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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL MUSEU NACIONAL O estado da ciência e a ciência do Estado: a Fundação Getúlio Vargas e a configuração do campo das ciências econômicas no Brasil PEDRO BRAUM AZEVEDO DA SILVEIRA Rio de Janeiro 2009

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

MUSEU NACIONAL

O estado da ciência e a ciência do Estado: a Fundação Getúlio Vargas

e a configuração do campo das ciências econômicas no Brasil

PEDRO BRAUM AZEVEDO DA SILVEIRA

Rio de Janeiro

2009

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O estado da ciência e a ciência do Estado: a Fundação Getúlio Vargas

e a configuração do campo das ciências econômicas no Brasil

PEDRO BRAUM AZEVEDO DA SILVEIRA

Dissertação de mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Orientador: Prof. Dr. Federico Neiburg (MN/UFRJ)

Rio de Janeiro

2009

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O estado da ciência e a ciência do Estado: a Fundação Getúlio Vargas

e a configuração do campo das ciências econômicas no Brasil

Pedro Braum Azevedo da Silveira

Dissertação de mestrado submetida ao corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Antropologia Social. Aprovada por:

Presidente, Prof. Dr. Federico Neiburg (MN/UFRJ)

Prof. Dr. José Sérgio Leite Lopes (MN/UFRJ)

Prof. Dr. Mario Grynszpan (FGV, UFF)

Prof. Dr. John Comerford (CPDA/UFRRJ) suplente

Prof. Dr. Fernando Rabossi (MN/UFRJ) suplente

Rio de Janeiro

2009

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Braum, Pedro Azevedo da Silveira

O estado da ciência e a ciência do Estado: a Fundação Getúlio Vargas e a configuração

do campo das ciências econômicas no Brasil/ Pedro Braum Azevedo da Silveira. Rio de

Janeiro: UFRJ/Museu Nacional/PPGAS, 2009. xi, 135p.

Dissertação - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional, PPGAS.

1. Economia 2. Trajetórias 3. Profissionais 4. Antropologia da economia

5. Brasil 6. Antropologia da ciência. I. Neiburg, Federico. II. Universidade Federal do

Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. III. Título

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RESUMO

A Fundação Getúlio Vargas ocupa, nos dias de hoje, lugar central no panorama do campo das ciências econômicas no Brasil. Ela possui cursos de graduação e pós-graduação em economia, presta serviços de consultoria, publica livros e periódicos e fabrica indicadores econômicos. A sua criação, e a do Núcleo de Economia, setor da entidade responsável pelas pesquisas e publicações na área, ocorridos em 1944 e 1946 respectivamente, revela: 1 – a emergência de todo um ideário acerca da relevância da “ciência”, da “racionalização”, do “progresso econômico” para a invenção e consolidação do campo em questão; 2 – como a instituição da referida entidade, logo do próprio campo das ciências econômicas, dependeu de agentes e dispositivos presentes na burocracia estatal; 3 – o modo pelo qual a configuração do campo esteve associada à acumulação, pelos agentes que compuseram a FGV e o Núcleo, de um capital de relações internacionais. Este conjunto de questões é analisado tendo com fio condutor as idéias, dispositivos e teorias, formulados pelos agentes, dando especial atenção às pesquisas realizadas pelo Núcleo no que concerne a elaboração dos cálculos dos índices de preços (para medir a inflação) e da Renda Nacional, na passagem dos anos 40 para os 50, quando se observa a centralidade que a categoria “nação” ocupa como parte constituinte dos cálculos e teorias. O presente trabalho se situa, assim, na fronteira entre a antropologia da economia e a antropologia da ciência, utilizando como fontes empíricas, material histórico referente à criação da FGV e aos anos que a antecederam e sucederam.

Palavras chave: 1. Economia 2. Trajetórias 3. Profissionais 4. Antropologia da

economia 5. Brasil 6. Antropologia da ciência.

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ABSTRACT Nowadays, the Getulio Vargas Foundation occupies a central place in the Brazilian field of economics. The GVF has got graduation and post-graduation courses in economics, issues specialized reviews, and fabricates index numbers. Its creation, occurred in 1944, reveals: 1 – the emergence of a plethora of ideas concerning the importance of “science”, “rationalization”, and “economic progress”, for the invention and consolidation of the field of economics; 2 – the GVF’s creation depended of the action of federal burocracy agents; 3 – how the field’s configuration had been associated to the accumulation of a capital of internationalized relations by the agents.

These questions are analyzed throughout the lens of the agents’ ideas and theories, giving special attention to the researches made by GVF concerning the fabrication of index prices numbers and National Income, in the forties, when we observe the centrality of the category “nation” within the economics’ tools. The present monograph is, therefore, in the frontier of anthropology of economics and anthropology of science. Key-words: 1. Economics 2. Profissionals 3. Antropology of economics 4. Brazil 5. Antropology of science

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AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar agradeço a Federico Neiburg, meu orientador, pelo apoio, conversas e confiança nos últimos anos. Sem sua contribuição o presente trabalho não teria sido possível. Foi um esforço a quatro mãos. Agradeço a CAPES, instituição que me concedeu uma bolsa de mestrado pelos últimos dois anos, a qual foi fundamental para minha formação acadêmica e para a pesquisa que embasou a dissertação. A todos os membros desta banca, por terem aceitado o convite para participar da composição da banca avaliadora, e pelos comentários que receberei. Aos professores que, no curso dos últimos anos, contribuíram para minha formação, e, logo, para a conclusão deste trabalho: Marcio Goldman, Luís Fernando Dias Duarte, Moacir Palmeira, Fernando Rabossi, Lygia Sigaud. Aos componentes do NuCEC, que me receberam com grande generosidade 4 anos atrás, e, através de debates e sugestões, muito contribuíram com o meu trabalho: José Renato Baptista, Ricardo Cruz, Diana Nogueira, Mariana Cavalcanti, Flavia Dalmaso, Felipe Evangelista, Fernando Rabossi, Lygia Sigaud, André Dumans, Natacha Nicaise, Federico Neiburg. Agradeço a toda a comunidade do PPGAS e do Museu Nacional: secretaria, departamento, biblioteca. Aos amigos que entraram no mestrado comigo, e que, em conversas no Museu, e nas mesas de bar espalhadas pela cidade também foram de fundamental importância. Orlando Calheiros, Rafael, Flavia Dalmaso, Leonardo Bertolossi, Rogério Brittes, Kleiton Rattes, César Jardim, Leonor Valentino, Felipe Evangelista, Beatriz, Ariana Rumstein, Luana e André Dumans (é da nossa turma). Isabel, Sidney, Nancy, Bernardo, Luciano, povo da Barra, povo de Coroa e Gabi, por terem sido uma família ao longo dos últimos anos. A minha família, por ser e ter sido minha família nos últimos 25 anos. Sérgio, meu pai, Heloíse, minha mãe, aos meus irmãos, Vicente, Daniel, Carol, Tereza, Antonio, à Felisa, e ao meu tio, Marcos, pelo apoio. E aos muitos primos, primas, tios e tias achados e perdidos pelo Brasil... graças aos meu avós, que agora torcem do céu. Muito obrigado a todos.

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SUMÁRIO Introdução.....................................................................................................2 Capítulo 1 – Ação entre Amigos...................................................................18

1.1 Eugenio Gudin............................................................................20 1.2 Octávio Gouvêa de Bulhões........................................................31 1.3 Luiz Simões Lopes.....................................................................39 1.4 Conclusão....................................................................................46

Capítulo 2 – FGV: A Purificação da Racionalidade.....................................48 2.1 A Continuidade............................................................................49 2.2 O Núcleo de Economia................................................................57 2.3 A FGV e a FNCE.........................................................................70 2.4 Conclusão: A Controvérsia..........................................................75 Capítulo 3 – A Máquina.................................................................................80 3.1 Os Estrangeiros.............................................................................82 3.2 Os índices de preços: os números e as coisas...............................88 3.3 A Renda Nacional: os números, as coisas, as nações...................100 3.4 Conclusão: os números, as nações e os tempos............................113 Conclusão.......................................................................................................117 Anexo 1 Carta de Gudin ao Ministro Capanema............................................123 Anexo 2 Decreto-Lei 6693 de 14 de julho de 1944........................................125 Anexo 3 Carta aos doadores............................................................................126 Anexo 4 “Estimativa da Renda Nacional do Brasil 1947-1949” e Tabela “Estimativa da Renda Nacional 1947 – 1951” ...............................................127 Referencias Bibliográficas...............................................................................130 Outras Fontes...................................................................................................132

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“A ciência normal, atividade na qual a maioria dos cientistas emprega inevitavelmente quase

todo o seu tempo, é baseada no pressuposto de que a comunidade científica sabe como é o

mundo”

Thomas Kuhn, A Estrutura das Revoluções Científicas

“O economista precisa das três grandes faculdades intelectuais – percepção, imaginação e

razão – porém, mais do que tudo, precisa de imaginação que o coloque na pista dessas

causas de acontecimentos visíveis, que estão distantes ou ocultas, e desses efeitos de causas

visíveis, os quais se escondem sob a superfície”

Alfred Marshall, Princípios de Economia

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Introdução

Nos dias de hoje – início do século XXI – a Fundação Getúlio Vargas (FGV) é

responsável pela fabricação e publicação de uma série de números-índice, mais

notadamente os números referentes à medição das taxas de inflação. A publicação de

tais números é sempre amplamente divulgada pelos principais órgãos da mídia

brasileira. Parte destes índices serve também como indexadores para uma série de

preços e contratos regulados pelo Estado, como o valor dos aluguéis, indexado pelo

IGP-DI (índice geral de preços – disponibilidade interna), índice da FGV que mede a

variação dos preços no atacado. A cada divulgação, feita várias vezes em um mês,

posto que são muitos os diferentes números-índice, debates são travados por

especialistas – economistas, jornalistas, etc. – acerca das condições da economia

brasileira. Os números são analisados; as possíveis causas acerca de um acréscimo ou

decréscimo na taxa da inflação são colocadas; projeções para o futuro da economia

nacional são feitas e refeitas com base nos índices divulgados. Os números-índices se

convertem em números públicos (Porter: 1995) São muitos os que podem discordar

das políticas e decisões que acompanham estes números, ou, no máximo, das

metodologias empregadas na sua fabricação. Mas de sua existência, e de sua

capacidade de refletir certos aspectos da realidade econômica, ninguém perece

duvidar.

Porém, a história da existência de tais índices, e da própria percepção da

inflação enquanto um problema público, não é uniforme. Segundo Neiburg (2007), foi

a partir do fim da Segunda Guerra Mundial que os debates sobre a inflação – qual sua

natureza, qual sua origem – ganhou um papel central entre os economistas da América

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Latina. Certamente a criação da FGV em 1944, e mais especificamente do seu Núcleo

de Economia em 1946, é um capítulo deste movimento de problematização da

inflação e de numerificação daqueles problemas reconhecidos pelos economistas

como sendo de natureza econômica. Como será visto, a criação do Núcleo de

Economia tinha como objetivos o cálculo dos índices de preços, da Balança de

Pagamentos, e da Renda Nacional no Brasil1. Para se levar a cabo tal tarefa eram

necessários, no entanto, um conjunto de profissionais e de intelectuais capazes de

enxergar e delimitar certos problemas e objetos: a "economia nacional", a própria

"inflação", a "renda nacional". Este conjunto de profissionais – os próprios

economistas, ou como bem chamou Neiburg (2007) "profissionais da economia", por

não se tratarem apenas de economistas com formação acadêmica, mas por todos

aqueles que vivem de e para a economia – têm, no Brasil, a história de sua

sociogênese intimamente relacionada com a criação destes instrumentos. Foi no fim

da década de 30 e ao longo da de 40 que as primeiras faculdades de economia foram

estabelecidas no país: a Faculdade de Ciências Econômicas e Administrativas do Rio

de Janeiro foi criada em 1938, e a Faculdade Nacional de Ciências Econômicas, em

1946. Ou seja, para se falar na relação entre a FGV e o processo de numerificação da

economia brasileira, torna-se imperioso levar em consideração os processos de

configuração os economistas enquanto profissionais e intelectuais públicos, e,

conseqüentemente, da configuração da própria ciência econômica2.

A criação da FGV ocupa o lugar central deste trabalho. O seu advento nos

permitirá enxergar como a série de processos acima citados se interligam entre si, e

como se relacionam a outros, que aparentemente extrapolariam os limites próprios de

1 Antes mesmo da criação da FGV eram feitas no Brasil medições da taxa de inflação por governos estaduais ou municipais através do índice do custo de vida. 2 Saliento que no presente trabalho utilizo um sentido lato para o termo "configuração”. Com ele espero delinear as dimensões relacionais dos processos de sóciogenese de certas categorias, idéias, e instituições

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uma determinada ciência, conjunto profissional ou instrumentos teóricos. Como, por

exemplo, o modo pelo qual a criação da FGV, e portanto, a configuração desta série

de processos, se relaciona com os círculos burocráticos brasileiros e como o tecimento

de uma ampla rede de instituições e profissionais no plano internacional,

principalmente nos EUA.

Para dar continuidade a esta introdução retornemos algumas décadas, mais

especificamente aos anos 40 (nos momentos de criação da FGV), para que se possa

esmiuçar melhor a série de problemas e objetivos que a presente dissertação pretende

enumerar e analisar.

Em dezembro de 1944 representantes do Governo Federal, de Estados, de Prefeituras,

de empresas estatais e privadas e simples pessoas físicas estiveram presentes ao ato de

criação legal de uma determinada instituição, em um cartório carioca. Alguns meses

antes, em julho de 1944, o Presidente da República, Getúlio Vargas, publicou um

decreto autorizando a criação de uma instituição, que se ocuparia “do estudo da

organização do trabalho e do preparo de pessoal para as administrações públicas e

privadas”3, e que depois de elaborados seus Estatutos, deveriam estes ser submetidos

à apreciação e aprovação do Ministério da Justiça. Alguns dias antes o então

presidente do DASP (Departamento Administrativo do Serviço Público, órgão federal

responsável pela gestão do funcionalismo e pela elaboração do orçamento da União),

entidade subordinada à Presidência da República, o engenheiro agrônomo Luiz

Simões Lopes, enviou a Vargas uma carta na qual propõe a criação de uma entidade

3 Decreto-lei 6693 de 14 de julho de 1944.

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“em que colaborem os órgãos da administração publica, os de caráter autárquico e

paraestatal, os governos estaduais e municipais, os estabelecimentos de economia

mista e, ainda, as grandes empresas particulares, todos neste momento interessados na

indagação de novos princípios e na experimentação de novas formas de ação”.4 Em

14 de julho de 1944, outro decreto presidencial é publicado. Este dispunha sobre a

criação de uma subvenção permanente do Governo Federal destinada à nova entidade,

calculada tendo como base um percentual da já existente Taxa de Educação e Saúde,

um imposto da época.

Ao lermos esta seqüência de acontecimentos é provável que a conectemos à

criação de algum órgão estatal. As personagens envolvidas: o Presidente da

República, o Ministro da Justiça, o Presidente do DASP, alem de representantes das

mais variadas esferas governamentais; e os dispositivos legais utilizados em sua

criação: decretos presidenciais, apreciação ministerial e carta oficial, apontam para

tanto. Porém, para grande surpresa, estes acontecimentos tratam da criação de um

órgão de direito privado, a Fundação Getúlio Vargas.

É objetivo da presente dissertação analisar a criação os primeiros anos de

atividade da FGV (Fundação Getúlio Vargas) e do seu Núcleo de Economia ,

ocorridos, respectivamente em dezembro de 1944 e em 1946. Interessa mostrar como

tal evento resulta da confluência de um conjunto de processos históricos. Em primeiro

lugar a instituição da Fundação e do Núcleo será considerada parte integrante do

processo de configuração do campo da ciência econômica no Brasil ocorrido na

primeira metade do século XX5. Em segundo lugar, como produto das ações e

4 Exposição de Motivos enviada ao Presidente da República em 4 de julho de 1944. Relatório 1945, FGV 5 Tal com para o termo "configuração" utilizo o termo "campo" (ver também, Bourdieu & Wacquant: 1992), de forma genérica, sem me referir a nenhum conceito determinado, mas realçando o caráter relacional da construção de certos universos sociais.

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reflexões de certos agentes associados ao Estado, no sentido de criar uma instituição

voltada para um determinado área do conhecimento: a própria ciência econômica.

Ambos os processos estiveram intimamente relacionados. Em outras

palavras: fez parte da configuração do campo da ciência econômica a ação do Estado,

e certas idéias a respeito de quais eram os papéis do Estado e da ciência econômica.

Da mesma forma que fez parte da configuração e reformas do Estado nos anos 30 e

40, este mesmo conjunto de idéias e reflexões. A criação da FGV é neste sentido um

objeto privilegiado para se enxergar a confluência de ambos os processos, justamente

por se colocar na fronteira entre eles.

A literatura sociológica que trata da emergência da ciência econômica e dos

economistas enquanto grupo profissional e intelectual, tanto no Brasil quanto na

América Latina, salientou o fato de que este conjunto profissional – os economistas e

suas práticas e saberes – esteve sempre associado aos poderes decisórios do Estado,

fosse como assessores, ou, em alguns casos, como dirigentes políticos, principalmente

após a década de 40 do século passado (Loureiro: 1997, Montecinos & Markoff:

2001). Embora, no Brasil, até aquele momento, não houvesse uma carreira acadêmica

de economista – a primeira faculdade, privada, fora criada em 19396, e em 1946, a

mesma foi encampada pelo Governo Federal sendo transformada em Faculdade

Nacional de Ciências Econômicas – existiam membros da burocracia estatal e

empresários que se ocupavam dos assuntos econômicos, como os ministros da

fazenda, por exemplo. De qualquer modo, a presença destes indivíduos que se

ocupavam dos cargos atrelados à economia nos círculos estatais remonta a momentos

bem anteriores ao pós-guerra.

6 FCEARJ (Fundação Faculdade de Ciências Econômicas e Administrativas do Rio de Janeiro). Até este momento os temas e disciplinas que compunham o que hoje se designa faculdade de ciencias econômicas eram ministrados nas faculdades de direito e engenharia.

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Dois nomes importantes na época foram Eugenio Gudin e Octávio Gouveia

de Bulhões, o primeiro formado em engenharia e o segundo em direito. Na década de

40 participaram da Conferencia de Bretton Woods – que visava reformar o sistema

financeiro do pós-guerra – como membros da delegação brasileira. Anos adiante,

ambos ocuparam o cargo de Ministro da Fazenda: Gudin no governo de Gaspar Dutra

e Bulhões no governo de Castello Branco. Embora não fossem graduados em

economia – excetuando-se o fato de Bulhões ter feito um curso em economia na

Universidade de Washington, USA, no final dos anos 30 – ambos tiveram

participação ativa na construção de um espaço acadêmico no Brasil, seja através da

elaboração de revistas especializadas (como a Revista Brasileira de Economia e a

Revista Conjuntura Econômica, ambas editadas pela FGV a partir de 1947), seja

através da fundação de faculdades (como a Faculdade Nacional de Ciências

Econômicas da Universidade do Brasil, em 1946). Assim, por se tratar o campo das

ciências econômicas de um espaço institucional em formação, os termos que, na

época, antecedem os nomes de seus principais componentes variam: ora são

"professores", ora "engenheiros", ora "economistas", ora "técnicos". Em virtude desta

proliferação de termos, e de se tratar este de um campo em formação, tomei a

liberdade de, no corpo do meu texto, usar as designações, ao falar nos nomes de

Gudin e Bulhões, de forma aleatória. Menos, é claro, quando os termos aparecem

sobe a forma de citações.

Assim temos que tais personagens foram fundamentais na constituição da

FGV, principalmente no que tange à criação do Núcleo de Economia, órgão da

Fundação criado em 1946 para o estudo de assuntos econômicos, notadamente

aqueles referentes aos cálculos do índice de preços, da Renda Nacional, e da Balança

de Pagamentos. Percebe-se que, seja pelos indivíduos envolvidos, seja pelas relações

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com a burocracia estatal – como na pequena série de eventos que descrevi no início

desta introdução – a FGV constitui-se em íntima relação com agentes, dispositivos e

instituições associados ao Estado. Segundo Pierre Bourdieu (2001), o Estado (o

“campo burocrático”, nos seus termos), por ser resultado da concentração de diversos

campos que permeiam a sociedade, torna-se capaz de regular os demais campos que o

rodeiam. Esta afirmação parece iluminar o que procurarei descrever nos próximos

capítulos. A FGV, embora derivada de uma série de processos, dos quais destacaria os

esforços estatais e de indivíduos que orbitavam a burocracia e entidades privadas, se

constituiu declaradamente como entidade voltada para a ciência, no caso a ciência

econômica. Trata-se, portanto, de um importante capítulo para a configuração de um

determinado campo científico, gerido e regulado por agentes e instituições da esfera

burocrática.

Esta, porém é apenas uma face da moeda. Sem dúvida tratar das relações

entre Estado e produção de conhecimento – ou da configuração de um campo

científico – é passo importante que deve ser dado no sentido de se buscar

inteligibilidade para determinados processos históricos. Este tipo de esforço vem

sendo feito por historiadores e sociólogos há algum tempo – como no caso dos

autores citados nos parágrafos acima. O presente trabalho, também segue nesta

direção, porém procura acrescentar novos elementos ao debate sobre a configuração

de um determinado campo científico.

Isto é, não se limitando puramente às relações entre Estado e governos e

produção de conhecimento, se tentará penetrar no conjunto de idéias, práticas e

reflexões que permearam as reflexões e ações dos indivíduos que capitanearam o

processo de configuração do campo das ciências econômicas, tal como proposto por

Coats (1989). A partir de então, se perceberá que tais relações, perceptíveis também

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neste conjunto de reflexões, correspondem apenas a um elemento, embora

fundamental, do processo de configuração do campo aqui em questão. Outros se

somam a este, como a necessidade, salientada por certos indivíduos, de se buscar a

pureza científica, dissociada de quaisquer outros elementos que não a própria prática

que a ciência engendra. Ou ainda, o modo como a emergência da ciência econômica

estava ligada, segundo este mesmos agentes, a uma necessidade de "novos tempos", a

um esforço de âmbito internacional, no sentido de dotar os homens, da burocracia ou

não, de maiores controles e conhecimentos sobre a realidade econômica que os

cercavam. Em outras palavras, a análise da configuração da ciência econômica, tendo

como exemplo fundamental a criação da FGV, ocorrida nos idos dos anos 40, nos

permite observar certos fenômenos a partir de uma lente que considere diversos

elementos, ainda que eles estejam todos relacionados: 1- as relações entre agentes e

instituições dos governos e do Estado e a produção de conhecimento científico, 2 - a

emergência dentro do campo da economia no Brasil de um ideário acerca da pureza

científica, 3 - a associação entre esse processo de emergência científica a saberes e

redes internacionalizados e ao acúmulo de capital de relações internacionais pelos

agentes envolvidos na criação da FGV e do Núcleo.

Em outras palavras, a análise da configuração da ciência econômica, tendo

como exemplo fundamental a criação da FGV, ocorrida nos idos dos anos 40, nos

permite observar certos fenômenos a partir de uma lente que considere diversos

elementos, ainda que eles estejam todos relacionados: as relações entre agentes e

instituições dos governos e do Estado e a produção de conhecimento científico; a

emergência dentro do campo da economia no Brasil de um ideário acerca da pureza

científica; o quão tal processo de emergência científica estava associado a saberes e

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redes internacionalizados, como também já mostrado por Coats (1989) e por Garth e

Dezalay (2002).

O presente trabalho tem como fio condutor um conjunto de idéias, reflexões

e práticas percebidas e executadas por certos agentes. Interessa observar e analisar os

processos de criação da FGV, e conseqüentemente da configuração da ciência

econômica, à luz de um determinado ponto-de-vista, a saber: o ponto-de-vista de

alguns dos agentes implicados nestes processos. Isto significa que não é meu objetivo

contar a história da FGV e da Ciência Econômica no Brasil, mas sim fazê-lo a partir

de uma determinada perspectiva. Os agentes por mim escolhidos, ou melhor diria,

impostos pela pesquisa empírica, foram nomes determinantes na construção e

consolidação da FGV e do seu Núcleo de Economia. São eles Eugenio Gudin e

Octávio Gouveia de Bulhões (já mencionados), e Luís Simões Lopes, engenheiro e

presidente do DASP, designado primeiro presidente da FGV. Outros nomes, também

de relevo, se somarão a estes no desenvolvimento do presente trabalho, mas os três

citados são, como será visto, de fundamental importância.

A dissertação que agora se apresenta, foi resultado de pesquisa empírica a

partir de documentos e textos do fim dos anos 30 até o início dos anos 50 coletados na

Biblioteca Mário Henrique Simonsen, da FGV. Entre estes há entrevistas, artigos em

revistas especializadas, livros, documentos oficiais, cartas, relatórios. Todos do

período assinalado, e assinados por personagens ou entidades envolvidos diretamente

nos processos históricos que são o objeto deste trabalho (entre os quais os indivíduos

acima assinalados). Apresento, também, alguns fragmentos de textos ou entrevistas

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realizadas em épocas posteriores, indo até a passagem das décadas de 80 e 90. Porém

este material será encontrado, sempre, nas notas de rodapé. O corpo principal do meu

texto conterá elementos empíricos apenas do período histórico que esta dissertação

pretende retratar, isto é, anos 30, 40 e início dos 50. Tal estrutura foi escolhida para

que as análises aqui propostas fossem os mais fiéis possíveis às idéias e práticas da

época apresentada, evitando com isso anacronismos.

A dissertação está dividida em três capítulos, cada um contendo um registro

empírico e analítico característico. O primeiro capítulo tratará das trajetórias das três

personagens: Gudin, Bulhões e Lopes. Serão apresentadas as trajetórias destes

indivíduos até o momento em que ingressaram na FGV, no meio da década de 40.

Saliento que elas não serão apresentadas como explicativas das escolhas que esses

indivíduos tomaram, ou como determinantes de processos futuros. Mas sim porque, as

histórias destes agentes fornecem uma janela privilegiada para se ter acesso aos

processos aqui analisados, posto que estes indivíduos fizeram parte destes. A partir

destas trajetórias torna-se possível perceber certas transformações ocorridas na vida

de determinadas pessoas e dos contextos que as cercavam. Uma trajetória é uma porta

de entrada para outras trajetórias, como a de outras pessoas, instituições, ou mesmo

idéias. Este capítulo baseia-se principalmente em material biográfico sobre as

trajetórias dos seus personagens, em fragmentos de textos contidos em livros e

revistas escritos pelos mesmos, e em documentos oficiais (como cartas e ofícios).

O segundo capítulo é uma continuação do primeiro, embora o registro, ou

diria melhor, o plano seja diferente. As trajetórias de três indivíduos dão lugar ao

evento que foi a criação da FGV. Digo que é uma continuação, pois foi,

cronologicamente, o passo seguinte dado pelos protagonistas do primeiro capítulo.

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Mas é diferente do primeiro porque nele emerge uma perspectiva mais institucional,

concentrada na análise de um período histórico menor, de 1944 a 1952. Aos

fragmentos de textos e pensamentos; aos pequenos e muitos fatos que permeiam o

primeiro capítulo, se somam um conjunto de cartas oficiais, relatórios internos da

FGV, trechos de publicações (a Revista Brasileira de Economia e a Revista

Conjuntura Economia, ambas editada pela Fundação a partir de 1947), etc. – todos

relacionados à criação da FGV e do Núcleo de Economia – que dão um ar mais

formal e institucional ao conjunto de ações e reflexões já presentes desde o início da

dissertação. Não é uma mudança de estatuto, mas apenas uma aproximação da lente,

que permite ver conjuntos de relações e interações, que de uma perspectiva mais

ampla permaneceriam escondidas. Num certo sentido o conteúdo dos dois primeiros

capítulos, a primeira vista, não difere muito de parte da literatura que se propõe a

estudar este tipo de tema (como os trabalhos de Loureiro, ou de Montecinos já

citados). Estão lá um conjunto de indivíduos e instituições se relacionando dentro de

um certo período histórico, tendo como foco as trajetórias e a criação e consolidação

de certas instituições. Mas há, também, diferenças. Por se tratar este de um trabalho

de antropologia, me importa ver e analisar este conjunto de relações e idéias segundo

como os próprios agentes envolvidos às vêem, interpretam e constroem, sabendo,

desde já, que estes agentes conformam um conjunto de profissionais restrito, e, que,

portanto, outras histórias são possíveis. Este permite enxergar, em primeiro lugar, o

modo pelo qual as relações entre Estado e produção de conhecimento estavam

presentes nas reflexões e práticas dos próprios agentes, não sendo apenas uma teoria

ou interpretação do antropólogo ou sociólogo, externa ao conjunto de relações que ele

estuda. Em segundo lugar, ao se levar a sério o que falam, pensam e fazem os agentes,

poderá se ter acesso a uma série de elementos que uma análise demasiada

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institucionalista e externalista não alcança, a saber: como um conjunto de idéias,

práticas e teorias, baseadas em certos supostos sobre o que é e como deve proceder a

ciência, são capazes de descrever e inventar um novo mundo social. A ciência

econômica nem sempre existiu, ela precisou algum dia ser inventada e reinventada. E

em terceiro lugar, o capítulo joga luz sobre um período não muito explorado da

história da configuração das ciências econômicas no Brasil, os anos 30 e 40. Período

este em que os grupos que formariam o campo, e que serviram até hoje de base para

as reflexões sociológicas (como a de Loureiro: 1997 e Bielschowsky: 1988) e

historiográficas sobre o tema – "liberais", "ortodoxos", "keynesianos", "heterodoxos",

etc – ainda estavam em inicial formação, portanto destituídos de fronteiras rígidas7.

O terceiro capítulo possui um registro diferente. Deixo de lado as trajetórias

profissionais e acadêmicas, e também os marcos institucionais, que caracterizaram o

primeiro e o segundo capítulos, para me concentrar na produção “científica” do

Núcleo de Economia, desde sua criação em 1946. O Núcleo fora instituído tendo com

tarefa fundamental os cálculos dos índices de preços, da Renda Nacional e do Balanço

de Pagamentos; todos os três considerados incipientes ou inexistentes no Brasil, na

época. O capítulo se baseia na exposição e análise das técnicas empregadas nestes

cálculos (focalizando os dois primeiros), bem como nos debates que a utilização de

diferentes técnicas de cálculo suscitaram entre os integrantes do Núcleo. Nesse

sentido, o capítulo baseia em um registro que se aproxima da antropologia da ciência.

Isto é, é a própria atividade dos economistas em seu laboratório – no caso o Núcleo de

Economia – que fornece os dados, baseados nas práticas dos cientistas e nas reflexões

sobre estas, para a minha análise. O material empírico tomado como referencia foi

aquele apresentado pelo próprio Núcleo – e que concerne os cálculos dos índices de 7 Lembro que nos primeiros anos de edição da RBE (Revista Brasileira de Economia) publicaram nomes como Eugenio Gudin, Octávio Bulhões, Roberto Campos, Celso Furtado, Raul Prebisch, nomes considerados mais tarde pela literatura economia e sociológica como pertencendo a campos opostos.

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preços e da Renda Nacional – em duas revistas por ele criadas em 1947: a Revista

Brasileira de Economia (RBE) e a Revista Conjuntura Econômica (RCE), a primeira,

trimestral, de cunho acadêmico e a segunda, mensal, de cunho jornalístico-informativo.

Embora os três capítulos sejam permeados por um conjunto de idéias acerca

do que é a economia e quais seus instrumentos, indispensáveis para se entender as

motivações e caminhos da configuração do campo, é objetivo do último capítulo um

mergulho analítico substantivo nos instrumentos criados pelos economistas. Deixam-

se de lado questões mais abstratas e genéricas acerca da ciência econômica, colocadas

e defendidas pelos indivíduos que vieram a compor a FGV, para se penetrar na

construção de um inventário de tecnologias, procedimentos e conceitos que

caracterizaram o desenvolvimento dos instrumentos acima citados. Corresponde este

a um passo essencial, em minha concepção, para se entender de forma substantiva a

criação e consolidação de uma determinada ciência. Deixar-se-á de lado

momentaneamente os aspectos formais e institucionais, além do ideário de fundo mais

abstrato, para se mergulhar no conjunto de técnicas e teorias que, de fato, ocuparam a

grande parte do tempo, de trabalho e de reflexão, desses profissionais. Afinal,

imagino que uma ciência ou campo do saber se define também pelo que ela/ele diz

estudar. Nada melhor, portanto, que refletir sobre aquilo que os economistas fazem e

pensam – ou no caso pensaram –, para se obter uma compreensão da atividade destes

cientistas/profissionais/intelectuais, de suas idéias e técnicas, e de como estas se

tornaram de vital importância nas últimas décadas.

