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O enunciado como unidade real do ensino de língua portuguesa: o papel do estilo em foco Solange Ariati 1 [email protected] UTFPR- Universidade Tecnológica Federal do Paraná Resumo: Buscamos compreender no presente artigo como é possível, a partir do conceito de enunciado na teoria bakhtiniana, desenvolver atividades didáticas para o ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa, e como essas podem preencher a laguna existe, em termos metodológicos, acerca da utilização da concepção de gênero do discurso em sala de aula. Para isso, evidenciamos o conceito de enunciado concreto e, após, o colocamos como objeto que precisa ser tomado como meio de ensino-aprendizagem de uma Língua. Os dados foram selecionados a fim de materializar possíveis atividades que podem vir a compor o repertório da prática docente e, além disso, evidenciar o que a tomada do enunciado concreto como unidade real do ensino de Língua Portuguesa pode contribuir para uma formação crítica do aluno, além do também necessário domínio do código, em termos estruturais. Os resultados mostram que, além de tomar os elementos estáveis do gênero, é necessário trabalhar o estilo. Afinal, esse elemento do enunciado funciona como uma reformulação/recriação do gênero discursivo que é resultante de uma processo de interação e luta entre o “eu” e o “outro” na disputa por um objeto, tal processo que é constituinte da linguagem e que fica materializado no estilo do enunciado. Palavras-chave: Enunciado; dialogismo; ensino. Abstract: In this paper, we intend to understand how it is possible, from the utterance concept in the Bakhtin theory, develop didactic activities to improve the Portuguese teaching-learning and how these can fill the gap exist, in methodological terms, in the use of the speech genres conception in the classroom. For this, we highlight the concept of concrete utterance and, after, place it as an object that needs to be taken as a means to teaching and learning a language. The data was selected in order to materialize possible activities that can come to compose the teaching repertoire practice and, in addition, highlight what the taking of the concrete utterance as a real unit of Portuguese language teaching can contribute to a student critical formation, in addition to the necessary learning of langue code, in structural terms. The results reveal that in addition to taking the stable elements of the genre, it is necessary to look at the style. After all, this utterance element functions as a reformulation/re-creation of the discursive genre that results from a process of interaction and struggle between the "I" and the "other" in the dispute for an object, process that is constituent of the language and is materialized in the utterance style. Keywords: Utterance; dialogism; teaching activity. 1 Mestranda e bolsista CAPES do Programa de pós-graduação em Letras, da Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Câmpus Pato Branco, na linha de pesquisa: Linguagem Educação e Trabalho.

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Page 1: O enunciado como unidade real do ensino de língua ... · O enunciado como unidade real do ensino de ... esse elemento do enunciado funciona como uma reformulação ... a partir de

O enunciado como unidade real do ensino de língua portuguesa: o papel do estilo em

foco

Solange Ariati1

[email protected]

UTFPR- Universidade Tecnológica Federal do Paraná

Resumo: Buscamos compreender no presente artigo como é possível, a partir do conceito de

enunciado na teoria bakhtiniana, desenvolver atividades didáticas para o ensino-aprendizagem

de Língua Portuguesa, e como essas podem preencher a laguna existe, em termos

metodológicos, acerca da utilização da concepção de gênero do discurso em sala de aula. Para

isso, evidenciamos o conceito de enunciado concreto e, após, o colocamos como objeto que

precisa ser tomado como meio de ensino-aprendizagem de uma Língua. Os dados foram

selecionados a fim de materializar possíveis atividades que podem vir a compor o repertório

da prática docente e, além disso, evidenciar o que a tomada do enunciado concreto como

unidade real do ensino de Língua Portuguesa pode contribuir para uma formação crítica do

aluno, além do também necessário domínio do código, em termos estruturais. Os resultados

mostram que, além de tomar os elementos estáveis do gênero, é necessário trabalhar o estilo.

Afinal, esse elemento do enunciado funciona como uma reformulação/recriação do gênero

discursivo que é resultante de uma processo de interação e luta entre o “eu” e o “outro” na

disputa por um objeto, tal processo que é constituinte da linguagem e que fica materializado no

estilo do enunciado.

