o ensino de história entre o dever de memória e o trabalho de memória: representações da...
DESCRIPTION
Artigo acadêmico de autoria de Mateus Henrique de Faria Pereira e Miriam Hermeto, publicado na revista LPH (UFOP), n. 19-2.TRANSCRIPT
Sumário
Apresentação
Dossiê História e educação
História da Educação no Brasil: abordagens e tendências de pesquisa
Thais Nivia Fonseca
Os palanques do republicano Gomes Henrique Freire de Andrade
Rosana Areal e Livia Vieira
Percepções acerca do ensino de História em uma escola confessional feminina (1915-1928)
Ana Lage e Verônica Costa
O ensino de história entre o dever de memória e o trabalho de memória:
representações da Ditadura Militar em livros didáticos de história
Mateus Henrique Pereira e Miriam Hermeto
Seção Livre
A teologia política isidoriana
Sergio Alberto Feldman
“Vou cantar para ver se vai valer”: a configuração da categoria MPB no repertório das
intérpretes (1964-1967)
Luiz Henrique Assis Garcia
A fuga escrava no jornal Astro de Minas: o conflito na relação senhor - escravo (1827-1839)
Elisa Vignolo Silva
Sobre os autores
Normas para publicação
História da Educação no Brasil: abordagens e tendências de pesquisa
Thais Nivia de Lima e Fonseca
Resumo: O propósito deste artigo é apresentar uma visão panorâmica do processo de
constituição da História da Educação como campo de pesquisa, concentrando o foco na
análise da sua produção historiográfica mais recente, realizada nos últimos cinco anos.
Resultado do amadurecimento do campo, essa produção apresenta, hoje, resultados bastante
consistentes para muitos problemas de investigação, trazendo contribuições inestimáveis para
o conhecimento sobre a história da educação brasileira, principalmente depois da constituição
do estado nacional, no pós-independência. A renovação na historiografia da educação será
enfocada considerando-se o crescimento do campo em termos quantitativos e temáticos, numa
relação direta com a expansão dos programas de pós-graduação em Educação, e com a
incorporação mais recente, de pesquisas realizadas em programas de pós-graduação em
História. O número cada vez maior de trabalhos reflete-se visivelmente nos eventos
científicos, nacionais e internacionais, nos quais a história da educação é o principal objeto,
ou é parte de um conjunto de temáticas em evidência. Como espaços para onde confluem
pesquisadores de diferentes regiões do Brasil, e em diferentes níveis de experiência, eles são
bastante férteis quando o propósito é analisar o “estado da arte” dessa historiografia. Por isso
foi utilizado o material dos principais eventos científicos em que a história da educação
aparece como campo específico, como instrumentos para alguns comentários acerca dessa
historiografia e sobre as possibilidades de investigação em temáticas ainda pouco
consideradas.
Palavras-chave: História da Educação, historiografia, Brasil
History of Education in Brazil: Research Approaches and Tendencies
Abstract: This paper intends to present a panoramic vision around the constitution process of
the History of Education as a research field, focusing on the review of its last five years
historiography. As a reflex of the field's upgrowth, today this production presents consistent
results for many investigation issues, bringing priceless contributions for the knowledge about
the history of brazilian education, particularly after the national state's constitution, on the
post-independence period. The renovation on the education's historiography will be focused,
considering the thematic and quantitative developments of the field, in a direct relation to the
expansion of the Education post-graduation programs and to the recent annexation of the
research done in History post-graduation programs. The increasing number of work on the
field can be noticed in the national and international cientific events, where the history of
education is the main topic or part of a group of themes in evidence. Those events are very
useful when it comes to analyse the “state-of-the-art” historiography, once they converge
researchers from all over the country and with different backgrounds. That is why those
event's material were used as instruments for some comments around the possibilities to
investigate themes that are still disregarded.
Key-words: History of Education, historiography, Brazil
Nos últimos quinze anos têm sido elaborados importantes balanços sobre a
historiografia da educação que refletem claramente a consolidação deste campo de pesquisa
no mesmo período. Em praticamente todos os trabalhos desta natureza, ressalta-se a história
da escrita da história da educação, desde os primeiros textos surgidos no século XIX, quando
ainda nem se havia constituído algo próximo do que hoje denominamos uma “história da
educação”. Também surge em destaque a análise das origens da história da educação, antes
como disciplina escolar do que como campo de pesquisa, em função das políticas
educacionais que, desde o final do século XIX, foram se estruturando em torno do ensino
elementar e da formação dos professores. Não entrarei aqui em detalhes sobre essa trajetória,
muito bem delineada em vários trabalhos1. Meu propósito é realizar uma visão panorâmica do
processo, concentrando-me, depois, numa tentativa de análise da produção mais recente,
realizada nos últimos cinco anos. Resultado do amadurecimento do campo, essa produção
apresenta, hoje, resultados bastante consistentes para muitos problemas de investigação,
trazendo contribuições inestimáveis para o conhecimento sobre a história da educação
brasileira, principalmente depois da constituição do estado nacional, no pós-independência.
A princípio voltada para a formação dos professores, a história da educação, como
disciplina escolar, tratava essencialmente da história do pensamento pedagógico e das
políticas públicas para a educação, principalmente nos limites dos seus projetos e da
legislação. Na medida em que foi se constituindo como campo de pesquisa, ela seguiu, a
princípio, essa mesma linha de abordagem, com uma problematização que deixava a desejar,
uma vez que não lidava com a dimensão prática dos ideais ou dos projetos oficiais para a
educação, o que levava os aportes conceituais para o campo puramente teórico, sem
comprovação empírica. Era uma história descritiva, muito concentrada nas instituições
dominantes como os principais sujeitos – quando não únicos – da história da educação no
1 Ver referências ao final do artigo.
Brasil. Isso, sem dúvida, a aproximava de um fazer historiográfico tradicional, herdeiro da
chamada “escola metódica”, que muitos denominam “positivista”. À medida que a
historiografia, em outros campos de investigação, redirecionava suas abordagens,
particularmente na direção das interpretações marxistas da história, os estudiosos da história
da educação procuravam seguir o mesmo caminho, alterando, porém, timidamente, a sua
relação com a centralidade do Estado nos processos históricos relativos à educação. No final
da década de 1980 é que os sinais de uma renovação mais evidente se fizeram sentir, com
uma produção advinda, sobretudo, dos programas de pós-graduação das universidades, e que
se repensava sob a forte influência da história cultural. Desde então, conceitos como
representações, apropriações e práticas culturais passaram a ser familiares à historiografia da
educação, no seio da qual foram se forjando ou se firmando outros, como o de cultura escolar,
hoje central para alguns objetos de pesquisa. Os temas tradicionais de estudo não foram
abandonados, mas passaram a ser tratados sob a ótica de um aparato conceitual que induzia a
uma problematização mais sofisticada. Assim, a história político-administrativa da educação,
a história das instituições escolares, e mesmo a história do pensamento educacional puderam
ser abordados de maneira renovada. Isso sem contar a incorporação, tal como ocorrera em
outros campos da pesquisa histórica, dos novos objetos.
