o espaço sagrado e os jardins iniciáticos da quinta da regaleira

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n.3 / 2010 AE... Revista Lusófona de Arquitectura e Educação Architecture & Education Journal 99 José Manuel Anes / Licenciado em Química pela Faculdade de Ciências da Universidade Técnica de Lisboa; Doutorando em Antropologia Social e Cultural na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. O espaço sagrado e os jardins iniciáticos da Quinta da Regaleira Resumo: A Quinta da Regaleira é um espaço simbólico sagrado que apresenta nos seus jardins, por um lado referências ao Cristianismo, e a certas Fraternidades iniciáticas e, por outro, referências ao Paganismo, às antigas religiões de Mistérios, à literatura clássica (particularmente à Divina Comédia de Dante). Podemos detectar nela percursos de iniciação, constituídos por poços, subterrâneos, grutas, lagos, os quais estão centrados no tema da "morte e ressurreição", no caminho das Trevas para a Luz. palavras-chave: jardins simbólicos; jardins iniciáticos; simbolismo do espaço; esoterismo. Abstract: Quinta da Regaleira with its Palace, Chapell and gardens with caves, lakes, wells, grot- tos and statues, has several symbolic references both to the world of Christianity and certain Fraternal societies (for instance neo-templars) and to the world of Mystery reli- gions, Paganism and classic literatura (Dante's Divine Comedy). It is possible to detect also, joining these elements, paths of initiation related to the central theme of "death and resurrection" and the descent to the darkness prior to the ascent to the light.

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A Quinta da Regaleira é um espaço simbólico sagrado que apresenta nos seus jardins,por um lado referências ao Cristianismo, e a certas Fraternidades iniciáticas e, poroutro, referências ao Paganismo, às antigas religiões de Mistérios, à literatura clássica(particularmente à Divina Comédia de Dante). Podemos detectar nela percursos deiniciação, constituídos por poços, subterrâneos, grutas, lagos, os quais estão centradosno tema da "morte e ressurreição", no caminho das Trevas para a Luz.

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  • n.3 / 2010 AE... Revista Lusfona de Arquitectura e Educao Architecture & Education Journal

    99

    Jos Manuel Anes / Licenciado em Qumica pela Faculdade de Cincias da Universidade Tcnica de Lisboa; Doutorando em Antropologia Social e Cultural na Faculdade de Cincias Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.

    O espao sagrado e os jardins iniciticos da Quinta da Regaleira

    Resumo:

    A Quinta da Regaleira um espao simblico sagrado que apresenta nos seus jardins, por um lado referncias ao Cristianismo, e a certas Fraternidades iniciticas e, por outro, referncias ao Paganismo, s antigas religies de Mistrios, literatura clssica (particularmente Divina Comdia de Dante). Podemos detectar nela percursos de iniciao, constitudos por poos, subterrneos, grutas, lagos, os quais esto centrados no tema da "morte e ressurreio", no caminho das Trevas para a Luz.

    palavras-chave: jardins simblicos; jardins iniciticos; simbolismo do espao; esoterismo.

    Abstract:

    Quinta da Regaleira with its Palace, Chapell and gardens with caves, lakes, wells, grot-tos and statues, has several symbolic references both to the world of Christianity and certain Fraternal societies (for instance neo-templars) and to the world of Mystery reli-gions, Paganism and classic literatura (Dante's Divine Comedy). It is possible to detect also, joining these elements, paths of initiation related to the central theme of "death and resurrection" and the descent to the darkness prior to the ascent to the light.

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    Nota

    A Arquitectura sagrada assenta na criao de um espao sagrado (edifcios, jardins,

    etc.) onde se reproduzem mitos e smbolos e onde se podem realizar ritos. Na sua base

    est a separao do espao exterior, profano, do espao sagrado alis uma das

    etimologias de sagrado aquilo que est separado e que tem de ser de alguma forma

    protegido, preservado. Mas, segundo Rudolf Otto, o sagrado , essencialmente, o

    totalmente outro. Logo o sagrado o que est separado e , ao mesmo tempo o

    totalmente outro face ao espao profano -, o que pode ser feito, basicamente,

    atravs da:

    escolha do lugar (um alto lugar);

    orientao da construo (p.e. num templo) e/ou definio de um percurso

    simblico (p.e., uma via sacra);

    ornamentao simblica da mesma, quer interior, quer exterior.

    Iremos ilustrar estes e outros conceitos com o exemplo dos jardins da Quinta da

    Regaleira, onde segundo ns, existe uma organizao do espao sagrado,

    particularmente um percurso simblico. Quanto organizao do espao sagrado, quer

    no Palcio quer na Capela da Regaleira, remetemos os leitores para os meus estudos

    anteriores publicados desde 1991 (o ltimo dos quais Os Jardins Iniciticos da Quinta

    da Regaleira, (ANES, 2007); e um artigo sobre A Capela da Quinta da Regaleira e sua

    dimenso simblica (ANES, 2007).

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    Introduo

    A Quinta da Regaleira encontra-se na encosta Norte da Serra de Sintra, na estrada que

    vai de Sintra a Seteais. Ora, a Serra de Sintra tem um imaginrio cheio de histria e

    lendas, de mitos e smbolos, construdo ao longo dos tempos at actualidade. O

    Castelo dos Mouros, o Palcio Nacional da Vila com a sua Capela do Esprito Santo,

    cujo culto popular ainda sobrevive nas festas paraclticas do Penedo o revivalismo

    eclctico do Palcio da Pena, so os principais marcos da arquitectura construda que se

    articulam com referncias literrias diversas de um Gil Vicente, de um Lord Byron, de

    Ea de Queirs/Ramalho Ortigo, etc. Referncias lendrias ancestrais da Serra de

    Sintra como Monte da Lua, e recentes invenes da tradio relativas aos mundos

    subterrneos, entre outras, completam um quadro de romantismo, de mistrio e de

    beleza mpar.

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    Figura 1 - Palcio da Quinta da Regaleira

    A Quinta da Regaleira (Sintra) constituda por um Palcio, uma Capela e jardins com

    grutas, poos e galerias subterrneas. Ela foi construda, na sua forma actual, desde a

    ltima dcada do sculo XX at revoluo republicana de 1910, por um portugus de

    grande fortuna, nascido no Rio de Janeiro, Antnio Augusto Carvalho Monteiro (1848

    1920) formado em Direito pela Universidade de Coimbra, estudioso de Filosofia

    Natural, coleccionador (de relgios, de borboletas, etc.) e admirador de Cames,

    possuindo a maior camoniana do Pas - o qual contou com a preciosa ajuda do

    arquitecto, o italiano Luigi Manini (cengrafo em S. Carlos e tambm arquitecto do

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    Palace Hotel do Buaco). Desde logo, podemos situar culturalmente o neo-manuelino

    da Regaleira no contexto do movimento de regeneracionismo poltico-cultural do fim

    do sculo XIX, que no caso desta Quinta configura um verdadeiro milenarismo de

    revitalizao, no estritamente religioso, mas histrico, poltico e mtico (e onde o

    sebastianismo quinto-imperial de Carvalho Monteiro ocupa aqui um papel importante).