Como já foi mencionado, a FGV fabrica, atualmente, uma série enorme de

indicadores, dos quais os mais famosos são os índices de preços. Não só a Fundação,

mas hoje em dia outros institutos o fazem, como o IBGE e o DIEESE, a FIPE... Tais

indicadores permeiam os debates públicos sobre desenvolvimento, inflação, política

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econômica, etc. Muitas vezes tais números ocupam as capas dos jornais,

especializados ou não. São muitos os que podem discordar das políticas e decisões

que acompanham estes números, ou, no máximo, das metodologias empregadas na

sua fabricação. Mas de sua existência, e de sua capacidade de refletir certos aspectos

da realidade econômica, ninguém perece duvidar.

A FGV – e o Núcleo de Economia e seu "filho", o IBRE (Instituto Brasileiro

de Economia, criado em 1951 a partir da estrutura do Núcleo) – foi algumas vezes

taxada, no que concerne as teorias que compõem ciência econômica, de “liberal”.

Assim ela é designada tanto por Loureiro (1998) quanto por Bielschowsky (1988). O

pensamento liberal em economia é quase sempre associado à preponderância dos

números, da matemática, da estatística, em suas análises. De fato o Núcleo sempre

utilizou destes instrumentos nas suas pesquisas e publicações. Mas ele não era o

único. Albert Hirschman (1963) mostrou como as teorias desenvolvidas no interior da

CEPAL8 - instituição esta associada pelos mesmos autores ao "desenvolvimentismo",

portanto supostamente oposta ao credo “liberal” – foram largamente baseadas em

análises de séries numéricas e estatísticas acerca do comércio internacional (sobre

CEPAL ver também, Sikkink: 1997) Quero dizer com isto que, embora se possa

observar diferenças político-ideológicas internas às analises da ciência econômica (e

que não são objetivo deste trabalho), existe um comprometimento de todas as

possíveis partes divergentes com um ideário mais profundo, que é o próprio

possibilitador da emergência de um determinado campo do conhecimento. A ciência

8 Comissão Econômica para América Latina das Nações Unidas, criada em 1948 e com sede em Santiago do Chile. Tinha como atribuição desenvolver reflexões sobre a história e o processo de desenvolvimento econômico na América Latina; também operava no assessoramento econômico dos governos da região. Nela gestou-se a teoria segundo a qual haveria um desequilíbrio estrutural entre os termos de troca entre os países centrais e a periferia (sendo a América Latina a periferia). A forma de se resolver tal problema residiria no processo de industrialização. Os países periféricos deveriam deixar de ser simples exportadores de produtos primários

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econômica – seja qual for o grupo de que se fala – em parte se sustenta na

possibilidade de se objetivar a realidade e o mundo através de instrumentos de

quantificação, ainda que diferentes grupos, agencias ou indivíduos dêem importâncias

diversas a tal fato. Como diz Bourdieu (1983: 145): "o campo de discussão que a

ortodoxia e a heterodoxia desenham, através de suas lutas, se recorta sobre o fundo do

campo da doxa, conjunto de pressupostos que os antagonistas admitem como sendo

evidentes, aquém de qualquer discussão, porque constituem a condição tácita da

discussão".

Naquele momento dos anos 40, dentro do Núcleo de Economia da FGV, os

debates sobre os números e a sua capacidade de refletir uma dada economia

ganhavam força no Brasil. O que eram? De fato refletiam algo? Como calculá-los?

Todas eram perguntas que, com será visto, permeavam, explicitamente ou

implicitamente, as escolhas e os debates dos profissionais responsáveis. Ali, naquele

momento, estava em jogo uma determinada concepção de economia que podia,

justamente, se espelhar em números – fosse um número da inflação, fosse da Renda

Nacional – não era óbvia. É um dos objetivos deste capítulo, tornar, novamente, tais

questões um pouco menos óbvias.

Os tipos de questões que permeiam este último capítulo – e também todos os

outros – se tornaram possíveis por dois motivos (além, é claro do interesse do autor

pelo tema). Em primeiro lugar devido às sugestões que Coats (1989) faz no sentido de

que as ciências humanas levem em consideração em suas análises de formação do

campo científico da economia o conteúdo do que pensam e fazem os economistas –

para além dos já inúmeros trabalhos que o fazem a partir do aspecto das disputas

teórico-ideológicas; keynesianos x monetaristas; liberais x estruturalistas, etc. E, em

segundo lugar, e mais importante, pelo tipo de reflexão que vem sendo feita dentro do

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NuCEC (Núcleo de Pesquisas em Cultura e Economia) do Museu Nacional,

coordenado por Federico Neiburg, que busca elaborar uma antropologia da economia

que leve a sério as idéias e práticas dos profissionais da economia e sua ciência, e de

todo o universo social de agentes e instituições que de algum modo orbita e se refere

às relações descritas e classificadas como econômicas.

Em suma, esse trabalho busca analisar a criação da FGV e do Núcleo de

Economia e suas relações com a configuração do campo da ciência econômica no

Brasil. Para tanto, e à luz de certas trajetórias de indivíduos, marcos institucionais e

emergência de práticas, idéias e instrumentos científicos, será focalizado como este

evento é, a um só tempo, objeto privilegiado para se entender as relações entre Estado

e produção de conhecimento, de um lado, e criação das condições de autonomização

(Bourdieu: 1992) e purificação (Latour: 1991) de uma determinada ciência, de outro.

Sendo ambos os processos, neste caso, inseparáveis.

O presente trabalho só foi possível graças aos debates com meu orientador,

Federico Neiburg, e com todos os demais integrantes do NuCEC, ao longo dos

últimos 4 anos. Este período congrega dois anos de Bolsa de Iniciação Científica

UFRJ/PIBIC/CNPq (2004-2006), em que realizei pesquisas no NuCEC e me graduei

em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, e mais dois anos de

mestrado em antropologia social pelo PPGAS/MN/UFRJ (Programa de Pós-

Graduação em Antropologia Social, do Museu Nacional, da Universidade Federal do

Rio de Janeiro) e novos e contínuos debates dentro do NuCEC. Sem esses apoios e

conversas o trabalho que agora apresento não teria sido possível.

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Capítulo 1 - Ação entre amigos

Eugenio Gudin, Octávio Gouvea Bulhões e Luiz Simões Lopes foram nomes

fundamentais para a construção e solidificação da Fundação Getúlio Vargas e do

Núcleo de Economia, em meados dos anos 40. Os dois primeiros no que concerne,

primordialmente, à configuração do campo das ciências econômicas no Brasil através

da criação da própria FGV e do seu Núcleo de Economia, e de outras instituições

ligadas às ciências econômicas, na primeira metade do século XX. E o último através

das reformas administrativas que comandou na burocracia federal brasileira desde a

ascensão de Vargas ao poder, a partir dos anos trinta do século passado.

Tanto Gudin quanto Bulhões tiveram participação ativa na construção de uma

série de instituições ligadas às ciências econômicas no Brasil, como na criação da

FCEARJ (Faculdade de Ciências Econômicas e Administrativas do Rio de Janeiro,

instituição privada), em 1939 no caso de Gudin, e da FNCE (Faculdade Nacional de

Ciências Econômicas, instituição pública do Governo Federal ligada à Universidade

do Brasil, atual UFRJ), em 1946 por parte de ambos, e na implantação do Núcleo de

Economia da FGV – como já dissemos, responsável pelo cálculo dos índices de

preços, da Renda Nacional e do Balanço de Pagamentos. Foram também membros de

uma série de entidades estatais federais ligadas à administração da economia.

Bulhões, advogado de formação, foi funcionário de carreira do Ministério da Fazenda.

Já Gudin, engenheiro, foi membro de conselhos consultivos da área econômica

federal, como o Conselho de Planejamento Econômico. Ambos integraram também a

comitiva brasileira enviada à Conferencia de Bretton Woods, em 1944.

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Esta série de pontos nas trajetórias de cada um, que serão mais bem

explicitadas nas próximas páginas, evidencia duas questões importantes. Em primeiro

lugar mostra que ambos eram figuras de destaque na burocracia federal relacionada

com os assuntos econômicos. Em segundo lugar, que ambos foram protagonistas na

configuração do campo das ciências econômicas no Brasil. Lembro que até esta época

não havia Faculdades de Economia no país. Os conteúdos associados às ciências

econômicas eram ministrados em cadeiras das faculdades de direito e engenharia.

Além disso, certos instrumentos de teoria econômica aplicada – aqueles que serão de

responsabilidade do Núcleo de Economia – eram considerados inexistentes no país

segundo os integrantes do Núcleo. Dos três instrumentos citados, apenas os cálculos

de inflação – através dos índices de custo de vida – eram realizados no Brasil naquela

época, por governos estaduais, municipais, e pelo Ministério da Fazenda (neste caso

apenas para o Distrito Federal).

A criação da FGV e do seu Núcleo de Economia é inseparável da confluência

destas três trajetórias. Gudin e Bulhões enquanto profissionais ligados à ciência

econômica. E Lopes como alto funcionário do Governo Federal ligado à

administração e à formulação do orçamento (desde 1938 foi presidente do DASP,

órgão criado pelo Estado Novo), e como idealizador, nos idos de 1944, de uma

instituição que se dedicasse à pesquisa e divulgação nas áreas da administração e da

economia (a FGV), como atestado em ofício enviado por Lopes a Vargas em julho de

1944.

No presente capítulo serão focalizadas as trajetórias destes três indivíduos nos

anos e décadas anteriores à criação da FGV. Apesar do evento da criação da FGV não

ser, portanto, protagonista deste capítulo, alguns elementos fundamentais para sua

futura instituição aparecem através das lentes que as trajetórias individuais nos

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fornecem. Isto é, a emergência de idéias e instituições que tratavam da ciência

econômica – a já falada configuração da ciência econômica – e as relações entre a

emergência destas idéias e instituições e a burocracia estatal.

1.1 Eugenio Gudin

Gudin o mais velho de nossos três personagens, nasceu em uma família abastada da

sociedade carioca em 12 de julho de 1886. Filho de Manuel Eugênio Gudin, sócio de

uma importadora, e Carola Fontes Gudin, descendia de uma família de negociantes

franceses que se instalaram na cidade do Rio de Janeiro a partir de 1839. Como filho

da classe alta sempre estudou em bons colégios, como o Colégio Abílio – a partir de

1894 – e o Internato Brasileiro Alemão de Petrópolis, onde terminou os estudos

preparatórios para o ensino superior9.

Entre 1901 e 1905 cursou engenharia na Escola Politécnica do Rio de Janeiro.

Considerado aluno brilhante, foi condecorado, ao formar-se engenheiro civil, com a

medalha Gomes Jardim, entregue pela Escola ao estudante que tivesse obtido as

melhores notas em seu ano.

Egresso da faculdade, Gudin foi trabalhar com engenheiro na iniciativa

privada. Ao longo dos próximos 30 anos ocupou uma série de cargos técnicos e

executivos em uma série de empresas, nacionais e estrangeiras. Foi contratado como

engenheiro civil pela Dodsworth e Cia., da qual também tornou-se sócio. Foi diretor

da Pernambuco Tramways and Power e da Great Western Railway and Co., ambas

empresas de transportes urbanos. Em 1922 assumiu a direção-geral desta última

empresa no Brasil, cargo ocupado por quase 30 anos. No ano de 1929 tornou-se

9 A série de referencias biográficas a seguir são baseadas em fontes secundárias, sendo elas: Abreu, Alzira Alves de (coord). Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro pós-1930. Rio de Janeiro: Ed. FGV, CPDOC, 2001 ; Gudin, Eugenio. Eugenio Gudin: centenário de nascimento 1986. Rio de Janeiro: Ed. FGV,1986. O mesmo vale para os itens dedicados a Lopes e Bulhões.

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também diretor da Western Telegraph and Co., cargo este exercido até 1954. A

função de diretor nestas duas últimas empresas propiciaram ao jovem engenheiro uma

série de viagens a Europa, posto que ambas eram formadas por capitais estrangeiros.

Data da década de 20 o início do interesse de Gudin pelos assuntos

econômicos. Autodidata inicia nesta época a leitura dos clássicos britânicos da

matéria que despertara sua curiosidade: Adam Smith, Ricardo, Marshall. Também

neste período, para ser mais exato entre 1924 e 1926, o engenheiro é responsável por

uma coluna de economia no O Jornal, comandado por Assis Chateaubriand. Saído

deste veículo, passou a assinar outra coluna em o Correio da Manhã, onde

permaneceu até 1954.

Até o fim da década de 20, Gudin restringia suas atividades à engenharia e à

administração a serviço da iniciativa privada e ao jornalismo. Mas, a partir do início

dos anos 30, acrescentou outro ramo de atividades: os serviços à burocracia estatal.

Não que o nosso personagem tivesse estado totalmente afastado da esfera estatal.

Como executivo e engenheiro de empresas prestadoras de serviços públicos, Gudin

sempre esteve próximo dos círculos governamentais, seja em Pernambuco seja no

Distrito Federal, estados onde as empresas onde trabalhava possuíam negócios. Mas

como funcionário ou colaborador dos círculos estatais ele inicia seus trabalhos nesta

época, sendo requisitado por seus conhecimentos na área da ciência econômica.

Assim, entre os anos de 1931 e 1933 Gudin integrou a Comissão de Estudos

Financeiros e Econômicos dos Estados e Municípios, criada pelo Ministério da

Fazenda, cuja função era reunir informações financeiras e econômicas sobre a

situação destas esferas de governo. Esta atividade seria apenas a primeira. Até o início

da década de 50 passou por diversos órgãos públicos. Em 1933 trabalhou na Caixa de

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Mobilização Bancária do Banco do Brasil. Entre 1940 e 1944 foi membro do

Conselho de Administração do mesmo banco. Ao final da década de 30 integrou a

Comissão Mista de Reforma Econômica e Financeira – criada em 1935 e composta

por representantes do poder executivo e legislativo federais, sendo também presidida

pelo Ministro da Fazenda a época Artur de Souza Costa -. Foi responsável pela

elaboração de um plano de reorganização financeira do país, incluindo a redução das

despesas públicas e a revisão tributária. Os trabalhos efetuados por esta Comissão

resultaram na Lei do Reajustamento, sancionada em 1936 pelo então Presidente

Getúlio Vargas, e responsável por reformas econômicas e administrativas para o

período que agora se iniciava.

Como é perceptível até o momento, Gudin inicia-se na vida pública a partir do

começo dos anos 30. Como veremos mais adiante, Bulhões e Lopes ingressarão nos

círculos governamentais a partir do final dos anos 20, mas passarão a integrar uma

série de outras entidades públicas também a partir dos anos 30. Mais que uma

coincidência geracional, tal fato revela, também, transformações profundas que o

Estado brasileiro experimentou desde o início dos anos 30. Como é sabido, nesta data

Getúlio Vargas chegou à chefia do Governo Federal através de um processo

revolucionário (onde ficaria de forma ininterrupta até 1945). Mais do que

simplesmente uma substituição de elites dirigentes, tal evento resultou em grandes

mudanças nos cenários econômicos e políticos brasileiros. De um lado, marcou o

início de um período de reformas administrativas pelo governo federal que resultaram

em enorme centralização (Wahrlich: 1983, Lippi, Velloso & Gomes: 1982). Segundo

Schwartzman (1982), a geração que chegou ao poder em 1930 via como principal

tarefa a reorganização do Estado, para que se pudesse aplicar a sociedade nacional

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boas políticas públicas, no que a criação do DASP, em 1938, e do IBGE10,

desempenharam papéis relevantes. De outro, foram implementadas reformas

econômicas que possibilitariam o início do processo de industrialização e

modernização econômica no Brasil (Fausto: 1994), baseado em um ideário

nacionalista e reformista responsável pela criação de uma série de organismos de

consultoria e planejamento econômico no nível federal, como o Conselho Federal de

Comércio Exterior, de 1934, e o Conselho Técnico de Economia e Finanças do

Ministério da Fazenda, de 1937 (Carone: 1976). Até então a economia do país

baseava-se no setor agro-exportador. Do mesmo modo, o poder político federal era

dominado pelos círculos paulistas e mineiros ligados a esta atividade econômica.

Portanto, não é de se estranhar o fato de que a partir dos anos 30 uma série de

entidades públicas da administração da economia surgissem (Diniz: 1999), como,

aliás, ficará mais claro no decorrer do trabalho. Ao mesmo tempo, uma nova categoria

de profissionais e intelectuais também surgia, apta a colaborar na criação e

gerenciamento destas novas entidades, sendo ambos, os profissionais e as instituições,

mutuamente constituídos.

Em 1937 – início do chamado “Estado Novo”, período presidido por Vargas

no qual as reformas econômicas e administrativas centralizadoras iniciadas em 1930

foram aprofundadas – Gudin tornou-se membro do Conselho Técnico de Economia e

Finanças do Ministério da Fazenda. O Conselho fiscalizava e controlava as finanças

estaduais e municipais com o intuito de assegurar ao Governo Federal as operações

financeiras externas. Formulava também pareceres sobre tributação, legislação

bancária e monetária, incentivos fiscais e aproveitamento de combustíveis.

10 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, responsável pela elaboração dos dados sobrea a população.

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No ano de 1943 foi realizado o I Congresso Brasileiro de Economia no Rio de

Janeiro. Participaram deste evento: empresários, membros dos poderes públicos e

profissionais ligados à economia (num total de 234 participantes). No Congresso

foram discutidos diagnósticos acerca da economia brasileira e possíveis rumos para o

seu processo de desenvolvimento. Este evento marca de forma significativa a história

sobre o pensamento econômico e o planejamento econômico no Brasil. Como figura

de destaque dos assuntos econômicos no país, Gudin foi um de seus protagonistas

através da chamada "controvérsia sobre o Planejamento Econômico". Tal controvérsia

opunha aqueles que defendiam a participação do Estado como indutor do processo de

industrialização, como o industrial Roberto Simonsen, e outros que denunciavam o

Estado intervencionista como propagador de desequilíbrios econômicos e

ineficiências. Segundo estes a indústria deveria ser fruto do desenvolvimento natural

dos setores privados e não produto da intervenção estatal. Gudin11 era o principal

porta-voz deste último grupo (Loureiro: 1997). Segundo o próprio:

Para a filosofia coletivista, o ideal é um plano perfeito imposto por uma autoridade onipotente. Para a filosofia liberal, o sistema econômico é o caminho da democracia. Para a filosofia coletivista, é o Estado totalitário. A diferença entre as duas filosofias é radical e irreconciliável. O coletivismo serve-se do poder do Estado para administrar a produção e o consumo; o liberalismo utiliza esse poder para preservar e favorecer a liberdade das trocas, que é o principio essencial do seu modo de produção (Gudin, Eugenio. In Eugenio Gudin visto por seus contemporâneos. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1979, pag. 9-10)

Gudin participou ativamente dos negócios públicos, seja como executivo seja

como conselheiro. Não pretendo como isso realizar denuncia ou alegar incoerência do

velho engenheiro. Mas apenas salientar o fato que Gudin construiu sua careira

profissional e intelectual trabalhando para os setores privados e também para o

Estado. Ainda neste ano, 1943, o engenheiro publicou o livro Princípios de Economia

11 Em março de 1945 foi publicado o livro Rumos da Política Econômica, que continha as principais críticas de Gudin.

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Monetária, manual de economia, que seria mais tarde utilizado como livro de

referência em diversas escolas de graduação. Sobre essa obra Richard Levinshon,

integrante do Núcleo de Economia da FGV e contemporâneo de Gudin, escreveu:

Sem embargo das numerosas modificações, os conceitos fundamentais do livro permanecem inalterados. Encontramos outra vez esse vasto conhecimento dos fatos e das opiniões, essa clareza de expressão e, sobretudo, essa serenidade de espírito que, desde sua publicação em 1943, asseguram a obra do Sr. Eugenio Gudin uma repercussão extraordinária. Sem descer, jamais, a polemicas violentas, o autor submete a um exame crítico o conjunto das modernas doutrinas monetárias, abordando todos os problemas da atualidade" (Levinshon, Richard. Resenha de Princípios de Economia Monetária. In Revista Brasileira de Economia, 1(1) 1947, pág. 111)

Também durante o Estado Novo foi membro da Comissão de Planejamento

Econômico, subordinada ao Conselho de Segurança Nacional. Esta Comissão tinha

como finalidade estabelecer em bases permanentes o conjunto de medidas e atividades

enunciadas e executadas pela Coordenação de Mobilização Econômica, entidade

responsável pela reestruturação da economia brasileira em tempos de guerra (durante

o Estado Novo o Governo Brasileiro declarou guerra ao Eixo e ingressou na II Guerra

Mundial).

Em 1944 Gudin integrou a missão brasileira enviada ao encontro de Bretton

Woods, nos Estados Unidos. Tal encontro, que reuniu delegações de diversos países,

tinha como objetivo discutir a reorganização da economia e das finanças

internacionais do pós-guerra. Em suas reuniões forma criados o FMI (Fundo

Monetário Internacional), que garantiria a estabilidade monetária das nações, e o

BIRD (Banco Mundial), que concederia financiamentos para o desenvolvimento

econômico dos países signatários. Tal encontro, além de ser fato marcante na carreira

profissional de Gudin, o colocou em contato com equipes de economistas, mais

notadamente americanos, que teriam papel relevante em seus próximos passos, bem

como na constituição da FGV, como será visto em breve.

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Outra atividade fundamental de Gudin foi a sua colaboração e atuação para a

criação das áreas acadêmicas e de ensino em economia. Em 1938 Gudin, ao lado de

outros profissionais da área, fundou a Fundação Faculdade de Ciências Econômicas e

Administrativas do Rio de Janeiro (FCEARJ). No mesmo mês foi aprovado no

concurso para a cátedra de Moeda e Crédito da recém criada faculdade.12

Em 1945 em parecer intitulado “Rumos da Política Econômica”, apresentado

no Conselho Nacional de Política Comercial e Industrial, escreveu:

Devem, o Governo Federal, os Governos Estaduais, as universidades, as fundações, as grandes empresas, destinar a maior parcela possível dos seus recursos à criação de escolas técnicas eficientes, à importação de professores estrangeiros especializados e capazes, ao custeio no estrangeiro da aprendizagem de profissões técnicas por milhares de jovens brasileiros preparados e selecionados e à criação de centros de pesquisa e laboratórios com o necessário aparelhamento material e superior direção técnica (Kafka, Alexandre (et al.) "Rumos da Política Econômica". in Eugenio Gudin Visto Por Seus Contemporâneos. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1979, pag. 11).

Aqui temos o conselho dado por Gudin àqueles que de alguma forma têm

influencia sobre a realização de políticas públicas ou privadas na área da educação.

Ocorre que a percepção da necessidade de incrementos ao ensino da economia não

parte apenas de uma particular visão do economista sobre as qualidades da boa

educação, mas também, segundo ele, das necessidades desta ao pleno

desenvolvimento econômico:

12 Eram professores da Faculdade em 1939: Otacílio Novais da Silva (matemática financeira); Ubaldo Lobo (contabilidade de transportes); Altamirano Nunes Pereira (geografia); Ildefonso Mascarenhas da Silva (Direito Constitucional); Francisco Dantas (Direito Civil); Luiz Nogueira de Paula (Economia Política); Manoel Marques de Oliveira (Contabilidade); Eduardo Lopes Rodrigues (Finanças); Eugenio Gudin (Economia Bancária); Daniel Carvalho (Direito Internacional Comercial); Jaime de Castro Barbosa (Ciência da Administração ); Luiz Pedro Pilar (Legislação Consular); Nilton Campos (Psicologia, Lógica e Ética); Carlos Augusto Domingues (Direito Administrativo); Alvaro Porto Moutinho (Política Comercial e Regime Aduaneiro Comparado); Afonso Arinos de Melo Franco (História Economica da América); Helvécio Xavier Lopes (Direito Industrial e Operário); José Carlos Soares (Direito Público Internacional); Luiz Dodsworth Martins (Sociologia); Antonio Garcia de Miranda Neto (Estatística); João Carlos Vital (Organização Racional do Trabalho); Jorge Kafuri (Doutrinas Econômicas); Alde Sampaio (Urbanismo e Administração Municipal); Olímpio Guilherme (publicidade e técnica de Jornalismo); (fonte: Castro, José Nivalde. O economista: a história da profissão no Brasil. Rio de Janeiro: Cofecon, Corecon-RJ, Corecon-SP, 2001).

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Se há 25 anos passados, quando começamos a intensificar nossa industrialização, tivéssemos compreendido – como em tempo compreenderam o Japão e a Rússia – que não há industrialização possível sem capacidade técnica e tivéssemos importado das nações já altamente industrializadas, professores às dezenas e lhes mandado estudantes às centenas, a indústria nacional não estaria hoje acusando tão baixo coeficiente de produtividade (Gudin, Eugenio. Ensaios Sobre Problemas Econômicos da Atualidade. Ed Civilização Brasileira. RJ. 1944, pag. 10)

Aqui temos claramente exposta a importância do "técnico" para o

desenvolvimento econômico. Técnico este que deve ser formado. Alguns anos antes

Gudin deu contribuição ao seu próprio diagnóstico ao fundar a FCEARJ. Mas isto não

é tudo. O plano internacional também desempenhava um papel importante. Afinal,

Japão e Rússia, países de industrialização recente, vinham fazendo grandes esforços

no sentido da implementação das receitas às quais o engenheiro fazia referencia em

suas declarações e publicações. Este tipo de análise é importante, pois evidencia algo

que se tornará ainda mais forte no decorrer da presente dissertação: a idéia da ciência

econômica, suas teorias, suas práticas, seu objeto de estudo, indissociada de relações

com o plano internacional (Coats:1989, Montecinos & Markoff:2001, Dezalay &

Garth: 2002) Seja nas referencias que se faz a países-modelo e a "técnicos" desses

países, como no plano mais teórico, ao tomar as unidades nacionais e os ciclos

históricos dessas unidades, como objetos de reflexão científica.

Em 1946, portanto oito anos após a fundação da primeira faculdade de

economia na cidade do Rio de Janeiro, Gudin participa da criação de um outro curso

no nível de graduação. Ou, melhor dizendo, a Universidade do Brasil (atual UFRJ),

incorpora à sua estrutura à FCEARJ, até então instituição privada (Castro, José

Nivalde: 2001). A faculdade muda de nome passando a se chamar Faculdade Nacional

de Ciências Econômicas. Gudin e outros quadros pertencentes à antiga faculdade

passaram a compor o corpo docente.

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Porem há mudanças em relação à antiga faculdade, excetuando-se, é claro, o

importante fato desta ter deixado de ser privada para se tornar pública. Falo da grade

curricular. Em realidade, tal aspecto já preocupava há algum tempo Gudin. Tanto que

em maio de 1941, o engenheiro enviou ao Ministro da Educação Gustavo Capanema

um projeto de programa de curso superior em economia (ver, ANEXO 1 da

dissertação)

O documento revela uma série de fatos. Em 1º lugar mostra a importância do

personagem de que estamos tratando, posto que foi ele o encarregado de formular um

programa definitivo para a graduação em economia no Brasil. Revela também um

importante passo na constituição da economia enquanto espaço legítimo do saber, seja

devido à sua colocação enquanto curso (e, portanto, campo do saber) específico, seja

pela elaboração de um inventário de termos e categorias referentes a este campo do

saber. Os termos recorrentes nas publicações nacionais e estrangeiras sobre o tema se

cristalizam sob a forma de denominações de disciplinas. O próprio Gudin, apesar de

ser formado em engenharia, se especializará em Moeda e Crédito. E por último

assinala a importância de se separar economia e administração (juntas na FCEARJ),

passo importante na solidificação da ciência econômica como campo do saber

autônomo. E, por último, identifica certos agentes como “economistas”.

O programa completo do curso superior em ciências econômicas proposto por

Gudin continha: 1 ano – Curso Geral de Economia Política, Estrutura das

Organizações Economicas, Geographia Economica Geral e do Brasil, Mathematica

Superior; 2 ano – Theoria do Valor e da Formação dos Preços, Theoria da Moeda e do

Crédito, Estatística, História Economica Geral e do Brasil, Trabalhos Praticos; 3 ano –

Theoria da Repartição da Renda Social, Theoria do Commercio e dos Cambios

Internacionaes, Methodos Estatísticos e Mathemáticos Aplicáveis à Economia,

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Sciencia das Finanças, Trabalhos Praticos, 4 ano – Theoria da Evolução Economica e

Politica da Conjectura, Estudo Comparado dos Regimes Econômicos, Sociologia e

Economia, Historia das Doutrinas Econômicas, Preparo de Theses.

` Mas isso não foi tudo. Em agosto de 1944 Gudin enviou nova carta ao

Ministro Capanema, que até então não havia decidido sobre o programa de curso

preparado por Gudin. Nesta nova carta o economista acrescenta outros elementos, que

complementam a 1a carta.

Meu caro Ministro, Depois da Conferencia de Bretton Woods, seguimos, o Dr. Octávio Bulhões e eu para Boston, em visita à Faculdade de Economia da Universidade de Harvard. Fomos ali muito bem recebidos, tendo tido ocasião de tratar com os maiores professores de Harvard, que são os mais eminentes economistas da América, do programa da futura organização de nossa projetada Faculdade de Economia. Escrevi na pedra o programa e o projeto de curriculum que lhe recomendamos, para submete-lo à critica de todos e para receber as sugestões dos Mestres. Tenho a satisfação de comunicar-lhe que, depois de fazerem varias perguntas e de pedir esclarecimentos, todos os professores de Harvard acharam o programa excelente, dizendo que nada havia a modificar. Perguntamo-lhes também sobre a conveniência ou não de separar as duas Faculdades, a de Economia e a de Administração. Eles nos levaram à janela para mostrar-nos, do outro lado do rio, a Faculdade de Administração, admiravelmente instalada aliás, e nos recomendaram que se não tivéssemos um rio, abríssemos um canal...para separar as duas Faculdades. Conversamos também sobre a possibilidade de eles nos fornecerem alguns professores para a Faculdade de Economia, o que eles acham perfeitamente possível, logo após a guerra na Europa. As duas dificuldades são a língua e a remuneração. Quanto à remuneração, conversei com os Chefes do Departamento Cultural do Departamento de Estado em Washigton, que acham perfeitamente possível a cooperação financeira desse Departamento para que os professores americanos possam aceitar os padrões de remuneração que usualmente podemos oferecer. Quanto à língua, teremos, no princípio, de aceitar lições em inglês, como aceitamos o francês, no caso dos professores franceses. Queira meu ilustre amigo receber minhas cordiais saudações com meus votos para que a Reforma do Ensino superior seja, muito breve, transformada em lei e para que ela tenha sucesso que é de esperar (Kafka, Alexandre. “Eugenio Gudin: o professor”. In Eugenio Gudin visto por seus contemporâneos. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1979, pag. 42-43, também citado por Loureiro: 1997).

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Fica agora ainda mais clara a importância que a construção de um capital de

relações internacionais prestaram a Eugenio Gudin e ao desenvolvimento da ciência

econômica em nosso território. O encontro de Bretton Woods desempenhou um papel

importante – como já foi mencionado, Gudin e Bulhões estiveram no encontro – mas

foi apenas mais um passo. Após o término da Conferencia (e mesmo pouco antes,

como ficará claro quando Bulhões ingressar nesta história), começam a ser tecidas

relações estreitas entre brasileiros relacionados à configuração da ciência econômica

no Brasil e figuras reconhecidas por estes como sendo de importância internacional. A

citação, por Gudin, sob a forma de reverencias, a instituições americanas de prestígio

indicam, pois, um duplo jogo. De um lado, o reconhecimento de um pólo produtor de

conhecimentos e técnicas. De outro, e interligado a este primeiro, a defesa da ciência

econômica como campo do saber necessário. Também é relevante salientar como o

conhecimento de outras línguas cumpre papel neste processo, sendo parte importante

da internacionalização. O francês, segundo Gudin, parecia usual, mas o inglês não. De

fato, a ciência econômica deu grandes saltos em sua configuração enquanto campo a

partir de países anglo-saxões, principalmente no pós- guerra; suas escolas e

profissionais são as referencias para os nossos personagens. Assim tornando-se

imperativo dominar o inglês.

Não deixa de ser simbólica a alusão à anedota contada pelos "mestres" de

Harvard. A economia precisa de instituições próprias e profissionais próprios. O rio

que separa as escolas de Boston, de fato começa a se conformar em canal aqui no

Brasil. Em 1946, Gudin, ao lado de outros, fundaria a Faculdade Nacional de Ciências

Econômicas13.

13 Em aula inaugural proferida em 1955 na FNCE, e depois publicada como artigo na Revista Brasileira de Economia da FGV, disse Gudin: "E se bem que o nosso ensino ainda seja consideravelmente inferior ao que se ministra nas boas faculdades americanas e européias, pode-se dizer que, do ponto-de-vista da estruturação ele pode ser considerado como precursor de reformas do ensino de Economia em

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1.2 Octávio Gouvêa de Bulhões

Bulhões nasceu na cidade do Rio de Janeiro em 7 de janeiro de 1906. Filho de Octávia

Gouvêa de Bulhões e do diplomata Godofredo de Bulhões, morou parte da infância na

França e na Áustria, tendo regressado ao Brasil com oito anos de idade. Era também

sobrinho-neto de Leopoldo Bulhões, Ministro da Fazenda nos governos Rodrigues

Alves e Nilo Peçanha, durante a Primeira República.