A renovação na historiografia da educação não pode ser entendida, ainda, sem se
considerar o crescimento do campo em termos quantitativos, numa relação direta com a
expansão dos programas de pós-graduação em Educação, e com a incorporação mais recente,
de pesquisas realizadas em programas de pós-graduação em História. O número cada vez
maior de trabalhos reflete-se visivelmente nos eventos científicos nos quais a história da
educação ou é o principal objeto ou é parte de um conjunto de temáticas em evidência. Como
espaços para onde confluem pesquisadores de diferentes regiões do Brasil, e em diferentes
níveis de experiência, eles são bastante férteis quando o propósito é analisar o “estado da arte”
dessa historiografia. Essa é a razão pela qual eu tomei o material dos principais eventos
científicos em que a história da educação aparece como campo específico, como instrumentos
para alguns comentários acerca dessa historiografia.2 Optei por não considerar artigos
publicados em periódicos, capítulos de livros ou livros completos, bem como dissertações e
teses, porque esses são, invariavelmente, parte ou desdobramentos dos trabalhos constantes
nestes eventos e fazem parte de uma dinâmica conhecida por todos nós, que leva à
apresentação de textos em fases diversas de aprofundamento, mas que são todos resultados
parciais ou finais de pesquisas que, eventualmente, acabam por ser publicadas naquelas outras
formas.
Uma primeira abordagem que considerei importante para iniciar esses comentários, foi
partir da averiguação do interesse dos pesquisadores pelos diversos períodos da história do
Brasil, considerando-se mesmo a periodização tradicional em período colonial, Império e
República. Excluindo-se os trabalhos que tratam de análises mais gerais sobre a educação, de
cunho filosófico ou sociológico, e alguns mais voltados para a discussão sobre o ensino de
História e que não trazem uma problematização histórica clara – todos eles muito comuns
nestes eventos científicos – cheguei a um total de 3.106 trabalhos inscritos e registrados nos
cadernos de resumos e na programação dos eventos 3. O gráfico a seguir expressa a situação
2 Os eventos cientificos tomados para a análise, nas edições realizadas nos últimos cinco anos, foram: o Congresso Brasileiro de História da Educação, o Congresso Luso-Brasileiro de História da Educação, o Congresso de Pesquisa e Ensino de História da Educação em Minas Gerais e as Reuniões Anuais da Associação de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação-ANPED. 3 Muitos trabalhos certamente não foram efetivamente apresentados, mas isso não é relevante para este artigo. Percebi que muitos trabalhos foram apresentados em mais de um desses eventos, sendo portanto, computados duas vezes. Separá-los mostrou-se ser tarefa difícil para a elaboração deste artigo, mesmo considerando o efeito sobre o resultado final. As tendências gerais, no entanto, não foram afetadas por este pequeno desvio. Em 2008 foi realizado na Universidade Federal do Rio Grande do Norte um evento científico especificamente voltado para as temáticas da história colonial, o II Encontro Internacional de História Colonial – A experiência colonial no Novo Mundo (séculos XVI-XVIII), no qual houve um simpósio temático dedicado à Educação na Colônia, onde foram apresentados 18 trabalhos, que não foram computados nesta parte do artigo. * As siglas correspondem aos seguintes eventos: CPEHEMG – Congresso de Pesquisa e Ensino de História da Educação em Minas Gerais; CBHE – Congresso Brasileiro de História da Educação; CLBHE – Congresso Luso-Brasileiro de História da Educação; ANPED – Reunião Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação.
encontrada. Para melhor visualização, agrupei os dados por evento, reunindo suas várias
edições entre 2004 e 2009.
Deste total surpreende a predominância dos estudos voltados para o período
republicano, principalmente entre a última década do século XIX e a primeira metade do
século XX. Foram 2.518 trabalhos sobre a educação brasileira na República, o que representa
81% da produção levantada. O Império foi objeto de estudo de 483 trabalhos (15,6% do total)
e o período colonial contou com apenas 105 trabalhos (3,4% do total). O desequilíbrio é
grande, e creio que merece alguma reflexão que nos ajude a compreendê-lo.
Período colonial
Império
República
Total de trabalhos apresentados 2004-2009
0
200
400
600
800
1000
1200
1400
PeriodoColonial
Império República Total
CPEHEMG 2005, 2007,2009 (bianual)*
CBHE 2004, 2006, 2008(bianual)
CLBHE 2004, 2006, 2008(bianual)
ANPED 2004 a 2008(anual)
Uma primeira questão a considerar inscreve-se na própria trajetória da história da
educação brasileira como campo de pesquisa, herdeira de movimentos intelectuais e políticos
que fundamentaram sua reflexão na educação escolar e nas proposições para sua organização
num sistema educacional capitaneado pelo Estado e voltado à ampliação do ensino público
sob a égide de idéias pedagógicas modernas. Esses movimentos, principalmente na primeira
metade do século XX, inspiraram a pesquisa sobre a educação de natureza escolar, num
momento em que se considerava a República como a grande responsável pela implantação de
um projeto educacional moderno no Brasil. Ainda marcadas por uma interpretação
reducionista – que autores como Fernando de Azevedo contribuíram para consolidar, e que
quase negava a existência de educação organizada antes da República – muitas gerações de
pesquisadores concentraram todos os seus esforços no estudo deste período. Passou-se algum
tempo até que o Império fosse “descoberto” como um período importante da história da
educação brasileira, no qual foram sendo identificadas ações importantes no sentido da
construção, parcial que fosse, de uma política voltada para a educação da população livre e
que modificasse “a estrutura” escolar herdada do período colonial.
O que estou sugerindo, assim, é que a preferência pelo período republicano, seguido
do Império, poderia ser explicado, em parte, por se fundamentar numa tradição historiográfica
que colocou a escola e a ação estatal no centro dos problemas e objetos de estudo,
identificando-as como mais visíveis após a constituição do Estado Nacional brasileiro, depois
da independência política. A escolha desses objetos privilegiados de estudo também
encontrou – ou tem encontrado – um elemento de especial motivação: a disponibilidade de
fontes e a relativa facilidade de acesso a elas, em diferentes dimensões. Pelo fato de serem,
em sua maioria, estudos que tratam da escola e suas relações institucionais e sociais, é
inevitável que se tenha que considerar a documentação produzida no âmbito das instituições
direta ou indiretamente responsáveis pela educação escolar. A razoável organização
administrativa construída em torno dessa questão gerou a produção de vasta documentação,
em muitos casos ainda hoje sob a guarda de órgãos públicos responsáveis pela educação, e
não raro disponíveis para a pesquisa. O conhecimento acerca dessa organização e suas
funções, na relação com a estrutura político-administrativa, facilita sobremaneira o acesso às
fontes e, no caso da maior parte da documentação oficial do Império e da República, também
pelo fato de ser ela quase toda impressa. A disponibilidade de tipos documentais igualmente
acessíveis, como jornais, revistas, fotografias, além de impressos escolares e didáticos de uma
forma geral, alguns dos quais material especialmente produzido com finalidades escolares,
ajuda a impulsionar a pesquisa sobre esses períodos da história da brasileira. Isso sem contar a
atração exercida pelas técnicas da história oral, fartamente utilizadas em pesquisas sobre
períodos mais recentes.
