o espetáculo não é o coveiro da razão: mídia e autonomia em gilles lipovetsky
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7/31/2019 O Espetculo no o coveiro da razo: mdia e autonomia em Gilles Lipovetsky
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O Espetculo no o coveiro da razo:
mdia e autonomia em Gilles Lipovetsky1
Juliana Tonin2Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, PUCRS
RESUMO
O presente artigo pretende compreender, na obra de Gilles Lipovetsky, a relao entre
mdia e sujeito na ps-modernidade. Atravs do entendimento do conceito-chave para oautor, o de hipermodernidade, e de retomada de suas reflexes acerca da essncia dosprocessos intrnsecos na moda e na sociedade ps-moralista, intenta-se refletir sobre aautonomia como conquista individual impulsionada pela cultura miditica.
PALAVRAS-CHAVE: Mdia. Autonomia. Espetculo
Gilles Lipovetsky autodefine-se como um filsofo extraviado quando justifica as
inquietaes que o levaram a constituir uma obra pluritemtica e polmica acerca dacontemporaneidade. Seu interesse por fenmenos como o da moda, as tramas do luxo, do
consumo, da publicidade, levaram-no, como confessa, a dedicar-se a disciplinas
universitrias inclassificveis dentro da filosofia, pois seus objetos de estudo so caminhos
pelos quais a filosofia no costuma ter muita estima (LIPOVETSKY, 2004, p. 107). Para
compreender o sentido da imagem, da mdia, na contemporaneidade, sob a perspectiva de
Gilles Lipovetsky preciso partir para o entendimento de um conceito chave que, para ele,
define o momento atual. Segundo ele, os tempos so hipermodernos:
1 Trabalho apresentado no GP Teorias da Comunicao, XII Encontro dos Grupos de Pesquisas emComunicao, evento componente do XXXV Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao.Este artigo faz parte da pesquisa Espetculo, Simulacro, Tribalismo e Hipermodernidade: paradoxos dasociedade da imagem. Disponvel em:http://verum.pucrs.br/F/SD1TL69KMMU3J3A9VCK7IRIAL91NE674QHRY47BEU6PHU8LQGA-33521?func=full-set-set&set_number=002439&set_entry=000001&format=9992 Professora Adjunta do Programa de Ps-graduao em Comunicao Social da Famecos/ PUCRS. E-mail:
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As grandes estruturas socializantes perdem a autoridade, as grandes ideologias jno esto mais em expanso, os projetos histricos j no mobilizam mais, ombito social no mais que o prolongamento privado instala-se a era do vazio,mas sem tragdia e sem apocalipse (LIPOVETSKY, 2004, p. 22).
Vazio que, para o autor, acaba sendo preenchido pela manifestao dos desejos
subjetivos, da realizao individual, do amor-prprio. Paradoxalmente, a sociedade da
liberao da autonomia individual (em relao tradio, Igreja, instituies, sagrado)
concomitantemente a sociedade da globalizao econmica, da uniformizao dos modos
de vida, da hegemonia de certas marcas, da massificao, sinaliza o autor.
Para Lipovetsky, o consumo de massa carregando consigo sacolas de valores
hedonistas que reafirma a chegada de um novo modo de ser e pensar no mundo. O autor
prope uma cronologia, pensa o avano do capitalismo moderno sob trs fases.
A primeira seria de 1880 a 1950. Com o aumento da produo industrial, a difuso
de produtos, o progresso dos transportes e da comunicao, o aparecimento de mtodos
comerciais (exemplo: marketing e publicidade), haveria a consolidao do capitalismo.
Precisamente aqui se poderia pensar, segundo afirma, numa ps-modernidade (2004, p. 24).
Esta num sentido restrito: apenas uma mudana de degrau na mesma escada.
Cabe ressaltar que a apresentao das fases reconhecidas por Lipovetsky esclarece
as mudanas que o autor emprega na nomenclatura dos tempos e justifica a opo peloprefixo hipercomo expresso mxima doZeitgeist. Precisa-se dizer acerca da primeira fase
que nela os olhos se voltam ao momento presente. Isso leva o autor a caracterizar o
fenmeno da moda como um dos pontos-chave para se pensar este social que aprende a
querer, gostar, gozar o novo, mesmo se na efemeridade de todo e qualquer dia.
