ser vista como uma eleição crítica,que produziu um novo alinhamento político caracterizado pela separaçãoentre o governo tucano e a oposição. Uma análise inicial dos resultadosdas eleições nacionais de 1994, 1998 e 2002 sugere a emergência, napolítica brasileira, de novos padrões nacionais, de eleitores e máquinaspartidárias pró e contra o governo. Os mecanismos do governo presiden-cial de coalizão aprofundaram esta nova divisão política, por meio de umasérie de alianças mutáveis baseadas em afinidade partidária, nomeaçõespara cargos executivos e uma gama de relações entre Poderes num sistemafederal complexo. Em suma, estes padrões surgidos desde a Constituiçãode 1988 revelam o surgimento de um Governo Federal ancorado numprocesso político mais complexo, contestado e de soma positiva.

A crescente separação e difusão de poderes entre as instituições polí-ticas brasileiras, desde 1988, parece ter produzido um grau significativode especialização e profissionalização entre os quadros da Presidência daRepública. Deve-se observar que as relações cada vez mais complexascom o Judiciário, o Legislativo, os ministérios, os governos estaduais emunicipais, os meios de comunicação e a opinião pública, além dasrelações internacionais, coincidiram com a informatização do Palácio doPlanalto durante a década de 90. Neste aspecto, as reformas tucanasincluíram a formação do Sistema Integrado de Informações Organizacionais(SIORG), concebido para ligar as principais fontes de informação doGoverno Federal e torná-las disponíveis ao público por meio da Internet.

Talvez este seja um dos maiores legados das reformas tucanas: a mo-dernização e profissionalização dos quadros administrativos, que passa-ram a se basear em mais e melhores informações, distribuídas com velo-cidade maior do que a dos antigos procedimentos burocráticos, que redu-ziam a agilidade das decisões presidenciais. Embora seja difícil separardesenvolvimentos institucionais duradouros de estilos presidenciais pes-soais, parece provável que os novos sistemas de informações legislativas,judiciais e políticas, desenvolvidos para auxiliar a Presidência de FernandoHenrique, sejam úteis no futuro, qualquer que seja o estilo pessoal adota-do pelo futuro presidente.

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Concluindo, esta análise sugere ser oportuno o alerta de O’Donnelpara que se proceda a uma análise empírica mais cuidadosa das novasexperiências democráticas no Sul e no Oriente. Com efeito, em vez derepetir trajetórias anteriores das poliarquias européias e norte-america-nas, numa concepção eurocêntrica, esta breve investigação da experiên-cia brasileira revela uma separação crescente de Poderes a partir daConstituição de 1988. Estas características emergentes da democracia bra-sileira exigem maior análise empírica e conceitualização mais precisa. Eeste argumento sobre o nível das instituições políticas federais brasileirasnão tem por objetivo, certamente, negar ou ocultar os enormes níveis deexclusão social e econômica, mas sugerir que o caminho brasileiro podeser substancialmente diferente.

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AS REFORMAS E AS

TRANSFORMAÇÕES NO PAPEL DO

ESTADO: O BRASIL EM

PERSPECTIVA COMPARADAFlávio da Cunha Rezende

1

INTRODUÇÃO

A transformação da lógica de organização do Estado, de seu funciona-mento e intervenção na economia e na sociedade tem sido um dos pon-tos de consenso na agenda dos ’90, a “década das reformas”. Reformar oaparelho estatal e suas instituições aparece como uma das respostas aosprocessos de crise fiscal, democratização e globalização dos mercadosque se intensificaram nas duas últimas décadas. Sob as mais diversaslógicas, formatos e processos, os governos procuraram encontrar novoscaminhos, em busca de eficiência e efetividade nas políticas públicas.Fazer o Estado funcionar melhor e a um menor custo tornou-se a palavrade ordem.

Dois eixos orientaram o modelo básico de reformas: o ajuste fiscal e amudança institucional. Do ponto de vista financeiro, a idéia motriz foi arevisão do grau excessivo de intervenção do Estado na economia e nasociedade, ajustando-o ao contexto de globalização. Tornar o Estado maiseficiente, revisando sua intervenção e o tamanho da administração públi-ca, com gastos mais voltados para as funções clássicas (core functions),foram objetivos centrais. Neste sentido, as políticas de reforma combina-ram, sob as mais diferentes formas, políticas de privatização, eficiênciafiscal, bem como a redefinição do nível e perfil das despesas públicas.

O outro eixo das reformas contemplou aspectos mais voltados para oajuste do papel do Estado e de suas políticas aos contextos democráticos.Neste sentido, as reformas buscaram implementar mudanças estruturais

1 Professor /Pesquisador do Mestrado e Doutorado em Ciência Política na Universidade Federal de

Pernambuco. PhD em Políticas Públicas e Planejamento pela Cornell University, EUA.

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nos processos de redesenho e modernização das instituições públicas,das estruturas burocráticas de delegação e controle, a ampliação dosmecanismos descentralizados de gestão social das políticas públicas, alémda incorporação de modelos de regulação social e econômica. Especial-mente em contextos federativos, como o brasileiro, as reformas amplifi-caram a transferência de funções, papéis e responsabilidades para osgovernos locais. Tornar as políticas governamentais mais próximas doscidadãos foi uma tônica nestes processos.

As reformas administrativas orientadas pela performance, como severá adiante, adquiriram grande relevância neste conjunto de transforma-ções. Foi por intermédio destas políticas que os governos combinaramtentativas de mudanças institucionais e de ajuste fiscal. Tais iniciativasvisaram fundamentalmente a melhorar o desempenho do setor público,por meio de medidas destinadas a controlar a expansão dos gastos públi-cos, transformar o padrão das despesas governamentais, e promover im-portantes inovações institucionais, alterando a matriz institucional de or-ganização e funcionamento dos aparatos do Estado.

Acompanhando a tendência mundial, o Brasil foi um dos alvos privile-giados de tal transformação no papel do Estado, que se intensificou noperíodo 1994-2002, com a gestão Fernando Henrique Cardoso. A refor-ma da gestão pública, combinando ajuste fiscal com mudança institucional,foi um dos aspectos centrais deste processo de mudanças.

O presente artigo busca identificar as principais tendências das trans-formações realizadas no papel do Estado, ao longo das duas décadas deexperiências de implementação de reformas. A partir de uma perspecti-va comparada, examina um conjunto de países, ressaltando a especificidadedo caso brasileiro. A análise utiliza duas fontes de informação. Uma decunho mais quantitativo, que procura dar conta de variações temporaisem um conjunto de indicadores, utilizados classicamente para analisar opapel do Estado (REZENDE 1996, 2002b). Neste ponto, a referência éuma amostra de larga escala, constituída por dados coletados junto abases tradicionais de agências multilaterais como o Banco Mundial, oFundo Monetário Internacional e a OECD. De outro lado, realiza umbalanço de corte qualitativo, tendo como referencial estudos comparati-vos de avaliação das reformas gerenciais no mundo (WORLD BANK,1997,BANGURA, 2000; KAMARCK, 2002; POLLITT e BOUCKAERT, 2002;JANN e REICHARD, 2002).

O balanço comparativo desenvolve-se a partir de três eixos analíticos,

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distintos e complementares. No primeiro, o objetivo é identificar a natu-reza, as razões e os propósitos para a implementação global de uma nova“onda” de políticas de reforma do Estado. Em seguida, avaliam-se a mag-nitude e o sentido das transformações no padrão de intervenção estatal.Pergunta-se, especificamente, se as reformas produziram mudanças sig-nificativas e se existe diferença marcante nos governos atuais, em termosregionais ou mesmo em função do nível de renda dos países. Em casopositivo, procura-se saber quais são os traços distintivos de tais altera-ções.

A análise comparada procura detectar as tendências com relação àredução do tamanho do Estado, ao grau de intervenção do setor público,à mudança no perfil e composição dos gastos, à força de trabalho estatal,à privatização e descentralização. Por fim, pergunta-se em que grau,direção e sentido processaram-se tais mudanças quando considerado ocaso brasileiro, que foi um dos maiores reformadores na América Latina.Pretende-se avaliar qualitativamente os limites de implementação daspolíticas, mostrando que, apesar dos avanços, os resultados ainda sãotímidos, especialmente no que se refere aos processos ensejados demudança institucional.

I - AS POLÍTICAS DE REFORMA DO ESTADO: RAZÕES, NATUREZA E PROPÓSITOS.

De modo inédito na história contemporânea, um conjunto considerávelde países moveu-se, rapidamente, no sentido da redefinição do papel edas funções do Estado, que se materializaram em programas planejadosde mudança institucional e ajuste fiscal - o que se convencionou chamarde “Reforma do Estado”. Transformar o papel, a natureza, e o modusoperandi do Estado e suas instituições constitui hoje tarefa central paragovernantes em países ricos ou pobres e em qualquer escala de governo.Raros foram os casos de nações que não implementaram tais políticas,visando a elevar sua performance num mundo progressivamente demo-crático, globalizado e, comparado aos “anos dourados” do pós Guerra,com escassez de recursos para financiar a expansão da atividade gover-namental.

Assim, em toda parte estava claro que os novos macro-condicionantesnão permitiam que os governos mantivessem o seu papel tradicional doEstado. Isso valia tanto nos países que, desde sua origem, perseguirammodelos de desenvolvimento orientados para o mercado, como as demo-

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cracias liberais, quanto em nações onde dominavam as social-democraci-as, com forte tradição de Welfare State, e ainda nas jovens democraciaslatino-americanas, que centraram seus processos de state-building emmodelos de forte intervenção estatal. A reforma do Estado tornou-se umimperativo. Reduzir os gastos públicos, aliviar os impactos da crise fiscal,compatibilizar os padrões de intervenção e desempenho dos Estadoscom as demandas sociais e econômicas que emergiram de uma novaordem democrática e global constituíram as principais razões para a cons-trução desta onda de reformas. Pollitt e Bouckaert (2002) consideram queas reformas extrapolam a dimensão nacional e orientam-se por três moti-vos básicos: as crises econômicas dos anos 1980 e 90, o desejo de reme-diar o fraco desempenho de diversas áreas do setor público e a necessi-dade de novos mecanismos de accountability pública.

Em contraste com as iniciativas anteriores, as reformas deste períodoque se desenvolveram em diversos países assumiram progressivamenteuma agenda “convergente”, na qual existem problemas, instrumentos eobjetivos comuns colocados para os governos. O foco de atuação con-centrou-se na estabilidade macroeconômica combinada à questão do au-mento da performance do setor público. Enquanto as reformas da primei-ra geração orientaram-se por iniciativas voltadas ao ajuste fiscal, envol-vendo cortes nos gastos públicos, reformas tributárias, liberalização eco-nômica e comercial, bem como desregulamentação e privatizações emsetores específicos; a segunda geração voltou-se para empreender mu-danças institucionais mais sólidas.

No mundo desenvolvido e em desenvolvimento, como no caso brasi-leiro a partir dos anos 90, foram desenhadas políticas de reforma daadministração pública, das relações trabalhistas, do Judiciário, do Legislativo,da previdência, de regulação de serviços de utilidade pública. Envolve-ram também a modernização tributária, programas de privatização, derevisão das relações intergovernamentais e, por fim, a questão dadescentralização de políticas públicas.

As políticas de Reforma Administrativa, por trazerem à tona a necessi-dade de empreender mudanças voltadas à criação de novos incentivospara o setor público e alterações substanciais que afetam diretamente oresultado fiscal, passaram a ser um componente decisivo na reforma doEstado. Em termos comparativos, tais reformas são orientadas peloparadigma da New Public Management (o Gerencialismo Público). Entreseus princípios gerais, estão a valorização da eficiência, a elevação da

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performance, a introdução de mecanismos de mercado na gestão pública,a orientação por resultados, a descentralização dos controles gerenciais, aênfase na responsabilização e flexibilização de procedimentos. Destaca-se também uma importante distinção entre as funções de formulação(policy-making) e implementação (service delivery) das políticas públi-cas. Estes princípios moldaram as reformas em várias direções e sentidos.

A Reforma gerencial implementada no Brasil a partir de 1995, inicial-mente no Executivo federal e hoje em curso em alguns governos estaduais,foi desenvolvida a partir destes princípios. As reformas na Nova Zelândia,na Austrália, na Inglaterra e nos EUA foram as principais experiências quecatalisaram um movimento expressivo de propostas de reforma, com gran-de impacto no que se desenvolveu nos países periféricos.

Dada a convergência em termos de princípios, estas experiênciaspreservam, em larga medida, uma “agenda comum” de design e encami-nhamento das políticas de reforma. O primeiro aspecto da convergênciaé a necessidade quase imperiosa de dotar a administração pública deuma nova lógica administrativa, construída a partir de mecanismos e in-centivos capazes de produzir eficiência, efetividade, e qualidade na pro-visão dos serviços públicos. Para tal, o novo paradigma preconizava aorientação das organizações por uma lógica pós-burocrática, operandoem estruturas descentralizadas de gestão, nas quais as estruturas de deci-são sobre a alocação de recursos e provisão de serviços fossem maispróximas dos cidadãos-consumidores. Modelos flexíveis de gestão ope-rando em ambientes competitivos são os tipos ideais do novo paradigma.Estava claro ainda a proposta de reversão da cultura burocrática, tomandocomo estado ideal aquele em que os gestores públicos fossem liberadosdos excessivos controles e passassem a operar com mais autonomia emaior atenção aos resultados.

Em síntese, as reformas buscaram criar uma nova burocracia, na qualum padrão de accountability por controles de procedimentos fosse pro-gressivamente substituído pela accountability de resultados. As reformasdo Estado, mais amplamente, foram marcadas pela articulação de quatrograndes áreas: o ajuste/equilíbrio fiscal, a eficiência gerencial, a capaci-dade de gestão, e accountability. O quadro 1 apresenta os mecanismosinstitucionais utilizados pelas reformas em cada uma destas arenas.

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Apesar das quatro áreas temáticas serem pontos de convergência en-tre as políticas de reformas do Estado, estas se diferenciam em função dacombinação dos mecanismos institucionais que se utilizam para promo-ver a maior performance na gestão pública. De formas distintas, as refor-mas gerenciais combinaram transformações processadas em três eixos: a)mecanismos de participação social; b) transformações nas regras, proce-dimentos e controles burocráticos; e, c) mecanismos competitivos para orecrutamento de servidores públicos, para a gestão das políticas públicase provisão de serviços públicos.

No que tange à área da participação, foram visíveis as tendências de ampli-ar estruturas descentralizadas de controle social das políticas públicas e deconstituir mecanismos para aumentar o envolvimento dos cidadãos-usuáriosnas decisões e nos controles sobre as burocracias públicas, com o propósito dese ter um melhor uso qualitativo dos recursos públicos. No que se refere àsmudanças processadas nas estruturas de controle, as reformas procuraram in-tensificar a capacidade e o alcance das estruturas internas de controle e audito-ria, defenderam a independência de estruturas como o Banco Central e oJudiciário e, ainda, propuseram a adoção de estruturas de ouvidorias.

Quanto à demanda por maior competitividade no setor público, foramnítidas as tentativas de promover maior mérito na contratação de servidorespúblicos, na profissionalização da burocracia pública, assim como a maiorparticipação do setor privado na provisão de serviços de infra-estrutura.

Apesar da convergência em termos dos seus princípios básicos, aexperiência de implementação das reformas foi orientada por razões

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distintas. Numa amostra de 123 países, Kamarck (2000) identifica as for-ças motrizes que levaram Estados nacionais a iniciar reformas: 1) Criseeconômica/fiscal; 2) transição para a democracia; 3) ajuste àscondicionalidades externas (tanto da Comunidade Econômica Européia,no caso dos países europeus, como de agências multilaterais que financi-am as reformas, no caso dos países em desenvolvimento) 4) a elevaçãoda eficiência do setor público. Todavia, os dados revelam que na grandemaioria dos casos (62,6%), as reformas são propulsionadas pela combina-ção destes fatores (cf.Tabela 1). No caso brasileiro, a reforma gerencial foifortemente inspirada pela necessidade de se reduzir os gastos públicos,mas também para resolver o problema da eficiência da gestão pública.

No que se refere ao escopo dos programas, todavia, as reformas po-dem ser classificadas em experiências nacionais ou subnacionais2. NoBrasil, por exemplo, a reforma da gestão pública foi formulada inicial-mente na esfera federal e com foco no Executivo, e, em seguida, nosgovernos estaduais. O caso americano também se processou nesta dire-ção. Os casos analisados por Kamarck (2000) mostram que no período1980-1990, 31% dos países analisados experimentaram dois ou mais pro-gramas nacionais de reformas administrativas, 39,8% tiveram um programanacional, enquanto apenas 19,5% não passaram por programas nacionais.

2 As agendas subnacionais de reformas estaduais no Brasil foram inicialmente construídas, em sua

grande maioria, como um “espelho” das reformas desencadeadas no plano federal. Este tema seconstitui um ponto ainda a ser estudado com maior profundidade por estudos e pesquisas compara-tivas. Para uma análise comparada das reformas estaduais no Brasil cf. Abrucio (1999).

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Apesar de motivadas por problemas comuns, e de certa convergênciade agenda, vale salientar em que medida tais políticas apresentamheterogeneidade. A tabela 2 revela, quantitativamente, as principais di-mensões da diversidade dos programas de reformas gerenciais em ter-mos da condução, dos mecanismos inovadores utilizados, da magnitudedas mudanças no tamanho do setor público e do conteúdo e foco destaspolíticas.

Com relação à condução das políticas de reformas, os dados apontampara uma característica comum: a descentralização. Isso significa, emparticular, a participação de múltiplos atores no processo decisório ou degestão das reformas. Por outro lado, as reformas produziram novas agên-cias, ou órgãos não-tradicionais para implementar as reformas. Tal como

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foi o caso brasileiro, em que se verificou uma certa “inflexão” no ritmo eteor das reformas, quando um novo Ministério da Administração Federale da Reforma do Estado (MARE) foi criado em 1995, e subseqüentementeteve suas funções incorporadas no Ministério do Planejamento, Orçamen-to e Gestão em 1999. Em apenas 7% dos casos as políticas de mudançainstitucional no setor público foram conduzidas por agências considera-das tradicionais.

No que diz respeito aos mecanismos inovadores, a privatização e adescentralização foram os processos mais utilizados nas experiências dereforma. Em 60% dos casos as reformas envolveram transferências defunções tradicionais do Estado para o mercado e em 40% verificou-se adescentralização de funções e poderes dos governos centrais para osníveis subnacionais ou mesmo para organizações não governamentais. Aprivatização de funções e/ou agências públicas foi o traço mais comumnas experiências de reforma. Conforme mostram os dados da Tabela 3,no período 1980-1996, apenas nos países em desenvolvimento as expe-riências nacionais de privatizações mobilizaram um montante de recursosda ordem de U$ 156 bilhões, sendo mais da metade destes programasimplementados na América Latina e no Caribe. No mesmo período, paraum conjunto de onze nações da União Européia, as privatizações rende-ram aproximadamente 97 bilhões. Os casos do Reino Unido, Portugal eSuécia foram os de maior importância.

No Brasil, a estratégia de privatização de empresas públicas foi decisi-va na transformação do modelo intervencionista que se montara, especi-

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almente a partir da reforma administrativa de 1967, quando o Estadoexpandiu consideravelmente o seu papel para o domínio econômico.Privatizar empresas públicas federais em áreas como siderurgia, química,petroquímica, energia elétrica e telecomunicações, constituiu o eixo cen-tral de revisão das funções estatais. O mecanismo institucional queestruturou tal estratégia foi o Programa Nacional de Desestatização (PND),criado em 1991 e coordenado pelo Banco Nacional de DesenvolvimentoEconômico e Social (BNDES). O Plano Diretor da Reforma do Estadoreforçou a privatização como estratégia de ação. Em 2002, o PND apre-sentou como resultado principal de venda de empresas estatais um mon-tante da ordem de US$ 39,6 bilhões. Neste processo, foram liquidadas 68empresas estatais federais. A Tabela 4 revela a participação relativa daprivatização nos diversos setores de intervenção federal.

Outra dimensão de comparabilidade tem a ver com a questão dastransformações na magnitude da força de trabalho no setor público. Emsua grande maioria, as reformas preconizaram a necessidade prementede reduzir (downsizing) o número de servidores, evitando a tendência

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que vinha se processando desde o início do século passado de expansãodos contingentes do setor público. Os dados comparativos oferecidos porTanzi e Schuknecht (2000) mostram que em apenas 11% dos programasde reforma os governos conseguiram reduzir mais de ¼ dos empregos nosetor público, enquanto que em 10% dos casos analisados, houve umaumento da quantidade de funcionários públicos. Por contraste, em 70%dos casos não se detectou qualquer mudança significativa, sugerindo sereste um ponto de resistência das reformas, como analisaremos adiante.

Pode-se dizer que as reformas conseguiram lidar com a expansãoacelerada dos gastos públicos, e não com uma redução significativa dosgastos. Parte da explicação para tal fenômeno reside no fato de que adescentralização das funções para os governos locais transferiu funcioná-rios entre agências, mas não reduziu a força de trabalho de modo signifi-cativo.

Em termos do foco e conteúdo, por outro lado, os dados sugerem quequestões como o equilíbrio fiscal, as reformas regulatórias, as reformasde carreiras no setor público e na provisão de serviços são questões quedefinem um foco comum. Por outro lado, iniciativas voltadas para a cria-ção de mecanismos de mercado na administração pública aparecem timi-damente em apenas 6% dos casos.

Outro aspecto importante para a comparabilidade entre as reformastem a ver com o financiamento destes programas. Enquanto nos paísesmais ricos as reformas são financiadas endogenamente, nos países emdesenvolvimento as políticas de reforma são financiadas através de pro-jetos (setoriais ou mais amplos) apoiados por agências multilaterais, taiscomo o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento(BID). No período 1997-2000, quando se intensificou a difusão das refor-mas nos países em desenvolvimento (a reforma brasileira foi iniciada em1995, e teve o apoio do BID, por exemplo), as operações de emprésti-mo do Banco Mundial para projetos classificados como Reforma do Esta-do e Governance totalizaram um montante que iam de U$ 5 a 7 bilhõespor ano, materializados em 1600 projetos de larga-escala. A composiçãotemática dos projetos financiados mostra um perfil característico nestasiniciativas: 40,6% dos empréstimos foram destinados às reformasinstitucionais (cf. Tabela 5), que envolvem iniciativas voltadas à transfor-mação no papel do Estado, bem como o desenvolvimento de capacida-des na gestão pública.

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Quanto à implementação dos programas de reforma nas regiões emdesenvolvimento, verifica-se grande diversidade em termos da magnitu-de dos financiamentos em função dos objetivos programáticos persegui-dos. Os dados comparativos apresentados na Tabela 6 indicam que sãooito as grandes áreas temáticas dos projetos de reformas financiados peloBanco Mundial, e que existe uma diversidade entre as regiões em termosda participação relativa dos financiamentos. Comparativamente, a ÁfricaSubsetentrional, o Leste Europeu e Ásia Central, e a América Latina foramas principais beneficiárias destes financiamentos. No que se refere espe-cificamente ao item “reforma gerencial”, 21,9 % dos recursos das institui-ções multilaterais foram aplicados na América Latina. Este item se tornoua segunda prioridade alocativa do Banco Mundial e envolvia os seguintestópicos: transformações no papel do Estado, capacity building,accountability, e eficiência gerencial no setor público.

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II - TENDÊNCIAS NA TRANSFORMAÇÃO DO PAPEL DOS ESTADOS NACIONAIS3

Esta seção se volta especificamente à investigação das mudanças nopapel dos Estados Nacionais, verificadas ao longo das duas últimas déca-das, bem como à singularidade do caso brasileiro. Serão utilizados dadosregionais agregados para um grupo de países classificados em função desua renda, tendo como referência um conjunto de indicadores objetivosque possibilitam compreender a direção e o sentido das mudanças pro-cessadas na magnitude e composição do perfil dos gastos públicos, naquestão da força de trabalho no setor público, nos salários, nadescentralização, e, por fim, no ajuste fiscal.

As grandes transformações no papel do Estado se verificaram maisfortemente nos países de menor renda. Nos mais ricos e nas regiões demaior desenvolvimento humano, as reformas não causaram impacto sig-nificativo nos padrões alocativos observados nos anos 70 e 80, especial-mente no que se refere ao perfil dos gastos públicos, que mantém níveissignificativos de intervenção em áreas como saúde, educação e previ-dência. O Estado não se afastou das suas funções sociais e nem reduziusignificativamente sua força de trabalho, apesar das propostas de reforma.

As evidências comparativas que se seguem revelam que as transfor-mações verificadas no caso brasileiro configuram, em linhas gerais, umpadrão em que os gastos públicos são expandidos de modo não muitointenso, em razão das restrições impostas pelo processo de ajuste fiscal;todavia, simultaneamente, constata-se uma redefinição intensa do papeldo Estado, da força de trabalho, bem como o aprofundamento das estraté-gias de descentralização. Comparativamente, o Brasil apresenta uma for-te participação em gastos sociais, que é elevada para os países de suafaixa de renda, configurando-o, por outro lado, como um perfil interme-diário entre as social-democracias e os países de menor renda.

2.1 A Participação Relativa da Administração Pública no PIBO primeiro indicador comparativo utilizado para entender o papel doEstado é a participação da administração pública no PIB. Tal indicador

3 Esta seção foi construída com base em duas amostras distintas que serão indicadas em cada

momento. A primeira delas corresponde a amostra que eu próprio selecionei (REZENDE, 2002). Aoutra é constituída de um conjunto de 108 países e gerada por dados da OECD e do FMI, em materialinédito em elaboração, intitulado “Os Leviatãs estão fora do Lugar: um estudo comparativo sobretransformações no papel do Estado”. O uso destas amostras distintas será indicado ao longo da seção,quando necessário.

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reflete especificamente o grau em que o governo e sua administração“consomem” recursos na forma de bens ou serviços públicos nas suasmais diversas formas em relação à riqueza nacional.

Dividindo os países em três grupos (desenvolvidos, em desenvolvi-mento, ou economias em transição para mercados), observa-se, para umaamostra de 108 países, que não se introduziram grandes alterações namagnitude da participação relativa dos “governos” nas economias nacio-nais no período 1990-2000. Por outro lado, os governos dos países de-senvolvidos apresentam maior participação da administração pública - naordem de 20% do PIB.

Para o conjunto específico de regiões em desenvolvimento, os dadossugerem a redução do consumo do governo da ordem de 0,5 pontopercentual na década, o que mostra que, apesar dos consideráveis esfor-ços para reduzir o consumo da administração pública, permaneceu-sepróximo de padrões pré-existentes. Os casos das regiões África, Ásia eAmérica Latina revelam, por outro lado, ter havido uma mudança inferiora 2%. O caso brasileiro segue o perfil de transformação das regiões emdesenvolvimento e reduziu 1,0% no período (cf. Tabela 7). Por outrolado, quando se comparam as magnitudes dos valores médios regionais,entre as categorias de países, os desenvolvidos são aqueles que apresen-tam os maiores valores do consumo do setor público. O Brasil, por suavez, tem valor médio superior ao de qualquer das regiões do planeta.

O caso brasileiro se aproxima do padrão dos países de renda superiore mesmo dos países mais ricos. Dados comparativos (WORLD BANK,1997 e 2002) mostram que o Brasil passou de um padrão de 9% em 1980

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para 17% em 1995, atingindo o perfil de 20% em 2000. Tal tendênciamostra que o Brasil perseguiu o perfil de expansão do consumo do setorpúblico, ampliando o papel do Estado nesta dimensão específica.

2.2 Os Gastos Públicos e o Papel Social dos GovernosO papel do Estado como “produtor de políticas públicas” é representadoa partir da participação relativa dos gastos públicos em relação ao PIB.Outra tendência expressiva da análise comparativa apresentada aqui éque não se verificam reduções significativas no perfil da intervençãosocial dos governos e, em muitos casos, especialmente nos países maisricos, este perfil é bastante acentuado.

Os dados apresentados na tabela 8 sugerem ter havido pequenas vari-ações neste papel do Estado nos países desenvolvidos. São os países emdesenvolvimento que passaram a apresentar as maiores reduções médi-as. Para o grupo de países em desenvolvimento analisado, entretanto, osdados sugerem que a participação do governo no PIB cresceu na médiageral para os 76 países, e especificamente, para o grupo de 25 países daAmérica Latina e nos 23 da África.

Todavia, é possível diferenciar um perfil mais intervencionista nos paísesde maior renda e uma tendência de transição na direção dos gastos públicospara o Estado mínimo nos países de menor renda na década. No que serefere ao perfil e composição dos gastos públicos, constata-se a conservaçãodos padrões tradicionais, com os setores sociais do governo sendo os focosprincipais da alocação dos recursos públicos. Isto se verifica especialmentenas nações mais ricas (cf. Tabela 9) nas quais, a intenção de reformar oEstado pela via da redução dos gastos sociais não é verificada.

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Nos países de menor renda é que ocorreu um padrão de maior aproxi-mação na direção das funções “mínimas”, pois as reformas produziram aíuma minimalização acelerada. Estes dados são consistentes com os resul-tados encontrados nas análises de Rezende (1996, 2002b), nas quais sedemonstrou que os “Leviatãs estão fora do lugar”: os Estados dos paísesdesenvolvidos apresentam perfis mais intervencionistas, em funções eco-nômicas e sociais, do que nos países em desenvolvimento.

O Brasil acompanha tal tendência, e se aproxima mais dos paísesdesenvolvidos, porém ainda está muito distante daqueles como maiorIDH. O total de recursos aplicados pelo Governo Federal no período1992-2000 evoluiu de R$ 58,5 bilhões para 129,5 bilhões nas áreas soci-ais (SENADO FEDERAL, 2001)4. Este crescimento foi quase quatro vezessuperior ao crescimento do PIB e ao crescimento populacional, indican-do o esforço do governo em atuar em programas sociais de diversasnaturezas. No que se refere às prioridades de alocação em política social,por outro lado, os dados médios da década mostram a grande variaçãorelativa dos diversos setores. A Previdência Social representou aproxima-damente 65% em termos médios do total dos gastos, enquanto que ossetores de saúde e educação conjuntamente totalizaram 25% na média.

A evolução absoluta dos investimentos sociais do Governo Federalpor área e as taxas relativas de crescimento dos gastos por setor sãoapresentadas na tabela 10. A União continua a ter como prioridades aprevidência social e a saúde, já os setores que passaram a ter maiores taxasde crescimento foram a previdência, a assistência social e o trabalho.

4 Entende-se por gasto social o montante de despesas não-financeiras referentes a ação de previdên-

cia, saúde, educação, cultura, assistência social, saneamento, meio-ambiente, habitação, e organi-zação agrária (Senado Federal, 2001)

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Outro ponto de diferenciação no perfil de gastos entre os países ricose aqueles em desenvolvimento é que nos primeiros o papel dos subsídi-os e das transferências para os governos subnacionais tem sido maismarcante. Os dados da Tabela 11 mostram que, no conjunto de 24 paísesdesenvolvidos, os subsídios e as transferências representaram aproxima-damente 60%, sendo a principal fonte das despesas públicas. Por outrolado, os países em desenvolvimento analisados apresentam um perfil emque os salários assumem parcela decisiva, representando em média cercade um terço dos gastos. Os subsídios e as transferências nestes paísesnão atingem 25% dos gastos. Com estes dados, confirma-se a idéia deque o setor público nos países em desenvolvimento tem grande respon-sabilidade em gerar empregos.

A participação relativa dos salários no peso das despesas do setor públi-co varia ligeiramente entre as regiões, sendo a África aquela em que esteatinge aproximadamente 30% dos gastos, perfil muito próximo da médialatino-americana. Os dados comparativos apresentados na tabela 12 mos-tram que as reformas não produziram grande impacto neste padrão alocativo.Nos países desenvolvidos, especialmente onde o papel social do Estadotem prioridade, os gastos com subsídios e transferências, sob as mais diver-

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sas formas (projetos, programas, contratos, etc), é dominante. Nas naçõesde menor renda, a questão dos salários assume maior importância.

No Brasil, as despesas de pessoal, as transferências para estados emunicípios e o custeio da máquina administrativa são os componentesdecisivos para a expansão dos gastos. Os dados comparativos do perfil degastos do Governo Federal revelam que houve uma expansão absoluta,exceto na dívida mobiliária. No que se refere, todavia, ao crescimento relati-vo no período 1996-2001, os dados sugerem que os encargos da dívidacontratada (interna e externa) apresentaram crescimento mais intenso. Estedado revela que o papel do governo como gerenciador da dívida, em con-texto de intenso crescimento da dívida do país, como ocorreu ao longo dosanos 90, passou a ser componente central na agenda de despesas.

No que tange às transformações na participação relativa dos diversostipos de despesas do Governo Federal, os dados apresentados na tabela14 sugerem ter havido a “conservação” do perfil, com ligeiras variações.Não obstante, o caso brasileiro está longe de ser comparado aos paísesmais ricos, onde o papel das transferências e subsídios assume importân-cia central em termos alocativos.