Em consonância com a diversidade de fontes, é também grande a diversidade de temas
de investigação, tendo o período republicano como marco temporal principal. Aqui, as
vertentes são muitas, com uma predominância nas análises de natureza político-institucional,
das relações entre as concepções e projetos pedagógicos e as práticas em alguns momentos
específicos, e ultimamente as temáticas em que envolvem a discussão sobre as culturas
escolares. Para o período imperial, um número significativo de estudos está voltado para o
processo de escolarização, desde a implantação da primeira legislação sobre a questão,
importante para a compreensão de toda a história da educação no Brasil como Estado
nacional, além de trabalhos que têm como foco o pensamento de intelectuais acerca da
educação, e a implantação de diferentes métodos de ensino, entre outros temas.
Em relação ao período colonial, claramente minoritário na preferência e interesses dos
pesquisadores em história da educação, as temáticas mais enfocadas giram em torno da
atuação educacional das ordens religiosas, principalmente da Companhia de Jesus, e nos
aspectos político-institucionais das reformas pombalinas da educação, realizadas em todo o
Império português, durante o reinado de D. José I, na segunda metade do século XVIII. Se são
poucos os trabalhos sobre a educação neste período, mais escassos ainda são os que analisam
aspectos das práticas educativas não escolares, muito disseminadas entre a população colonial
até as primeiras décadas do século XIX. Ao final deste artigo, analisarei mais detidamente a
historiografia em relação do período colonial, tema que considero relevante para a
compreensão de processos educativos mais amplos, bem como para a compreensão de muitas
das formulações legais e intelectuais posteriores, já no período do estado nacional.
Abordagem obrigatória quando se trata de balanços sobre a historiografia da educação
brasileira, são os grandes campos temáticos nos quais se inscrevem as pesquisas, e que
podem, também, ser detectados por meio dos conjuntos de trabalhos apresentados nos eventos
científicos que estou tomando como base para esta análise. Felizmente, tem se tornado hábito
dos organizadores desses eventos – ao menos aqueles realizados no Brasil – quantificar os
trabalhos, separados pelos eixos temáticos nos quais foram inscritos. Isso nos permite ter uma
visão razoável dos temas gerais de preferência dos pesquisadores – mesmo considerando
falhas de associação cometidas pelos próprios autores dos trabalhos, que nem sempre
escolhem adequadamente os eixos temáticos – o que significa, ao final, perceber em que
direções a pesquisa em história da educação tem sido realizada, e em torno de que
problemáticas o campo tem se consolidado.
Antes de analisar as relações quantitativas de incidência das pesquisas nos diferentes
eixos temáticos, vejamos como os diversos eventos científicos considerados organizaram
esses eixos e os denominaram. Na verdade, considerei nesta parte do artigo apenas os eventos
que têm a história da educação como campo de pesquisa principal, ou seja, os congressos
Brasileiro e Luso-Brasileiro de História da Educação, e o Congresso de História da Educação
realizado bianualmente em Minas Gerais4. Os encontros do Grupo de Trabalho de História da
Educação da ANPED não entraram nessas classificações por não se organizarem em torno de
eixos temáticos como os demais. Neste caso os trabalhos são inscritos diretamente no GT
História da Educação, sem pré-definições quanto a eixos específicos. Vou manter nestes
comentários o mesmo critério, de considerar os eventos realizados nos últimos cinco anos,
começando pelo Congresso de Pesquisa e Ensino de História da Educação em Minas Gerais.
Desde a sua primeira edição, em 2001, este encontro dos pesquisadores mineiros tem
expressado a produção regional, originada fundamentalmente dos programas de pós-
graduação do Estado e dos programas de iniciação científica para estudantes de graduação, e
indicado as linhas de pesquisa predominantes no campo. Essas linhas têm sido agrupadas em
eixos temáticos que, no geral, têm se mantido em todas as edições, com pequenas alterações
em seus títulos, e são os seguintes:
Fontes, categorias e métodos de pesquisa em História da Educação
Intelectuais e pensamento educacional
Profissão docente
Gênero e etnia e geração
Imprensa, impressos educacionais e educação
Práticas escolares e processos educativos
Instituições educacionais e/ou cientificas
Ensino de história da educação
Estado e políticas educacionais
Historiografia da educação
4 Embora limitado, esse é um recorte justificado pela inserção do meu próprio grupo de pesquisa no campo, e pela familiaridade que temos com a produção local. A produção nacional fica, assim, contemplada, nos eventos nacionais e internacionais mencionados.
Espaços educativos extra-escolares
Dentre esses eixos, os que têm apresentado o maior número de trabalhos – e numa
tendência de crescimento ao longo das últimas edições são, em primeiro lugar, Instituições
educacionais e/ou cientificas, seguido de Imprensa, impressos educacionais e Educação e
Práticas escolares e processos educativos. Muito mais numeroso nos primeiros anos, o eixo
Fontes, categorias e métodos de pesquisa em História da Educação vem se mostrando menos
atraente, enquanto mantêm uma certa estabilidade os eixos sobre Profissão docente,
Pensamento Educacional e Políticas educacionais. Sempre minoritário, não ultrapassando a
marca de 1,5% dos trabalhos inscritos, está o eixo sobre Ensino de História da Educação,
sobre o qual comentarei depois. Essa configuração nos dá indicações importantes sobre as
direções nas quais caminha a historiografia da educação em Minas Gerais. Estamos diante de
temáticas que podem ser consideradas “clássicas”, como a história das instituições escolares,
do pensamento educacional e das políticas educacionais, rediscutidas na última década sob
perspectivas historiográficas e conceituais renovadas. E diante de outras que fazem parte do
próprio movimento de renovação dessa historiografia da educação, que demonstram vínculos
evidentes com a História cultural, sobretudo quanto ao estudo das práticas culturais e das
representações, como o demonstra o crescimento importante do número de trabalhos sobre os
impressos e sobre as práticas escolares e educacionais. De certa forma, o quadro geral da
historiografia da educação em Minas Gerais, percebido pela análise dos trabalhos inscritos
neste Congresso, indica a consonância com as tendências da historiografia da educação
brasileira, mas expressa também as diversas vinculações institucionais desses pesquisadores,
com os programas de pós-graduação aos quais estão vinculados como professores ou alunos, e
com os grupos de pesquisa mais consolidados do Estado.
Numa perspectiva de abrangência nacional, tomei os eixos temáticos nas últimas
edições do Congresso Brasileiro de História da Educação, evento que vem demonstrando sua
importância para a visibilidade e para o debate das pesquisas realizadas no Brasil, em
diferentes níveis. Os eixos temáticos, com algumas adaptações em seus títulos, presentes nos
últimos cinco anos são:
Estado e políticas educacionais e modelos pedagógicos
Fontes, categorias e métodos de pesquisa em história da educação
Gênero, etnia e história da educação brasileira
Imprensa pedagógica
Instituições educacionais e/ou cientificas
Intelectuais, pensamento social e educação
Cultura e práticas escolares e educativas
Profissão docente
Historiografia da educação brasileira e história comparada
História dos movimentos sociais na educação brasileira
História da profissão docente e das instituições escolares
Processos educativos e instancias de sociabilidades
Arquivos, centros de documentação, museus e educação
Ensino de história da educação
Currículo, disciplinas e instituições escolares
Embora mais variado do que o anterior, este rol no congresso nacional não difere
substancialmente do outro, apresentando, na verdade, alguns desdobramentos de eixos
temáticos que estavam mais condensados, ou agrupados no congresso mineiro. Tomando as
edições dos últimos cinco anos, percebe-se que apresentam clara predominância numérica os
trabalhos inscritos em torno dos eixos Cultura e práticas escolares e educativas, Políticas
educacionais e pensamento pedagógico e História da profissão docente e das instituições
escolares. Juntos, esses três eixos temáticos responderam por mais da metade dos trabalhos
apresentados nessas três ultimas edições do Congresso Brasileiro de História da Educação o
que, a meu ver, indica, mais uma vez, um claro movimento de renovação das temáticas mais
clássicas e fundadoras da historiografia da educação e da rediscussão da pesquisa no campo a
partir dos novos objetos impostos pela interface com a História cultural e, de certa forma
também com a história social.