Em O Imprio do Efmero, Gilles Lipovetsky faz uma verificao histrica da moda
desde uma produo de vesturios aristocrticos, da alta costura e do prt--porter. desde
o sculo XIV que se inicia a moda entendida como pequenos ciclos de mudana, como
estrutura mvel da aparncia. Vestimenta especfica e radicalmente diferente para homens emulheres. Vestimenta como um prazer da alta sociedade.
At o sculo XIX, a moda trazia consigo, segundo o autor, uma nova relao social,
a legitimao de um novo tempo e a paixo do Ocidente pelo moderno. Entretanto, as
inovaes que surgiram desde ento no abalavam a estrutura do vesturio, eram
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modificaes nos acessrios, ornamentos, enfeites, o que Lipovetsky sintetizou na
expresso torrentes de pequenos nadas (LIPOVETSKY, 1989, p 33).
Para o autor (1989), a moda rompeu com a lgica imutvel da tradio, adquiriu
poder, inventou sua maneira de aparecer e propiciou que cada um comeasse a ser o senhor
da sua condio de existncia, tendo o presente com o eixo temporal.
A passagem dos anos e o conseqente aparecimento da moda prt--porter, dos
grandes estilistas, dos espetculos da moda, da diversidade e barateamento das roupas,
enfim, da democratizao da moda, permitem uma individualizao esttica, a
personalizao. Sob a fantasia e o ldico a moda traz a autonomia do homem. Para
Lipovetsky (2003), os argumentos correntes de que h uma tirania da moda e que esta
exerce presso e regulao social so exacerbados, pois mesmo tendo contribudo para
instituir uma nacionalizao dos gostos, uma hierarquia social, no pode ser consideradacomo negativa. Esclarece que atravs da nacionalizao, cada estado territorial europeu
passou a singularizar seus trajes e a criar um sentimento de pertena, um sentimento
coletivo que no acaba com as possibilidades de cada indivduo, dentro desta norma
geral, escolher o que melhor lhe convier. A hierarquia, a verticalidade da moda, na poca
aristocrtica e da Alta Costura era evidente, atesta o autor. A elite gozava de seus
benefcios, e os produtores e artesos propiciavam o deleite. Mas considera que atualmente
essas teses precisam ser revistas.
Pensar a hierarquia tambm discutir o fato de se ter atribudo moda a funo dedistino social. Lipovetsky pensa que todas as reflexes ancoradas na afirmao de que a
moda serve para este fim no vem que o estmulo da criao da moda no se fundamenta
num desejo de distinguir uma classe. Elas precisam reiterar suas posies e entender que as
reviravoltas da moda so efeitos de novas valorizaes sociais, de uma nova posio e
representao do indivduo em relao ao conjunto coletivo: (...) uma nova relao de si
com os outros, do desejo de afirmar uma personalidade prpria (...) (1989, p. 59).
A moda, para o autor (2003), no marca de distino social, atrativo, prazer dos
olhos e da diferena. uma prtica de agradar, surpreender, ofuscar. um desejo pelafelicidade e prazeres terrenos gerados por uma sensibilidade moderna que sente a
melancolia do tempo e a angstia da morte. Ela conjuga o efmero e o ldico, pois a
estetizao e individualizao da vaidade humana atravs do artifcio descartvel fazem
do superficial um instrumento de salvao, uma finalidade de existncia.
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A ampliao do fenmeno da moda, segundo o autor, demonstra uma sociedade que
elevou seu nvel de vida, que cultua o bem-estar, o lazer e a felicidade imediata. Esta a
ltima etapa da legitimao e da democratizao das paixes de moda. As classes populares
so convidadas ao gozo da moda no momento em que ela deixa de ser inacessvel para ser
uma exigncia de massa, num cenrio de sacralizao da mudana, do prazer e da novidade:
a era do prt--portercoincide com a emergncia de uma sociedade cada vez mais voltada
para o presente, euforizada pelo Novo e pelo consumo (LIPOVETSKY, 2003, p. 115). A
grande operadora da embriaguez da mudana, da multiplicidade de prottipos e da
possibilidade de escolha a seduo. A seduo da opo e da mudana , como escreve o
autor, rplica subjetiva do mito da individualidade, da originalidade, da metamorfose
pessoal: o sonho do acordo efmero do Eu ntimo e da aparncia exterior (2003, p. 95).