    Comecei o estudo desta Quinta em Maro de 1989 e por essa altura alguns esoteristas

    afirmavam que ela era um completo disparate que no apresentava nenhum sentido

    esotrico ou outro (por exemplo simblico) sendo apenas a prova do exibicionismo do

    promotor da construo e seu proprietrio. Os Historiadores de Arte e outros escritores

    que se debruaram sobre a Quinta afirmavam, como por exemplo Raul Proena no seu

    Guia de Portugal, que ela era um exemplo de mau gosto, de revivalismo serdio,

    pastiche do Manuelino, etc..

    Ora, para alm do bom ou mau gosto, para alm do estilo e da forma de arte

    escolhida que pode at ser (para alguns) de algum modo kitch, no seu revivalismo

    eclctico, existem na Regaleira temas simblicos e mitolgicos, alguns dos quais de

    natureza esotrica e inicitica, que conferem um interesse Quinta e que fazem parte

    de um conjunto que apresenta uma significativa coerncia quanto natureza e

    articulao desses temas (onde a temtica dos mundos subterrneos ocupa um papel

    central, como veremos), sendo portanto muito mais do que uma exibio enciclopdica

    de simbolismo inicitico. De entre os temas simblicos e mticos que identifiquei, quer

    no Palcio, quer nos jardins indicarei os seguintes - vide o meu livro Os Jardins

    Iniciticos da Quinta da Regaleira (ANES, 2007) para maior detalhe: a) A Idade do

    Esprito Santo e o seu culto popular; b) Temas hermticos e alqumicos; c) Temas neo-

    templrios de raiz manica.

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    1. Os jardins iniciticos da Quinta da Regaleira

    Christopher Macintosh autor de importantes livros sobre o Rosacrucianismo, no seu

    excelente artigo Gardens of initiation (MCINTOSH, 2001) estabelece as seguintes

    definies:

    a mais geral, de jardim inicitico (initiatic garden), como sendo aquele

    que apresenta uma significao sagrada ou filosfica para alm do carcter

    ldico (...) atravs de uma linguagem visual e experiencial (...) que conduz a

    (...) uma iniciao;

    e a particular, de jardim manico (masonic garden): muito

    provavelmente no como uma Loja ortodoxa (...) mas mais com aluses

    simblicas reflectindo a viso do mundo da franco-maonaria (...) de um

    modo aleatrio ou em itinerrios iniciticos (...) reflectindo a jornada

    simblica realizada pelo iniciado manico.

    Os jardins iniciticos em geral, e os jardins manicos em particular, contm 3

    elementos bsicos:

    a forma do jardim;

    o simbolismo das plantas;

    os objectos nele includos (esttuas, colinas, grutas, subterrneos, templos,

    etc.).

    Chrisopher Macintosh sugere (como j o tinha feito Emanuela Kretzulesco-Quaranta

    que o livro de Francesco Colonna (1499), Hipnerotomachia, ou O Sonho de Polifilo a

    maior inspirao literria para os jardins iniciticos, contendo elementos de tal modo

    impressivos e simblicos tais como uma floresta sombria (e labirntica) com um drago,

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    um templo em runas, uma passagem subterrnea para o reino infernal, onde o heri

    vive as suas aventuras iniciticas com ninfas e deusas. Na Demanda de Polfilo pelo seu

    amor Polia, o heri (que adormeceu e sonha a sua saga) passa por um jardim onde

    encontra uma ninfa com uma tocha que o vai conduzir por um caminho at ao Templo

    de Vnus onde se vo realizar as bodas iniciticas de Polfilo e Polia/Ninfa. Segue-se a

    descida aos infernos no Templo de Pluto, finda a qual acontece uma viagem de barco

    com Cupido at alcanar a fonte heptagonal de Vnus onde esta deusa se revela e onde

    Cupido atinge os coraes do par amoroso. Polfilo e Polia entra num roseiral onde as

    ninfas lhes revelam os ritos de Vnus e Adonis. Ento Polfilo encontra a paz com seu

    amor. Este tema inicitico que pode encerrar uma leitura alqumica j tinha sido

    posto tambm em evidncia pela Princesa Emanuela Kretzulesco-Quaranta, no seu

    livro Les Jardin du Songe (Kretzulesco-Quaranta.

    Macintosh d-nos, por seu lado, alguns exemplos de jardins iniciticos do Barroco e

    da Renascena, quer em Itlia, quer em Frana, quer ainda em Inglaterra, de algum

    modo inspirados directamente ou indirectamente, prxima ou longinquamente pelo

    livro de Colonna, tais como:

    Villa de Castello, prximo de Florena, construido por volta de 1540,

    mandado construir por Giovanni e Pierfrancesco de Medici, primos de

    Lorenzo o Magnfico, contendo um labirinto, fontes, esttuas (entre as quais

    a de Hrcules) e uma gruta (com um conjunto de animais em torno de uma

    fonte);

    os Jardins do Duque de Bomarzo (Vicino Ursini), no Latium, de meados do

    sculo XVI, com um bosque sagrado com estranhas esculturas em pedra,

    com duas esfinges flanqueando a entrada no jardim, uma esttua de

    Pgaso, etc.;

    Villa dEste, prximo de Roma, com fontes e o tema da Demanda de

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    Hrcules das Mas de Ouro do Jardins da Hesprides;

    Stourhead, Wiltshire (Inglaterra), do sculo XVII, criado pelo banqueiro Henry

    Hoare II e o seu arquitecto Henry Flitcroft, este contendo uma paisagem

    alegrica com lago artificial e um percurso em torno do lago que inclui uma

    gruta com uma esttua de um deus, passagens subterrneas, caminhos em

    escadaria em pedra e um Templo (circular) de Apolo o que nos lembra

    muito da Regaleira e, tal como na Regaleira, o tema inicitico de descida e

    subida que se encontra na literatura clssica desde Virglio (cf. Eneida, 6,

    126). Mas contrariamente Obra de Carvalho Monteiro e de Luigi Manini

    (onde existe uma enigmtica e surpreendente cortina de silncio sobre o seu

    projecto simblico e mtico), em Stourhead temos um testemunho escrito de

    reflexo do seu proprietrio e criador: I have made the passage up from the

    sousterrain serpentine and will make it easier of access: facilis descensus

    Averno (Hoare, citado por Macintosh).

    Mas Christopher Macintosh cita ainda outros exemplos particulares de jardins

    iniciticos especificamente manicos, tais como:

    Dsert de Retz, em Marly (Frana), sculo XVII, criado pelo maon Franois

    de Monville, cujo Jardim deve ter tido um papel cerimonial no quadro da

    iniciao manica;

    Parque Worlitz (prximo de Dessau, Alemanha), criado entre 1756 e 1800

    pelo Prncipe Friedrich Franz von Anhalt-Dessau e pelo seu arquitecto von

    Erdmaunsdorf - que se pensa ter sido maon, mas foi de certeza amigo do

    maon Goethe que construiu em Weimar, em Ilm Park, uma Casa

    Templria gtica, uma gruta contendo uma esfngie, etc. -, com tneis

    labirnticos, semelhantes aos da Regaleira, e um complexo de lagos e

    passagens subterrneas;

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    Jardim Torrigiani, em Florena, datando dos comeos do sculo XIX, do

    Marqus Pietro Torrigiani e do seu arquitecto Luigi Cambray Digny ambos

    maons da mesma Loja contendo esttuas de Osiris, um mausolu, uma

    esttua colossal de Saturno e uma Torre Gtica que, segundo Macintosh,

    faz lembrar a que descrita na novela inicitica de Gothe, Wilhelm Meister;

    Villa Malmanara (Saonara, Pdua, Itlia), criada cerca de 1827 pelo Marqus

    Antonio Vigordareze (que foi maon pelo menos at 1815).