Palavras-chave: Enunciado; dialogismo; ensino.

Abstract: In this paper, we intend to understand how it is possible, from the utterance concept

in the Bakhtin theory, develop didactic activities to improve the Portuguese teaching-learning

and how these can fill the gap exist, in methodological terms, in the use of the speech genres

conception in the classroom. For this, we highlight the concept of concrete utterance and, after,

place it as an object that needs to be taken as a means to teaching and learning a language. The

data was selected in order to materialize possible activities that can come to compose the

teaching repertoire practice and, in addition, highlight what the taking of the concrete utterance

as a real unit of Portuguese language teaching can contribute to a student critical formation, in

addition to the necessary learning of langue code, in structural terms. The results reveal that in

addition to taking the stable elements of the genre, it is necessary to look at the style. After all,

this utterance element functions as a reformulation/re-creation of the discursive genre that

results from a process of interaction and struggle between the "I" and the "other" in the dispute

for an object, process that is constituent of the language and is materialized in the utterance

style.

Keywords: Utterance; dialogism; teaching activity.

1 Mestranda e bolsista CAPES do Programa de pós-graduação em Letras, da Universidade Tecnológica Federal

do Paraná, Câmpus Pato Branco, na linha de pesquisa: Linguagem Educação e Trabalho.

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Introdução

Desde a publicação dos PCNs de Língua Portuguesa, em 1997, é prescrito ao professor

dessa disciplina que utilize gêneros textuais como instrumento didático. Porém, entre o que é

prescrito e o que de fato é realizado sempre há uma distância resultante das circunstâncias

concretas da atividade (LIMA, 2010). Nesse caso, essa distância advêm de estratégias próprias

do docente e de inúmeras dificuldades, que vão desde sua formação, passando por condições

precárias de trabalho, as quais ele enfrenta diariamente, até a lacuna, em termos metodológicos,

deixada pelos documentos elaborados pelo Ministério da Educação. Tal distância, entre a

prescrição dos PCNs e o realizado pelo professores, é amplamente discutida por docentes e/ou

pesquisadores que objetivam esclarecer como, na prática, podemos utilizar o gênero textual

como instrumento de ensino. Porém, após quase duas décadas desde a publicação dos PCNs,

as insatisfações advindas dos docentes, principalmente sobre esclarecimentos metodológicos,

ainda se fazem presentes.

Com o objetivo de minimizar tal problemática, propõe-se, neste estudo, que o ensino

de Língua Portuguesa abandone, momentaneamente, o conceito de gênero para tratar do

enunciado concreto, do ponto de vista bakhtiniano, como a unidade real da comunicação e, ao

mesmo tempo, como a unidade real do ensino de língua, seja materna ou estrangeira.

Para isso, nos debruçamos, em um primeiro momento, sobre as teorizações acerca do

tratamento do texto em sala de aula e, após, nos escritos de Bakhtin (2016) sobre o enunciado

como unidade real da comunicação humana. Em um segundo momento, propomos um

exemplo, a partir de um anúncio publicitário, de como utilizar o texto, em sala de aula, como

um enunciado concreto do ponto de vista bakhtiniano.

Fundamentação teórica

Quando um determinado texto é levado para sala de aula, mas tratado como algo

estável, é impossível identificar e compreender suas relações dialógicas, resultando em uma

prática chamada de texto como pretexto (GERALDI, 1984). Com essa prática, o texto é

utilizado como suporte para análises gramaticais e não como produtor de sentidos. Assim,

quando o texto é apenas um pretexto para tratar das formas estanques do gênero que ele

pertence e/ou de seus aspectos puramente gramaticais, o texto é tomado apenas como um

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arranjo pacífico de componentes lexicais dispostos em uma ordem estabelecida. Esse

tratamento do texto como algo estável e pacífico resulta em uma formação acrítica dos

estudantes, colaborando para o não domínio da leitura que, no Brasil, ainda é alta. Segundo

Rojo (2008), boa parte dos leitores brasileiros, “na situação de exame, demonstram dominar

apenas as capacidades escolares mais básicas do trato da significação do texto” (p. 90).