A cada novidade, uma inrcia sacudida, passa um sopro de ar, ponte dedescoberta, de posicionamento e de disponibilidade subjetiva. Compreende-seporque, numa sociedade de indivduos destinados autonomia privada, o atrativodo Novo to vivo: ele sentido como instrumento de liberao pessoal, comoexperincia a ser tentada e vivida, pequena aventura do Eu (LIPOVETSKY, 1989,p. 183).
Lipovetsky busca o entendimento das dimenses envolvidas na democratizao da
aparncia para estabelecer um comparativo entre o fenmeno da moda e o fenmeno do
consumo evidente e acelerado graas ao desenvolvimento do capitalismo. Para ele, h
pluralizao (no massificao) e, por conta disso, estmulos de individuao e autonomia
rompem o crcere moderno de padronizao e elitizao.
Retomando a cronologia do desenvolvimento do capitalismo, seco temporal
estabelecida pelo autor para sublinhar o carter progressivo rumo ao pice do processo de
liberao individual, evidencia-se o momento em que acontece a democratizao do
consumo. Conforme o autor, seria na segunda fase, situada entre os anos de 1950 a 1980.
Aqui o consumo que anteriormente estava disponvel quase que em totalidade apenas
classe burguesa passa a ser acessvel maioria das pessoas, ou seja, produo e consumo de
massa ao alcance das massas. E os sentimentos que comeavam a despontar na primeira
fase, ainda meio desajeitados ou envergonhados, desenvergam seus ps e pisam firme no
assoalho dos provadores. Basicamente: novo seduo - frvolo bem-estar
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desenvolvimento pessoal escolha autonomia prazer: tudo isso coloca uma pedra em
cima das noes de alienao, controle, disciplina.
Consumo com finalidade de dar prazer, libertao e gozo ao indivduo. Buscar
objetos que proporcionem bem-estar, funcionalidade e prazer para si, que operem uma
satisfao privada. Quanto mais se pode consumir, mais desencantados tornam-se os
objetos, mais reduzidos categoria de instrumentos. Pois o novo ganha legitimidade social
e a socializao da mudana permite aos indivduos uma constante reciclagem. Para o autor,
esta a democracia do mundo material. A sociedade de consumo, para o autor, a
sociedade da revoluo individualista subterrnea, mesmo apresentando desigualdade,
excluso, misria, solido, depresso e incerteza. Lipovetsky se diz favorvel ao consumo e
lamenta que ele no possa ser vivido de forma igualitria (nem todos tm poder
financeiro para consumir).Ele acredita que a sociedade mais liberta que oprime. emancipadora, flexvel,
transitria. uma poca na qual a obsesso por um mundo perfeito e ordenado, tpico da
modernidade, cede lugar ao hedonismo. Como defende em Metamorfoses da Cultura
Liberal, o hedonismo destri a moral herica e sacrificial, pois no se quer mais colocar a
vida em risco por uma causa, uma ideologia (poltica ou religiosa). Hoje se percebe que a
vida vale mais do que a causa. uma sociedade que exalta mais os desejos do ego e do
bem-estar individual do que o ideal de abnegao. Os deveres para consigo mesmo, tais
como castidade, temperana, higiene, trabalho, poupana, interdio de suicdio, pensadoscomo absolutos no passado, transformaram-se em opinies livres, em direitos individuais.
O que existe so deveres em relao aos outros, mas quase nada deles em relao a si
mesmo. Os deveres foram substitudos pelos direitos (2004, pp. 24-27).
Lipovetsky denomina isso como neo-individualismo, algo imbricado num projeto de
construo e tomada de posse de si. Neo-individualismo, para ele, seria a recusa prometica
do destino e a inveno de si mesmo sem via social traada por antecipao. a poca do
controle soberano de si e da luta sem fim contra o preexistente herdado. (...) Cada um se
quer autnomo para construir livremente, la carte, o seu ambiente pessoal"(Metamorfoses da Cultura Liberal, 2004, p. 21).
Segundo o autor, o individualismo democrtico a figura de Narciso afundado em si
por sentir as dificuldades de viver, insegurana, medo do terrorismo, da alimentao, das
relaes, da idade, do trabalho, da aposentadoria. precisamente deste fechamento em si
que surge a exploso do consumo. Este seria o doping, o estmulo para a existncia. Esta
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busca reforada pela predominncia da noo de bem-estar individual, lazer, interesse
pelo corpo, valores individualistas do sucesso pessoal e do dinheiro presente na cultura
cotidiana, na mdia, na publicidade.