    Deste modo, no hesitamos em considerar a Quinta da Regaleira e os seus jardins

    obra, como na maior parte dos casos acima referidos, do proprietrio e do seu

    arquitecto -, como um exemplo tardio, mas destacado, desta significativa linhagem

    espiritual de jardins iniciticos ocidentais que contm todos os ingredientes

    simblicos necessrios a essa denominao. Recordemos que, para alm dos

    elementos simblicos que j referimos (515, athanor, guia com seios, etc.), nela se

    encontram elementos tais como um parque muito arborizado, lagos e grutas (uma das

    quais a de Leda), dois poos que do acesso a tneis subterrneos (e que no tm

    qualquer utilidade prtica), uma entrada monumental para os mundos subterrneos,

    um zigurat, uma capela templria (melhor, neo-templria) com cripta, etc. e

    percursos de que falaremos a seguir.

    Anteriormente j tinha apontado a possvel influncia literria do Sonho de Polfilo de

    Colonna, na Regaleira, no ensaio A linguagem dos pssaros (ANES, [1998] 2001).

    Existe nas quatro paredes da sala dos reis da Regaleira a divisa latina Festina Lente.

    Ora, no livro de Colonna, est uma gravura que mostra Polia tendo na sua mo direita

    um par de asas (festina) e na mo esquerda uma tartaruga (lente), simbolizando o

    pensamento e a reflexo. Tambm identifiquei nesse e noutros meus trabalhos

    publicados sobre a Regaleira (os de 1991, de 1994, de 1996/97 e de 2001/2003), outras

    influncias para alm da imediatamente evidente da Divina Comdia de Dante tal

    como a de Rabelais (a Abadia de Thelema de Pantagruel) e a de tesofo cristo e

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    maon Louis Claude de Saint-Martin, com temtica do seu livro Le Crocodile.

    Figura 2 - Poo Inicitico

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    Quanto aos percursos, referi logo no meu trabalho de 1991, a existncia de um poo

    inicitico, vitrilico, sugerindo com essa denominao que a sua descida fosse um

    smbolo de uma importantssima operao alqumica de solve (dissoluo ou morte)

    que os rosacrucianos denominavam de VITRIOL(UM) Visita o Interior da Terra e

    Rectificando Encontrars a Pedra Oculta (Verdadeira Medicina). E de facto, este poo

    (sobretudo o grande, pela sua dimenso e presena, mas tambm o pequeno) aquilo

    que poderamos denominar de percurso organizador ou estruturante da Regaleira que

    segue um esquema muito geral de morte e ressurreio, de descida para as trevas e de

    subida para a luz. O antroplogo contemporneo, Maurice Bloch, sustenta que este

    esquema de morte e ressurreio constitui a estrutura irredutvel mnima

    fundamental () de todos os rituais e no apenas os iniciticos, mas os religiosos

    em geral. Esta quase-universalidade assenta na relao entre o processo religioso e

    as noes de vida e de morte biolgicas. Nesse primeiro texto de 1991, chamei a

    ateno para o facto de que essa fase preliminar de morte inicitica de descida e de

    percurso das galerias subterrneas a prova da Terra -, ser simbolicamente

    equivalente fase alqumica do nigredo, ou Obra ao Negro, implicando tambm um

    solve (a dissoluo na morte) e um separatio (a separao dos Elementos e das duas

    Naturezas). Sendo assim, a fase seguinte, intermdia, de purificao, de acesso

    superfcie, a prova do Ar passando necessariamente e previamente pela prova da

    gua (a sada das galerias subterrneas pelas pedras superfcie do lago da cascata) -

    equivaleria Obra ao Branco ou albedo. Ento, a ltima fase seria necessariamente a

    da Obra ao Rubo ou rubedo, a de conjunctio - a conjuno as duas Naturezas - e de

    coagula - a coagulao num corpo perfeito (o equivalente da Pedra Filosofal), fruto da

    corporificao do Esprito e da espiritualizao da Matria.

    Onde ocorrer ento, na geografia e na cenografia inicitica da Regaleira, esta fase

    terminal do Opus, da Obra alqumica? Como j referi naquele passeio/conversa com

    Vtor Mendanha, h dois locais, simblica e miticamente equivalentes, na Quinta que

    celebram iconograficamente as Bodas alqumicas entre a Matria e o Esprito. Um no

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    registo pago, a Gruta de Leda onde est presente numa gruta hexagonal o hexgono

    smbolo da unio dos mundos de cima e de baixo - uma escultura representando o

    tema clssico dos amores de Zeus por Leda (muito parecida com o desenho de

    Leonardo), em que Zeus (o rei dos deuses do Olimpo, o mundo celestial) se disfara de

    cisne para fecundar (simbolizada essa fecundao por uma mordedura) Leda (uma

    mulher, smbolo do mundo material). Note-se, desde j, que no Sonho de Polfilo,

    existe uma cena em que participam a Leda e o cisne. Essa fecundao figurada numa

    gruta, sombria e hmida, condies aptas biologicamente para a gestao - dar

    origem a um ser que participa das duas naturezas (a material e a celestial), no caso

    deste mito os gmeos Castor e Polux, entre outros filhos de Zeus e Leda. Carvalho

    Monteiro e Manini acrescentaram a este motivo clssico, uma inovao que

    consideramos uma verdadeira provocao (no mnimo heterodoxa) e que consiste na

    colocao de uma pomba na mo de Leda, como que a sugerir que essa concepo

    Conceio se vai dar por Obra e Graa do Esprito Santo, ao mesmo tempo que

    aponta para a sua proximidade simblica que no religiosa com o tema central da

    Capela (de que falaremos de imediato.

    De facto, o outro local das Bodas entre a Matria e o Esprito desenvolve-se num

    registo cristo. Trata-se da Capela Templria onde, sobre o altar, vemos representada a

    Descida do Esprito Santo (representado pelas pombas) o Esprito - sobre Maria a

    Me, a Mater, a Matriz, a Matria para dar origem ao Homem-Deus, o Filho de Deus

    incarnado. Para acentuar a dimenso alqumica deste retbulo, Maria est ornada com

    as trs cores da Obra o azul, equivalente herldico do negro, o branco e o vermelho,

    smbolos das trs fases atrs referidas e ainda o dourado, smbolo da Pedra Filosofal

    (Cristo foi representado pelos alquimistas cristos, como sendo a Pedra Filosofal). Com

    a proximidade simblica e mtica destes dois temas, nestes dois lugares da Regaleira

    (um pago e outro cristo), compreende-se melhor qual o Cristianismo (ou mesmo o

    Catolicismo) de Carvalho Monteiro. Trata-se de uma perspectiva englobante, sinttica

    (mas no sincrtica) universal, etimologicamente, catlica - da Tradio crist, como

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    aquela que (como dizia St. Agostinho) no veio abolir a religio antiga, mas sim dar-

    lhe cumprimento, havendo pois uma continuidade de temas entre o mundo pago e

    mundo cristo, embora expressos por linguagens diferentes e assentes em dogmas

    diversos (no caso presente, o catlico da Imaculada Conceio). Esse Cristianismo (e

    Catolicismo), muito especial (heterodoxo), presente na Regaleira, pela mo de Carvalho

    Monteiro recebe uma confirmao adicional com o Delta (irra)Radiante ou Tringulo

    Flamejante, sobreposto Cruz da Ordem de Cristo que est logo entrada da Capela,

    no tecto, por debaixo do Coro o que sugere um neo-templarismo cristo de raiz

    manica.