Estudou no Colégio Aldrigde, em São Gonçalo, e formou-se em Ciências

Jurídicas e Sociais pela Faculdade do Rio de Janeiro. Ao contrário de Gudin, não teve

nos primeiros momentos de sua vida profissional participação importante junto à

iniciativa privada.

Ainda jovem, interessou-se pela economia. E tal como o primeiro personagem

que aqui tratamos recorreu diretamente aos livros, na biblioteca de seu tio Nuno

Pinheiro14. O primeiro contato profissional que manteve com a matéria data do final

da década de 20. Nesta época ingressou no Ministério da Fazenda, na Seção do

Imposto de Renda, onde fez carreira. A partir de então iniciou sua participação efetiva

no setor público, ao qual esteve vinculado durante grande parte de sua vida.

Entre 1939 e 1951 foi Chefe da Seção de Estudos Econômicos do Ministério

da Fazenda, criada pelo Ministro Souza Costa. No ano de 1942 foi indicado assessor

técnico da Coordenação de Mobilização econômica (a já citada entidade responsável

pela reestruturação da economia brasileira no período da guerra). Ao longo da década

outros países" (Gudin, Eugenio. “A Formação do Economista”. in RBE, Rio de Janeiro, 10(1), pag. 55). A constatação revela a importância da criação da FNCE para o desenvolvimento da ciência econômica no Brasil e sua relação com os demais centros. 14 Bulhões sempre se considerou um aluno medíocre e relapso, seja na escola ou na faculdade. O estudo que realmente lhe interessou foi o efetuado na biblioteca do tio através dos livros de economia (Bulhões, Octávio Gouves de .Depoimento: Octávio Gouvêa de Bulhões. Brasília: Memória do Banco Central, 1990)

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de 40 ocupou uma série de outros cargos na administração federal: foi membro da

Comissão de Investimentos do Ministério da Fazenda, e membro do Conselho

Técnico do Departamento Nacional de Previdência Social.

Também a partir desta década participou de delegações e comissões oficiais do

Governo Federal. Em 1944 esteve na Conferencia de Bretton Woods, junto com

Gudin, e em 1947 foi delegado do Brasil junto à Comissão de Estudos e

Investimentos, em Nova Iorque. No ano seguinte chefiou o grupo de técnicos

brasileiros da Comissão Abbink (Comissão Brasileiro-Americana de Estudos

Econômicos), responsável por análises e diagnósticos sobre a economia brasileira. A

Comissão, com técnicos brasileiros e americanos foi formada devido a uma série de

empréstimos pleiteados pelo governo brasileiro junto ao americano. O relatório final,

apresentado ao ministro da fazenda em fevereiro de 1949 estabelecia que a atividade

econômica deveria ficar a cargo da iniciativa privada, que o Estado só deveria intervir

com o intuito de coordenar os investimentos, e recomendava políticas de contenção

monetária como medidas de combate à inflação (Relatório Comissão Abbink: 1949).

Doutrinas estas defendidas por Bulhões.

A carreira de Bulhões como profissional e intelectual ligado às ciências

econômicas, diferentemente de Gudin, não se baseou apenas nos estudos pessoais.

Embora possa ser considerado um autodidata uma vez que não freqüentou cursos de

graduação em ciência econômica, Bulhões participou de cursos nesta área nos Estados

Unidos, na Universidade de Washington. Mas não o fez apenas por iniciativa própria.

No final da década de 30, no contexto da constituição do Estado Novo, foi

criado em 1937, pelo Governo Federal, o DASP. Esta entidade seria a responsável

pela gestão e organização dos quadros do funcionalismo público e pela elaboração do

orçamento da União (esta última dividida com o Ministério da Fazenda). Sem dúvida,

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foi parte importante nos esforços do período varguista em dotar a administração

federal de maior centralização e controle. Como atividades mais específicas destacam-

se a elaboração de planos de carreira para os funcionários públicos, a implementação

do concurso como modo de recrutamento para as atividades do Estado, a elaboração

de programas de aperfeiçoamento para os funcionários.

Bulhões fez parte dos esforços do DASP, presidido desde sua constituição pelo

engenheiro gaúcho Luiz Simões Lopes, em qualificar o quadro dos funcionários do

Estado. Deste modo, Bulhões foi enviado por Lopes aos EUA para realizar cursos de

qualificação na área de economia, no fim da década de 30. Alguns anos depois

Bulhões também integraria a delegação brasileira enviada à Bretton Woods.

Como é perceptível, Bulhões sempre teve sua atividade profissional ligada aos

assuntos de Estado. Porem, no que tange às teorias econômicas e às políticas por ele

defendidas, sempre esteve próximo de Gudin (que apesar de também ter cargos

públicos não era funcionário de carreira), ambos se declarando “liberais”. Ocorre que,

embora se considerasse um liberal, Bulhões defendia certa autonomia da ciência

econômica daquelas doutrinas que tivessem, de alguma forma, aspirações políticas.

A economia lançada por Adam Smith é uma economia em que a lucratividade há de decorrer da melhoria da produtividade técnica, que é favorável ao consumo e, portanto, conveniente ao Bem-estar social. Esta é a razão de ser da Economia, ou seja a sua finalidade última.

Se não fixarmos nossa atenção para essa finalidade, em economia pura, isto é, no setor da teoria econômica, acabaremos por aceitar finalidades espúrias no campo da política econômica.

O liberalismo, o socialismo e o comunismo são processos políticos, são sistemas econômicos, e como tais, são meios que se destinam a alcançar a finalidade da melhoria do bem-estar social. São meios característicos, mas, de forma alguma, são fins em si mesmo (Bulhões, Octavio Gouvea. “Economia e Nacionalismo”. In Revista Brasileira de Economia, Rio de Janeiro, 6(1) 1952, pág. 94-95)

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Porem tanto como economista quanto como funcionário do Estado - e embora

defendesse a livre iniciativa - reconhecia que os governos poderiam cumprir função

significativa para o aumento da riqueza do país.

No Brasil, pois, não obstante a evidencia do espírito de empreendimento dos particulares há necessidade de uma política governamental com o objetivo de desencorajar a formação de receitas pecuniárias e de incentivar, por vários modos, o aumento da renda em função do aperfeiçoamento da produção (Bulhões, Octávio Gouvêa. A Margem de um Relatório.Rio de Janeiro: Ed Financeiras SA, 1950, pag.8)

A separação entre governo e ciência econômica é colocada através de uma

linha tênue. A existência de uma ciência, associada à busca do bem-estar, é enfatizada

por Bulhões. Ao mesmo tempo não ignora que a política, sob a forma de políticas

econômicas ou sistemas econômicos, fornece um instrumental para se atingir

determinado fim. A ação do governo é , portanto, um meio de se atingir um objetivo.

Esta linha tênue também é perceptível ao longo da trajetória de Bulhões – o que aliás

é claro também para o caso de Gudin. Embora não tenha tido, nos primeiros anos e

décadas de atividades, ligação estreita com a iniciativa privada15, Bulhões defendia

esta última como alavancadora da geração de riqueza. Mas, mais ainda, foi sua

produção enquanto intelectual da ciência econômica que o fez estabelecer um lugar

especial para a "ciência econômica", autônoma em relação a qualquer aspiração

política.

Bulhões não apenas sustentava suas posições perante entidades, reuniões ou

conselhos. O economista publicou diversos livros: Alimentação e Capacidade de

Consumo (1936, confirmar), Orientação e Controle em Economia (1941), À Margem

de um Relatório: Texto da Conclusões da Comissão Mista Brasileiro-Americana de

Estudos Econômicos Missão Abbink (1950). Publicou também artigos em revistas

15 Só a partir dos anos 60 Bulhões passa a integrar conselhos de administração de diversas empresas privadas.

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especializadas de economia, como a Revista Brasileira de Economia: “A Política

Monetária para 1947” (1947 com Jorge Kingston), “Índices de Preços no Brasil”

(1948), “Lei Monetária: Exposição Perante a Comissão de Indústria e Comércio”

(1949), “Economia e Nacionalismo” (1952). Alguns de seus livros foram alvos de

resenhas em revistas especializadas, como nesta resenha assinada por Gudin na RBE,

que evidencia tanto a novidade do livro quanto, principalmente, a novidade da própria

revista, editada a partir de 1947.

Apesar de publicado há seis anos, justifica-se o comentário deste livro, não só por seu incontestável valor, como porque sua tese guarda inteira atualidade.

Se houvesse então uma revista como esta [a RBE começou a circular apenas em 1947], o comentário não deixaria de ter sido feito desde logo. Na verdade, não se pode tratar de matéria altamente especializada num jornal diário. Há, evidentemente, uma dose de ridículo em apresentar ao grande público estudos que só a um pequeno número de especialistas podem interessar, a não ser para fazer a clássica exibição de erudição (onne ignotus pro magnifico), ainda tão enraizada em nossos costumes. É o prestígio do ininteligível" (Gudin, Eugenio. resenha de Orientação e Controle da Economia. in RBE, Rio de Janeiro 1(2) 1947, pág. 117, grifos meus)

O trecho destacado revela muita coisa. Em primeiro lugar a sua própria

existência já é digna de nota. Como já mostrado na seção destinada a Gudin, e agora

ratificada, a existência de uma revista acadêmica especializada (a RBE, fundada em

1947 e editada pela FGV), contendo além de artigos, resenhas referentes a livros

publicados no Brasil foi um passo importante na consolidação da ciência econômica

com espaço do saber legítimo. Para além de tal fato, chama atenção o conteúdo

destacado. Em primeiro lugar os elogios rasgados, claro também em outro trecho, "No

mundo atormentado de hoje, uma política de crédito qualitativo ou seletivo pode ser

um instrumento útil de política monetária. E o livro do Professor Bulhões abre o

debate, com um preciosa contribuição para o estudo desse instrumento e da forma de

sua aplicação"(ibid, 122), evidencia não apenas a qualidade do texto – não aqui

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discutida – mas seu impacto perante um determinado indivíduo, assim como sua

estratégica publicização para um público mais amplo. No caso nota-se também uma

circularidade neste tipo de referencia, posto que Gudin cita e opina sobre a obra de

Bulhões. Em segundo lugar, o que nos apresenta o próprio Gudin: a apologia ao

"especialista", que em outros casos aparece como "técnico".

O "especialista", é claro, é o economista ou aqueles que trabalham ou se

interessam pela matéria. Afinal quem mais se interessaria por um livro dedicado à

política de crédito? Esta parece ser a indagação que permeia as conclusões de Gudin.

O especialista domina, e diria mais, monopoliza, certos assuntos e instrumentos. No

caso de Bulhões um especialista que é economista, administrador público e

"professor".

O termo "professor", utilizado por Gudin, não trata, apenas, de reverencia e

respeito ao distinto homem que reflete sobre a economia brasileira. Trata também,

neste caso, de alguém que algumas vezes por semana entra em uma sala de aula e

transmite uma série de conhecimentos para seus alunos. Tal como Gudin, Bulhões

exerceu também desde os fins da década de 30 a atividade de professor universitário.

Aliás, nesta matéria suas trajetórias sempre estiveram, ao menos no período

contemplado neste trabalho, bastante ligadas. Ambos foram professores da FCAERJ,

no final da década de 30, e, alguns anos mais tarde, da FNCE.

Nesta última, Bulhões assumiu a cátedra de Teoria do Valor e Formação dos

Preços, desde 1946, ano de fundação da faculdade. Os dois não estavam sozinhos na

empreitada, juntos estavam: José Nunes Guimarães, com Comércio Internacional e

Cambio; Antonio Dias Leite, com Estrutura das Organizações Econômicas; Alde

Sampaio, com Repartição da Renda Nacional; Antonio Garcia Neto, com Estatística

Metodológica; Jorge Kingston, Estatística Econômica; Eduardo Lopes Rodrigues,

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com História Econômica e Ciências das Finanças; Jorge Kafuri, com Evolução da

Conjuntura Econômica; Raul Bittencourt, com História das Doutrinas Econômicas;

Luís Nogueira Paula, com Estudos Comparados dos Sistemas Econômicos, e, é claro,

o próprio Gudin, com Moeda e Crédito.

No campo do ensino as rotas de Bulhões e Gudin confluíram. Ambos fizeram

parte da delegação brasileira enviada à pequena cidade americana de Bretton Woods,

em 1944. E, alguns anos depois, em 1954, ambos ocuparam cargos de alto escalão no

executivo federal. Um como ministro da fazenda (Gudin), outro com diretor da

SUMOC (Superintendência da Moeda e do Crédito do Banco do Brasil)16. Isto sem

falar nas inúmeras vezes que ambos se esbarraram nos corredores dos ministérios e

demais entidades estatais, embora pertencentes a órgãos diferentes.

Na academia as trajetórias de ambos também se encontraram. Ali o saber

verdadeiro, a ciência pura, o economista, podem florescer. Ao mesmo tempo para que

este espaço se construísse foi fundamental a participação de outros personagens,

vinculados aos poderes públicos, como o ministro Capanema. Aliás, eles mesmos,

Gudin e Bulhões, nunca deixaram de exercer suas atividades na esfera pública. Estas,

sem dúvida, foram cruciais para que ambos desenvolvessem prestígio suficiente para

que reivindicassem, e constituíssem, um local a serviço da ciência econômica. Ou

mesmo para que desenvolvessem técnicas e reflexões sobre a economia e a sociedade

brasileira que se tornassem dignas de publicidade. Possuir um alto cargo na esfera

estatal é, neste sentido, um privilégio. Como mostra Loureiro (1997), a carreira de

economista, no Brasil, ao menos em relação àqueles que se tornaram célebres, sempre

esteve associada ao preenchimento por estes de altos cargos nos círculos estatais,

sejam como assessores sejam como dirigentes. O que as trajetórias de Bulhões e

16Fundada em 1945, antecedeu o Banco Central ( criado em 1964) na condução da política monetária

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Gudin mostram é que fizeram parte da vida intelectual e profissional de cada um,

relações com diversas esferas: governos, empresas, universidades, agencias e

entidades internacionais. Cada relação reforçando e alimentando a outra. O nome e o

prestígio foram sendo construídos gradativamente, através de percursos que

espalhavam pelos mais variadas esferas. E isto apesar das idéias e convicções políticas

que cada um advogava.

É como se a história de ambos pudesse ser resumida ao trabalho de um

equilibrista, que se sustenta sobre uma corda com a ajuda de um bastão. Ambos se

diziam liberais convictos, mas sempre estiveram, entre outros lugares, a ocupar cargos

públicos e a trabalhar para o Estado. Ambos eram defensores ardorosos da ciência

econômica como campo do saber distinto e puro, mas não mediram esforços para,

através de outros personagens e instituições, colocar em prática suas idéias, mesmo

porque a economia nunca deixa de ser também aplicada, tal como a medicina, posto

que junto com o diagnóstico receita algum remédio17 (Neiburg: 2007). Emprestaram

seus conhecimentos aos empresários e homens do Estado, e foram também

beneficiados por estes ao longo de suas trajetórias. Isto mostra que faz parte da

constituição de novos campos, da invenção de novos saberes, a busca constante por

diferentes agenciamentos. O movimento de execução de uma teoria pura, ou de uma

visão de mundo especializada, exige a participação de personagens e agencias

diversas, como aquelas presentes nos governos, nas empresas, fora das fronteiras

nacionais. E estas deixam os seus rastros.

17 Como mostra Neiburg, a idéia da teoria econômica com remédio emerge da associação entre problemas econômicos e doenças, como no caso da “doença inflacionária”.

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1.3 Luiz Simões Lopes

Luiz Simões Lopes nasceu no ano de 1903, na cidade de Pelotas, Rio Grande do Sul.

Era filho de tradicional família de políticos e estancieiros gaúchos. Seu avo, João

Simões Lopes Filho, em 1871 foi Presidente da Província do Rio Grande do Sul

(como se chamava o cargo de Governador à época). Seu pai, Ildefonso Simões Lopes,

foi deputado federal pela mesma província entre 1908 e 1908 e entre 1913 e 1919. Foi

também Ministro da Agricultura de 1919 a 1922, durante a presidência de Epitácio

Pessoa. Regressou ao Parlamento como deputado entre 1927- 1930. O tio, Augusto

Simões Lopes, foi deputado constituinte em 1934 e senador pelo Rio Grande entre

1935-37.

Os cargos federais do pai fizeram com que o jovem Simões Lopes passasse

boa parte da infância no Distrito Federal, o que o obrigou a fazer parte dos estudos no

mesmo local. Estudou no Colégio Aldridge (como Bulhões) e no Liceu Francês.

Quando mais velho, ingressou na Escola Agrícola Luiz de Queiroz, em Piracicaba

(estado de São Paulo), onde cursou Agronomia. Finalizou os estudos em Belo

Horizonte (Minas Gerais), formando-se engenheiro agrônomo em 1924. No ano

seguinte iniciou sua carreira no serviço público, sendo chamado para integrar o

Ministério da Agricultura pelo Ministro Miguel Calmon do Pin e Almeida, onde ficou

até 1930.

A partir do fim da década de 20 sua vida, e a de sua família, tornaram-se

bastante tumultuadas. Isto porque a família Lopes, do alto de sua importância política

e econômica, participou de forma ativa dos movimentos que levaram à insurgência e à

Revolução de 1930, responsável pela ascensão do então Governador do Rio Grande

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do Sul Getúlio Vargas à Presidência da República18. Seu pai, além de deputado

federal, foi vice-presidente da Aliança Liberal19 e importante aliado político de

Vargas. Com o fim do movimento revolucionário Simões Lopes foi chamado a

integrar o Gabinete da Presidência da República, como oficial-de-gabinete do

Presidente Getúlio Vargas.

A composição de um novo governo trouxe, aos poucos, grandes modificações

no campo da administração pública. O Estado tornou-se mais centralizado ao mesmo

tempo que deu impulsos à profissionalização da burocracia20. Era necessário dotar à

gestão pública de mais "racionalização". Lopes defendia ardorosamente tais posições

e participou ativamente das transformações.

Um dos mais velhos ideais da República foi a criação de um serviço civil que correspondesse às exigências sempre crescentes da administração e ao progresso a que a outros setores atingira o país. Pode dizer-se que trinta anos de vida republicana transcorreram, neste particular, dentro de clamoroso paradoxo. Enquanto, por um lado, se reconhecia a necessidade de uma reforma e se faziam para consegui-la esforços retóricos, que logo morriam no marasmo irremediável da vida parlamentar, por outro, se agravava o problema, graças a soluções parciais e de emergência (...) Não havia qualquer uniformidade ou a menor intenção de racionalização, sob todos os aspectos, nos quadros do funcionalismo público e na própria estrutura orgânica da administração (Lopes, Luiz Simões. “Uma Entrevista do Presidente do DASP”. In Revista de Administração Pública , Rio de Janeiro 1(3) 1941, pag. 80).

18 Vargas, principal líder do movimento revolucionário e candidato à presidência da república, foi oficialmente derrotado em 1o de março de 1930 por Júlio Prestes. O estopim político do movimento foi a indicação, feita pelo Presidente da República Washington Luís, de Prestes, representante da elite política paulista, como sucessor à presidência. Tal indicação quebrava o pacto de alternância do poder entre paulistas e mineiros. Agora era a hora dos segundos, que após a quebra do acordo, se juntaram aos gaúchos em torno do nome de Vargas. 19 A Aliança Liberal era formada pela elite política de MG, RS, RJ, PB e o Partido Democrático de São Paulo, insatisfeitos com o domínio político do setor cafeeiro paulista. O Programa da Aliança buscava ainda sensibilizar a classe média, através da defesa de reformas econômicas que incentivassem a economia nacional como um todo – e não sé o café -, e da defesa de medidas de proteção aos trabalhadores (direito à aposentadoria, aplicação da lei das férias, regulamentação do trabalho de mulheres e crianças). A Aliança congregava os interesses para além da simples disputa dos interesses políticos regionais. 20 Segundo Lopes, "a meu ver ela [a revolução] trouxe modificações mais profundas do que a Proclamação da República"(Luiz Simões Lopes. Fragmentos de Memória. org Suely Braga da Silva. FGV. RJ, 2006, pag. 73), ou ainda, sobre os desdobramentos da revolução, "foi uma revolução branca no serviço público"(ibid, 91).

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Aqui temos esboçado o diagnóstico. Carecia a administração pública da época

maior "racionalização". Mas não basta um diagnóstico. Ou, melhor dizendo, não

bastou um diagnóstico. Medidas reais seriam necessárias para resolver o problema

apontado21. E Lopes esteve à frente de algumas destas medidas. Em 1936 foi nomeado

presidente da Comissão do Reajustamento. Esta comissão teria como finalidade

elaborar reformas administrativas e econômicas para o Estado brasileiro. Ainda neste

ano foi enviada à Vargas a proposta da Lei do Reajustamento, que tornaria as

propostas medidas práticas (Lembro que Gudin participou de uma outra comissão

também importante para a confecção desta lei). Como nos disse o próprio Lopes:

Afinal a promulgação da lei n 284, de 28 de outubro de 1936, foi o primeiro marco da reorganização da administração pública. A chamada Lei do Reajustamento remodelou por completo a estrutura do serviço civil. Onde havia uma indizível multiplicidade de cargos, de quadros e padrões de vencimentos, instaurou-se o princípio básico do mérito, com a formação de carreiras e a fixação dos vencimentos (ibid, 80)

Um dos objetivos da lei era a reorganização do serviço público federal. Uma

medida importante neste sentido, e contida na Lei de 1936, foi a instituição do CFSPC

(Conselho Federal do Serviço Público Civil). Foram nomeados membros do conselho:

Moacir Ribeiro Briggs (do Ministério das Relações Exteriores), diplomata e bacharel

em direito; Jose Francisco de Matos, bacharel em direito e agente fiscal de imposto de

consumo (Ministério da Fazenda); Eder Yansen de Melo, medico sanitarista

(Ministério da Educação e Saúde Publica); Mario de Bittencourt Sampaio, engenheiro

civil (Ministério da Viação e Obras Publicas); e Luiz Simões Lopes. Eram as

21 Em 1984, em entrevista publicada na Revista de Administração de Empresas, diz Lopes: "A Revolução de 1930 encontrou a administração federal cheia de vícios, resultante do regime do 'pistolão' até então adotado para o provimento dos cargos. As nomeações eram reservadas à clientela política e, na maioria dos casos, não recaía em pessoas devidamente habilitadas ao eficiente exercício da função de Estado. E sem um serviço público eficiente e insuspeito não é possível administrar, consequentemente, bem administrar o país" (Lopes, Luiz Simões Entrevista.. in Revista de Administração de Empresas. 24(3) 1984, pag. 6).

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principais tarefas do Conselho: implantar o sistema de mérito, através da realização de

concursos públicos, elaborar planos de carreira para o funcionalismo e criar

programas de aperfeiçoamento para os funcionários.

Porém, o esforço das esferas governamentais no sentido de dotar à

administração pública de maior "racionalidade", não se restringiu ao CFSPC. Dois

anos depois foi criado o DASP, em lugar do CFSPC. O DASP fez parte de uma série

de medidas que conferiram à União ainda maior centralização (Wahrlich: 1983,

Schwartzman: 1982). Relembro que no ano anterior, 1937, o governo Vargas lançou,

através de um golpe de Estado, o chamado "Estado Novo". Entre as medidas

adotadas, ancoradas em uma nova Constituição, de 1937, estava, por exemplo, a

escolha pelo Presidente da República de interventores para a ocupação dos cargos de

governadores dos estados.

A criação do DASP já era prevista na Constituição de 1937, mas sua

efetivação ocorreu apenas no ano seguinte, em julho de 38. Como consta no artigo 67

desta mesma constituição:

Art.67. Haverá, junto à presidência da Republica, organizado por decreto do Presidente em departamento administrativo, com as seguintes atribuições: a) O estudo pormenorizado das repartições, departamentos e estabelecimentos públicos, com o fim de determinar , o ponto de vista da economia e eficiência, as modificações a serem feitas na organização dos serviços públicos, na distribuição e agrupamento, dotações orçamentárias, condições e processos de trabalho, relações de uns com outros e com o publico. b) Organizar, de acordo com as instruções do presidente da Republica, a proposta orçamentária, a ser enviada por este a Câmara dos Deputados. c) Fiscalizar, por delegação do Presidente da República e na conformidade de suas instruções, a execução orçamentária.

O novo órgão tinha amplos poderes. Desde regular o serviço público até

organizar e fiscalizar o orçamento do governo central (função esta executada

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juntamente com o Ministério da Fazenda). Para chefiar os trabalhos do DASP foi

escolhido o engenheiro agrônomo, e nosso personagem, Luiz Simões Lopes. À nova

concepção de "racionalidade" dos métodos soma-se à de "eficiência". Como escreve

Arizio de Viana (ex-funcionário do DASP e da FGV) em O que é o DASP:

“organismo integralmente dedicado aos ideais de produtividade e racionalização

administrativa, constitui o DASP, na pratica, a maior experiência brasileira de reação

contra a inércia burocrática, a nossa desumana e tradicional paperasserie”22 .

A idéia de que, até então, a administração pública brasileira não era eficiente

ocupou os corações e as mentes de uma série de indivíduos de nossa burocracia, dos

quais Lopes é sem dúvida um personagem de destaque. Tal ideal, em meu

entendimento, pode ser visto tanto como um desdobramento dos ideais cientificistas

aplicados aos ramos da administração e aos negócios do Estado, que ganham força

nesta época, como, ao mesmo tempo, um alimentador importante na consolidação da

"racionalidade" como fundamento dos ideais e comportamentos dos agentes.

O DASP foi, sem dúvida, um capítulo fundamental neste processo. Ele foi,

desde sua criação, o responsável pela elaboração dos concursos públicos e dos planos

de carreira (as promoções), patrocinador do aperfeiçoamento dos funcionários

públicos, inclusive no exterior, alem de responsável pela institucionalização do curso

de administração no país (Wahrlich: 1983). Em declaração feita à Revista do Serviço

Publico, editada pelo DASP, Agamenon Magalhães diz:

O DASP é uma organização que se propõe a fazer no Brasil – país do emprego, da clientela eleitoral, da incompetência, do pistolão, do desperdício burocrático – o impossível. A substituição da velha maquina por uma nova. Uma reforma administrativa radical. A substituição dos processos que vinham de muitas gerações, entranhados nos nossos hábitos e deixando raízes a milhares de metros de profundidade, por outros mais simples. Mais racionais. Mais inteligentes. Mais rápidos e de seguro rendimento. (Magalhães, Agamenon. Declaração à Revista do Serviço Público. Rio de Janeiro, Out, 1940. pág.87)

22 Arízio de Viana. O que é o DASP. Pág.10

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Até 1940, portanto dois anos após a criação efetiva do DASP, o número de

concursados públicos saltou de 140, em 1937, para 17.345. Mas isso não foi tudo.

Funcionários da burocracia estatal foram enviados, através da concessão de bolsas de

estudo, a países estrangeiros. Tal tipo de medida, além de partir da conclusão de que o

Brasil possuía carências no seu nível técnico, reconhecia, em alguns países

estrangeiros, competências a serem aprendidas. Segundo o próprio Lopes, presidente

do Departamento "o DASP envia anualmente, para estágios em repartições e cursos,

em universidades, alguns funcionários ao estrangeiro, principalmente aos Estados

Unidos, onde se acham tão adiantados os estudos e pesquisas da ciência da

administração" (Lopes, Luiz Simões. “Entrevista do Presidente do DASP”. in Revista

de Administração Pública 1(3) 1941, pag.82)

Um dos funcionários enviados aos EUA (à Universidade de Washington) foi

o então servidor do Ministério da Fazenda Octávio Gouvea de Bulhões, no fim da

década de 30. Lopes, aliás, não tinha dúvidas da importância de se recorrer aos países

mais "adiantados" como fontes de conhecimentos. Não só pelo exemplo em si, mas

pelo entendimento de que um certo conjunto de práticas efetuadas nestes ambientes

são necessárias ao desenvolvimento econômico nacional23. E, no caso de Lopes, tais

23 Anos depois escreveu Lopes, em depoimento ao CPDOC: "Nos países ricos, desenvolvidos e poderosos, embora a administração seja sempre muito importante, não tem a mesma importância que tem nos países pobres, nos países em desenvolvimento. Isso porque a atuação privada, a vida empresarial é tão poderosa nos países ricos, que mesmo que o governo seja medíocre, a iniciativa privada, sozinha, é capaz de levar o país para frente, promovendo o desenvolvimento, através do trabalho, de maior produtividade, de melhores salários, enfim, de um melhor padrão de vida. Mas nos países pobres e subdesenvolvidos, onde o subdesenvolvimento nunca é só econômico, mas vem sempre acompanhado de um cortejo de outros males, como o subdesenvolvimento cívico, político e social, o governo tem imensa tarefa, muito mais importante, a realizar" (Lopes, Luiz Simões. Fragmentos de Memória. org, Suely Braga da Silva. FGV. 2006, pag., 107)

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práticas estariam a serviço não apenas da economia nacional, mas a serviço também

das formas de administrar o próprio “Estado”. Assim temos que se o “Estado”,

entendendo este como uma categoria nativa, pode desempenhar um papel importante

na busca e aprimoramento de certos conhecimentos, ele é, também, fruto de

modificações originadas a partir destes conhecimentos.

A reorganização administrativa iniciada sob o imperativo de fatores incontroláveis, que modificaram,, urbi ete orbi, o conceito de Estado e o de suas funções, passara a exigir não apenas um tipo de servidor público recrutado sob novos moldes, mas, ainda, uma capacidade nova para os que já se encontravam a serviço do Governo. Essa capacidade dependia de conhecimentos inexplorados em nosso meio e cuja difusão não poderia ficar a mercê da iniciativa individual, ou da maior ou menor curiosidade intelectual de cada um (Lopes, Luiz Simões. Documentação Administrativa. In Revista do Serviço Público, Rio de Janeiro, 3(3) 1943, pag. 5).

Ocorre que estas relações entre o Estado e o conhecimento são operadas por

aqueles que as praticam: cientistas, economistas, funcionários, políticos... Portanto o

processo é dinâmico; sempre passível de melhoramentos e transformações que

circulam em ambos os sentidos. Gudin e Bulhões se tornaram profissionais e

intelectuais da ciência econômica respeitados, a julgar pelos cargos que ocuparam e

pelas publicações que realizaram. Mas certamente a formação de ambos, em que pese

o curto período em que o segundo esteve nos EUA, foi feita à custa de esforços

pessoais e do dia-a-dia no trabalho. Cresceram numa época em que pouco mais que

isso poderia ser feito.

Mas para que o estado das coisas mudasse era necessário mudar as coisas do

Estado. O DASP de Lopes e suas medidas foram um passo. Outro passo resultou da

presença de Gudin e Bulhões dentro dos círculos estatais. Esses últimos eram ao

mesmo tempo defensores de uma ciência econômica mais acadêmica, com teorias e

espaços próprios, e assessores e ou conselheiros pertencentes à burocracia. E como

parte dos meios burocráticos se movimentou no sentido de performar tais idéias e

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instituições associadas à ciência econômica. Tal situação mostra como o campo

burocrático, através de seus agentes, teve participação fundamental na configuração

de um determinado campo científico, como, aliás, já mostrou Pierre Bourdieu (2001)

a propósito da capacidade do campo burocrático de regular e intervir por sobre os

demais campos.

O material analisado neste capítulo mostra que tal capacidade de regulação e

intervenção possui duas características. Em primeiro lugar, ela deve ser definida como

produto das relações e interações dos agentes que a elas pertencem. Nos casos

mostrados acima, os agentes se tornavam a um só tempo membros tanto da burocracia

quanto de outros campos, no caso o da ciência econômica Em segundo lugar, o

material analisado mostra que as relações entre os diferentes campos é de mão-dupla.

O campo burocrático cumpre função importante de intervenção e regulação dos

demais campos, mas também ele se torna alvo de transformações efetuadas a partir da

emergência de técnicas e idéias provenientes de outros campos, como da própria

ciência econômica.

1.4 - Conclusão

As análises das trajetórias dos três personagens em questão mostram que a

configuração do campo das ciências econômicas, ou seja, a criação de novas

instituições, de um novo campo profissional, etc., exigiu, ao menos no caso da FGV e

do Núcleo, dois movimentos. 1) A emergência de um ideário e conjunto de práticas

próprias a uma determinada ciência, e 2) A participação ativa dos agentes do campo

burocrático como porta-vozes deste ideário e como executores de suas diretrizes.

Neste sentido destaco também o fato dos três indivíduos em questão pertencerem a

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famílias detentoras de capital político, com longa tradição burocrática, inclusive, e

econômico.

Os nomes de Gudin, Bulhões e Lopes estiveram presentes em uma série de

eventos atrelados à configuração do campo das ciências econômicas no Brasil, no

caso dos dois primeiros, e da reforma da burocracia federal, no caso do último. No

entanto, as trajetórias destes três indivíduos não estão desconectadas umas das outras.

Pelo contrário, elas em diversos momentos se encontraram no curso das

transformações que os campos burocráticos e das ciências econômicas sofreram.