Segundo o autor, existe uma descrena em relao moral e um sentimento de
anarquia de valores, o que leva Narciso a fechar-se cada vez mais sobre si mesmo. Mas ao
mesmo tempo hoje se sobrepem os questionamentos ticos, a biotica, a luta contra a
corrupo, a tica dos negcios, a filantropia, as aes humanitrias. Lipovetsky (2004,
pp.23-32) demonstra possveis razes que fazem emergir este novo sopro tico:
responsabilizao pelo futuro do planeta; necessidade de proteo diante dos projetos da
biomedicina; necessidade de substituir as grandes utopias histricas da modernidade
(revoluo, nacionalismo, Estado, progresso) atravs da revitalizao dos discursos dos
Direitos do Homem e das aes caritativas. Seria a busca de uma tica mnima de ajuda aosoutros, uma tica da urgncia em prol dos desprovidos.
Assim, para o autor, no contexto ps-moralista no se pode estereotipar a imagem
do individualismo. No se pode reduzi-lo a egosmo e niilismo. Existe uma preocupao
com o racismo, com as crianas, com as futuras geraes, ainda h manifestao de
indignao quanto ao que parece escandaloso, existe um verdadeiro fenmeno de
voluntarismo, o que prova que o senso moral no se extinguiu.
Mesmo que a temtica da decadncia da moral e da cultura seja antiga (se faa
presente desde Rousseau) e seja acentuada pelo recuo da Igreja, da ascenso da poca dodinheiro e do neo-individualismo, os valores no esto equivalentes, existe a distino entre
o bem e o mal, ressalta o autor. Isso se v atravs dos radicalmente rejeitados
comportamentos como pedofilia, terrorismo. Continua a existir um absoluto moral. No se
vive o grau zero da moral. A cultura individualista liberal muito menos relativista e
menos desorientada do que se diz. (...) O ps-dever no significa o recuo do humanismo,
mas a sua consagrao social e histrica. A sociedade liberal, para o autor, no pretende
uma regenerao moral dos cidados, no exige que todos compartilhem os mesmos
valores, apenas preciso, nela, serem aceitos valores mnimos necessrios conservao deuma sociedade pluralista, tais como tolerncia, respeito mtuo, civilidade, esprito de
cooperao. No se pode afirmar que hoje no h mais moral, mas se pode dizer que h
uma fragmentao dos sistemas de valor. Existem, agora, diversas concepes do bem, h
um politesmo de valores que faz parte da dinmica e reafirma a autonomia do indivduo.
(...) Nas sociedades, h pluralidade moral, no niilismo moral (2004, pp. 33-34).
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Por ltimo, preciso perceber que se por um lado a sociedade exalta o prazer, a
sexualidade, a satisfao do desejo, por outro no se configura como sociedade orgistica.
No h decadncia de todos os valores morais para uma entrega a um vale-tudo libidinal,
segundo o autor. A sociedade ps-moralista, funciona, para o autor, como uma desordem
organizadora, gera mais costumes moderados que costumes dissolutos(2004, pp. 33-
37).
A grande questo para Lipovetsky que no existem, no so exaltados mais os
deveres sacrificiais. Ao mesmo tempo, a caridade, os apelos em relao aos pobres e aos
doentes alcanam um espao significativo na mdia. a moral, como escreve, segundo as
leis do espetculo. De austera, categrica e autoritria, a moral passa a combinar com
festas, com stars. Ningum mais culpabilizado, mas mobilizado, como diz, em enormes
quermesses de benfeitoria. Este esprito de solidariedade crescente no deseja realizar oBem, mas algo melhor, nico objetivo que homens vivendo em sociedade podem
estabelecer para si mesmos (Lipovetsky, 2004, p. 40).
A moral ps-moderna a dos encantamentos, das operaes de mdiaessencialmente dirigidas a um ponto especfico, circunstancial, emocional. (...) Estapoca no cria uma conscincia permanente, introjetada, difcil, do dever; cria, depreferncia, conforme as palavras de Jean-Marie Guyau, uma moral semobrigaes nem sanses, ou seja, uma moral emocional descontnua que semanifesta principalmente por ocasio de grandes desesperos humanos(LIPOVETSKY, 2004, p. 29).