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    Figura 3 - Capela Templria

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    Em 2005, Christopher McIntosh publica o desenvolvimento do artigo acima citado, sob

    a forma de um livro, Gardens of the Gods Myth, Magic and Meaning, onde ele

    desenvolve os conceitos e os exemplos antes ensaiados, desde logo a ideia de jardim

    como espao sagrado o qual, na sua opinio, um templo ao ar livre que transporta

    uma mensagem intencional transformadora, de significado religioso, mstico ou

    filosfico. Esses Jardins dos Deuses ou jardins sagrados, segundo ele, no so apenas

    lugares de beleza, mas (tambm) lugares de significao ideia que no familiar ao

    esprito moderno, no entender do autor.

    Um jardim dos deuses, diz-nos McIntosh, pode ser uma metfora usada para fazer

    passar uma viso do mundo, um sentimento, um pensamento ou um ideal. E embora a

    leitura dos jardins no seja assunto simples pois nenhum jardim pode ser visto como

    um texto com uma significao fixa, pois contem vrios nveis de significao , a

    verdade que existem, contudo, suficientes imagens e smbolos partilhados (quer

    dentro, quer entre culturas) para tornar possvel a existncia de uma linguagem dos

    jardins... com uma estrutura comum contendo trs ingredientes bsicos :

    a forma do jardim no seu conjunto;

    os objectos que so criados ou colocados nos jardins ou as caractersticas da

    paisagem s quais se ligam significaes especficas. Estas podem ser

    colinas, rios, lagoas, grutas..., naturais ou feitas pelo homem. Essas

    caractersticas podem tambm incluir fontes, esttuas, ..., labirintos, ...;

    as plantas no jardim e os significados que lhes so atribudos.

    Segundo Christopher McIntosh (2005), para alm das variaes regionais e temporais,

    os jardins sagrados e simblicos, apresentam motivos recorrentes. disso que nos

    iremos ocupar de seguida.

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    Architecture & Education Journal

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    Desde logo, o conceito a mais antiga metfora, como refere McIntosh - de jardim

    como imagem do paraso, ou o jardim que conduz ao paraso - o jardim pode ser a

    escura floresta da Divina Comdia de Dante (que nela se perdeu), o denso bosque do

    Sonho de Polfilo de Colonna, etc.. O jardim como imagem do paraso apresenta, como

    tema recorrente e central, de origem mesopotmica, uma fonte de gua viva, de gua

    que d a vida da qual saem quatro rios. A imagem do centro do mundo, do eixo do

    mundo (axis mundi), lugar simblico de intemporalidade e de imortalidade prprios de

    um centro espiritual, muitas vezes representada por essa fonte atrs referida (e da

    qual saem os quatro rios), mas tambm por um monte ou colina - por exemplo, o

    Monte Meru dos hindus, o Monte Olimpo da mitologia grega, a Montanha do Graal da

    tradio mtica ocidental, ou o Monte Abiegno dos Rosacruzes, a que Pessoa se referiu

    amide. Como refere o autor de Os jardins dos Deuses, uma variao da montanha no

    centro do mundo a do Omphalos, ou pedra sagrada (da palavra grega, umbigo),

    sendo outra variao a rvore sagrada que similarmente representa o eixo do mundo. A

    rvore no centro do paraso (...) representa muitas vezes a morte, mas tambm o

    nascimento e a imortalidade (...) que liga os mundos superiores e inferiores.

    Na Quinta da Regaleira, esse centro do mundo est presente naquela elevao, ou

    monte, onde est a abertura superior do poo inicitico, envolta e encoberta por

    pedras num conjunto que parece sugerir um dlmen, ou anta -, e ainda pela rvore

    sagrada junto a ambos, o carvalho. Quatro smbolos do centro, bem prximos uns

    dos outros, como que para reforar essa ideia nuclear. De facto como salientaremos

    mais adiante, o Poo Inicitico (maior) da Regaleira, verdadeiro axis mundi, o tema

    estruturante da paisagem inicitica, em torno do qual tudo se organiza, na obra de

    Carvalho Monteiro e Manini. Diz-nos o autor que nos jardins em que o centro

    fortemente enfatizado, posto muitas vezes tambm o nfase nas quatro direces

    da bssola, ou nas quatro direces do espao. Ora, no fundo do poo encontramos

    uma Rosa dos Ventos no centro da qual se encontra uma Cruz Templria (e cujo

    significado remete para um universo cavalheiresco de raiz crist) -, que uma indicao

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    do centro, to prxima das outras, rvore e pedras sagradas. A outra indicao do

    centro, no longe das anteriores, constituda pela gua do lago que outrora era

    alimentada por uma cascata de gua viva, purificadora. Em resumo, temos que em

    torno do Poo Inicitico se encontram cinco smbolos do centro - as pedras sagradas, a

    rvore sagrada, a rosa dos ventos, a elevao/monte e o curso de gua corrente. Poo,

    que o smbolo da unio dos mundos superiores e inferiores, respectivamente

    representados na Regaleira pelo zigurat, de onde se observam os mundos celestiais,

    e pelo conjunto de labirnticas galerias subterrneas a que o poo d acesso, ambos

    bastante prximos uns dos outros, como j vimos atrs.

    Figura 4 - Guardies

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    Outro tema importante o das aproximaes a esses jardins sagrados e entradas para

    esses jardins sagrados, ou para os espaos sagrados desses jardins. De facto se o

    jardim uma imagem do paraso, uma espcie de templo, ou um lugar aparte, uma das

    caractersticas salientes o limiar desses espaos que, segundo Cirlot, um smbolo

    de transio e de transcendncia que separa e reconcilia os mundos do sagrado e do

    profano, e que, no Oriente protegido pelos guardies do limiar, drages e efgies de

    deuses e espritos que tambm mantm os profanos distncia. Ora, na Regaleira,

    protegendo todo o jardim sagrado, temos num registo pago - todo um conjunto de

    esttuas de deuses da Mitologia greco-romana e num registo cristo - uma Capela

    crist com a Santssima Trindade e a Virgem Maria (ela prpria um alto lugar simblico-

    mtico). Mas, protegendo mais especificamente essa estrutura organizadora e

    estruturante do jardim inicitico que o Poo e os percursos adjacentes -, temos os

    guardies do limiar, os crocodilos, centrais entrada monumental, os quais na

    Mitologia egpcia eram os guardies dos mundos inferiores, aqueles a que

    simbolicamente o poo d acesso (isto , as galerias subterrneas).

    Na escura floresta, onde decorrem as provas parte delas em subterrneos -, existe

    muitas vezes uma aluso aos quatro elementos, a terra, a gua, o ar e o fogo, que o

    iniciado e o heri tero de percorrer em sequncia tal como na Regaleira num

    caminho das trevas para a luz.