No caso do Congresso Luso-Brasileiro de História da Educação a mesma tendência se
faz presente na definição dos eixos temáticos em torno dos quais se organizam os
pesquisadores que dele têm participado:
Educação, infância e família
Ensino de história da educação
Gênero, etnia e geração
Imprensa, impressos e discursos educacionais
Cultura, modelos pedagógicos e praticas educativas
Historia comparada: questões metodológicas da pesquisa em educação
Políticas publicas e reformas educacionais
Idéias, doutrinas e modelos pedagógicos
Formação, identidades e profissão docente
Instituições educativas e cultura material escolar
Historiografia, métodos, fontes e museologia
Políticas, sistemas e instituições educacionais e cientificas
Historiografia e memória da educação
Das três edições deste congresso realizadas nos últimos cinco anos, apenas daquele
que ocorreu no Brasil, em Uberlândia, Minas Gerais, temos um balanço quantitativo
publicado no Livro de Resumos, indicando os eixos temáticos nos quais foram inscritos o
maior número de trabalhos, demonstrando em linhas gerais a mesma tendência dos demais:
em primeiro lugar o eixo Cultura, modelos pedagógicos e práticas educativas, seguido de
Historiografia e memória da educação e Políticas, sistemas e instituições educacionais e
cientificas. Uma ligeira diferença dos eixos presentes do Luso-Brasileiro em relação aos
demais eventos pode ser em parte explicada por seu caráter internacional e, mais
especificamente, focado na parceria com Portugal, onde existem, evidentemente, outras
tradições de pesquisa. Um exemplo disso é a preocupação da historiografia portuguesa com a
discussão sobre as colônias, existentes até meados da década de 1970 e, portanto, com uma
presença muito marcante nos processos históricos do País, o que inclui as questões
relacionadas à educação. O eixo temático sobre a história comparada, por exemplo, pode ser
visto como uma necessidade neste congresso, uma vez que nele muitos pesquisadores dos
dois países apresentam trabalhos realizados em parceria, decorrentes de projetos conjuntos,
além de ser uma exigência que, na montagem de comunicações coordenadas, o grupo seja,
necessariamente, formado de portugueses e brasileiros.
Neste ponto, gostaria de voltar à questão das preferências dos pesquisadores em
relação aos diferentes eixos temáticos, ou linhas de investigação no campo da História da
Educação, para discutir não aqueles que têm sido os predominantes, mas ao contrário, refletir
sobre os que ainda necessitam de maior investimento. Acredito que seja uma estratégia
importante para apresentar possibilidades para os jovens pesquisadores e contribuir para o
avanço onde a pesquisa ainda se faz de forma acanhada, apesar de apresentar importante
potencial. Para esse exercício, escolhi as duas temáticas menos concorridas na preferência dos
pesquisadores, evidenciada no balanço quantitativo realizado: o ensino de História da
Educação, e a história da educação no período colonial brasileiro.
São claramente minoritários os trabalhos inscritos nos eventos examinados dedicados
à questão do ensino de História da Educação. Novamente os dados, antes dos comentários.
Mudando um pouco a forma, elaborei o quadro abaixo para demonstrar a ocorrência de
trabalhos sobre este tema, inscritos nos eventos dos últimos cinco anos:
Evento Ano Número de trabalhos sobre ensino de História
da Educação
Total de trabalhos inscritos
%
Congresso Brasileiro de História da Educação
2004 06 416 1,4
Congresso Brasileiro de História da Educação
2006 04 318 1,3
Congresso Brasileiro de História da Educação
2008 20 643 3,1
Congresso de Pesquisa e Ensino de História da Educação em
Minas Gerais
2005 01 86 1,2
Congresso de Pesquisa e Ensino de História da Educação em
Minas Gerais
2007 00 172 0,0
Congresso de Pesquisa e Ensino de História da Educação em
Minas Gerais
2009 05 103 4,9
Congresso Luso-Brasileiro de História da Educação*
2006 15 561 2,7
Reunião Anual da ANPED 2004 00 16 0,0 Reunião Anual da ANPED 2005 00 16 0,0 Reunião Anual da ANPED 2006 00 11 0,0 Reunião Anual da ANPED 2007 00 24 0,0 Reunião Anual da ANPED 2008 01 13 7,7
Total 52 2379 2,1
* Nos últimos cinco anos, esse foi o único Luso-Brasileiro realizado no Brasil, e que contou com o eixo temático Ensino de
História da Educação. Os demais, realizados em Portugal (Évora, 2004 e Porto, 2008) não ofereceram esse eixo. Pode-se
pensar que seja uma temática que interesse mais aos pesquisadores brasileiros que aos portugueses.
A desproporção é evidente, demonstrada por um percentual total muito baixo, pouco
mais que 2% dos trabalhos inscritos em sete congressos de porte considerável, entre 2004 e
2009.
Total detrabalhos
Ensino deHistória daEducação
Total de trabalhos apresentados sobre o Ensino de História da Educação 2004-2009
Esse quadro incita a reflexão, breve que seja, sobre as razões desse desinteresse e
sobre algumas possibilidades para estimular a pesquisa sobre o tema. Uma primeira
consideração é que a grande tradição de pesquisa sobre o ensino, ligado em termos
historiográficos à história das disciplinas escolares, ainda não se firmou na história da
educação, estando muito vinculada, principalmente, ao campo do ensino de História, bastante
desenvolvido no Brasil. O interesse que move este último tem uma forte relação entre a
pesquisa sobre o ensino de História e a prática profissional dos pesquisadores, quase sempre
também professores dessa disciplina em algum momento de suas trajetórias, principalmente
nos níveis fundamental e médio. Não é incomum que o desejo de investigar mais
profundamente a história da disciplina escolar tenha sua origem nas práticas profissionais e
procure também produzir elementos de aplicação neste mesmo ensino. É curioso, portanto,
verificar que, sendo a quase totalidade dos que se dedicam à investigação em história da
educação professores da disciplina História da Educação em cursos de graduação e de pós-
graduação, isso não seja um elemento motivador para a pesquisa sobre a história do ensino
dessa disciplina. A atribuição de importância revela, em parte, os lugares hierárquicos das
diferentes instâncias do trabalho acadêmico e pode revelar os níveis de investimento feitos em
cada uma delas.