Sendo estas transformações, das quais as trajetórias são a lente, a expressão dos

movimentos acima descritos.

A criação da FGV e do seu Núcleo de Economia, como será visto, foram

manifestações, também, deste conjunto de transformações. Elas forneceram as bases,

foram as condições de possibilidade para que outras entidades associadas à ciência

econômica fossem constituídas, novas técnicas fossem inventadas – como os cálculos

dos índices de preços e da Renda Nacional – , para que, enfim, um novo ideário e

conjunto de práticas, calcados na idéia de autonomia científica, se desenvolvessem e

consolidassem

Gudin, Bulhões e Lopes voltarão a se encontrar nas próximas páginas. Mas

ao invés de utilizarmos suas trajetórias como lente principal para enxergar as

transformações a que este trabalho se propõe iluminar, são as trajetórias da FGV e do

seu Núcleo de Economia, e os instrumentos e teorias desenvolvidas pelos seus

economistas, que fornecerão as bases das próximas análises.

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CAPITULO 2 - FGV: A Purificação da Racionalidade

“Assim como a balança de precisão do químico tornou a Química mais exata

que as das outras ciências físicas, do mesmo modo a balança do economista, apesar de grosseira e imperfeita, deu à Economia uma exatidão maior do que a de qualquer

outro ramo da ciência social” (Alfred Marshall, Princípios de

Economia)

A criação da FGV, ocorrida em 1944, foi proposta por Simões Lopes,

presidente, à época, do DASP (ver também, D’Araújo, Maria Celina: 1999). Uma

série de outros eventos – já brevemente assinalados na Introdução e no capítulo 1 –

provenientes de agentes presentes no Estado, ocorreram no sentido de viabilizar a

proposta de Lopes, como o Decreto-Lei presidencial autorizando a fundação da

entidade. Esta série de acontecimentos e relações, com será visto, conecta de forma

íntima a FGV e a burocracia estatal. Ao mesmo tempo, a Fundação se constituiu

legalmente enquanto entidade autônoma, ou seja, de direito privado.

Este tipo de conformação – uma instituição de direito privado criada e

idealizada pelo governo federal – foi possível graças à centralidade que a burocracia

estatal possuía como articuladora e gestora da configuração do campo das ciências

econômicas no Brasil (como já mostrado no capítulo anterior), e à emergência de um

ideário acerca da autonomia científica e da "racionalização do trabalho" por parte de

alguns indivíduos (como os próprios Lopes, Gudin e Bulhões).

O primeiro ponto caracterizou-se pela participação direta que o governo

federal teve na criação e manutenção da FGV. A referida entidade foi concebida

dentro do DASP; foi autorizada através de decreto presidencial; foi mantida

financeiramente pela União. Ao mesmo tempo, ela foi responsável pela construção de

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uma série de instrumentos e dispositivos referentes à constituição de um campo

científico: criou revistas – acadêmicas e informativas –, constituiu laboratórios de

pesquisa e produção de dados – como o próprio Núcleo de Economia –, colaborou na

formação de "especialistas" e "técnicos" em economia, organizou debates e eventos

com a participação de economistas de instituições estrangeiras de prestígio (como da

Universidade de Harvard), desenvolveu técnicas de cálculo para a medição da

inflação e da Renda Nacional. Enfim, foram criados uma série de dispositivos que a

inseriam, a um só tempo, no processo de configuração das ciências econômicas, e no

curso da acumulação de um capital de relações internacionais, tendo com pano de

fundo as relações entre a burocracia estatal e a produção de conhecimento científico.

O objetivo deste capítulo é analisar este conjunto de processos, tendo como fio

condutor, mais uma vez, material empírico baseado nas reflexões e práticas dos

agentes envolvidos na criação da FGV. Trata-se, portanto, de tentar enxergar a

instituição da referida entidade a partir do modo pelos quais categorias como

"público", "privado", "ciência", "Estado" ou "racionalização" operavam de forma

prática, através dos discursos e das ações de certos agentes, na transformação do

universo social que os rodeava.

2.1 – A Continuidade

No dia 4 de julho de 1944, Luiz Simões Lopes, então presidente do DASP, enviou

ofício (número 1796) ao Presidente da República Getúlio Vargas. O documento

dispunha sobre a necessidade de criação de uma entidade que cuidasse da

"racionalização do trabalho", num certo sentido, uma continuação dos serviços já

prestados à administração pública pelo Conselho Federal do Serviço Público Civil

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(CFSPC) e pelo Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP). Segundo o

ofício:

Excelentíssimo Senhor Presidente da República a fase de intensa reorganização do trabalho processada do país no ultimo decênio veio salientar, de uma parte, as grandes e reais possibilidades da gente brasileira na conquista de novos objetivos, de novas forma e de novos métodos de produção; de outra parte, veio evidenciar, no entanto, que essa reorganização, para completo desenvolvimento, como o sentido de coordenação que lhe é indispensável, esta a carecer do estudo, da divulgação e do ensino sistemático dos problemas de administração, nos mais variados níveis e setores de aplicação. É fato incontestável, colido da experiência dos tempos modernos, que a disciplina do trabalho produtivo esta sujeita a princípios racionais, que o homem pode conhecer e aplicar para mais seguras realizações de eficiência e harmonia social: mais é fato, também inegável, que tais princípios, alem de complexos, não admitem formas universais, exigindo, para perfeita aplicação em cada caso, o exame acurado de determinadas condições do meio social (...) Seria injusto desconhecer que já se tem realizado em nosso país com esses altos propósitos e esse sentido, graças a situação direta do Estado, a colaboração, nunca recusada, das grandes empresas de produção e apoio geral do grande público. Os esforços pela racionalização dos serviços públicos; a introdução dos processos de organização menos empíricos, no trabalho em geral; a compreensão dos benefícios da produção organizada, com a conseqüente elevação do padrão de vida do trabalhador, o qual se poderá esperar, por isso mesmo, mais perfeita produção e maior capacidade de consumo; a revisão, enfim, dos objetivos e dos meios de trabalho tanto nos seus aspectos propriamente técnicos quanto nos de sentido social – tudo veio mudar, em poucos anos, a situação da vida brasileira. (...) È notório o esforço de órgãos do estado, e de empreendimentos particulares, no sentido da procura das melhores e mais eficientes soluções para algumas dessas importantes questões; a revisão dos moldes administrativos, a formação e aperfeiçoamento de pessoal, a padronização de material, a orientação e a seleção profissional. Todo esse já notável e patriótico esforço vem sendo empregado, no entanto, em tentativas dispersas que, pela natureza mesma das circunstancias em que se processam, hão de produzir, nalguns pontos, evidente conflito. Mas, ainda que isso não ocorresse, são elas de modo geral, pouco econômicas, quer pela repetição de experiência, nem sempre frutuosas, quer pela manutenção de custosos serviços de estudo, de caráter permanente; quer ainda pela ausência de maiores e naturais entendimentos entre os órgãos a administração publica e de empresa privadas, dos quais a experiência comum, se devidamente documentada e elaborada, poderia fornecer bases para realizações de grande eficiência e de maior segurança nos resultados(...). O mais simples exame da questão leva a concluir pela necessidade de uma organização em que colaborem os órgãos da administração publica, os de caráter autárquico e paraestatal, os governos estaduais e municipais, os estabelecimentos de economia mista e, ainda, as grandes empresas particulares, todos neste momento interessados na

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indagação de novos princípios e na experimentação de novas formas de ação. (...) Assim entendendo, tenho a honra de solicitar de V. Ex. a indispensável autorização ara promover a criação da entidade em apreço (Lopes, Luiz Simões. Ofício 1796. in Relatório de Atividades 1945, Anexo I pag. 1-4)

Luiz Simões Lopes, neste documento, identifica a “racionalização” como

processo vital para as administrações pública e privada nos “tempos modernos”, o

que vai ao encontro do conjunto de idéias mostradas até aqui: um diagnóstico

acompanhado de uma contextualização mais ampla, seja histórica seja geográfica.

Porém reconhece obstáculos ao seu pleno desenvolvimento no Brasil, os quais

decorreriam da “dispersão” de seu emprego, do fato de serem “pouco econômicos”,

repetitivos, custosos e ausentes de “maiores” entendimentos entre os órgãos públicos

e privados. Para Simões Lopes a solução para tais obstáculos seria obtida através da

criação de um organismo que congregasse justamente as entidades publicas e

privadas sob um objetivo comum. Era, portanto, necessário fazer algo mais do que

tinha sido feito até então.

Vargas não ignorou o pedido de seu funcionário. Dez dias após o envio

desse documento (portanto em 14 de julho de 1944) o Presidente da Republica edita o

Decreto-Lei numero 6693 o qual “dispõe sobre a criação de uma entidade que se

ocupará do estudo da organização do trabalho e do preparo de pessoal para as

administrações publicas e privadas”24 (ver Decreto no ANEXO 2 da dissertação).

Além da autorização para que fosse criada uma entidade voltada para o

desenvolvimento de "princípios e métodos da racionalização do trabalho", Vargas

indica o próprio Lopes como "representante" do Governo Federal nos atos de

constituição da entidade. Tal fato chama a atenção, pois evidencia que, apesar de ter

24 Decreto-lei 6693 de 14 de julho de 1944

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sua criação pensada e autorizada por homens do governo federal, a nova entidade

deverá congregar outros entes, públicos e privados, como num grande consórcio.

Lopes, um dos homens fortes do governo de Vargas, seria apenas um "representante",

dentre outros. Mas isso não é tudo. Caberia ao Governo Federal mais um ato, além da

criação legal da entidade proposta por Lopes.

No mesmo dia em que foi publicado o decreto lei que autorizava a criação da

nova instituição, 14 de julho de 1944, outro decreto, de número 6694, elevou a Taxa

de Educação e Saúde (imposto federal da época) de CR$ 0,20 para CR$ 0,40. Este

aumento foi determinado e justificado no artigo 2 do presente decreto:

Art.2º - O Governo Federal contribuirá anualmente com uma quantia

não inferior a 50% da arrecadação da Taxa de educação e saúde para a

entidade a que se refere o Decreto-Lei 6.693 de 14.julho de 1944, e para a

organização que tiver a seu cargo a assistência médico-hospitalar e social

os servidores do Estado25

Em 27 de setembro de 1944, outro decreto, de número 6.908, referente à

“entidade” do decreto de 14 de julho, é publicado. Segundo este último:

Art.1º - Fica aberto ao Departamento Administrativo do Serviço Público o crédito especial de cinco milhões de cruzeiros (CR$ 5.000.000), para atender às despesas (Serviços e Encargos) com a organização, instalação e funcionamento da entidade a que se refere o Decreto-Lei 6.693, de 14 de julho de 1944.

Ou seja, o amparo legal não era suficiente. Era necessário o Governo Federal,

garantir certo provimento financeiro à entidade através de uma doação e do

pagamento de uma subvenção anual. A partir do material empírico até aqui

apresentado, já é possível compreender o quão o órgão recém criado, ao menos na

forma da lei e das primeiras disposições financeiras, é uma criação do Estado. O fato

de sua instituição, ou, talvez ainda mais significativo, a autorização de sua

25 Decreto-Lei 6694 de 14.7.1944

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constituição, advir de Decreto presidencial é um fato extremamente significativo.

Entretanto, não se deve perder de vista que estas disposições legais só foram possíveis

graças às idéias de certos indivíduos – como Lopes, por exemplo – acerca do papel do

“Estado”, de um lado, e da "racionalidade" administrativa baseada na ciência, de

outro. Lembremos a importância que Lopes dá ao Estado para a realização desta

última, do mesmo modo que considera o próprio Estado passível de reforma através

de administrações mais racionais.

Em novembro de 1944, em carta enviada aos “possíveis” doadores

patrimoniais da futura entidade escreveram Manoel Ferreira Guimarães, Arnaldo

Guinle, Herbert Moses, Paulo de Assis Ribeiro e Mario Paulo de Brito, escreveram

(íntegra da carta no anexo 3):

Uma das maiores dificuldades que se apresentam ao nosso administrador, seja na indústria, na lavoura, no comércio ou em serviços públicos, reside na falta de pessoal habilitado para as diversas funções especializadas que assegurem o maior rendimento em qualidade e em quantidade a produção e a circulação da riqueza nacional. Esse é um dos problemas que teremos de resolver a todo custo, pois sua solução depende do êxito de cada uma das iniciativas privadas e do próprio surto progressista que está elevando o Brasil à categoria de país industrial. Como poderemos fundar grandes fábricas e usinas ou desenvolver e modernizar as já existentes, como mecanizar a produção agrícola ou extrativa, como aparelhar as organizações comerciais e os transportes marítimos, fluviais, rodoviários, ferroviários, e aéreos para atender às crescentes necessidades desse novo tipo de economia nacional, como, enfim, dotar a administração pública de serviços que regulem e coordenem todas essas atividades, estimulando-as em vês de entorpecê-las, se nos faltar o elemento humano com o imprescindível domínio da técnica?(...) A criação ou o aumento da riqueza nacional está intimamente ligada a adoção daqueles princípios, mas as iniciativas tomadas até a pouco foram isoladas ou de pequeno vulto e não puderam atender às nossas necessidades. Impunha-se a instituição de uma entidade especial, capaz de conjugar, unificar e orientar os esforços e os interesses públicos e privados. Tal entidade foi concebida pelo Presidente do Departamento Administrativo do Serviço Público, Dr. Luiz Simões Lopes, e a ela o Governo deu forma e força legal.26

26 Carta enviada em novembro de 1944 por Ferreira Guimarães, Arnaldo Guinle, Herbert Moses, Paulo de Assis Ribeiro e Mario Paulo de Brito. Relatório de Atividades de 1945, Anexo VI.

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Esta carta expõe de forma mais incisiva os pontos até aqui discutidos. A

necessidade de técnicos e especialistas associada à eficiência e aumento da riqueza. A

inserção dos esforços feitos no Brasil dentro de um contexto histórico e geográfico

mais amplo. Mas se aqueles aspectos que conformam um certo ideário já tinham

grande acolhida, faltava transformá-los em instituições, instrumentos e tecnologias

decorrentes destas mesmas idéias e a serviço delas.

Até aqui a "entidade" proposta por Lopes existia apenas no papel, sob a forma

de artigos e de dotação orçamentária. Ainda faltava muito a ser feito. A criação de

uma entidade que formasse quadros para a administração pública e privada, alem de

realizar atividades de pesquisa e divulgação na área de organização do trabalho,

encaminhou-se a partir do Decreto presidencial de 14 de julho. Porem, como está

expresso nos artigos 2 e 3 deste mesmo Decreto, deveria o Presidente do DASP, Luiz

Simões Lopes, designar uma Comissão que estudasse “a forma jurídica mais

conveniente à entidade”. Ocorre que no ofício enviado por Simões Lopes a Vargas em

4 de julho de 1944, o presidente do DASP já havia proposto uma forma jurídica,

segundo ele, mais adequada.

A organização de um instituto oficial, por mais bem aparelhado que fosse, à vista mesmo dos problemas que teria de defrontar, não poderia atender às atuais exigências. Uma organização cooperativa entre entidades particulares, com exclusão do Estado, não lograria pelas mesmas razões todos os elementos do bom êxito. A congregação de esforços entre os poderes públicos e entidades particulares deverá ser, portanto, a condição primeira do empreendimento que a organização do trabalho nacional está reclamando. Aceito o princípio, verifica-se que a forma associativa mais adequada é a de entidade privada, que venha a dispor, desde o início, dos recursos que lhe garantam perfeito funcionamento e continuada existência. Os fundos necessários, constituídos por doações dos poderes públicos, de entidades autárquicas e paraestatais, de estabelecimentos de economia mista e de empresas privadas, representarão o mais produtivo emprego de capital, pelos benefícios diretos a colher e, ainda, pelos resultados gerais que, de uma tal organização, hão de vir, em curto prazo. (Lopes, Luiz

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Simões. Ofício 1976. In. Relatório de Atividades de 1945, Anexo I, pag. 1-4)

Este documento, redigido por Luiz Simões Lopes, propõe abertamente, e

mesmo antes do decreto presidencial e da decisão de qualquer grupo ou comissão

encarregados de discutir a forma jurídica mais pertinente, que a entidade a ser criada

seja uma empresa privada, formada a partir de um conglomerado de empresas

públicas, privadas, autarquias e paraestatais. A questão relativa ao financiamento foi

parcialmente resolvida com os decretos seguintes publicados por Vargas que

dispunham sobre a Taxa de Educação e Saúde. Mas no que se refere à forma jurídica,

faltava uma decisão final, embora não se deva menosprezar a opinião de Lopes,

principal articulador dos passos até aqui dados. Assim, a partir do decreto-lei 6.693,

de julho de 1944 (aquele mesmo assinado por Vargas), foi formada uma comissão

encarregada de escolher a melhor forma jurídica para a nova “entidade”. Através da

Portaria 865, de 22 de julho de 1944, emitida pelo Presidente do DASP, Luiz Simões

Lopes, tal Comissão foi formada27.

A comissão concluiu que a forma jurídica mais conveniente seria a de

“Fundação de direito privado com objetivos de direito público”. A nova entidade

seria, assim, independente em relação às instituições oficiais e imune às ingerências

político-partidárias. Ao mesmo tempo garantiria a flexibilidade das empresas

27 Eram membros: Abgar Renault, Arízio de Viana, Benedicto Silva, Carlos Medeiros da Silva Fábio Prado, Francisco Matarazzo Júnior, Horácio Lafer, João Carlos Vital, João Marques Reis, Jorge Kafuri, José Carneiro Felippe, Lino Leal de Sá Pereira, Mário Augusto Teixeira de Freitas, Mário Paulo de Brito, Murilo Braga, Paulo de Assis Ribeiro, Roberto Simonsen, Samuel Ribeiro, Alfredo Nasser, Astério Dardeau Vieira, Carlos Alberto Lúcio Bittencourt, Ewaldo Lodi, Felinto Epitácio Maia, Guilherme Guinle, João Alberto Lins de Barros, João Daudt de Oliveira, Joaquim Rufino Ramos Jr, Jorge Oscar de Mello Flores, Júlio de Barros Barreto, Manuel Bergstrom Lourenço Filho, Mário Bittencourt Sampaio, Moacyr Ribeiro Biggs, Napoleão Alencastro Guimarães, Paulo Lyra Tavares, Rafael da Silva Xavier e Theodoro Arthou.

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privadas, sem no entanto tornar-se adepta do lucro, das vantagens pecuniárias e do

risco, como aliás já defendido por Simões Lopes28.

Uma outra comissão, designada pela Portaria 870, também do DASP, e desta

vez bem menor do que a primeira, foi encarregada de elaborar os Estatutos da

Fundação. Eram membros desta segunda comissão: Carlos Alberto Lúcio Bittencourt,

Frederico Hermann Jr, Paulo de Assis Ribeiro, Felinto Epitácio Maia, Manuel

Bergstrom Lourenço Filho e Abgar Renault. Destaco os seguintes artigos dos

Estatutos:

Título I Da Fundação e seus fins Artigo 1º - A Fundação Getúlio Vargas, instituição de caráter técnico-científico, educativo e filantrópico, é uma pessoa jurídica de direito privado, que se regerá pelos presentes Estatutos e terá sede e foro na Cidade do Rio de Janeiro. Artigo 2º - A Fundação, visando os problemas da organização racional do trabalho, especialmente nos seus aspectos administrativo e social, e a conformidade de seus métodos às condições do meio brasileiro, terá como objetivos: I – promover estudos e pesquisa, nos domínios das atividades públicas ou privadas; II – prover à formação, à especialização e ao aperfeiçoamento de pessoal para empreendimentos públicos e privados; III – constituir-se em centro de documentação para sistematizar e divulgar conhecimentos técnicos; IV – incumbir-se do planejamento e da organização de serviços ou empreendimentos, tomar o encargo de executá-los, ou prestar-lhes a assistência técnica necessária; V – concorrer para melhor compreensão dos problemas de administração, propiciando o seu estudo e debate; VI – promover pesquisas das Ciências Sociais, especialmente na Economia e na Psicologia Aplicada; VII – proporcionar, dentro de suas possibilidades e de seu campo de atividades, assistência educacional gratuita a estudantes carentes de recursos.

Após a leitura do 1º artigo deste Estatuto percebe-se que a comissão designada

por decreto presidencial escolheu a forma jurídica de fundação de direito privado,

28 Segundo nos diz Lopes em livro publicado décadas mais tarde: "Como eu não queria um organismo claramente estatal, dei uma forma dupla a instituição. Criei uma coisa um pouco esquisita: uma fundação que, finalmente, era do governo, mas parecia privada, já que seu órgão supremo era a assembléia geral (...) É a assembléia geral que examina as contas, elege o presidente, o conselho diretor etc." (Lopes, Luíz Simões. Fragmentos de Memória. org Suely Braga da Silva. FGV. 2006, pag. 126).

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como foi proposto por Luiz Simões. Esta mesma comissão foi também a responsável

pela escolha do nome da entidade: Fundação Getúlio Vargas29.

Assim, temos materializada sob a forma de estatuto, a criação de uma entidade

de caráter "técnico-científico" e a serviço da "racionalização do trabalho".Ao lado

destas definições são elaborados uma série de dispositivos mais objetivos acerca das

atribuições da Fundação, como a promoção de pesquisas, a compreensão dos

problemas da administração, a constituição de um centro de documentação, a

formação e especialização profissional, entre outros.

Embora estes dispositivos, neste momento, não fossem ainda efetivos, posto

que suas atividades se desenvolveriam com o passar dos próximos meses e anos, eles

indicavam os rumos que a FGV deveria tomar nos momentos seguintes. E, sob a

promoção de uma entidade de direito privado, colocavam à Fundação em um caminho

que não era apenas o de uma relação íntima com aqueles agentes e entidades

identificados com o Estado e com os círculos burocráticos, mas o da possibilidade

também de construção de um caminho próprio e autônomo, posto que buscava o

progresso "técnico-científico" puro, dissociado de quaisquer vínculos oficiais. As

bases estavam lançadas. Em dezembro deste mesmo ano a FGV foi oficialmente

fundada.

2.2 – O Núcleo de Economia

Embora a idéia da criação da FGV, bem como grande parte de seu financiamento,

fossem provenientes do Governo Federal, este não era o único responsável pela

29 Como também disse Lopes ao mencionar a escolha do nome da Fundação e a escolha de alguns de seus quadros, notadamente liberais, "Convidei, inclusive, para vir para a Fundação um grande número de pessoas que eram antigetulistas, como Eugenio Gudin, como o irmão do Armando Sales, que foi governador de São Paulo e candidato à presidência da República (...) mas todos acharam que era justo dar o nome de Getúlio Vargas à Fundação, porque sem o Dr. Getúlio não haveria a Fundação. No dia de votação para a escolha do nome, não houve nenhum voto contra" (Ibid, 127)

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entidade. De fato contribuíram também uma série de pessoas físicas e jurídicas, de

direito público ou privadas – como o Estado do Ceará, o Instituto Brasileiro do

Açúcar e do Álcool, o Banco do Brasil, pessoas físicas, empresas privadas, outras

entidades públicas. No ato de criação cada qual compareceu, ou se comprometeu a

comparecer num futuro próximo com sua participação na manutenção da entidade.

Em 1944, ano da criação da FGV foram definidos os marcos legais, os

participantes, o modelo de financiamento e o local onde estaria a sede da entidade.

Inicialmente foram adquiridos os imóveis. Um no edifício Darke, na Rua 13 de maio,

no centro do Rio de Janeiro, onde funcionariam os cursos. Os outros três em imóveis,

na Praia de Botafogo (números 184, 186 e, depois, 190, 192), onde até então

funcionava o Colégio Aldrigde30. Nestes últimos ficariam a sede da entidade e os

núcleos de pesquisa.

No ano de 1945 foram criados os primeiros núcleos de pesquisa, subordinados

à Divisão de Estudos e Pesquisas. Em julho iniciaram-se as atividades do Núcleo

Técnico Científico de Geologia e Geografia e do Núcleo Técnico Científico de

Matemática. Em agosto foi criado o Núcleo Técnico Científico de Biologia. Também

em julho daquele ano foi criado o Centro de Inquéritos e Análises, dirigido por

Thomaz Pompeu de Accioly Borges e Jorge Oscar de Melo Flores, também Diretor de

Obras do DASP. Este Centro desdobrava-se em dois setores: Problemas gerais

econômicos, demográficos e sociais, e Serviços públicos concedíveis.

Dando continuidade às justificativas de sua criação, o Relatório de Atividades

da FGV de 1945 informa da seguinte maneira sobre os trabalhos realizados pela FGV

neste ano:

Visando fundamentalmente a fundação como preceitua o Regimento Interno, o conhecimento dos recursos e deficiências do meio brasileiro

30 Lembro que neste colégio estudaram, quando jovens, Lopes e Bulhões, sendo à época, localizado em São Gonçalo, nas cercanias do Rio de Janeiro.

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afim de ser possível a racionalização do trabalho no mais alto sentido , isto é , em seus aspetos (sic) administrativo, social e econômico, e que somente será possível com o preparo acelerado da elite cultural e técnica necessária às entidades públicas e privadas. (Relatório de Atividades 1945, pág. 17)

Apesar das justificativas se referirem a “racionalização do trabalho” no que

concerne os estudos de administração e economia, como definido nos Estatutos, o ano

de 1945 apresenta um quadro de trabalhos em curso que parece diferir destas

justificativas. A existência de Núcleos Científicos de Geologia e Geografia,

Matemática e Biologia comprovam esta “assimetria” entre as atribuições estatutárias e

os trabalhos desenvolvidos pela Fundação. Isso desembocará na primeira crise da

instituição.

Vale ressaltar que a descrição dos primeiros meses de funcionamento da FGV

está baseada nas percepções de alguns de seus funcionários; sendo o principal o

próprio Luis Simões Lopes. Ou seja, a crise da fundação, caracterizada por esta

divergência entre atribuições estatutárias e a prática de seu primeiro ano, emergiu de

uma avaliação interna dos quadros da FGV. O pano de fundo foi a crise política pela

que atravessou o país nesse momento.

Em outubro de 1945 Getúlio Vargas foi deposto da Presidência da República.

Luis Simões Lopes, até então presidente do DASP e principal articulador da criação

da FGV, afastou-se da presidência da Fundação indo para o Sul do Brasil. Com isso a

Direção Executiva da FGV passou a desenvolver os planos de trabalho à revelia da

presidência e da Assembléia Geral (como descreve o Relatório de atividades de

1946). Como agravante o Governo Gaspar Dutra, eleito após a queda de Vargas,

suspendeu, através de Decreto-Lei presidencial publicado em 8 de abril de 1946, a

verba orçamentária destinada à Fundação. Simões Lopes, ainda Presidente da

entidade, regressou do Sul em julho de 1946, dando início a uma disputa interna pelo

controle administrativo. Esta disputa termina em fins de 1946 quando parte dos

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quadros técnicos e administrativos, incluindo o próprio Diretor Executivo, Paulo de

Assis Ribeiro, são demitidos. Simões Lopes, preocupado com o fim da subvenção

paga pelo Governo Federal e conseqüentemente com a própria existência da

Fundação (a subvenção paga pela União era a principal fonte de receitas regulares),

procura o Presidente da República para que a contribuição federal seja retomada, o

que de fato ocorre mediante a publicação de um novo Decreto (Decreto-Lei 9486 de

18 de julho de 1946).

A partir de então os primeiros núcleos criados são extintos, dando lugar a

outros mais identificados com as atribuições estatutárias da Fundação. Um novo plano

de trabalho é desenvolvido, em contraponto ao anterior, como exposto no Relatório de

atividades de 1946:

A criação de uma entidade do tipo da Fundação Getúlio Vargas foi objeto de cogitações, desde 1943, por parte do então Presidente do Departamento Administrativo do Serviço Público. A idéia original nasceu da necessidade de sistematizar e intensificar não só a aplicação dos processos de organização racional de trabalho, mas também a formação, aperfeiçoamento e especialização de pessoal, que vinham sendo desenvolvidos nos serviços públicos e em alguns setores privados, a fim de que o país pudesse acompanhar, eficientemente, o ritmo do progresso contemporâneo. (...) Subsidiariamente, reunir-se-iam elementos documentários e processar-se-iam estudos e pesquisas, com relação a questões específicas dos campos das ciências sociais e da técnica administrativa.(Relatório de Atividades 1946, pag. 32)

Diz ainda o Relatório:

Dentro do espírito do Regimento, ao se elaborar o plano de atividades, não se agiu ‘visando os problemas de organização racional do trabalho, principalmente em seus aspectos administrativo e social’, mas considerou-se de modo independente os quatro campos específicos, de documentação, ensino, pesquisas e organização, desenvolvendo cada um em extensão, sem as restrições impostas pelos objetivos que ditaram a orientação inicial (...) Desse modo, os estudos e pesquisas passaram a abranger as ciências básicas (matemáticas), as ciências da matéria (mecânicas, físicas e químicas), as ciências da vida (biológicas) e as ciências da sociedade (políticas e econômicas), o que revela a intenção de abarcar todos os setores do conhecimento humano, indo além, portanto, da previsão original”.(ibid, pag. 35)

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Paralelamente ao desmonte dos Núcleos constituídos em 1945, foi criado, em

13 de setembro do mesmo ano, o Núcleo de Economia, que teria como atribuição

“atacar, de comêço (sic), os problemas de ‘balança de pagamentos’, ‘índices de

preços’ e ‘renda nacional’” (página 17, Relatório de Atividades 1946). O núcleo foi

composto inicialmente por uma “direção técnica” formada por Eugênio Gudin, então

já professor de economia da Faculdade Nacional de Ciências Econômicas, Jorge

Kafuri, professor da Faculdade Nacional de Engenharia, Jorge Kingston, professor da

Faculdade Nacional de Filosofia e Octávio Gouveia de Bulhões, professor da FNCE.

Assim, a FGV parecia seguir o rumo pretendido por seus idealizadores.

Segundo Lopes aquelas iniciativas tomadas no ano de 1945 não eram adequadas a

uma instituição que pretendia realizar estudos na área da "racionalização do trabalho"

e pesquisas nas ciências sociais e economia, para dar conta do ritmo do "progresso

contemporâneo". Mas as mudanças vieram. Em 1946 o Núcleo de Economia

começava a ser montado nas instalações da Praia de Botafogo, e seus objetivos foram

claramente definidos.

Na sua composição reaparecem os nomes de Gudin e Bulhões, dois dos nossos

personagens do primeiro capítulo. A julgar pela importância de ambos à época, como

economistas e homens da burocracia, suas presenças no Núcleo não são estranhas.

Isto não apenas pelo prestígio de ambos, mas também pelas metas traçadas pelo

Núcleo. Os cálculos de índices de preços, balança de pagamentos e renda nacional,

têm importância não apenas pelo desenvolvimento das pesquisas econômicas em si

mesmas, mas também como instrumentos de políticas econômicas estatais e privadas.

Os dois eram nomes de destaque nos dois setores, embora de formas diferentes.

Os demais nomes do Núcleo eram também provenientes de tradicionais

centros de ensino da Guanabara, sendo, inclusive, alguns deles, professores de

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instituições de prestígio, como Jorge Kingston (da FNCE), além é claro, de Gudin e

Bulhões.

A divulgação das séries estatísticas e trabalhos teóricos, relacionados à

economia, recolhidos e ou produzidos pela Fundação tornou-se possível a partir de

1947. Isto porque neste mesmo ano foram publicadas pela primeira vez a Revista

Brasileira de Economia (RBE) e a Revista Conjuntura Econômica (RCE) – ambas

existem até hoje.

A Revista Brasileira de Economia teve seu primeiro número posto em

circulação em setembro. Sua publicação seria trimestral e, além de servir à divulgação

das estatísticas referentes ao cálculo da Renda Nacional e do Balanço de Pagamentos,

seria, também, uma revista de caráter acadêmico. Nela os integrantes do Núcleo de

Economia, ou expositores convidados por este, publicariam suas pesquisas e

reflexões, sempre relacionadas à economia. A RBE, editada pela FGV, tinha como

diretor Arízio de Vianna e como “diretores técnicos” os membros do Núcleo Gudin,

Kafuri, Kingston e Bulhões.

O primeiro número contém uma apresentação assinada por Luiz Simões

Lopes, presidente da FGV. Segundo esta:

A Revista Brasileira de Economia vem preencher um lugar ainda vago no grupo das publicações nacionais sobre assuntos econômicos. Ela visa, preponderantemente, o estudo desses assuntos sob seus aspectos científico, teórico e aplicado.(...) Como órgão exclusivamente a serviço das pesquisas, da cátedra e do debate objetivo e imparcial, seu programa é isento de quaisquer influências doutrinárias ou políticas.

O objetivo desta REVISTA ajusta-se, portanto, perfeitamente, ao de uma instituição devotada ao desenvolvimento e à aplicação da ciência, em benefício da cultura e do progresso da Nação, como é a Fundação Getúlio Vargas, que por este motivo, resolveu assumir o encargo de editá-la, no propósito de assim contribuir para a divulgação de trabalhos que, por sua natureza e autoria, estejam em condições de corresponder à expectativa dos que se dedicam ao estudo dos problemas econômicos ("Apresentação", Revista Brasileira de Economia, Rio de Janeiro 1(1), set, 1947).