Observado que a leitura e, por consequência, a escrita ainda são grandes desafios em

nosso sistema de ensino, público e privado, propomos, neste artigo, visualizar como o

tratamento do elemento estilístico do enunciado pode colaborar para que o trabalho por meio

de gêneros discursivos, ou melhor, por meio de enunciado concretos, em sala de aula, não

ocorra de modo a tratar apenas do que há de estável no gênero, mas do enunciado como

processo de embate entre o “eu” e o “outro” entre diferentes forças sociais que lutam por um

mesmo objeto. Afinal, a palavra, enquanto signo componente de um enunciado concreto, “se

apresenta como uma arena em miniatura onde se entrecruzam e lutam os valores sociais de

orientação contraditória. A palavra revela-se, no momento de sua expressão, como o produto

da interação viva das forças sociais” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009, p. 67).

De acordo com Bakhtin (2016), “o emprego da língua efetua-se em forma de

enunciados (orais e escritos) concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou daquele

campo da atividade humana” (p. 11). Com essa afirmação, o autor, diferentemente de algumas

correntes linguísticas, que tinham ou têm, a palavra ou a oração como unidade, aponta que é o

enunciado que compõe a totalidade das propriedades da linguagem, ou seja, o enunciado

concreto é “real unidade da comunicação discursiva” (p. 22 – grifos do autor).

Bakhtin (2016) não apenas elege o enunciado como a real unidade, mas o descreve.

Para isso, o autor afirma, primeiramente, que enunciado engloba, além da dimensão verbal, a

extraverbal, ou seja, a concretude da situação de interação entre os falantes. Afinal, é “só o

contato do significado linguístico com a realidade concreta, só o contato da língua com a

realidade, contato que se dá no enunciado, gera a centelha da expressão; esta não existe nem

no sistema da língua nem na realidade objetiva existente fora de nós” (BAKHTIN, 2016, p.

51). Com isso, o enunciado abarca a situação concreta de fala e, em caso de “arrancar a

enunciação deste chão real que a alimenta, perdemos a chave que abre o processo de

compreensão tanto de sua forma quanto de seu sentido; em nossas mãos ficam ou uma moldura

linguística abstrata, ou um esquema abstrato de sentido” (VOLOCHÍNOV, 2013, p. 86).

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Os enunciados são relativamente estáveis, ou seja, nem estanques e imutáveis, nem

resultantes de uma produção aleatória e caótica. Essa relatividade surge de faceta individual,

já que o enunciado “pode refletir a individualidade do falante (ou de quem escreve), isto é,

pode ter estilo individual” (BAKHTIN, 2016, p. 17), gerando, com isso, certa e necessária

flexibilidade em seu emprego. Porém, ao mesmo tempo, o enunciado é essencialmente social,

pois quando falamos “não vamos de uma palavra a outra” (BAKHTIN, 2016, p. 51), as

selecionando do sistema abstrato da língua. Longe disso, o que selecionamos são enunciados

já nos dados no social, ou seja, no contexto de interação já experimentados com outros.

Fazemos isso pois já existem “formas relativamente estáveis e típicas de construção do

conjunto” (BAKHTIN, 2016, p. 38 – grifos do autor) disponíveis para atender determinadas

demandas comunicativas-interacionais.

Mesmo diante do papel de destaque dado ao elemento estilístico nos textos de Bakhtin,

ou a ele atribuídos, parece-nos que esse elemento do gênero está longe de receber a devida

atenção, ficando, muitas vezes, em segundo plano. Isso, como veremos adiante, acabado

resultando, em alguns casos, em estudos sobre o gênero discursivo como meio de ensino e

aprendizagem de Língua, seja ela materna ou não, pautados em uma suposta estabilidade plena

do gênero. Essa distorção é resultante de um longo processo de didatização que acaba,

inevitavelmente, em algum grau, refratando ideias por meio do chamado filtro pedagógico. De

acordo com Campomori (2004), “a disciplina escolar seria resultado da passagem dos saberes

da sociedade por um “filtro” específico, a tal ponto que, após algum tempo, ela pode não mais

guardar relação com o saber de origem”. No entanto, há um limite que, se chegado, leva a

completa distorção entre a prática didática e ao que a teoria que orienta essa prática propõe.