Entre as várias possibilidades de construção de objetos de pesquisa acerca do ensino
de História da Educação, poderíamos tirar algum proveito dos exemplos advindos das linhas
de investigação sobre a história do ensino de História. Essa disciplina escolar tem sido
analisada, por exemplo, na relação com a história política, para se mencionar apenas uma de
suas linhas de pesquisa mais tradicionais. A análise histórica sobre o ensino de História da
Educação teria aí um campo fértil, no estudo sobre as relações com as políticas públicas e
suas múltiplas ressonâncias, ou nos movimentos de apropriação dessas políticas nas práticas
de ensino de História da Educação voltadas para a formação de professores. Seria possível
refletir sobre as permanências e descontinuidades, sobre as relações com a cultura e com as
representações políticas em épocas distintas da história brasileira, desde a implantação dos
currículos para a formação de professores, no século XIX. Creio que é também importante
pensar a trajetória do ensino de História da Educação por meio dos impressos escolares (livros
didáticos, periódicos e bibliografia geral usada nos programas da disciplina), nos diferentes
níveis de ensino: os movimentos de aproximação/afastamento das orientações oficiais; as
seleções feitas pelos professores; as trajetórias de determinados “manuais” de História da
Educação e sua influência na configuração curricular são, entre outras, algumas abordagens
pertinentes para uma história do ensino de História da Educação. Isso sem contar as fontes
escolares, fundamentais para o estudo da história das disciplinas, como cadernos de alunos,
provas, exercícios, material de preparação de aulas de professores, entre outros. Não se pode
deixar de mencionar, ainda, as relações, certamente significativas, entre as diversas formações
dos professores de História da Educação e suas práticas de ensino, suas opções metodológicas
e conceituais, suas seleções temáticas, aspectos que podem ser apreendidos por meio de
fontes institucionais, além das privadas, num registro analítico ligado à perspectiva cultural.
O conhecido e recente movimento de renovação da historiografia brasileira,
influenciado principalmente pela História Cultural – ao qual a História da Educação também
tem se vinculado cada vez mais fortemente – tem deixado poucos vestígios no ensino da
História da Educação, no que diz respeito à produção de material didático específico, por
exemplo. Esse é um fenômeno também corrente nos cursos superiores de História, sinal
evidente não apenas da descrença – aliás bem-vinda – na idéia de uma história universal ou
nacional, mas também do quadro de fragmentação da investigação histórica contemporânea.
Diante disso, nós, professores de História da Educação, nos deparamos freqüentemente com o
dilema de ensinarmos confortavelmente a disciplina, nos equilibrando entre as estruturas
curriculares e programáticas universalizantes e a produção historiográfica mais recente, por
vezes pontual e monográfica, regionalizada e especializada, mesmo considerando os intensos
intercâmbios entre pesquisadores e instituições. Por isso considero de grande relevância que a
pesquisa sobre o ensino de História da Educação também se concentre nesses problemas.
Em relação à história da educação no período colonial brasileiro, outro tema
relativamente negligenciado pela historiografia da educação, e desta vez inscrito numa
definição espaço-temporal, as considerações são de natureza diversa. Lançarei mão,
novamente, dos recursos estatísticos e visuais para evidenciar o lugar ocupado pelos trabalhos
inscritos nos eventos científicos, e dedicados ao estudo da educação naquele período. O
quadro a seguir apresenta o percentual de trabalhos sobre a educação no período colonial,
apresentados naqueles mesmos eventos que venho tomando como base para este artigo:
Evento Ano Número de trabalhos
sobre educação no período
colonial
Total de
trabalhos
inscritos
%
Congresso Brasileiro de História
da Educação
2004 13 416 3,1
Congresso Brasileiro de História
da Educação
2006 08 318 2,5
Congresso Brasileiro de História
da Educação
2008 14 643 2,2
Congresso de Pesquisa e Ensino
de História da Educação em
Minas Gerais
2005 05 86 5,8
Congresso de Pesquisa e Ensino
de História da Educação em
Minas Gerais
2007 11 172 6,4
Congresso de Pesquisa e Ensino
de História da Educação em
Minas Gerais
2009 04 103 3,9
Congresso Luso-Brasileiro de
História da Educação
2004 06 321 1,9
Congresso Luso-Brasileiro de
História da Educação
2006 23 561 4,1
Congresso Luso-Brasileiro de
História da Educação
2008 18 406 4,4
Reunião Anual da Anped 2004 00 16 0,0
Reunião Anual da Anped 2005 01 16 6,3
Reunião Anual da Anped 2006 01 11 9,0
Reunião Anual da Anped 2007 01 24 4,2
Reunião Anual da Anped 2008 00 13 0,0
Total 105 3106 3,4
A proporção em relação ao total de trabalhos é, assim como foi observado para o tema
do ensino de História da Educação, muito pequena, e demonstra um desconfortável
desequilíbrio nesta produção, o que leva, no mínimo, a comprometer o conhecimento sobre as
diferentes formas de educação presentes na sociedade colonial brasileira, o que significa
negligenciar aproximadamente 300 anos de história. Isso certamente não é pouco!
Total detrabalhos
Educação noperíodocolonial
Total de trabalhos apresentados sobre a educação no período colonial 2004-2009
Entre vários aspectos, chama a atenção o contraste entre essa produção em História da
Educação e aquela apresentada pela historiografia brasileira fora desse campo, que há muito
se dedica ao estudo da sociedade brasileira entre os séculos XVI e primeiras décadas do
século XIX. Nesta pequena produção detectada nos eventos científicos analisados, ainda
predominam as temáticas da educação jesuítica e as reformas pombalinas da educação, agora
tratadas mais criticamente do que há pouco tempo, incorporando aportes da renovação
historiográfica brasileira dos últimos vinte e cinco anos, principalmente nos campos da
história social e da história cultural, dialogando mais estreitamente com a produção mais geral
sobre o período colonial no Brasil.
Pode-se levantar algumas hipóteses para explicar esse baixíssimo interesse dos
pesquisadores em história da educação pelo período colonial. Uma primeira possibilidade
reside, como já afirmei no início deste artigo, na tradição da historiografia da educação em
circunscrever seus estudos no âmbito da educação escolar presente nas instituições escolares
de conformação mais recente. Ainda, a influência, nesta tradição, da idéia de que somente a
República teria sido capaz de pensar a educação escolar na história brasileira, e a força de
uma história da educação voltada para o estudo das idéias pedagógicas e dos projetos
educacionais modernos. Além disso, a facilidade de acesso e manuseio das fontes relativas
aos dois últimos séculos, é certamente um fator de atração para este período. Em parte isso
pode ser explicado pela formação de um número muito significativo dos pesquisadores em
história da educação, realizada fora do campo da História e, portanto, com pouco ou nenhum
treinamento no manuseio de fontes manuscritas ou organizadas em outro padrão político-
administrativo.
Como desdobramentos desses aspectos, vejo como fundamentais pelo menos dois: por
um lado, as reticências ainda dominantes entre os pesquisadores quanto a uma dimensão não
escolar da educação, necessária para a compreensão dos processos e das práticas educativas
fortemente presentes nos séculos anteriores à constituição do Estado nacional no Brasil.