Em sntese, pode-se dizer que Lipovetsky no acredita que hoje houve um
esvaziamento da moral. Pelo contrrio, fala de um ressurgimento de valores que, mesmo se
efmeros, fazem do indivduo um ser mais liberado para julgar, pensar e viver mesmo num
contexto amplamente caracterizado pela insegurana em relao aos referenciais e
tradio. possvel depreender, tambm, pelas crticas de Lipovetsky aos pensamentos que
caracterizam um fim da moral, que o autor no a v a moral como decadente, tampouco
como algo que deva ser abolido, apenas transformado em algo melhor para o homem.Enfim, a ltima fase do capitalismo moderno chega s bancas. Perfilha da penltima
dcada do sculo passado e caminha at a atualidade.
Pode-se dizer sucinta e superficialmente que estes tempos correspondem a tudo o
que Gilles Lipovetsky escreveu na obra a Era do Vazio acrescido do prefixo hiper. Ele
parece ter conseguido encontrar um termo que abole qualquer noo frouxa acerca de uma
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possvel ps-modernidade, e traz aos olhos decididamente: estamos na hipermodernidade, a
era do hiperconsumo e do hipernarcisismo.
Escreve o que significa esta noo desmembrando a afirmao e apresentando um
possvel conceito para cada evidncia. Tem-se (Os Tempos Hipermodernos, 2004, pp. 25-
26):
Hipermodernidade: uma sociedade liberal, caracterizada pelo movimento, pela fluidez, pelaflexibilidade; indiferente como nunca antes se foi aos grandes princpios estruturantes damodernidade, que precisaram adaptar-se ao ritmo da hipermodernidade para nodesaparecer.
Hiperconsumo: um consumo que absorve e integra parcelas cada vez maiores da vida social;que funciona cada vez menos segundo o modelo das confrontaes simblicas caro aBourdieu; e que, pelo contrrio, se dispe em funo de fins e de critrios individuais esegundo uma lgica emotiva e hedonista que faz com que cada um consuma antes de tudopara sentir prazer mais que para rivalizar com outrem.
Hipernarcisismo: poca de um Narciso que toma ares de maduro, responsvel, organizado,eficiente e flexvel e que, dessa maneira, rompe com o Narciso dos anos ps-modernos,hedonista e libertrio.
Ao que parece, atingiu-se agora um ponto mximo, positivo e equilibrado do
sistema capitalista: liberdade, igualdade, responsabilidade basicamente seriam estas as
grandes conquistas trazidas pelos ventos de cronos.
Porm, Lipovetsky defende que se trata apenas de um aumento significativo no
nmero de paradoxos. A passagem do tempo muda o ambiente social e a relao com o
presente. Toda aquela euforia hedonista, da desagregao do mundo da tradio, se
despavoneia e passa a sentir por entre as frestas da emancipao as facetas da tenso
nervosa.
O futuro incerto no prega as atenes dos indivduos ao momento presente e s
suas benesses, mas causa medo. A globalizao se exerce tautologicamente,
independentemente dos indivduos. O desenvolvimento das tecnologias da informao foge
do controle. Falta emprego. Falta dinheiro. Falta segurana. Sobra o estresse.
(...) nas dcadas de 60, 70, quem teria pensado em ver nas ruas, como hoje se v,um Narciso de vinte anos a defender sua aposentadoria 40 anos antes de poderbeneficiar-se dela? O que poderia ter-se assemelhado estranho ou chocante nocontexto ps-moderno nos parece hoje perfeitamente normal. Narciso doravantecorrodo pela ansiedade; o receio se impe ao gozo, e a angstia, libertao(LIPOVETSKY, Os Tempos Hipermodernos, 2004, p. 28).
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Gilles Lipovetsky fornece uma imagem ainda mais clara acerca da mudana que
acredita ter permitido separar a segunda metade do sculo XX e incio do sculo XXI em
duas fases distintas do capitalismo moderno. Expressa que basta analisar as diferentes
atuaes em poucos anos do indivduo contemporneo nas cenas dos filmes O Declnio do
Imprio Americano (1986) eAs Invases Brbaras (2003). No primeiro se poderia pensar
numa lgica do goze sem entraves. J no segundo filme impera outro modo de pensar:
tenha medo em qualquer idade.
Na hipermodernidade lipovetskiana (2007), os indivduos esto cada vez mais
informados e mais desestruturados; mais adultos e mais instveis; menos ideolgicos e mais
tributrios das modas; mais abertos e mais influenciveis; mais crticos e mais superficiais;
mais cticos e menos profundos, enfim, contraditrios a ponto de alongar demasiadamente
uma lista de contra-sensos. Como exemplifica, a flexibilidade do hipernarciso terminaquando so ameaados seus benefcios adquiridos!