Para compreendermos como o estilo, que é justamente o que garante a vitalidade do

gênero, isto é, o que lhe permite continuar eficaz frente às mudanças de ordem interacional

entre os sujeitos, nos voltamos à teoria vigotskiana de como o comportamento humano se recria

a fim de atender às demandas do meio. Vigotski (1999) nos apresenta que o comportamento

humano é um processo de equilíbrio do organismo com o meio2. Porém, segundo o autor,

“nunca se pode admitir que essa equilibração se realize até o fim de maneira harmoniosa e

plena, sempre haverá certas oscilações da nossa balança, sempre haverá certa vantagem da

parte do meio ou do organismo.” (VIGOTSKI, 1999, p.311). Tendo em vista esse processo de

equilibração, a atividade do sujeito, seja em termos gestuais ou de uma atividade verbal, como

2 Meio aqui compreendido também como as interações humanas, não apenas do ponto de vista material e físico.

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o próprio enunciado, deve estar sempre em renovação para atender às novas necessidades

impostas pelas transformações do meio. Se persistimos na metáfora da balança que o autor faz,

podemos afirmar que quando o meio, ou seja, as situações concretas, incluindo as interações

sociais, se modificam, o outro lado da balança, que corresponde ao sujeito e seu

comportamento, também deve se modificar a fim de garantir a tentativa da estabilidade em

relação ao meio, mesmo que essa instabilidade seja relativa. Por isso, também o gênero, como

atividade humana que é, nunca é completamente estável, apenas relativamente estável

(BAKHTIN, 2016; VIGOTSKI, 1999).

Essa renovação supracitada está justamente na esfera do criado da enunciação, já que,

ao mesmo tempo, o sujeito seleciona e recria uma variante pertencente a um conjunto de

enunciados de uma determinada situação interacional, isto é, de um gênero. No entanto, ao

empregar em um meio específico, um enunciado, em algum grau, se renova.

Para que se possa utilizar a teoria vigotskiana acima colocada, é imprescindível

compreender o enunciado como atividade humana. Para isso, nos pautamos em Lima (2015),

que afirma que “entre as palavras e a atividade linguística em situação real de comunicação

verbal existe a mesma relação extremamente complexa existente entre os instrumentos e a

atividade de trabalho em situação real” (874-875). E também em Clot (2016) que afirma que

“o enunciado é o protótipo de toda atividade humana” (p. 93).

Passamos agora à análise de um enunciado, e, com isso, evidenciar a importância de

trabalhar, além do que estável, a faceta instável do gênero e, com isso, observar o

funcionamento do processo de construção e recontrução do estilo, que, nesta análise, ocorre

em campanhas publicitárias de uma marca de cerveja.

O estilo como resultante de um processo de interação e luta

Para materializarmos como é possível construir uma atividade que visa o ensino e

aprendizagem de uma língua, neste caso a de Língua portuguesa, por meio de sua unidade real,

a do enunciado concreto (BAKHTIN, 2016), realizamos a análise de enunciados pertencentes

à uma campanha da Skol3, que circulou durante o carnaval do ano de 2015, veiculada em

outdoors na cidade de São Paulo.

3 Skol é uma marca de cerveja popular no Brasil e que pertence ao Grupo Ambev, que, no ano de 2017, é o

maior fabricante de cerveja e refrigerantes da América Latina.