Tomá-las como objeto de pesquisa exige a construção de problematizações em torno de
situações nem sempre muito visíveis, para as quais o acesso se faz por meio de fontes de
natureza diversificada, por vezes dispersa, e quase sempre manuscrita. Por outro lado, as
dificuldades encontradas no processo de familiarização com a estrutura político-
administrativa e jurídica do Antigo Regime em Portugal e em seus domínios, movimento
indispensável para a compreensão dos processos educativos escolares e para a identificação e
manuseio das fontes, também essas muito frequentemente manuscritas, e presentes tanto no
Brasil quanto em Portugal, necessariamente.
O avanço em relação às abordagens tradicionais, mesmo que se mantenha o estudo das
ações do Estado ou da Igreja, implica na discussão sobre o caráter do processo colonizador,
das relações entre as várias partes do Império português e as dinâmicas próprias de cada uma.
Para a pesquisa sobre o período isso significa considerar as múltiplas possibilidades de
atuação da população colonial, nas várias dimensões do que seria o “viver em colônias”,
segundo a expressão de Luiz dos Santos Vilhena, professor de grego da Bahia no século
XVIII. Essas possibilidades têm sido pesquisadas por muitos historiadores dedicados ao
período colonial, tratando de temas que vão desde as estratégias sociais e culturais
desenvolvidas por escravos, libertos e brancos pobres, mulheres e mestiços, até as ações dos
grupos mais favorecidos na busca de privilégios e de inserção social e política em seus
enfrentamentos com o Estado português. Entre essas dimensões da vida colonial, está a
educação, escolar ou não, e as diferentes práticas educativas presentes no cotidiano daquelas
populações. Essas práticas estavam inseridas nas dinâmicas que envolviam a preparação para
o trabalho manual – o aprendizado dos ofícios mecânicos – tanto para homens quanto para
mulheres; a instrução elementar no aprendizado da leitura, da escrita, das operações
fundamentais e do catecismo; a educação moral e religiosa, tanto em instituições especificas
como os conventos, recolhimentos e seminários; a educação “secundária” voltada para a
preparação para a formação religiosa ou para o ingresso nas universidades européias; na
circulação de livros da mais variada natureza, das obras de caráter religioso até os manuais
técnico-científicos. São, portanto, muitas possibilidades disponíveis para a construção de
objetos de pesquisa sobre a educação no período colonial.
Por breve que tenha sido, o exercício que procurei realizar neste artigo pode contribuir
não apenas para o mapeamento da produção historiográfica da educação do Brasil nos últimos
anos, como também para sugerir, sobretudo para os estudantes e jovens pesquisadores, linhas
de pesquisa possíveis para o avanço da investigação no campo, principalmente naqueles
grandes temas ainda carentes de maiores investimentos e reflexão. Deixei de lado, como ficou
evidente, a discussão teórico-conceitual, acerca das diferentes inserções das pesquisas em
história da educação nas diferentes tendências historiográficas. Esta seria uma tarefa de maior
fôlego, pois demandaria uma análise pormenorizada do conteúdo dos próprios trabalhos que
quantifiquei, improvável dentro dos limites deste artigo. Mas não dispensável, podendo ser
realizada em outra oportunidade, mesmo que num enfoque temático mais limitado. Também
há outra dimensão possível para a realização de um balanço, a análise mais refinada nas
dissertações e teses, produtos finais de muitos processos iniciados na apresentação de
comunicações em eventos científicos como os que analisei. Enfim, muitos caminhos para
ampliar a visibilidade da produção de um campo expandido e já consolidado. Trilhei aqui
apenas um, mas confiante em sua utilidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO. A educação escolar em perspectiva histórica, 3., 2004, Curitiba. Anais. Curitiba: SBHE, Pontificia Universidade Católica do Paraná, 2004.
CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO. A educação e seus sujeitos na História, 4., 2006, Goiânia. Anais. Goiânia: SBHE, Universidade Católica de Goiás, 2006.
CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO. O ensino e a pesquisa em história da educação, 5., 2008, Aracaju. Livro de Resumos. Aracaju: SBHE, Universidade Federal de Sergipe, Universidade Tiradentes, 2008.
CONGRESSO DE PESQUISA E ENSINO DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO EM MINAS GERAIS, 3., 2005, São João del Rei. Programação e caderno de resumos. São João del Rei, MG: Universidade Federal de São João del Rei, 2005.
CONGRESSO DE PESQUISA E ENSINO DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO EM MINAS GERAIS, 4., 2007, Juiz de Fora. Caderno de resumos. Juiz de Fora, MG: Universidade Federal de Juiz de Fora, 2007.
CONGRESSO DE PESQUISA E ENSINO DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO EM MINAS GERAIS, 5., 2009, Montes Claros. Programação e caderno de resumos. Montes Claros, MG: UNIMONTES, 2009.
CONGRESSO LUSO-BRASILEIRO DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO. Cultura escolar, migrações e cidadania, 7., 2008, Porto. Livro de resumos. Porto: Universidade do Porto, 2008.
CONGRESSO LUSO-BRASILEIRO DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO. Igreja, Estado, sociedade civil – instâncias promotoras de ensino, 5., 2004, Évora. Livro de resumos. Évora: Universidade de Évora, 2004.
CONGRESSO LUSO-BRASILEIRO DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO. Percursos e desafios da pesquisa e do ensino em História da Educação, 6., 2006. Uberlândia. Programação e Resumos. Uberlândia, MG: Universidade Federal de Uberlândia, 2006.
GATTI JÚNIOR; INÁCIO FILHO, Geraldo (orgs.). História da educação em perspectiva. Ensino, pesquisa, produção e novas investigações. Campinas, SP: Autores Associados; Uberlândia, MG: EDUFU, 2005.
GONDRA, José Gonçalves (org.). Pesquisa em história da educação no Brasil. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.
MONARCHA, Carlos (org.). História da educação brasileira. Formação do Campo. 2 ed. Ijuí: Editora UNIJUÌ, 2005.
VIDAL, Diana; FARIA FILHO, Luciano Mendes de. As lentes da história: estudos de história e historiografia da educação no Brasil. Campinas, SP: Autores Associados, 2005.
Os palanques do republicano Gomes Henrique Freire de Andrade
Lívia Carolina Vieira
Rosana Areal Carvalho
Resumo: Gomes Henrique Freire de Andrade, médico, professor e político, ocupou parte de
sua trajetória de vida, nas primeiras décadas do século XX, divulgando os ideais republicanos
em vários palanques. Homem de seu tempo, formado pela Faculdade de Medicina do Rio de
Janeiro, influenciado pelo positivismo e pelo republicanismo, reuniu em torno de si um grupo
laborioso que empunhou a bandeira da República. No âmbito educacional, suas ações foram
desenvolvidas na docência do ensino superior – Faculdade de Farmácia de Ouro Preto e no
Grupo Escolar de Mariana. Foi Deputado Constituinte, em 1891; Vereador, Agente Executivo
e Presidente da Câmara Municipal de Mariana, Senador estadual, afastando-se da política
somente após a Revolução de 30. Dirigiu um semanário local – O Germinal, porta-voz do
Partido Republicano em Mariana. Até uma agremiação musical, criada por ele, União XV de
Novembro, era utilizada como veículo de propagação dos valores republicanos. O presente
artigo resgata algumas ações presentes nos diversos palanques que ocupou, destacando a
importância de um personagem na história local.