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Comparando a participação relativa da arrecadação tributária em pro-porção ao PIB, os dados regionais revelam que não se verificaram gran-des transformações na média da amostra total. Por outro lado, os dadosapresentados na Tabela 15 indicam que os países desenvolvidos e aseconomias em transição são aqueles em que a interferência do governo émais intensa do que no conjunto de 76 nações em desenvolvimento. Poroutro lado, apenas no conjunto de países em transição para o mercadoverifica-se redução da carga tributária.

Nos países em desenvolvimento, apesar de terem carga tributária deaproximadamente a metade da dos países ricos, os números sugeremque, no período considerado, as reformas produziram uma elevação dasreceitas proporcional à riqueza. As experiências latino-americanas forammarcadas por tentativas de elevar agressivamente a renda governamentalpor diferentes formas de tributação. Contudo, tais nações tiveram quecontar com a impossibilidade de ampliar demasiadamente a base de taxa-ção já que, entre outros fatores, houve o desenvolvimento acelerado daseconomias informais nas grandes metrópoles, como resposta ao cresci-mento do desemprego nas décadas recentes. A expansão do desempre-go e da pobreza nestas áreas produziu uma migração considerável deempregos para o setor informal, no qual a capacidade de arrecadação dosgovernos sobre tais atividades é bem menor.

De qualquer modo, no Brasil, assim como nas demais regiões emdesenvolvimento, as reformas produziram a elevação na arrecadação tri-butária.

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As tendências estruturais do dispêndio público mostram que a décadadas reformas não alterou substancialmente a participação dos gastos soci-ais nem o perfil e a composição das despesas totais. O Brasil é um casotípico ao longo da década de reformas. Por outro lado, o pagamento dasdívidas passou a ser uma das principais despesas dos governos nos paí-ses em desenvolvimento. A necessidade de equilibrar as contas públicaspara pagar as dívidas junto aos credores internacionais, financiadores daspolíticas de desenvolvimento, levou os países mais endividados (Argenti-na, Brasil, China, Indonésia, Coréia, México, Rússia, e Turquia) a ter ocomponente “dívida” como parte central da agenda de políticas públicas.Em conseqüência, verifica-se a tendência de reversão dos perfis relativosdos gastos públicos.

Nos países desenvolvidos e pós-industriais, por contraste, a expansãodos gastos sociais se deve a uma combinação de diversos fatores, taiscomo a dinâmica de envelhecimento da população e a decorrente de-manda por mais gastos estatais em previdência social, além da necessida-de de maior intervenção em políticas de proteção social para reduzir osimpactos da globalização dos mercados. Diversos estudos comparativosrevelam que o fator “envelhecimento populacional” representa um dosprincipais obstáculos para a redução dos gastos públicos.

2.3 Entre os Estados Mínimos e os Estados de Bem-EstarQuando se comparam as transformações no papel do governo, conside-rando a relação entre seus gastos em atividades sociais e econômicas(funções expandidas do Estado) e a sua intervenção em atividades admi-

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nistrativas e de defesa (funções tradicionais do Estado)5, os dados reve-lam que os países mais ricos não se afastam de um perfil maisintervencionista em políticas sociais. Eles não se retiram das economiasnem reduzem seus padrões de Welfare State, mesmo diante de podero-sos argumentos favoráveis à redução do setor público e à expansão domercado. Em graus diferenciados, estes governos ampliam os processosde descentralização, transferindo funções. Reorganizam o perfil da forçade trabalho, porém, continuam a exibir elevada participação social.

A primeira evidência comparativa que se extrai dos dados analisados é aconvergência no conjunto de países, nas diversas faixas de renda: verifica-seuma significativa expansão dos papéis social e econômico em relação aospapéis tradicionais de Estado, nos vinte anos considerados. Esta tendênciareflete a consolidação de um perfil mais intervencionista. Os dados da tabela16 revelam que existe uma correlação positiva entre a renda e a intervençãosocial dos Estados. Comparando, por outro lado, as taxas relativas de cresci-mento no período 1980-2000, as reformas produziram uma redução de apro-ximadamente 30% no perfil dos gastos “expandidos” do Estado, nos paísesde maior renda (alta e média alta). Nos países de menor renda, embora sejamuito mais reduzido o papel social e econômico dos Estados, foi produzidauma transformação da ordem de 3% neste perfil.

A análise mais detalhada da evolução dos padrões de transformação nospapéis dos Estados nacionais permite compreender como variaram as prio-ridades alocativas dos diversos países em reformas. No Brasil, os dadossugerem ter havido uma redução das funções econômicas, principalmenteno que se refere à participação das empresas estatais produtoras de bens e

5 Calculado como sendo 100* Gastos em Funções (Social +Econômico) / Gastos em Funções (Admi-

nistrativo + Defesa), onde Social, Econômico, Administrativo, e Defesa correspondem a percentuaisdos gastos em relação ao produto interno bruto.

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serviços para o mercado. Por outro lado, expandem-se a intervenção socialdo governo, as despesas com o setor público, bem como as transferênciaspara os governos subnacionais, através da descentralização, fatores estesque claramente configuram um novo Estado brasileiro na década.

Comparando o conjunto de países, os dados indicam que existe umaforte diferenciação em termos das prioridades de gasto. Nos países derenda baixa, as funções administrativas assumem nítida prioridade. Inte-ressante observar, por outro lado, que no conjunto destes países ampliou-se o número daqueles onde os gastos sociais também têm centralidade naagenda de políticas públicas. Enquanto, em 1980 apenas 8% delespriorizavam os gastos sociais, este perfil se expande para 15% da amos-tra em 2000 (cf Tabela 17). Todavia, ocorre, nos países de renda baixa,uma inversão das prioridades: gasta-se mais em funções econômicas doque nas sociais. Além disso, os recursos públicos aplicados em funçõesadministrativas aproximam mais os países pobres do Estado mínimo doque os países de maior renda.

No conjunto de países de renda média baixa, por outro lado, há fortevariação no perfil de intervenção estatal ao longo do período. Gastospúblicos em funções consideradas sociais representaram principal priori-dade em sua agenda de políticas públicas. Os dados comparativos apre-sentados na tabela 18 sugerem que nestes países ocorreu mudança doperfil de intervenção, com reversão das prioridades econômicas e ex-pansão dos gastos com a administração pública.

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Para o grupo de países de renda média alta, do qual o Brasil faz parte,tal perfil de prioridades alocativas se confirma, e os gastos sociais conti-nuam a representar prioridade para a maioria deles. Enquanto nenhumpaís da amostra dava prioridade às funções administrativas nos anos 90,33% se moveram nesta direção nos anos mais recentes. Por outro lado,nenhum dos países priorizou as funções econômicas em 2000. Estesnúmeros mostram que, no conjunto dos países em desenvolvimento, con-solidou-se um padrão intervencionista em funções sociais (embora demenor magnitude do que o grupo de países de maior renda) e de redu-ção dos gastos econômicos (cf. Tabela 19).

Tal como sugerem os dados da tabela 20, os países desenvolvidos,especialmente os governados pela social-democracia, convergem paraum padrão em que as prioridades sociais foram conservadas nos últimosvinte anos, o que indica um perfil mais próximo dos Estados de bem-estar social do que dos estados mínimos. Os dados analisados mostramuma convergência da quase totalidade dos países na priorização dosgastos em políticas sociais. Assim, mesmo com as pressões da globalizaçãoe de expansão de reformas orientadas para o mercado, o grupo de paísesde maior renda não se moveu para um padrão mais minimalista. Asfunções sociais continuam a ser importante para os governos e as refor-mas do Estado não reverteram tal prioridade.

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2.4 Avaliando o grau de intervenção dos Estados em funções sociais e econô-micasEsta seção procura entender como os padrões de intervenção dos Estadosvariaram de acordo com sua natureza, bem como por faixa de renda. Opropósito central da comparabilidade é o de perceber como as interven-ções em funções sociais e econômicas comportaram-se ao longo da déca-da. São utilizados três indicadores para mensurar a atuação nas váriasáreas: percentual dos gastos em saúde e educação, que é consideradoalto quando superior a 20% em relação ao gasto público total, e baixo,quando menor. O outro indicador é a participação relativa dos gastos comprevidência e Welfare que se considera elevado em casos nos quais ovalor é superior a 40% do gasto total. Finalmente, para mensurar o graude intervenção econômica, toma-se como elevada a situação em que osgastos econômicos atingem valores maiores do que 15% do gasto públi-co. A análise comparada considera o período mais longo 1980-2000 a fimde apreender mudanças ao longo das duas décadas.

Conforme sugerem os dados da Tabela 21, os países de renda alta ede renda média (alta e baixa) são aqueles que apresentam um alto padrãode intervenção dos governos em funções de saúde e educação. Oenvolvimento do governo em saúde e educação atinge patamar expressi-vo em amplo número de casos, independente da faixa de renda que seconsidere. Para os países de renda baixa, em contraste, ocorreu mudançasubstancial no papel do Estado, com o declínio na quantidade daquelesonde os gastos em saúde e educação atinge 20 % das despesas.

Com relação à Previdência e Bem-Estar social, observa-se que existeuma clara diferenciação no grau de intervenção dos governos em funçãoda renda nacional. Os países de maior renda são aqueles que destinammaior parte dos seus gastos para a Previdência e para funções de Welfare.

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Tanto para o grupo de países de renda alta quanto para os de média alta,ocorreu, no período expansão considerável na quantidade de nações quepossuem tal padrão de gastos. Este padrão inexiste no grupo de paísesde renda mais baixa, no qual o Estado tem outras prioridades alocativas,na provisão de serviços de saúde e educação.

Quando observado o padrão de intervenção dos governos em funçõeseconômicas, os dados mostram que existe uma relação inversa entre esteitem e a renda nacional. Os países mais pobres tiveram padrões históri-cos de intervenção do Estado em atividades relacionadas à industrializa-ção e à construção de infra-estrutura urbana, etc. Como se sabe, estespadrões foram bastante distintos daqueles dos países ricos, nos quais, oEstado se envolveu, sobretudo, na regulação do mercado e na montagemde engrenagens institucionais de amplos sistemas de proteção social.

No caso brasileiro, por exemplo, o forte padrão intervencionista vi-gente até meados dos anos 80 fez do Estado um ator central do processode desenvolvimento. A democratização do país resultou em mudançadeste padrão, havendo substituição da atuação econômica pela social,especialmente em previdência, saúde e educação, como também emfunções do Estado mínimo.

Os dados analisados permitem mostrar que em 100% do grupo depaíses de renda baixa, a intervenção econômica atinge patamar superiora 15%. Existe também uma expansão do número de países na faixa derenda média baixa, enquanto que para os países de renda média altaocorre uma verdadeira inflexão: se em 1980, 80% dos países tinham maisde 15% dos gastos governamentais em atividades econômicas, em 2000,nenhum dos países considerados apresentou o mesmo perfil. A quantida-de de países de renda alta com tal padrão de intervenção declinou levemen-

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te de 29% para 21%, revelando que em grande parte da amostra os Estadosnacionais não interferem mais do que 15% em funções econômicas.

2.5. Comparando a MinimalizaçãoPara avaliar mais precisamente a direção das transformações ocorridas nopapel do Estado, compara-se aqui as variações temporais do Índice deGoverno Mínimo - o IGM (REZENDE, 2002). Ele revela como os gastosmínimos do governo - ou as atividades consideradas exclusivas do gover-no - comportam-se em relação às demais despesas. Quanto maior o valorde IGM, mais os recursos públicos são alocados em funções exclusivas,deixando ao mercado e aos agentes privados o desempenho de funçõessociais e econômicas.

Como se pode verificar na tabela 23, os países de renda mais alta sãoaqueles que comparativamente têm o menor valor do IGM no período1975-2000. Isso significa que este grupo não se movimentou na direçãode perfis alocativos mais próximos do padrão de Estado mínimo. Compa-rativamente, como se pode observar nas séries temporais apresentadaspara as diversas faixas de renda, este grupo específico de países é o quemenos se movimenta na direção apontada.

Caminho diferente é o dos países de renda média e média alta, quetêm seus governos fundamentalmente orientados para os gastos com aadministração, aproximando-se de uma minimalização do dispêndio pú-blico. A implementação das reformas nestes países levou a uma profundatransformação do perfil e da composição dos gastos, bem como da redu-ção significativa do padrão de intervenção em políticas sociais e econô-mica nas décadas anteriores a 1980. Isso, não obstante, o aumento dacarga de problemas sociais, tais como a pobreza e o desemprego estrutu-ral, ou mesmo a violência e a criminalidade. Estes Estados nacionaispassaram a inverter suas prioridades de despesas, cortando gastos sociaise econômicos, bem como os gastos com o funcionalismo público e amáquina burocrática. A análise individual dos casos regionais indica queos países em desenvolvimento de maior renda tiveram suas economiasmarcadas por reformas estruturais, nas quais a política de endividamentocontinuado tornou o item “pagamento de juros da dívida” uma funçãocentral do Estado.

Isto explica, em grande parte, porque tais Estados caminharam para a“minimalização” mais nos países desenvolvidos. Para o caso brasileiro,por exemplo, o pagamento de juros foi, em 1994, superior a qualquer

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outra rubrica, o que implicou na elevação dos gastos com as funçõesmínimas, que incluem o pagamento da dívida. Curioso notar que nogrupo de países de alta renda, tanto o grau de IGM, como sua variabilida-de, são baixos.

2.6 Transformações no Perfil e Composição da Força de Trabalho no Setor PúblicoOutro aspecto importante diz respeito à magnitude e composição doperfil da força de trabalho no setor público. A primeira tarefa comparati-va é a de perceber padrões existentes de alocação dos funcionáriospúblicos por tipo ou função de atividade governamental.

O primeiro conjunto de evidências comparativas para 19 países de-senvolvidos, apresentado na tabela 24, revela distribuição da força detrabalho por funções marcadas por forte variação entre os casos nacio-nais. Não obstante, em valor mediano, constata-se que nos governoscentrais há 51 % dos funcionários públicos trabalhando em funções consi-deradas exclusivas, 26% em funções sociais e 21 % em atividades que sepode considerar econômicas. Ao menos em termos da distribuição dosfuncionários por esfera de ação do governo, países mais desenvolvidosestão em maior consonância com a proposta de consolidar um núcleoduro que opere nas funções exclusivas de Estado, tal qual foi típico nareforma gerencial brasileira.

Em seis casos (Alemanha, EUA, Itália, Finlândia, Holanda, e RepúblicaCheca), tal parcela corresponde a mais do que 60% dos funcionários dogoverno central. Apenas no caso específico da Espanha, a quantidade defuncionários públicos do governo central trabalhando em funções exclu-sivas atinge patamar inferior a 10%, e ultrapassa os 50% em funçõesconsideradas sociais. Por outro lado, nos casos da Coréia, França, Portu-gal, e Turquia, os dados apontam para a configuração de um perfil emque mais da metade dos funcionários é distribuída em funções sociais doEstado. No que se refere à distribuição da força de trabalho, por sua vez,

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os governos dos países desenvolvidos possuem, em termos agregados,uma composição próxima das funções exclusivas do Estado.

Quanto ao impacto das reformas sobre a redução do número de servi-dores públicos, os dados revelam que existem fortes variações entre os21 casos considerados. Não se constatou uma redução significativa daforça de trabalho, ao contrário do que se poderia esperar com as propos-tas das reformas. Os dados revelam que em 14 casos ocorreu uma dimi-nuição no número de servidores públicos do governo central, enquantonos demais, contrariamente, verificou-se um aumento. Comparativamen-te, o Brasil é o caso em que foi mais intensa a redução de funcionários no

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Executivo Federal, atingindo aproximadamente 19% da força de trabalho.O que explica tal redução dos gastos é o fato de que muitas das funçõesdos governos centrais foram passadas para os governos locais dentro doprocesso mais amplo de descentralização.

No caso brasileiro, os dados relativos aos três Poderes (cf. Tabela 26)revela que não houve redução de quantidade dos servidores, sendo oJudiciário aquele que apresentou maior crescimento relativo no períodopós-reforma gerencial. O Executivo, que no Brasil vinha experimentandouma taxa bastante expansionista desde os anos 70, foi contido com oprocesso de reformas.

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Todavia, quando se observa tal variação para os casos dos diversosministérios, tal qual apresentado na Tabela 27, nota-se que existe umperfil bastante diferenciado na magnitude da transformação no tamanhodo governo, embora as reformas tenham atingido a grande maioria dasentidades. Em dois ministérios - Saúde e Meio Ambiente - houve umaredução de mais de 1/4 da força de trabalho. Em 14 casos ocorreu redu-ção menor que 15%, e em 4 casos houve ampliação significativa dos deservidores ativos.

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No que tange ao impacto das reformas nos governos subnacionais, osdados comparativos da tabela 28 revelam resultados diversos. Não severificou uma redução (downsizing), mas, contrariamente, uma expansãodo tamanho dos governos locais. Grande parcela desta expansão se deveao processo de descentralização e transferência das políticas públicas dosgovernos centrais para os locais.

O Brasil foi um caso típico em que as políticas de descentralizaçãoexpandiram o número de servidores públicos subnacionais. Ademais, ofez em intensidade maior do que países como Espanha, Turquia, México,EUA, Argentina, e Polônia, que expandiram em mais de 10% sua força detrabalho nas administrações locais. Por outro lado, casos como o Chile e aAlemanha revelam experiências em que as administrações locais sofre-ram intensa redução do funcionalismo público.

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Em relação às despesas com pessoal, as reformas não produziramimpactos significativos, para qualquer categoria ou grupo de países. Comosugerem os dados da tabela 29, a participação relativa dos governoscentrais no PIB aumentou tanto para países de renda alta, como paraaqueles de renda média ou baixa.

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Em suma, à luz das evidências comparativas apresentadas até o mo-mento, constata-se que as reformas não produziram impactos significati-vos sobre alguns dos indicadores utilizados na análise. O papel do Estadonão se transforma tão intensamente quanto propalado com a difusão dasreformas. A experiência internacional revela que os governos, especial-mente os mais ricos, mantém seus perfis de intervenção, sua composiçãode gastos e não reduzem tão intensamente o tamanho das administraçõespúblicas. O exame comparativo indica ter havido, todavia, uma revisãodo papel dos governos de menor renda em face de um novo processo deajuste fiscal, especialmente nos países de grande endividamento. Ospaíses em desenvolvimento reduziram a intervenção em atividades eco-nômicas, com programas de privatização de empresas públicas, além deredefinirem suas prioridades, especialmente nas jovens democracias, ondeos gastos sociais foram expandidos. As reformas também não reduziramsignificativamente o montante da força de trabalho nas administraçõespúblicas. Os dados comparativos mostram variações entre os casos anali-sados, tanto em termos de países e regiões, quanto de renda.

O caso brasileiro foi típico na combinação de uma política agressivade privatizações, com ajuste fiscal e descentralização das políticas públi-cas. Ao mesmo tempo em que se contraem as despesas com o setorexpandido do governo, por meio das privatizações, o Governo Federalpassa a ter papel ativo nas funções de gestão da dívida e das transferên-cias. O papel das transferências e subsídios para os governos locais nocaso brasileiro não chega, todavia, a ter participação tão significativaquanto nos países ricos. As reformas também não produziram impactossignificativos na expansão dos gastos públicos, especialmente com asdespesas de pessoal e de custeio. Estes se expandiram sim no períodopós-reformas, mas não com o ímpeto das décadas anteriores.

III - A EXPERIÊNCIA COMPARADA DE IMPLEMENTAÇÃO DE UM NOVO ESTADO: O BRASIL

FRENTE ÀS TENDÊNCIAS MUNDIAIS

A experiência comparada do desenho, formulação e implementação daspolíticas de reformas dos anos 90 revela uma clara diferenciação deresultados em termos de grupos de países, de questões analisadas, demétodos, critérios e indicadores utilizados na avaliação (JANN e REICHARD,2002). Todavia, estudos mostram algo comum: os processos de reformassão marcados por resistência organizada às mudanças, por caminhos

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erráticos, por dificuldades de mobilizar interesses e conseguir a coopera-ção dos atores em propósitos mais amplos de ajuste fiscal e mudançainstitucional.

As reformas são processos que desencadeiam “falhas seqüenciais”(REZENDE, 2002c) e exibem problemas crônicos de implementação. Aexperiência gerencial revela que, mesmo nos países líderes, a reformasperderam muito do seu ímpeto. O National Perfomance Review, nosEUA, é um caso clássico de descontinuidade e de perda de interesse emtorno das reformas do setor público. Implementar reformas na administra-ção pública, especialmente em contextos democráticos, é uma tarefacomplexa, que exige tempo, apoio de um conjunto amplo de atoresestratégicos (Congresso, burocracia e grupos de interesses, por exemplo)que muito raramente estão interessados em elevar o desempenho dosetor público, ou mesmo reduzir benefícios advindo de padrões tradicio-nais de intervenção e funcionamento do Estado.

O modelo gerencial representa um caso crítico de falha seqüencial,pois o apoio dos atores interessados em elevar a performance do Estadoparece problemático. Isto deriva fortemente do fato de que existe umacontradição entre os propósitos mais amplos de ajuste fiscal e a mudançainstitucional que estas reformas trazem em si. Tal contradição que podeser denominada de “dilema do controle”, foi típica da experiência brasi-leira e de reforma da sua administração pública.

Reduzir os gastos públicos e, ao mesmo tempo, criar uma nova matrizinstitucional orientada pela performance, sofre resistências organizadasno interior da burocracia, das elites políticas, como da sociedade emgeral. Pollitt e Bouckaert (2002) consideram que, no caso francês, asreformas administrativas foram obstaculizadas por mecanismos que de-mandam continuidade nos padrões de funcionamento estatal, tais como acentralização das burocracias, o estilo tecnocrático de profissionalização,assim como as potentes resistências dos sindicatos e das elites políticas.No Canadá, as reformas também apresentaram resultados aquém do es-perado, e nos Países Baixos eles concluem que as propostas mais ambici-osas da reforma fracassaram dado o consensualismo do padrão holandêsde governança política. No Brasil, a extinção do MARE, quatro anosdepois de sua criação, e as dificuldades de implementar os aspectos maisdelicados das reformas gerenciais, representam, em alguma medida, as-pectos de falha seqüencial, o que não quer dizer que não tenha ocorridoganhos sistêmicos e irreversíveis para o setor público.

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As conclusões comparadas das reformas, segundo Pollitt e Bouckaert(2000), revelam que a intensidade da implementação das reformas variouentre grupos específicos de países. Naqueles considerados “líderes” domovimento gerencialista - Inglaterra, Austrália, Nova Zelândia, e EUA -os processos foram desencadeados de modo muito intenso. Os mais con-servadores como a França, os países nórdicos, a Holanda e o Canadáforam mais lentos e cautelosos, com menor uso das estratégias agressivasde privatização, downsizing, “agencificação” e introdução de mecanis-mos de mercado no interior das organizações do setor público. Em suma,foram bem menos ideológicos em relação às idéias gerenciais.

Já os países em desenvolvimento e em transição para o mercadoimplementaram, com graus diferenciados de sucesso, as reformas gerenciais.No caso brasileiro, a “importação” do paradigma gerencial combinou-se comuma estratégia forte de ajuste fiscal no setor público, o que tornou problemá-tico o seu processo de implementação, como comentaremos adiante.

Uma das tendências marcantes desta geração de reformas é a prepon-derância do ajuste fiscal sobre a mudança institucional. Reduzir os gastose o tamanho do setor público tornou-se prioridade nas agendas de refor-mas. As estratégias de implementar uma nova matriz institucional regula-da pela performance e descentralizada, com contratos de gestão, nãoatingiram resultados esperados. Tampouco foram bem sucedidas as ex-periências dos países líderes, nos quais os processos de contratualizaçãoe avaliação da performance tendem a produzir o que se convencionouchamar de policy incoherence, ou seja, problemas de coordenação emtorno dos interesses entre formuladores e implementadores. No Brasil,apesar das mudanças constitucionais aprovadas no Congresso Nacional,as propostas de redesenho do Estado, em prol de uma nova estrutura dedelegação e controle, constituíram um ponto crítico de implementação.Os problemas crônicos de performance, herdados da estrutura de delega-ção e controle construída a partir do Decreto Lei 200/67, ainda persistem.

A descentralização da gestão - especialmente de orçamentos e pesso-al - visando à autonomia decisória, responsabilização burocrática e con-troles por resultados, não foi sintonizada com os propósitos mais amplosde equilíbrio das contas públicas, tanto no Brasil quanto no mundo desen-volvido. A descentralização dos controles e dos processos de gestãoainda é percebida pelas elites burocráticas como um processo de produ-ção de ineficiências na gestão pública e não o contrário.

A prioridade dada ao ajuste fiscal impediu que as mudanças institucionais

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mais qualitativas fossem introduzidas na gestão pública, apesar dos avan-ços conseguidos. A prioridade política do controle das contas públicascomprimiu outras dimensões da reforma. O caso brasileiro foi paradigmáticoneste aspecto e as elites burocráticas voltadas para o ajuste fiscal nãocooperaram com os propósitos de mudança institucional.

Analisando as reformas nos padrões de gastos dos países da OECD,Bangura (2000) revela que, embora tenham sido fortes as pressões pormudança no perfil e na intensidade das despesas sociais, as resistênciasorganizadas não foram menores. Ele afirma que o Welfare State nestespaíses tem mostrado um grau considerável de resistência que pode serexplicado a partir de três ordens de questões interligadas. Primeiro, adificuldade de formar coalizões políticas no Legislativo que sejam favorá-veis à mudança do status quo; segundo, a opinião pública em geral apóiaa manutenção dos benefícios sociais, apesar dos custos crescentes; e,finalmente, a forte organização política dos beneficiários, que se mobili-zam politicamente contra as reformas.

A preponderância do ajuste fiscal produz outro aspecto importanteque diz respeito à continuada atenção para aspectos mais superficiais doproblema. A crise fiscal propulsionou os governos a promoverem umataque às partes mais visíveis do setor público (redução dos gastos públi-cos, downsizing, corte em programas sociais, extinção de agências go-vernamentais, e reorganização superficial de estruturas administrativas),deixando de lado a importante e delicada questão de transformar asinstituições (regras formais e informais), alterando incentivos que afetemo papel e a qualidade da intervenção pública.

Outro ensinamento da experiência comparativa é que as reformas sãolentas e dependem da montagem de complexas redes de cooperaçãoentre atores institucionais. Tempo e ação coletiva são requisitos decisivospara o sucesso das reformas gerenciais. O processo de construção deuma nova burocracia centrada em resultados, em controles da performancee em monitoramento depende da presença continuada de policy advocatesque atuem decisivamente na construção de redes alinhadas de interessesem torno dos programas das reformas gerenciais.

Os casos analisados revelam também que a efetividade e eficiência naimplementação das reformas estão negativamente correlacionadas à qua-lidade e performance institucional anteriores ao início das reformas. Ou-tro ensinamento do estudo comparado é que projetos de reforma quedesconsideram as especificidades (one size fits all approaches) dos siste-

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mas burocráticos são fadados a resultados pouco efetivos. Programas dereformas que levem em conta a flexibilidade institucional de cada con-texto podem ser mais desejáveis.

Comparativamente, os resultados da mudança institucional são tími-dos. Raros são os casos em que as ambiciosas mudanças propostaspelas reformas foram implementadas a contento, e os desafios políti-cos, institucionais, e técnicos para conseguir a cooperação com osobjetivos da reforma gerencial ainda são intensos. Reformas gerenciaisnão encontram cooperação espontânea dos atores para criar uma cul-tura orientada pela performance. Por outro lado, em reduzidos casos,as Performance-Based Organizations, pedra de toque no novo modelogerencial, foram bem sucedidas. O caso brasileiro de 1995 foi típico,não havendo a implementação das novas organizações destinadas aredefinir as relações entre policy-making e service delivery. Mesmoem casos em que mudanças foram introduzidas, grandes são os desafi-os para definir, monitorar, e controlar padrões de performance. Existeum grande dissenso entre o que significa a performance, sobretudoporque o Estado e a administração pública contemporânea são, narealidade, compostos por grande diversidade de agências com objeti-vos altamente heterogêneos, dificultando o estabelecimento de pa-drões comparáveis de performance. E mais: as reformas gerenciaisainda estão longe de introduzir um padrão coerente de avaliação dedesempenho.

Como visto, as estratégias de ajuste fiscal foram relativamente bem-sucedidas no controle da tendência de expansão acelerada dos gastospúblicos e do desequilíbrio fiscal. O mesmo não ocorreu com a reduçãodas despesas e do pessoal e, ainda, com o tamanho do setor público. Umgrupo reduzido de países teve diminuição do patamar dos dispêndiospúblicos, tanto no mundo desenvolvido, quanto em desenvolvimento.

Outro ponto de comparabilidade refere-se à questão da redução daforça de trabalho no setor público. As reformas não foram marcadamenteredutoras do tamanho do setor público, e, em alguns casos verificou-se aexpansão dos gastos com pessoal e com a máquina administrativa. Osgovernos envolvidos em reformas ainda enfrentam dificuldades conside-ráveis para reformar a qualidade do emprego no setor público. Evidênci-as disponíveis revelam que a elevação da performance no setor públicofundamentalmente passa por melhores salários, maior qualificação, e poroutro perfil de carreiras que certamente demandam maiores gastos. Os

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governos ainda operam com grande assimetria de informação com rela-ção às demandas reais dos diversos órgãos do governo por pessoal.

Por outro lado, as reformas gerenciais, especialmente nos países emdesenvolvimento produziram considerável êxito em gerar acesso públicoa informações sobre o funcionalismo, antes desconhecidas ou inacessí-veis à sociedade. A pressão por maior racionalidade nos gastos públicoscom o ajuste fiscal produziu a necessidade de maior precisão nos contro-les quantitativos dos servidores e de suas características. A difusão destesnúmeros, per se, representa um grande avanço para a gestão pública,especialmente no que se refere ao maior controle social sobre as agênci-as públicas.

Sem a informação necessária e o diagnóstico preciso dos problemasde performance nos níveis intra e inter organizacional, as reformas dosetor público correm o risco de entrar nos padrões de “amputation beforediagnosis”, como nos adverte Seidman, em análise das reformas nos Esta-dos Unidos. As reformas podem ser mais bem sucedidas quando o co-nhecimento aprofundado dos problemas de performance sãoplanejadamente detectados e atacados. Isto exige um esforço amplo deestudos e pesquisas institucionais que produzam informações consisten-tes relativas ao funcionamento das organizações e a seus problemas.Reformas que pretendam cortar gastos, imprimir controle, visando obtermais informações sobre o setor público, são necessárias, porém insufici-entes. Por outro lado, a construção de uma nova matriz institucional des-centralizada, autônoma, e orientada por resultados mostra-se decisivopara o paradigma gerencial.

Apesar dos resultados obtidos, dos avanços e dos impasses no planoda implementação, as reformas gerenciais ainda apresentam grande ca-minho a percorrer e dilemas cruciais a enfrentar. Um dos principais dile-mas reside na contradição que as reformas gerenciais trazem em si, qualseja, o trade-off entre performance e controle. Se, por um lado, os mode-los de reformas propõem a redução dos controles burocráticos, visando àmelhor performance, dentro de modelos descentralizados de delegação,é fato que problemas de coordenação e regulação aparecem na relaçãoentre formulação e implementação. Nos casos inglês e americano aindapersistem os dilemas de como delegar responsabilidade sem criar maiscontrole. No caso dos países em desenvolvimento, com uma frágil tradi-ção do controle, a regulação ainda constitui problema central.

Além do mais, como nos adverte Schwartzman (1996) “não é a sim-

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ples eliminação dos controles burocráticos suficiente para garantir o bomdesempenho e a correção no uso dos recursos públicos por parte dasinstituições governamentais”. Ele sugere que o controle é fundamental aodesempenho das instituições, e que este requer a combinação de doiselementos: a legitimidade política das elites reformadoras e a competên-cia técnica dos gestores públicos. Isto depende fundamentalmente demudança de cultura política e administrativa em torno dos princípios dasreformas gerenciais.

Reinventar os controles não constitui, demonstra a experiência recen-te, tarefa simples. O ponto nodal reside em como criar os incentivosseletivos para que os grupos burocráticos cooperem gradualmente comum novo modelo de controle orientado pela performance, o que depen-de de capacidade e poder político.

IV - O DILEMA DO CONTROLE E O CASO DA COOPERAÇÃO DUAL NA REFORMA GERENCIAL

BRASILEIRA6

O caso brasileiro de implementação da reforma no período 1995-1998foi, ao meu ver, um caso típico de Dilema de Controle7. O MARE nãoobteve a cooperação simultânea dos atores estratégicos para com osobjetivos da reforma. Houve um padrão dual de cooperação, no qual oajuste fiscal foi privilegiado, inibindo as chances de modelos de transfor-mação nas instituições e no funcionamento do setor público, especial-mente em sua estrutura de delegação e controle entre formulação eimplementação de políticas públicas.