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A referida campanha selecionada traz mensagens como: “Esqueci o não em casa”;

“Topo antes de saber a pergunta”. Podemos conferir uma delas na imagem abaixo:

Fonte: Portal de notícial UOL (2015)

Este anúncio, quando direcionado ao público, gerou polêmica e foi fortemente criticado

por internautas. Segundo o público que repudiou a campanha, as frases remetem à ideia de

que as mulheres estão disponíveis no carnaval e que elas podem ser abordadas e tocadas mesmo

sem consentimento, ou seja, não tem o direito de “trazer o não”. Em um ato de resposta à tal

campanha publicitária, algumas pessoas foram até o local onde esses anúncios estavam e,

abaixo, colocaram a seguinte frase: “e trouxe o nunca”, alterando, com isso, o enunciado do

anúncio. Além disso, também ocorreram fotos divulgadas em mídias sociais nas quais algumas

mulheres demonstram sua insatisfação em relação ao anúncio com um gesto obsceno realizado

em frente a tal anúncio. Como podemos observar na imagem abaixo:

Fonte: Jornal Folha de S. Paulo (2015)

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Tamanha foi a reação negativa do público, que o CONAR, Conselho Nacional de

Autorregulamentação Publicitária, abriu um processo contra essa campanha publicitária. No

resumo da decisão do CONAR, que foi julgado em Abril de 2015, é possível acessar o que

motivou a abertura do processo. Como podemos conferir:

Grupo de consumidoras reclamou de publicidade em mídia exterior da Skol,

veiculada às vésperas do Carnaval, com a frase acima. Elas consideraram que

a peça publicitária podia implicar o estímulo ao abuso, constrangimento e

intervenção na liberdade de comportamento e autonomia de decisão, em

especial da mulher (CONAR, 2015).

No mesmo resumo, também é possível conferir o argumento da empresa e de sua

respectiva agência que veiculou a propaganda:

Em sua defesa, anunciante e agência informaram os contornos da campanha em

que a peça publicitária estava inserida e que propõe ao consumidor "aceitar os

convites que a vida faz". Negou a defesa a interpretação dada à frase,

lembrando que não há imagem no cartaz de quem pudesse estar vocalizando-a,

o que, por si só, já deveria afastar qualquer entendimento de que haveria

intenção de tratar de assuntos ligados a sexo (CONAR, 2015).

No julgamento, o relator da representação das reclamações realizadas pelo público

chegou a sugerir a alteração do conteúdo da propaganda por, justamente, considerar que,

quando vista isoladamente, a frase pode dar margem à interpretação que originou a reclamação.

Como pode ser consultado no resumo da ação, o voto do relator foi vencido. O autor do

voto vencedor argumentou que “a frase não é dúbia, não faz insinuações maliciosas, tampouco

é feita como uma recomendação do anunciante” (CONAR, 2015), como a de uma possível

retirada da propaganda ou alguma outra ação que penalizasse a empresa de alguma forma.

Mesmo com essa decisão, a empresa optou pela retirada da referida campanha, e a

substituiu para a seguinte:

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Fonte: Folha de S. Paulo (2015)

Como podemos observar, o anúncio “Esqueci o ‘não’ em casa” deu lugar a “ Não deu

jogo? Tire o time de campo”, seguindo da assinatura: “Neste carnaval, respeite”. Essa segunda

campanha trata-se de uma clara resposta da empresa à interpretação não desejada do público

em relação à campanha anterior. Dessa forma, só acessamos o sentido dessa última propaganda

quando conhecemos o embate do qual ela pertence.

Para compreendermos o cronotopo, isto é, “the intrinsic connectedness of temporal and

spatial relationships” (BAKTHIN, 1988, p. 84)4, nos quais esses enunciados: “Esqueci o ‘não’

em casa”, e o enunciado resposta: “esqueci o ‘não’ em casa e trouxe o nunca”, foram preferidos,

observamos a relação dialógica entre eles, e, para isso, as discussões que se faziam naquele

ano, o de 2015, sobre a liberdade e o não cerceamento da mesma realizada pelo homem sobre

o corpo da mulher. Tal debate, que é diferente, por exemplo, daquele realizado a dez ano atrás,

como podemos afirmar isso? Observando outros enunciados que também compõe campanhas

publicitárias da mesma empresa, mas datada do ano de 2005. Para isso, selecionamos uma

propaganda de suas campanhas daquele ano. Essa pode ser observada na seguinte imagem:

4 Tradução nossa: ligação intrínseca das relações temporais e espaciais.

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Fonte: Quase publicitários (2010)