Palavras-chave: República, Educação, Política
The stages of republican Gomes Henrique Freire de Andrade
Abstract: Gomes Henrique Freire de Andrade, doctor, teacher and a politician pursued part
of his life story during the twenty century first decades giving out the Republican ideal. He
was a aged man, graduaded in medicine by Rio de Janeiro Medical School and influenced by
the Positivism and by the Republicanism he gathered round himself a laborious team that held
the Republic colours. About the education subject his actions were developed during his
teaching period at the Ouro Preto Pharmacy School and the Mariana Elementary
School.GHFA occupied many political charge until decade 30 Revolution.He managed a
local weekly "O Germinal", spokesman of Republicanism.Created an Musical Gremio,
""União XV de Novembro", which was too used to spread the republican values.The article
here to get backsome of his political actions in the history and to point out his importance as
a character at the local history.
Key words: republic, educacion, politics;
Apesar de uma descendência quase nobre – bisneto do 3º. Conde de Bobadela, neto do
Barão de Itabira – Gomes Henrique teve uma infância difícil, ao tornar-se órfão de pai. Sua
mãe, descendente de uma família francesa, manteve os filhos com os recursos advindos da
venda de quitandas e guloseimas. Assim, Gomes Henrique e seu irmão Augusto, puderam
seguir os estudos superiores e desenvolver uma carreira profissional. Os estudos foram
iniciados ainda no Seminário da Boa Morte, depois no Liceu de Ouro Preto e, por fim, fora
das Minas Gerais: Gomes Henrique formou-se em Medicina pela Faculdade de Medicina do
Rio de Janeiro; Augusto cursou Direito, em São Paulo.
Freqüentou a Corte nos anos finais do Império, de lá retornando um republicano
convicto. Ainda jovem, assumiu tal posição política e ocupou vários cargos no cenário
estadual – de agente executivo a senador estadual. Os anos passados na Escola de Medicina
do Rio de Janeiro coincidiram com a difusão do pensamento higienista e o papel social dos
médicos na formação de uma nação civilizada.
Enquanto republicano, utilizou-se de vários palanques: uma escola, uma banda de
música, um jornal e vários cargos políticos. Na presidência do Partido Republicano de
Mariana, liderou um grupo que, assim como ele, não dispensava nenhuma oportunidade para
a propaganda republicana.
Como sói acontecer, também a política o afastou do cenário público: com a Revolução
de 1930 e o rearranjo político, outros grupos assumiram o poder em Mariana. Gomes
Henrique, com sua família, transferiu-se para Belo Horizonte. Apenas décadas mais tarde foi
resgatado pela memória da cidade: e não por mera coincidência teve seu nome, mais uma vez,
vinculado a uma escola.
Curiosamente, pouco foi preservado sobre a vida de Gomes Henrique pelos seus
familiares. Dentre seus herdeiros, foi localizado apenas um neto que mantém interesse por
essa memória: Sylvestre Freire de Andrade, que tem reunido alguns objetos pessoais,
fotografias e registrado as histórias de família em homenagem ao avô.
Mais conhecida como Jardins, a Praça Gomes Freire, em Mariana, expõe seu busto e
marca um lugar de memória.
NO BRASIL
A guerra contra o Paraguai foi um palco de demonstração das fragilidades do Império
Brasileiro. Ali se iniciavam as famosas “questões” que iriam enfraquecer a monarquia e
fragilizar a figura de D. Pedro II. A escravidão brasileira, por exemplo, depunha contra o país
e criava um sério obstáculo a inserção do Brasil no rol das grandes nações, como era o
vislumbre de muitos. Mas não era um assunto fácil de ser resolvido: as justificativas eram
bastante complexas, confundindo no cenário político os conservadores e os liberais.
Em 1870, o Manifesto Republicano, apontava para um incerto futuro – um Brasil
“moderno”? Uma sociedade multirracial e insegura quanto ao debate abolicionista: como
reagiria um Brasil livre? De novo a guerra contra o Paraguai coloca o debate na ordem do dia:
escravidão, exército, dimensões continentais, predomínio geopolítico. Os termos da equação
se movimentavam sem que se chegasse a um resultado final.
O positivismo e o republicanismo davam a dinâmica desse movimento. Alardeado
pelos oficiais jovens do Exército Brasileiro na Academia Militar do Rio de Janeiro, reunia
adeptos de vários matizes, unidos na oposição a um ethos católico que se enfraquecia. A idéia
republicana já havia grassado em terras brasileiras durante as revoltas regenciais. Agora, esses
mesmos jovens questionavam se a Monarquia era o melhor sistema para o desenvolvimento
do país. O exemplo, logicamente, vinha dos Estados Unidos do Brasil. Não mais o Velho
Mundo! A Europa simbolizava o império. A rápida industrialização norte-americana enchia
os olhos dos jovens oficiais brasileiros que, além disso, enxergavam um papel determinante
do Exército na condução política do país.
O lema “ordem e progresso” expressava todas as discussões e aspirações do período.
É assim que a Abolição da Escravatura e a Proclamação da República instalam-se, sem
grandes rupturas, no cenário sócio-político. Refletiam, apenas, um movimento intenso que
havia tomado forma ao longo das últimas décadas. Bem ao “jeitinho brasileiro”...
Assim também ocorreu no âmbito educacional, como veremos. Há quem diga que os
republicanos não tinham um projeto educacional. Há também os que dizem que o império era
mais republicano que a República, no quesito educação. Mas não há como negar a influência
positivista e científica nas escolas brasileiras. E isso também teve início durante a década de
70. Talvez, daí, uma certa incompreensão acerca da educação republicana: por um lado, tudo
como antes – de acordo com a Constituição de 1891, aos estados cabia a responsabilidade
com a educação primária e secundária. Por outro lado, as grandes mudanças já vinham
ocorrendo e o modelo “grupo escolar”, marca registrada da República, surge em São Paulo e,
rapidamente, se espalha pelos demais estados brasileiros.
Entretanto, o período da Primeira República esteve permeado por inúmeras reformas
educacionais. A propaganda republicana era pela “democratização da educação”, que mais
que almejar uma educação para todos, trazia um caráter intencional, pois só poderiam votar
aqueles que fossem alfabetizados. Além disso, uma nação que se queria civilizada precisava
se organizar e instruir seus cidadãos para alcançarem o progresso. A Revolução Industrial do
século XIX iniciada na Europa exigia uma mão-de-obra com um conhecimento mínimo de
leitura, escrita e cálculo para conseguir executar seu trabalho. Mas como garantir a instrução a
todos?
É certo que o governo – fosse o federal ou o estadual – não tinha meios para garantir a
instrução para todos. Também não existia nenhum mecanismo de financiamento
sistematizado para a educação pública. É público e notório a preocupação com a educação,
dadas as inúmeras legislações elaboradas e aplicadas. Em Minas Gerais, merece destaque a
Reforma João Pinheiro, de 1906, que instituiu o modelo dos grupos escolares, em detrimento
das escolas isoladas.