    Esses lugares subterrneos - galerias, grutas, cavernas -, simbolizam o feminino que d

    a vida, mas tambm a morte, j que so ventres geradores, mas tambm sepulcros,

    ambos no seio da Terra-Me. O objectivo da iniciao e dos rituais (iniciticos ou no),

    como bem notou o antroplogo Maurice Bloch, inverter o processo natural que vai da

    vida para a morte, de modo a estabelecer o processo cultural que vai da morte para a

    vida. Passar da natureza cultura , tambm, o objectivo destes jardins iniciticos.

    A tradio desta iniciao subterrnea enorme e poderemos citar alguns exemplos

    quer no domnio religioso, quer literrio, desde a Caverna de Proserpina dos Mistrios

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    de Eleusis, Caverna das Ninfas da Odisseia de Homero, das grutas de Dionsio,

    Eneida de Virglio, desde as grutas e cmaras subterrneas do Mitraismo Divina

    Comdia de Dante, etc. Embora no subterrneos, os labirintos tambm so lugares de

    provas iniciticas, bastando recordar o de Cnossos, onde Teseu mata o Minotauro,

    graas ao fio de Ariana.

    Em geral, nos Jardins do Renascimento, como refere McIntosh, existem um conjunto de

    referncias ao universo pago e s suas divindades muito bem analisado, tambm,

    por Joscelyn Godwin no seu livro The Pagan Dream of the Renaissance - comeando,

    desde logo, com as referncias provncia grega da Arcdia, to celebrada pelos poetas

    e pintores, a qual tinha como divindade tutelar, P, o deus da Natureza. Este deus

    aparece nos jardins do Renascimento juntamente com um conjunto de animais, tanto

    reais como mticos: sapos rs, tartarugas, lees, serpentes, drages, unicrnios, etc..

    Ora, no s P figura na Regaleira no chamado Patamar dos Deuses, como, junto a ele,

    no parapeito do muro que d para a estrada, l esto, para alm do caracol (smbolo

    dos antigos companheiros construtores), a tartaruga, a r/sapo, uma lagartixa, etc., e,

    bem prximo das esttuas dos deuses, encontramos uma imponente esttua de um

    leo. Alis outras esttuas da mitologia greco-romana, esto presentes no mesmo

    patamar, das quais destaco Vnus e Flora que, conjuntamente com P presente

    neste Patamar dos Deuses e nos vasos da Fonte da Abundncia -, celebram a

    fecundidade da Natureza, Vulcano, esposo de Vnus, Baco/Dionsio (filho de

    Proserpina, que assassinado pelos Tits, que o despedaam, o que sugere uma raiz

    xamnica) remetendo para o xtase bquico (e o xamanismo uma tcnica arcaica do

    xtase, como dizia Mircea Eliade) e para as iniciaes dionisacas (tal como P sugere a

    vitalidade e o xtase da natureza), Mercrio/Hermes, simbolizando as iniciaes nos

    mistrios em geral ambos so mensageiros dos Deuses e instrutores dos Homens -, e

    Fortuna Primigenia, cujo culto tinha lugar numa elevao com terraos e construes (o

    que nos recorda a encosta da Regaleira onde encontramos o Terrao dos Mundos

    Celestes e a entrada monumental para os mundos subterrneos com os Poos

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    Iniciticos, galerias, etc.), em Palestrina, prximo de Roma - tal como nos recorda

    Emmanuela Kretzulesco no seu livro sobre O Sonho de Poliphilo. No demais recordar

    que o jardim literrio, modelo destes jardins iniciticos, descrito na obra de F. Colona,

    apresenta um conjunto de esttuas da mitologia.

    No caso da Regaleira temos ainda, para alm dos j mencionados deuses, as esttuas

    de Cres apontando para os cultos agrrios de que os mistrios de Eleusis, de morte

    e ressurreio, onde era celebrada Demter e a sua filha Proserpina que, tal como a

    semente que morre, uma parte do ano no seio da terra, ir renascer superfcie,

    eram o mximo expoente mistrico - e de Orfeu o mais sbio dos semi-deuses,

    relacionado com o culto de Apolo, o mais sbio dos deuses. Ora, o mito de Orfeu inclui

    como tema central, num registo de demanda amorosa do heri pela sua amada

    Eurdice, a descida aos infernos (descensus ad inferos), a catabase, como veremos

    adiante.

    No seu livro The Art and Architecture of Freemasonry, James Stevens Curl refere

    Stowe, Stourhead e Worlitz, como exemplos de jardins que contm uma mensagem

    manica. Seguindo Chistopher McIntosh poderemos acrescentar, como vimos, Dsert

    de Retz, o Jardim Torrigiani, a Villa Malmanara e, tambm, o jardim de Goethe (que foi

    maon) em Weimar. As caractersticas dos jardins manicos, para alm das j

    indicadas, de que se destaca a natural aluso a smbolos e mitos do universo inicitico

    da Maonaria, e, como diz McIntosh, a jornada simblica e inicitica encetada pelo

    maon, so, tambm, uma constante referncia s tradies espirituais e religiosas da

    Antiguidade. Reclamando-se de um passado prestigioso como o fazem muitas outras

    ordens iniciticas a Maonaria rev-se nas Religies de Mistrios (egpcias, mdio-

    orientais, greco-romanas, etc.), no Judaismo do Antigo Testamento, e para os ritos,

    graus e ordens crists - no Novo Testamento. No sculo XVIII indesmentvel uma

    egiptomania que est presente, mas no exclusivamente, na Maonaria. A propsito,

    podemos dizer que se verdade que o interesse pelas antigas tradies, em particular

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    as pags, no exclusivo da Maonaria, tambm no menos verdade que os que se

    interessam por elas so, nos sculos XVIII e XIX, maioritariamente maons. Como

    escreve McIntosh, No eram, claro, apenas os maons que revelavam o grande

    entusiasmo pelas coisas egpcias. Contudo, os maons pelo interesse que

    demonstravam em tudo o que se relacionava com o conhecimento antigo e nas

    metforas arquitecturais... (e com) a busca do conhecimento perdido que informava a

    grande arquitectura das antigas civilizaes, tais como as do Egipto e da Grcia. Nas

    mentes de muitos maons, especialmente os com mais conhecimento esotrico, este

    conhecimento perdido tinha ligaes com tradies tais como o Hermetismo, Alquimia,

    Cabala e Astrologia.

    Relativamente ao Jardim Torrigiani cujos autores, proprietrio e arquitecto, j atrs

    referidos, eram membros da mesma Loja manica, a Napoleo, estabelecida em

    Florena em 1808 - Paola Maresca, no seu livro Boschi Sacri e giardini incantati (citada

    por McIntosh), faz as seguintes observaes: O caminho simblico, percorrendo temas

    alegricos atravs da escultura, da arquitectura e da vegetao, apresentava um

    profundo conhecimento esotrico. Revelador desta caracterstica, o facto de na

    entrada original estar uma esttua de Osiris, o deus da morte e da ressurreio... No

    jardim era possvel admirar um conjunto de construes, agora desaparecidos na sua

    maior parte, e que incluam uma baslica Gtica...um sepulcro e uma colossal esttua

    de Saturno, deus do tempo e da morte.... O itinerrio inicitico terminava numa torre

    neo-Gtica... dominando a colina sobre o jardim... A torre era uma reminiscncia

    daquela descrita por Goethe em Wilhelm Meister, a qual era habitada por um sbio e

    misterioso abade.