No anúncio acima há, no primeiro quadro, da esquerda para a direta, uma mulher

bebendo água do bebedouro, e, acima, o seguinte enunciado: “Se o cara que inventou o

bebedouro bebesse Skol ele não seria assim”. No segundo quadro, o bebedouro referenciado

no primeiro passa a ser em formato redondo e com menor altura, fazendo com que para beber

água a mulher precise se curvar. Observa-se, no segundo quadro, como a mulher está curvada

e também a roupa que a mesma veste, insinuando, claramente, uma posição sexual e, ao mesmo

tempo, expõe mais partes de seu corpo do que na posição com que bebe água no bebedouro

“regular”.

Mesmo com a clara conotação sexual, tal campanha, assim como muitas outras que

oferecem o mesmo produto em questão, a cerveja, no contexto de 2005, ano em que essa foi

veicula, não recebeu a mesma resposta que a campanha do carnaval de 2015, por exemplo.

Para compreender o porquê dessa mudança de postura em termos de aceitação do público, é

importante olharmos justamente para a mudança do cronotopo desses enunciados. Ao

observamos isso, podemos identificar o porquê da transformação, e, com isso, afirmar que as

relações sociais do público destinatário mudou, e com isso, também mudaram as atitudes

responsivas em relações aos enunciados das campanhas supracitadas, a de 2005 e a de 2015.

Com essa alteração do meio, ou seja, das relações sociais, o enunciado, visando atender

as novas demandas oriundas dessa transformaçao social, e continuar eficiente no que se propõe,

que é vender aquele produto, também se modificou, ou seja, se reestruturou, adquirindo novos

contornos estilísticos.

Essa recriação/reformulação pode ser observada, de modo claro, na última campanha

da mesma marca de cerveja que, por querer que suas campanhas tenham maior adesão nesse

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público que não é mais o mesmo daquele de 2005, passou a reestruturar de modo amplo o estilo

de seus anúncios publicitários. Por exemplo, a última campanha publicitária até a realização

deste estudo foi intitulada “Skol reposter”, acompanhada pelo seguinte enunciado: “Redondo

é sair do seu passado”. Nessa campanha, há o “convite” para que ilustradoras recriem pôsteres

antigos da marca sob um novo olhar.

No vídeo oficial, denomidado de “Skol reposter”, veiculado na televisão e em mídias

sociais, há, na descrição do vídeo na plataforma youtube5, a seguinte mensagem:

Precisamos falar sobre o passado. Já faz alguns anos que a Skol não representa

as mulheres de forma objetificada em seus pôsters, anúncios e comerciais.

Mesmo assim, volta e meia essas imagens reaparecem nas redes sociais como

se fossem atuais. Olhamos para o passado para reforçar que, seja num pôster

de bar, num comercial de TV ou num post de internet, a única lente que importa

é a do respeito. Hoje e sempre. Para isso, convidamos oito ilustradoras e artistas

plásticas para recriarem alguns pôsters antigos de Skol sob um novo olhar:

atual, poderoso, libertador.

Na imagem abaixo, retirada de uma matéria realizada pela revista Veja sobre a capanha

“Skol reposter”, a revista traz um dos trabalhos realizados pelas ilustradoras que foram

chamadas para recriarem um pôster antigo da marca em questão:

Fonte:Veja (2017)

5 Plataforma de distribuição digital de vídeos.

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No primeiro quadro, da esquerda para direita, está o original, já no segundo quadro o

recriado para a campanha em questão.

Podemos então observar que, como comportamento humano que é, o enunciado, ao

enfrentar, no meio no qual é dirigido, algum obstáculo que o impeça de alcançar o objetivo do

qual se propôs, como, nesse caso, vender um produto, ele é reconstruído a fim de atender às

novas exigências desse meio. Foi esse processo de recriação estilistica que evidenciamos na

reformulação das campanhas realizadas pela marca de cerveja Skol.