Nada mais daquele Narciso caravaggiano, contemplativo e seduzido por si.
Tampouco daquele que muito mais tarde se olha, se toca, se roa, se mostra e
convida todos para o deleite. Agora a vez do Narciso famoso, atualizado, engajado,
responsvel, saudvel, popular aos olhos do mundo, mas carregando dentro de si, cada vez
mais, o peso das aflies que nenhum discurso terico, promessa da cincia, crena
religiosa, poder poltico ou econmico ameniza.
Hipernarciso est volvel, amedrontado. Mas se lana nas corredeiras das filasaventurando-se como nunca a satisfazer-se. O Eu hipernarcsico aquele que merece tudo
aquilo que conseguir comprar. E mais, muito mais. Sempre. Nada de desafios, diferenas,
enfrentamentos simblicos entre os homens, nada de concorrncia. Segundo o autor, ser
filiado a um grupo e criar distncia social no mais faz parte num contexto no qual novos
objetos de comunicao aceleram as trocas interindividuais e facilitam as estimulaes do
Eu. Sem contar nas cada vez maiores demandas de sade, divertimento e bem-estar. Como
escreve:
No mais a oposio entre a elite dos dominantes e a massa os dominados, nemaquela entre as diferentes fraes de classe que organiza a ordem do consumo, mas osempre mais e o zapping generalizado, as bulimias exponenciais de cuidados, decomunicaes e de evases renovadas (LIPOVETSKY, 2007, p. 43).
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Lipovetsky destaca a chegada da poca de um consumo puro, descompromissado
em relao s diferenciaes estatutrias, mas engajado no fornecimento de um conjunto de
servios para o indivduo. Como sintetiza o autor: o apogeu da mercadoria no o valor
signo referencial, mas experencial. A dinmica consumista se d para servir ao indivduo
disposto a buscar sua felicidade privada, a ter sade ilimitada, a conquistar espaos-tempos
personalizados. Distrao, conservao de si e conforto sensitivo suplantam qualquer valor
honorfico, de comparao social ou ostentao de signos (2007, p. 43).
Para o autor so os objetos, juntamente com a mdia, que acionaram esta dinmica
de emancipao dos indivduos em relao s autoridades institucionalizadas e s coeres
identitrias (2004, p. 70).
Gilles Lipovetsky acredita que a exploso do individualismo contemporneo est
casada com a da mdia. Tudo porque os conhecimentos sobre outros universos, outrasmentalidades, outras idias, outras prticas, informaes, tudo isso trazido pela mdia leva o
indivduo a rever suas opinies, a posicionar-se diante dos fatos, a comparar lugares,
pessoas, ele mesmo e os outros, antes e depois, leva-o a diversificar modelos, valores,
enfim, a ficar menos tributrio de uma cultura una e idntica (LIPOVETSKY, 1989, p.
225). Abaixo segue a citao que explicita suas opinies e tambm o ponto chave deste
texto:
Em muitos domnios, a mdia conseguiu substituir a Igreja, a escola, a famlia, os
partidos, os sindicatos, como instncias de socializao e de transmisso de saber. cada vez mais atravs da mdia que somos informados sobre o curso do mundo, ela que nos passa os dados novos capazes de adaptar-nos ao nosso meio cambiante.A socializao dos seres por intermdio da tradio, da religio, da moral cedeterreno cada vez mais ao da informao miditica e das imagens. Samosdefinitivamente do que Nietzsche chamava a moralidade dos costumes: adomesticao cruel e tirnica do homem pelo homem - em ao desde as origensdas eras e tambm da instruo disciplinar. Foram substitudas por um tipo desocializao completamente indito, soft, plural, no-coercitivo, funcionando naescolha, na atualidade, no prazer das imagens (LIPOVETSKY, 1989, p. 226).
Para o autor, o espetculo vai de encontro vida. Mistura-se no mundo. Imagens
do prazer. As estrelas amam suas belas imagens pululando como celebridades, mas
tambm querem algo alm, desejam passar a profundidade que a simples imagem
supostamente esconde, estar acima do superficial, deixar mensagens, enfim, exprimir-se.