    Na Regaleira, no temos referncias a Osiris - as referncias egpcias so as dos Ibis,

    smbolo de Thot, e as flores de Lotus, na casa egpcia -, nem referncias directas a

    Saturno/Cronos, que destri, mata, os seus filhos, mas alm da referncia a Orfeu e

    ao seu mito de descida aos infernos e do facto de o Orfismo incluir Cronos nas suas

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    cosmogonias - conhecida a simpatia do proprietrio por este tema do tempo (Cronos)

    e da morte, que figura, sob a forma do Anjo da Morte, com a foice, no relgio mais

    complicado do mundo", o Leroy 02, que Antnio Augusto Carvalho Monteiro mandou

    fabricar em Besanon e que esteve patente na Exposio Universal de Paris e o

    relgio , ele mesmo, um instrumento que mede o tempo e preside passagem das

    pessoas e dos acontecimentos, entre os quais a morte. Quanto ressurreio ela no

    representada na Regaleira por um tema pago, mas -o num registo cristo, na Capela

    templria, o de Cristo ressuscitado, o qual coroa Maria. De referir ainda que na

    Regaleira existe uma Torre sob a qual existe a notvel Gruta da Leda, celebrando as

    bodas do Cu e da Terra e a gerao (dos Gmeos e de outros filhos) que resulta dessa

    conjuno de Zeus e de Leda tal como na Capela, homologamente (sob o ponto de

    vista simblico, no religioso), Maria concebe do Esprito, dando origem ao Filho e a

    seus Irmos, entre os quais existiria um gmeo, segundo dizem os especialistas da

    Bblia. Curiosa universalidade de temas e exemplar ecumenismo que faz a sntese

    magnfica do Paganismo e do Cristianismo!

    Claro exemplo de jardim inicitico de natureza manica, tambm, como referimos, o

    Parque Worlitz que, segundo Christopher McIntosh, se inspira em Stowe e em

    Stourhead, particularmente no Panteo, na Casa Gtica e no Templo de Flora. O tema

    recorrente da Morte e Renascimento, tema inicitico por excelncia, acompanha o

    percurso labirntico por passagens subterrneas e grutas, percurso atravs dos

    elementos e da alternncia das trevas e da luz, ou, como diz McIntosh, uma iniciao

    subterrnea nos elementos da terra, do fogo e da gua, at...ao ar. Em Worlitz, existem

    arcos contendo inscries dirigidas ao iniciado, tais como: Caminhante, escolhe o teu

    caminho com discernimento, Aqui a escolha torna-se difcil, mas decisiva, etc.

    Na Regaleira, existem vrios caminhos possveis, com sentidos e direces diversas,

    pelo que estes avisos para que o caminhante realize o verdadeiro caminho e no se

    perca pelos falsos caminhos, no sendo explcito, estar implcito. Na sala da caa,

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    e noutros locais no interior do Palcio, havia vrias inscries em latim, nas paredes,

    que continham conselhos morais e espirituais para os visitantes (que ainda seriam

    visveis, no entanto sem nitidez, em algumas fotos do comeo do sculo,

    disponibilizadas pelos descendentes para uma exposio que organizei aquando da

    abertura ao pblico da Regaleira, em 1998) entre os quais estaria o clebre festina

    lente (apressa-te, devagar), muito presente neste tipo de jardins e, claro, no Sonho

    de Polfilo. Em Worlitz temos algo que est tambm presente na Regaleira de um

    modo muito visvel - a sobreposio de mensagens em diversas linguagens em vrias

    camadas...transportando em conjunto motivos notavelmente diversos (...) os quais

    incluem: mstica crist (...), ascetismo (...), mistrios ctnicos (as passagens

    subterrneas e grutas), claridade apolnea (...), o tema do feminino (o Templo de Venus

    e a esttua de Leda) e possvelmente a Maonaria (as imagens egpcias...e o tema da

    iniciao nos quatro elementos).

    Inspirados em Worlitz, Goethe e o seu protector o Prncipe Carlos Augusto de Weimar

    criaram um parque encantador em Weimar, com diversas interessantes caractersticas,

    onde para alm de um monlito dedicado ao Prncipe Franz, criador de Worlitz, de uma

    Casa do Jardim onde o poeta-filsofo passava muito do seu tempo ele que ter

    desempenhado um papel importante no desenho e na ornamentao do parque - casa

    que parecia sada dos contos dos Irmos Grimm, e de uma Pedra da Boa Fortuna, uma

    esfera sobreposta a um cubo que foi erigida em 1777, havia uma Casa Templria, com

    muitos pentagramas tal como na Regaleira, a Capela templria est cheia de

    pentagramas e um pilar onde estava enroscada uma serpente, com a seguinte

    inscrio ao Esprito (gnio) deste lugar.

    2. As Cavernas celestiais e a simblica dos mundos subterrneos

    Os mundos subterrneos presentes na Regaleira, quer na galeria subterrnea que

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    circunda a entrada de gua do lago junto ao muro da estrada, quer nos dois Poos

    Iniciticos, o menor e o maior, quer na Gruta da Leda, quer ainda na cripta da Capela -

    so um tema universal que atravessa a histria cultural e espiritual da humanidade. De

    facto, eles esto presentes, desde a mais remota cultura humana, como lugares de

    refgio, mas tambm lugares de perdio e de morte. Aqui, a morte fsica (a que vai da

    vida para a morte) simboliza, ento a morte inicitica (a que vai da morte para a vida),

    pois, como refere Jean-Pierre Bayard, A morte inicitica figura uma morte fictcia e ela

    s se pode realizar nas entranhas da Terra, da Terra amamentadora para a qual

    voltamos aquando da nossa morte terrestre.

    No entanto, para muitas religies antigas, esses lugares obscuros e misteriosos

    galerias subterrneas e cavernas - no so lugares de condenao definitiva, mas

    lugares de passagem para aqueles que vencem as provas e um meio de ascenso

    para os lugares superiores, celestiais, onde reina a luz. Os Mistrios (de Eleusis, por

    exemplo) eram cerimnias rituais no termo das quais um contacto fulgurante com o

    divino levava experincia pessoal de uma promessa de salvao no alm. Esses

    lugares subterrneos, particularmente as grutas, so tambm, como muito bem refere

    Naomi Miller, na linha destas antigas tradies, verdadeiros santurios ou Cavernas

    Celestiais, nome do livro de sua autoria dedicado s grutas dos jardins.

    Como escreve ainda Jean-Pierre Bayard, especialista das iniciaes e da simblica,

    esotrica em particular - na sua obra Simblica dos Mundos Subterrneos -, todas as

    tradies ensinaram que preciso primeiro atingir o fundo do inferno, para comear a

    ascenso para os mundos celestes; s se pode atingir o cu, passando pelo inferno,

    dando assim a prova de que se digno de aceder a um mundo superior. Numa tradio

    muito posterior, a do Rosacrucianismo alqumico, nascido no sculo XVII, pode dizer-se

    que O Homem para se regenerar deve descer ao mundo subterrneo. L ele encontrar

    o sujeito primordial indicado por VITRIOL (Visita o Interior da Terra e pela Rectificao,

    ou purificao, encontrars a Pedra Oculta).