Considerações finais

Ao colocarmos o enunciado como foco, e, com isso, adentrarmos as relação dele com

o cronotopo, evidenciamos as suas relações dialógicas e como esse enunciado se recria a fim

de atender diferentes objeções e, com isso, gerar diferentes sentidos na busca por continuar

eficaz em seu propósito.

Como atividade humana que é, por mais que seja em grande parte social e por isso

pertencente à esfera do dado (BAKHTIN, 2016), o enunciado não pode, de modo algum, ser

compreendido e tratado apenas pelo levantando mecânico de suas características estáveis ou

elencando, de modo descompromissado, o falante, o destinatário e o modo de organização de

seus elementos composicionais. É necessário ir além, indentificar o embate dialógico e como

esse se realiza em escolhas dos elementos da construção composicional. Uma forma de

observar tal embate é justamente nos atermos ao estilo. Afinal,

o enunciado é pleno de tonalidades dialógicas, e sem levá-las em conta é

impossível entender até o fim o estilo de um enunciado. Porque a nossa própria

ideia – seja filosófica, científica, artística – nasce e se forma no processo de

interação e luta com os pensamentos dos outros, e isso não pode deixar de

encontrar o seu reflexo também nas formas de expressão verbalizada do nosso

pensamento (2016, p.59 – grifos do autor).

Visualizamos a importância de trazer o elemento estilístico do enunciado para uma

discussão metodológica da área de ensino, pois, quando observado o panorama dos últimos

20 anos, ou seja, desde a publicação dos PCNs de Língua Portuguesa, em 1998 e 1997, nos

quais é prescrito ao professor dessa disciplina que utilize gêneros textuais (ou seriam

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discursivos?) como instrumento didático, as insatisfações advindas dos docentes,

principalmente sobre esclarecimentos metodológicos, ainda são presentes.

Assim, desde a publicação dos PCNs, nos quais há a marcação explícita em

fundamentar o ensino de língua materna nos gêneros, desencadeou-se uma série de respostas6,

tanto de pesquisadores como de docentes.

De acordo com o documento prescritivo:

Os textos organizam-se sempre dentro de certas restrições de natureza

temática, composicional e estilística, que os caracterizam como pertencentes

a este ou aquele gênero. Desse modo, a noção de gênero, constitutiva do texto,

precisa ser tomada como objeto de ensino (BRASIL, 1998 – grifo meu).

Assim, a partir desse documento, o professor precisa reconfigurar sua prática diária

para atender a tal prescrição. Porém, entre o que é prescrito e o que de fato é realizado sempre

há uma distância resultante das circunstâncias concretas da atividade (LIMA, 2010).

Obviamente, não pretendemos minimizar os esforços já realizados por pesquisadores e/ou

professores para elaborar materiais didáticos que auxiliem o professor em sala de aula,

principalmente aquele da escola pública, que, quase sempre, já encontra-se sobrecarregado.

Há inúmeros artigos, dissertações, livros, teses etc. que visaram sanar tais dificuldades

metodológicas. Não pretendemos desconstruir tais pesquisas já realizadas, mas contribuir

com essas, tendo em vista o enunciado concreto como unidade da comunicação e, por isso,

também do ensino de língua.

Referências

BARBOSA, Mariana. 'Esqueci o Não' da Skol sai de cena, mas cai na mira do Conar.Folha de

S. Paulo, São Paulo, 18 fev. 2015. Disponível em:

<http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2015/02/1589625-apos-denuncias-conar-entra-com-

representacao-contra-campanha-do-nao-da-skol.shtml>. Acesso em: 29 nov. 2017.

BAKHTIN, Mikhail. (VOLOCHINOV). Marxismo e filosofia da linguagem. 13 ed. São

Paulo: Hucitec, 2009.

6 Aqui o termo resposta é entendido dentro da concepção bakhtiniana, como réplica, que não necessariamente

ocorre sob forma de resposta imediata verbalizada, mas como ato responsivo que cedo ou tarde aparece como

resposta nos discursos ou no comportamento subsequente do ouvinte. Afinal, “toda compreensão é prenhe de

respostas” (BAKHTIN, 2016, p.25).

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BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. 1 ed. Org. Trad. posfácio e notas de Paulo

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