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Neste primeiro trecho da “apresentação” da RBE, se percebe a preocupação

de Simões Lopes, representante máximo dos ideais da Fundação, com a execução,

pela FGV, de uma ciência pura, sem “influências doutrinárias ou políticas” e, através

da pesquisa e da técnica científicas ajudar no "progresso da nação". A RBE seria o

modo de divulgação e publicização de um meio definido por práticas e idéias bastante

precisas, e como já frisamos "moderno" e "contemporâneo", a pesquisa, a técnica, a

ciência. A revista é dividida em artigos de cunho acadêmico, cada qual assinado por

um ou mais autores. Ao final de cada artigo há dois resumos, um em inglês outro em

francês. E, no fim de cada número, uma série de resenhas bibliográficas sobre livros

de economia de autores recém publicados, inclusive daqueles que faziam parte da

FGV, como já mostrado nos casos de Gudin e Bulhões. Nos dois últimos parágrafos

da “apresentação” escreve Simões Lopes:

Confiada à superior orientação desse Núcleo de Economia, composto de conspícuos mestres e especialistas, aos quais já deve a cultura econômica do país tão assinalados serviços, a REVISTA BRASILEIRA DE ECONOMIA divulgará os resultados, provisórios ou definitivos, dos trabalhos e seminários que ali e naquela Faculdade se realizam, bem como colaborações, de igual valor, originárias de diferentes autores ou centros de estudos, sob a forma de artigos, monografias, conferências, comentários, comunicados, observações e resenhas bibliográficas.

Sempre que possível, os principais assuntos serão acompanhados dos respectivos resumos em idiomas estrangeiros, afim de facilitar um desejado e, para nós, proveitoso intercâmbio intelectual com autores e órgãos congêneres de outros países ("Apresentação", in Revista Brasileira de Economia, Rio de Janeiro1(1), set, 1947).

Nestes dois últimos parágrafos Lopes salienta a importância de o Núcleo de

Economia ser composto por “especialistas”, ou seja, profissionais e intelectuais

identificados com o campo da economia. Vale relembrar que a “direção técnica” era

inteiramente formada por professores universitários. E, mais uma vez, observa-se a

preocupação com um certo contexto internacional, aliás praticamente onipresente nas

descrições e exposições até aqui apresentadas. Era fundamental evidenciar o caráter

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cosmopolita e universal do conjunto de idéias e práticas defendidas e colocadas em

ação.

Como exemplo do que naquele momento se apresentava, transcrevo o título

dos artigos e os autores dos dois primeiros números de RBE: “A Política Monetária

para 1947”, de Octávio Gouveia de Bulhões e Jorge Kingston; “Taxa Cambial”, de

Jorge Kafuri; “A distribuição da população do Brasil, segundo ramos de atividade”,

de Giorgio Mortara. No segundo número, de dezembro deste mesmo ano, são

publicados quatro artigos, sendo dois de autores estrangeiros que estiveram na FGV

em 1947: “Haverá depressão nos Estados Unidos?” de Gottfried Haberler, professor

de Harvard; e “Karl Marx", de Daniel Villey, professor da Universidade de Poitier

(França).

Em julho de 1947, portanto ainda no mesmo ano da primeira publicação da

RBE, a FGV criou o Centro de Análise da Conjuntura Econômica (CACE),

subordinado ao Núcleo. A direção do Centro foi entregue a Richard Lewinshon.

Segundo consta no Relatório de Atividades de 1947 as atribuições deste centro eram:

O estudo sistemático dos fatos econômicos nacionais e estrangeiros que sobre eles tiveram repercussão, de forma a conhecer a interrelação dos elementos fundamentais da conjuntura econômica do país, bem como os índices das tendências de variação desta última; Divulgar, mediante a publicação de um boletim periódico de intervalo tão curto quanto possível, os resultados básicos de seus estudos, que interessem à estabilidade e ao desenvolvimento dos negócios públicos e privados do país. Subsidiariamente, proceder a estudos conjunturais, de caráter restrito, referente aos setores econômicos nacionais mais importantes. (Relatório de Atividades 1947, pág. 27)

Segundo deixam transparecer os documentos, a implantação de um centro de

análise de "conjuntura" dependia da existência de dados numéricos sobre a situação

da economia do país. O mesmo vale para pesquisas sobre as "variações" apresentadas

em séries estatísticas. O CACE era responsável pela organização e análise de números

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produzidos por institutos oficiais – como o IBGE e o BB – e pela organização e

análise e dos números produzidos pela própria FGV (renda nacional, índices de

preços, balanço de pagamentos). E é juntamente com a existência destes que a análise

da "conjuntura", de uma realidade econômica objetiva, recheada de dados e fatos

classificados como econômicos, torna-se possível.

O CACE seria também responsável pela publicação de uma revista mensal que

apresentasse os dados por ele organizado e analisado. Assim foi publicado, também

em 1947, o primeiro número da Revista Conjuntura Econômica. A tiragem em

novembro foi de 7.000 exemplares; em dezembro, 12.000 exemplares. Este primeiro

número também inclui uma “apresentação”, desta vez assinada por Eugênio Gudin,

do Núcleo de Economia:

As incertezas do mundo de após-guerra tornam mais necessária do que nunca a observação contínua e vigilante da conjuntura econômica nacional e internacional. Vários países dispõem de há muito, para esse fim, de institutos especializados, com o objetivo, análogo dos observatórios meteorológicos, de levantar dados, analisá-los e oferecer a publicidade, periodicamente e a curtos intervalos, indicações do barômetro econômico. Nesse sentido a Fundação Getúlio Vargas, cujo lema é servir, organizou um Centro de Análise da Conjuntura Econômica, sob a orientação de seu Núcleo de Economia e dirigido por competente economista, o Dr. Rer. Pol. Richard Lewinshon.

Com a cooperação de vários departamentos públicos e de organizações particulares, pode, agora, aquele Centro, depois de árduos trabalhos preparatórios, iniciar a publicação deste Boletim Mensal, destinado a divulgar, sob forma condensada e a todos accessível, os principais índices da produção, do comércio, das finanças, do movimento bancário, etc., acompanhados de indispensáveis comentários e interpretações. Os mercados nacionais e internacionais de matérias primas, o mercado de títulos, a evolução dos preços e dos salários serão objeto de sua especial atenção. Breve noticiário acompanhará as indicações estatísticas. Uma seção tratará, regularmente, da conjuntura econômica mundial. Alguns estudos especiais, sobre problemas da maior atualidade econômica, completarão o conjunto.

Contém este primeiro número, além de índice geral de negócios, os índices da ‘produção industrial’, da ‘edificação’, do ‘movimento de mercadorias’, do ‘movimento financeiro’ e dos ‘preços e salários’. Esses elementos apresentam-se desdobrados nos vinte e quatro itens que figuram no quadro ÌNDICES ECONÔMICOS, a pg. 6 do Boletim. Integram, ainda, o presente número, os seguintes estudos: ‘A concentração bancária no Brasil’ e ‘Emissões de capital no período 1942-1947’.

A finalidade deste Boletim é essencialmente prática, porque ele pretende, apenas, oferecer aos interessados informações imediatas, gerais e

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sucintas sobre a conjuntura econômica. Para a divulgação de estudos científicos, no campo econômico, a Fundação Getúlio Vargas já lançou, em setembro último, um novo órgão, a ‘Revista Brasileira de Economia’, editada, trimestralmente, sob a orientação do ‘Núcleo de Economia’. Ao iniciar a publicação do Boletim, a Fundação espera merecer favorável acolhida dos vastos círculos a que ele se destina e receberá de bom grado qualquer sugestão tendente ao aperfeiçoamento deste trabalho, cujo único fim é o de tornar-se um instrumento útil à compreensão da situação econômica.”("Apresentação", in Revista Conjuntura Econômica, Rio de Janeiro 1(1) 1947)

Nesta “apresentação”, contida no primeiro número da Revista Conjuntura

Econômica, Gudin afirma a importância de se colher e analisar dados sobre a

“conjuntura econômica. Tanto, lembra ele, que diversos países já o fazem. E que,

portanto, a FGV estaria prestando um grande papel ao Brasil. Posto que o trabalho,

seja de organização e publicação dos números, seja de sua análise, eram inéditos no

país. Um dado relevante, e até aqui apenas tangenciado é o peso atribuído às

"incertezas do pós-guerra". Se podemos tirar alguma conclusão a respeito das

influencias da guerra – e dos períodos de crise que a precederam –, esta sem dúvida

diz respeito à sua contribuição para a reconfiguração das trocas econômicas

internacionais e para as instituições que as geriam. E logo, conseqüentemente, para a

configuração do campo das ciências econômicas no Brasil. Em primeiro lugar, estas

conseqüências tornaram possível que uma geração de profissionais e intelectuais

circulassem por redes acadêmicas e burocráticas internacionais, consideradas por eles

mais "avançadas". Lembremos que Bulhões e Gudin estiveram em Bretton Woods, e

após o evento, se encontraram com economistas americanos em universidades de

grande prestígio. Em segundo lugar, e como nuançado pelo próprio Gudin, a guerra e

o pós-guerra – e acrescentaria as crises econômicas que a precederam – tornaram

necessários para estes indivíduos esforços no sentido de produzir dados e

"interpretações" fiéis à realidade econômica. Segundo eles, precisava-se de uma

ciência econômica mais adequada à nova “realidade econômica”

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Para tanto, a comparação entre os institutos responsáveis pela obtenção,

análise e divulgação destes dados e observatórios metereológicos é sintomática. A

“economia” corresponderia a “dados” não muito diferentes daqueles observados pelas

ciências da natureza. Mas, um dado interessante é que não se tratam apenas de

analogias, mas também de interferências metodológicas e teóricas. Porter (1986)

mostrou como os desenvolvimentos de cálculos ocorridos ainda no século XIX na

física e na astronomia - teoria dos erros e da probabilidade – foram fundamentais para

a configuração da moderna estatística e do cálculo de agregados. É a ciência a serviço

da economia, da mesma forma que a ciência serve às previsões do tempo e aos

cálculos astronômicos.

No ano de 1948 o Núcleo de Economia teve sua estrutura modificada e

ampliada, sendo seus membros classificados como “permanentes” ou

“colaboradores”. Participavam do quadro “permanente”: Eugênio Gudin, também

chefe do Núcleo, Octávio Gouveia de Bulhões, Jorge Kingston, Jorge Kafuri, Luiz

Dodsworth Martins, Richard Lewinsohn, Eduardo Lopes Rodrigues e José Nunes

Guimarães. Do quadro “colaborador” participavam: Daniel Villey, da FNCE, Antonio

Dias Leite, da FNE, Rafael da Silva Xavier, do Ministério da Agricultura, Antonio

Teixeira de Freitas, do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística),

Raymundo Paes Barreto, do IBGE, João de Mesquita Lara, também do IBGE,

Guilherme Augusto Pégurier, do Banco do Brasil e Américo Barbosa de Oliveira, do

Conselho Nacional de Águas e Energia Elétrica. Como se vê, o incremento foi

substancial. Ao lado dos professores universitários (dos quais alguns, como Bulhões,

também eram funcionários do Estado) foram agregados "técnicos" que trabalhavam

diretamente em entidades estatais, o que facilitou o acesso e análise dos números

nestes locais produzidos.

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As publicações também continuaram – como dissemos ambas as revistas

existem até os dias de hoje – e o seu sucesso foi objeto de reflexão por parte do

Núcleo no Relatório de Atividade de 1948.

O maior sucesso nas funções de divulgação residiu na publicação de ‘Conjuntura Econômica’ o boletim já famoso da Fundação. A circulação de ‘Conjuntura Econômica’ iniciada em novembro de 1947, hoje se estende a todos os continentes, elevando-se a cerca de 750 as remessas mensais para o exterior numa tiragem de 6000 exemplares ( Relatório de Atividades 1948, Anexo XIII, pg.12)

e...

Este boletim mensal foi publicado com toda regularidade dentro do esquema já referido. Estabeleceram-se correspondentes em Paris, Londres, Amsterdam e Zurique e foi tomado contacto, através de visitas pessoais e por correspondência com os principais institutos de conjuntura no estrangeiro da ONU, do Fundo Monetário Internacional e do Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento. Tem sido alentadora a repercussão do boletim em apreço na imprensa e nas revistas especializadas, no Senado e na Câmara, onde inúmeros oradores o citaram expressamente. (ibid, Anexo XIII, pag. 85)

Os dados de fato são relevantes. A revista, com um ano de circulação tornara-

se referencia sobre a economia brasileira tanto no país quanto no exterior. Embora o

relatório não apresente números ou fatos mais relevantes a este respeito, citá-lo é

digno de nota, ao menos no que se refere a uma possível legitimidade e acolhida

internacional.

O trabalho do CACE, para além da publicação dos periódicos e organização e

análise de números, também aumentou. Este passou a atuar diretamente junto às

entidades oficiais.

Funcionou o CACE neste seu primeiro ano de existência, numa base relativamente precária dada a deficiência de documentação econômica existente entre nós. Mas, de uma maneira geral temos encontrado no IBGE, no Serviço de Estatística Econômica e Financeira do Ministério da Fazenda, no S.E.P.T do Ministério do Trabalho, no Departamento de Estatística e Estudos Econômicos e nas diversas carteiras do Banco do Brasil, nas autarquias econômicas federais e institutos de previdência social a máxima compreensão para com os nossos trabalhos. Diversas repartições públicas, por sugestão nossa, ampliaram ou modificaram suas estatísticas. Em suma, a colaboração com as autoridades públicas bem como as grandes organizações privadas (Associações Comerciais,

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Federação das Indústrias de São Paulo, etc.) foi das mais satisfatórias, sem entravar nossa plena independência. Certo número de grandes empresas privadas nos tem igualmente fornecido, no limite das possibilidades, informações, de forma que nossa documentação está consideravelmente acrescida em vários setores. Desta maneira, encontramo-nos aparelhados para responder, como de fato temos respondido, a numerosas questões que nos foram dirigidas pelas autoridades públicas, por organizações particulares e sobretudo pelos leitores de CONJUNTURA ECONÔMICA (...) É de esperar que dentro de um ano o CACE tenha constituído um centro de documentação dos mais completos do país no que diz respeito aos fatos econômicos contemporâneos. (ibid, Anexo XIII, pag. 75)

O CACE não só ampliou seu acesso aos dados, com possibilidade de constituir

um "centro de documentação dos mais completos do país no que diz respeito aos fatos

econômicos contemporâneos", como também instruiu os demais centros de produção

de números que se modificassem, no sentido do aumento de estatísticas, como no da

mudança das metodologias de cálculo de números-índice.

Em 1951 uma alteração significativa foi feita na estrutura de pesquisa da

Fundação. O Núcleo de Economia foi transformado no Instituto Brasileiro de

Economia (IBRE), organismo responsável, a partir de então, pelas pesquisas na área

de economia – antes a cargo do próprio Núcleo, do CACE, da Equipe de Estudos da

Renda Nacional e Centro de Estudos Sociais – empenhadas pela FGV.

A Fundação Getúlio Vargas, dando prosseguimento, em 1951, aos seus planos de trabalho, empenhou-se, principalmente, em promover a ampliação de alguns órgãos e fusão de outros, de modo a assegurar-lhes maior eficiência na consecução das respectivas finalidades.(...) Os trabalhos orientados pelo antigo Núcleo de Economia obtiveram tal repercussão que se tornou necessário cogitar de uma organização mais ampla, dotada de pessoal e material suficientes, para atender a novos e importantes encargos no campo das pesquisas sobre economia nacional e suas relações internacionais. Foi criado, assim, o Instituto Brasileiro de Economia, que será o órgão específico para os estudos e investigações compreendidos nesse setor de ação da FGV(Relatório de Atividades 1951, pág.1)

A antiga estrutura, dividida em quadros “permanentes” e “colaboradores” foi

também modificada. Todos, agora, fariam parte de uma equipe permanente.

Alexandre Kafka foi nomeado Diretor de Pesquisas. Os técnicos estrangeiros Pierre

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Van der Meiren e Gustaaf Frist Loeb ingressam no IBRE também neste ano. Em 1949

foram também incorporados José Nunes Guimarães, da FNCE, e Leon Burquet,

também da FNCE, em lugar de Daniel Villey. Jorge Kingston assumiu a direção dos

estudos de Estatística e Econometria. Eduardo Lopes Rodrigues ficou a cargo da

direção dos Estudos Fiscais. A Comissão Diretora do recém criado Instituto foi

composta por: Eugênio Gudin, Presidente, Otávio Bulhões, Vice-Presidente, Roberto

Campos e Jorge Kingston, como diretores e Alexandre Kafka, secretário.

O IBRE passa a compreender cinco “núcleos”. O Centro de Estudos Fiscais, o

Serviço de Estatística e Econometria, responsável pelo cálculo do índice de preços, a

Equipe de Estudos da Renda Nacional, o Centro de Análise da Conjuntura Econômica

(CACE) e o Centro de Estudos Sociais. Cada qual responsável por uma determinada

área de análise econômica e produção de números.

2.3 – A FGV e a FNCE

Em 1944 foi criada a FGV. Dois anos depois foi criada a FNCE (Faculdade Nacional

de Ciências Econômicas, da Universidade do Brasil, atual UFRJ). Entre ambas havia

algo em comum: o compartilhamento de profissionais (ver também, Motta: 1994).

Bulhões e Gudin, para citar dois de nossos personagens principais, eram tanto

professores da Faculdade quanto funcionários da FGV, além, é claro, das demais

funções que exerciam na iniciativa privada e no Estado.

Em 2 de setembro foi aprovado em reunião ordinária do Conselho Diretor da

FGV acordo entre a Fundação e a Faculdade Nacional de Ciências Econômicas

(FNCE). Segundo consta em ata (15ª sessão, 2/09/1946) Eugênio Gudin salientou que

“não há troca de favores e sim uma conjugação de esforços para o bem público”. No

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dia 9 de setembro Simões Lopes envia carta a Themístocles Brandão Cavalcanti,

diretor da FNCE, comunicando a decisão do Conselho Diretor:

A Fundação Suprirá à Faculdade, em suas propriedades situadas à Praia de Botafogo, 192, 5 salas para ensino (cursos e seminários), e 4 salas para administração (diretoria, gabinete de professores, secretaria e biblioteca).

Simões Lopes termina a carta com os dizeres:

Faço os melhores votos para que da cooperação de ambas as entidades, resultem as maiores vantagens para o ensino e a pesquisa de nosso país, no setor de economia (Relatório de Atividades 1946)

Alem de compartilhar o mesmo espaço físico, as duas entidades

compartilhariam, também, recursos financeiros. Em 1947 teve continuidade o

convênio entre a Fundação e a FNCE, firmado no ano anterior, e que cedia à

Faculdade instalações físicas. Um crédito, anual, pago pela FGV, que no presente ano

foi fixado em Cr$ 750.000,00, foi aberto à Faculdade. Segundo o Relatório de

atividades de 1947 este crédito se destinaria a contrato de professores no estrangeiro,

aumento de vencimento dos atuais professores, cursos de extensão da Faculdade e

pagamentos de bolsas de estudos aos alunos. Em outras palavras, FGV – uma

entidade classificada por seus membros como privada – e a FNCE – entidade

pertencente à Universidade do Brasil – compartilhavam o quadro técnico, o espaço

físico e recursos (relembro que a FGV recebia recursos provenientes da Taxa de

Educação e Saúde). Somada às trajetórias profissionais de seus membros, esta relação

intima entre diferentes instituições ratifica a extrema fluidez das fronteiras entre o que

caracterizaria espaços estatais e espaços externos a este.

Nossos personagens, ao longo de suas trajetórias prestaram serviços à

burocracia e às empresas privadas. A FGV era uma entidade de direito privada

mantida em grande parte por recursos públicos, e com amplas relações com diversas

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entidades estatais. No período analisado a participação financeira do Governo Federal

através da subvenção paga à FGV foi de:

Ano 1946 1949 1951 Receita 18.000.000,00 25.294.582,50 27.122.198,40 Sub. Fed 15.000.000,00 83,3% 18.750.000,00 74,1% 21.500.000,00 79,3%

(em cruzeiros, fonte: Relatórios de Atividade 46/49/51)

Todos estes elementos evidenciam o quanto agentes e entidades reconhecidos

como pertencentes ao Estado e à FGV estavam próximos e se interpenetravam.

Apesar dos marcos jurídicos conferirem estatutos rígidos, para além de tais marcos, as

relações entre os indivíduos, as relações financeiras, o ideário compartilhado, as

relações institucionais, conferem às fronteiras entre o que é público e o que é privado,

o que é considerado puramente científico e o que é político, bastante fluidez. Neste

sentido, as relações entre a FNCE e a FGV são paradigmáticas. Ambas funcionavam

nas mesmas instalações; muitos de seus professores eram também funcionários da

Fundação; elas compartilhavam recursos; alunos da FNCE recebiam bolsas da FGV;

cursos de extensão da Faculdade foram ministrados na FGV.31 Sem dúvida, em

virtude desta série de fatos, fica no mínimo difícil perceber onde começa uma

entidade e onde termina a outra.

Não apresento, a partir de tal situação, nenhuma forma de crítica a estas

relações. Ou mesmo qualquer esboço teórico que procure se aproximar de uma

sociologia formalista e moralista, que denuncia relações escusas entre público e

privado, que diagnostica os males do Brasil, a crise brasileira. Muito menos que

31 O programa do curso foi definido da seguinte forma: 1º período – Matemática aplicada à economia, História Econômica do Brasil e Economia Rural - , 2º período – Economia Matemática, Geografia Econômica do Brasil e Administração de Serviços de Utilidade Pública

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receite remédios. Trata-se, apenas, da análise antropológica e histórica à luz do

material empírico. Ela mostra que categorias como “público” e “privado” são

categorias práticas, utilizadas pelos agentes na descrição e intervenção sobre o

universo social que os cercam.

Assim, pode-se dizer que a FGV constituiu sua autonomia a partir de uma

relação de dependência com respeito aos agentes e dispositivos pertencentes aos

círculos burocráticos estatais. Autônoma, pois, é parte de um processo de purificação

(Latour: 1991), isto é separação, demarcação de limites, efetuado através da

reconfiguração da ciência econômica32. E dependente porque para que este processo

ocorresse foram necessárias a ativação e conexão de relações que extrapolavam as

fronteiras da FGV e do conjunto de idéias e práticas associados à "ciência pura". A

autonomia (Bourdieu & Wacquant: 1992) – ou seja, a constituição institucional de

uma ciência específica – observada no ideário, nas práticas, e nas tecnologias criadas

(os inéditos cálculos feitos pela FGV), e nas disposições institucionais, dependeu da

participação daquelas entidades, agentes e práticas, reconhecidas como externas ao

espaço da ciência econômica que se configurava, a própria FGV e o Núcleo de

Economia.

Ou seja, as autonomias se tornam possíveis porque aqueles que se

autonomizam – o campo cientifico e o campo burocrático – estão, ao mesmo tempo,

intimamente relacionados. Rita Loureiro sustenta, também, tal ponto, no entanto nos

diz que a autonomia seria "resultante de relações concretas entre o Estado e a

sociedade" (Loureiro: 1997, 11). Mas, pergunto: esta divisão entre Estado e sociedade

32 Lopes, em entrevista, salienta a relação entre a criação da FGV e a constituição da ciência econômica, vista à época por ele como incipiente. "Comecei então a imaginar a criação de uma entidade destinada a melhorar o nível intelectual dos brasileiros no campo das ciências sociais, com preponderância para a administração, pública e privada, e para outra coisa que está muito ligada à administração, e que muito era muito necessária, porque na época praticamente não existia no Brasil: a economia"(Lopes, Luís Simões. Fragmentos de Memória. org Suely Braga da Silva. FGV. 2006, pag. 122)

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já não seria fruto de uma purificação efetuada por diversos agentes, incluídos aí os

cientistas-economistas?

Assim, ao invés de tomar como ponto de partida oposições entre "Estado" e

"Sociedade", deve-se, em primeiro lugar, anunciá-las enquanto categorias opostas

segundo uma determinada forma de concepção do mundo de determinados agentes,

em que está em jogo a criação de uma nova ciência e de novos instrumentos de

conhecimento da “sociedade”. Elas se tornam, então, categorias analíticas na medida

em que são consideradas parte da compreensão proposta a partir do ponto de vista

destes determinados agentes. Ou seja, as categorias são sempre práticas. A

configuração de um campo – e as categorias que daí emergem – está, portanto,

relacionada a determinados pontos de vista desenvolvidos em um determinado

momento histórico. Não é algo externo às relações e às visões de mundo, um dado

concreto e objetivo de uma certa realidade33.

Não se trata, portanto, de dizer que tais diferenciações do tipo Estado /

sociedade, ciência / burocracia não existem, sendo, no máximo, reduzidas a meras

representações, mas que elas mesmas existem enquanto ativações do trabalho

purificador sob a forma de categorias práticas, se objetivando através das teorias e

das instituições, sempre a partir de determinados pontos de vista.

Neiburg e Plotkin (2004), afirmam em Intelectuales y Expertos, que

categorias analíticas como “campo” e “autonomia”, são na verdade categorias

práticas, que reproduzem os valores dos agentes estudados. De fato, tal questão é

33 Neste sentido, Skocpol (1996) nos mostra que as modernas políticas sociais, nascidas na Europa e nos EUA durante o século XIX, mais do que frutos apenas da reflexão e atuação dos Estados, foram desenvolvidas por comunidades de cientistas distribuídas ao longo de todo o espaço social em relação uns com os outros e com as burocracias. Alem do que, tais relações foram também as possibilitadoras e legitimadores da constituição e emergência das próprias ciências .

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perceptível , e este trabalho em certa medida ratifica tal afirmação. Se por um lado, a

utilização de conceitos como campo e autonomia – e acrescentaria eu outras

categorias correlatas Estado, ciência, economia, puro/pureza, etc.. – reproduz certos

valores, por outro a identificação da emergência destas categorias a processos

históricos e dinâmicos de purificação e inter-relação nos permite relativizá-los. Não

para negar suas existências, mas para enunciá-los enquanto processos e produtos de

relações sempre mais abrangentes, revelados pelos agentes que perseguimos ao curso

de uma pesquisa. Afinal, se um cientista diz estar fazendo ciência, devemos levá-lo a

sério, mas também, ao percorrer a rede na qual este se insere, iremos perceber que ele

não faz apenas ciência, ou que, talvez, a ciência e a atividade científica não se

realizam apenas através daquelas práticas reconhecidas como científicas.

2.4 – Conclusão: A Controvérsia

Cabe agora, por fim, mostrar como a construção de certas categorias sociais e

seus reflexos institucionais são também objetos de disputa, no curso do processo de

configuração dos campos científico e burocrático. Ou seja, como no curso da criação

da FGV, houve momentos em que o estatuto jurídico desta foi relativizado – ou

afirmado – pelos agentes imbricados na sua constituição. Dito de outra forma: as

relações contiguas entre a Fundação e a burocracia estatal – este espaço fluído e de

fronteiras mal definidas – foi também objeto de reflexão e debate nos primeiros anos

de funcionamento da FGV.

Nossa controvérsia tem início em 29 de abril de 1950, Nesta data, a Fundação

recebeu uma carta do Tribunal de Contas da União, assinada pelo ministro Joaquim

Henrique Coutinho, dispondo sobre a prestação de contas da entidade.

Exmo. Sr. Administrador da Fundação Getúlio Vargas

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Comunico a V. Exa haver este Tribunal resolvido, em sessão de 18 de abril corrente, que essa Fundação é uma entidade autárquica, nos termos do art. 139 da Lei no 830, de 23 de setembro de 1949, estando V. Exa sujeito a prestar contas, a partir da data da vigência daquela Lei, as quais, de acordo com a mesma decisão, devem dar entrada neste Tribunal, dentro de sessenta (60) dias a contar do recebimento do presente ofício. Apresento a V.Exa os protestos de minha elevada estima e distinta consideração.( Relatório de Atividades 1950, pág 169)

Como foi mostrado no início deste trabalho, a FGV foi concebida com

entidade de direito privado. E, apesar de ter o Governo Federal, e outros governos

estaduais e municipais, como membros da Assembléia Geral, este participava apenas

como mais um “sócio”. A FGV estava, portanto, livre da gerência direta do poder

executivo ou de qualquer poder estatal. Assim sendo, causa estranhamento o fato de

que o Tribunal de Contas, órgão responsável pela análise da prestação de contas de

entes públicos federais ou geridos com recursos federais, tenha determinado que a

FGV, concebida como de direito privado, prestasse contas aos seus ministros.

A presidência da FGV explicitou este estranhamento em carta enviada ao

Tribunal de Contas em 14 de junho de 1950, assinada por Luiz Simões Lopes,

presidente da Fundação.

Tenho a honra de acusar o recebimento do ofício no 504, de 29 de abril próximo passado, em que V.Exa me comunica haver esse Egrégio Tribunal resolvido, em sessão de 18 do mesmo mês, estar esta entidade sujeita à prestação de contas (...) O alto apreço em que sempre tive a elevada função desse Tribunal levou-me a determinar atento e minucioso exame da matéria, o que justifica a relativa demora desta resposta. A conclusão a que chegaram os nossos órgãos técnicos, que inteiramente subscrevo, é – data vênia – da inaplicabilidade daquele preceito a esta entidade.(...) Assim, não é possível admitir que a lei orgânica do Tribunal de Contas tenha o alcance de incluir entre as pessoas do direito público as entidades privadas. Seria ampliar a competência do Tribunal de Contas, alterando a sua jurisdição que foi expressamente fixada no Diploma Constitucional.( ibid, pág. 170, 173)

Após esta introdução Simões Lopes descreve o porquê da inadequação jurídica

entre a FGV e uma autarquia.

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Não teve, o Estado, evidentemente, a intenção de criar uma repartição pública, ou uma autarquia. Quis, apenas, fomentar a iniciativa privada e concorrer com sua ajuda financeira, numa ação meramente supletiva. A Fundação Getúlio Vargas não foi, pois, instituída por lei. È uma Fundação genuína, instituída por escritura pública (...) em que o Estado, como pessoa de direito privado, aparece entre os vários doadores. Diga-se de passagem, aliás, que a União não foi sequer a maior doadora.(...) Os serviços da Fundação Getúlio Vargas são custeados com recursos próprios oriundos da renda patrimonial auferida. É certo que o Estado tem mantido uma contribuição permanente a favor da Fundação Getúlio Vargas, mas não lhe concede a arrecadação de um ‘tributo’, expressão de significado técnico inconfundível.(...) A subvenção, no caso, em virtude do ato legislativo que autorizou a criação da entidade, constitui um meio complementar da doação instituída pela União. Trata-se de uma obrigação livremente assumida em atenção aos fins da entidade. Ao comprometer-se em estimular, com seu apoio financeiro, a criação da Fundação Getúlio Vargas, quis, apenas, a União, dar, com essa iniciativa, aos demais fundadores o exemplo de seu interesse em facilitar-lhe a organização e o desenvolvimento.(...) Estou certo, porém, de que, após o reexame do assunto e atendendo à inconfundível caracterização da personalidade jurídica de direito privado desta entidade, o Egrégio Tribunal decidirá de modo contrário, visto que o requisito da fiscalização oficial das contas da Fundação Getúlio Vargas tem sido regularmente observado pelo Ministério Público, de acordo com os seus Estatutos e o Código Civil.( ibid, pág. 174, 176, 178, 179)

Em resposta ao ofício enviado pela FGV o Tribunal de Contas envia nova

carta ao Presidente da Fundação em 9 de setembro de 1950, assinado pelo Presidente

em exercício Antonio Cesário de Faria Alvim Filho.

Submetido de novo a assunto à deliberação deste Tribunal, cabe-me comunicar a V.Exa, para os devidos fins, haver o mesmo, em Sessão de 30 de agosto próximo findo, deixado de tomar conhecimento do recurso, por falta de fundamento legal que o autorize. (ibid, 1950 pág. 180)

A este novo ofício responde a Fundação em documento enviado ao tribunal no

dia 15 de setembro:

Pelo ofício no 1131 de 9 de setembro, recebido nesta Fundação em data de ontem, 14 do corrente, fomos cientificados da decisão desse Egrégio Tribunal, que não tomou conhecimento do nosso recurso. De acordo com o que afirmamos e, acima vai transcrito, a Fundação Getúlio Vargas apressa-se a atender à exigência do Tribunal de Contas, remetendo o incluso volume, contendo a prestação de contas desta Fundação, relativa ao exercício de 1949”.( Relatório de Atividades 1950, pág. 182)

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Como mostrado, o TCU não concordava com e estatuto de Fundação de

direito privado atribuído à FGV. Ao contrário, a concebia como uma autarquia. De

certa forma, percebe-se, a partir do ponto de vista dos próprios agentes envolvidos, o

quão um órgão que se via como autônomo, pode ser considerado, de outro ponto de

vista, como intimamente vinculado à outros entes. A disputa em torno da

classificação "correta" ocorre pois FGV e Estado estão desde os seus primeiros

momentos intimamente relacionados. Tal situação, do ponto de vista dos agentes

envolvidos, não coloca em cheque alguns dos princípios que norteavam a Fundação:

por exemplo, a prática de uma ciência supostamente “neutra” ou “autônoma”. Como

mostrado, para que tal ideal se concretizasse foi necessária a participação de outros

agenciamentos. Da mesma forma que a FGV pode ser, em parte, produto de relações

estreitas com instituições do Estado, um economista, que se considera como um

cientista, pode ser também um assessor ou dirigente político, como aliás já salientado

por Rita Loureiro (Loreiro:1997).