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    Este tema de descida aos mundos sunterrneos e de asceno aos mundos superiores,

    est de facto presente na tradio espiritual da Humanidade desde as religies

    primitivas, como por exemplo, o xamanismo, j que o xamane faz as suas viagens

    nesses dois mundos. Com escreve Mircea Eliade, na sua obra de referncia Le

    Chamanisme et les techniques archaiques de lextase (citado, muito a propsito, por

    Jean-Pierre Bayard) a ponte (ou a corda) que permite ao heri atravessar o rio infernal, a

    personagem benvola, o animal guardio da ponte, participam dos motivos clssicos da

    descida aos infernos, mito que encontramos em todas as civilizaes. Na Regaleira

    existe, depois de sair da galeria subterrnea que vem do fundo do Poo Inicitico, uma

    ponte sobre o lago (com as pedras superfcie) que era alimentado pelas guas que

    caam de uma cascata, guas essas que preciso atravessar, para se ascender aos

    mundos luminosos.

    Esse tema universal est, ento, presente nos antigos relatos mitolgicos e religiosos

    de, por exemplo, Inana (e a sua descida aos infernos), Osiris (e a sua morte num tmulo

    oferecido ardilosamente por Seth e seu desmembramento xamnico), Eleusis onde

    se celebravam os mistrios de Demeter em demanda da sua filha Proserpina

    (ocultada uma parte do ano no interior da terra, tal como as sementes, em analogia

    evidentemente agrria), Orfeu (e a sua, tambm, descida aos infernos em demanda de

    Eurdice, sua amada), Dionsio (que embora sendo celebrado nas montanhas, sofre a

    iniciao no Hads, e tambm desmembrado...). Vejamos mais detalhadamente, o

    que sugere o mito de Orfeu, presente na Regaleira atravs da esttua do Patamar dos

    Deuses. Este semi-deus que passa por ser fundador de ritos secretos, tltai, mais

    incantaes mgico-tergicas do que, verdadeiramente, iniciaes - desce ao Hads em

    busca de sua amada Eurdice, morta por uma serpente no dia das suas bodas. Tendo

    conseguido resgat-la atravs da sua coragem e, sobretudo, pelo encanto da palavra e

    da msica sada da sua lira, Orfeu contrariamente proibio que lhe fora determinada,

    olha para trs para contemplar Eurdice, o que conduz segunda morte da sua amada.

    importante mencionar ainda que o Orfismo contem cosmogonias que envolvem

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    Cronos o Tempo, destruidor, mas tambm revelador, que pareceu ter obcecado

    Carvalho Monteiro -, Eros - que nos lembra a pomba venusiana da Gruta de Leda -,

    Urano (o Cu) e Gaia (a Terra) presentes no Terrao dos Mundos Celestes e ainda

    Zeus e P. Ainda no Orfismo, temos o mito do deus desmembrado, Dionsio, morto

    pelos Tits que depois consomem a sua carne (numa clara referncia de tonalidade

    xamnica e, tambm, teofgica, lembrando o santo sacrifcio inaugurado por Cristo

    aquando da ltima Ceia). A referncia dionisaca do Orfismo estabelece uma transio

    entre um Dionsio orgistico, exttico, e um Dionsio asctico e cremos que ambos

    os registos esto presentes, simbolicamente na Regaleira.

    Tambm a literatura antiga tem abundantes referncias a estas provas subterrneas,

    em grutas e em cavernas - no sendo a Caverna, de Plato, nem o Antro das Ninfas, de

    Porfrio, de modo algum alheios a este universo -, findas as quais comea a asceno

    para a luz, em obras tais como a Eneida de Virglio e a Divina Comdia de Dante esta

    muito prxima da Regaleira, como j referimos, embora o relato de Virglio, pela sua

    universalidade, tambm se possa reconhecer na Quinta da Carvalho Monteiro e de

    Manini. Virglio, na Eneida (particularmente o Cap. VI), coloca os Campos Elsios em

    baixo, na Terra, atribuindo-lhes ao mesmo tempo o papel de morada dos espritos dos

    eleitos. O heri dessa saga tal como Teseu que lutou contra os monstros a fim de ser

    reintegrado no reino da luz e tal como Telmaco que penetra igualmente no reino das

    sombras saindo, tal como a Sibila, por uma abertura diferente da entrada, o que

    acontece tambm na Regaleira! - Eneias, atravessa os bosques que circundam o lago

    Averno e entra numa gruta, chegando ao limiar do lugar infernal, onde reinam os

    monstros mitolgicos, como o co Cerbero, de tripla cabea, que ele vence. Eneias,

    verdadeiro heri e verdadeiro iniciado, tem ento, como todo o Homem, dois caminhos:

    o do Trtaro a vasta priso com uma tripla cerca de muralhas -, ou o do Eliseu o

    reino da doce luz, da verdura permanente. este ltimo, o caminho desejvel para

    todos ns e, na Regaleira, o caminhante pode errar por caminhos labirnticos e por

    falsas sadas, ou ento, dirigir-se por sobre as guas, pela vereda que d acesso o

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    bosque verdejante onde irrompe a luz solar, em direco aos dois santurios,

    simblicamente equivalentes: o pago, da Gruta da Leda, ou o cristo, da Capela

    Templria.

    A propsito desta dicotomia paganismo-cristianismo to bem resolvida na Regaleira

    o Poo Incitico (o maior) parece ser o lugar sntese dos dois universos, j que remete

    para o mundos das religies de mistrios e para as demandas corajosas dos heris da

    literatura antiga (que so tambm demandas amorosas) como o faz, alis, Dante na

    sua Divina Comdia. De facto, como nos diz Ren Gunon, no seu Esoterismo de Dante,

    A epopeia de Dante joanita e gnstica (...) A sua viagem atravs dos mundos

    sobrenaturais efectua-se como a iniciao nos mistrios de Eleusis e de Tebas.

    Virglio quem o conduz e o protege nos crculos do novo Trtaro, como se Virglio (...)

    fosse aos olhos do poeta florentino o pai ilegtimo, mas verdadeiro, da epopeia crist.

    Na realidade, esta a caracterstica principal da Divina Comdia de Dante, a necessria

    descida aos infernos, prvia ascenso aos cus. Recordemos, brevemente, a

    histria na sntese (inicitica) que nos d Bruno Pinchard:

    Na vspera de 6. Feira Santa, 9 de Abril de 1300, Dante sai de uma

    floresta obscura para caminhar em direco a uma montanha

    iluminada pelos raios do sol nascente. Mas ele no pode encetar essa

    ascenso para esse cume pois trs animais (entre os quais um leo)

    barram-lhe o caminho. Apenas a apario do antigo poeta Virglio o

    liberta da tentao de retornar floresta inicial, mostrando-lhe a

    necessidade de comear toda uma nova viagem. Ser-lhe- necessrio,

    com efeito, penetrar e atravessar o mundo subterrneo at ao centro

    da terra, para s reencontrar a luz do dia no dia de Pscoa, na ilha dos

    antpodas, que a Ilha do Purgatrio. Do alto da montanha que

    domina esta ilha, ele partir ento, conduzido por uma mulher amada

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    e morta, Beatriz, para uma explorao completa do domnio celeste

    (Pinchard).

    Numa poca de ignorncias e de facilitismos diversos, entre os quais o espiritual,

    convm lembrar o adgio antigo de que precipitatio a diabolo, isto , a precipitao

    obra do diabo. Razo pela qual convm insistir, como o faz Bruno Pinchard:

    Ler Dante assim compreender que impossvel elevar-se para a luz,

    sem se empenhar primeiro numa descida infernal, no corao da

    terra (...) atravs de uma confrontao integral com o mundo da

    morte, at ao centro do universo. (...) S o afrontar a morte e o mal,

    em nome do amor, permite o acesso aos estados superiores do ser

    (Pinchard).