O paradoxo de implementação das reformas gerenciais gerado peloDilema do Controle pode ser compreendido a partir de uma dupla pers-pectiva de atores e objetivos. O ajuste fiscal demanda mais controlesobre a burocracia e suas organizações, a fim de promover o uso devidode recursos, bem como a prestação de contas, controle orçamentário e

6 Esta seção se baseia no artigo de minha autoria, Rezende (2002c), e capítulo do livro no prelo pela

Editora Getúlio Vargas - FGV/RJ.7 Em outra ocasião (REZENDE, 2002c), assim resumi o Dilema do Controle: “se por um lado o ajuste

fiscal demanda mais controle, as mudanças institucionais, especialmente aquelas que demandammais descentralização e sofisticados mecanismos de delegação e accountability, demandam menoscontrole”, e nesta contradição reside a raiz dos problemas para obter a cooperação para os doisobjetivos das reformas.

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eficiência fiscal. Por outro lado, a mudança institucional centrada emprocessos de descentralização, autonomia e responsabilidade demandamuma necessidade de “descontrolar” a burocracia, dotando-a de maior au-tonomia gerencial e maior responsabilidade.

Neste sentido a reforma brasileira, a exemplo das reformas gerenciais,sinalizou incentivos altamente contraditórios para os principais atores es-tratégicos no interior da arena de reformas, dificultando a cooperaçãosimultânea, e, conseqüentemente, reduzindo suas chances deimplementação e sustentabilidade no tempo. O caso do Brasil mostrouque a cooperação para com os objetivos da reforma depende do modoespecífico de como os atores estratégicos alinham seus interesses emtorno da questão do controle. As reformas, sobretudo em contextos debaixa performance e grandes ganhos com a manutenção do status quo,usualmente conseguem apoio para o ajuste fiscal, dado que a cooperaçãocom a redução dos gastos públicos deixa intacto o conjunto de práticasinstitucionais que, de fato, produzem os problemas crônicos deperformance.

No caso brasileiro, assim como em tantos outros casos no mundo,reformar o setor público foi sinônimo de encontrar alternativas para pro-por uma transição de uma organização dentro do paradigma burocráticopara modelos orientados pela performance. Isto implicou a construção depropostas concretas de mudanças na forma de delegação e controle entreas agências do setor público, redefinindo as relações tradicionais entreformulação e implementação de políticas públicas. No Brasil, este novomodelo de delegação e de controle tomou forma com a proposta doPlano Diretor de 1995 em criar Organizações Sociais e Agências Executi-vas em diversos setores da burocracia. Estas organizações deveriam serresponsáveis por funções de implementação de políticas públicas, con-trolados pelas agências centrais, com base em mecanismos de controleda performance (os Contratos de Gestão).

Ao mesmo tempo em que a necessidade de delegar funções para asPBOs demanda a revisão dos padrões de relacionamento com as agênci-as formuladoras, o controle pela performance foi percebido pelas elitesburocráticas como risco potencial para o aumento da ineficiência fiscal.Especialmente num caso como o brasileiro, de fraca tradição regulatória ede processos históricos de descentralização “descontrolada”, a ameaça deuma grande fragmentação institucional, advinda deste novo modelo degestão, poderia desencadear sérios problemas de coordenação entre

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formuladores e implementadores. Três elementos são ainda incertos narelação entre controle e delegação: a) definição mais precisa sobre opadrão de relacionamento entre os ministérios (agências formuladoras) eas agências reguladas; b) elevados graus de incerteza quanto a quemdeve ser controlável pelos resultados e c) as dificuldades inerentes àsdefinições sobre os padrões de performance que devem ser atingidospelas diversas organizações.

Em contextos em que existe um legado histórico de baixa performance,de experiências concretas de falhas seqüenciais, e de uma relação diretaentre descentralização e desequilíbrio fiscal, tal qual o caso brasileiropré-reforma administrativa, a questão do desempenho foi associado emgrande medida à questão da fragmentação e dos riscos desta para o ajustefiscal. A proposta do MARE em introduzir uma nova matriz institucionaldescentralizada e operando sobre padrões regulados pelos resultadosinibiu a cooperação, pois prevaleceu a estratégia de aumentar os contro-les burocráticos para alcançar o ajuste fiscal.

Como se sabe, passados quatro anos de sua criação, o MARE foi extin-to e suas funções absorvidas pelo Ministério do Planejamento, Orçamentoe Gestão, e a política de reformas foi redirecionada, perdendo em muitodo seu ímpeto inicial. O ambicioso plano de transformação das estruturas,criando uma nova matriz institucional regulada pela performance, não foibem sucedido.

Por outro lado, o governo brasileiro foi exitoso em atenuar o processode expansão dos gastos públicos, realizando mudanças que “atacaram”de frente as raízes de problema como os aumentos salariais indevidos aofuncionalismo, o desconhecimento das informações sobre a máquina doExecutivo federal, bem como os tênues controles sobre as folhas salariaisdo funcionalismo. Ampliando os esforços na direção de uma política maisagressiva para a gestão de pessoal, e obtendo a cooperação das elitesinteressadas no ajuste fiscal, a reforma obteve ganhos expressivos. OMARE conseguiu obter substancial apoio dos atores estratégicos para oajuste fiscal, só que não obteve o mesmo êxito para suas políticas demudança institucional, configurando um padrão dual de cooperação.

Isto ocorreu segundo razões claras. Primeiro, a nova matriz institucionalnão era uma proposta dotada de crédito por parte dos atores estratégicos.A proposta de mudança institucional foi percebida como “uma ameaça àestrutura de controle burocrático” nas relações entre a administração dire-ta e indireta no governo federal; e, ainda, a mudança institucional não foi

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percebida como um mecanismo capaz de produzir impactos de curtoprazo no problema do equilíbrio fiscal. Atores que detinham maior poderdecisório do que o MARE no interior da burocracia governamental, comoa Casa Civil da Presidência da República, o Ministério da Fazenda, alémdo Ministério do Planejamento e Orçamento, percebiam a reforma admi-nistrativa como uma questão mais diretamente associada aos processosde redução de pessoal e de controle de custos da máquina administrativa,do que vinculada à introdução de alterações substanciais nos arranjosinstitucionais existentes, mesmo que estes fossem cruciais para a eleva-ção da performance.

A despeito deste contexto desfavorável, o MARE defendeuvigorosamente o discurso estratégico de que, para além dos necessárioscontroles sobre os gastos do governo, a real reforma do setor públicodependia essencialmente de uma mudança institucional de grande fôle-go. A raiz dos problemas de performance da administração pública eragerada pelas ineficiências no design das relações entre a formulação eimplementação das políticas públicas que se organizaram desde o Decre-to Lei 200/67. A proposta do MARE era de criar novas instituições nosetor público, as chamadas Organizações Sociais e Agências Executivas,introduzindo novo modelo orientado por resultados para os diversos seto-res burocráticos.

A proposta de criação das PBOs pelo MARE era uma tentativa desuperar a crise de delegação, já que o Estado brasileiro tornou-se exces-sivamente descentralizado, fragmentado e capturado pelos interesses dasagências implementadoras, inibindo padrões mais racionais de organiza-ção e funcionamento da burocracia pública. A ampliação dos controlessociais sobre o Estado, a descentralização, e a mais precisa definição dasmissões, aliadas a uma cultura de resultados, eram vistas como alvosprincipais a perseguir.

A preponderância do “fiscalismo” inviabilizou a constituição de umelo causal entre a necessidade de mudança institucional e ajuste fiscal.Na realidade, muitos dos problemas fiscais do governo brasileiro deriva-vam do modo específico de formação e crescimento burocráticos, bemcomo dos frágeis mecanismos de controle. O setor público cresceu den-tro de um modelo em que o Estado era o ator central do desenvolvimen-to, foi expandido em regimes autoritários que não tinham muita necessi-dade de elevar a performance para atender certas demandas sociais, asquais, com o retorno a democracia no Brasil, impulsionaram um novo

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padrão de intervenção pública. Ademais, os ministérios temiam perder ocontrole histórico sobre as instituições, e, fundamentalmente o podersobre as agências implementadoras de políticas públicas.

As reações à mudança institucional formaram-se em torno de três grandestemas: controle, orçamento e cargos. Se para os diversos ministérios anão-cooperação fundamentava-se na possibilidade de perda de controlee de poder sobre as instituições, para a administração indireta a coopera-ção com novas formas institucionais estava vinculada ao risco de perderdotações orçamentária em caso de reduzido desempenho. A manutençãodos arranjos institucionais anteriores, baseados numa tênue relação entreorçamento e performance, foi o ponto nevrálgico para explicar a não adesãoàs propostas de transformação institucional orientada por resultados.

O caso brasileiro representa um problema típico das reformas gerenciais.A contradição entre os objetivos de mudança institucional e ajuste fiscalfoi variável decisiva para mostrar porque a elevação da performance nãoencontra cooperação “espontânea”. Os beneficiários da ordem preferemmanter as instituições e cooperar estrategicamente com o ajuste fiscal.Em condições de baixa performance e de forte interesse por ajuste fiscal,a cooperação com a mudança institucional se tornou rara.

Embora a elevação do desempenho seja a motivação aparente para asreformas administrativas, o modo específico pelo qual os diversos atorespercebem e calculam os custos e benefícios gerados pela mudança daestrutura de controle é fundamental para explicar o problema da falhaseqüencial. Quanto mais uma dada política de reforma propõe alterarradicalmente a forma de controle que regula a relação entre implementaçãoe formulação das políticas públicas, maiores as chances para o insucessodas reformas administrativas, sobretudo aquelas em contextos democráti-cos, de elevada fragmentação e descontrole, bem como marcados por umlegado de reduzida performance, como ilustra o caso brasileiro.

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REFORMA DO ESTADO ECOORDENAÇÃO GOVERNAMENTAL:AS TRAJETÓRIAS DAS POLÍTICAS DE

GESTÃO PÚBLICA NA ERA FHCHumberto Falcão Martins

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INTRODUÇÃO

Este estudo tem três propósitos. O primeiro é elaborar uma visão deconjunto dos episódios mais significativos de políticas de gestão públicano período 1995-2002. Trata-se de delinear a big picture, mediante aidentificação de trajetórias, que se desdobram em frentes e fases. Metafo-ricamente, trata-se de um mapeamento analítico do “sítio arqueológico”,que possa servir de base para a etapa seguinte e mesmo para outrosestudos. Nesse sentido, a Parte I do texto busca elaborar o modeloexplicativo a partir do qual buscar-se-á caracterizar as políticas de gestãopública no período e segundo o qual as políticas públicas são uma com-binação de problemas, soluções e instâncias institucionais a partir da açãode empreendedores e sua coalizão.

A Parte II inicia-se caracterizando os antecedentes das políticas degestão pública da era FHC: a singularidade histórica da reforma do estadona democracia e no contexto da globalização; e a visão inicial contida naestratégia administrativa do Presidente. O núcleo da desta parte do traba-lho é a composição de um mapa das políticas de gestão pública noperíodo 1995-2002, no qual identificam-se seis trajetórias: a)reformainstitucional (reestruturação de ministérios, melhoria de gestão e implan-tação de modelos institucionais tais como organizações sociais e agênciasexecutivas); b)gestão-meio (políticas de Recursos Humanos e Tecnologiada Informação); c)gestão estratégica (Eixos de Desenvolvimento e Plano

1Gestor e Especialista em políticas Governamentais e Doutor em Administração pela FGV/RJ.

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Plurianual); d)aparato regulatório (construção de instituições regulatórias);e)gestão social (mobilização, capacitação e modelos de parceria com oterceiro setor); e f)gestão fiscal (orçamento, privatização, renegociaçãoda dívida dos estados e lei de responsabilidade fiscal). Embora a inclina-ção de partida e a estratégia administrativa presidencial apontassem parauma linha central de reforma muito conservadora (burocrática-fiscalista),a era FHC explode em 6 frentes ricas e diversificadas de reforma dagestão pública. A democracia, a complexidade do aparato estatal e a frag-mentação das questões de gestão pública em múltiplas jurisdições expli-cam em parte a diversidade. Mas cada trajetória tem uma dinâmica própria.Este ponto termina com a seleção e caracterização de três casos da trajetó-ria de reforma institucional que serão estudados em profundidade.

O segundo propósito do estudo é analisar a dinâmica do processo deformulação da política de gestão pública em três casos, correspondentesà trajetória de reforma institucional. As Partes III, IV e V buscam explicara mudança de trajetória de políticas de gestão pública a partir das mudan-ças na composição dos elementos do modelo explicativo adotado (visãodos problemas e soluções, locus institucional e coalizões mediante a açãode um empreendedor) e identificar pontos de convergência entre si ou(diálogos) com outras trajetórias. Não se trata de caracterizaçãohistoriográfica, nem enquadramento taxonômico baseado em esquemaspré-definidos ou no discurso oficial, nem avaliação do conteúdo ou domérito intrínseco de tais políticas (sua pertinência ou relevância em rela-ção à dinâmica do contexto e do estado da arte). Trata-se de uma análisedo processo de formulação (fases pré-decisional e decisional) eimplementação destes casos de política de gestão pública que buscaexplicar o que mudou (em termos de orientação), porque as mudançasocorreram e em que extensão a trajetória está mais ou menos integradacom as demais. Buscam-se, com efeito, elementos para uma caracteriza-ção empírica da fragmentação (vertical, entre diferentes trajetórias e fren-tes e horizontal, dentre diferentes fases ao longo de uma mesma frente)das políticas de gestão pública no período estudado. A Parte VI buscaapresentar um balanço geral e perspectivas da trajetória nas suas trêsfrentes: reestruturação dos ministérios e melhoria de gestão, organiza-ções sociais e agências executivas.

O terceiro propósito deste estudo é buscar identificar e analisar fato-res de fragmentação subjacentes aos casos estudados. Consistente comeste propósito, a Parte VII busca sustentar que falhas na coordenação

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governamental explicam boa parte da fragmentação e discorre sobrecinco categorias de falhas na coordenação: a)liderança executiva presi-dencial e a coordenação delegada; b)os vieses da coordenação delegada;c)o colapso das instâncias interministeriais de coordenação; d)adescoordenação intraministerial; e e) a impossibilidade de autocoordenaçãono topo e na base. Atribui-se, assim, um expressivo peso à variávelcoordenação na fragmentação das políticas de gestão pública no períodoabrangido pelo estudo. A fragmentação é tratada tanto como conflito ouambigüidade característicos das políticas intersetoriais e dos contextosinstitucionais complexos, quanto como um custo de oportunidade que pro-duz ineficiência alocativa, ineficácia e reducionismo. Em situações de altacomplexidade institucional e baixa liderança executiva e coordenação, ocontrole dos governos sobre as políticas de gestão pública que eclodemdentro de seu espaço político-administrativo pode ser questionado.

I - POLÍTICAS DE GESTÃO PÚBLICA COMO UM PROCESSO

O propósito deste segmento é apresentar um modelo explicativo a partirdo qual as políticas de gestão pública no período 1995-2002 e seusprocessos constitutivos possam ser caracterizados. Tratar as iniciativas dereforma da gestão pública como processos de mudança de políticas pú-blicas e de gestão pública possui uma série de vantagens em relação aotratamento convencional que o objeto tem recebido na literatura(BARZELAY; 2001). Primeiramente, o tratamento permite uma aborda-gem mais científica, baseada na aplicação de modelos de análise depolíticas públicas a partir de coleta sistemática de dados qualitativos coma finalidade de explicar as mudanças nas opções de políticas de gestãopúblicas (porque umas e não outras). Isso difere da avaliação de opçõesbaseada em critérios puramente normativos. Tais abordagens proporcio-nam inferências em bases mais objetivas sobre a dinâmica dos processosde formulação e implementação de políticas de gestão pública, mediante,inclusive, um maior grau de comparabilidade em relação às abordagensbaseadas em argumentação doutrinária, que se voltam predominantementea análises de mérito e identificação de fatores críticos de sucesso.

Em segundo lugar, o modelo explicativo em questão posiciona-se naperspectiva da seleção temporal (SABATIER; 1999), que permite umacompreensão dos processos de geração e transformação das políticaspúblicas como uma combinação instável de problemas, soluções, pessoas

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e circunstâncias. Esta abordagem representa uma evolução em relação àsabordagens heurísticas de análise de políticas públicas, baseadas na ca-racterização de faseamento sistêmico estanque: estado de coisas emobilização de atores como inputs do processo; formulação da agenda,priorização, especificação de alternativas e debates sobre issues em are-nas específicas como processamento; e decisão política como output doprocesso, principalmente a partir de Easton (1965)2.

A abordagem da seleção temporal também contrasta com o trata-mento no âmbito da abordagem institucional da escolha racional(OSTROM, GARDNER & WALKER; 1994), que privilegia a correlaçãoentre estruturas (regras, papéis e incentivos) e impactos das políticas

2 A visão sistêmica de políticas públicas como respostas (outputs) a problemas e demandas (inputs)

impera na literatura de ciência política a partir da proposição original de David Easton, ilustrada naFigura 6.

O modelo de Easton é uma compreensão cibernética da vida política. Os sistemas políticos, naqualidade de sistemas vitais, constituem, sob esta visão, sistemas auto-regulados. Easton rejeita oequilíbrio, considerando o sistema político em fluxo contínuo de resposta ao ambiente externo. Ossistemas políticos são “a set of interactions abstracted from the totality of social behavior, throughwhich values are authoritatively allocated for a society” (Easton, 1965A, 1965B). A questão funda-mental a ser respondida é: “how political systems manage to persist through time in the face ofinevitable stress”.A visão de Easton sobre o sistema político proporcionou um modelo de análise de políticas públicas.Nesta visão, o sistema político aparece como um conjunto de elementos interrelacionados por pa-drões de comportamento e ações. O propósito do sistema politico é conveter inputs (demandas eapoios) em outputs (decisões). Os principais elementos do sistema são ações políticas (decisões,demandas, apoios, ações de implementação, etc.). A fronteira do sistema determina o que é parte suae o que não é, ou quais ações são consideradas políticas (endógenas) ou não (exógenas, ações econdições do ambiente). Esta visão está desenvolvida na Figura 7.Figura 7. Modelo sistêmico de análise de políticas públicas.

Nessa perspectiva, a análise de políticas públicas envolve a análise dos elementos do processo dedecisão política (dos inputs aos outcomes, passando-se pelo modelo de decisão política e pelo modelode comportamento dos atores envolvidos).

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em questão segundo critérios avaliativos de eficiência. Não obstante,a perspectiva da seleção temporal está mais epistemologicamenteidentificada com o tratamento qualitativo de dados, ao passo que umaabordagem de corte institucionalista da escolha racional demandariamensuração de impacto que, tendo em vista o período em questão,ainda não é possível.

O modelo explicativo adotado parte da definição de Barzelay (2001)sobre políticas de gestão pública e de uma variação do modelo de Kingdon(1995) de análise de políticas públicas. De forma genérica, Políticas Pú-blicas são um conjunto articulado e estruturado de ações e incentivos quebuscam alterar uma realidade em resposta a demandas e interesses dosatores envolvidos. Uma política pública é fruto de um processo de deci-são política, usualmente consubstanciado em uma disposição normativa(lei, decreto, documento de governo ou outra forma de policy outcome)que demanda competência autorizativa no âmbito governamental (execu-tivo ou, na maior parte das vezes, executivo e legislativo). As políticaspúblicas dispõem usualmente sobre “o que fazer” (ações), “onde chegar”(objetivos relacionados ao estado de coisas que se pretende alterar) e“como fazer” (princípios e macro-estratégias de ação).

Na definição de Barzelay (2001): “políticas de gestão pública refe-rem-se a regras e rotinas que se aplicam à administração pública comoum todo em relação à macro-organização governamental, processo deplanejamento, orçamento e gestão financeira, funcionalismo, organizaçãode sistemas e métodos, controle e avaliação e aquisições”.

O modelo de correntes múltiplas (multiple streams) de Kingdon (1984)é uma variação do modelo da garbage can (MARCH & OLSEN, 1989) quepermite explicações em situações complexas e fluídas. Os postuladosbásicos do modelo de Kingdon são que agenda difusa é uma característi-ca das políticas de gestão pública e decisões de políticas de gestãopública (formulação e reformulação) acontecem pela combinação de umproblema, um fluxo político e um fluxo de política pública, convergida ecatalisada pela ação empreendedora de um “líder ou empreendedor dapolítica pública”. Correntes (streams) são uma combinação de problemas,soluções e participantes, arregimentados por um empreendedor. Nessesentido, os produtos das políticas são uma mistura de “lixo” (garbage):“pessoas trabalham em problemas quando uma combinação particular deproblema, soluções e participantes em uma escolha torna isto possível”.(KINGDON, 84:86) A figura abaixo busca ilustrar o modelo.

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A aplicação do modelo implica em se desconstruir o processo de agen-da setting em suas três correntes básicas: a)reconhecimento do problema ede condições problemáticas; b)formação e refinamento de propostas depolíticas (what to do ideas); e c)definição da corrente política: valores,pressões e barganha. Quando as três correntes convergem e se combinam,abre-se uma janela de política pública (policy window). As formulações ereformulações nas políticas de gestão pública ocorrem por ações empreen-dedoras (pessoas ou organizações a partir de pessoas) que combinam ascorrentes quando uma oportunidade de janela de política pública surge.

Nessa dinâmica, a variável tempo e senso de oportunidade são críticasporque quando uma janela de política se abre (influenciada ou não poração empreendedora) a ação deve ser instantânea. Dentre os exemplosde oportunidades de policy windows estão eventos políticos, crises, cho-ques, rotatividade de dirigentes e oportunidades sazonais. Se os empre-endedores perdem uma oportunidade de policy window, devem aguar-dar surgir a próxima. As chances das issues evoluírem estão relacionadasà convergência das correntes, elementos ambientais e acaso (como ele-mento fuzzy de complexidade).

Procedeu-se a duas modificações no modelo de Kingdon: a)incorporou-se a fase de implementação, modificação esta já elaborada e utilizada porZahariadis (1995); e b)incorporou-se variáveis relacionadas à coalizão e àfigura do corretor, modificações estas oriundas da abordagem da advocacycoalition (SABATIER & JENKINS-SMITH,1988). Segundo o modelo modi-ficado, ilustrado na figura abaixo, o que caracteriza uma janela real oupotencial de política pública, é a conjunção de problemas, soluções (mo-

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deladas por instâncias que se caracterizam pelo domínio da política pú-blica) e coalizões (intra e extra-governamentais) para implementação dassoluções propostas por um empreendedor (aquele que consegue antever,provocar ou aproveitar a janela juntando problemas, soluções e coali-zões). Metaforicamente, governos são um caldeirão (tradução mais palatávelde garbage can) de problemas, soluções, domínios, coalizões e empreen-dedores capazes de transformar estes ingredientes numa sopa minima-mente coerente. Questões pertinentes a domínios de jurisdição3 de polí-ticas públicas e mobilização da atenção4 de atores ao longo do processosão críticos.

4 March & Olsen (1989) argumentam que atenção é um recurso escasso. A associação de oportunida-

des, escolhas, problemas, soluções e atores dependem grandemente da sustentabilidade da atençãopor parte do executivo principal. A problemática da alocação da atenção é ainda maior em eventosde curta duração. Iniciativas de desenho e redesenho de políticas de gestão pública à luz do GCM sãomarcadas por ambigüidades e quase-soluções. Manter contínua atenção em iniciativas conflitivas édifícil. Barganhas políticas costumam minar iniciativas reformistas. Nesse contexto, a atenção presi-dencial pode ser facilmente deslocada, o que torna mais difícil a manutenção do ímpeto inicial dereforma na medida em que os ganhos são de longo prazo. March (1994) detalha esta teoria emcontextos nos quais alternativas, conseqüências e preferências são imperfeitamente conhecidas eincorpora uma “ecologia da atenção” na análise de políticas públicas. Há uma constante compara-ção entre desempenho e metas por parte dos atores envolvidos, a partir da qual desempenho abaixodas metas significa maior busca por atenção, ao passo que desempenho além das metas demandamenor atenção. A dinâmica desta abordagem é ainda maior porque além da busca por atenção serafetada pelo grau de sucesso ou fracasso, as aspirações mudam e a busca depende da oferta edemanda de informações.

3 Barzelay (1986) propõe que a análise de iniciativas de desenho e redesenho de políticas de gestão

pública deve considerar a dinâmica da solução de conflitos e problemas de competição entre estru-turas de autoridade e delegação. O conflito se estabelece em torno de policy issues e competições sobreâmbitos de atuação (jurisdições). As competições jurisdicionais se estabelecem pela superposição deautoridades sobre as mesmas áreas de produção de um bem ou serviço ou regulação, em razão demaior complexidade, idade, porte etc. O conflito surge quando a organização com jurisdição sobre-posta discorda da política da outra ou demais, situação que leva a uma quase-solução. O conflito seresolve quando a autonomia de uma agência é restringida ou há redefinição da política em um nívelmaior. Quanto mais abrangentes os objetivos e a quantidade de agências envolvidas (com ou semsobreposição) mais difusa a autoridade do formulador.

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II - UM MAPA DAS PRINCIPAIS POLÍTICAS DE GESTÃO PÚBLICAS NO PERÍODO 1995-2002

Objetivo deste segmento é proporcionar uma visão geral das políticas degestão pública no Poder Executivo Federal no período 1995-2002, carac-terizadas à luz do modelo explicativo desenvolvido. Posta em perspecti-va histórica, a singularidade marcante das reformas da era FHC, além docontexto da globalização e do abrangente processo de reordenamentoinstitucional que as sociedades democráticas vêm passando, é a ocorrên-cia de iniciativas sistemáticas de reforma do estado na democracia, con-junção incomum de duas trajetórias constitutivas do processo de constru-ção nacional, a construção democrática e a construção burocrática, queguardam uma relação de conflitos e disfuncionalidades recíprocas.

Os casos demarcados no período 1995-2002 fazem parte de umatrajetória de construção burocrática cujos momentos mais significativosem termos de iniciativas sistemáticas foram promovidas por regimes au-toritários (reforma daspiana na era Vargas e reformas a partir do Decreto-

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Lei 200 no regime militar). As trajetórias de construção burocrática edemocrática têm sido mutuamente excludentes: os ciclos de democratiza-ção provocaram retrocessos aos avanços burocratizantes (MARTINS, 1995).

2.1 A estratégia administrativa do presidenteNão obstante a perspectiva histórica, a origem imediata, o movimento ouinclinação inercial de partida pode ser definido como a estratégia admi-nistrativa do Presidente5 e possui 3 principais elementos: a)a transforma-ção do papel do Estado e das estratégias de desenvolvimento; b)as fun-ções vitais da burocracia pública; e c)os modelos institucionaisdiferenciadores.

O primeiro elemento trata da crítica das noções cepalinas dos anos 60 dedesenvolvimento autóctone e da crença de que fora do Estado não há solu-ção. No lugar destes, adota-se uma concepção advinda da globalização, apartir da qual o desenvolvimento depende da abertura comercial, da inser-ção e das interdependências econômicas e envolve um reordenamento defunções entre o governo, o mercado e a emergente sociedade civil organiza-da. Em síntese, era clara a visão presidencial de que o Estado deveria mudarseu perfil de atuação, tornando-se mais regulador e menos produtor.

Em relação ao segundo elemento, as funções vitais da burocracia, háduas questões fundamentais na perspectiva presidencial: 1) a crença deque a efetiva administração burocrática não demande transformações es-truturais profundas, ou seja, de uma mudança de paradigmas, requerapenas ajustes finos e melhorias localizadas; 2) a crença de que os órgãosvitais da burocracia pública federal (tais como Banco Central, Ministérioda Fazenda e Itamarati) já estavam otimizados, tendo bons quadros emarcos institucionais bem definidos.

O terceiro elemento da estratégia administrativa presidencial apontapara a necessidade de apenas um modelo diferenciador: empresas públi-cas e sociedades de economia mista, “corporações públicas” na definiçãopresidencial, que demandariam regras especiais de gestão para operarem mercados dinâmicos.

5O conceito de estratégia administrativa presidencial consiste em uma fase pré-decisional de formu-

lação de políticas públicas, a partir da conjunção de elementos que podem caracterizar umaestratégia implícita, emergente, uma inclinação ao desenho de política pública. O conceito se aplicaporque não havia no programa de governo em 1994 uma política explícita de reforma do estadoclaramente definida.

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2.2. Identificando trajetórias de políticas de gestão pública

Esta posição de partida que, em princípio, apontaria para políticas degestão pública predominantemente desestatizantes “explodiu” em seisvigorosas trajetórias:

• reforma institucional (reestruturação de ministérios, melhoria de gestãoe implantação de modelos institucionais tais como organizações sociais eagências executivas);

• gestão-meio (políticas de Recursos Humanos e Tecnologia da Infor-mação);

• gestão estratégica (Eixos de Desenvolvimento e Plano Plurianual);• aparato regulatório (construção de instituições regulatórias);• gestão social (mobilização, capacitação e modelos de parceria com

o terceiro setor); e• gestão fiscal (orçamento, privatização, renegociação da dívida dos

estados e lei de responsabilidade fiscal).O Quadro 1 apresenta sinteticamente as diferentes perspectivas das

trajetórias de reforma do Estado analisadas e permite uma noção da diver-sidade. Revela-se uma pluralidade de visões sobre os problemas, solu-ções e valores, mediante diferentes empreendedores e coalizões.

O empreendedor é alguém que estabelece a ligação entre problemase soluções percebidas e modeladas em um determinado domínioinstitucional e constrói coalizões para implementá-las sob a forma depolíticas.

A estrutura de trajetórias apresentada na Figura 1 permite uma visãodinâmica das políticas de gestão públicas no período 1995-2002. Umatrajetória é um conjunto de frentes (iniciativas estruturadas de ação) pre-dominantemente convergentes que passam por diferentes fases em mo-mentos distintos. Pretende-se, assim, desenvolver uma visão dinâmica datrajetória, que se contrapõe à visão heurística, baseada em faseamentoestanque e mecânico (formulação e implementação de forma seqüenciada).Ao contrário, a trajetória é um processo dinâmico onde questões de dese-nho e de implementação se misturam no tempo como parte de um contí-nuo processo de transformação das políticas de gestão pública. A diversi-dade de instâncias institucionais, áreas de jurisdição ou monopólios depolíticas públicas (BAUMGARTNER & JONES; 1993) estão representadospor cores. Uma breve apreciação da Figura 1 permite ao observadorperceber a pluralidade de temas conexos, fases e instâncias envolvidas.

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Com respeito ao conjunto da figura, uma questão que subjaz às distin-tas trajetórias é porque ocorreram, sendo que nem todas podem ser con-sideradas convergentes com a trajetória histórica ou com a estratégiaadministrativa do Presidente.

A ausência de uma política única “oficial” em torno da qual se buscas-se integrar esforços no âmbito de outras políticas de forma coordenada,deixou o caminho livre para a ação de diferentes empreendedores. Aprópria postura presidencial de não abortar iniciativas que não convergi-am com sua estratégia administrativa também explica a pluralidade decasos, na medida em que abriu espaço para demandas de diferentessegmentos de dentro e de fora do governo. Assim, a pluralidade depolíticas de gestão pública no período 1995-2002 pode ser creditada adiferentes combinações de problemas, visões, possibilidades de soluçõese ações de diferentes empreendedores e suas coalizões.

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2.3. Uma descrição sucinta das trajetórias2.3.1. Reforma institucionalA trajetória da reforma institucional compreende um conjunto de iniciati-vas de políticas de gestão pública voltadas à melhoria da gestão, comênfase no fortalecimento da capacidade da administração do poder exe-cutivo central em formular e implementar políticas públicas, mediante aaplicação de modelos institucionais, abordagens de otimizaçãoorganizacional (tais como gestão da qualidade etc.) e/ou processos dirigi-dos de transformação organizacional.

Para a trajetória da reforma institucional, o quadro de problemas queaflige a administração estatal relaciona-se, em última análise, à defasagem daadministração burocrática clássica face aos cenários emergentes da globalizaçãoe da crise do estado. Como solução à superação deste estado de coisas, atrajetória se baseia na proclamação de uma nova gestão pública, a partir da“administração gerencial” e da “gestão pública empreendedora”.

Os principais case outcomes desta trajetória são: o Plano Diretor daReforma do Aparelho do Estado, lançado pelo MARE em 1995; EmendaConstitucional nº 19, no que tange à incorporação do parágrafo 8º ao art.37 da CF que dispões sobre ampliação da autonomia de gestão mediantecontrato de gestão; as Leis nº 9.637 (organizações sociais) e 9.648/98(agências executivas); e os Decretos 2487 e 2488/98, sobre contratos degestão e qualificação de agências executivas.

Os princípios que inspiraram o desenho de políticas de gestão públi-cas sob esta trajetória estão relacionados aos princípios gerais da denomi-nada nova gestão pública: flexibilidade, orientação para resultados, focono cliente e accountability/controle social.

Os principais loci institucionais desta trajetória são a Secretaria daReforma do Estado do MARE e a Secretaria de Gestão do Ministério doPlanejamento, Orçamento e Gestão (MP). Os empreendedores da trajetó-ria se alternam em diferentes momentos: Bresser-Pereira, Clovis Carvalhoe Martus Tavares. As coalizões em torno destes atores também se alter-nam, mas incluem, principalmente, atores próximos ao Presidente noâmbito da Casa Civil, tais como Pedro Parente e Silvano Gianni.

2.3.2. Gestão-meioA trajetória gestão-meio compreende um conjunto de políticas de gestãopública voltadas à gestão dos recursos organizacionais, nomeadamenterecursos humanos, logísticos e informacionais.