Mas a demanda oferecida pelo Tribunal talvez nos revele uma questão ainda

mais profunda: um ponto de vista diferente é capaz de alterar o estatuto dos termos de

uma relação. Assim, o espaço privado produtor da ciência torna-se publico. As

próprias noções de Estado, de ciência, do público e do privado, acionadas como

legitimadoras e como classificadoras de um certo universo, declaradamente colocado

como "em mudança", são objeto de reclassificação a partir de alterações de

perspectivas.

A FGV não deixou de funcionar por causa deste evento. Seus centros

continuaram operando, seus "técnicos" trabalhando. Mas, de certa forma, a

controvérsia coloca nova luz sobre todos os movimentos que desembocaram na

criação da entidade, realçando certas características. Ela mostra que a ambigüidade

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acerca do estatuto da Fundação foi enxergada pelos agentes envolvidos, assim como

provocou um deslocamento de ponto de vista (no caso jurídico) que indica ser

possível que se tenha perspectivas diversas sobre um mesmo fenômeno.

Como mostrado neste capítulo, os agentes e disposições legais e financeiras

pertencentes à burocracia estatal foram constituintes do processo de criação e

manutenção da FGV e do seu Núcleo de Economia. Ao se tomar esta entidade com

parte integrante do processo de configuração do campo das ciências econômicas no

Brasil, percebe-se o papel decisivo que agentes reconhecidos como do Estado tiveram

neste processo. A criação da FGV envolvendo Simões Lopes e Vargas; a subvenção

paga pelo Governo Federal; as relações entre a Fundação e a FNCE, apontam para

tanto.

Ao mesmo tempo que se constituía a partir de relações contíguas com círculos

associados ao “Estado”, a FGV – através de seus idealizadores e integrantes –

postulou e possibilitou sua autonomia, inclusive legal, devido ao conjunto de práticas

e idéias das quais foi fruto: aquelas ligadas à "racionalização do trabalho" e a

emergência das ciências “puras”, as quais, segundo o conjunto de reflexões e ações

que pudemos observar, necessitavam de espaços próprios.

Assim, a construção desta entidade revela uma singularidade: uma instituição

que parecia possuir uma dupla natureza, a um só passo dependente da burocracia

estatal, e, também, autônoma em relação a esta, posto que representante de um

"novo" ideário, calcado na "racionalidade" e na "ciência pura".

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Capítulo 3 – A Máquina

"A teoria é sempre mais simples que a vida; mesmo quando parece extremamente complexa, ainda é 'simplista' se comparada

à série de fatores que agem como condições, meios ou fins, em qualquer situação concreta"

Jacob Viner

Até aqui a criação da FGV foi analisada à luz da confluência de certas

trajetórias de indivíduos e idéias e da consolidação de um dado marco institucional.

Aquilo que os profissionais que compuseram a FGV – mais particularmente o Núcleo

de Economia, posteriormente chamado Instituto Brasileiro de Economia (IBRE) – de

fato faziam e produziam no dia-a-dia da instituição ficou de fora. No máximo foram

anunciadas algumas concepções correntes sob o papel da ciência, da técnica e da

economia.

Neste capítulo objetivar-se-á a exposição e análise de algumas das técnicas,

tecnologias e conceitos desenvolvidos pelos profissionais do Núcleo de Economia na

passagem dos anos 40 para os anos 50. Buscar-se-á, na medida dos dados empíricos

encontrados na pesquisa, descrever um inventário de práticas e teorias associados a

esses profissionais, que serviram tanto para descrever o que se delimitava como a

"economia brasileira" quanto para servir de base a conceitos e tecnologias

identificados com a ciência econômica.

Como material empírico básico serão utilizados os resultados das pesquisas e

reflexões dos profissionais que compunham o Núcleo de Economia, relativos a duas

das três linhas de trabalho eleitas como foco por seus integrantes: o cálculo de índices

de preços, e o cálculo da Renda Nacional. Fica fora da análise, o terceiro foco do

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Núcleo, referido a Balança de Pagamentos, pois pouco material sobre o tema foi

publicado nas revistas da FGV.

Ao fim da exposição será possível compreender em que medida esta série de

"inovações" técnicas e conceituais se articula com o movimento mais geral descrito

até aqui: o de configuração de um novo campo científico, complementando de forma

substantiva – e não dissociável – os marcos institucionais, e as trajetórias individuais

já analisadas. Ou seja, trata-se de uma nova abordagem: as relações entre campo

científico e burocrático, entre políticas públicas e produção de conhecimento – que

eram foco do trabalho até aqui – dão lugar a um mergulho substantivo nas idéias,

formulações e dispositivos criados pelos profissionais e técnicos. A "economia" e sua

ciência deixa de ser apenas uma idéia, um conceito, para se transformar numa pletora

de formulações, de cálculos, de números, de tabelas, de conceitos, de tecnologias,

acerca de categorias como "nação", "economia nacional", "governo", como no caso da

Renda Nacional, ou “custo de vida”, como no caso dos indicadores de inflação (para

inflação ver também Neiburg: 2007).

O capítulo procura ir além das análises institucionais; de formação

profissional; de disputas em torno de grandes doutrinas (como monetarismo x

keynesianismo)34, para se referir à constituição do campo da ciência econômica e dos

economistas. O objetivo é analisar o conjunto de teorias e técnicas criadas e

desenvolvidas por estes no interior de seu trabalho de pesquisa, para buscar assim

uma compreensão abrangente do que fazem de fato os economistas no curso de suas

atividades. O presente capítulo, relembro, percorre um trajeto que se situa na fronteira

entre a antropologia da economia e a antropologia da ciência (ver também Neiburg:

2007 e Cruz: 2005).

34 Como também proposto por Coats (1989)

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3.1 – Os Estrangeiros

Até o momento foi destacado o papel que as relações internacionais entre

indivíduos, instituições ou idéias, desempenhou para a configuração da ciência

econômica no Brasil e na própria constituição do Núcleo de Economia. Como já

citado, os objetivos deste eram bastante práticos: buscaríasse o cálculo acurado de

índices de preços (para medir a inflação), da Balança de Pagamentos (para medir a

entrada e saída de recursos do país), e da Renda Nacional (para medir a produção de

riquezas). Para isso, era necessário dominar técnicas e metodologias de pesquisa

empírica, organização e análise de dados, ponderações, tabulações, etc., até aquela

época pouco conhecidas e desenvolvidas no Brasil, segundo os próprios integrantes

do Núcleo. Era necessário, portanto, recorrer à ajuda de indivíduos e instituições que

tivessem alguma prática com a fabricação e análises de números referentes à

economia.

No Brasil, embora o cálculo dos agregados acima citados fosse inexistente,

havia instituições que produziam dados sobre a economia nacional, como o Banco do

Brasil, o IBGE, o Ministério da Fazenda, governos estaduais e municipais (como em

São Paulo). Havia números disponíveis sobre preços de mercadorias, salários,

atividades empresariais, importações e exportações, entre outros, que serviriam de

matéria prima para os "técnicos" da FGV. Mas faltava o cálculo dos “agregados”:

aqueles números mais gerais, capazes de estabelecer um "retrato da economia

brasileira”. Além do mais, tais cálculos dos agregados ou dos demais números, são

objetos constantes de reavaliações por aqueles que os fabricam. Supõe-se que sempre

seja possível chegar à um "retrato" mais fidedigno da realidade.

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Como definiu Coats (1989) a ascensão das idéias econômicas e dos

economistas enquanto grupo intelectual e profissional foi, em grande medida,

resultado da cooperação econômica internacional, através da emergência de agencias

especializadas e redes internacionais. Do mesmo modo, Dezalay e Garth (2002)

mostraram como a emergência da ciência econômica – e dos economistas – na

América Latina no pós-guerra foi também resultado da construção de circuitos

internacionalizados. Já Hirschman discorrendo sobre a história das ideologias do

desenvolvimento econômico na América Latina (1963), mostrou como a criação da

CEPAL - um outro importante organismo da época que também congregava

economistas – foi importante para o ele chamou de "educação econômica", ou seja,

para que indivíduos e equipes de pesquisadores dos países latino-americanos

tomassem contato com teorias e práticas da ciência econômica.

A importância dos processos de internacionalização para a configuração das

ciências econômicas e, por conseguinte, para a criação da FGV e do Núcleo, não é

perceptível apenas com o convite feito por esta entidade para que especialistas

estrangeiros visitassem as dependências da FGV a partir da segunda metade dos anos

40. Desde os primeiros parágrafos desta dissertação a formatação de uma rede

internacional é visível. Bulhões estudou algum tempo nos Estados Unidos. Gudin

circulou por esferas empresarias estrangeiras quando era alto dirigente de companhias

privadas nacionais e estrangeiras. Ambos foram representantes do governo brasileiro

em encontros de economia e finanças internacionais, como Bretton Woods. Ambos

visitaram universidades americanas. A RBE possuía resumos em inglês e francês,

numa clara tentativa de inseri-la em um contexto de debates e circulação de idéias e

dados do âmbito internacional. Isto sem falar nas inúmeras referências feitas pelos

personagens dos capítulos anteriores ao universo de nações que rodeavam o Brasil.

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A vinda de economistas estrangeiros ao Brasil, patrocinados pelo Núcleo, é um

desdobramento natural destes movimentos anteriores. Isto ocorre devido à constatação

da necessidade de se aprender técnicas e metodologias novas, consideradas

inexistentes em bandas brasileiras. E, por tabela, juntamente com esta pedagogia de

instrumentos de pesquisa e análise, são feitas considerações mais gerais sobre o papel

do economista e da ciência econômica, e sobre as teorias em voga nos centros

universitários e agências estrangeiras.

Os primeiros estrangeiros convidados chegaram em 1947. Foram eles:

Gottfried Harbeler, da Universidade de Harvard (ficou na FGV 3 meses), Maria José

Suggett, assistente de Harbeler e Daniel Villey, da Universidade de Poitier, França.

Todos, além de trabalhar junto ao Núcleo de Economia, deram aulas como

professores visitantes na FNCE, que funcionava dentro da própria FGV.

Harbeler proferiu uma série de conferencias publicadas na RBE em 1947 e

1948: "Haverá Depressão nos Estados Unidos" (dezembro de 1947) e "Escassez de

Dólares?" (março de 1948). Alem disso, prestou auxílio para a reforma dos programas

das cadeiras oferecidas pela FNCE. Suggett trabalhou junto à FNCE, como auxiliar do

curso "Valor e Formação de Preços", ministrado por Bulhões35. Já Villey, além de

colaborar diretamente com o Núcleo, ministrou o curso "Estrutura das Organizações

Econômicas", na FNCE, e publicou o artigo "Karl Marx" no último número de 1947

da RBE. Todos os textos, saliento, foram publicados em português, com resumos em

inglês e francês.

35 Também em 1948 a FGV publicou o livro "Problemas de Conjuntura e Política Economica" de Harbeler. O livro baseia-se numa coletânea das conferencias proferidas por Harbeler na FGV. No número de março de 1948 a RBE apresenta uma resenha do livro, assinada por M. J. Suggett. Segundo esta, "a presença do Professor Harbeler constitui grande estímulo para as pesquisas e discussões sobre problemas econômicos que essa Fundação se propõe a realizar, as suas conferencias vieram satisfazer a curiosidade de todos aqueles que se interessam pelos problemas econômicos com que se defronta o mundo"

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Nos anos seguintes mais estrangeiros visitaram a FGV. Em 1950 estiveram

Derksen, da Organização das Nações Unidas (ONU, fundada em outubro de 1945),

Jacob Viner, da Universidade de Princeton, e W. Singer, também da ONU. Todos

prestaram assistência técnica, principalmente no que se refere ao cálculo da Renda

Nacional, e proferiram conferencias. Singer falou sobre: “Financing Economic

Development”, “Saving for Economic Development”, “Financiamento Exterior para o

Desenvolvimento Econômico”, e “Investimentos Entre Países Subdesenvolvidos e

Industrializados: Benefícios e Perigos para os Países Subdesenvolvidos”. Já Viner

falou de “A Teoria Clássica de Comércio Internacional”, “Tendências Recentes da

Teoria Pura do Comércio Internacional”, “Tendências Recentes na Teoria do

Mecanismo do Comércio Internacional”, “Lucros Provenientes do Comércio

Exterior”, “Relações entre Política Monetária e Fiscal e a Política Comercial”, “A

Influencia do Planejamento Econômico Nacional na Política Comercial”, e “A

Economia do Desenvolvimento”. Derksen proferiu uma única conferencia,

transformada em artigo no número de junho de RBE, intitulada "Comparabilidade

Internacional das Estatísticas da Renda Nacional".

Em dezembro de 1951 foram publicadas em RBE seis conferencias realizadas

por Ragnar Nurkse, da Universidade de Columbia: “As Dimensões do Mercado e o

Incentivo à Inversão”, “Disparidades Internacionais de Renda e a Capacidade de

Poupar”, “Fontes Internas da Formação da Capital”, “Fontes externas da Formação de

Capital”, “Política Comercial e Formação de Capital”, “Idéias Recentes Sobre a

Teoria dos Movimentos Internacionais de Capital”.

Singer, em março de 1950, publicou em RBE o artigo "Comércio e

Investimentos em Áreas Subdesenvolvidas". Já no número de junho de 1951 foram

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publicadas as seis conferencias de Jacob Viner, proferidas no ano anterior. Destaco

uma passagem do primeiro artigo publicado (a primeira conferencia):

Ademais, nem só de pão vive o homem; o estadista sempre tem que atender a reclamos de ordem não econômica. O economista, na qualidade de economista, não tem a menor obrigação de assumir o papel de estadista; estará cumprindo seu dever plenamente se fornecer ao estadista sua opinião correta, quanto a meios econômicos e fins econômicos. Ele tem, porem, o dever de levar em conta todos os fins e meios econômicos que forem possíveis de consideração, com toda competência de que dispuser para sua análise e manipulação reconhecendo e declarando as limitações de sua análise e a significação de quaisquer elementos que não tenha podido considerar. Devemos desconfiar – e devemos idêntica suspeita, por parte dos não economistas – de uma tendência para maior simplicidade e maior rigor de modelos, em matéria de economia, numa época em que até o homem da sua sente que o mundo econômico está ficando cada vez mais complicado, que seus problemas são cada vez menos susceptíveis de soluções exatas e radicais.

O teórico tem que simplificar até certo ponto. Mesmo o estadista não pode levar em conta todos os fatores, e a teoria não seria capaz de prestar à prática o serviço que lhe compete, se não fizesse abstração daquilo que, para o propósito imediato que se tem em mente, pode, sem maior inconveniente, ser tratado como desprezível" (Viner, Jacob. "A Teoria Clássica do Comércio Internacional e os Problemas Atuais". in Revista Brasileira de Economia, Rio de Janeiro 5(2), pag 13)

Aqui temos exposta uma dessas definições mais gerais sobre o papel do

economista e de seu trabalho, nas palavras de um professor de uma universidade

americana de grande prestígio como Princeton. Ao mesmo tempo em que Viner

separa de forma clara o trabalho do político e o do economista, ele os relaciona de

forma íntima, tal qual uma "dupla dinâmica". Mas cada um em sua área de atuação. O

autor apresenta, também, de forma simples e sucinta, uma tarefa fundamental do

economista: a construção de modelos. Sendo estes sempre simplificações, abstrações.

No que se refere à primeira colocação de Viner, ela se associa bem ao material

exposto até aqui: uma tentativa de separação clara das atribuições do economista. Ao

mesmo tempo, e como também mostrado até aqui, esta separação foi buscada através

de uma relação íntima com outros setores e atores, como aqueles presentes na

burocracia. Como, aliás, também é evidenciado por Montecinos e Loureiro quando se

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referem à proximidade, no caso brasileiro, entre economistas e elites dirigentes

(Montecinos e Markoff: 2001, Loureiro: 1997), ou quando Coats (1989) nos mostra

que no período do pós-guerra os economistas emergem como policy makers .

Quanto à segunda colocação, referente à construção de modelos, casa-se com

o objetivo da criação da FGV e do Núcleo. Ocorre que, se por uma lado esta tarefa

torna a ciência econômica uma disciplina sui generis, ela mais uma vez a aproxima e

inter-relaciona a agentes vistos, no material até aqui apresentado, como separados –

em relação ao “Estado” por exemplo. Afinal a construção dos modelos depende de

números produzidos também por agentes e entidades relacionadas ao Estado (com no

caso do BB, do IBGE e do Ministério da Fazenda), e estes mesmos modelos podem

servir como base para ações e decisões muito diferentes: um professor de economia

que decide fazer uma pesquisa mais refinada sobre inflação ou um assessor que

fornece dados para que um dirigente tome alguma atitude. Para alguns nomes da

FGV, as duas possibilidades casavam-se de forma perfeita.

Nos próximos tópicos do presente capítulo serão esmiuçados os modelos e

dispositivos construídos pela FGV relativos aos índices de preços e a Renda

Nacional. Nos parágrafos acima ficou registrado a importância das relações com

certos circuitos internacionais na confecção de um programa de pesquisa e na

inserção da FGV em debates internacionais, e na aquisição pelos integrantes do

Núcleo de um capital de relações internacionais36, em um ambiente institucional – o

pós-guerra – que deu força à circulação e de teorias, profissionais, a homogeneização

de técnicas de cálculos, etc. (como através de Bretton Woods, ONU, CEPAL).

36 Acrescento aqui uma série de outros autores estrangeiros que publicaram na RBE até o ano de 1952: Alvin Hansen, da Universidade de Harvard, J. Tinbergen, da Escola de Economia de Roterdam, Herberth Furth, do Federal Reserve System e da Universidade Católica da América, Raul Prebish, da CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina, subordinada à ONU), Vittorio Massama, E. M. Bernstein, Robert Mossé, da Faculdade de Direito de Grenoble.

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3.2 – Os índices de preços: os números e as coisas

O primeiro passo dado pelo Núcleo para que fosse possível a elaboração de números

que descrevessem a economia brasileira foi a elaboração de uma ampla rede de

recolhimento de dados em dois níveis: através da colaboração institucional com os

órgãos que já produziam números (como o Banco do Brasil, Ministérios, o IBGE,

etc), e através do recrutamento de "técnicos" provenientes destes mesmos órgãos.

A partir de 1948 o Núcleo passou a ser constituído por membros

"permanentes" e "colaboradores". O primeiro grupo foi formado por aqueles

profissionais que compunham os quadros da FGV desde os primeiros momentos:

Gudin, Bulhões, Kingston, Kafuri, Dodsworth Martins, Lewinsohn (responsável pela

RCE), Lopes Rodrigues e Nunes Guimarães. Entre os "colaboradores" temos

novidades: Daniel Villey, também da FNCE, Antonio Dias Leite, da Faculdade

Nacional de Engenharia e da equipe da Renda Nacional do Núcleo: Rafael da Silva

Xavier, do Ministério da Agricultura; Antonio Teixeira de Freitas, do IBGE;

Raymundo Paes Barreta, do IBGE; João de Mesquita Lara, também do IBGE;

Guilherme Augusto Pégurier, do Banco do Brasil e Américo Barbosa de Oliveira, do

Conselho Nacional de Águas e Energia Elétrica. Ou seja, nomes pertencentes a

quadros de instituições públicas que já produziam números e estatísticas. O BB, por

exemplo, produzia dados sobre empréstimos bancários, moeda e cambio (na época,

desempenhava o papel de Banco Central), comércio exterior, etc. Já no IBGE, entre

outros dados, eram encontrados muitos referentes aos salários, indústria, comércio

(contidos nos chamados "inquéritos econômicos", relatórios publicados pelo IBGE), e

alguns números e estudos sobre o "custo de vida".

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Mas o Núcleo não se limitou à manutenção de relações institucionais com

entidades brasileiras. Também as estrangeiras estiveram ao seu alcance, como atesta

o Relatório de Atividades de 1948, ao falar da Revista Conjuntura Econômica.

Este boletim mensal foi publicado com toda regularidade dentro do esquema já referido. Estabeleceram-se correspondentes em Paris, Londres, Amsterdam e Zurique e foi tomado contacto, através de visitas pessoais e por correspondência com os principais institutos de conjuntura no estrangeiro da ONU, do Fundo Monetário Internacional e do Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento (Relatório de Atividades. 1948, pag., 85 anexo XIII)

Além disso, a FGV instalou uma agência em São Paulo para "coletar certos

dados estatísticos com a regularidade necessária" (ibid, pag. 75 anexo XIII). Além de

produzir seus números a partir de números de outros37, o Núcleo também foi

responsável pela formação de equipes que recolhiam dados através de pesquisas

empíricas de primeira mão, como as responsáveis por recolher preços de mercadorias

no Distrito Federal com vistas ao cálculo do índice de preços.

Se o acesso à uma certa informação – o preço de uma mercadoria, por

exemplo – é necessário, também o é o acesso às técnicas, metodologias e teorias que

tornam possível a transformação dessa informação em dado, em um outro número –

um agregado – calculado através de equações e ponderações estatísticas. Vejamos o

caso dos índices de preços. Segundo Octávio de Bulhões:

Baseia-se o poder aquisitivo da moeda no índice geral de preços, que, admitido como indicador de uma situação econômica, não pode deixar de ser tido como reflexo da realidade. O índice geral de preços representa um fato. É uma média que não se equipara ao uso comum do meio termo, sem correspondência real. O poder aquisitivo da moeda, baseado na média de índices de preços, traduz realmente quantidade de coisas adquiríveis

37 Esta situação por si só é bastante reveladora. A partir de fontes primárias , outros dados são produzidos pelo Núcleo, incorporando-se novos cálculos. Por exemplo, o BB e Ministério da Fazenda possuíam números sobre comércio exterior, mas para se calcular o balanço de pagamentos e a Renda Nacional era necessário novos cálculos sobre os números iniciais.

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(Bulhões, Octávio de. Orientação e Controle em Economia. Livraria Suissa. Rio de Janeiro, 1941, pag. 55)

Ou ainda...

A Real Associação Britanica Para o Progresso da Ciência dedicou-se de 1887 a 1889 ao estudo dos meios de medir as variações do valor da moeda. A comissão era composta de vários membros de renome, dentre os quais podemos destacar Marshall e Edgeworth (...) Neste trabalho, Edgeworth sustenta que as observações dos preços são equiparáveis às observações do mundo físico, cuja média representa medida 'real'(Bulhões, Octávio de, “Índices de Preços no Brasil”. in Revista Brasileira de Economia, Rio de Janeiro 2(2) 1948 pag, 54)

Paralelamente aos problemas do recolhimento de dados e dos cálculos com os

dados, é necessária alguma digressão sobre a possibilidade de recorte científico

apontada pela tecnologia proposta. O índice é um "fato", é um "reflexo da realidade",

a sua observação é comparável às "observações do mundo físico". Porém, os índices

não existem enquanto tais na "realidade". Os preços, sim, existem. Porem, os índices

– um cálculo ponderado – refletem e traduzem os movimentos reais dos preços,

tornando-se eles também "reais” 38.

Mas em que consistiria afinal um índice de preços? Como é possível o seu

cálculo? Bulhões também responde este tipo de pergunta, para além das digressões

sobre sua "realidade". Segundo ele:

Os índices gerais de preços são elaborados com o propósito de mostrar as modificações dos preços, em seu conjunto Pressupões-se, geralmente, que a comparação das médias dos preços pode refletir a tendência do valor da moeda. Como diz Micthell [Mitchell, Wesley. The Making and Using of Index Numbers. Bulletin 656, Department of Labour, USA], cujos trabalhos contribuíram para o aperfeiçoamento dos índices de preços nos Estados Unidos, 'o propósito dos índices de preços é medir a modificação da soma de dinheiro, empregada na aquisição de mercadorias'(ibid, 47)

38 Como também diz o próprio Edgeworth ,"I propose to define an index number as a number adpted by its variations to indicate the increase or decrease of a magnitude not suceptible of accurate measurement" (Edgeworth [1925b; 379]. in Allen, R.G.D.Index Numbers in Theory and Practice. MacMillan, 1975, pag 2).

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Quanto à metodologia, explica Bulhões...

O processo de cálculo consiste em multiplicar os preços pelas quantidades das mercadorias transacionadas durante determinado período e relacionar os valores encontrados àquele que corresponde ao ano que se julga acertado considerar com básico (ibid, 47)

Os trechos acima foram retirados de artigo publicado na RBE em 1948. A

RBE era definida (e ainda é) como uma revista de cunho acadêmico, voltada para um

público especialista. Neste sentido, a forma bastante didática pela qual Bulhões

esclarece o que é e como se calcula um índice chama a atenção. Hoje em dia uma

abordagem como esta, em uma revista especializada, e sobre um tema já bastante

conhecido, pareceria exótica. Mas em um momento onde certas teorias e

instrumentos eram pouco conhecidos, ou totalmente ignorados, até mesmo por

especialistas, esta abordagem parece natural. O que, aliás, ficará mais claro quando a

Renda Nacional for discutida.

Enfim, o cálculo em questão possuía um objeto e uma metodologia bem

definidos. Tratava-se, portanto, de aplicá-los através de pesquisa empírica e de

cálculos posteriores. Segundo consta no Relatório de Atividades de 1951, os

trabalhos foram coordenados por Raymundo Paes Barreto, do Núcleo e do IBGE, e

por Jorge Kingston, também do Núcleo e da FNCE. Também, segundo o mesmo

relatório, o cálculo do índice geral de preços foi baseado em números recolhidos

basicamente pelo IBGE, sendo o IGP calculado pela FGV (índice geral de preços,

calculado pelo Núcleo) uma média ponderada de três outros índices: índice de preços

por atacado, índice de preços ao consumidor e índice nacional de custo da construção,

com pesos respectivos de 6, 3 e 1.

As atividades do Serviço de Estatística e Economia [do IBRE] iniciaram-se em fins de agosto último, cabendo-lhe, em princípio, a incumbência de elaborar um índice geral de preços, com aproveitamento dos dados coletados respectivamente pelo IBGE, desde 1938, de acordo com a orientação do antigo Núcleo de Economia da Fundação.

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A elaboração dos números-índices de preços subordinou-se às seguintes etapas de trabalho: a) análise crítica das séries coletadas – O IBGE coletou 96 séries, muitas com subdivisão por tipos de mercadoria e quase todas abrangendo cotações oriundas de várias fontes. Foi feito o exame das mesmas, quanto à homogeneidade dos artigos e à integridade de fidedignidade das cotações. O serviço está em entendimento com o IBGE para suprir as omissões existentes e verificar a exatidão de alguns preços. b) Estudo de um sistema de ponderação – Realizou-se o estudo de um sistema adequado de ponderação, que se baseou nos dados censitários de 1940, por ser a única fonte que permitia avaliar a importância relativa dos grupos das indústrias. c) Dados complementares para ponderação – Os dados censitários são insuficientes para estabelecer a ponderação referente a certos grupos de mercadorias (materiais de construção, couros e pele, produtos químicos). Por esse motivo, procedeu-se a um levantamento especial nos dados dos Inquéritos Econômicos realizados pelo IBGE e como estes não fornecem o montante das vendas de cada artigo, foram aproveitados os dados das saídas de estoques. d) cálculo dos números-índices – Uma vez apurados os dados referidos no item anterior, deu-se início ao cálculo final dos índices, que se acha em andamento. e) Desdobramento do índice geral – De conformidade com as recomendações e da ONU, foi estudado o desdobramento do índice geral, não apenas segundo os ramos de atividade econômica, mas ainda sobre a procedência e o grau de elaboração das mercadorias abrangidas (Relatório de Atividades 1951, pag. 56-57, grifos meus)

O Relatório, assim, específica de forma mais meticulosa os passos dados no sentido do

cálculo de um índice geral de preços: recolhimento de dados, análise crítica e, por fim,

elaboração dos números segundo certas ponderações, também estas baseadas em outros

números provenientes de pesquisas. O índice buscado pelo agora IBRE (ex-Núcleo de

Economia), baseia-se numa série cálculos que buscam "refletir" (para ficar com o

termo de Bulhões) as relações apresentadas pelos dados. Ocorre que tais dados são

também numéricos, sejam eles preços ou quantidades, ou ainda um outro índice, que

por sua vez também "reflete" outros números. Percebe-se, assim, uma espécie de

espiral formada por relações entre um índice fabricado segundo certa ponderação e um

dado, que também é um número. O índice geral "reflete" uma relação ponderada entre

outros índices. Estes por sua vez "refletem" relações ponderadas entre determinados

preços e quantidades de bens. E, ao fim do cálculo, se estabelece uma relação entre um

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número ponderado de um momento x com um outro em um momento y. Afinal, uma

variação se dá em relação a algum outro ponto.

O trabalho acima exposto consta no Relatório de 1951. Essas pesquisas davam

continuidade a trabalhos prévios, muitos dos quais publicados na Conjuntura

Econômica. Estes baseavam-se não apenas em números recolhidos pelo IBGE e

aplicados a fórmulas de economistas estrangeiros (como Mitchell), mas também em

um esforço por parte do Núcleo em realizar pesquisa empírica básica.39

39 Em 1964 a FGV publicou um pequeno folheto com as metodologias empregadas por ela no cálculo de um índice de custo-de-vida assinado por Jorge Kingston e Julian Chacel. Segundo este " um índice de custo-de-vida depende, para sua construção, de uma pesquisa prévia sobre a composição dos orçamentos familiares do grupo social tomado com referência. Com isto pretende-se medir, no momento de cada observação, a variação dos preços em conformidade com a intensidade dos consumos de cada mercadoria e de cada serviço integrante do índice ∑pi x qo onde Ii e pi representam os índices de preços Ii= _________ na época i, e po, qo os preços e quantidades na época base ∑po x qo

Os preços utilizados no cálculo do índice de custo-de-vida aqui em causa, são preços de varejo, pagos pelos compradores dos bens e serviços considerados (...) são coletados semanalmente em dezessete bairros da cidade do Rio de Janeiro (inclusive a área suburbana). Os agentes de coleta são donas-de-casa, que registram sob a orientação deste Instituto os preços pelos quais estão sendo efetivamente adquiridos os artigos"(O Índice de Custo de Vida. IBRE. FGV. 1964, pag. 1). Mais a frente no mesmo folheto: "É perfeitamente compreensível que exista hoje, no seio da opinião pública do país, controvérsia em torno dos índices de custo-de-vida. Embora nem sempre esses índices sejam a medida mais adequada da taxa de inflação, são os de percepção mais fácil para o público, porque, em última instancia todos são consumidores. A controvérsia explica-se, portanto, pelo alto conteúdo político desses algarismos, já que o Governo dá à contenção das pressões inflacionistas o caráter de fulcro de toda a sua política econômica. Vale dizer que o sucesso dessa política mede-se, quantitativamente, em termos da intensidade da alta de preços.

Chegou-se, assim, a um estágio em que o índice de preços não pode ser explicado e aceito como medida estatística de um fenômeno econômico. Sua aceitação por A ou B como dado fidedigno, depende da confiança ou desconfiança individual na política econômica do Governo. A explicação do índice deixa o domínio da ciência econômica para ingressar no domínio da psicologia social" (ibid, 11).

Estes trechos, embora se refiram a um período posterior ao da pesquisa, traz elementos novos em relação aos dados apresentados por mim. Chama atenção, em primeiro lugar, a utilização das donas-de-casa como pesquisadoras. Certamente não é uma escolha neutra. A associação entre preço, consumo e mundo doméstico traz à tona uma agente que a princípio nada teria a ver com a fabricação de índices. Algumas décadas depois – nos fim dos anos 80 – o Presidente da República José Sarney chamou as donas-de-casa do país para fiscalizar a subida dos preços logo após o anúncio de um novo plano econômico. Em relação ao segundo trecho ele traz outras questões novas. A saber a relação entre índices, confiança e política. A desconfiança nos números é associada a aspectos políticos que estes ensejam, posto que são utilizados pelo Governo como referencias na elaboração de políticas. A desconfiança pende para o lado da política e da psicologia e não para a fabricação dos números pelos economistas.

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Em março de 1949 a Conjuntura Econômica apresenta um cálculo de um novo

índice que mede o valor da moeda: o índice de custo de vida. A matéria "O Novo

Índice do Custo de Vida" destaca a nova metodologia aplicada.