    Dante prope-nos, pois, em primeiro lugar uma visita ao interior da terra (para

    encontrar) o segredo do mundo nesta demanda abissal que ao mesmo tempo uma

    rectificao de si prprio.

    Numa passagem de Gunon, complementar deste texto de Pinchard, e que pode fazer

    a sntese do que tenho escrito ao longo dos meus trabalhos sobre a Regaleira (e que

    algum New Age mal digerido no compreende e rejeita), e daquilo que McIntosh

    escreveu sobre os Jardins Iniciticos, o autor de O Esoterismo de Dante afirma, por seu

    turno:

    Morte e descida aos Infernos, por um lado, ressurreio e ascenso aos Cus, por outro

    lado, so como que as duas faces inversas e complementares, de que a primeira a

    preparao necessria da segunda, e que se encontraria sem dificuldade na descrio

    da Grande Obra hermtica; e a mesma coisa nitidamente afirmada em todas as

    doutrinas tradicionais.

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    Ou, ainda, respondendo queles que se interrogam sinceramente porque que essa

    ascenso deve ser antecedida por uma descida aos Infernos, Gunon aponta algumas

    razes espirituais e iniciticas, que radicam numa perspectiva gnstica: por um lado,

    essa descida como uma recapitulao dos estados que precedem logicamente o

    estado humano, que determinaram as suas condies particulares e que devem assim

    participar na transformao que se vai efectuar; por outro lado, ela permite a

    manifestao, segundo certas modalidades, das possibilidades de ordem inferior que o

    ser traz ainda em si num estdio no desenvolvido, e que devem ser esgotadas por ele

    antes que lhes seja possvel alcanar a realizao dos seus estados superiores.

    A descida do poos iniciticos da Quinta de Carvalho Monteiro, que conduz aos mundos

    subterrneos e que , no meu entender, o percurso estruturante da Regaleira - quer se

    faa ou no uma leitura alqumica (como a que fizemos anteriormente) -, parece

    inserir-se no contexto de uma iniciao artesanal (tal como a alqumica operativa

    laboratorial que trabalha os metais e os minerais, tal como a manica que trabalha a

    pedra, pelo menos simbolicamente) a qual remete para o universo das iniciaes dos

    Mistrios da Antiguidade (que a Maonaria invoca amide) e que se passavam, grande

    parte delas, no seio da Terra-Me, em subterrneos, em grutas e em templos. claro

    que existe na Regaleira uma clara referncia a tradies mais tardias como a Divina

    Comdia de Dante, estabelecida, em 1991, com a minha proposta de identificao do

    515 (cf. Purgatrio) e que outros estudiosos confirmaram com outros temas

    dantescos (p.ex., associando os 9 patamares das escadas do poo grande, com os 9

    crculos do Inferno, etc.). Mas essa referncia remete por sua vez para outras

    tradies literrias e mticas da Antiguidade, de que a Eneida de Virglio um exemplo

    notvel com o tema inicitico de descida e subida (cf. Eneida, 6, 126), tema esse que,

    por sua vez, tem raiz na estrutura de morte e ressureio que se pode identificar e

    muitas iniciaes dos Mistrios (egpcios, mdio-orientais greco-romanos, etc., cujos

    mais conhecidos eram os de Osris, os de Isis, os de Attis, os de Adonis, os de Eleusis,

    os de Dionsio, etc.).

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    Architecture & Education Journal

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    A Regaleira percorre simbolicamente, na sua exuberante cenografia inicitica, todo um

    universo de referncias sagradas, religiosas e culturais e tambm das iniciaes do

    esoterismo ocidental, nos seus diversos nveis, tal como ela contem, num contexto

    alqumico, as trs fases de desenvolvimento da Obra. Ela , nesse sentido, uma obra

    arquitectnica completa que atravessa (tal como vimos) tambm, como a Obra

    alqumica, os dois regimes do imaginrio, o nocturno e o diurno, e no primeiro

    destes, as duas estruturas, a mstica (associada Obra ao Negro) e a sinttica

    (associada Obra ao Branco).

    No entanto, todas as referncias esotricas e iniciticas da Regaleira podero nunca ter

    estado (pelo menos no tempo do seu primeiro proprietrio Antnio Augusto Carvalho

    Monteiro) associadas, por diversas razes (morte, convulses polticas, etc.) a uma

    actividade esotrico-inicitica real e ritual, quer individual quer em grupo. A Quinta da

    Regaleira, para alm de eventuais influncias concretas de correntes especficas da

    Mitologia e do Esoterismo Ocidental (muitas das quais creio ter identificado),

    sobretudo um enorme legado simblico e mtico em pedra, dessas tradies, mesmo se

    a sua cenografia inicitica possa nunca ter sido utilizada em actividade ritual. Carvalho

    Monteiro e Manini deixaram e primeiro lugar um testamento espiritual para as

    geraes vindouras assente, literariamente, na trindade Virglio, Dante e Cames,

    banhada pela inspirao do Sonho de Polfilo e tingida pela heterodoxia que podemos

    constatar no maon Sampaio Bruno, contemporneo de Carvalho Monteiro - e uma

    smula de muito do que a tradio esotrica ocidental contem de mais interessante e

    que entronca nas tradies literrias e mticas, da Antiguidade ao Renascimento,

    muitas das quais so expoentes maiores do acervo cultural ocidental.

    Concluso

    Os jardins iniciticos da Quinta da Regaleira Quinta que uma obra universal onde

    se podem reconhecer referncias diversas assentes numa mesma estrutura bsica -

    incluem como estrutura central e organizadora um percurso de morte e ressurreio -

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    e temas cristos e pagos a ele associados harmonicamente de grande

    universalidade na histria cultural e religiosa da Humanidade. Encontramos esse

    arqutipo quer nas religies ancestrais do Xamanismo s Religies de Mistrios

    quer na grande literatura da Antiguidade (Eneida de Virglio, Metamorfoses de Ovdio,

    etc.) e Clssica (Divina Comdia de Dante, p.e.). Esse arqutipo foi tambm utilizado,

    mais tarde pelas Fraternidades iniciticas que utilizaram, nos seus rituais, esse tema

    de morte e ressurreio e o percurso que vai das Trevas para a Luz.

    Figuras:

    Figuras 1 a 4 - Fotografias do autor

    Referncias e bibliografia complementar:

    ANES, J. M. (1991). Digresso hermtica por uma manso filosofal portuguesa. in Quinto imprio - Jornal mensal de temtica hermtica, ano 1, n. 3, Abril de 1991. Sintra: Sibila. Reeditado com uma introduo, no Boletim cultural da Cmara Municipal de Sintra: Vria Escrita, n. 1, Janeiro/Junho de 1994. Sintra: C.M. de Sintra.

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    ANES, J. M., PEREIRA, P. e SILVA, D. (1998). A Quinta da Regaleira: histria, smbolo e mito. Sintra: Fundao Cultursintra.

    ANES, J. M. ([1998] 2001). (entrevistado por Vitor Mendanha) O esoterismo da Quinta da Regaleira. Lisboa: Hugin.

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    MCINTOSH, C. ( 2005). Gardens of the Gods Myth, Magic and Meaning.

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