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Esta trajetória se destaca das demais porque encerra uma visão pecu-liar a respeito do problema objeto das intervenções, qual seja, a impe-rativa necessidade de reversão da tendência de crescimento inercial dafolha de pagamento (face ao iminente estrangulamento fiscal), a preca-riedade de controles e informações efetivas sobre os recursos humanose a precariedade de instrumentos e recursos para formulação eimplementação das políticas públicas, como requisito e suporte à refor-ma institucional.

As soluções consistiam em reordenamento jurídico do funcionalismo(mediante, inclusive, alterações constitucionais, de tal modo que direitose prerrogativas onerosas pudessem se converter em maior flexibilidadena composição de quadros, carreiras e na própria gestão de RH),reorientação da política de RH segundo os princípios da nova gestãopública (recomposição de quadros formuladores e reguladores medianteconcursos programados, carreiras mais horizontais, recomposições salari-ais diferenciadas, remuneração por desempenho, redefinição da estruturade cargos comissionados etc.), modernização dos sistemas centralizadosde gestão de recursos humanos e compras, mediante maciça aplicação deTI (Tecnologia da Informação) e implementação do governo eletrônico,no que concerne à infra-estrutura informacional para otimização de pro-cessos, da dinâmica decisória e disponibilização de serviços e informa-ções em plataformas remotas.

Os principais “case outcomes” desta trajetória são o próprio PlanoDiretor, que elabora um diagnóstico do funcionalismo e dá o direcionamentodas políticas de RH e TI; a Emenda Constitucional nº 19, que permite oregime jurídico múltiplo, a demissão por excesso de quadros ou insufici-ência de desempenho e a política de reajustes diferenciados, pondo fimà isonomia salarial); e a MP 2.200/01, que regulamenta um item da polí-tica de TI, qual seja a infra-estrutura de chaves públicas.

Os princípios orientadores desta trajetória são centralização, controle,contenção, eficiência, foco no cliente e transparência, uma mescla deprincípios oriundos da nova gestão pública com outros consagrados naconcepção burocrática clássica.

Esta trajetória comporta múltiplos loci institucionais, as Secretarias deRecursos Humanos e Secretaria de Logística e Tecnologia da Informação,que já pertenceram ao MARE, à SEAP e ao MP. Há, nesta trajetória, umacadeia de empreendedores: Bresser-Pereira, Cláudia Costin e Pedro Pa-rente, mediante coalizões que variavam entre o eixo Fazenda-Planeja-

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mento, principalmente para as questões de política de RH, e a Casa Civil,principalmente para as questões de política de TI.

2.3.3.Gestão estratégicaA trajetória da gestão estratégica consiste em um conjunto de políticas degestão pública voltadas à prospecção e formulação estratégica, em âmbi-to nacional, no sentido de se configurar um plano de desenvolvimento,bem como a gestão de programas governamentais, um conjunto de açõesvinculadas à prévia definição de resultados que deveriam orientar a ges-tão pública.

O quadro de problemas no qual esta trajetória se apóia é a faltade orientação finalística precisa das ações governamentais e a au-sência de uma postura empreendedora para o alcance de resultadospor parte dos dirigentes públicos. Tais problemas urgiam soluçõessistêmicas na medida em que o Plano Diretor, no bojo das trajetóriasde reforma institucional e gestão-meio, voltara-se à transformaçãodo aparelho do estado sem apontar um direcionamento estratégico(embora tentasse obtê-lo).

A solução estava na elaboração de um plano de desenvolvimento queservisse como macro-referência estratégica para o conjunto da adminis-tração (e também para a iniciativa privada), a partir do qual o PlanoPlurianual pudesse ser elaborado, dispondo a ação governamental sob aforma de Programas (disposição esta em relação à qual o sistema deorçamento deveria se conformar, substituindo a classificação funcional-programática fixa pela estrutura de programas do PPA). Tais soluçõescoadunavam-se com o resgate do planejamento governamental nos anos90, viabilizado pela aplicação de TI na programação e acompanhamentoda ação governamental.

Os principais case outcomes são o Estudo dos Eixos, que elaboraeixos de desenvolvimento a partir da identificação de clusters produti-vos, a Lei nº 9.989/2000, que dispõe sobre o Plano Plurianual para operíodo 2000-2003, suas alterações e decretos regulamentadores.

Os princípios da gestão estratégica são foco em resultados eempreendedorismo, princípios estes oriundos da abordagem da gestão deprojetos, segundo a doutrina do Project Management Institute (PMI), quedepositavam forte responsabilidade na figura do gerente de programa.

O locus institucional desta trajetória foi o Ministério do Planejamento,Orçamento e Gestão. José Paulo Silveira, titular da Secretaria do Planeja-

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mento e Investimento Estratégico, foi o empreendedor desta trajetória,cuja coalizão incluía Clóvis Carvalho, Pedro Parente e Martus Tavares.

2.3.4.Aparato regulatórioEsta trajetória compreende um conjunto de políticas de gestão públicavoltadas à construção de instituições regulatórias, incluindo-se a definiçãodos marcos regulatórios e a implementação das agências reguladoras.

Há três núcleos de problemas que justificam as intervenções no âmbi-to da trajetória: a)a necessidade de atrair investimentos para a privatizaçãodecorrente do rearranjo de funções estatais, principalmente no que concerneao atendimento ao requisito de estabilidade de regras; b)a necessidadede estabelecimento de novos marcos regulatórios em mercados sociaisde grande impacto, tais como fármacos e saúde suplementar, de altasensibilidade política e histórico de disfunções graves (medicamentosfalsos e planos de saúde fraudulentos); e c)dificuldades operacionaispara o exercício de funções alegadamente regulatórias (em sentido am-plo, normatizadoras e fiscalizadoras em qualquer setor de atividades esta-tais) em diversos órgãos e entidades governamentais, o que demandaria aobtenção de autonomia e flexibilidade diferenciadas.

A solução para as três categorias de problemas, que se entrecruzamde forma diferenciada em diferentes casos, recairia na implementação deAgências Reguladoras. Consistente com as soluções, os princípios destatrajetória são estabilidade de regras, autonomia e flexibilidade.

Os principais case outcomes estão relacionados às próprias agênciascriadas no período 1995-2202: Leis 9.782/99 (ANVISA), 9.961/00 (ANS),9.427/96 (ANEEL), 9.472/97 (ANATEL), 9.478/97 (ANP), 9.984/00 (ANA),10.233/01 (ANTAQ e ANTT) e MP 2.228/01 (ANCINE).

Esta trajetória comporta uma multiplicidade de loci institucionais: mi-nistérios da Saúde, Comunicações, Minas e Energia, Cultura e Transpor-tes. Os principais empreendedores são Sergio Motta, David Zilbersztajn,José Serra, Clovis Carvalho, Francisco Weffort, Eduardo Jorge e PedroParente, na qualidade de ministros responsáveis pelas áreas reguladas eministros do núcleo central decisório de governo. Pedro Malan, Bresser-Pereira e lideranças do Congresso Nacional figuram dentre os principaisatores das diferentes coalizões que se firmaram.

2.3.5.Gestão socialEsta trajetória compreende um conjunto de políticas de gestão pública

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voltadas à capacitação e articulação de segmentos organizados da socie-dade civil, visando o desenvolvimento de capacidades locais para a pro-moção do desenvolvimento sustentável e provimento de bens públicos,mediante, inclusive, a parceria com o poder público.

A visão do problema comporta dois elementos: a)a consolidação doassociativismo como capacidade dinâmica da sociedade brasileira con-temporânea; b)a apropriação inadequada de modelos de fomento à livreiniciativa social (tais como os títulos de utilidade pública e filantropia).Daí, a necessidade de desenvolvimento de instrumentos adequados defomento ao associativismo e ao desenvolvimento de capacidades locaispara a busca autônoma e participativa de soluções sustentáveis de desen-volvimento. A solução se concretizaria mediante a capacitação de gestoressociais do estado, a capacitação de atores locais e a implementação demodelos institucionais de parceria público-privado.

Os principais case outcomes são o Decreto nº 1.366, de 12 de janeirode 1995, que institui o Programa da Comunidade Solidária, e a Lei nº9.970/01, que institui a figura da Organização da Sociedade Civil deInteresse Público (OSCIP).

Os valores-chave desta trajetória são parcerias, mobilização, articula-ção, aprendizado, desenvolvimento local sustentável e cidadania. Os prin-cipais empreendedores são Ruth Cardoso, a primeira-dama, e Augusto deFranco. Há uma sólida coalizão formada em torno desta trajetória a partirde Clovis Carvalho, Eduardo Jorge, Pedro Parente e Pedro Malan.

2.3.6.Gestão fiscalEsta trajetória é composta por uma série de políticas de gestão públi-

ca, notadamente na área orçamentária, patrimonial e financeira, que sedestina, em última análise, à promoção do ajuste fiscal. Nesse sentido,estas políticas posicionam-se como apêndices da política econômica e,por esta razão, são dotadas de marcante centralidade no governo.

Em geral, a visão do problema nesta trajetória está relacionada à ne-cessidade de manutenção da política econômica, que implica a geraçãode superávits primários expressivos e a conseqüente necessidade deredução de gastos. A solução passa: a)pela redução de gastos de formaestrutural, mediante privatização ou outras formas de desestatização, re-forma previdenciária e do funcionalismo, ou de forma emergencial, me-diante a prática do que convencionou chamar repressão fiscal(contingenciamentos orçamentários e financeiros); b)pelo aumento da re-

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ceita, mediante ações modernizadoras no âmbito da Secretaria da ReceitaFederal; e c)estabelecimento de mecanismos de controle das finançaspúblicas nos níveis federal, municipal e estadual, incluindo-se arenegociação das dívidas dos governos estaduais com a União.

Dentre os inúmeros case outcomes, que variam de medidas relacionadas àprivatização, ao contingenciamento orçamentário e ao recolhimento de tribu-tos, destaca-se a Lei Complementar 104/00, a Lei de Responsabilidade Fiscal.

Os valores centrais da trajetória fiscal são: austeridade, controle econtenção. Seus principais empreendedores são Pedro Malan, Pedro Pa-rente e Martus Tavares, ministros da área econômica. A coalizão em tornodesta trajetória representa a totalidade do poder central de governo: Clo-vis Carvalho, Eduardo Jorge e, sucessivamente, Pedro Parente.

2.4. Seleção dos casosA identificação dos casos dentro de cada trajetória ou dentre diferentestrajetórias pode seguir vários critérios, uma vez que os eventos em questãose apresentam de forma matricial: distintas frentes (temas) que atravessamdistintas fases (tempo). Considera-se, para efeito deste trabalho, que umcaso corresponde a um conjunto de frentes numa determinada fase.

Assim os casos a serem analisados em profundidade nos próximossegmentos correspondem a três períodos temporais da dinâmica da traje-tória da reforma institucional em suas três frentes (ações de reestruturaçãode ministérios, melhoria de gestão e modelos institucionais tais comoagências executivas e organizações sociais):

• CASO 1: período entre 1995 e 1998, denominado Plano Diretor;• CASO 2: período entre 1999 e maio de 2001, denominado Gestão

pública empreendedora I;• CASO 3: período entre 2001 e 2002, denominado Gestão pública

empreendedora II.Estes casos assim se definem porque correspondem a diferentes mo-

mentos das políticas de gestão pública. Todavia, para efeito de outrosestudos e comparações, os casos podem também corresponder a um con-junto de frentes ou trajetórias de uma mesma fase cronológica, embora dedistintas políticas de gestão pública, ou de uma mesma instância institucional.

Segundo o conceito adotado no faseamento, cada nova fase do pro-cesso contínuo de transformação da política de gestão pública caracteri-za-se por nova visão do problema, novas soluções modeladas nos lociinstitucionais competentes, novas coalizões e novos empreendedores em

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busca de uma janela. O Quadro 2 busca caracterizar as políticas de gestãopública da trajetória da reforma institucional.

Examinar-se-á a seguir estes três casos da perspectiva da reformainstitucional. Esta trajetória comporta três frentes e três fases bem distin-tas, cada qual representando diferentes perspectivas de desenho e deimplementação.

III - CASO 1: O PLANO DIRETOR (1995-1998)

A fase Plano Diretor é o período no qual são lançadas as três frentes datrajetória: a)reestruturação do núcleo estratégico e melhoria da gestão;b)organizações sociais; e c)agências executivas.

O amálgama das iniciativas nesta fase é a proposta de reordenamentoinstitucional do Poder Executivo federal constante do Plano Diretor da

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Reforma do Aparelho do Estado. O Plano Diretor adotava um modelo decategorização das funções do estado e prescrevia uma estratégia diferen-ciada para cada categoria:

• para o núcleo estratégico formulador das políticas públicas caberiafortalecer as funções tipicamente burocráticas tais como carreiras típicasde estado baseadas em competências formuladoras e estruturas ministeri-ais setorizadas operando de forma otimizada mediante melhoria de pro-cessos e sistemas de informações;

• para o conjunto de atividades exclusivas, aquelas que demandavamo poder de polícia coercitivo do estado para implementação de políticas(fiscalização, concessão de benefícios, fomento etc.), propunha-se o mo-delo de agência executiva, uma qualificação que autarquias e fundaçõespúblicas poderiam receber para operar com maior flexibilidade e orien-tar-se por resultados (dispostos em contrato de gestão);

• para o conjunto das atividades não exclusivas, aquelas destinadas aimplementação de políticas públicas que envolvem prestação de servi-ços de relevância pública em áreas de saúde, educação, cultura, meioambiente etc. e que não demandam poder específico do Estado, emboramuitas constituam obrigação do estado, o Plano Diretor propunha ummodelo institucional mais inovador: as organizações sociais. Trata-se deuma qualificação que entidades privadas (associações ou fundações) po-dem receber para desempenhar atividades de relevância pública, medi-ante contrato de gestão firmado com o Poder Público, quer estas tenhamsido absorvidas do Estado (implicando na extinção da entidade estatal) ounão (quer se trate de uma ONG já atuante que passa a contar com maisum instrumento de cooperação com o Estado, além dos convênios eajustes afins).

• para o conjunto de atividades voltadas a produção de bens e servi-ços para o mercado, o Plano Diretor propunha a privatização, de formaconvergente com o que já vinha acontecendo, desde 1990, no âmbito doPrograma Nacional de Desestatização6.

Esta proposta se apoiava basicamente na divisão contratual do trabalhoburocrático entre os “principais” do núcleo estratégico e os “agentes”implementadores das atividades exclusivas (agências executivas) e não-exclusivas (organizações sociais). O enfoque contratual é um dos princi-pais ingredientes da nova gestão pública, cujos princípios formam, grosso

6 Lei nº 8031 de 12/04/90.

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modo, a essência da “administração gerencial” proposta no Plano Diretor.As três principais frentes desta trajetória guardam estreita consistência

com este quadro de referência: a)Projeto de Avaliação e ReordenamentoInstitucional (PARI), posteriormente denominado Programa deReestruturação e Qualidade (PRQ); b)organizações sociais (OS); e c)agênciasexecutivas (AE).

3.1.Reestruturação do núcleo estratégico e melhoria de gestãoA primeira frente, reestruturação do núcleo estratégico e melhoria degestão em geral, tem como antecedentes a reorganização da macroestruturagovernamental, em razão da posse do primeiro governo FHC em janeirode 1995, e a denominada via expressa, uma proposta abrangente deracionalização de estruturas ministeriais baseadas na fusão, extinção eprivatização de órgãos. Complementarmente, deu-se início ao desenvol-vimento de metodologia que possibilitasse o estabelecimento de umalotação adequada7 para cada órgão e entidade. A ênfase desse projeto erao corte de gastos necessário ao ajuste fiscal. Ambas iniciativas não foramplasmadas dentro do espírito do Plano Diretor, mas ambas influenciarama primeira iniciativa estruturada desta frente: o PARI, que além de tomar amacro-organização governamental como um dado (político, pois o espa-ço para proposição técnica de fusões e cisões ministeriais era reduzidíssimo),buscava apoiar e se pautar nas definições da via expressa.

O clímax da primeira fase desta primeira frente é a transformação, apartir de 1997, do Projeto Avaliação do Reordenamento Institucional emPrograma de Reestruturação e Qualidade (PRQ), que se complementacom outros dois Programas: Apuração de Gastos Governamentais (Conta-bilidade Gerencial)8 e Unidades Descentralizadas do Governo Federal9.Tais programas estavam voltados ao fortalecimento do núcleo estratégi-co. Visavam dotar os ministérios de melhores condições de formulação esupervisão de políticas sob sua responsabilidade, mediante: a)planejamentoestratégico, contemplando a avaliação da missão, a definição da visão defuturo e a elaboração de um plano de ação com a definição de objetivos,

7 Trata-se da força de trabalho necessária ao cumprimento da missão do órgão.

8 O PAGG tinha como objetivo introduzir a apuração de custos das atividades/programas/projetos dos

órgãos e entidades do Governo Federal.9 O Programa de Racionalização das Unidades Descentralizadas dos Governo Federal visava a

racionalização da ação governamental e das atividades administrativas nos estados (delegacias dosMinistérios nos estados).

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indicadores e metas de desempenho e melhoria de gestão; e b) propostade redefinição da estrutura organizacional e de novo arranjo institucionalda atuação ministerial, tendo como referencial a execução direta dasfunções formuladoras e supervisoras e a contratualização com agênciasexecutivas e organizações sociais das atividades implementadoras. O pro-grama valia-se, para tanto, de metodologia de sensibilização, capacitaçãoe análise do modelo de gestão consagrada no âmbito do programa daqualidade na administração pública. A estratégia era utilizar a abordagemda qualidade como alavanca.

O Programa Brasileiro da Qualidade e Produtividade existia desde1990, mas foi revigorado no MARE (Os instrumentos de avaliação dagestão foram aprimorados e foi instituído o prêmio da qualidade no go-verno federal). Ele se propunha como abordagem de melhoria de gestãoaplicável não apenas ao núcleo estratégico, mas a qualquer órgão eentidade pública (e mesmo às OS, posteriormente).

O Programa de Reestruturação e Qualidade funcionava por adesão.Após aproximação iniciada pelo MARE, o ministério interessado firmavaum protocolo de adesão e dava início a um trabalho de formação epreparação de uma equipe de técnicos do ministério, passando por ses-sões de sensibilização e capacitação para elaborar as proposições deforma conjunta com os técnicos do MARE. A característica marcante desteprograma era seu caráter sistêmico: buscava enxergar o setor de atuaçãoministerial e elaborar diagnósticos e proposições de reorganizações deforma integrada com os modelos de AE e OS, quando aplicáveis.

A seleção de UPs tinha, inicialmente, como critério o impacto da açãodo Ministério no seu setor de atuação, priorizando a área social. Assim,no período 1997/1998, o projeto começa a ser implementado nos Minis-térios do Trabalho, da Saúde e no próprio MARE, ao mesmo tempo emque se buscou a incorporação dos Ministérios da Educação, da Cultura, daAgricultura, dos Transportes e de Minas e Energia à carteira de clientes.Mas sua implementação seguiria rumos diferentes nas distintas UPs e,sobretudo, revelaria um razoável estreitamento de escopo.

No Ministério do Trabalho (MTB), o mapeamento de processos edimensionamento de força de trabalho foi iniciado com metodologia pró-pria, mas não foi concluído; o plano de desenvolvimento de RH foielaborado, mas não implantado; e resistências do corpo funcional descar-taram a adoção do modelo OS para a FUNDACENTRO. Os trabalhosforam gradativamente paralisados em 1998, em virtude da complexidade

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da metodologia escolhida, assim como de mudanças na liderança dos gru-pos de apoio e estratégico, culminando na mudança do próprio Ministro.

O Ministério da Saúde, embora tivesse participado do PARI10, tinhanecessidade de aprofundar sua reestruturação estratégica, contemplandoinclusive sua rede de hospitais, sobretudo com o advento da NOB/96(Norma Operacional Básica de 1996)11. A mudança do ministro titular daPasta comprometeu o desenvolvimento desses trabalhos, mas alguns pro-cessos específicos de melhoria de gestão tiveram continuidade, dentre osquais as melhorias pontuais de processos de trabalho, principalmente emrelação à auditoria do SUS. Os efeitos do programa estão mais circunscri-tos à fase prévia do PARI: extinção da CEME, INAN e transferência doDATASUS da FUNASA para a Secretaria Executiva. A discussão do mode-lo OS para o INCA e Hospitais do Rio e de Porto Alegre e do modeloAgência Executiva para Vigilância Sanitária arrastou-se por anos no âmbi-to dos programas AE e OS (conforme serão abordados adiante).

Os Ministérios da Educação e da Cultura não ingressaram no projeto. Aproposição de adoção do modelo OS nas universidades federais e mu-seus gerou uma forte reação nas áreas da cultura e educação, impedindoo prosseguimento do processo para além das sondagens iniciais.

A inclusão do MARE era emblemática porque era preciso dar o exem-plo e “provar os próprios remédios”. As ações do PRQ mesmo norecém criado MARE resultou na reestruturação de três secretarias (SRH,SAI e SLTI) e na preparação da ENAP para tornar-se organização social.Na Secretaria da Reforma do Estado, procedeu-se ao tratamento e orga-nização da informação e rede virtual de clientes na SRE. Nas demaisSecretarias, procedeu-se à revisão e otimização de processos de traba-lho com eliminação de backlog em torno de 30.000 processos (SRH), aoenxugamento do quadro normativo de Recursos Humanos e ServiçosGerais, com a revogação de 180 portarias e instruções normativas; aoinício da consolidação das leis referentes a Recursos Humanos, ServiçosGerais, Modernização e Tecnologia da Informação; à criação de centralde atendimento ao cliente/usuário, a partir de pesquisa qualitativa de

10 O Ministério da Saúde, em decorrência dos estudos elaborados pelo MARE, promoveu a

descentralização do processo aquisição e distribuição de medicamentos para estados e municípios,resultando assim na extinção da Central de Medicamentos (CEME). O Instituto Nacional de Alimen-tação e Nutrição (INAN) também foi extinto a partir da consolidação da descentralização do Progra-ma Nacional de Alimentação Escolar. Finalmente o Departamento de Informática do SUS (DATASUS)foi transferido da Fundação Nacional de Saúde (FUNASA) para a Secretaria Executiva do MS.11

A concepção básica da proposta que resultou na NOB/96 foi elaborada pelo MARE.

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satisfação do cliente; à pesquisa sobre clima organizacional; ao desen-volvimento gerencial/técnico/operacional de 92% dos servidores; e àinstituição do sistema de reconhecimento de desempenho dos servi-dores.

No que se refere aos Ministérios dos Transportes e de Minas e Ener-gia, sua inclusão justificava-se pelo impacto que essas Pastas sofreriamcom o processo de privatização e a criação de Agências Reguladoras.Esses Ministérios, entretanto, não aderiram ao projeto, embora tenhamavançado nas discussões internas.

No final de 1997, ocorre a inclusão da Presidência da República, commeta de efetivar sua reestruturação até o final de 1998. A PR foi umbenchmark de implementação do programa. Realizou-se um planejamen-to estratégico, revisão da estrutura, otimização da estrutura de tecnologiade informação, terceirização e melhoria de processos, revitalização docentro de treinamento e revisão de processos na Imprensa Nacional.Avalia-se que houve significativa mudança cultural (orientação para re-sultados e custos, equipes multifuncionais, câmaras e comitês, coordena-ção e negociação); consolidação da tecnologia da informação com visãoestratégica, não mais operacional, mas focada no cliente, com definiçãode gerentes de contas; melhorias na comunicação direta intraorganizacional;redução da força de trabalho com devolução de pessoal requisitado; re-gulamentação de procedimentos e registro e disseminação de conheci-mentos; auditoria na Imprensa Nacional, que resultou em economia de300 milhões de reais na folha de pagamento (devido a pagamentos irre-gulares); terceirização de atividades, com economia de 1,5 milhão dereais em cargas, transporte e restaurante; e racionalização e saneamentodo almoxarifado, com eliminação de estoques desnecessários.

O programa foi razoavelmente integrado com o comando central degoverno apenas durante seus antecedentes (como PARI), articulando-se àvia expressa. O programa mostrou razoável distanciamento em relação auma significativa frente de políticas de gestão pública que ocorria deforma paralela: a criação de agências reguladoras (de 1ª geração: ANATEL,ANEEL e ANP); a elaboração do PPA 2000/2003, a partir do qual já sevislumbrava, desde 1998, a gestão por programas e os ajustes estruturaisnos ministérios; a gestão social, cujo programa de capacitação em gestãosocial se formulou e implementou de forma distanciada das iniciativas decapacitação no âmbito do PRQ; da gestão fiscal, na medida em que asquestões concernentes à restrições orçamentárias não eram tratadas no

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âmbito das ações de otimização de processos; e gestão-meio, na medidaem que o fortalecimento do núcleo estratégico não logrou desenvolverum tratamento sistêmico que contemplasse de forma satisfatória a soluçãode questões de gestão de cargos, salários e carreiras de forma integrada.

Em especial no que tange à criação de agências reguladoras, a con-cepção destas entidades e a definição da natureza de sua função (adefinição de um marco regulatório) passaram ao largo do PD. O Conselhoda Reforma do Estado chegou a recomendar a proposição de um marcoregulatório baseado em princípios e objetivos pré-estabelecidos. Mas coubeao MARE um papel predominantemente instrumental de operacionalizaras definições relativas a cargos comissionados e opinar, por iniciativaprópria, em relação a alguns itens do desenho proposto (tal como manda-tos para os dirigentes).

Como programa de reestruturação e qualidade, prevaleceu ovoluntarismo do MARE em angariar adesões, sensibilizar equipes e levarprocessos de transformação a cabo. O programa foi muito útil ao desen-volvimento de uma visão sistêmica para a equipe da reforma sobre con-formação institucional do governo federal em geral, indicando muitoscasos ideais de adoção dos modelos AE e OS. Todavia, logrou baixaadesão e menor impacto ainda (expressivo apenas na SG/PR) basicamen-te devido à falta de comprometimento e descontinuidade de ministros.Os incentivos à adesão de ministérios e manutenção do programa emcaso de mudanças de ministros por parte do nível central de governoeram baixos.

3.2.Organizações SociaisA segunda frente da trajetória de reforma institucional era o projeto orga-nizações sociais, uma proposta inovadora e polêmica do Plano Diretor.Nesta fase, o projeto OS possui antecedentes e três momentos bemdemarcáveis. Os antecedentes remontam à alusão no discurso de possede Bresser à necessidade de se estabelecerem parcerias estáveis entreestado e organizações da sociedade civil públicas não-estatais paraimplementação de políticas públicas. A idéia não remontava preferenci-almente às fundações de direito privado criadas pelo Estado sob a égidedo Decreto-lei 200, mas estava referida ao crescente associativismo (as-sim como às instituições já seculares neste domínio tais como as Santas-Casas) e em exemplos americanos (universidades, museus, hospitais etc.)e britânicos (em especial as QUANGO).

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O primeiro momento, entre meados de 1995 (início da redação doPlano Diretor) e 1996, é dedicado ao desenvolvimento da concepçãobásica em consonância com o Plano Diretor (tipo de entidade, primeiraspropostas de lei) e divulgação (intra e extragovernamental). A adoção domodelo OS também ocorria por adesão, mediante processo de aproxima-ção por iniciativa do MARE, levando-se em conta muitas indicações pro-veniente das análises do programa de reestruturação e qualidade. Havianeste momento uma grande rotatividade de unidades piloto (ITA, HPV,HFA, HUB, GHC, INPE, IMPA, ESAF, FUNDAJ, EMBAPA, IPEA, MuseuGoeldi, CEFET Rio, Radiobrás, IBGE, LNLS, FURP, INCA, ROQUETTEPINTO), uma vez que a aplicação do modelo estava inicialmente voltadaà denominada publicização (transferência de atividades não exclusivaspara as OS criadas como forma induzida pelo Poder Público), não aofomento de entidades já existentes mediante nova titularidade. Havia,sobretudo, uma grande pressão da câmara da reforma para demonstraçãoda aplicabilidade e operacionalização do modelo.

O segundo momento, correspondente ao ano de 1997, consiste nodetalhamento da definição da implementação, envolvendo questões so-bre gestão de pessoas, finanças e patrimônio (tanto relativos à transferên-cia das atividades de entidades estatais para entidades privadas quanto àprópria gestão destas atividades em entidades privadas flexíveis, emborasujeitas a controles do Poder Público). O desenho fino do modelo foiconcluído em agosto de 1997 e as duas primeiras OS (ACERP e ABTLuS)foram implementadas em outubro de 1997 mediante um complexo eexaustivo processo de refinamento das proposições legais (que, apóssignificativas adulterações de forma e conteúdo, implicaram na edição daMP 1591/97 e culminaram na Lei 9.637/98). Cada entidade publicizadainicialmente tinha sua razão de ser. A ACERP representava a solução deum problema da SECOM (livrar-se de um pesado passado de má gestão epromover o uso político e logístico da TVE-Rio de forma mais flexível) eoutro do MARE (enquanto apoiava-se em Sérgio Amaral, porta voz presi-dencial, para angariar apoio presidencial na inauguração do modelo). AABTLuS representava a introdução do modelo na área de C&T, altamentepropícia ao seu florescimento, e de uma forma bastante construtivista (oempreendedor do LNLS opinara ativamente no desenho fino do modelo OS).

O terceiro momento da implantação de organizações sociais na Fasedo Plano Diretor corresponde ao ano de 1998 e se caracteriza por umatentativa deliberada de consolidar o processo de implantação nas OS

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existentes e promover uma melhor escolha e preparação de unidades-piloto para implementação de OS. Paralelamente à implementação, pro-blemas de concepção e de implementação eram detectados e já compu-nham um conjunto de propostas de alteração da legislação corresponden-te. Esta fase se encerra com a preparação de sete unidades piloto (Hospi-tais federais na cidade do Rio de Janeiro; Bioamazônia; Parque da Tijuca;Museu Imperial; Jardim Botânico; ENAP; e INCA) e indicações de revisãodo modelo para o futuro governo.

A concretização de organizações sociais foi um marco emblemático deimplementação da reforma gerencial. O modelo e as unidadesimplementadas ainda eram muito frágeis, mas representavam, em algumaextensão, a quebra de um paradigma. A grande questão seria asustentabilidade do modelo e da reforma gerencial em geral no segundogoverno FHC.

3.3. Agências ExecutivasA terceira frente da trajetória reforma institucional representa o adventodas agências executivas. Há dois momentos nesta fase: a) concepçãobásica e divulgação; e b)operacionalização e início de implementação.

O primeiro momento estende-se de 1995 a 1996 e consiste no desen-volvimento do modelo em consonância com o Plano Diretor e sua divul-gação. Analogamente às organizações sociais, neste primeiro momentoainda não estavam claros e detalhadamente definidos os mecanismosdiferenciadores de operação de uma agência executiva, ou as flexibilida-des de gestão às quais estariam sujeitas.

Havia uma relação pré-definida, mas ainda não negociada junto aosórgãos competentes. Tampouco os detalhes da implementação, as açõesde preparação de unidades piloto (planejamento estratégico no âmbitode um plano de desenvolvimento institucional), os requisitos para qualifi-cação (firmatura de contrato de gestão, sua definição, elaboração e nego-ciação) e o ritual qualificatório (portarias, decretos etc.). A ênfase destemomento era passar para potenciais unidades piloto a filosofia do modeloe angariar adesões para implementação. Esta estratégia deliberada era con-dizente com as difíceis condições gerais de negociação intragovernamentalpara definição fina dos mecanismos de funcionamento e operacionalizaçãodo modelo. Havia alta rotatividade de UPs: INMETRO, IBGE, IBAMA,INPI, ABC, SDA, CNPQ, SVS, CADE, FIOCRUZ, INSS.

O segundo momento entre 1997 e 1998 marca uma fase intensiva de

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definições finas no desenho do modelo e o início da implementação, sobintensa pressão. As condições para conclusão da modelagem dentro daconcepção traçada pelo PD não haviam melhorado, mas cessariam detodo, caso não houvesse um exemplo concreto de implementação a par-tir do qual o modelo pudesse mostrar sua valia. Ainda em 1997, retomou-se a discussão sobre flexibilidades necessárias, a partir do estágio anteri-or, e buscou-se definir o modo de operacionalização do modelo (proposi-ção dos Decretos 2487 e 2488 que tratam, respectivamente, das defini-ções para elaboração de contrato de gestão e para qualificação de autarquiase fundações públicas como agências executivas). Paralelamente, a pre-paração organizacional nas UPs prosseguia, em pelo menos sete casos(INMETRO, IBGE, ABC, SDA, CNPQ, CADE, INSS), em ritmos diferenci-ados. Em maio de 1998 a Medida Provisória 1.549/97 é convertida na Leina Lei n( 9.649, firmando o marco legal do modelo.