De todos os índices econômicos, o do custo de vida é hoje o mais necessário para fins práticos. Infelizmente, tem sido até agora um dos menos perfeitos. O índice oficial do custo de vida na cidade do Rio de Janeiro data de 1912 e se refere a uma família relativamente rica , cujo orçamento não corresponde ao padrão de vida da grande maioria da população. 'Conjuntura Econômica' submeteu este índice a diversos ajustamentos, principalmente as rubricas de criados, vestuário, móveis e utensílios domésticos; entretanto, mesmo com tais modificações, o índice continuou pouco expressivo para o movimento de preços das mercadorias e serviços que entram no orçamento de uma família de rendas módicas. Por essa razão, 'Conjuntura Econômica' decidiu elaborar um novo índice do custo de vida para o Distrito Federal (...) O novo índice que apresentamos pela primeira vez a nossos leitores é um índice ponderado, composto de 45 itens que constituem efetivamente a grande massa das despesas quotidianas da população urbana. A ponderação foi fixada de acordo com cadernos do orçamento familiar, contas de membros de cooperativas e outras fontes diretas, e ajustada segundo as estatísticas gerais de consumo" (Revista Conjuntura Econômica, Rio de Janeiro 3(3), 1949, pag. 6)

O novo índice tinha em sua composição seis itens com diferentes ponderações,

sendo eles: alimentação, 55%, aluguel, 15%, vestuário, 12%, móveis, utensílios

domésticos e artigos de toucador, 10%, serviços pessoais, 4%, e serviços públicos, 4%.

Cada item é, por sua vez, composto por diferentes subitens também calculados de

forma ponderada – por exemplo, para o item alimentos, abóbora, 3,3 %, açúcar, 2,2%,

etc. O ano tomado com referencia para as variações é 1946.

Aqui temos esboçadas várias características de um tipo bastante particular de

procedimento. Em primeiro lugar faz-se referencia à importância deste tipo de cálculo

atualmente – nos capítulos anteriores ficou claro como o desenvolvimento de certos

instrumentos, instituições de ensino e pesquisa, e a própria ciência econômica, eram

associados a novos tempos e a imperativos da atualidade -; em segundo lugar critica-se

o modo com é calculado – apenas para famílias ricas -; e, em terceiro lugar, é

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apresentado um novo modelo de cálculo que seria mais adequado aos orçamentos

"medianos" na cidade. Em suma, propõe-se um novo recorte que, acreditava-se,

traduziria de forma mais “real” certos aspectos da vida cotidiana. O problema do

cálculo, a utilização das ponderações e outras fórmulas matemáticas, é diretamente

relacionado ao recorte proposto. Tipos diferentes de orçamentos familiares podem

produzir diferentes índices. No caso desta pesquisa, trata-se de uma "família de quatro

pessoas – dois adultos e duas crianças –, dispondo no ano base de uma renda mensal de

cerca de 1500 cruzeiros" (ibid, 7). Ou seja, a necessidade e a possibilidade de se obter

um índice e sua variação multiplica o número de recortes possíveis. Os instrumentos e

cálculos incorporam em seus procedimentos uma diversidade de diferentes classes de

objetos. O "real", o "concreto" (como nos diz Viner na epígrafe deste capítulo), é

passível de uma série de divisões e classificações operadas a partir de um certo cálculo.

O mesmo vale para tudo aquilo com o que uma determina família – ou indivíduo –

consome. São criadas classes de objetos e serviços disponíveis ao consumo, à produção

e, conseqüentemente, à verificação quantitativa. Uma família que se alimentasse de

sabonete (1% no item 4) e se vestisse com cascas de banana (1,65% no item 1), obteria

uma variação bem diferente das demais.

No número da RCE de setembro a alteração de metodologia é mais uma vez

salientada.

A noção do custo de vida é uma generalização forçosamente falha, de vez que o movimento dos preços não repercute da mesma forma sobre as várias classes sociais. Nosso novo índice do custo de vida (ver Conjuntura Econômica, ano III, número 3) baseia-se no padrão de vida de uma família de quatro pessoas – dois adultos e duas crianças – dispondo, no ano base (1946), de uma renda mensal de cerca de 1500 cruzeiros, e hoje, de cerca de 2000 cruzeiros. É o tipo de comerciário e de funcionário das classes inferiores de salário que constituem uma grande parte da população da Capital Federal. Pode-se considerar o índice como representativo para as variações médias dos preços no Distrito Federal; efetivamente, porém ele se adapta apenas

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àquela numerosa classe da população que dispões de tal renda (Conjuntura Econômica, Rio de Janeiro 3 (9), 1949, pag. 6)

Em a revista propõe a comparação entre artigos e ponderações consumidos por

diferentes classes sociais.

Nosso estudo não pretende estabelecer um índice de custo de vida dessa classe [mais rica] – índice que se deveria compor de um número muito grande de artigos, pois, quanto mais elevada é a renda, mais se diferencia o consumo. Confrontamos apenas certos artigos e serviços de luxo, ou de superior qualidade, com as que satisfazem as necessidades similares da classe média (ibid, 7).

A revista então apresenta um gráfico contendo duas variáveis: renda e itens:

classes de renda itens elevada média carne filet mignon carne bovina, 1a qual. bebidas whiski cerveja tecidos para senhoras seda natural raion roupa para homens casimira ingl. casimira nacional móveis e utensílios tapeta (m2) cadeira simples cabeleireiro penteado corte de cabelo transporte automóvel bonde gasolina

Sendo também cada item acima ponderado segundo o seu grau de consumo

dentro de um orçamento familiar. A conclusão da revista é a de que os produtos dos

grupos de renda elevada aumentaram menos que os de renda média (46,1% e 58,4%

respectivamente), enquanto o índice de custo de vida, calculado pela FGV para uma

família de renda média, obteve uma variação de 76,7%.

Este modo de classificação pode parecer óbvio nos dias atuais. A FGV calcula

hoje uma série enorme de índices de preços. Com cortes de renda (índice para os

mais pobres, por exemplo), e cortes de idade (índice para a população idosa). Mas no

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momento histórico do qual tratamos neste trabalho este tipo de reflexão – baseada em

novas tecnologias - estava emergindo. Todo este esforço brutal de cálculo era – e

ainda é – capaz de produzir uma quantidade ilimitada de classes e sub-classes

associadas a certos números e variações.

Além do mais, estes modelos, apesar de fabricados dentro de institutos de

pesquisa por determinados profissionais, extrapolavam fronteiras, passando a

referenciar as ações e as idéias do produtor de políticas públicas, dos empresários,

dos sindicatos, etc. Se por um lado aquilo que se considera real e concreto extrapola

os modelos (como diriam Bulhões e Viner), por outro estes modelos são capazes de

interferir diretamente naquilo que se considera o mundo “econômico real”.

Assim temos que, por um lado, a construção dos índices mostra a capacidade

classificadora, que associa comportamentos, grupos, bens, a números, através do uso

de tecnologias quantificadoras, onde um número sempre exige uma categoria (uma

qualidade) com a qual se relacionar. Por outro lado, a construção de um índice torna

possível a elaboração de outros índices a ele relacionados, gerando uma espiral de

modelos e números, vinculados uns aos outros e às várias classes e variações que eles

procuram descrever.

Esta relação entre números e categorias (os “dados”) e a “realidade” que

procuram descrever é bastante antiga. Mary Poovey (1998) associa este tipo de

procedimento ao surgimento dos quadros de dupla entrada entre os mercadores

italianos da Renascença. Naquele momento teria surgido o “fato moderno”, ou seja,

certos dados – representados numericamente nos quadros, que continham “créditos” e

“débitos” – passaram a existir objetivamente. Este tipo de procedimento, segundo a

autora, ao mesmo tempo calculava numericamente certos fenômenos e produzia um

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novo “sistema de escrita” com dois efeitos: proclamava a honestidade dos

comerciantes enquanto grupo, e garantia a accuracy dos dados gravados nos quadros.

Com os números que calculam a variação dos preços ocorre fenômeno

semelhante. A sua obtenção depende da coleta de “dados” (o nosso “fato moderno”)

obtidos e representados numericamente. Em seguida os “dados” são tabulados,

ponderados e inseridos em equações, não dependendo, obrigatoriamente, de

interpretações futuras (Poovey: 1998). Um “dado” é um “dado”.

A Revista Conjuntura Econômica é rica na apresentação de números. Logo

em suas primeiras páginas, e em todas as suas edições, há uma sessão chamada

"Índices Econômicos". Trata-se de uma grande tabela que ocupa duas páginas e

expõe uma grande quantidade de dados sobre a “economia brasileira”. Ela é divida

em produção industrial, edificação, movimento de mercadorias, movimento

financeiro, e preços e salários. Nesta última coluna são publicados os números do

custo de vida e do índice geral de preços.

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Acrescento que não há nesta seção uma única palavra, uma única análise ou

diagnóstico. Há apenas números. No restante da revista os dados estatísticos e as

tabelas e gráficos são também onipresentes. Há dezenas, centenas deles. Mas estes

dividem seu espaço com os artigos da equipe do Centro de Análise da Conjuntura

Economia (CACE), que tem como diretor Richard Lewinsohn e como redator-chefe

Américo Barbosa de Oliveira. Os artigos, sempre recheados com dados quantitativos

(e sem as fontes) são divididos também em seções, apresentadas no sumário de cada

número. As seções do primeiro número da RCE, de dezembro de 1947 eram: 1)

índice dos negócios, 2) Índices Econômicos, 3) Agricultura, 4) Indústria, 5)

Transportes, 6) Comércio Exterior, 7) Finanças, 8) Estudos Especiais. Cada um

possuindo um número variado de artigos, sempre acompanhados de dados

quantitativos.

Nesta seção do capítulo, não foi meu objetivo traçar uma história do cálculo

dos índices de preços, custo de vida, etc., na FGV e no Brasil. Embora a FGV tenha

sido a primeira a calcular o índice geral de preços, que leva em conta os preços ao

consumidor e no atacado, índices de custo de vida já eram calculados anteriormente,

por institutos estaduais e municipais. Quis apenas mostrar algumas das reflexões que

este tipo de práticas, consideradas novidades na época, ensejavam dentro das

fronteiras da FGV e de alguns de seus técnicos. E mostrar, também, como a análise

destas mesmas práticas, no curso de sua aplicação, revela alguns aspectos que

caracterizam os instrumentos e as idéias a respeito de um determinado campo do

conhecimento.

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3.3 – Renda Nacional: os números, as coisas e as nações

O Núcleo foi também responsável pelo cálculo da Renda Nacional. Os "técnicos" ,

coordenados por Antonio Dias Leite (chefe da "equipe da Renda Nacional" desde

1947 ), acessavam os dados empíricos básicos – exportações, importações, salários,

etc. – junto aos órgãos do Governo já aqui citados e à iniciativa privada. Cabia ao

Núcleo aplicar os conceitos e metodologias associados ao cálculo dos números.

Antes de apresentar alguns dos debates e resultados relacionados ao cálculo da

Renda Nacional, gostaria de salientar o quanto esta técnica era considerada uma

inovação à época em todo o mundo. Ela correspondia, por um lado, a certos

desenvolvimentos conceituais da teoria econômica e, por outro, à melhoria dos dados

quantitativos recolhidos por Governos e Institutos de Pesquisa. Para introduzir esta

questão mostro algumas reflexões publicadas na RBE por nomes de reputação

internacional.

Os últimos anos presenciaram uma profunda revolução nos métodos de investigação econômica: a análise macroscópica ou de agregados vem substituindo gradualmente a análise microscópica ou de componentes elementares do fenômeno econômico (...) A análise macroscópica gira em torno do chamado método da renda. Com esse método se vem estudando o equilíbrio de um sistema econômico e o seu desenvolvimento no tempo, através do comportamento típico de um grupo de grandezas entre as quais são fundamentais as seguintes: renda, consumo, economias e inversão.

A quem esteja familiarizado com a literatura econômica contemporânea parecerá desnecessário insistir na importância do método da renda como instrumento de conhecimento teórico. Bastará recordar que, com o estudo das relações que existem entre as grandezas pouco antes mencionadas, se adquirem claras noções em matéria de ciclos econômicos, de inflação, de processos de desenvolvimento, etc.

É evidente que o emprego do método da renda, quando se passa da teoria à aplicação prática, requer um acúmulo apreciável de informações estatísticas, que permita o cálculo da renda, do consumo, das economias, da inversão e de todas as demais variáveis cujo conhecimento é indispensável a qualquer análise macroscópica eficaz (...)

Dada a recente orientação da metodologia econômica, em todos os países do mundo se vão tornando cada vez mais abundantes e cuidadosas as comprovações estatísticas, com o propósito principal de ter à mão o complexo de informações necessário a uma análise dos agregados. Assim, não parece estar longe o dia em que seja possível uma aplicação do método da renda em todos os campos. Presentemente, só os países mais adiantados, como por exemplo os Estados Unidos e a

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Inglaterra, possuem dados suficientes para uma satisfatória análise dos fenômenos econômicos. Nos demais países, que constituem a maior parte, a investigação encontra-se ainda em estado embrionário, e o cálculo da renda nacional e das demais grandezas de importância, quando existir, não merece grande confiança (Massama, Vittorio. “Método de Cálculo do Desenvolvimento Econômico Aplicado ao Brasil”. in Revista Brasileira de Economia,Rio de Janeiro, 4(2) 1950, pag. 59-60)

Como se vê, considerava-se que o cálculo da renda operava uma "revolução" na

análise econômica. Não apenas devido a sua utilidade como instrumento de análise,

mas também devido aos seus desdobramentos através de outras variáveis conceituais,

como "consumo", "desenvolvimento", etc. Tal com no caso dos índices de preços,

cujo cálculo sempre apontava para a possibilidade de um novo índice, a aferição de

um "agregado" como a renda também aponta para a possibilidade de cálculos

subseqüentes. Ou, de outro modo: a verificação empírica de uma variável tal qual o

"consumo", abre a possibilidade do cálculo da própria renda. Todas as variáveis se

interligam através das noções de "agregado" e "análise macroscópica". Estas

possibilidades são objetivadas a partir de dados empíricos; mas, ao mesmo tempo, os

dados empíricos só são verificáveis – o que é um preço, um salário,... – quando

classificados de acordo com um inventário de categorias e conceitos pertencentes a

certas teorias e campos do conhecimento. A pesquisa quantitativa exige categorias

que organizem os dados coletados. Ao mesmo tempo a emergência de uma nova

categoria abre a possibilidade para novas sondagens empíricas.

Mas tudo isso depende da qualidade dos dados. Como disse Massama, os

dados disponíveis em países como o Brasil não eram dignos de "confiança". Isto não

impedia, entretanto, que iniciativas fossem tomadas. E como escreve Celso Furtado

em artigo publicado na RBE em setembro de 1952:

É de esperar, entretanto, que o enorme esforço de pesquisa estatística que atualmente se realiza em muitos países subdesenvolvidos contribua para que o pensamento econômico venha a ser nesses países o poderoso

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instrumento de análise da realidade social que já é em outras partes do mundo (Furtado, Celso. “Formação de Capital e Desenvolvimento Econômico”. In Revista Brasileira de Economia, Rio de Janeiro, 6(3) 1952, set, pag. 7)

Se as dificuldades de acesso aos dados era grande, o caminho a ser percorrido já era

em parte conhecido do ponto de vista conceitual. Giorgio Mortara, do Núcleo e do

IBGE, fala sobre tais questões em um artigo que comenta a importância dos

"Inquéritos Econômicos"40 do IBGE para o recolhimento de dados sobre a “economia

brasileira” (dados estes utilizados pelo "técnicos" da FGV):

Do ponto de visa da ciência econômica – que não pode ser desprezado nesta Revista – qual é o interesse desses inquéritos, dos quais procurei dar uma idéia?A resposta não é difícil, pois a economia é, essencialmente, uma ciência de observação e seus próprios desenvolvimentos dedutivos tem como base princípios que resumem em forma abstrata resultados da experiência concreta. Logo, toda coleta bem organizada de informações sobre a economia real pode ser considerada como a preparação de materiais de possível utilização, para a construção do edifício da economia teórica. É verdade que muito material não é aproveitado, outro é desperdiçado, mas amiúde o arquiteto genial consegue incorporar na sua construção, majestosa e harmônica, até elementos que os seus predecessores não souberam utilizar. Cumpre, ainda, lembrar que, ao lado da ciência econômica geral, teórica, há vários ramos da ciência econômica aplicada e da arte econômica, para os quais o conhecimento sistemático e tempestivo dos dados de fato constitui uma necessidade imprescindível" (Mortara, Giorgio. “Contribuições dos 'Inquéritos Economicos' para o Conhecimento da Economia Brasileira”. In Revista Brasileira de Economia, Rio de Janeiro 2(2) 1948, jun, pag. 8).

Mas do que se tratava afinal o cálculo da Renda Nacional? Como era feito?

Quais metodologias estavam em jogo? Evidentemente, seria difícil responder todas

estas perguntas no espaço deste trabalho. Em primeiro lugar, pois estas não são as

perguntas que permeiam o próprio cálculo da Renda. Em segundo lugar, pois mesmo

os profissionais do Núcleo envolvidos teriam dificuldade em respondê-las de forma

plena, dada a variedade de metodologias e técnicas que tinham à disposição.

40 Os Inquéritos apresentavam dados sobre as atividades empresariais no Brasil.

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Mas se a resposta a tais perguntas não é muito profícua, se pode sim esmiuçar

algumas das reflexões e conclusões propostas pelo Núcleo para acessar algumas

idéias que permeavam esses “economistas”. Passemos em primeiro lugar a algumas

das definições e metodologias apresentadas tanto nos Relatórios de Atividade quanto

na RBE. Segundo consta no Relatório de 1947:

Se considerarmos como objetivo de atividade econômica de um país a satisfação das necessidades do consumidor e se com a Renda Nacional quisermos medir a intensidade e a eficiência dessa atividade econômica, fácil será determinar que a medida da produção do país melhor corresponderá aquela condição e aquele objetivo.(...) Estamos aprendendo e esta primeira estimativa servirá mais como experiência para trabalhos futuros, do que como meio de se obter o valor de Renda propriamente dita. Queremos apenas, acentuar que não poderemos atingir um nível de precisão que mesmo os países mais adiantados não conseguem. Todas as diferenças e dificuldades não as poderemos prever agora; nós as teremos que sentir, analisar e solucionar, a medida que os estudos particulares forem se desenvolvendo. À luz desses ensinamentos é que podemos adotar normas definitivas para cada caso especial. (Relatório de Atividades 1947 pág 1 e 4)

Ainda neste documento se encontram definições do que seria a Renda

Nacional. Alguns teóricos do assunto são citados, entre eles Kunznetz e Wagemann:

Kunznets (National Income and its Composition 1919-1938) define Renda Nacional como:

‘Valor líquido de todos os bens econômicos produzidos em um país’, correspondendo esse valor liquido da produção ao valor que chega nas mãos do consumidor, antes de se fazerem quaisquer deduções relativas ao consumo dos indivíduos. Será pois o valor líquido para a satisfação das necessidades do consumidor, correspondendo ao objetivo acima mencionado. É o mesmo que se encontra em Wagemann (Konjunktur lehre, trad. Inglesa). ‘a soma das receitas individuais que formam o sistema econômico nacional’. (ibid, pág. 1)

Além das definições do que seria a Renda Nacional, são citadas as

experiências dos Estados Unidos e da Inglaterra no cálculo de sua Renda.

De acordo com a prática comum nos Estados Unidos e a definição do item anterior podemos distinguir duas etapas no cálculo de Renda Nacional:

A Renda Nacional Produzida será igual ao valor líquido de todos os bens econômicos produzidos e serviços prestados no País, em um

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período determinado. Este total é igual ao valor bruto de toda a produção e serviços prestados, menos o valor de toda matéria prima e equipamentos (capital) consumidos no processo de produção.

Pra este processo de produção, os indivíduos com os seus serviços pessoais ou fornecem capital coletiva ou individualmente e recebem compensações, sob a forma de salários, juros, dividendos, retiradas de negócios, aluguéis e ‘royalties’, a soma destas parcelas pode ser designada: Renda Nacional Distribuída. (...)

Um detalhe importante já anteriormente citado, deve, desde já, ser esclarecido: o do ponto em que deve ser medida a Renda. Nos Estados Unidos, foi decido que a medida da Renda, no ponto de circulação da riqueza em que os indivíduos são pagos pelos seus serviços, permitirá os melhores resultados. A medida nesse ponto, não só daria (lá) os resultados mais precisos e mais definidos (ver National Income, 1929/35), mas também daria ao estimador a melhor oportunidade para eliminar a dupla contagem. Uma tal estimativa tem que ser, forçosamente baseada em estatísticas de rendimentos e de folhas de pagamento.(...) As estatísticas de consumo ou de venda a varejo, as de impostos diretos recolhidos, as de consumo de gás, energia, eletricidade etc, dos aluguéis e dos vários serviços consumidos, entre os quais os domésticos, transportes, divertimentos, hotéis etc., formam o conjunto de dados da qual foi extraída a estimativa do dispêndio da renda nacional da Inglaterra. Interessante é que, conforme cálculos de autores diferentes, os dois totais chegam a uma concordância animadora, neste país. (ibid, pág. 2, 3, 4 e 5)

Nos trechos acima é possível observar algumas das definições mais gerais que

permeiam o cálculo da Renda Nacional. Temos o "valor líquido de todos os bens

econômicos produzidos em um país" e a "soma das receitas individuais que formam o

sistema econômico nacional". Duas definições diferentes capazes de exprimir um

mesmo número, que, por sua vez, reflete a atividade econômica de uma determinada

nação - um espaço social, uma população, um território com uma moeda, etc.. A

Renda Nacional é um número. Mas um número que exprime uma "economia

nacional", um "país". O que, sem dúvida, depende e ao mesmo tempo constrói essas

unidades que se chamam “nações”. Ao mesmo tempo, a partir da relação entre este

“dado” e esta unidade torna-se possível a ativação da categoria "economia nacional",

apresentada numericamente. No caso do cálculo da Renda Nacional a “nação”, o país,

é tanto um “dado” concreto, uma realidade empírica, quanto uma categoria analítica

da ciência econômica. Assim, faz sentido associar esta tecnologia específica, o

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cálculo da Renda, ao “conjunto constituído pelas instituições, procedimentos, análises

e reflexões, cálculos e táticas que permitem exercer esta forma bastante específica de

poder, que tem por alvo a população, por forma principal de saber a economia

política” (Foucault:1981, 291), o que este autor chama de “governamentalidade”. O

número da Renda apresenta “dados” econômicos acerca de um território e de uma

população, ele é a sua medida, através dele se exerce controle a “atividade

econômica”.

Ocorre que tal número sempre é, como atestam os "técnicos", impreciso.

Mesmo em nossos dias os institutos de pesquisa que aferem a Renda Nacional (o PIB,

por exemplo) mudam por vezes as metodologias, gerando assim outros números. Se

levarmos em conta que tais dados são usados como referencia por empresários e

governos – como diz Mortara ao se referir a periodicidade dos números, "poucas

semanas e, nalguns casos, poucos dias de atraso podem ser suficientes para tornar

inutilizáveis, como auxílio para o homem de negócios ou o homem de governo, os

dados das estatísticas econômicas" (ob. cit. pag. 7) – temos uma situação na qual

políticas e debates se articulam a partir de dados passíveis de mudança. O passado

muda o tempo inteiro, e com ele o futuro. Estes números são sempre estimativas. Mas

isso não chega a ser um problema. Como diz Kuznets, em citação tirada de um artigo

de Antonio Dias Leite para a RBE:

Like all social measurement, national income estimates will never be beyond criticism on the score of reliability or completeness of coverage, or beyond dispute as to the validity of underlyng asumptions. But this, of course, is no reason for not using them now, or for not continuing work on their extension and improvement in the future. Despite all their imperfections, the estimates are indispensable for taking a broad view of the economy; and for testing in te he light of a record of the past and the immediate present the ever changing theories of economic behavior, diagnoses of economic problems, and pleas for economic reform. It is not unreasonably sanguine to hope that continuation, extension, and refinement of these estimates will assure an even greater contribution to a better understanding of economic life and to a more intelligent handling

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of the various problems that find their roots in the workings of the economy (Kuznets, Simon. National Income: A Summary of Findings, pag. 139. In Leite, Antonio Dias. Renda Nacional. In Revista Brasileira Economia, Rio de Janeiro 1(2) 1948, jun, pag. 80)

Neste mesmo artigo – lembremos que o autor era membro do Núcleo de Economia e

chefe da Equipe da Renda Nacional – são expostas, pela primeira vez na revista,

algumas reflexões sobre o cálculo da Renda Nacional. Nele Leite discute algumas

experiências estrangeiras no cálculo da Renda, e fornece um balanço dos trabalhos

executados pelo Núcleo.

A Renda Nacional de um país tem sido julgada a melhor medida de bem-estar econômico de sua população, tanto pelos autores dessas avaliações como por economistas em geral (...) Dentre as definições mais gerais e portanto aceitáveis, algumas abordam a questão pelo lado dos pagamentos feitos aos indivíduos componentes da população do país, em compensação pelo seu trabalho ou pela utilização do seu capital. Entre elas se enquadra a de Wageman41 'soma das receitas das unidades individuais que formam o sistema econômico nacional'. Já outros, considerando que o bem-estar econômico é diretamente dependente da massa de bens e serviços anualmente a disposição da população, concluem que a Renda Nacional deverá refletir, de um modo conciso, o valor da produção nacional. Abordam estes a questão pelo lado dos valores produzidos em cada unidade econômica e aqui se coloca S. Kuznets quando define42: 'Renda Nacional é o valor líquido de todos os bens econômicos produzidos em um país'. Essas definições não são precisas e só estarão perfeitamente esclarecidas quando tivermos melhor indicado, entre outras coisas, o que se deva entender por 'sistema econômico nacional' e 'valor líquido dos bens econômicos'. As duas nos dão, porém, pontos de partida para melhor nos aprofundarmos (Leite, Antonio Dias. “Renda Nacional”. in Revista Brasileira de Economia, Rio de Janeiro 2(1) 1948 pag., 94-95).

Aqui são apresentadas mais uma vez, e tal qual no Relatório de Atividade, algumas

definições gerais com as quais o Núcleo trabalha. Nota-se que, apesar de já se ter

concluído sobre a utilidade do cálculo da Renda como expressão da economia

nacional, pairam algumas dificuldades básicas, relativas aos próprios conceitos que

definem o que é a Renda Nacional. Falar em "sistema econômico nacional" de forma

abstrata, ou como eufemismo para outras expressões como "economia nacional",

41 Wageman, Eric. Economic Rhytm. MacGraw Book Co. New York. !930, pag. 32. 42 Kuznets, Simon. National Income. A Summary of Findings. National Bureau of Economic Research. NY. 1946.

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talvez não gerasse problemas. Mas a partir do momento que esta expressão se

converte numa categoria ou variável passível de verificação empírica e de

quantificação surgem os problemas. Afinal, o que se deve calcular? Que outras

variáveis são associadas à definição geral? Como calculá-las? Podemos imaginar que

tais perguntas permeavam o pensamento dos "técnicos" do Núcleo. Leite explica

melhor essas dúvidas:

Como já mencionamos, não existe uma Renda Nacional mas vários totais diferentes aos quais se tem dado o mesmo nome. As origens das principais divergências nos trabalhos que são do nosso conhecimento podem ser grupadas em torno dos seguintes pontos: a) critério para definição de 'atividade econômica' e conseqüente expansão das atividades abrangidas; b) limites geográficos daquelas atividades econômicas e conceito de residência no país; c) maneira pela qual se entende o 'valor líquido' da produção subdividido em dois aspectos 1) relativamente aos impostos indiretos 2) relativamente à conservação do capital nacional d) interpretação que se faz de atividade econômica do Governo (ibid, pag. 97-98)

. Apesar das dificuldades e dúvidas entendia-se possível transformar números e

estatísticas já existentes, referentes à economia brasileira, ainda que pudessem surgir

dúvidas sobre o que seria afinal a "economia brasileira" (tomando como eufemismo

de sistema econômico nacional) ou a "atividade econômica".

De qualquer modo, e apesar das dúvidas, os cálculos e estudos foram sendo

feitos. Leite explicita melhor a metodologia aplicada ao cálculo da Renda feita pelo

Núcleo em um outro artigo publicado na RBE, em março de 1948. Segundo ele:

O método de cálculo depende: a) do conceito ou dos conceitos adotados para o total da renda nacional b) dos recursos estatísticos existentes e daqueles outros cuja obtenção é possível dentro de um prazo e de um custo compatíveis como interesse depositado nos resultados. De modo geral reconhece-se a existência de quatro métodos: 1) Havendo possibilidade de se obter contas completas de todas as unidades economicamente produtivas do país, calcularíamos para cada unidade a receita bruta e deduzir-se-iam os pagamentos feitos a outras unidades e, conforme o caso, também as parcelas despendidas para a conservação do capital e pagamento de impostos.

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2) No caso de haver documentação completa sobre os recebimentos dos indivíduos correspondentes à prestação de trabalho ou ao fornecimento de capital, teremos, pela soma dessas receitas, a renda nacional distribuída, bastando acrescentar as economias conservadas em poder das empresas, para se obter o total da renda nacional produzida. 3) Se tivermos ainda estatísticas sobre o dispêndio realizado pelos indivíduos em bens de consumo e aplicação das economias dos consumidores, elas nos darão o consumo mais as economias dos consumidores, correspondendo, portanto, ao total de renda nacional distribuída. Suficiente será adicionarem-se as economias não distribuídas das empresas para termos a renda nacional produzida. Pode ser dado também sob o aspecto de consumo mais formação de capital. 4) Um último aspecto pelo qual o cálculo poderia ser abordado: ainda utilizando os balanços ou dados estatísticos relativos às empresas será possível obter-se os pagamentos feitos por estas aos indivíduos. Somando-se a esse total as economias não distribuídas das empresas, teremos a renda nacional produzida" (Leite, Antonio Dias. “Renda Nacional”. in Revista Brasileira de Economia 2(1), pag. 71 –72).

Assim temos que, primeiramente, são estabelecidos os conceitos básicos

referentes à Renda. O que esta é e exprime, afinal. Em segundo lugar, são elaborados

os métodos de cálculo propriamente ditos, baseados naquilo que se considera como

sendo a própria Renda. Neste passo as categorias que compõem as definições gerais

se diferenciam em outras que podem ser analisadas no seu conjunto (numa relação do

tipo "e"), ou intercambiadas umas pelas outras (numa relação do tipo "ou", se elas

forem equivalentes). São categorias como "receita", "unidade produtiva",

"pagamento", "impostos", "capital", "consumo", etc. Elas se diferenciam, pois o

número expresso é o mesmo. Tanto faz do ponto de visa numérico falar em "Renda

Nacional = x", ou em "pagamentos feitos por empresas a indivíduos + economias das

empresas = x". Mas quando se analisa o conjunto de termos empregados em cada

uma das etapas para se estabelecer um cálculo, e, conseqüentemente, descrever a

"atividade econômica", percebe-se uma diferença que não é quantitativa mas

qualitativa. São criados uma infinidade de categorias e conceitos que explicam e

compartimentam a "atividade econômica" ou o "sistema econômico nacional". A

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"economia nacional" se diferencia numa variedade de relações, setores, atividades,

comportamentos.

Este ponto fica mais claro em outro trecho do artigo, quando Leite cita

algumas experiências internacionais referentes ao cálculo da Renda Nacional.

Trabalho interessante é o proposto por J. B. Derksen [que esteve na FGV], na Holanda43.

Nesse trabalho foram feitos os seguintes grupamentos de atividades para o fim do estudo dos pagamentos.

- Empresas

-Governo

- Consumidores

-Economias Coletivas (Companhias de seguros, etc.)

-Economias Externas

-Contas Combinadas de Capital

Na sua justificativa, o autor acentua as vantagens do processo utilizado para o levantamento desses produtos e que denomina de 'sistema de contabilidade nacional'. Esse nome é devido ao fato de ser o trabalho feito à semelhança de uma conta de receita e despesa em contabilidade comercial. Fez ele, para cada um dos grupamentos acima, uma conta de receitas e despesas combinadas (...)

Nos EE.UU, no programa do National Bureau of Economic Research44 consta a seguinte subdivisão da economia para o estudo dos fluxos de pagamento: setor doméstico, empresas de atividade não financeiras, fazendas, outras empresas privadas não financeiras, Governo Federal, Governos Municipais e Estaduais, sistema bancário, companhias de seguro de vida, outras companhias de seguro, várias outras empresas financeiras. Entre os pagamentos constam: folhas de pagamento, juros, dividendos, aluguéis, retiradas de negócio, impostos, construções, consumo de bens e serviços, lucros de seguro, prêmios de seguro, donativos, subsídios e contribuições (ibid, pag 74-75).

Muitas das categorias empregadas certamente já eram utilizadas de outras

formas, como juros, pagamentos, etc. Outras não, como a própria noção de "renda

nacional". Ocorre que neste tipo específico de emprego, elas formam um conjunto, ou

como dizem os economistas um "agregado". Refletem a "atividade econômica" de um

43 Derksen, J.B. A System of National Book-Keeping (Illustrated by the Experience of The Netherlands Economy. National Institute of Economic ans Social Research. Cambridge University Press, 1946) 44 National Bureau of Economic Research. Steping Stones Towards the Future, 27 th Repport of the National Bureau, NY, 1947.