Assim, conforme o autor, elas desencadeiam novas referncias para os indivduos,
impulsionam que eles vivam mais por si mesmos, que se apropriem de seu prprio Ego.
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Tudo para a conquista de uma vida de lazer, felicidade e bem-estar individuais. Mesmo se
numa tica ldica e consumista da vida (1989, pp. 217-223).
A cultura miditica, para Lipovetsky, oferece mais modelos de identificao e
possibilidades de orientao pessoais, apresenta um coquetel de escolhas e de diversidades,
promovendo uma acelerao do processo de individualizao: mais estilos musicais,
grupos, filmes, sries, o que suscita aumento das pequenas diferenciaes, possibilidades de
afirmar preferncias mais ou menos personalizadas (1989, pp. 223- 224).
Alm disso, ela abre caminho para o universo de mudana de ares, lazer e
esquecimento, de sonho, salienta o autor. Ela adquire uma funo histrica determinante
quando passa a reorientar as atitudes individuais e coletivas e a difundir novos padres de
vida. (1989, pp. 221-222). Conforme escreve: preciso operar uma reviso de fundo: o
consumo miditico no o coveiro da razo, o espetacular no abole a formao da opiniocrtica, o show da informao prossegue a trajetria das Luzes (1989, p. 25). Para
Lipovetsky, o indivduo neonarcsico, enfim, filho da mdia.
Guy Debord via no desenvolvimento do capitalismo e miditico a exploso do
espetculo e o fim do sujeito. Para ele, era como se existisse uma vida e um real que foram
corrompidos pela imagem-mercadoria e que ficaram ocultos por falta de crtica e de balas
nos canhes.
Jean Baudrillard j se mostrava despido de esperanas. Nada mais resta fazer seno
sobreviver num excesso de signos que h muito acabou com o real, os referenciais, oindivduo, a imagem, as surpresas do destino.
Michel Maffesoli rompe com as antigas e futuras expectativas de uma superao,
uma melhora nas condies da existncia. Observa o instante, nomeia-o de real e consegue
mostrar que dentro deste cenrio de consumo de objetos e imagens, personas transitam,
satisfazem seu desejo de pertena e acabam numa viscosidade social, presentesta e
hedonista, comungando com a natureza.
Gilles Lipovetsky, por sua vez, no parece buscar os entendimentos necessrios para
se transformar ou aceitar uma sociedade supostamente aniquilada/beneficiada pelocrescimento de entidades como a Tcnica, o Progresso e a Cincia. Para ele a sociedade
cresceu, se desenvolveu, acabaram os grandes mitos castradores dos indivduos, houve
libertao e liberao das pulses individuais. Ganhos inegveis para os seres humanos, que
agora conseguem segurar e direcionar as rdeas da prpria existncia e possuem o mundo
como mostrurio para suas escolhas. Ganhos crescentes tambm na angstia, na incerteza,
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nas desigualdades que levam estes mesmos seres a se excederem nas tentativas de
preencherem seus vazios, seus medos com tudo que prometer, de maneira convincente,
cumprir este papel. Muitas vezes no importando os meios para estes supostos fins. Perda
no ganho.
A questo que parece vir tona a partir das reflexes de Lipovetsky que todo o
avano do capitalismo moderno e a ampliao do fenmeno do consumo e da mdia
trouxeram para a superfcie as caractersticas mais obviamente humanas: o social
composto por indivduos que so gangorras emocionais mais ou menos equilibradas em
determinadas pocas.
E, neste social, a mdia, juntamente com o consumo, nas palavras de Lipovetsky,
permitem s sociedades democrticas passar a uma velocidade de experimentao social
mais rpida e mais malevel (1989, p. 229). A hipermodernidade poderia ser definida,ento, como uma experimentao social, frouxa e flexvel, mediada pelo conjunto
consumo-imagem (a mdia).
Experimentao: para o bem e para o mal. Esta poca conjuga amor e dor. A
dualidade. O paradoxo. como se existisse o fim de uma histria na qual vencem, em igual
medida, o bem e o mal. E tudo o que existe entre estes extremos. O indivduo consome a
mdia por diversos motivos: para promover evaso, participao, consumo, mudana de
opinio, conhecimento, espetculo. O indivduo tira proveito disso. Parece ser isso o que
Lipovetsky quer desvelar. O afastamento de conceitos pesados e distantes do cotidiano,para uma aproximao simples e direta com a realidade como est, o homem tal como ,
no como deveria ser.
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