A negociação das flexibilidades e da operacionalização do modelo erauma tarefa tortuosa, porque envolvia o choque frontal de visões do MARE,dentro do espírito do PD, e dos órgãos centrais de orçamento, recursoshumanos, finanças e controle interno (o de recursos humanos do próprioMARE) no âmbito das trajetórias de gestão-meio e gestão-fiscal. A confor-mação centralizadora e controladora dos sistemas auxiliares de orçamen-to, finanças, recursos humanos e controle interno eram barreiras à flexibi-lidades gerenciais. Ademais, havia a grande desconfiança de que eventu-ais flexibilidades seriam efetivamente empregadas na geração dos resul-tados visados (o temor arquetípico de que qualquer brecha será usadapara favorecer práticas patrimonialistas), se estes seriam adequadamenteestabelecidos em contrato de gestão e se este último seria bem geridopor estruturas contratantes (os ministérios formuladores de política) esfa-celadas. A negociação era basicamente horizontal: o MARE e os demaisministérios/secretarias; não havia orientação determinante da Casa Civil,embora a esta tenha cabido papel de árbitro em alguns impasses.

Os Decretos 2487 e 2488 foram editados em fevereiro de 1998 e oINMETRO foi qualificado como AE após três anos de preparação. Anegociação do contrato de gestão com as partes intervenientes do Minis-tério da Fazenda e do Planejamento levou um ano e girou em torno daquestão da garantia de repasses. Esta era considerada uma questão basilarno desenho (contratual) do modelo: garantia de repasses mediante metasde redução de despesas. Em dado momento da negociação, o Ministérioda fazenda recusou garantir o repasse para uma redução total de 40% no

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orçamento do INMETRO. Este fato levou, na prática, à superação daquestão em desfavor da funcionalidade do modelo.

O INMETRO inaugurou o modelo, mas a atuação do MARE, em outrasUPs que não lograram implementá-lo, rendeu inúmeros efeitos benéfi-cos, gerando vigorosos processos de desenvolvimento institucional empelo menos duas UPs (IBGE e IBAMA).

Em síntese, uma característica das três frentes (reestruturação dos mi-nistérios e melhoria de gestão; organizações sociais; e agências executi-vas) nesta fase 1 é a integração interna e a divergência externa. A pri-meira se apóia na convergência de visões promovida pelo PD e aoperacionalização das ações a partir de um mesmo locus institucional: aSRE/MARE. A segunda, nas diferenças de perspectiva em relação àstrajetórias gestão-meio e gestão fiscal.

3.4.Uma genealogia da fase Plano DiretorPor que esta opção de política de gestão pública se firmou desta forma?Tratemos de decompor os elementos básicos do modelo que busca expli-car esta fase: o empreendedor, o domínio da política pública, a visão doproblema e das soluções e as coalizões.

3.4.1. O empreendedorO empreendedor é Luiz Carlos Bresser-Pereira, uma personagem comatuações marcantes (Ministro da Fazenda do Governo Sarney em 1987,Secretário de Governo no Governo Montoro em São Paulo), no setorprivado (ex-executivo e conselheiro do grupo Pão de Açúcar, líder nosetor de supermercados), na academia (professor e autor reconhecidointernacionalmente através de publicações nas áreas de administração,economia, sociologia e ciência política) e na política (fundador do PSDBjuntamente com FHC, Montoro, Covas, dentre outros). Bresser é um ho-mem de talentos múltiplos e com uma personalidade marcante: inquieto,criativo, gosta de polêmicas e de desafios.

O nome de Bresser na composição da equipe ministerial surge nomomento final e na cota de FHC, de quem é amigo há três décadas. Aexpectativa inicial era para a pasta das Relações Exteriores, mas ummovimento por um nome da carreira dos diplomatas forçou uma segundaopção: a Secretaria da Administração Federal, elevada à condição minis-terial para Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado(MARE).

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Do convite à posse decorreram menos de duas semanas. Ainda nãohavia proposta estruturada e o Plano de Governo reproduzia de certaforma a visão conservadora do Presidente e de seus especialistas noassunto (os Ministros Eduardo Jorge, ex-assessor de FHC no senado e noMinistério da Fazenda, assessor parlamentar aposentado e PhD em admi-nistração pública pela New York University em Albany; e Clóvis Carva-lho, engenheiro com experiência executiva na iniciativa privada e comoex-Secretário de Planejamento do Estado de São Paulo e ex-Secretário-Executivo do Ministério da Fazenda na gestão FHC). Em síntese, o em-preendedor corria por fora.

3.4.2.A construção do domínio da política públicaO MARE se lançou como domínio da política pública desde o começo dogoverno e se estruturou rapidamente a partir de colaboradores de Bresserligados à FGV de São Paulo e de quadros da burocracia governamental deBrasília, dentre os quais estava um grupo de gestores que desempenhoupapel relevante na equipe de transição de governo. Em março de 1995 oMARE já estava operando. A Secretaria da Reforma do Estado era a unida-de dentro do MARE que tinha atuação mais central sobre esta trajetória dereforma institucional. A SRE era estruturada por programas e projetos soba liderança de Ângela Santana, uma Secretária com perfil ativo e empre-endedor, muito próxima ao Ministro. Como no MARE em geral, o modelode gestão era centrado em resultados e a comunicação era fluída (facilita-da pela configuração dos layouts físicos em forma de colegiado).

A percepção dos problemas e soluções já são sinalizadas no discursode posse de Bresser. Diferentemente da disposição inicial do governoem desconstitucionalizar e alterar o mínimo possível a lei máxima, Bresserpropunha uma ampla reforma constitucional e uma abrangente revisãodo capítulo da administração pública. Ele já insinuava a necessidade demodelos inovadores de gestão de forma cooperada entre público e priva-do (o embrião das organizações sociais).

Mas a proposta do Plano Diretor começa se desenhar a partir de doiseventos marcantes: a)o encontro em Brasília, em março de 1995, comOsborne & Gaebler, autores do best seller Reinventando o Governo,libelo emblemático do início do NPM, que sugeriram um atento olharsobre a experiência britânica; e b)uma visita de cooperação à GrãBretanha com escala em Santiago de Compostela, sede de um congres-so sobre gestão pública, em maio de 1995. A visita à Grã Bretanha

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mostrou, sobretudo, a experiência das executive agencies, no âmbitodo Programa Next Steps e no anterior Citizen’s Charter (ambas concep-ções estruturadas de reforma da gestão pública), inspiração das agênci-as executivas, mas também das Quasi Autonomous Non GovernamentalOrganizations (QUANGO), uma das inspirações das organizações soci-ais. A escala em Santiago de Compostela, momentos antes da conferên-cia de Bresser, possibilitou ordenar estas categorias e deu origem aoprincipal quadro de referência do Plano Diretor (o que combina setoresde estado com diferentes formas de propriedade e formas de adminis-tração).

Estabelecido o grande quadro de referência, de maio a julho, fez-sea redação preliminar, lapidada, discutida nos meios governamentais eenriquecida com dados e diagnósticos, até o lançamento em novembrode 1995. Bresser preferiu expressar sua política em um Plano Diretor,ao invés de torná-la legislação (a exemplo do legendário Decreto-Lei200 ou da cogitação de uma Lei Orgânica da Administração Pública).Além da crença de que a dinâmica das políticas excede à inércialegislativa, havia o risco de não obter apoio político intra e extra-gover-no para aprovar num só golpe uma legislação que desse conta daabrangência de seu Plano Diretor. Na reunião de lançamento solene doPlano Diretor, FHC encerrou a sessão expressando: “agora cabe ao Mi-nistro Bresser convencer o Governo, o Congresso e a Sociedade”. Ocavalheiro já tinha sua espada e o mundo a conquistar. O Dom Quixotependurado na parede da sala de reunião ministerial do MARE nunca foitão emblemático.

3.4.3.A visão do problema e da soluçãoPara além de méritos e restrições de conteúdo e de forma que nãocabem aqui discutir, o Plano Diretor revela uma visão segundo a qualas soluções de ordenamento e gestão no âmbito da administração bu-rocrática não respondem mais aos cenários emergentes da globalização,da organização da cidadania e da reestruturação produtiva (o adventoda sociedade do conhecimento, da nova economia etc.). A superaçãodo histórico de disfunções burocráticas que compõem o panorama dacrise do Estado exigiria o advento de um novo paradigma de gestãopública, baseado nos princípios da flexibilidade, ênfase em resulta-dos, foco no cliente e accountability. No domínio da reformainstitucional, o Plano Diretor e sua proposta de reordenamento

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institucional seria a solução para implementação de uma administra-ção gerencial12.

Esta visão não era compartilhada pelo Presidente e seus principaisMinistros (os denominados “ministros poderosos”: Pedro Malan, da Fa-zenda; José Serra, do Planejamento e, posteriormente, Saúde; Paulo Re-nato Souza, da Educação; e, principalmente, Clovis Carvalho, da CasaCivil, e Eduardo Jorge, Secretário-Geral da PR, estes dois últimos minis-tros coordenadores da ação governamental). Pedro Malan e a equipeeconômica em geral, incluindo-se os ministros do Planejamento que su-cederam José Serra, compartilhavam a visão segundo a qual o problemacentral é o ajuste fiscal, como suporte à sustentação da política econômi-ca em geral. Tal consideração era insensível à problemática da gestãoespelhada no Plano Diretor, à ótica do ganho de eficiência e de qualidadedos serviços públicos, restando a preocupação pragmática e seletiva coma redução de despesas (cujo principal alvo era a folha de pessoal e,principalmente os inativos). Os ministros da Saúde e da Educação busca-ram inicialmente uma aproximação exploratória, mas a maneira pela qualas propostas do Plano Diretor foram apresentadas geraram reação e rejei-ção, principalmente no domínio da Educação (por parte dos reitores dasuniversidades federais), área caracterizada, assim como a Saúde, por umforte debate ideológico em torno da atuação estatal. Qualquer propostade reordenamento da ação estatal era vista como desestatizante. A pers-pectiva da gestão pública subjacente à reforma institucional não logravaatenção face à lógica pragmática quer do ajuste fiscal, quer da complexagestão dos universos institucionais da saúde e da educação. “Comprar” asidéias da reforma institucional implicaria esforços e riscos adicionais deconvencimento. Nesta lógica pragmática seria possível alcançar resulta-dos expressivos de outra forma, mediante otimizações na administraçãoburocrática.

Mas o principal foco de divergência ficava próximo do presidente eestava incumbido de desempenhar uma de suas funções gerenciais maisvitais: a coordenação macro-governamental. Eduardo Jorge, a quem cabiacoordenar ações políticas extragovernamentais, principalmente com oCongresso Nacional, partilhava da crença segundo a qual o ideal burocrá-tico ainda não havia se exaurido, mas apresentava problemas sanáveis,

12 Ao menos no que tange a esta trajetória. Há visões de outras facetas do problema que serão

explorados na trajetória seguinte.

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mediante ajustes tópicos no nível infraconstitucional e infralegal. Além dadesconstitucionalização de determinadas matérias, uma alteração consti-tucional deveria limitar-se ao mínimo possível, tendo em vista ascontrapartidas fisiológicas e a complexidade do processo de negociaçãoe tramitação parlamentar. Clóvis Carvalho, a quem cabia coordenar asações intragovernamentais, endossava a crença na superação do paradigmaburocrático, mas propunha soluções no nível microorganizacional, volta-das à otimização de processos de atendimento a usuários de serviçospúblicos, na linha da gestão da qualidade e na gestão de projetos. Narealidade, estes dois foram os verdadeiros auxiliares de FHC para área deadministração pública. Há claros indícios de que o presidente desconfiouda proposta Bresser, mas “pagou para ver”, sob a vigilância atenta deseus ministros mais próximos. Em suma, visões pragmáticas, conservado-ras e reducionistas predominavam no caldeirão governamental. O caldoera francamente desfavorável a novas culturas.

3.4.4.A coalizão políticaA principal dimensão da coalizão nesta trajetória é intragovernamental,na medida em que o Plano Diretor foi aprovado no âmbito do PoderExecutivo. Analogamente, o principal elemento da coalizão políticaintragovernamental de Bresser-Pereira era certamente o próprio Presi-dente. Primeiramente, porque somente com o apoio do presidente, Bresserpoderia vencer a barreira dos ministros mais influentes.

Com efeito, o presidente atuou como árbitro em diversas vezes emque as tensões aumentaram. O caso mais expressivo ocorreu diante doimpasse gerado no momento do envio ao Congresso do projeto de leique criava a ANEEL. Enquanto Clóvis Carvalho e Eduardo Jorge apoiavamo projeto, Bresser apontava inúmeras falhas no mesmo. A solução presi-dencial foi que o projeto fosse enviado como estava ao Congresso por-que este trataria de melhorá-lo. Mas a arbitragem, além de tendenciosa,era um recurso extremo, não livrando Bresser de constrangimentos noâmbito da Câmara da Reforma do Estado e do Conselho de Governo,dirigido por Clóvis Carvalho. Houve a intervenção de altos burocratasque, contribuíram para amenizar as resistências de Clovis Carvalho eEduardo Jorge. Eles atuaram menos como aliados e mais como interlocutoresque procuravam solucionar os conflitos e coordenar o processo. Destaca-se o papel de Pedro Parente, então secretário-executivo do Ministério daFazenda, Paulo Figueiredo, ex-chefe de gabinete de Bresser e pessoa

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ligada ao staff da campanha de 1994, e Silvano Gianni, Secretário-execu-tivo da Casa Civil (estes dois últimos tiveram papel fundamental na apro-vação do texto final da MP das OS, servindo de negociadores junto aEduardo Jorge e Clovis Carvalho).

Não obstante, havia outros interlocutores encarregados de angariar aatenção e o apoio presidencial em momentos especiais: Luciano Martinse Mário Covas estão entre os principais apoiadores. Por outro lado, asações de Bresser para “vender” sua reforma e convencer ministros ealtos burocratas logrou mais diminuir resistências que angariar adesões àcoalizão intragovernamental, exceção feitas ao Ministro Nelson Jobim(Justiça) e Carlos Albuquerque (Saúde), em questões específicas tais comoemenda constitucional e Norma Operacional Básica do SUS.

A coalizão extragovernamental desempenhou um papel secundárionesta trajetória. Havia o apoio manifesto de lideranças partidárias da coli-gação governista, mas com diminuto poder de intervenção no Governoem relação à reforma institucional.

Outro meio eficaz de atuação indireta de Bresser sobre o governo foio debate acadêmico e as publicações em revistas e na mídia voltada àopinião pública em geral. O esforço de inserção do tema da reforma namídia e na academia sensibilizou o arranjo autorizativo governamental dealguma forma.

3.5.O MARE contra a maréBresser foi o elemento perturbador do sistema de crenças estáveis quereinava na alta e na baixa burocracia governamental. Foi o elemento deruptura cujo ruído provocaria mudança.

Em síntese, a visão do empreendedor não era hegemônica e antago-nizava-se, em diferentes extensões, com a visão predominante dentro dogoverno. O estilo de liderança de FHC, de estimular certos conflitos parasó depois intervir, explica o lançamento desta trajetória na medida emque possibilitou a abertura de uma janela a um empreendedor capaz deunir problemas a soluções e buscar realizá-las mesmo contra a maré. Oapoio do presidente dependeria, em cada momento, do sucesso de Bresserem suas ações.

Um prognóstico precoce certamente indicaria a baixa implementaçãoe a descontinuidade verificadas. Além da baixa implementação, o que severificou foi uma implementação fragmentada. A proposta estava alheadano domínio do próprio MARE, tanto em relação à questões de recursos

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humanos (relativas a carreiras de ministérios específicos), quanto emrelação à TI. Embora a TI tenha tido implementação mais continuada, istonão significou maior integração ao PRQ. A proposta também estava dis-tante das questões relativas à gestão fiscal, exceto inicialmente no âmbitodo PARI, em relação à gestão social, em relação à gestão estratégica e emrelação ao aparato regulatório. O PRQ, assim como as AE e as OS, abstra-indo-se os problemas de concepção inerentes a estes modelos, não servi-ram, como deveriam e poderiam, para potencializar resultados no âmbitodas demais trajetórias.

IV- CASO 2: A GESTÃO PÚBLICA EMPREENDEDORA I (1999-2001)

A gestão pública empreendedora é uma denominação cunhada por PedroParente, titular do Ministério do Orçamento e Gestão (MOG), que absor-veu o MARE no segundo mandato FHC, para designar uma nova fase naspolíticas de gestão pública. A gestão pública empreendedora não estavaapenas referenciada na trajetória de reforma institucional; deveria abarcarpelo menos as trajetórias de gestão estratégica (PPA) e gestão-meio (astrês no âmbito do MOG). O âmago da gestão pública empreendedoraconsistia na implementação da gestão por programas consoante a pro-posta do PPA, o que implicaria mais na alteração das estratégias de refor-ma institucional do que das de gestão-meio.

Tal orientação gerou grande transformação na trajetória da reformainstitucional, com repercussões nas frentes reestruturação de ministériose melhoria de gestão, organizações sociais e agências executivas. Taistransformações são devidas a mudanças na visão sobre a natureza doproblema da gestão pública brasileira contemporânea, mudanças naformatação de soluções, no domínio institucional da política de gestãopública, e, ainda, mudança de empreendedor e nas coalizões.

Este segmento buscará caracterizar as transformações nas três frentese, após, as mudanças nos elementos constitutivos das políticas de gestãopública.

4.1.Reestruturação do núcleo estratégico e melhoria de gestãoHá dois momentos bem demarcáveis nesta segunda fase de reestruturaçãodo núcleo estratégico e melhoria de gestão. Esta frente está encampadapela SEGES e traduzida para o discurso da gestão pública empreendedora I.

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Superada a confusão inicial característica da chegada de uma novaequipe e da ocupação de um locus institucional fortemente arraigadoaos ideais do PD, o primeiro momento da reestruturação do núcleoestratégico e melhoria de gestão é um momento de formulação e secaracteriza pela tentativa de convergência com o PPA, em atendimen-to às definições do Planejamento estratégico do MOG. Esta frentepassou a adotar o nome genérico (que, na verdade, ultrapassa seuescopo) de gestão pública empreendedora. Seu foco foi aimplementação de estruturas por programas em caráter experimental,em seis ministérios (MT, MP, MMA, MDA, MINC, MPAS/SEAS). Aimplementação dos programas do PPA implicavam desenho matriciaispara comportar as unidades funcionais e as unidades de supervisãodos programas a cargo dos ministérios.

Além deste foco, ou seja, a reestruturação do núcleo estratégico emelhoria da gestão pública empreendedora também estava voltada aodenominado atendimento esporádico de “balcão”, sem foco pré-definido,isto é, à demanda ou oferta em razão de problemas ou oportunidadesespecíficos. Tal denominação não pode ser tomada de forma pejorativa,uma vez que ações de balcão existem, em alguma extensão, em qualqueragenda e podem ser consistentes com determinadas visões, podem ex-pressar estratégias deliberadamente construtivistas e flexíveis e, nestacondição, encerrarem um instrumento de aprendizagem experimental. Operigo é quando a dominância das ações de balcão denota falta de políti-ca clara de gestão pública e, por conseguinte, falta de foco, promovendomá alocação de recursos e gerando custos de oportunidade. O ponto areter é que o limite entre ambas inclinações da estratégia de balcão foitênue neste período.

Ambas atuações (integração ao PPA e balcão) eram viabilizadas peloPrograma de Modernização do Poder Executivo Federal, um projeto decooperação firmado com o PNUD, a partir de empréstimo do BID, queassegurava recursos e meios operacionais relativamente ágeis paracontratação de serviços de consultoria em assistência às UPs. O PMPEFexistia desde o MARE e havia sido formulado em estrita observânciaprogramática ao PD. Embora tenha se tornado operacional a partir de1998, era suficientemente flexível para viabilizar ações de balcão.

Incluem-se nesta frente de reestruturação do núcleo estratégico emelhoria de gestão o programa da qualidade, que subsistia de formarelativamente autônoma e imune às transformações da SEGES, e o pro-

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grama da desburocratização13, criado com o MOG e alojado na SEGES,com o propósito de integrar a idéia de desburocratização com os novosdiscursos focados no cliente e da revisão de processos mediante maciçautilização de TI. Cabe relembrar que propostas de desburocratização jáhaviam sido lançadas, mais de uma vez, na história recente da administra-ção pública brasileira, baseadas na simplificação de exigências, de docu-mentos, regras e procedimentos no atendimento ao cidadão.

As inflexões no desenho da frente de reestruturação do núcleo estra-tégico e melhoria de gestão neste primeiro momento não mostraramresultados visíveis. A mudança e propagação do discurso, a busca porpropostas sólidas, a consolidação do espaço intraministerial (agravadosapós a saída de Parente e a queda de Clóvis Carvalho, em agosto de1999) drenaram a agenda da SEGES, desde este primeiro momento atéfins de 1999. A Booz Allen Hamilton foi contratada para propor novosdesenhos de estruturas nos seis ministérios escolhidos, mas o trabalhoencerrou-se por determinação do ministro Martus Tavares após a apre-sentação da proposta relativa ao próprio MOG (que sugeria a extinção doMinistério e a aglutinação de suas secretarias na Casa Civil). Os resultadosda estratégia de balcão não foram visíveis no período. A integraçãointraministerial foi grandemente dificultada pelos seguintes fatores: abaixíssima prioridade das questões relativas à gestão institucional na agendaministerial; a postura isolacionista da SPI na promoção do seu PPA; e o

13

O Programa Nacional de Desburocratização, incluído no PPA, constitui um conjunto articuladode ações desenvolvidas em articulação com ministérios e órgãos federais, governos estaduais, PoderesLegislativo e Judiciário, e entidades da sociedade, com o propósito garantir o respeito e a credibilidadedas pessoas e protegê-las contra a opressão burocrática, mediante a boa qualidade e eficiência dosserviços prestados e a obtenção, em última análise, de melhores resultados para o desenvolvimentosocial.O Programa tem como objetivos: superar a cultura burocrática, promovendo uma mudançade atitude e comportamento em relação ao apego a regulamentos e controles excessivos; vencer osentimento de desconfiança e promover o respeito aos direitos do cidadão-consumidor de serviçospúblicos, impedindo que cidadãos não se intimidem ao procurar os serviços públicos; aumentar atransparência e efetividade nas ações de governo; e promover inovação contínua, vencendo nichosde resistência às mudanças e implementando novas idéias e soluções, alavancando o governoeletrônico e promovendo a manutenção e aperfeiçoamento permanente da desburocratização.Aimplementação desse programa se baseia em três frentes de ação: a) articulação; b) mobilização; e c)promoção de ações de desburocratização.Articulação e interação é a estratégia básica do Programa.Os instrumentos de articulação e cooperação são comitês ministerial e setoriais de desburocratização.A lógica desta estratégia é a formação de uma rede de desburocratização a partir da qual orientações,estratégias, experiências e resultados possam fluir de forma horizontal, sem a característica de impo-sições e determinações centrais. No plano federal, cada Ministério tem o seu comitê e cada órgão doMinistério pode criar o seu. A filosofia do trabalho é de adesão, para que as partes promovam as açõesde desburocratização segundo possibilidades e metodologias próprias, sobretudo aqueles que estãono nível operacional da burocracia.

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isolamento operacional da área-meio (já sem a SEAP), mas sujeita a pro-blemas de coordenação intraministerial, dada a quantidade de secretarias.A SEGES era considerada um corpo estranho no MOG, incorporada peloPPA e pela agenda operacional da área-meio.

No segundo momento da frente de reestruturação do núcleo estratégi-co e melhoria de gestão, correspondente ao ano de 2000 até maio de2001, as condições se agravavam progressivamente, o desgasteintraministerial era intenso e a SEGES, o caminho do balcão, tornou-sedominante. Nesse momento, a assistência técnica da SEGES passou arestringir-se à elaboração de termos de referência (TOR) para contrataçãode consultorias e ao acompanhamento de processos licitatórios, uma vezque não dispunha de quadro técnico suficiente para viabilizar uma assis-tência mais próxima aos clientes. Dentro do cenário criticamente restritivo,a estratégia do balcão era considerada a única possível, consistente com avisão segundo a qual a transformação objetivada justifica intervençõescasuísticas sem o prévio enquadramento em modelos preestabelecidos.Houve, com efeito, assistências difusas que geraram impactos transfor-madores, mas localizados. Em segundo lugar, a estratégia do balcão po-deria gerar apoios intraministerial e intragovernamental em geral.

As implementações nas diversas UPs nesta fase podem ser assim sin-tetizadas:

• MMA - início da discussão estratégica com foco no setor, visandointegrações intersetoriais com outros ministérios, ONGs, estados e muni-cípios e entidades vinculadas;

• MINC - elaboração de proposta de reestruturação por segmento deatuação (não compatível com o PPA), incluindo o IPHAN (maior foco) edesenvolvimento de modelo de gestão mais adequado às atividades dosmuseus;

• MJ - diversas ações de melhoria deflagradas, tais como otimizaçãode processos de trabalho e apoio a programas;

• MJ/DENATRAN - início da elaboração do diagnóstico;• MPAS/SEAS - implantação da “Agendas Sociais nos estados”, articu-

lação da estrutura para execução do PPA e implementada rede de infor-mações SEAS/estados;

• MD - proposta de estruturação do gabinete do Ministro que contémas atividades-meio;

• MEC - elaboração do planejamento das ações Bolsa-Escola e dotermo de referência para sistemática de acompanhamento;

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• MDA - planejamento estratégico para o INCRA;• AGU - alguns resultados de melhorias de processo de trabalho de-

correram das recomendações da consultoria, resultando inclusive na re-dução do número de pessoas nas atividades-meio (cerca de 30%). A AGUé uma exceção da estratégia de balcão; a SEGES convenceu a AGU danecessidade de aprofundar a análise da sua estruturação, incluindootimização de processos de trabalho, com apoio de consultoria.

A predominância da estratégia do balcão revelava, naquele momento,sobretudo, o malogro de uma gestão pública empreendedora integrada efocada, conforme preconizada inicialmente por Pedro Parente.

Os programas de desburocratização e qualidade avançavam de formapraticamente autônoma. O programa da qualidade havia inovado muitopouco em relação à orientação doutrinária característica do programapassados dez anos desde sua criação e desde seu revamp no MARE. Oprograma de desburocratização sinalizava resultados promissores, na me-dida em que seu desenho se mostrava altamente sedutor: não havia mo-delos ou crenças predefinidas (ao contrário do PD e do Programa daQualidade); não era dogmático quanto à implantação, era construtivista;falava a linguagem da burocracia operacional (revisão de regras e pro-cessos, sem neologismos antipáticos ou incompreensíveis) e, como resul-tado, logrou vender bem uma idéia velha e adequada. Todavia, os resul-tados do programa ainda não eram visíveis à SEGES, ao Ministério e aoGoverno em geral.

Em julho de 2000 as condições de integração e coordenaçãointraministerial melhoram substancialmente a partir do advento da secre-taria-executiva adjunta do MP (ex MOG, que passa a se chamar Ministériodo Planejamento, Orçamento e Gestão), ocupada por Pedro Farias (exSecretário Adjunto da SRE/MARE e diretor do programa de reestruturaçãoe qualidade). Ainda assim o tempo já havia passado para a SEGES. O PPAhavia drenado a atenção da burocracia para políticas de gestão pública ea SEGES havia se enredado no balcão sem condições de propor umprosseguimento viável à gestão pública empreendedora. A gestão públi-ca empreendedora I se encerra com a saída de Ceres Prates da SEGES emmaio de 2001.

4.2. Organizações SociaisA gestão pública empreendedora desprezava os modelos institucionais.Sua visão enfatizava a dispensabilidade dos modelos para geração de

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transformações na gestão pública. Ademais, especificamente em relaçãoàs OS, a SEGES nutria dois sentimentos: a)compartilhava com a visão dacomunidade solidária de que as OSCIPS haviam ocupado o espaço cabí-vel para um tal modelo (de parceria com o terceiro setor); e b)temia aslimitações do modelo OS e as conseqüências da ADIN movida pelo PT ePDT contra a lei 9.637. Cogitou-se, desta forma, até a revogação da Lei nº9.637, mas chegou-se a levantar problemas relativos à legislação e às OSde forma sistemática e a se esboçar propostas de revisão.

Ao fim e ao cabo, a estratégia adotada em relação às OS, nesta segun-da fase, foi a não alteração do modelo, seu não incentivo e, se fosse ocaso, deixar este projeto morrer. Sua implementação seria feita apenassob demanda (por força da Lei nº 9.637, a SEGES deve apor sua concor-dância à qualificação de OS).

O que se verificou no período 1999-2001 foi uma estratégia deimplementação paralela (Bioamazônia e Mamirauá) pelo MMA e, princi-palmente, MCT. A implementação da Bioamazônia não foi motivada peloMMA, mas por seu empreendedor. A implementação do Mamirauá edemais OS que se seguiram na fase posterior, foi fortemente motivadapelo MCT. Devido à preparação prévia no âmbito do MARE, na faseanterior, e à razão óbvia de que Bresser era o Ministro de C&T (atémeados de 1999), a concepção das OS foi enraizada no MCT. Não apenasporque contava com o apoio e a visão de Carlos Pacheco, secretário-executivo, mas também porque havia passado pela análise do MinistroSardenberg (que sucedeu Bresser) e, sobretudo, porque a idéia haviasido “comprada” pela comunidade desde a implantação da ABTLuS. Amaior prova é o Relatório Tundisi, que, ao analisar os institutos de pes-quisa e propor soluções institucionais, indica a opção de OS, para certasáreas conforme a natureza do instituto e sua missão.

Em síntese, a implementação paralela pelo MCT significa que este seautoproveu de apoio técnico à implementação e buscou angariar por sisó o necessário apoio intragoverno para expedição dos decretos de qua-lificação.

4.3. Agências ExecutivasConsistente com o espírito da gestão pública empreendedora I, nestasegunda fase a implantação de agências executivas foi descontinuada.Tal fato ampara-se nas limitações do modelo (flexibilidades restritas, bai-xa eficácia das prerrogativas legais, aplicação apenas a autarquias e fun-

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dações, principalmente) e em estratégias paralelas empreendidas porsetores fortes de governo, no sentido de dotar órgãos emergentes decondições diferenciadas de gestão. Tratam-se, respectivamente, das difi-culdades do INMETRO em tirar melhor proveito possível do modelo e doadvento das agências reguladoras de 2ª geração.

As dificuldades na implementação do modelo AE no INMETRO re-montam ao MARE e não se limitam apenas ao modelo. Desde o início,regulações intraministeriais atinentes a questões operacionais de RH (re-gistro de horas-extra no SIAPE, por exemplo) eram descumpridas pelaárea de RH do próprio MARE ao arrepio das determinações do próprioministro. Por outro lado, questões de relacionamento entre o INMETRO eseu ministério supervisor dificultavam a sinalização de uma demandaministerial pela melhoria do modelo. Em todo caso, o reconhecido bomdesempenho do INMETRO se deve muito mais aos seus esforços própri-os de desenvolvimento institucional que ao mérito do modelo. Este argu-mento fortalecia a visão anti-modelo da gestão pública empreendedora I.

Os efeitos da criação das agencias reguladoras de segunda geração(ANVISA e ANS) sobre o modelo AE remetem a duas presunções: a) se omodelo AE fosse robusto, proporcionando sólida alternativa diferenciadade operação, pelo menos a ANVISA não precisaria ter sido criada comoagência reguladora; b)se o foi, dada a ausência de um claro marcoregulatório e tendo em vista que pelo menos a ANVISA desempenhaalgumas funções claramente não regulatórias, isto significa que qualquerentidade que precise se diferenciar possa ser uma agência reguladora.Em síntese, já se sinalizava a utilização do modelo de agência reguladoracomo estratégia de flexibilização (em busca do que se convencionouchamar jocosamente de “kit reguladoras”: mandato, carreira própria, es-trutura diferenciada de cargos comissionados, regras diferenciadas delicitação, de provisão de quadros temporários etc.), que explodiu naterceira geração de agências reguladoras (ANA, ANCINE, ANTAQ, ANTT).

Em parte, o modelo AE havia sido vencido pelo modelo agência regu-ladora. Uma legião de órgãos (secretarias de ministérios, principalmente)ainda continuava não atendida por modelos flexibilizadores, baseados emresultados, mesmo com o amparo do parágrafo 8º do artigo 37 da Consti-tuição (incluído pela emenda nº 19), segundo o qual a autonomia gerencialde órgãos e entidades da administração pode ser ampliada mediantecontrato de gestão. Nessa linha, a SEGES chegou a elaborar um projeto delei que buscava avançar o modelo AE na direção de um regime contratual

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de gestão. Tal iniciativa chegou a gerar algumas discussões junto à CasaCivil, que, entretanto, não lograram nenhum resultado.

4.4. Uma genealogia da fase gestão pública empreendedora IO que explica a dinâmica desta trajetória nesta fase? O que explica asmudanças desta fase em relação à fase anterior? Tratemos de decomporos elementos básicos que, segundo o modelo explicativo em questão,elucidam porque a trajetória se afirmou e o que a fez variar: mudanças navisão do problema e das soluções; mudanças no domínio da políticapública; mudanças nas coalizões na esfera política; e mudança de empre-endedor.

4.4.1. O empreendedorEmbora Pedro Parente seja o fundador da gestão pública empreendedora,o empreendedor desta fase na trajetória reforma institucional é ClóvisCarvalho.