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país. Ou seja, as categorias e conceitos, recentes ou antigos, formam um novo quadro.

Sua invenção e ou rearranjo passam a definir uma certa "realidade econômica". É

bastante ilustrativa, neste sentido, a comparação que, segundo Leite, Derksen faz

entre seu sistema de "contabilidade nacional" e a contabilidade de uma empresa

comercial. Tratar-se-ia da transposição de uma prática empresarial corrente, para o

âmbito da economia nacional. Também Poovey (1998), como já mencionado, nos

fala como a prática da feitura dos quadros de dupla entrada pelos comerciantes é aos

poucos – ao longo das décadas e séculos seguintes – absorvida pelos Governos e pelo

Estado, convertendo-se num sistema público de contabilidade. Certamente o cálculo

da Renda Nacional, bastante recente se comparado aos quadros de dupla entrada,

corresponde a um exemplo desde tipo de movimento.

Porém o percurso de transformação da Nação em unidade econômica não foi

nem natural nem óbvio. Como nos diz Hobsbawm, primeiro era necessário existir a

própria idéia de “Nação”, o que foi facilitado em larga medida pela existência de uma

economia – no século XIX – que já era internacionalizada. Ou seja, alguns dos atores

principais das trocas comerciais eram os próprios países que compunham a economia

mundial. Segundo o autor: “O desenvolvimento econômico nos séculos XVI a XVIII

foi feito com base em Estados territoriais (...) de modo mais óbvio ainda, quando

falamos de capitalismo mundial no século XIX e começo do XX, falamos das suas

unidades nacionais componentes do mundo desenvolvido – da indústria britânica, da

economia americana, do capitalismo alemão” (Hobsbawm: 1991, 37). O cálculo da

Renda Nacional pode ser considerado, portanto, uma importante expressão do

protagonismo que as nações desempenharam tanto como agentes da economia

mundial, quanto, para nosso maior interesse, como categorias da análise da teoria

econômica, principalmente na primeira metade do século XX, período que o

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historiador inglês identifica, justamente, com o apogeu do nacionalismo. Não parece

ser trivial o fato de que justamente no pós-guerra, momento onde os Estados

nacionais cumpriam importante função no planejamento e gerenciamento das

economias, comecem os primeiros cálculos da Renda Nacional no Brasil.

Assim temos que a Nação torna-se uma unidade analisável, passível de

diferenciação em dezenas de subunidades. A partir de todos os exemplos citados, e da

experiência do próprio Núcleo, Leite apresenta, no fim de seu texto, um gráfico

contendo o "esquema ilustrativo da formação e do cálculo da renda nacional"

Este gráfico (tirado de, Leite, Antonio Dias. “Renda Nacional”. Revista Brasileira de

Economia, Rio de Janeiro, 2(1) mar, 1948, pag.82) contém uma série de elementos

bastante indicativos do que venho tentando mostrar até aqui. Em primeiro lugar, o

simples fato de tais esquemas serem mostrados graficamente já é bastante ilustrativo.

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Em segundo lugar neles encontramos bem delimitados (na forma de boxes) todos os

setores, agentes e itens que compõe a formação do capital e renda nacional. Ao

mesmo tempo que eles têm suas fronteiras bem delineadas, são associados a uma

unidade maior e relacionados uns com o outros. Por exemplo, certos itens, separados

cada um em seu box, compõe o setor “governo” que por sua vez, através dos boxes,

se relaciona com outros setores. Ou, como dito até aqui, as unidades se diferenciam

em subunidades.

Tal procedimento/esquema também é um elemento constituinte do processo

de purificação que procuro descrever. Como já dito anteriormente, a consolidação da

ciência econômica enquanto campo do saber autônomo dependia, e se sustentava, a

partir da constituição de um conjunto de práticas e tecnologias e ela associadas. Os

cálculos aqui apresentados – incluindo o dos índices de preços – são parte de um

inventário de tecnologias e práticas da economia. Mas não é só isso. A purificação

não serve apenas para descrever a emergência de um campo científico enquanto

aparato institucional e repositório de certas idéias sobre o papel da ciência. Ela diz

respeito, também, ao próprio funcionamento dos procedimentos reconhecidos como

científicos. Nos cálculos, ao estabelecer claras distinções entre aquilo que é e não

uma variável, o que os conceitos definem etc., há um processo de purificação das

categorias empregadas, sendo estas referidas à ao que se considera a “economia”.

Segundo Goody (1977) os gráficos e tabelas fazem parte de uma forma de

pensar específica de uma cultura específica, poderíamos dizer “ocidental” 45. Já

Latour (1991) insiste no fato de que a purificação é um procedimento que caracteriza

a ciência (que se pensa moderna). Neste sentido nada mais “ocidental” e “científico”

do que a ciência econômica e suas técnicas. Esta corresponde a uma forma específica

45 Daí a critica do autor a classificação, feitas por antropólogos, das categorias da sociedades primitivas através de gráficos e tabelas.

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de se pensar o mundo, que se estrutura, também, a partir de elementos gráficos. Sem

as tabelas o cálculo da Renda Nacional não seria possível.

Mas fica a pergunta: afinal o Núcleo de Economia estabeleceu o cálculo da

Renda? A resposta é sim. A diferença para os anos anteriores é que a batuta saiu das

mãos do Núcleo, extinto, para o IBRE, recém criado46.

O número de setembro de 1951 da RBE é todo dedicado à "Estimativa da

Renda Nacional do Brasil 1947-1949". Nele são apresentadas de modo bastante

extenso as definições e metodologias empregadas, referencias bibliográficas e

referencias históricas associadas ao cálculo da Renda Nacional no Mundo (ver em

anexo 4 trecho da “Estimativa” que percorre as rotas feitas pelo Núcleo em seus

primeiros anos, no que concerne o cálculo da Renda Nacional e a tabela da Renda

Nacional de 1947-1951 publicada em RBE em dezembro de 1952).

3.4 – Conclusão: os números, as nações e os tempos

Foi objetivo deste capítulo analisar algumas das idéias e técnicas que estavam por de

trás dos debates e cálculos acerca dos índices de preços e de Renda Nacional,

realizados pelo Núcleo de Economia da FGV a partir de 1946. Como foi visto, os

processos de cálculo implicavam um duplo movimento, sempre inter-relacionado,

seja para os índices, seja para a Renda Nacional.

Em primeiro lugar, a elaboração de um conjunto de conceitos e categorias que

se supõe “econômicos” são descritivos de uma certa realidade. Estas categorias

possuem uma dupla natureza. De um lado constroem o mundo ao qual a teoria

46 Nesta data a composição da Equipe de Estudos da Renda Nacional também mudou. Passaram a ser integrantes a partir de 1952: Genival de Almeida Santos, chefe, Issac Kerstenetzki e Julian Magalhães Chacel, economistas, Dionísio Rios, Carlos Marques de Souza, Lila Rosa de oliveira e Álvaro Ribeiro, economistas auxiliares, Sebastião Advíncula da Cunha, Milton Medronho Guimarães, Sven Guilherme Reichert e José Carlos Palacios Kruel, auxiliares técnicos, Irene Castello Branco Barata, datilografa.

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econômica – e neste caso aos instrumentos de teoria econômica aplicada – se refere.

Como no caso de certas mercadorias ou serviços (para os “índices de preços”), ou o

“Governo”, “consumidores” (para a Renda Nacional), tais categorias possuem vida

para além das teorias econômicas, porém ao se inserirem num instrumento de cálculo

passam a designar e construir um mundo de termos e relações classificados como

econômicos.

Em segundo lugar, promove-se a associação entre estas categorias e números.

Estes também parecem possuir uma dupla natureza. Ora referem-se ao que se poderia

considerar um fato da vida econômica: um preço de mercadoria, um salário, um

imposto, etc. Em outro momento referem-se ao produto de um cálculo, ao agregado

de diversos outros números que descrevem uma certa economia, como um índice de

preço ou a Renda. Os primeiros são recolhidos junto a consumidores, indústrias, etc.

e mudam de acordo com aquelas variações detectadas pelos índices: a inflação, as

negociações, a política econômica; os segundos (os próprios índices) são calculados

pelos economistas dentro de seus laboratórios, e mudam de acordo com metodologias

de cálculo aplicadas. Eles "refletem" algo, e são passíveis de mudança, seja por

revisão da metodologia seja por acréscimo de novos elementos; um certo passado

econômico descrito – a inflação de um determinado mês, a Renda de um determinado

ano – pode mudar a cada novo cálculo. Mas eles também se relacionam num sentido

inverso, posto que os números-índice também são utilizados como instrumento de

políticas e analises. Eles passam então a intervir no mundo de relações econômicas

que "refletem”. Ou seja, eles revelam seu caráter performativo (Neiburg: 2007;

Callon: 1998).

A associação entre números e categorias parece também não ter fim. Ela se

comporta com em uma espiral de categorias e números, sempre passível de um novo

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cálculo baseado em elementos que o precederam. O índice de custo de vida pode se

desdobrar em outros índices, a partir da colocação de uma nova variável, como a

renda, ou como componente da construção de um novo índice; um índice de outros

índices. A cada passo tem-se novos números e novas categorias, e organizando a

relação entre ambos, tem-se as tabelas e os gráficos.

Tabelas, gráficos e agregados não são, no entanto, apenas modelos de

apresentação de dados construídos dentro de um laboratório e publicados para o

grande público. Todos eles evidenciam uma forma de se relacionar categorias,

números e o tempo. Este último me parece conter uma dimensão fundamental. A

saber: todo "fato" econômico é definido dentro de alguma – ou algumas – escala

temporal (Neiburg: 2007). Um índice de inflação é um número de um determinado

período de tempo; a semana, o mês, o ano. Ele "reflete" aquele momento apenas, mas

basta uma mudança na metodologia de cálculo ou de ponderação para que o número

mude. Ou ainda, um índice de inflação pode indicar também uma "projeção". Neste

caso não temos a definição de um número do passado ("a inflação ano passado ficou

em 15%"), mas a de um número no futuro. Futuro este que, diga-se, muda o tempo

todo. Não é raro nos dias atuais ler nos principais jornais, novas "projeções" feitas a

cada mês pelos mesmos institutos de pesquisa. Sendo as alterações nos números

futuros controladas por cada medição de um número do passado, a taxa de inflação de

um determinado mês, segundo uma metodologia de cálculo específica

Também a Renda Nacional está referida a certas escalas temporais. A Renda é

sempre um número de um determinado ano ("Renda Nacional para o ano de 1950").

Ela expressa a soma de todas as riquezas produzidas em um país em um determinado

período. Tal como os agregados da inflação, ela também é passível de mudança no

passado, numa revisão dos números (o Núcleo publicava revisões periódicas das suas

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estimativas). Aliás, o fato de uma referencia ao passado ser tratada como "estimativa"

– era assim chamada pelo Núcleo: Estimativa da Renda Nacional do ano de... - é

bastante ilustrativa de tal fato. Neste caso temos uma situação explicita, onde o

passado muda o tempo todo (Foucault: 1997). Mas também o futuro muda

permanentemente, a partir das "estimativas" da Renda e da inflação direcionadas para

o futuro. Os gráficos e agregados parecem verdadeiras máquinas do tempo, indo do

passado ao futuro, sendo estes alterados a partir de novas medições e mudanças das

metodologias. Esta observação se adéqua também a uma série de outros gráficos e

esquemas publicados em Conjuntura Economica neste mesmo período dispondo

sobre "ciclos" e "flutuações" ("ciclo" do preço do café, por exemplo), onde o tempo

histórico surge, muitas vezes retrocedendo décadas e até séculos. Os próprios termos

descritos para se falar de uma "realidade" ou "história econômica" – ciclo e flutuação

– são em si mesmos temporalizados posto que designam movimentos.

Movimentos estes associados sempre a um “lugar”. Seja no cálculo das

medidas da inflação, seja da Renda, ou de qualquer outro “fenômeno” ou “variável”

torna-se imperativo a utilização de categorias que descrevam dois recortes: um

temporal, outro espacial. Um número-índice sempre descreve/cria um “dado

econômico” referido a um local (“nação”, por exemplo) e a uma época.

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Conclusão

Chegamos assim ao fim da presente dissertação. Foi tentado, ao longo do trabalho,

analisar a criação da Fundação Getúlio Vargas à luz de três movimentos principais, e

que correspondem aos três capítulos apresentados: 1 – a constituição da FGV vista

como resultante de uma série de processos históricos relacionados à configuração do

campo das ciências econômicas, desencadeados no Brasil na primeira metade do

século XX, tendo como "lente" analítica as trajetórias de três personagens chaves em

tais processos; 2 – os marcos legais e institucionais que caracterizaram a criação da

Fundação e do seu Núcleo de Economia, bem como todo o ideário acerca da

importância da ciência para a análise e resolução dos "problemas econômicos", que

permeavam as ações e reflexões dos agentes envolvidos neste processos, na segunda

metade da década de 1940; 3 – um mergulho substantivo nos dispositivos inventados

pelos economistas do Núcleo para os cálculos dos índices de preços e da Renda

Nacional, numa tentativa de melhor analisar os aspectos cosmológicos que

permeavam a configuração da ciência econômica, já presentes desde as primeiras

linhas do presente trabalho; esta série de processos exigiu um esforço compreensivo e

analítico que congregasse instrumentos da historiografia, da antropologia da economia

e da antropologia da ciência.

A série de questões apresentadas acima se desdobraram em outras, no interior

de cada capítulo. Relembro algumas que me parecem de mais fundamental

importância. Em primeiro lugar temos o papel determinante da burocracia estatal na

configuração do campo das ciências econômicas. Tal fato é perceptível desde as

primeiras décadas do século XX, quando no seio dos governos são criadas agencias e

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instituições de análise e política econômica – aquelas mesmas pelas quais passaram

Bulhões e Gudin ao longo de algumas décadas. A constituição da FGV correspondeu

a mais um passo neste processo, porém como uma diferença: tratou-se da criação de

uma entidade de direito privado, concebida, instituída e financiada pelo Governo

Federal. Esta situação, que foi vista como problemática pelo Tribunal de Contas da

União, foi possibilitada graças ao ideário acerca da autonomia e pureza científicas (e

da "flexibilidade" das empresas privadas no caso de Lopes) que permeavam as

reflexões de determinados agentes da época, e que garantiriam a autonomia

institucional de uma entidade dedicada à ciência.

Em segundo lugar, percebemos o papel central que relações no plano

internacional desempenharam para a configuração do campo das ciências econômicas

e para a constituição e consolidação do Núcleo de Economia da FGV. Isto se deu

através da construção de redes institucionais – como com Bretton Woods, com a

CEPAL, e as visitas de profissionais estrangeiros –; pela consolidação de países

estrangeiros como "exemplos" a serem seguidos no que tange a análise e o

desenvolvimento econômico; e através da ativação de relações com profissionais e

instituições estrangeiras por alguns profissionais e entidades brasileiras com vistas a

acumulação de capital intelectual.

Uma terceira questão corresponde a um eixo que perpassa toda a dissertação, e

que ganha força no terceiro capítulo. Trata-se dos conjuntos de disposições e reflexões

dos indivíduos que participaram da criação da FGV e do Núcleo, e que compõe a base

do material empírico que fundamentam o presente trabalho. Ali somos apresentados

idéias acerca da "racionalidade", da "ciência econômica", do "progresso", da

"economia nacional", etc., que mobilizaram os agentes no sentido de transformar o

aparato institucional público e privado da época e a inventar novos instrumentos e

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técnicas de análise e intervenção econômica. Embora tenhamos questões deste tipo

em toda a dissertação, é, sem dúvida, no terceiro capítulo que ela ganha força, quando

os artigos da RBE e da RCE dispondo sobre os trabalhos realizados pelo Núcleo são o

material principal. Neste momento nos é revelada a composição de um grande

inventário de tecnologias (a Renda Nacional e os índices de preços) de cálculo que

misturam números, categorias sociais (classes, agentes econômicos, etc.), tabelas,

gráficos, equações, bens, nações, numa pletora de formulações capazes de revelar

todo um novo universo.

Ao tomar o conjunto de reflexões dos agentes como eixo do presente trabalho,

espero ter relativizado qualquer separação substantiva entre aquilo que se poderia

considerar como "estruturas formais", como as instituições, as revistas, a burocracia,

os diversos campos, e os conteúdos das idéias e das práticas de certos agentes que se

dedicaram à ciência econômica. Digo isto pois tais "estruturas formais" estão elas

mesmas presentes nas reflexões dos agentes. No meu trabalho, são estes que se

referem à importância do campo internacional, das revistas, da burocracia, etc. Tais

“estruturas” são, portanto, parte constituinte do ideário daqueles que agem e refletem

em nome da “ciência”; elas correspondem a categorias práticas. Assim, embora, de

fato, os dois primeiros capítulos tenham um caráter mais institucional, e o terceiro,

poder-se-ia dizer, cosmológico, a diferença entre eles é mais de enfoque e intensidade

em um ou noutro ponto.

Num certo sentido estas diferenças nuançam a utilização de dois termos – por

mim – para falar das instituições, das idéias e dos instrumentos criados pelos

economistas no curso da constituição da FGV. Refiro-me à "autonomia" (muito

citada por Bourdieu) e a "purificação" (usada por Latour). A primeira com um sentido

mais institucional, referente a certas estruturas formais, a segunda referente ao

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conteúdo das práticas científicas. Ocorre que do ponto de vista do presente trabalho

tais distinções não podem ser absolutizadas, embora, sim, forneçam enfoques

diferenciados (lembremos que os próprios agentes se referem às instituições e as

idéias econômicas). A autonomia depende de um processo de purificação, que

também envolve a invenção de macro-categorias como "economia" ou "ciência

econômica", do mesmo modo que a purificação depende de um certo ambiente

institucional considerado autonomizado (ou autonomizável) para se desenvolver, e

sobre o qual ela também é responsável pela existência. Os dois termos dizem respeito

a fenômenos com certas diferenças, mas ambos são faces da mesma moeda.

A relação entre o conteúdo das idéias e as técnicas – ou melhor, das próprias

idéias e técnicas – e estas estruturas formais é complexa, pois as próprias estruturas

são vistas e sentidas por seus participantes à luz deste conjunto de idéias. Os EUA, e

suas universidades, não são um exemplo em si. Mas um exemplo a partir de certas

concepções de como é e como deve ser a ciência econômica, ou de como é e como

deve ser o "progresso" econômico. Do mesmo modo, certas práticas e idéias são

capazes de servir como pretexto para o estabelecimento de novas relações dentro de

uma rede internacional ou nacional; como a própria relação entre a FGV e

economistas de universidade estrangeiras.

Para a construção de uma antropologia da economia e da ciência que leve em

consideração o que fazem e pensam seus agentes, torna-se importante relacionar o

maior número de elementos possível. Não porque tal fato simplesmente ajude a

explicar melhor um certo universo, tornando-o mais rico. Ou para eleger uma

variável que se torne determinante em relação às outras. Mas porque, aquilo que se

observa e analisa é formado a partir da sobreposição e inter-relação de diversos

elementos. Da perspectiva de uma antropologia da economia, faz sentido analisar a

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configuração do campo da ciência econômica a partir deste conjunto de

sobreposições e inter-relações: idéias, concepções, práticas, trajetórias, instituições,

estruturas formais, etc. Não porque as considere simplesmente importantes e atuantes,

mas porque elas mesmas emergem a partir dos conjuntos de relações e disposições

dos agentes.

Por fim, um último ponto merece ser destacado. Trata-se do caráter

naciocentrado do processo de configuração das ciências econômicas. Desde o

primeiro capítulo da presente dissertação fica claro o quanto a "nação" ocupa lugar

central nas motivações, nas reflexões e nos instrumentos apresentados pelos

indivíduos e instituições envolvidos neste processo. Tal fenômeno fica evidente de

várias formas. Foi observado como a série de medidas tomadas no sentido de se criar

entidades, publicações, escolas, instrumentos de quantificação, tinham como fim

objetivos baseados em questões tais como o "progresso nacional", a "riqueza

nacional", etc. O "país" – e outros termos a ele associado como "a gente brasileira"

apresentada na carta enviada por Lopes a Vargas em julho de 1944 – é parte

indissociável da construção da ciência econômica e do mundo de relações que esta

descreve: a própria economia, marcadamente recortada em unidades nacionais.

Porém este fenômeno não pode ser reduzido apenas à descrição de um certo

universo de relações, nem ao simples acréscimo, como poderia parecer num primeiro

momento, de um certo contexto histórico-geográfico aparentemente óbvio – o próprio

recorte nacional – às análises da ciência econômica. Mas sim a invenção, e constante

re-invenção, da "nação" e do "espaço nacional", pela economia e pelos economistas.

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Certamente, a imbricação entre a configuração das ciências econômicas e a criação

do "nacional", muito contribuiu para a naturalização que este recorte possui, dada a

centralidade das ciências e análises econômicas dentro do pensamento ocidental nas

últimas décadas e séculos. Se Callon nos diz que a vida econômica está embebida nas

teorias econômicas (1998), realçando assim o caráter performativo destas teorias,

também poderia ser dito que a "nação" está embebida nas teorias e ciências

econômicas, dada a sua centralidade nas reflexões e instrumentos dos economistas.

Especialmente no terceiro capítulo este ponto me parece ter ficado claro. Nas

análises ali propostas acerca do desenvolvimento dos cálculos dos índices de preços e

da Renda Nacional pelo Núcleo de Economia, foi mostrado como estes instrumentos

congregam números, procedimentos de cálculo, e termos variados, como classes

sociais, bens e serviços, famílias, governos, países e nações. O discurso econômico

depende destes termos – não pertencentes apenas ao domínio das ciências econômicas

– para se realizar, ao mesmo tempo que ao utilizá-los os reinventa, como no caso

específico da "economia nacional" nos cálculos da Renda Nacional. As teorias das

ciências econômicas não são as únicas responsáveis pela invenção da "nação", mas

certamente são parte integrante e indissociável deste processo.

“O trabalho anual de toda nação é o fundo que originalmente lhe fornece todas as

necessidades e utilidades da vida que anualmente consome, e que consiste sempre ou no

produto imediato desse trabalho, ou naquilo que é comprado com esse produto”

(Adam Smith, A Riqueza das Nações)

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ANEXO 1 – Carta de Eugênio Gudin ao Ministro Gustavo Capanema

Senhor Ministro,

Tenho a honra de submeter à apreciação de V. Excia. o incluso projecto de Programma do Curso Superior de Sciencias Economicas, organizado em collaboração com o professor Maurice Byé e com o distincto economista brasileiro Dr. Octávio Bulhões. Apesar de serem as principais theorias do estudo da Economia, com as de Valor e Formação dos Preços, de Moeda e Crédito, de Commércio e Cambios Internacionaes, etc. tratadas em cadeiras especiais do Curso, pareceu-nos indispensável abrir o curso com uma cadeira de Economia Pollítica em geral: a) porque as cadeiras especializadas só abrangem os principaes e mais importantes sectores do estudo da economia, havendo outros que deixariam de ser tratados si não houvesse um curso geral de Economia Política; b) porque nenhuma das matérias das cadeiras especialisadas pode ser convenientemente tratada si os alunos não tiverem um conhecimento prévio e geral de certas outras matérias. Com excepção da cadeira de Estrutura das Organizações Economicas, do 1o anno, as demais cadeiras especialisadas são estudadas depois do curso de Mathemática do 1o anno, pois que essa disciplina é de especial utilidade para o estudo de certas partes das cadeiras especiaes. O curso de Sciencia das Finanças (3o anno) pode parecer exiguo, feito em um ano só, mas a matéria não é bastante vasta para dois annos e adoptamos o alvitre de uma só cadeira com 6 horas de aula por semana. A mesma consideração se applica à Estatistica (2o ano), mas nesse caso pareceu-nos conveniente acrescentar uma segunda cadeira, de aplicação no 3o anno. As cadeiras de Geographia Economica no 1o anno, de Historia Economica no 2o anno e de Sociologia e Economia no 3o ano são introduzidas com o objectivo de ampliar o horisonte de cultura geral e de pensamento dos alumnos. Quanto às denominaçòes adoptadas para os títulos das cadeiras, convem explicar o sentido de algumas d`ellas. Por exemplo: a) o título Estrutura das Organizações Economicas (1o anno) corresponde ao que se poderia chamar também de Quadors da Vida Economica no systema da Economia apropriativa, de Economia do Consumo e de Economia Capitalista; os franceses adoptariam talvez a denominação de Enterprise (palavra de diffícil traducção em portuguez) b) o título da Theoria da Repartição da Renda Social comprehende o estudo da renda da terra, dos salários, do juro e do lucro. c) a cadeira de Commercio e Cambios Internacionaes comprehende tambem o estudo da política commercial internacional d) a cadeira de Theoria da Evolução Economica refere-se sobretudo ao estudo do sector por assim dizer supremo da Economia, qual o dos Cyclos de Prosperidade e Depressão. e) a cadeira de Estudo Comparado dos Regimes Economicos comporta a synthese dos quadros da vida economica em regimes individualista, collectivista, dirigido, etc.

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Os trabalhos praticos no 1o anno seriam de orientação bibliographica, no 2o anno seriam quasi exclusivamente de problemas estatísticos de 1o grau, no 3o anno de problemas de estatística mais adeantada e de outros problemas de Economia e no 4o anno de preparo de theses em collaboração com o professor. Taes são, Senhor Ministro, as linhas geraes do curso Superior de Sciencias Economicas, cuja criação, separada da do Curso de Admnistração, parece-me uma etapa preliminar e essencial para o progresso economico do Brasil. Aceite V. Excia. a segurança de meu alto apreço (Gudin, Eugenio. Programma do Curso Suiperior de Sciencias Economicas. iN O Pensamento de Eugenio Gudin, pag. 42-43

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ANEXO 2 – Decreto-Lei 6693 de 14 de julho de 1944

Art. 1- O presidente do departamento administrativo do serviço publico fica autorizado a promover a criação de uma entidade que se propõe ao estudo e a divulgação dos princípios e métodos da organização racional do trabalho e ao preparo do pessoal qualificado para administração publica e privada mantendo núcleos de pesquisa, estabelecimentos de ensino e os serviços que forem necessários, com a participação dos órgãos autárquicos e para estatais, dos estados, territórios, do Distrito Federal e dos municípios, dos estabelecimentos de economia mista e das organizações privadas. Art. 2- O presidente do departamento administrativo do serviço publico designará uma Comissão para auxiliá-lo no desempenho das atribuições que lhe são cometidas por esta lei. Parágrafo único: caberá a esta Comissão estudar a forma jurídica mais conveniente a entidade a que se refere esta lei e promover a satisfação das providencias a aquisição de personalidade jurídica, elaborando, ainda, o projeto de Estatutos que, depois de submetido aos interessados devera ser aprovado pelo ministro da Justiça, mediante a expedição de portaria. Art. 3 – O presidente do DASP representará o governo federal nos atos de constituição da entidade.47

47 Decreto lei 6693 de 14 de julho de 1944

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ANEXO 3 – Carta aos doadores

Uma das maiores dificuldades que se apresentam ao nosso administrador, seja na indústria, na lavoura, no comércio ou em serviços públicos, reside na falta de pessoal habilitado para as diversas funções especializadas que assegurem o maior rendimento em qualidade e em quantidade a produção e a circulação da riqueza nacional. Esse é um dos problemas que teremos de resolver a todo custo, pois sua solução depende do êxito de cada uma das iniciativas privadas e do próprio surto progressista que está elevando o Brasil à categoria de país industrial. Como poderemos fundar grandes fábricas e usinas ou desenvolver e modernizar as já existentes, como mecanizar a produção agrícola ou extrativa, como aparelhar as organizações comerciais e os transportes marítimos, fluviais, rodoviários, ferroviários, e aéreos para atender às crescentes necessidades desse novo tipo de economia nacional, como, enfim, dotar a administração pública de serviços que regulem e coordenem todas essas atividades, estimulando-as em vês de entorpecê-las, se nos faltar o elemento humano com o imprescindível domínio da técnica? Os países mais adiantados tiveram de enfrentar essa questão e foi em conseqüência dos debates na Conferência Econômica Mundial de Genebra, em 1927, que dessa data para cá se criaram nos Estados Unidos e na Europa cerca de 400 entidades dedicadas exclusivamente à formação de técnicos e a sistematização das experiências obtidas na administração geral e seu aproveitamento na indústria, na agricultura, no comércio e em todas as empresas e profissões (...) A evolução dos processos e das técnicas moveu os sociólogos a uma análise dos motivos que levam as pessoas ao trabalho. Max Weber demonstra que a mentalidade de um homem especializado busca geralmente, a par de ganho, através do salário, uma recompensa psicológica, traduzida na paixão pela carreira ou no apuro da eficiência. Ford pretendeu encontrar os marcos de uma nova filosofia utilitária, indicando os benefícios de ordem coletiva e individual, resultantes da orientação que manda colocar em primeiro lugar, nas preocupações do organizador, a melhoria do homem e da técnica (...) A criação ou o aumento da riqueza nacional está intimamente ligada a adoção daqueles princípios, mas as iniciativas tomadas até a pouco foram isoladas ou de pequeno vulto e não puderam atender às nossas necessidades. Impunha-se a instituição de uma entidade especial, capaz de conjugar, unificar e orientar os esforços e os interesses públicos e privados. Tal entidade foi concebida pelo Presidente do Departamento Administrativo do Serviço Público, Dr. Luiz Simões Lopes, e a ela o Governo deu forma e força legal

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ANEXO 4 – “Estimativa da Renda Nacional do Brasil 1947-1949” e Tabela “Estimativa da Renda Nacional 1947 – 1951”

A atividade da Fundação, no setor da Renda Nacional, teve início na segunda metade do ano de 1947, época em que o Núcleo de Economia realizou as primeiras reuniões orientadas no sentido de promover a avaliação, em bases permanentes, das estatísticas brasileiras da Renda Nacional, Balanço de Pagamentos e Índices de Preços. Realizou o Núcleo, durante alguns meses, reuniões em que foram discutidos os aspectos puramente conceituais da recente Teoria da renda Nacional, então ainda não bem conhecida em seus detalhes, pela maioria dos economistas e estatísticos brasileiros. As dificuldades, nessa altura da pesquisa, foram numerosas, não só devido ao fato de não existir ainda concordância dos pontos de vista, no exterior, relativamente a questões teóricas fundamentais, como ainda devido à necessidade de serem esses conceitos reanalisados por nós, tendo em vista a existência de características específicas da economia brasileira. Contou o Núcleo em algumas das suas reuniões dos meses de junho a setembro de 1947, com a presença do Prof. G. Haberler, da Universidade de Harvard, que tomou parte em várias discussões. Terminou essa fase inicial com a elaboração de um primeiro programa de pesquisa. O Núcleo de Economia estava, já nessa época, convencido de que pouco significado teria a obtenção do total geral da Renda Nacional e que o interesse maior se concentrava no conhecimento das parcelas em que se decompõe esse total. Havia,, porém, ainda, nesse momento quem duvidasse da existência no Brasil dos dados estatísticos que permitissem a satisfação desse objetivo mais largo" (...) "Em fins de 1949, estabeleceram-se entendimentos para a vinda ao Brasil do Dr. J. B. D. Derksen, chefe da Seção da Renda Nacional do Serviço de Estatística da Organização das Nações Unidas. Para a visita desse técnico a E.E.R.N [Equipe de Estudos da Renda Nacional] preparou um relatório que teve circulação interna e foi distribuído a alguns chefes de repartições federais e estatísticas(...)Das reuniões que tivemos com o Dr. Derksen, de 23 de maio a 17 de julho de 1950, e das visitas feitas por este a várias repartições federais e do Estado de São Paulo, resultou um relatório crítico deixado por aquele técnico em nosso poder para circulação interna. Tendo em vista os dois relatórios, os dos autores da presente e o do Dr. Derksen, e atendendo à sugestão do Chefe do Núcleo de Economia, Prof. Eugenio Gudin, a Direção da Fundação Getúlio Vargas resolveu atribuir maiores recursos aos estudos sobre Renda Nacional, possibilitando a realização de programa mais amplo de pesquisas, com caráter de continuidade. Desse modo, em meados de agosto de 1950, a Fundação iniciava providencias no sentido de completar as principais condições materiais indispensáveis à boa consecção das finalidades da Equipe de Estudos da Renda Nacional (...) Não é demais assinalar que um estudo da Renda Nacional, que envolve uma série de conceitos ainda não definitivamente consolidados, nunca está pronto, mas sim em permanente revisão em face de novos procedimentos de cálculo e de novas estatísticas e informações que vão aparecendo. Assim se passa ainda hoje em países com os Estados Unidos e a Inglaterra, onde a abundancia de estatísticas e a tradição das estimativas de Renda Nacional são bem diferentes daquelas que se verificam no Brasil (Leite, Antonio Dias & Santos, Genival.

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“Estimativa da Renda Nacional do Brasil 1947-1949”. in RBE 5(3) 1951, pag. 9, 10, 11)

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