A partir de sua da posição de Ministro-Chefe da Casa Civil da Presi-dência da República, presidente da câmara da reforma do estado e “es-pecialista em gestão” junto à FHC, as ingerências de Carvalho no domíniodas políticas de gestão pública no primeiro governo foram marcantes. Opadrão de cobrança que estabeleceu sobre Bresser extrapolava o zêlonecessário à coordenação das ações governamentais e demonstrava es-pecial interesse pelo tema.

Não obstante as acusações de baixa implementação e as manifestasdiscordâncias de Clóvis Carvalho em relação ao desenho da política con-tida no Plano Diretor (que julgava excessivamente teórica e pouco prag-mática), consta que a decisão de extinguir o MARE e incorporá-lo aoMOG partiu do próprio Bresser (após haver cogitado desenhos alternati-vos de incorporação da SRE à própria Casa Civil). O fato é que a criaçãoda Secretaria de Gestão na estrutura do MOG com as atribuições da SRE ea competência de formulação da política de RH da SRH foi sugestão deClóvis. Não obstante, a titular da SEGES foi por ele escolhida dentre osmelhores quadros de sua equipe mais próxima.

A visão do problema, da solução e os arranjos ideais da coalizãorevelam que o empreendedor da reforma institucional passaria a serClóvis, mesmo sendo Pedro Parente o Ministro, e mesmo este sendoconsiderado alguém com visão gerencial. Clóvis foi o empreendedormesmo após ter deixado a Casa Civil para ocupar, por um curto período

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de tempo, o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio.A saída de Clóvis do governo, deixou à deriva a gestão pública em-

preendedora. Pedro Parente, já na Casa Civil, havia recusado assumir estepapel e havia tomado para si a tarefa à frente de Tecnologia da Informa-ção. Por outro lado, Martus Tavares, o novo ministro do MOG, havia,desde o começo, renunciado ao empreendimento da reforma institucional,quer por sua inclinação técnica francamente fiscalista, quer por acreditarno empreendimento de José Paulo Silveira, o PPA da trajetória gestãoestratégica, que julgava constituir na nova política de gestão pública.

4.4.2. O domínio da política públicaA fase Gestão pública empreendedora I inaugura-se com novo locusinstitucional: a Secretaria de Gestão (SEGES) do Ministério do Ministériodo Orçamento e Gestão (MOG), secretaria, esta que incorporou a SRE eministério que absorveu o MARE no 2º mandato FHC.

A inclusão das estruturas do MARE no MOG era problemática sobvários aspectos. Primeiramente, a idealizada integração entre orçamento,planejamento e gestão (cuja visão remete ao OMB americano) certamen-te dependia muito mais de integração de visões, equipes, carreiras epolíticas que de uma horizontalização do desenho organizacional ministe-rial, mantendo-se as mesmas secretarias. Este fato confere à coordenaçãoministerial um papel chave, como será tratado mais adiante. Segundo, odesenho inicial comportava as Secretarias-meio (logística e tecnologia dainformação, recursos humanos e patrimônio da União), uma Secretaria deEstado da Administração e Patrimônio (SEAP), ocupada por Cláudia Costin,ex-Secretária Executiva e ex-ministra interina do MARE. Terceiro, a SEGEShavia sido plasmada para ser um espaço de atuação de Clóvis Carvalhona reforma do estado e ainda continha a herança da concepção de refor-ma do extinto MARE. Embora Clóvis Carvalho tivesse patrocinado, emboa medida, o advento do PPA, no bojo da trajetória de gestão estratégica,a SEGES era vista como um corpo estranho no MOG. Em quarto lugar,José Paulo Silveira, Secretário de Programas e Investimentos Estratégicos,emergia com o PPA 2000, concebido, apresentado e considerado peloalto staff governamental (FHC inclusive) como a principal abordagem demodernização gerencial do governo (de forma muito conveniente noinício do segundo mandato, marcado pela crise cambial de janeiro de1999, porque acenava com o futuro, em oposição à perspectiva da ges-tão da crise).

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Em síntese, a atuação da SEAP era dissoante com a atuação do entãosecretário-executivo do MOG, Martus Tavares, na coordenação integradadas secretarias, que chocava-se com a atuação isolada da SEGES. Estearranjo gerou maior segregação potencial entre unidades da área-meio(domínio da SEAP), reforma institucional (domínio da SEGES fortementerelacionada à Casa Civil) e planejamento (domínio da Secretaria Executi-va do MOG). A Secretaria de Orçamento federal subsistia alheada à reali-dade das políticas de gestão pública.

O Ministro Pedro Parente, técnico da equipe econômica, de reconheci-da visão gerencial (por sua experiência à frente do SERPRO e da SecretariaExecutiva do Ministério da Fazenda, uma das organizações governamentaismais complexas), estava consciente das limitações do desenho do MOG. Oarranjo exigia muito da coordenação ministerial e visão abrangente, de-mandas em relação às quais o perfil do ministro respondia à altura. Asubstituição de Pedro Parente por Martus Tavares logo em meados de 1999deixou patente esta proposição e levou as deficiências do desenho aolimite. Em síntese, o domínio da política pública estava isolado.

4.4.3. A visão do problema e da soluçãoA visão desta segunda fase caracteriza-se por menos ênfase nos modelose mais na transformação, baseada em capacitação e na utilização deinstrumentos mais simples e consagrados de gestão. Subjaz a esta visão anoção de que o problema central da gestão pública se coloca menos emperspectiva multi-institucional (a partir de transformações nas esferas doestado, mercado e sociedade civil), tal como o Plano Diretor supunha, evoltava-se mais para dentro do modelo de gestão das organizações públi-cas: os processos, as pessoas, a “qualidade da gestão”. A reformainstitucional revestia-se de uma visão micro-organizacional.

Declaradamente, os modelos do PD (a categorização de núcleo estra-tégico, atividades exclusivas e não exclusivas; organizações sociais eagências executivas) entram em declínio, em favor de uma abordagemque se propõe mais pragmática e flexível: “qualquer forma” é válida paragerar transformação da gestão. Passado o momento de rejeição, houveuma tentativa tardia de resgate dos modelos, mais como instrumentos depromoção de transformação, entre outros possíveis, mas estes certamentejá não compunham a figura central da política de gestão pública.

Não obstante, havia também a visão de que políticas de gestão públi-cas deveriam emergir de um debate orientado e fomentado na própria

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burocracia, mediante um processo sistemático e abrangente de capacitação(a exemplo do que ocorreu na Casa Civil no âmbito do programa decapacitação em gestão social, no qual a titular da SEGES, Ceres Prates,tivera atuação marcante).

Em suma, gestão pública empreendedora foi a denominação cunhadapor Pedro Parente como tentativa de sintetizar substâncias diferentes numsó frasco. Havia um desejo imanifesto de superação da era Bresser (afinal,Bresser ainda era Ministro da C&T), mas havia o sentimento de que erapreciso tirar proveito dela e integrar outros ingredientes (PPA, políticas deRH no velho estilo PDV etc.). O marco emblemático da tentativa de síntesefoi um evento de planejamento estratégico do MOG, comandado pelopróprio Parente. O evento homogeneizou o discurso e apaziguou os âni-mos, mas não homogeneizou a visão sobre problemas e soluções. O futurodo arranjo e das políticas de gestão estava nas mãos do ministro, da suacapacidade de integração intra e extra (Casa Civil). A visão fiscalista deMartus e seu padrão de atuação predominantemente técnico minimizaramo espaço das proposições da SEGES na agenda ministerial.

4.4.4. A coalizãoNum breve primeiro momento, que se estende de janeiro a agosto de1999, a forte figura de Clovis Carvalho como empreendedor da reformainstitucional dispensava arranjos de coalizão intragovernamental, enquan-to que as dificuldades de integração da visão da gestão pública empreen-dedora dentro do próprio MOG demandava sólidos arranjos de suporteintraministerial.

A queda de Clóvis Carvalho, a recusa de Pedro Parente em sucedê-lono papel de empreendedor da política e a renúncia de Martus Tavaresem assumir tal papel forçaram a construção de coalizões que pudessemproporcionar suporte intraministerial e intragovernamental. A construçãode coalizões drenou boa parte da atenção da gestão da política no perío-do de dezembro de 1999 a maio de 2001. Até dezembro de 1999, aSEGES ainda acreditava ser possível a costura de uma coalizãointraministerial, a partir do apoio da SPI e do próprio ministro. O inciden-te causado pela proposição de extinção do MOG pela BoozAllen e odistanciamento da SPI tornaram impossível a costura. De dezembro de1999 a maio de 2001 seguiu-se um momento de extrema fragilidade: aSecretária permanecia no cargo, mas sequer conseguia fazer nomear seustaff mais próximo.

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4.5. A SEGES à derivaA SEGES e a fase que inaugurou nesta trajetória de reforma institucionalfoi uma clara intervenção de Clóvis Carvalho no domínio institucional daReforma do Estado, sem a interferência direta do empreendedor anterior,cujas idéias rejeitava. O ideal da conquista do domínio da política degestão pública, num só golpe, na virada do governo, provou-se um em-preendimento sem sustentação após a sua saída de cena. Primeiramente,o tema reforma do estado era desconfortável na agenda de qualquerministério, em especial naqueles marcados por um perfil fiscalista. Se-gundo, o momento entre dezembro de 1999 e maio de 2001 foi deintenso desgaste intraministrial e intragovernamental e isolamento da SEGES.

O ponto a reter é que não apenas a SEGES ficou a deriva, mas apolítica do Plano Diretor havia sido deslocada pela política da gestãopública empreendedora e, em determinado momento, notadamente entredezembro de 1999 e maio de 2001, já sem o empreendedor, esta nãomais se visualizava, parecendo existir o vácuo característico dos momen-tos de transição passiva (quando uma coisa acaba e outra ainda não secoloca em seu lugar).

V - CASO 3: A GESTÃO PÚBLICA EMPREENDEDORA II (2001-2002)

A gestão pública empreendedora II é uma reação ao estado letárgicofinal da gestão pública empreendedora I, a partir da perda da coerênciaque originalmente caracterizavam as diversas ações em jogo. A gestãopública empreendedora II parte da sucessão da titular da SEGES (CeresPrates é substituída por Evelyn Levi) e da necessidade de sinalizar aexistência de uma política e sua orientação. Tal necessidade era percebi-da tanto por organizações públicas “clientes” dos incentivos à transforma-ção da gestão, quanto pelo staff da Casa Civil (cujo trabalho, no queconcerne a proposições de criação de novos órgãos, entidades e carreirasé bastante dependente de interação com a SEGES).

O que está sendo chamado de gestão pública empreendedora II podeser caracterizado como uma política de gestão pública na medida em quecomporta uma visão do problema e das soluções de forma diferenciadaem relação à fase anterior, visões estas articuladas por um ator que de-sempenha o papel do empreendedor em busca de coalizõesintragovernamentais. Estas categorias são de alguma forma (uma ou outra

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com alguma dificuldade) identificáveis, embora não se possa afirmar quea gestão pública empreendedora II seja uma proposta marcantementediferente das demais. Trata-se muito mais de uma tentativa de sínteseordenada das heranças do Plano Diretor e da Gestão pública empreende-dora I.

A gestão pública empreendedora II se propunha a uma nova síntesede elementos do Plano Diretor, da gestão pública empreendedora I eoutras agregações concernentes à regulação e gestão de carreiras. Talconcepção reorientou a trajetória da reforma institucional, com repercus-sões nas frentes reestruturação de ministérios e melhoria de gestão, orga-nizações sociais e agências executivas.

Este segmento buscará caracterizar as transformações nas três frentese, após, as mudanças nos elementos constitutivos das políticas de gestãopública.

5.1. Reestruturação do núcleo estratégico e melhoria de gestãoNo que se refere à reestruturação do núcleo estratégico e melhoria degestão, a gestão pública empreendedora II inicia-se em plenaimplementação da estratégia do balcão. Esta estratégia ganharia, todavia,três elementos orientadores, que, destarte, sinalizavam o resgate da visãoe dos instrumentos do Plano Diretor: a)fortalecimento do núcleo estraté-gico; b)consideração dos modelos institucionais do Plano Diretor, median-te revisão e reorientação da estratégia de implementação; c)busca deconvergência com os programas da qualidade, desburocratização e PPA.

A ênfase no fortalecimento do núcleo estratégico apontava para umanova síntese entre a visão original do Plano Diretor e apoiava-se emdemandas por intervenção em questões pertinentes à criação de agênciasreguladoras e carreiras. O resgate da visão do Plano Diretor sinalizavauma nova abordagem sistêmica, buscando tratar os setores como umconjunto de arranjos cujas intervenções nem podem ser isoladas, nempodem desconsiderar as interações com outros setores. Um exemplo é anecessidade de fortalecimento de instâncias ministeriais formuladoras depolíticas face à criação de novos entes regulatórios, o que poderia de-mandar não apenas um rearranjo de estruturas (e cargos comissionadosdecorrentes, a exemplo do tratamento dispensado inicialmente na gestãopública empreendedora I), mas, também de carreiras, sistemas de infor-mações, processos etc.

A noção de balcão permanece, porque permanece o atendimento por

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demanda sem enquadramento ex ante, como havia no caso do PlanoDiretor. Embora este atuasse por oferta, as tentativas de abordagem nosministérios, inicialmente escolhidos como foco, fracassaram e levaram aum critério oportunístico. Além disso, definições variáveis em função dedemandas em nível central de governo e avaliações sobre o grau desucesso de demandas periféricas. MMA, MJ, MINC e MD são alguns dosministérios que detiveram o foco da atenção da SEGES neste período.

O segundo elemento da reestruturação do núcleo estratégico e melhoriade gestão é o resgate dos modelos institucionais propostos pelo PlanoDiretor. Esta é uma diferença marcante em relação à gestão pública em-preendedora I, que desprezava os modelos, e também em relação aoPlano Diretor, que os considerava um elemento imprescindível do pro-cesso de transformação organizacional. A gestão pública empreendedoraII reconhece a funcionalidade dos modelos, mas também suas limitaçõesestruturais, o que recomendava revisões dos modelos AE e OS, comoserá abordado adiante. Nesse sentido, a consideração dos modelosinstitucionais do Plano Diretor e sua evolução em outras direções tambémconstituem um ingrediente sistêmico.

O terceiro elemento da reestruturação do núcleo estratégico e melhoriade gestão é a integração da atenção a órgãos e entidades com os progra-mas da qualidade, da desburocratização e, ainda, com as áreas de RH ePPA. A busca de convergência reflete-se na utilização de instrumentos daqualidade (destaca-se o instrumento de avaliação da gestão, utilizadopelo Prêmio da Qualidade do Governo Federal) no atendimento (paraafeito de avaliação na “entrada” e durante o processo de assistência àtransformação) a órgãos, entidades e programas do PPA. Ela se refletetambém na utilização dos programas da desburocratização, da qualidadee Valorização do Servidor como “porta de entrada” para a reestruturaçãoe melhoria da gestão do núcleo estratégico em geral. Destaca-se o aspec-to da mobilização, fortemente presente nos programas da qualidade e dadesburocratização, como alavanca do envolvimento do corpo funcionalnos processos de transformação.

Os esforços da SEGES referentes à integração desse componente comos demais elementos constitutivos da política de gestão pública ficaramevidenciados em 2002. No que diz respeito ao PPA, as iniciativas dearticulação continuaram no corrente ano, com uma orientação mais efeti-va por parte da SEGES aos órgãos e entidades participantes daReestruturação, no sentido de contemplar a integração de suas propostas

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de reestruturação aos seus programas constantes do PPA. Exceção feitaao Ministério do Meio Ambiente, os demais ministérios e órgãos têmpreferido elaborar suas propostas de reestruturação com base nosmacroprocessos identificados no setor/área em que atuam. Em relação àLei de Responsabilidade Fiscal, a SEGES iniciou processo licitatório paracontratação de consultoria para elaborar proposta de ação com o objetivode apoiar sua consolidação nos estados e municípios.

Esta estratégia rendeu bons efeitos nas principais UPs da implementaçãodesta frente:

• A PR, além dos resultados altamente positivos apresentados na suareestruturação estratégica, sinaliza a sustentabilidade do processo, na medidaem que continua promovendo melhorias nos seus processos de trabalho,com a participação dos seus funcionários, e revisões estratégicas de ações,tendo resultado na sua maior integração. No entanto, a PR ainda nãoconseguiu estabelecer mecanismo efetivo para promoção da articulação-integração da ação governamental, sobretudo, nas áreas sociais, desafioque se apresenta desde o primeiro mandato do Presidente FernandoHenrique Cardoso (FHC)14.

• O Ministério do Meio Ambiente, apesar de ter optado pela não parti-cipação no processo de reestruturação estratégica no primeiro mandato dogoverno FHC, incorporou a experiência do IBAMA (unidade piloto doprojeto Agências Executivas em 1996/98) na sua revisão estratégica. Essa éuma indicação importante da sustentabilidade desse processo.

• Entretanto, o mesmo não pode ser afirmado com segurança quantoao Ministério da Cultura, porque, até o final desse governo, ele nãodisporá de tempo hábil para consolidar a implementação da proposta dereestruturação.

• A SEAS e a AGU, embora não tenham implementado totalmente asproposições das consultorias, apresentaram melhoria do seu desempenho.Há indicação também de que seus servidores hoje reúnem melhores condi-ções para dar continuidade aos processos de modernização da gestão.

Quanto aos demais ministérios e/ou órgãos, sua participação foi pon-tual ou o processo ainda se encontra em fase preliminar (caso doDENATRAN), inviabilizando qualquer avaliação dos seus resultados.

14 As câmaras do Conselho de Governo da Presidência da República, no primeiro mandato, e o

Avança Brasil, no segundo mandato, pretenderam promover essa articulação/integração intersetorial.Somente as câmaras da área econômica alcançaram esse objetivo (e por isso mesmo foram as únicasque sobreviveram no 2o mandato de FHC). O Avança Brasil não logrou êxito.

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Já o programa de Desburocratização logrou desenvolver uma redecomposta por um Comitê Interministerial com 95 entidades, 13 GovernosEstaduais (AM, AP, BA, CE, DF, ES, GO, MA, PA, PR, PE, RJ e SP), 2Prefeituras (Salvador e Vitória), 2 Entidades Não-Governamentais (SEBRAEe ANOREG), 78 Órgãos Federais, e 491 Comitês Executivos Setoriais(mais de 2000 servidores envolvidos). O Programa Nacional deDesburocratização, no primeiro ano de funcionamento, apoiou aimplementação de uma média de 3.7 medidas de desburocratização porsemana e até 2002 foram realizadas cerca de 685 ações dedesburocratização, sendo: 376 casos de facilidades para o cidadão; 230casos de redução de custo, tempo e aumento da produtividade; 51 casosde envolvimento e mobilização de servidores; e 28 casos de divulgaçãointerna e para o cidadão das ações implementadas.

Em síntese, a frente de reestruturação do núcleo estratégico e melhoriade gestão desenvolveu um modelo de atuação extremamente flexível,não dogmático, voltado à mobilização e, nesse sentido, com elementosconstrutivistas favoráveis. Isto revela um aprendizado no nível da estraté-gia de implementação.

5.2. Organizações SociaisDentro do espírito de resgate e revisão dos modelos institucionais doPlano Diretor, a frente relativa às organizações sociais voltou ao centrodas atenções da política de gestão pública deste período. Por um lado, aimplementação prosseguiu no âmbito do MCT, com o IMPA, RNP e CGEE/OS (LNA em tramitação), com sinais muito positivos de aceitação e melhoriada gestão. A implementação de OS pelo MCT se deu com pouco apoioda SEGES. Por outro lado, no âmbito da SEGES, gestora do modelo, foramretomadas as iniciativas de revisão iniciadas na gestão pública empreen-dedora I. Colocam-se, em relação às OS neste período, questões relativasà concepção e à gestão do modelo pela SEGES.

A discussão sobre a concepção do modelo está, principalmente, am-parada no temor de que a ADIN movida pelo PT e PDT em 1998 contraa Lei nº 9.637 seja vitoriosa e culmine por invabilizar a idéia de todo.Embora tenham havido movimentos da SEGES no sentido de fortalecer adefesa da União contra a ADIN, originalmente mal instruída pela Advoca-cia Geral da União, as atuais discussões em torno da revisão do modeloaceitam a maior parte das alegações da ADIN como válidas. Consideramo modelo juridicamente idenfensável e propõem sua evolução no sentido

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da consolidação da titularidade de entidades que operam segundo umalógica tipicamente comunitária, de forma parceirizada com o Estado, na linhadas OSCIPs. O rumo da atual discussão procura resgatar o caráter de titularidadedo modelo, caracterizando-a mais como instrumento de descentralização daação estatal para o terceiro setor (em consonância com a emergência da idéiade estado-rede, parceirizado com segmentos organizados da sociedade civilpara o provimento de bens públicos), e menos como estratégia flexibilizadora,em consonância com a necessidade de equacionar o binômio autonomia-flexibilidade, com o propósito de se promover o desempenho e accountability.Além da ADIN, a ação dos órgãos de controle no sentido de equiparar OS àempresas estatais, para efeito de tratamento de auditagem, as tentativas deenquadramento das OS no SIAFI e interpretações de diversos órgãos nosentido de considerar cessão de servidores para OS análoga à sessão paraórgãos e entidades, são sinais de enquadramento do modelo na lógica buro-crática conservadora. Muitos críticos vêem como natural um movimentopendular rumo ao progressivo engessamento.

Não obstante, ainda restam ações de gestão do modelo que foramdesarticuladas durante a gestão pública empreendedora I e ainda nãoforam plenamente restabelecidas na fase atual, relacionadas à divulgaçãointragovernamental. Ainda há muitas dificuldades de entendimento domodelo, desde a filosofia até o caráter contratual e os papéis dos diversosatores contratados, contratantes, conselheiros, membros do comitê de acom-panhamento etc. Há, também, problemas com relação ao modelo deassistência (na formulação de indicadores, em processos de transforma-ção organizacional, na capacitação dos agentes, na dirimição de dúvidaslegais etc.); à regulamentação do modelo (definição fina de questõesrelativas ao controle, à remuneração de dirigentes, isenção de tributos eprestação de contas etc.); à avaliação e controle do modelo (incluindo-sea gestão interna e o relacionamento com o Poder Público); ao estabeleci-mento de resultados (políticas claras, indicadores de desempenho bemdefinidos, contratos de gestão bem elaborados); ao financiamento(contingenciamentos orçamentários e busca de fontes alternativas de fi-nanciamento); ao modelo de supervisão (acompanhamento e avaliaçãodo contrato de gestão e representação no conselho de administração); e àgestão interna das OS (o aproveitamento das flexibilidades). Todavia, aSEGES tem buscado assistir de forma intensiva os casos críticos deimplementação de OS, tal como a ACERP, que absorveu as atividades daextinta Fundação Roquette Pinto.

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5.3. Agências ExecutivasA implementação do Modelo permanece paralisada e sua rediscussãotem caminhado no sentido de se identificar formas de expansão dasflexibilidades e aprimoramentos no contrato de gestão. A baixa eficáciadas flexibilidades do modelo é creditada ao fato de ser implementado viaDecreto, o que contrasta com conquistas mais vigorosas das agênciasreguladoras, implementadas mediante lei específica. Nesse sentido, cogi-ta-se a proposição de uma Lei específica para o INMETRO, única AE, naqual sejam especificadas as flexibilidades e autonomias a serem concedi-das àquele órgão.

Apesar desse incipiente resultado, deve ser ressaltado o processo detransformação e de reflexão estratégica ao qual foram submetidas asdemais entidades participantes do projeto. A consolidação do planeja-mento estratégico como ferramenta de gestão e a sistematização e oacompanhamento de indicadores de desempenho organizacional são cla-ramente identificados ainda hoje em várias entidades que participaram domodelo, com destaque para o IBGE, que mesmo não tendo sido qualifica-do como agência executiva, continua atualizando até hoje o seu planeja-mento estratégico, bem como avaliando seus resultados, mediante indica-dores de desempenho de eficiência, eficácia e efetividade.

O descompasso na implantação do modelo AE decorrente das dificul-dades do próprio MARE em consolidá-lo e da transição MARE-MP provo-cou um aumento da desconfiança em relação ao seu “futuro” - que jásofria em função das poucas flexibilidades.

5.4. Uma genealogia da gestão pública empreendedora IITratemos de decompor os elementos básicos do modelo que busca expli-car esta fase: o empreendedor, o domínio da política pública, a visão doproblema e das soluções e as coalizões.

5.4.1. O empreendedorO papel de empreendedor da gestão pública empreendedora II foi inici-almente exercido por Martus Tavares, mas delegado a Pedro Farias, se-cretário-executivo adjunto do MP. A percepção do problema se construiuem um nível central de governo, a partir da Casa Civil (Wilson Calvo eSilvano Gianni) e da cúpula do MP (Silveira, Martus e Guilherme Dias).Uma primeira percepção da solução passava, necessariamente por umaespécie de intervenção na SEGES, considerada desalinhada em relação às

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demandas operacionais (relativas a criação de novos entes e carreiras) eàs demais frentes de política de gestão pública (PPA, Reguladoras, ges-tão-meio etc.). Vislumbrava-se uma solução integradora.

A posição e o perfil de Pedro Farias eram adequados à circunstância: ocargo de sercetário-executivo adjunto proporcionava certa ascendênciasobre os secretários envolvidos com outras políticas de gestão pública noâmbito do MP; cuja coordenação, que onerava a agenda do secretárioexecutivo e em relação à qual a agenda do ministro era insensível, pode-ria ser grandemente facilitada por um perfil de alto nível técnico e expe-riência na área (ex-diretor do programa de reestruturação e qualidade eex-secretário-adjunto da reforma do estado na SRE/MARE; e ex-diretoradjunto da ANVISA).

No que tange à reforma institucional, Pedro Farias tornou-se um em-preendedor delegado, delegação esta que incluiu a prerrogativa de influ-enciar decisivamente a escolha do titular da SEGES. Isto marca a segundarenúncia de Martus em chamar para si este papel e também de seusucessor, Guilherme Dias, embora este último se interesse um poucomais que seu antecessor pela agenda da gestão.

5.4.2. O domínio da política públicaO domínio da política de gestão pública na trajetória de reformainstitucional neste momento extrapola a SEGES e cobre uma parte daestrutura da Secretaria Executiva. Além de constituir uma unidade decoordenação à qual a SEGES se vincula funcionalmente (hierarquicamen-te está vinculada ao Ministro), há um certo compartilhamento de funçõesmais operacionais, voltadas à criação de órgãos e entidades e à carreirase cargos em geral.

A estrutura da SEGES e os dirigentes dos principais programas (gestãopública empreendedora, qualidade e desburocratização) pouco se altera-ram em relação à fase da gestão pública empreendedora I (houve apenasa substituição do responsável pela formulação da política de RH). En-quanto as equipes da qualidade e desburocratização cresceram, houverazoável rotatividade de técnicos no âmbito do programa da gestão públi-ca empreendedora, gerando, por um lado, ruptura com a estratégia dopassado, mas, ao mesmo tempo, perda de aprendizado.

Em todo caso, houve um razoável ganho sistêmico interno: as equipesdos diferentes programas buscam convergência crescente e tratamentointegrado em casos concretos.

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5.4.3. A visão do problema e da soluçãoA visão do problema tem duas componentes: uma operacional; outrafinalística. Na componente operacional estão os processos de criação denovas entidades e de criação e manutenção do sistema de cargos (gestãodos DAS) e carreiras, correspondentes à agenda mais operacional daSEGES. Com efeito, a dinâmica de criação de agências reguladoras, daspressões pelo advento de reajustes em certas carreiras e criação de ou-tras clamava por orientações mais consistentes e por uma atuação técnicamais presente ao longo do processo (que, afinal, sobrecarregava a CasaCivil e deixava as definições ao sabor casuístico das áreas demandantes).

Na componente finalística, havia um contexto diferente daquele dagestão pública empreendedora I. Primeiramente, a orientação do PPAnão apresentava o mesmo brilho e posição de destaque na carteira depolíticas de gestão pública como antes. Várias questões haviam sidoamadurecidas, principalmente, as decorrentes da avaliação dos progra-mas, aquelas relativas à capacitação e necessidade de geração de esfor-ços concertados de transformação organizacional (de forma mais abrangenteque a simples adequação de estruturas para comportar gerentes de modomatricial). Segundo, algumas idéias oriundas do Plano Diretor emergiamem experiências estaduais e municipais e o debate se enraizava na litera-tura acadêmica (e, em menor extensão, na mídia). Não obstante, algunsmodelos inicialmente condenados, tais como organizações sociais, mos-travam-se viáveis sob novas circunstâncias (a partir da implementação noâmbito do MCT). A incompletude da proposta da gestão pública empre-endedora I e mesmo sua impossibilidade de mostrar resultados coerentescom suas orientações (que haviam, mas não eram percebidos como tal),forçaram à busca do passado próximo do Plano Diretor; não a rejeição desua proposta em favor de uma visão burocratizante conservadora (e isto émuito significativo). Terceiro, havia, por outro lado, demandas que nãoencontravam guarida no Plano Diretor: notadamente em relação às agênci-as reguladoras; trajetória que tangenciava a frente de reestruturação donúcleo estratégico e melhoria da gestão em diversos aspectos e permane-cia sem uma orientação coerente (abrindo espaço às implementaçõescasuísticas como estratégias meramente flexibilizadoras). Quarto, havia gan-hos na gestão pública empreendedora I: a estratégia do balcão, combinadacom critérios avaliativos de sucesso e a estratégia de implementação dosprogramas da qualidade e da desburocratização mostraram bons resultados,gerando transformações profícuas. Desse panorama surge a nova síntese:

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filosofia do plano diretor (administração gerencial com o nome de gestãoempreendedora, até porque a marca era mais congruente com o PPA e jáestava disseminada; e referência ao modelo contratual núcleo estratégico/atividades exclusivas/atividades não exclusivas); maior abertura do PPA eem relação a este; estratégias incrementalistas e construtivistas da gestãopública empreendedora I e atenção à questão regulatória e das carreiras.

5.4.4. A coalizãoA coalizão desta fase da política de reforma institucional éintragovernamental e comporta duas dimensões principais: o MP e a CasaCivil. O grande fator de adesão de atores estratégicos às proposições doMP no domínio da reforma institucional é a convergência técnica seladaentre o staff da Casa Civil (a partir, principalmente de Wilson Calvo) e ostaff da Fazenda (a partir de Luis Taca). A atuação de Pedro Farias junto aestas instâncias é fluída e marcada pela construção prévia de consensoem torno de questões técnicas específicas, extremamente facilitado porconvergências de visão em torno de problemas e soluções de gestão.

No que tange ao suporte político, a delegação de Martus Tavarese,posteriormente, Guilherme Dias, sinaliza o aval no caso de embatesintragoverno mais abrangentes.

5.5. A SEGES em busca de um novo tempoA gestão pública empreendedora II não representa a busca do tempo doMARE, “perdido” na guinada que a reforma institucional sofreu na gestãopública empreendedora I. Representa uma síntese de elementos de ambasem um contexto diferente. De um lado, não proporcionou um ciclo depolítica de gestão pública com o vigor daquele proposto pelo MARE,notadamente pelo caráter de quebra de paradigma. De outro lado, pro-porcionou o advento de uma estratégia de implementação avançada queincorpora elementos em relação aos quais as estratégias anteriores sedescuidaram (a mobilização e o envolvimento pela base, o experimenta-lismo, a integração de programas etc.).

Embora seja possível aplicar à gestão pública empreendedora II adenominação de política de gestão pública, a partir dos elementos desen-volvidos neste segmento, também é possível aplicar a esta a denomina-ção de estratégia emergente de implementação de uma política de ges-tão pública. Uma grande questão é a extensão na qual o próximo ciclo depolítica de gestão pública tirará proveito desta estratégia.

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VI - BALANÇO GERAL E PERSPECTIVAS DA TRAJETÓRIA DA REFORMA INSTITUCIONAL

Este segmento busca apresentar considerações gerais sobre as frentes datrajetória reforma institucional, identificar singularidades da era FHC eelaborar considerações prospectivas sobre seu prosseguimento no futuro,tendo em conta a iminência do novo Governo.

6.1. Reestruturação ministerial e melhoria de gestãoEsta frente será sempre objeto de intervenção planejada no âmbito depolíticas de gestão pública, quer numa linha mais ortodoxa, baseada nofortalecimento dos elementos burocráticos clássicos da burocracia central(carreiras, processos etc.), quer numa linha heterodoxa, a exemplo doPlano Diretor, segundo o qual o fortalecimento do núcleo estratégico eraum pré-requisito para a funcionalidade dos modelos institucionais preco-nizados em bases contratuais.

A despeito das três políticas pelas quais a frente atravessou ao longodos últimos oito anos, da diversidade de orientações e estratégias deimplementação, de dirigentes, corpo técnico e expectativas das organiza-ções beneficiárias, a primeira pergunta que surge é: em que extensão onúcleo duro da burocracia governamental melhorou seu desempenho emvirtude de tais políticas? A resposta é obviamente mais complexa que apergunta e, sobretudo, demanda a elaboração de esquemas avaliativos edados que escapam ao propósito deste trabalho. Mas, ainda assim, épossível tecer algumas considerações acerca de uma possível e vagaresposta: O desempenho do núcleo duro da burocracia melhorou muitomenos do que poderia e menos ainda do que deveria. Isso, mesmolevando-se em conta que a modernização gerencial do núcleo central degoverno é um processo predominantemente incremental. Há três princi-pais pontos de tensão por detrás deste custo de oportunidade: padroniza-ção versus customização das soluções; estratégia de implementação indutivaversus atendimento de demandas (balcão); e integração com outras polí-ticas versus fragmentação.

Nesse sentido, a história da frente de reestruturação dos ministérios emelhoria de gestão revela três importantes movimentos: a)expressivoganho de convergência interna, dentre seus diversos programas; b)ganhoresidual de convergência com outras políticas de gestão pública, aindarestrito ao âmbito intraministerial e de forma limitada; c)grande dificulda-de de integração com outras políticas de gestão pública principalmente

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em âmbito interministerial (gestão fiscal, gestão social e aparato regulatório)e, também, em âmbito intraministerial (PPA); e d)inclinação à convergên-cia com outras políticas de governo, no sentido de adequar soluçõesinstitucionais a problemas peculiares nos seus domínios (como nas áreasde meio ambiente e cultura, em vez de impor ou oferecer a esta, solu-ções institucionais padronizadas, o que parece ter sido o caso da saúde eda educação, principalmente).

Não obstante, o desenho organizacional no âmbito das políticas degestão pública é francamente fragmentador, formando diferentes domíni-os de política pública já estabelecidos no âmbito de diferentes secretariasde diferentes ministérios (Planejamento, mediante as secretarias da Ges-tão, Recursos Humanos, Logística e Tecnologia da Informação, Orçamen-to Federal, Investimentos e Projetos Estratégicos e Patrimônio da União;Fazenda, mediante a Secretaria do Tesouro Nacional; e Corregedoria Ge-ral da União, mediante a Secretaria Federal de Controle). A inviabilidadeda existência de um órgão central forte dentro do governo (tais como oDASP nas décadas de 1930 e 40 e a SEPLAN nas décadas de 70 e 80)torna a coordenação governamental um fator-chave de sucesso, quais-quer que sejam as estruturas envolvidas (ministeriais ou secretariais).

O advento do novo governo trará, provavelmente, uma reorganizaçãomacro-governamental e esforços pela busca de eficiência (alternativa ànecessidade de conjugar duras metas fiscais com necessários investimen-tos sociais). Mais do que nunca, estarão colocados os desafios de gestãoda tensão entre padronização e customização de soluções, entre inter-venções induzidas e atendimento de demandas e, sobretudo, da busca deintegração entre as diversas políticas de gestão pública, os processos detrabalho e estruturas sob seus domínios.

6.2. Organizações SociaisA quantidade de organizações sociais implementadas não seria um bomindicador de sucesso das políticas de gestão ao longo desta frente deiniciativas. A implementação de OS deveria corresponder ao processo dereordenamento institucional do governo central, mas sua proposição esta-va voltada à fixação de alguns conceitos: de que a noção de público nãoestava restrita à maquina estatal; de que organizações não governamen-tais poderiam tornar-se parceiros estratégicos da ação estatal; de que anoção do estado-rede demandava modelos inovadores de parceria. Mas,na prática, as OS foram utilizadas como um recurso flexibilizador.

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Há, nesse sentido, muitas evidências de impactos relacionados à apli-cação direta do modelo OS em organizações específicas, a replicação domodelo em estados e municípios e a discussão sobre modelos inovadoresde gestão que se seguiu na academia e na comunidade de praticantesinclusive em perspectiva internacional.

A principal questão a respeito dos impactos diretos de sua aplicaçãona qualidade da gestão é se as atividades “publicizadas” estão sendogeridas de maneira mais efetiva. Uma avaliação sucinta da implantaçãodo modelo nas sete instituições qualificadas aponta para três categoriasde resultados:

• uma visível transformação na gestão, promovendo eficiência eefetividade (impactos secundários) com transparência (caso da ABTLuS,IMPA, Mamirauá e RNP);

• ganhos de eficiência, porém com potencial ainda a se explorar;• impasses relacionados à efetividade, principalmente relacionados à

tensão entre orientação para o mercado versus orientação para objetivosde políticas públicas associados a impasses de transparência (caso daACERP e Bioamazônia).

Outra categoria de impactos está relacionada à replicação do modeloOS nos Estados (Acre, Amazonas, Pará, Maranhão, PE, BA, ES, SP, MG,DF, PR, GO, MT, MS e TO) e municípios, bem como a sua derivação parainstituição de novos modelos (OSCIPs e OMPSs15). No que se refere àdiscussão acadêmica e profissional sobre modelos inovadores de gestão,parceirização, contratualização e consolidação do terceiro setor, há evidên-cias contundentes da expansão do debate pela América Latina a partir daacademia (pela quantidade de artigos, teses, livros e estudos em geral).

O futuro do modelo depende da demanda por sua aplicação, da revi-são de sua concepção e do resgate das ações de gestão do modelo. Aindaque a demanda tenha enraizado no MCT e ainda que haja questões fecha-das em torno da concepção (com a conseqüente proposição de projetode lei), a efetiva revisão do modelo é uma tarefa que restará ao próximogoverno, do partido que argüiu contra a constitucionalidade da lei 9.637/98. Ainda que o novo governo reconheça a utilidade de modelos deparceria Estado-terceiro setor, o modelo OSCIP seria, a julgar pelas alega-ções da ADIN, uma solução mais aceitável que as OS. No mínimo, esti-

15 OSCIPs são organizações da sociedade civil de interesse público e OMPSs são organizações militares

prestadoras de serviços.

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ma-se que a qualificação de novas entidades cesse, pelo menos enquantouma possível revisão não aconteça.

A questão fulcral em relação à uma possível revisão do modelo, deforma mais ou menos convergente com a atual discussão no âmbito daSEGES, é a extensão na qual as alterações descaracterizariam o modelo; aextensão na qual um certo engessamento e submissão a regras padroni-zadas poderia conviver e não suplantar a lógica flexibilizadora; e a ex-tensão na qual a migração para uma forma de cooperação mais distancia-da do estado (com menor presença interna do Estado) poderia garantirformas mais efetivas de controle estratégico da entidade.

6.3. Agências ExecutivasO grande tema no qual a proposição do modelo de Agências Executivasse insere é a flexibilização e a autonomia gerencial. Esta questão tambémenvolve a regulamentação do parágrafo 8º do art. 37 da ConstituiçãoFederal e o advento de algumas agências reguladoras e de fomento.

O modelo representa, nesse sentido, um flagrante caso de fracasso datentativa de equacionar o binômio autonomia-accountability em basessistemáticas. Dentre outros fatores, a falta de integração entre as políticasde gestão pública foi determinante na paralisação do modelo.

Há pelo menos dois significativos registros de efeitos fragmentadores,cuja reversão poderia ter beneficiado todas as trajetórias de gestão públi-ca em aparente conflito. O primeiro remonta à negociação do contrato degestão da única agência executiva, o INMETRO, face à recusa do minis-tério da Fazenda (gestão fiscal) em garantir o repasse de apenas 60% doseu orçamento, aceitando-se 40% de corte para geração dos mesmosresultados. O segundo remonta à implementação casuística de algumasagências reguladoras, no intuito de apenas usufruir das diferenciaçõesflexibilizadoras do modelo (caso patente da ANCINE). Isto tudo semcontar com a concepção de programas do PPA, segundo a qual o gerente,embora responsável por resultados, não dispõe de autonomia ou incenti-vos em termos de flexibilidade para efetivamente alcançá-los.

A questão subjacente é a tensão entre padronização (mesmas regras emodelos institucionais consagrados para todas as entidades) e diferencia-ção (regras e modelos institucionais diferenciados). Em relação a estasquestões, há dois principais movimentos concomitantes: a)otimizar o pa-drão, mediante simplificação de processos, desburocratização, e adventode novos instrumentos de gestão (dentre os quais destaca-se o

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COMPRASNET e o pregão); e b)implementar modelos diferenciados (taiscomo, além das agências executivas e reguladoras, as OMPS e centros deprestação de serviço). Ambos movimentos são necessários, primeiro por-que a padronização não dá conta da variedade de casos que requeremtratamentos específicos; segundo, porque a diferenciação sem regras oulimites resulta na proliferação desordenada e casuística de modelos.

O próximo governo sinaliza o fortalecimento das funções de regulação,fomento e gestão de programas sociais. É bastante provável que o forta-lecimento ou criação de instituições atuantes nestas áreas requeira algu-mas diferenciações. Espera-se que tais iniciativas possam se beneficiardas lições do passado e buscar convergência com políticas nas trajetóriasde gestão estratégica e gestão fiscal, principalmente, para tornarem-semais efetivas.

VII - POLÍTICAS DE GESTÃO PÚBLICA NA ERA FHC: A FRAGMENTAÇÃO E O PAPEL DA

COORDENAÇÃO

Os três segmentos anteriores trataram de três casos de políticas de gestãopública: uma mesma trajetória, sentidos diferentes com antagonismos ecomplementaridades. Em todo caso, trajetórias não exclusivas, que seentremeiam e que perpassam, complementam e contradizem, em variadaextensão, outras trajetórias vigorosas de políticas de gestão pública, aolongo dos governos FHC.

7.1. Diversidade ou fragmentação?Diante do panorama de trajetórias, a seguinte questão emerge: trata-se dediversidade ou fragmentação? A resposta simples é: ambas.

A diversidade pode ser claramente percebida a partir da pluralidadede visões, valores, ações, atores empreendedores e coalizões em dife-rentes graus de convergência. A análise das trajetórias e casos revela umaplêiade de ricas experiências de políticas de gestão públicas baseadasem elaboradas construções de problema e soluções, vibrantes atuaçõesde diferentes empreendedores e construção de intrincadas coalizões, re-sultando em grande variedade de resultados de formulação (documentosreferenciais de governo, planos, planos-diretores, decretos, leis e emen-das constitucionais contendo regulações de políticas de gestão pública).

A análise de cada trajetória e os casos estudados também possibilitou aidentificação de elementos de convergência e divergência entre eles.

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Nesse sentido, a fragmentação caracteriza-se por situações de baixaintegração, por obstáculos, bloqueios recíprocos e orientações contrárias.O Quadro 2 apresenta evidências fragmentadoras mais salientes encon-tradas nas relações entre as trajetórias: ocorrências com restrições e obs-táculos (iluminadas em amarelo), ocorrências integradoras (iluminadasem verde).

Em alguma extensão, o conjunto de trajetórias revela uma fragmenta-ção da agenda. Sugere-se que o fator coordenação desempenhou umpapel chave na geração do nível de convergência/divergência das distin-tas orientações de política de gestão pública.

7.2. Fragmentação e fatores de coordenaçãoO propósito deste segmento é explorar cinco fatores de coordenaçãoque estão altamente correlacionados ao grau de convergência das políti-cas de gestão pública em questão, entre si e com as outras cinco trajetó-rias identificadas. Os fatores são: a)liderança executiva presidencial;b)coordenação delegada; c)instâncias colegiadas de coordenação;d)coordenação intraministerial; e e)autocoordenação.

Esta categorização parte da definição de Mintzberg (1995) sobre me-canismos de coordenação, segundo a qual esta ocorre por: a)ajustamentomútuo; b)supervisão direta; c)padronização dos processos; d)padronizaçãodos resultados; e e)padronização das habilidades dos envolvidos na con-secução das tarefas. Nesse sentido, a categoria liderança executiva presi-dencial está relacionada à padronização dos resultados e à supervisãodireta; as categorias de coordenação delegada, coordenação intraministeriale instâncias colegiadas estão relacionadas à arranjos hierárquicos de su-pervisão e padronização do processos de trabalho. A autocoordenação

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está relacionada aos incentivos institucionais para o ajustamento mútuono topo ou na base da organização governamental.

7.2.1. Liderança executiva presidencial e macrocoordenação intragovernamentalO padrão de liderança executiva presidencial é o principal fator de macro-coordenação governamental no regime presidencialista. O caso brasileiroainda possui algumas características especiais que tornam a liderançaexecutiva um fator primordial de coordenação governamental: o desenhodo cargo presidencial impõe o exercício de funções de líder político, de“gerente geral de governo” e de dirigente máximo da Presidência daRepública, tomada como organização (COSTA, 1993).

A liderança política é claramente indelegável e se exerce na medidaem que o Presidente articula um projeto nacional e o negocia frente àsociedade e as instâncias parlamentares autorizativas. A liderança políticaimplica em coordenação extragovernamental. A função de dirigente daPresidência da República já é plenamente delegável, até porque implicano exercício de atos de gestão administrativa em relação aos quais oPresidente não deve se envolver.

O padrão de liderança executiva presidencial no período privilegiouclaramente as funções de coordenação política em detrimento da macro-coordenação intragovernamental, em função da delegação do exercícioda função de “gerente geral de governo” para terceiros, usualmentesuperministros próximos ao Presidente dotados de grande poder de influ-ência nas decisões governamentais (Casa Civil, Secretaria-Geral da Presi-dência e Fazenda). Há muitas evidências de que o Presidente atua, nessearranjo, como árbitro de tensões que se exercem dentro do governo, masesta arbitragem não diminui a autoridade dos delegados, nem mesmo sobintenso desgaste com outros superministros.

Nesse sentido, maior ou menor convergência das políticas de ges-tão pública depende de um arranjo complexo de macro-coordenaçãogovernamental delegada e tripartida: concentra-se na figura do Minis-tro-Chefe da Casa Civil, mas depende da atuação do Secretário-Geralda Presidência para interfaces externas (relação com Congresso) esubmete-se ao poder de veto do Ministro da Fazenda. Isto torna omecanismo de arbitragem presidencial um último recurso altamentedesgastante. Em suma, perante uma estrutura de coordenação frag-mentária, apenas a atuação direta do Presidente poderia gerar conver-gência e integração; mas a atuação presidencial não se volta para a

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geração de convergência, senão para evitar situações de extrema di-vergência.

7.2.2. Os vieses divergentes da coordenação delegadaHá três vieses claramente identificáveis na estrutura de coordenaçãotripartida: a visão pragmática, a visão conservadora e a visão micro-organizacional.

A visão pragmática poderia fundamentar-se em teorias de alocação deatenção e busca, que, em última análise, tratam a atenção como recursoescasso e fundamentam o foco nas questões consideradas principais emdetrimento do “resto”. A visão pragmática é a visão segundo a qual aatenção presidencial deve concentrar-se nas questões pertinentes ao ajustefiscal e a salvaguarda dos objetivos de política econômica se sobrepõeaos demais objetivos de governo. Nesse sentido, há pouco espaço paraintegrar questões conflitivas entre políticas de gestão pública e ajustefiscal.

A coordenação pragmática é exercida a partir do Ministério da Fazen-da e busca convergência com os objetivos do ajuste fiscal, muito mais apartir do veto e da restrição que da articulação de ações racionalizadoras.

A visão conservadora consiste na crença de que as políticas de refor-ma do estado não devem visar à superação de paradigmas, mas à otimizaçãodo paradigma burocrático mediante ajustes tópicos na legislação infra-constitucional e infra-legal. Esta visão converge, aliás, com um dos ele-mentos centrais da estratégia administrativa presidencial. Nesse sentido,políticas de gestão pública inovadoras, que proclamam o advento denovos paradigmas gerenciais, implicariam esforços e desgastes desne-cessários. A coordenação conservadora foi exercida predominantementepor Eduardo Jorge, na qualidade de Secretário-Geral da Presidência daRepública no 1º governo FHC.

O terceiro viés da coordenação delegada é a visão micro-organizacional,segundo a qual os processos de otimização da burocracia governamentalimplicavam o rompimento do paradigma burocrático, mas a aplicação denovas tecnologias e abordagens gerenciais estaria restrita a aspectos micro-organizacionais, tais como revisão de processos, atendimento ao público,definição de objetivos e metas de gestão. Eles não estariam, assim colo-cados em perspectiva de amplo processo de reordenamento institucionalentre e dentre esferas do Estado, mercado e terceiro setor (perspectivaesta considerada excessivamente teórica, vaga e utópica). A força da

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visão micro-organizacional, presente predominantemente na ação de ClóvisCarvalho no 1º governo FHC, implicou em dificuldades de integraçãoentre políticas de ambas as linhagens.

7.2.3. O papel das instâncias de coordenaçãoExceto em situações de crise (como a energética de 2001), diversosmecanismos colegiados de coordenação falharam em assegurar conver-gência e integração. Ou seja, em condições normais, isso ocorreu nascâmaras do conselho de Governo (dentre as quais figura a Câmara daReforma do Estado), conselho da Reforma do Estado (se bem este sevoltava mais à articulação com segmentos da sociedade), comissões par-lamentares, comitês interministeriais (incluindo-se grupos formais e infor-mais que se formaram em torno de questões mais ou menos pontuais).

Isto ocorreu, primeiramente, porque tais instâncias não competiamcom a estrutura de macro-coordenação delegada, submetendo-se aos seusvieses. Segundo, porque muitas iniciativas colegiadas foram descontinuadas,a exemplo da própria Câmara da Reforma do Estado. Há, entretanto,registro de pelo menos um evento (criação da ANEEL) no qual umacomissão do Congresso teve papel realmente integrador.

7.2.4. A coordenação intraministerialAlgumas trajetórias e casos ocorreram sob a jurisdição de um único minis-tério e, ainda assim, verificou-se problemas de integração. Há questõesde coordenação intraministerial relacionadas ao perfil dos Ministros, àintegração entre secretarias e a arranjos e posições integradoras no âmbi-to intraministerial.

A questão do perfil dos ministros é certamente crítica, porque háministérios (caso do MARE e MP) que lidam com diferentes trajetórias debaixa integração. O perfil do Ministro define não apenas o padrão deliderança e coordenação entre as diversas secretarias, mas o tipo deatenção e foco.

A questão da integração entre secretarias é outro elemento fundamen-tal da coordenação intraministerial e está relacionado à visões e jurisdi-ções conflitantes: a existência de secretarias com jurisdições sobre ogoverno como um todo e com valores e orientações diferentes.

No caso do MARE, havia forte liderança ministerial, mas a estrutura decoordenação era mesclada pela atuação do Ministro e pela atuação deduas secretarias que dividiam a coordenação de questões relacionadas à

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reforma institucional (Secretaria da Reforma do Estado) e à gestão-meio(Secretaria-Executiva). A liderança ministerial não proporcionou a devidaintegração entre estas trajetórias, até porque ambas trajetórias tinham co-nexões extra-ministeriais. No que se refere à integração de secretarias,havia no MARE uma clara separação entre os segmentos da reforma,baseados na lógica da inovação, e outros da manutenção dos sistemasadministrativos de governo, baseados na lógica do controle e da centrali-zação.

No caso do Ministério do Planejamento (MP), o problema da liderançaministerial é ainda mais crítico devido à quantidade de secretarias, ao fatode muitas delas terem sido justapostas a outras anteriores, em razão daextinção do MARE e ao fato de o MP ter a este vinculado, durante curtoperíodo de tempo uma Secretaria de Estado com papel coordenador,redundante e altamente conflitivo com a Secretaria-Executiva. Em mo-mento posterior, a Secretaria-executiva adjunta do MP teve um papelintegrador fundamental. Não obstante, a Secretaria de Gestão, herdeira daorientação da reforma institucional, outrora na SRE/MARE, era considera-da pela cúpula do MP um domínio extraministerial, isso dificultava muitoo diálogo e a integração vertical e horizontal dentro do ministério.

No MP houve, durante o segundo mandato presidencial, dois ministroscom perfis bem marcantes e diferentes. O perfil do primeiro era clara-mente integrador e baseava-se em liderança ativa e em visão abrangentedas diferentes perspectivas do MP (planejamento, orçamento e gestão).O evento de planejamento estratégico do MP ocorrido em abril de 1999 éconsiderado um evento único de integração entre as perspectivas fiscal egerencial. O perfil do segundo era claramente técnico, exercendo incon-testável liderança técnica em questões e segmentos voltados à problemá-tica fiscal, enquanto conferia baixa atenção a questões voltadas ao plane-jamento governamental e à gestão.

7.2.5. Impossibilidade da autocoordenação no topo e na baseFinalmente, esgotado o potencial dos arranjos institucionais formais emproporcionar integração e convergência, destaca-se as dificuldades doestabelecimento de um padrão de autocoordenação em duas perspecti-vas: no topo e na base, embora esta última tenha logrado alguns bonsresultados. A autocoordenação é a possibilidade de ajustamento mútuoentre as partes sem a interferência direta de um supervisor hierárquico.

A grande dificuldade ao exercício da autocoordenação no topo é a

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desigualdade de poder (a existência de “ministros poderosos”, na ex-pressão presidencial, que impõem suas perspectivas sobre os demais) ea visão fragmentada das diversas áreas e setores políticos ou de governo(cujo efeito fragmentador se multiplica na ausência de um projeto nacio-nal e na polarização em torno do ajuste fiscal). Um fator atenuador dasdificuldades para gerar autocoordenação no topo pode ser a açãointegradora de alguns secretários-executivos, dentre os quais o diálogo,além de mais técnico, é mais fluído.

Até certo ponto, a autocoordenação na base reproduz as mesmas dife-renças de suas respectivas cúpulas, mas com um atenuante: as discussõestécnicas nas bases (bem entendido, bases da alta burocracia equivale aDAS 4, 5 e 6) acabam gerando maior integração, embora ainda em níveismuito aquém do ideal, tendo em vista fatores tais como, perspectivas decarreiras comuns e relações interpessoais entre técnicos de diversos mi-nistérios e da Casa Civil.

7.3. Os limites e possibilidades da racionalidadeA análise dos fatores de coordenação indica, em geral, um arranjo decoordenação pouco eficiente subjacente aos casos analisados, revelandoos limites da racionalidade de forma convergente com a visão propostapor March & Olsen (1972) a partir da qual as organizações se caracteri-zam por escolhas problemáticas, processos não claros e participaçõesfluídas de diferentes atores nos processos decisórios. Esta talvez seja umasingularidade específica dos ciclos de política de gestão pública da eraFHC, em contraste com outros momentos nos quais ciclos vigorosos depolíticas de gestão pública se caracterizaram por arranjos de coordenaçãoancorados em forte supervisão hierárquica (caso típico do DASP da eraVargas) e padronização dos processos e resultados (característicos dosprincípios do DL 200/67 e do sistema federal de planejamento durante osanos 60 e 70).

Por um lado, a complexidade característica de um macrocontexto dedemocracia e globalização, promovendo incerteza, pluralidade e ambi-güidade, além da fragmentação dos domínios de políticas de gestão pú-blica, explicam apenas parcialmente o malogro da funcionalidade dosfatores de coordenação, relacionados ao ajustamento mútuo, à supervisãohierárquica e à padronização de resultados, processos e habilidades. Poroutro lado, é preciso não descartar a possibilidade de que questões rela-tivas à sedimentação de posições de poder (notadamente por parte de

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superministros detentores de delegação para o exercício da coordena-ção) que poderiam levar a uma coordenação ineficiente, gerando umainteligência perversa por trás dos arranjos de coordenação.

Em todo caso, há disfuncionalidades flagrantes nos arranjos de coorde-nação que não podem ser minimizadas, ainda que de forma limitada. Oscasos analisados sugerem que a coordenação é tão mais falha quantomais se ascende na hierarquia governamental. Coordenaçõesintrasecretariais, no alvo do domínio das políticas de gestão pública, nãoforam fatores críticos. Já a coordenação intra e interministerial já repre-sentam fortes fatores de fragmentação.

Os casos analisados sugerem que esforços no sentido de maior integraçãomediante melhor coordenação devem ser abrangentes e buscar integrarestratégias, estruturas, processos, pessoas e sistemas de informações.

A integração e coordenação na dimensão das estratégias e perspectivafinalística que remonta, em última análise, ao nascedouro das políticaspúblicas (inclusive as de gestão), é altamente dependente da intervençãopresidencial. Isso vale tanto no sentido de construção de uma sólida visãosobre os resultados esperados (um projeto nacional, uma visão de futuro),quanto é um indelegável exercício da supervisão hierárquica, principal-mente sobre os coordenadores-delegados (usualmente superministros daCasa Civil, do Planejamento e da Fazenda).

A intervenção passiva do Presidente nesse sentido, leva a uma espé-cie de captura estratégica, de subversão das finalidades pelos meios. Oexemplo marcante é o ajuste fiscal da era FHC, que de meio converteu-se em fim em si mesmo, abrindo caminho a uma coordenação hegemônicainsulada das instâncias responsáveis pela sua gestão.

Na dimensão das estruturas, a integração e coordenação apontam paraa adoção de posições e mecanismos integradores de forma sobreposta aodesenho macro-governamental conforme este se estabelece hoje (medi-ante uma configuração funcional). Posições integradoras, a exemplo daSecretaria-Executiva adjunta do Ministério do Planejamento, podem seestabelecer em diferentes níveis hierárquicos, junto ao próprio Presiden-te, Ministros e Secretários, como assessores e adjuntos. Além de facilitar acoordenação mediante supervisão hierárquica nas estruturas às quais in-tegram, azeitando o processo decisório de forma convergente, tais posi-ções integradoras podem adquirir uma atuação extroversa e animar redesde integração inter-organizacionais, visando a integração de processosque extrapolam domínios específicos e a construção de consensos sobre

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temas emergentes. Posições integradoras e redes de discussão e forma-ção de consenso são mais eficazes que a formalização de órgãos colegiados(tais como comitês, grupos, conselhos etc.). Além de apresentar proble-mas de representatividade, estes, muitas vezes, diminuem a autoridadeexecutiva dos responsáveis pela implementação de políticas e progra-mas que, assim, podem se tornar redundantes e sobrepostas.

Na dimensão dos processos, a interação e coordenação são as quemais dependem de ajustamento prévio, a partir da especificação de pro-cessos de trabalho voltados à implementação de políticas em diversasáreas. Trata-se da coordenação por padronização de processos dentrediversas organizações. Os eventos mais marcantes nos casos analisadosremontam à aplicação de flexibilidades de gestão em entidades diferen-ciadas (AE, AR e OS). Isso implicava o estabelecimento de novos proces-sos de gestão e controle, que necessariamente passavam por diferentessegmentos da burocracia, em relação aos quais se obteve pobre consen-so. Uma forma de obter convergência de processos é a promoção deações de diagnóstico e revisão de processos de forma compartilhadamediante a construção de uma visão sistêmica sobre o processo e seusresultados.

Na dimensão das pessoas, a interação e coordenação não são menosrelevantes, embora se revistam menos do caráter formal-regulamentarque as estruturas e processos se revestem. Quando as pessoas se comu-nicam e se entendem, a coordenação flui. Os casos de políticas de gestãopública na era FHC ilustram esta questão de variadas formas: as relaçõespessoais e o pertencimento a carreiras são exemplos. Esta dimensão dacoordenação também pode ser bastante potencializada pela realização deeventos integradores que quebrem barreiras de comunicação e facilitema interação entre as pessoas, independentemente de suas posições hie-rárquicas.

Na dimensão das informações, a interação e coordenação também sãovitais e correspondem ao acesso a bases de dados e informaçõescongruentes ou comuns. É certo que um grande passo foi dado nestadireção na era FHC, a partir da implementação da rede de governo e deaplicações no âmbito do governo eletrônico, mas o avanço situa-se muitomais na expansão do acesso e das possibilidades de disponibilização dedados que em sua efetiva utilização. Vários passos podem ser trilhados nosentido de estruturarem bases de dados temáticas dentro do governo, queproporcionem convergência de informações para que certos setores ou

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organizações atuem de forma convergente no tratamento dos problemas.Em síntese, a coordenação é importante e ingrediente fundamental

para o sucesso de todas as políticas públicas, e em especial das políticasde gestão. De variadas formas, políticas de gestão pública surgem quan-do se abrem janelas e algumas delas já se vislumbram para o governovindouro. Uma das idéias centrais que emerge dos casos analisados éque, em alguma extensão, os governos não têm controle estrito dos pro-cessos de eclosão de políticas: problemas, soluções, visões, empreende-dores e coalizões são elementos em rápido, e às vezes confuso, movi-mento. Em boa parte dos casos, o melhor que se pode fazer é buscarcanalizá-los e dotá-los de convergência, mediante a construção de umavisão forte (do líder) ou através de elaboração do projeto nacional emediante múltiplos arranjos de coordenação.

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O PERFIL DA BUROCRACIA FEDERAL

(1995-2002):TRANSFORMAÇÕES E DILEMAS

Nelson Marconi1

A administração pública brasileira sofreu importantes mudanças a partirde 1995. Em primeiro lugar, com alterações no marco legal, que visaramà flexibilização do regime e relações de trabalho. A segunda transforma-ção significativa ocorreu na política e a gestão de recursos humanos, emprol da mudança do perfil da força de trabalho, por meio do fortaleci-mento das chamadas carreiras de Estado, de modificações nas regras decontratação, da capacitação contínua, da reestruturação da estruturaremuneratória das carreiras e, mais recentemente, da ênfase no desen-volvimento de competências. Para constituir uma burocracia baseada nadefinição de metas e resultados esperados, foram dados passos decisivosno planejamento da força de trabalho e no desenho de um novo formatopara a gestão de recursos humanos, buscando maior autonomia,responsabilização e envolvimento dos dirigentes na gestão do desenvol-vimento profissional dos funcionários. Importantes resultados foram obti-dos a partir da adoção desta estratégia, que foi sendo aperfeiçoada aolongo dos anos e perdura até hoje.

Este capítulo pretende demonstrar alguns resultados da políticaimplementada no Poder Executivo Federal para os servidores civis daadministração direta, autarquias e fundações, em relação ao seu objetivomais geral, qual seja, a mudança do perfil da força de trabalho (através daanálise dos dados que refletem este novo cenário). Busca-se ainda discu-tir as distorções que permaneceram ou foram geradas ao longo desteprocesso, sugerindo medidas necessárias para o futuro aprimoramento dapolítica de recursos humanos e do perfil dos funcionários. A análiseestará centrada no grupo dos servidores efetivos.

1 Doutor em economia pela Fundação Getúlio Vargas-SP, professor doutor da Pontifícia Universidade

Católica - SP e ex-diretor de Carreiras e Remuneração do Ministério da Administração Federal eReforma do Estado.

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I - O PERFIL DESEJADO DA FORÇA DE TRABALHO

O redesenho do perfil da força de trabalho necessária passou, como emqualquer planejamento estratégico, pela definição dos objetivos e atribui-ções do Governo Federal. A reforma do Estado definiu, considerando in-clusive uma tendência já delineada pela Constituição de 1988, que estaesfera de governo deveria centrar sua atuação na formulação, controle eavaliação de políticas públicas e descentralizar a execução para os estadose municípios. Tais atribuições exigem servidores bastante qualificados ecom perfil direcionado e apropriado para a realização das novas funções.

Assim, dentre as funções básicas do Estado e, mais especificamenteno caso em análise, as realizadas pela União, encontram-se a garantia doscontratos, da ordem, da liberdade, da existência de uma rede de proteçãosocial, a regulação dos mercados concentrados ou privatizados, a promo-ção do desenvolvimento econômico e social, a defesa dos interessesnacionais e a articulação dos blocos econômicos, o controle e avaliaçãodos programas descentralizados e a formulação e implementação de po-líticas de gestão pública que devem contribuir para a eficácia da realiza-ção de todas as funções anteriores.

Para executar estas funções, o Governo Federal está estruturado em minis-térios, autarquias, fundações, agências reguladoras e executivas. Adicional-mente, descentraliza a execução de algumas atividades para estados e muni-cípios e firma contratos de gestão com organizações sociais para a realiza-ção de tarefas não típicas de Estado, mas que sejam de interesse público.

Aos ministérios cabe a formulação das políticas públicas relativas atodas as funções citadas acima, além do controle e avaliação dos resulta-dos de sua implementação efetuada por outras instituições ou níveis degoverno; cabe também a gestão governamental, a articulação com osdemais níveis de governo e a elaboração de normas.

Às autarquias, fundações e agências executivas concentram-se na exe-cução das políticas públicas, enquanto as agências reguladoras atuamsobre os mercados privatizados ou pouco competitivos. A elaboração denormas também se faz necessária nestas instituições. Além disso, espera-se que tanto os ministérios quanto as instituições vinculadas sejam sem-pre gerenciados de acordo com princípios da gestão empreendedora ounova gestão pública.

Em relação ao regime de trabalho, os servidores contratados para oexercício de funções consideradas típicas de Estado ou que necessitem de

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salvaguardas para a sua atuação (como os fiscais) devem integrar o corpopermanente de funcionários da administração pública, nas chamadas car-reiras de Estado, sendo preferencialmente estáveis. As atividades adminis-trativas dos diversos órgãos também podem ser executadas por funcionári-os do corpo permanente, os quais, entretanto, não necessitam ser estáveis.

Há um outro grupo de atividades, também não típicas de Estado, quedeve ser realizado por especialistas pelo fato de demandarem conheci-mentos técnicos bastante específicos. Neste caso, o regime de trabalhodeve ser semelhante ao dos funcionários administrativos. Adicionalmen-te, se uma atividade integrar um determinado projeto cujo desenvolvi-mento é finito, ou seja, pode ser caracterizada como temporária, seuregime de trabalho também deve ser estabelecido nestes termos. Logo, aespecificidade da competência requerida e a duração da atividade defini-rão a flexibilidade do contrato de trabalho. Já os serviços de apoio (auxi-liares) devem ser terceirizados2.

Partindo da definição acima e considerando a necessidade de um corpogerencial para as instituições, pode-se caracterizar cinco grandes gruposde funcionários no âmbito da administração pública federal: a) os gerentes;b) os funcionários que desenvolvem atividades típicas de Estado e usufru-em de poder extroverso para realizá-las; c) especialistas dedicados à reali-zação de tarefas que não sejam típicas de Estado mas que demandemcompetências específicas e profundo conhecimento das mesmas; d) funci-onários que desempenham atividades administrativas; e) funcionáriosterceirizados que desempenham atividades de apoio ou auxiliares3.

As competências necessárias serão distintas dependendo do tipo de

3 As atividades estratégicas, por sua vez, podem não ser caracterizadas como típicas de Estado em

alguns casos. Por exemplo, apesar de educação e saúde serem áreas estratégicas para o governo, adefinição da política para estes setores é atribuição exclusiva do Estado, enquanto a sua execuçãopode ser realizada tanto pelo setor público como pelo privado. Neste caso, o funcionário contratadopara criar e gerir a política deve ser estatutário, enquanto o servidor que a executa deve ser contra-tado sob um regime de trabalho distinto, visto que a estabilidade não é necessária para o desempenhode suas atribuições . Há também a possibilidade de execução destas atividades através de organiza-ções sociais e, neste caso, os funcionários contratados pela mesma não serão servidores públicos.

2 É importante distinguir as atividades administrativas e auxiliares. As primeiras incluem o suporte,

como o próprio nome diz, administrativo às atividades finalísticas dos órgãos e demandam funcioná-rios que possuam um conhecimento maior da instituição. Como exemplos, podemos citar compras,recursos humanos, gestão orçamentária, desenvolvimento na área de informática e gerenciamentodas instalações físicas. O segundo grupo inclui as atividades que possuem um caráter mais operacionalou demandam menos conhecimentos específicos, inclusive da própria instituição, fazendo com quea rotatividade não gere entraves para a administração do órgão. Exemplos desta categoria são asatividades de apoio às chefias (secretárias), limpeza, segurança, copa e operação dos sistemasinformatizados.

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instituição analisada. Assim, nas secretarias finalísticas dos ministérios osgerentes devem ser capazes de gerir a formulação e viabilizar aimplementação de políticas públicas, bem como controlar e avaliar aexecução destas em outras unidades ou níveis de governo. Os especialis-tas e funcionários das carreiras típicas de Estado devem saber formularpolíticas, projetos e programas, elaborar normas, controlar a suaimplementação, promover a articulação com as instituições envolvidasneste processo e avaliar os seus resultados.

Já na administração indireta os gerentes devem possuir a capacidadede implementar e gerenciar a execução destas políticas. Os técnicosdevem possuir competências para executar de forma eficiente os proje-tos e programas e, quando necessário, elaborar normas atinentes à suaárea.

Os gerentes de ambos grupos devem possuir, logicamente, compe-tências para a gestão de suas unidades e os técnicos, as competênciasespecíficas relativas à sua área de atuação.

Os funcionários da área administrativa desempenham atividades muitosemelhantes nas duas estruturas, isto é, nos ministérios e na administra-ção indireta. Logo, neste caso as competências são mais gerais e incluema operacionalização eficiente das tarefas de suas áreas e o conhecimentode novas técnicas de trabalho. Requisitos semelhantes se aplicam aosfuncionários das áreas terceirizadas.

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II - PRINCIPAIS MEDIDAS IMPLEMENTADAS

A reorientação estratégica na política e gestão de recursos humanos, iniciadaem 1995, deveu-se a um diagnóstico de que a composição da força detrabalho na administração pública federal encontrava-se extremamente dis-tinta da desejada, conforme definida acima e, mantida esta tendência, pode-ria contribuir pouco ao processo de mudança na gestão pública. Havia umaintensa concentração de servidores atuando nas áreas administrativas,operacionais e auxiliares dos ministérios e um número bem menor de funci-onários nas chamadas áreas finalísticas. A periodicidade dos concursos públi-cos era incerta e reduzida, provocando uma defasagem etária significativa noquadro de pessoal dos diversos órgãos e impedindo a renovação constanteda força de trabalho, fundamental para o fortalecimento das carreiras.

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Não havia uma estratégia de capacitação, as ações de treinamentoeram desconexas entre si, em relação às necessidades de qualificaçãodos servidores e aos objetivos das organizações. A estrutura remuneratóriatambém era desequilibrada, não havia uma correlação entre as atribui-ções, responsabilidades e habilidades do servidor e a hierarquia salarial,o que provocava um desestímulo ao bom desempenho. As atribuiçõesdas carreiras eram extremamente segmentadas e específicas, impedindoa mobilidade e reduzindo a amplitude de possibilidades de atuação porparte do funcionário.

A fim de iniciar a correção das distorções apresentadas no diagnósticoe a reestruturação da força de trabalho, várias medidas foram adotadas apartir de 1995. Serão discutidas aquelas que influem mais diretamente noperfil da força de trabalho.

1) A sistemática de recrutamento foi alterada. Os concursos passarama ser realizados com periodicidade anual, para um número pré-determi-nado de vagas (como em um vestibular) e não geravam mais um “banco”de aprovados que tivessem alcançado apenas uma nota mínima e pudes-sem ser convocados à medida que surgisse uma nova chamada. A opçãopor esta sistemática estava baseada no pressuposto de que a renovaçãoconstante, ainda que resultasse na contratação de um número reduzido deservidores a cada ano, se fazia importante para possibilitar o fortaleci-mento de uma determinada carreira no quadro da instituição.

O número de vagas passou a ser definido a partir de uma estimativadas necessidades de pessoal dos órgãos, do quantitativo de cargos vagos,do fluxo de aposentadorias presente e esperado para o futuro e, quandopossível, de uma análise do volume de trabalho da instituição.

Foram priorizadas as autorizações de contratação para cargos destina-dos às áreas finalísticas dos órgãos (principalmente aos integrantes decarreiras de Estado), identificadas como aquelas em que havia escassezde pessoal, apuradas mediante análises do quantitativo de servidores decada órgão e dos seus processos de trabalho (quando possível).

Os perfis necessários para os ocupantes de cargos são definidos paracada concurso, isto é, para cada processo de recrutamento e seleção. Asáreas e atividades para as quais serão destinados os funcionários contrata-dos podem ser relativamente distintas, dependendo da abrangência dasatribuições do cargo. Desse modo, em cada processo de recrutamento osperfis necessários também podem ser distintos, o que define o conteúdodos exames para ingresso. Os órgãos têm autonomia para definir o perfil

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de servidores que desejam, do ponto de vista de sua formação técnica ecompetências requeridas, em cada processo de recrutamento, respeita-das logicamente, as limitações estabelecidas pelas atribuições dos cargos.

2) As novas carreiras deveriam reduzir seu grau de especializaçãohorizontal, isto é, deveriam ser criadas com um conjunto de atribuiçõesmais amplo, com características mais generalistas, bem como associadasaos princípios da gestão empreendedora (ou nova gestão pública) e,dessa maneira, possibilitar a sua atuação em um número maior de ativida-des e organizações.

O número de denominações de cargos não pertencentes a carreirasespecíficas, que atingia cerca de 4.500, deveria ser drasticamente reduzi-do, por meio de um processo de agrupamento, observados os limitesestabelecidos pela legislação, a fim de ampliar o seu raio de ação e apossibilitar a mobilidade das pessoas. Foram inicialmente agrupadas aquelasque possuíam atribuições semelhantes, mas denominações diversas, emvirtude de pertencerem a planos distintos e, num segundo momento,foram agrupados cargos cujas atribuições poderiam ser definidas comosimilares ou que possuíssem algumas características em comum. Atual-mente existem cerca de 200 denominações, com uma racionalização im-pressionante da estrutura de cargos.

3) Os salários deixaram de ser automaticamente corrigidos pela infla-ção passada, uma vez que a economia brasileira passava por um proces-so de estabilização e a indexação prejudicaria este processo. Como estu-dos realizados à época observaram que havia um desalinhamento salarialsignificativo em relação às remunerações pagas no setor privado, optou-se por balizar as correções dos vencimentos no setor público pelos valo-res praticados para os cargos equivalentes na iniciativa privada, em buscada redução de tal defasagem. Esta passou a ser a principal diretriz dosreajustes salariais no setor público, observada, logicamente, a disponibili-dade de recursos orçamentários.

Ao longo do período, foi reduzido o número de parcelas salariais, pelaincorporação de gratificações ao vencimento básico; a amplitude salarialdas carreiras foi alargada; a participação da gratificação de desempenhofoi reduzida para cerca de 30% dos vencimentos do servidor, na maioriados casos; as correções tiveram como meta a redução das disparidadesem relação aos valores praticados no setor privado; a reestruturação sala-rial das diversas carreiras buscou, dentro dos limites legais, desvincularos reajustes para os ativos dos concedidos aos inativos, mediante a aboli-

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ção do pagamento automático do valor máximo possível da gratificaçãode desempenho aos últimos; teve início um processo de aproximaçãodas remunerações devidas a servidores que desempenham funções se-melhantes mas pertencem a carreiras distintas, como no caso da fiscaliza-ção; diversas sentenças judiciais concedidas sem o amparo de decisão doSupremo Tribunal Federal foram - e continuam sendo - questionadas.

A correção das distorções salariais estimula tanto o ingresso de pesso-as mais qualificadas no serviço público como a retenção e o desempenhosatisfatório, na medida em que os ajustes ao longo do tempo podem levaros servidores a receber salários mais adequados ao seu nível de atribui-ções, responsabilidades e competência.

4) Foi definida uma estratégia de capacitação que prevê o treinamentocontínuo e permanente dos servidores. O conjunto de ações de capacitaçãode um funcionário deve obedecer a uma programação, discutida com suachefia. As ações internas e as formas não convencionais de capacitaçãodevem ser priorizadas para possibilitar o acesso de um número maior defuncionários às oportunidades de treinamento.

Os órgãos devem elaborar um planejamento anual de suas ações decapacitação, com base na definição de: a) conteúdos prioritários e seusrespectivos públicos-alvo por parte dos ministérios gestores da políticade capacitação e, b) de conteúdos específicos que atendam às caracterís-ticas das atividades desenvolvidas por seus servidores e estejam vincula-dos às metas e atribuições da instituição. A avaliação de desempenhotambém deverá ser um insumo importante para a definição das açõesnecessárias, uma vez que aponta as deficiências em relação às compe-tências requeridas para os servidores. Tais ações, por sua vez, deverãoser um insumo para o processo de avaliação.

O plano anual de capacitação é avaliado e controlado, inclusive sob oprisma dos gastos realizados, com base na análise dos resultados dasações de capacitação efetuadas pelo órgão, os quais, por seu turno, sãoapurados em relação às metas estabelecidas no mesmo.

5) Outro objetivo foi o reforço da atuação dos gerentes sob alógica da gestão empreendedora (ou nova gestão pública), investin-do fortemente em sua capacitação e disseminando mecanismos quepudessem levar tanto dirigentes como servidores a atuarem com maiorautonomia e responsabilização em relação aos resultados obtidos.Exemplos desses instrumentos foram o Plano Plurianual de Investi-mentos (PPA), o Programa de Qualidade e os contratos de Gestão.

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Houve aí também um estimulo à disseminação da avaliação de de-sempenho institucional.

6) Está sendo desenvolvido um sistema que possibilita o levantamentodas competências necessárias em cada área, de acordo com seus objeti-vos e metas, das competências existentes e da decorrente defasagementre ambas. A partir disso, será possível definir mais precisamente umplanejamento das ações de capacitação de cada funcionário.

7) Foi também desenvolvido um manual que orientará os órgãos aelaborarem seu planejamento da força de trabalho em relação ao quanti-tativo e perfil desejados, em consonância com os objetivos e metas dasorganizações.

Ao adotar este conjunto de ações, os dirigentes esperavam quegradativamente o perfil da força de trabalho observado fosse se aproxi-mando do desejado, conforme definido na seção anterior. De qualquerforma, este seria um processo lento e gradual, dadas as diversas formasde rigidez que ainda existem na administração pública brasileira. A próxi-ma seção buscará avaliar se a estratégia escolhida foi bem sucedida.

III - AS MUDANÇAS NO PERFIL DA FORÇA DE TRABALHO

A fim de avaliar os resultados alcançados, serão analisados diversos dados querefletem a evolução do perfil da força de trabalho após 1995. Primeiramente,observa-se na tabela 2 que o número de servidores civis do Poder Executivo Federalfoi sensivelmente reduzido ao longo do período, diminuindo de 583.020,ao final de 1994, para 459.821, em abril de 2002. A variação no períodoatingiu (-) 21,1%4.

Esta diminuição não foi provocada por um processo de demissão emmassa de servidores5, mas principalmente pelo grande volume de apo-sentadorias ocorridas no período cujas vacâncias foram parcialmente re-postas6. Não foi elaborada, durante este período, uma previsão e um

4 Os dados apresentados nesta seção são originários do Boletim Estatístico de Pessoal do Ministério do

Planejamento, salvo quando expresso em contrário. Quando não fizerem referência a um mêsespecífico, correspondem à posição de final de ano, com exceção das informações de 2002, quecorrespondem à posição de agosto do corrente ano.5 Isto ocorreu em 1990, durante o governo Collor, mas parcela considerável dos demitidos foi reinte-

grada nos anos seguintes.6 O número de aposentados entre o final de 1994 e agosto de 2002 evoluiu de 323.305 para 383.145,

o que configura um aumento de 18,5% no período analisado.

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acompanhamento das áreas em que haveria um maior contingente depessoas se aposentando, mas, como veremos mais à frente, apesar destefato, a composição da força de trabalho apresentou uma evolução qualita-tiva ao longo do período.

A composição da força de trabalho de acordo com o nível de escolari-dade do cargo, relatada na tabela 3, demonstra que a participação deocupantes de cargos que exigem nível superior para o seu exercíciopassou de 33,5%, em 1996, para 39,7%, em agosto de 2002. Este é,certamente, um dos maiores ganhos da política de recursos humanos quevem sendo desenvolvida desde 1995. O aumento, em termos absolutos erelativos, do número de servidores com formação universitária (requisitopara ingresso nestes cargos que, por conseqüência, possuem atribuiçõesmais complexas que os de nível intermediário), ainda que não seja condi-ção suficiente, é fundamental para a evolução qualitativa do perfil daforça de trabalho e o desenvolvimento das atribuições do Governo Fede-ral, as quais, conforme pode se depreender da tabela 1, são relativamen-te complexas.

Esta alteração no perfil da burocracia federal deve-se, sobretudo, àpolítica de recrutamento desenvolvida ao longo do período, que aumen-tou a freqüência dos concursos e direcionou intensamente os mesmospara as carreiras de nível superior. Em 1995, 39,2% do total de ingressantesno serviço público federal (considerando os servidores efetivos, isto é,concursados) destinavam-se a ocupar cargos que exigem escolaridade de

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nível superior para o seu exercício; em 1999, este percentual atingiu66,2% (vide tabela 4)7.

Outro resultado importante desta política, aliado ao investimento emcapacitação, é a melhoria do nível de escolaridade dos servidores, inde-pendentemente dos cargos ocupados, fato que pode ser observado natabela 5. A participação relativa do número de pessoas que realizaramcursos de nível superior ou pós-graduação cresceu acima da registradapara os cargos que exigem escolaridade de nível superior para ingresso(tabela 4)8.

Este fato significa que, além de o governo ter contratado pessoas cujorequisito mínimo de ingresso é o término do curso superior, os servidorespertencentes ao quadro também buscaram se qualificar e, assim, é bas-tante provável que ocupantes de cargos cujo requisito seja o nível médiocursaram a universidade, bem como profissionais de nível superior te-nham cursado a pós-graduação (aqui entendida em seu sentido mais am-plo). Por conseqüência, ainda que o servidor permaneça desempenhan-do as mesmas atribuições, ele terá condições de realizá-las de forma maiseficiente, dados os ganhos que obteve em sua qualificação. Em algunscasos, a realização destes cursos certamente integrou a estratégia decapacitação da instituição em que ele atua.

Aliás, o volume de ações de capacitação aumentou consideravelmenteapós 1995. Os órgãos foram intensamente estimulados a elevar seusinvestimentos em qualificação. Em um primeiro momento, as ações fo-ram direcionadas à disseminação dos princípios da reforma do Estado ede novas técnicas e processos de trabalho; em um segundo momento, àdisseminação dos princípios da gestão empreendedora, sendo direcionadas,neste caso, principalmente aos gerentes de equipes, dada a facilidadeque estes possuem para exercer o papel de multiplicadores.

8 Enquanto a participação relativa dos cargos que exigem nível superior aumentou de 33,5% para

39,7% no período considerado, a de pessoas que realizaram cursos de nível superior ou pós-gradu-ação se elevou de 34,8% para 53,8% do total.

7 Os dados cadastrais posteriores a esta data não refletem a realidade pois os órgãos não são mais

obrigados a preencher o campo “data de ingresso no serviço público”. Esta, aliás, é uma liberalidadeque não traz nenhuma vantagem para os gestores da política de recursos humanos, que perdem umainformação valiosa para o planejamento da força de trabalho, e tampouco para os gerentes dossetores de recursos humanos, já que a inclusão desta informação não causava nenhum aumentosignificativo no volume de trabalho.

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A retomada dos concursos não propiciou, entretanto, a melhoria dadistribuição etária da força de trabalho, a qual, conforme demonstra atabela 6, vem sofrendo um processo de envelhecimento. De fato, ovolume de servidores ingressantes não é, nem poderia ser, suficientepara compensar a evolução demográfica natural, dado o desequilíbrioquantitativo e a despesa que esta opção causaria. Esta é uma questão queterá de ser tratada cuidadosamente pelo planejamento da força de traba-lho e que se constitui, sem dúvida, num grave problema previdenciário.

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O processo de recrutamento também propiciou uma melhoria na dis-tribuição espacial dos servidores, auxiliado por ações isoladas deredistribuição de pessoas ou até mesmo de todos os integrantes de seto-res ou órgãos. A tabela 7 exibe uma forte concentração de servidoresatuando no Rio de Janeiro, em razão de ter sido a capital por um longoperíodo, mas a lotação de servidores em Brasília, que deveria ser relati-vamente maior que nos outros estados, dado o maior volume de ativida-des desenvolvidas na capital, está aumentando. Este processo deredistribuição espacial também se estenderá por um período considerá-vel, pois é difícil convencer os servidores a se deslocarem de suas resi-dências para outras regiões e não há uma predisposição das chefias aforçar este movimento. Entretanto, o planejamento da força de trabalhotambém deverá atentar para este fato e os concursos deverão continuarsendo direcionados para a ocupação de vagas no Distrito Federal.

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Outro indicador muito importante para a avaliação da eficácia da polí-tica adotada é a aproximação da composição da força de trabalho, notocante aos cargos ocupados, em relação ao perfil desejado. A tabela 8traz os dados agregados da distribuição dos servidores pelas diversascarreiras, de acordo com critério definido neste texto - em um tema que édeveras controverso. A tabela 9 exibe as mesmas informações de formadetalhada, a fim de possibilitar a identificação das carreiras que maiscontribuíram para o comportamento observado na tabela 8.

Observa-se que os totais parciais apresentados na tabela 9 (superior,intermediário e auxiliar) não coincidem com os mesmos totais apresenta-dos na tabela 3 porque neste último caso é contabilizado o número deservidores por escolaridade do cargo e, no primeiro caso (tabela 9), sãocontabilizados todos os cargos ocupados (que podem ser mais de umpara cada servidor em algumas situações como, por exemplo, médicos eprofessores.

Primeiramente, nota-se que houve um aumento significativo da parti-cipação relativa das carreiras que desempenham as chamadas atividadesexclusivas de Estado, conforme definidas no rodapé da tabela 8. Aindaque esteja distante da situação desejável, houve um aumento de 41,9% nasua participação relativa no total de cargos ocupados. Este também é umdos maiores indicadores da eficácia da política adotada. Certamente queuma parte deste aumento se deve à transformação de carreiras, como aocorrida na Receita Federal e no IBAMA, mas este processo não é sufici-ente para explicar o comportamento observado em sua totalidade, pois atabela 9 mostra uma evolução da participação percentual de quase todasas carreiras incluídas neste grupo.

Por outro lado, nota-se a redução do número de pessoas abrigadas no

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Plano de Cargos e Carreiras - PCC (que corresponde à carreira maisampla da administração pública, na qual se encontra a maioria das deno-minações e atribuições de cargos existentes) e um aumento de carreirasespecíficas, tanto de nível superior como de nível médio. Apesar destemovimento, não houve alterações relevantes em suas atribuições, mesmoporque não seria possível sob o ponto de vista legal e, portanto, nãojustificam, em uma análise inicial, estas mudanças. A tabela 9 auxilia aidentificação das carreiras ou órgãos em que ocorreu este movimento:IBAMA, Previdência e técnico-administrativos de universidades.

Esta medida vai no sentido contrário de uma importante diretriz dapolítica, qual seja, a da criação de carreiras definidas com atribuiçõesabrangentes, ao invés de delimita-las segundo o órgão de atuação deseus integrantes. Certamente foi uma decisão adotada devido a pressõespolíticas, pois é fortemente contraditória em relação aos princípios dapolítica de recursos humanos.

Entretanto, a exemplo do que ocorre no PCC, cada um destes gruposque foram transformados desenvolve um leque de atribuições muito am-plo, muitas vezes, além das previstas legalmente, o que pode incluirtanto atividades puramente operacionais ou administrativas como, emoutros casos, de suporte direto às atividades típicas de Estado ou, ainda,estas próprias. Se assim for o caso, a transformação até se justificaria.Dado que estariam auxiliando ou efetuando diretamente atividades de

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Estado, a reestruturação de suas careiras e salários é válida, pois a valoraçãorelativa de suas tarefas é distinta da observada para aqueles que realizamrotinas administrativas.

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No entanto, estes processos de transformação não buscaram identificarestas situações e separá-las, o que pode refletir tanto uma atitudecorporativa por parte do grupo como a real dificuldade para fazê-lo,principalmente se não há um estudo detalhado dos processos de trabalhodesenvolvidos nas diversas áreas de cada uma destas instituições. O pla-nejamento da força de trabalho auxiliará nesta tarefa e poderá contribuirpara, no futuro, separar claramente estes grupos de servidores, que real-mente merecem, inclusive, uma reestruturação salarial.

Aliás, os salários dos servidores, além de terem sua estrutura modifica-da e tornada mais racional, conforme descrito na seção anterior, tambémevoluíram ao longo do período, fato que configura um importante instru-mento de atração e estímulo à permanência na administração pública.Tanto isto é verdade que a taxa de desligamentos é bastante reduzida(média de 2,3% no período 1998-2001)9.

A despesa média com os servidores ativos do Poder Executivo Federalevoluiu de R$ 1.400 em 1995 para R$ 3.133 no acumulado de dozemeses encerrados em agosto de 2002, o que representa uma evolução de123,79%, enquanto a inflação (INPC-IBGE) no mesmo período, calculadasob semelhante critério (índice médio acumulado nos últimos doze mesesfindos em agosto de 2002 em relação ao índice médio de 1995), atingiu61,47%, o que significa um aumento real da ordem de 38,6%.

Em decorrência disso, o diferencial salarial entre servidores do PoderExecutivo Federal (excepcionalmente, neste caso os militares estão in-cluídos no cálculo) e trabalhadores do setor privado com características

9 Cálculos do autor a partir de dados do Boletim Estatístico de Pessoal. A forma de cálculo é a seguinte:

((posição do final do ano anterior (-) aposentados no ano (+) ingressantes no ano) (-) posição definal de ano) / posição do final do ano anterior.

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semelhantes se elevou entre 1996 e 1999, mesmo para os funcionárioscom maior grau de escolaridade (grupo usualmente definido como aque-le que recebe salários inferiores aos de seus pares no setor privado),conforme se observa na tabela 10. Esta é mais uma variável que contribuipara atrair e reter bons servidores na administração pública federal.

Logo, a política logrou resultados muito bons no tocante à mudança nacomposição e perfil da força de trabalho. É possível argumentar que asvariações observadas justificariam apenas uma avaliação mediana mas,conforme dito no início desta seção, a rigidez das regras que permeiamas relações e os regimes de trabalho não possibilita transformações brus-cas. Dado este cenário, as alterações observadas configuram conquistas emelhorias realmente significativas. Os desvios observados não refletem,na verdade, um erro na direção estratégica adotada, mas sim pressõespolíticas inerentes à gestão pública. Deve-se, de toda forma, buscar evi-tar a propagação destes desvios no futuro.

CONCLUSÃO: RECOMENDAÇÕES PARA OS PRÓXIMOS ANOS

Apesar das melhorias observadas, o processo de aprimoramento doperfil da força de trabalho tem de prosseguir, pois ainda há umasérie de medidas que necessitam ser implementadas e, certamente,outras surgirão ao longo do tempo. Esta seção final irá discutir algu-mas delas.

A análise anterior demonstrou que uma das medidas decisivas para amudança do perfil dos servidores foi a sistemática de recrutamento adota-da, a qual foi novamente alterada a partir de 1999, por conta de umentendimento de que os órgãos gastavam muitos recursos para promover

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concursos anuais, às vezes para pouquíssimas posições, nem sempreocupadas em sua totalidade, e que estes deveriam ser feitos de formamais esporádica, em volumes maiores de vagas, a fim de possibilitar aredução dos gastos com a sua organização e restringir o número decontratados na administração pública.

Os concursos passaram a ter validade de dois anos, sendo que se tornounovamente possível convocar durante este período, posteriormente à pri-meira chamada, candidatos que tivessem obtido uma classificação inferiorao número originalmente autorizado de vagas a serem preenchidas, até olimite de 50% a mais que tal quantitativo. Na prática, esta medida recriou obanco de aprovados que poderiam ser chamados posteriormente, mesmoque não houvessem obtido a nota mínima para serem convocados para opreenchimento das vagas inicialmente autorizadas.

Ainda que a questão fiscal seja sempre relevante, o governo prescin-diu de um instrumento fundamental e retornou a uma sistemática na quala freqüência das contratações se reduz e torna-se possível o ingresso depessoas menos qualificadas que tenham obtido classificação inferior. Émister, dado o sucesso da estratégia, que o governo volte a adotar asistemática vigente de 1995 até 1999. O recrutamento freqüente possibi-lita a constante renovação da força de trabalho e, se bem direcionado,fortalece as carreiras e possibilita a melhoria do perfil dos servidores.Estes foram os efeitos observados ao longo dos anos em que tal regra foipraticada, o que demonstra a sua eficiência e a conveniência de adotá-lanovamente.

A gestão de desempenho é uma das áreas que carecem ser aprimora-das. Existem diversas formas de avaliação (institucional e individual, tantopara progressão como para pagamento de salários) e, com raras exce-ções constituídas por algumas organizações, nenhuma delas está estruturadade forma adequada, vinculando a análise aos objetivos e metas e subsidi-ando as escolhas de capacitação. A avaliação institucional, apesar de suacomplexidade, tem avançado mais que as outras em função de sua cone-xão com os resultados esperados pelo PPA (Plano Plurianual). Oenvolvimento das chefias neste processo é reduzido e há uma tendênciaa tratá-lo como uma formalidade que deve ser cumprida em função deexigências legais.

A estrutura da avaliação de desempenho deve priorizar seu compo-nente institucional e buscar associá-la aos resultados do Plano Plurianuale do Programa de Qualidade. Em relação ao seu componente individual,

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deve-se estabelecer um conjunto de critérios mínimos que prevejam oestabelecimento de metas para cada servidor, inseridas no contexto doplanejamento estratégico mais geral da instituição.

Em relação à progressão, é importante iniciar um processo de negoci-ação para alterar as regras atuais e vinculá-las ao desempenho e às com-petências adquiridas. Um dos caminhos seria instituir esta sistemáticainicialmente nas organizações que nutrem maior simpatia por este princí-pio e, aos poucos, ir rompendo o seu vínculo com a antiguidade nasdemais. Esta característica não pode ser mantida em um cenário em quese persegue a modernização da gestão de recursos humanos.

A descentralização da gestão é fundamental, mas deve implicar amanutenção da uniformidade de regras e a maior responsabilização dosgerentes. Por sua vez, estes últimos possuem pouca margem e instru-mentos para gerir o desenvolvimento profissional de seus funcionários,fato que certamente contribui para o seu reduzido envolvimento com otema. O aprimoramento do vínculo entre as metas de recursos humanos eas mais gerais da organização também é um fator condicionante do suces-so da gestão de pessoas. Só caminhando por esta trilha que a área derecursos humanos poderá ser considerada uma parceira que agrega valoràs demais.

Um instrumento que poderá facilitar este processo é a criação de umbônus a ser distribuído para as instituições que alcançarem suas metas deforma eficiente, cujo montante seria alocado entre os diversos instrumen-tos da política de recursos humanos. A decisão sobre a sua alocaçãointerna caberia aos dirigentes da instituição, enquanto a Secretaria deGestão (SEGES) apenas definiria alguns limites para a mesma e osparâmetros para sua distribuição entre os órgãos. A introdução do bônuspermitiria vincular de forma mais estreita a gestão de recursos humanos àestratégia da organização, tornando-se um forte instrumento incentivadorpara os gerentes alocarem entre os funcionários, possibilitando diferenci-ar os que se destacam, flexibilizar a gestão de recursos humanos e, aomesmo tempo, manter a uniformidade das regras de salário e progressão,dentre outras. Os gerentes terão que, para aplicar este instrumento, estarmais envolvidos na gestão do desenvolvimento profissional de seus su-bordinados. As unidades de recursos humanos das organizações, por suavez, deverão atuar como parceiras das demais áreas, subsidiando, opi-nando, facilitando e criando condições para que os servidores alcancem operfil desejado.

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As mudanças na estrutura legal devem prosseguir, porém não podemestar desassociadas de avanços na cultura organizacional. Neste sentido,a disseminação dos princípios da gestão empreendedora é imprescindí-vel e deve continuar sua trajetória bem sucedida. Todos os gerentes queainda não foram capacitados para tal, isto é, em relação ao reconheci-mento destes princípios e às formas de disseminá-los, devem sê-lo nofuturo próximo. A difusão da gestão empreendedora deve ser um com-ponente permanente da política de capacitação.

É importante que seja reiterada a estratégia de criação de carreirascom características horizontais. A estruturação vertical das mesmas - porórgão -, observada em alguns casos recentes, engessa terrivelmente amobilidade e a flexibilidade de atuação do servidor, além de resultar empressões fiscais significativas, na medida em que estimula a disputa porsalários relativos mais elevados por parte dos funcionários que desempe-nham atividades similares.

A regulação é uma nova área de atuação do Estado que surgiu noprocesso de redefinição de suas funções. Foram criadas várias agênciaspara regular mercados, mas não existe ainda uma carreira cujos integran-tes desenvolveriam as atividades correlatas, em virtude de umquestionamento jurídico - uma ação direta de inconstitucionalidade - so-bre o projeto de lei que cria a mesma. Esta situação já perdura há anos e,enquanto não há uma solução, as agências vêm contratando temporáriosque praticamente já se tornaram permanentes. Dada a relevância destaatividade no atual Estado remodelado, é fundamental que haja um quadrode pessoal efetivo, com pessoas bem qualificadas, continuamente capa-citadas, para desempenhar estas atribuições. O governo deve canalizarsua atuação para a solução do impasse que existe atualmente em torno dacriação desta carreira.

Por sua vez, a disseminação do regime de emprego flexibilizará efacilitará a contratação de servidores para a execução de tarefas adminis-trativas, especializadas (porém não típicas de Estado) ou por prazo deter-minado. Atualmente há uma séria restrição à contratação para o desenvol-vimento destas atividades, dado o vínculo sob o regime estatutário quecriam, o qual é rígido, custoso e não é necessário nestes casos (por nãoserem atividades típicas de Estado). Como saída, os órgãos vêm criandoalternativas como a contratação de “consultores” para suprir suas necessi-dades de pessoal nestas áreas. O regime de emprego solucionaria esteproblema, porque permite o estabelecimento de contratos mais flexíveis.

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Sua implementação é fundamental para o ajuste quantitativo e qualitativodo quadro de funcionários do setor público.

Por fim, uma ferramenta que auxiliará definitivamente no alcance doperfil desejado para os servidores é o planejamento da força de trabalho.Sua disseminação permitirá identificar os processos de trabalho, o quanti-tativo de funcionários necessários, as competências existentes e deseja-das (contribuindo, por conseqüência, para a definição das ações decapacitação) e aqueles que estão envolvidos nas atividades finalísticas emeio. O manual para sua implementação está pronto, e espera-se que apartir do próximo ano os órgãos comecem a realizar este processo, asses-sorados pela Secretaria de Gestão (SEGES), o que possibilitaria um avan-ço significativo e mais rápido na direção do alcance do perfil desejado daforça de trabalho.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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