Para os positivistas, a ordem e o progresso seriam conseguidos através da educação. A
exemplo de Durkheim (Educação e Sociologia), para quem a educação consistia numa
socialização das gerações, a escola seria um espaço de construição de valores e transmissão
das tradições. Assim, a cultura escolar poderia ser, portanto, uma forte aliada para os
republicanos.
O projeto dos grupos escolares simbolizava um processo de progresso, mudanças,
além de favorecer em alto grau a disciplinarização do trabalho docente e discente.
DAS MINAS GERAES PARA A CORTE
Gomes Henrique Freire de Andrade nasceu em Mariana – MG, em 03 de janeiro de
1865, filho de Antônio Gomes Freire de Andrade e de Maria Augusta Lebet Freire de
Andrade. Sua descendência remonta a Antônio Gomes Freire de Andrade (Conde de
Bobadela), quem administrou a Província de Minas Gerais de 1735 até 1763. Seu pai era filho
de Gomes Freire de Andrade, Coronel do Exército (Regimento de Minas) e Barão de Itabira.
Ficou órfão de pai quando criança, permanecendo sobre os cuidados de sua mãe que, apesar
das limitações financeiras, esmerou-se em formar seus dois filhos – um em Medicina e outro
em Direito.
Iniciou seus estudos no Seminário em Mariana, dando continuidade no Liceu Mineiro
de Ouro Preto, cursando as disciplinas necessárias à admissão no curso superior. Daí seguiu
para a Escola de Medicina do Rio de Janeiro, onde defendeu com louvor a tese sobre “raiva
hidrofóbica” e colou grau em 19 de janeiro de 1888, sendo escolhido como orador da turma
na formatura ocorrida em fins de 1887. Curiosamente, a turma escolheu a Princesa Izabel
como patronesse, apesar do orador já ter se postado ao lado da República que em breve viria.
Alquimia cultural, associações literárias e operárias, jornais, cafés; acalorados debates
sobre o abolicionismo, o republicanismo. Bibliotecas, livrarias e tipografias, o teatro. A
música, tempos de nascimento do chorinho brasileiro... Intenso comércio, ainda alimentado
pelas negras de tabuleiro. A vida na e da Corte! O que mais e quanto mais teria influenciado
nosso Gomes Henrique?
Dentre os grandes temas que frequentavam os espaços sociais na Corte ao final do
século XIX, podemos pensar que dois atingiam particularmente nosso personagem: o
higienismo e o republicanismo.
A Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro foi criada em 1808 como Escola
Anatômica, Cirúrgica e Médica do Rio de Janeiro, dentre um conjunto de ações que visavam
preparar a vila de São Sebastião do Rio de Janeiro para tornar-se uma cidade imperial. Até
então, os ensinamentos médicos se davam no próprio ambiente de trabalho, ou seja, hospitais
e similares. A mesma faculdade, inclusive, iniciou suas atividades nas dependências do
Hospital Real Militar e Ultramar e ao longo do século XIX frequentou outros espaços
médicos no Rio de Janeiro. Somente em 1918 teve seu prédio próprio, construído
parcialmente, e em 1973 transferiu-se para o campus universitário na Ilha do Fundão.
Dentre os esforços de consolidação dos saberes médicos, ao longo do século XIX,
foram inúmeras as reformas de ensino implementadas na escola. Durante o período em que
Gomes Henrique frequentou a faculdade, estava em vigor a chamada Reforma Sabóia,
ocorrida durante a gestão do Conselheiro Vicente Cândido Figueira de Sabóia (1881-1889);
considerado como período áureo da instituição.
Em que pese os avanços anunciados pelo decreto de 1879, da Reforma Leôncio de
Carvalho, em 1880 um grupo de professores e alunos da Faculdade de Medicina ocupou
espaços públicos para denunciar a precariedade das condições de ensino na dita faculdade:
prevalecia a inexistência, seja de gabinetes condizentes com a prática médica, de laboratórios,
instrumentos e material adequado, seja de uma sede própria. Reclamavam também das
dificuldades de relacionamento com a Santa Casa da Misericórdia, onde funcionavam as
clínicas médicas.
A reclamação principal estava no que concerne à inadequação do ensino:
excessivamente teórico e uma gritante incipiência no desenvolvimento da medicina
experimental. Foi então que, durante a gestão Sabóia, as propostas do decreto de 1879
começaram a ser implementadas.
Em linhas gerais foram mantidas as propostas do plano de Leôncio de Carvalho,
acrescidas de algumas modificações: além do curso de Ciências Médicas e Cirúrgicas, mas
três cursos anexos seriam oferecidos – Farmácia, Obstetrícia e Ginecologia, Odontologia. O
curso de Medicina permanecia com a duração de seis anos, com a publicação de uma revista
bimestral e o melhor aluno ganhava, como prêmio, uma viagem à Europa. No bojo da reforma
também estava uma regulamentação dos exames preparatórios exigidos para o ingresso.
Estava em voga uma nova representação do saber médico, inspirada no modelo
germânico, com a introdução dos estudos práticos e experimentais, em oposição ao modelo
francês, predominante nas escolas de medicina desde a década de 50.
Para além dos parâmetros da formação, estava a atuação social dos médicos. Um
pouco mais à frente no tempo, nas primeiras décadas do século XX, é possível perceber com
mais clareza os reflexos dessa formação e atuação social, na produção bibliográfica
educacional escrita por médicos ou, como expressão máxima dessa realidade, a presença do
médico Miguel Couto na direção da Associação Brasileira de Educação.
Desde a segunda metade do século XIX é possível perceber os interesses médicos
pelas questões sociais, incluindo a educação. Tais interesses estavam presentes na própria
formação, como indicam os estudos de GONDRA (2000), com base nas teses defendidas para
a titulação. Afirma este autor que tanto a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro – espaço
de formação, como a Academia Imperial de Medicina – espaço de discussão científica,
estavam imbuídas da missão civilizadora, visando reordenar a sociedade através da educação
do povo. Nesse intuito, os saberes populares eram desqualificados em prol do conhecimento
científico, racional.
É assim que os conhecimentos médicos invadem a escola, estabelecendo regras que
iam desde a melhor localização para o prédio escolar, passando pelo mobiliário, pelos
exercícios físicos, até atingir a alimentação adequada aos alunos. Tudo isso envolvia e
disseminava a doutrina higienista, área da medicina que se expandia pela valorização da
prevenção – prevenir a desordem, a indisciplina, as doenças. Exemplo ao extremo desse
discurso está no livro O Ateneu, de Raul Pompéia, que descreve os dissabores do aluno de um
colégio mantido pelo Barão de Macahubas, o médico Abílio César Borges.
Em que medida esses pensamentos influenciaram a prática médica de Gomes
Henrique? Os cargos políticos assumidos ao retornar a Mariana foram palco para
disseminação dessa preocupação higienista? Como professor na Escola de Farmácia de Ouro
Preto advogou em prol da legitimidade dos saberes médicos em detrimento dos saberes
populares?
Outra ordem de pensamentos muito presentes no cenário da Corte ao longo dos anos
80 enfeixava-se no republicanismo. A idéia republicana consagrou-se, em 1870, com a
publicação do Manifesto Republicano no primeiro número do jornal A República, em 03 de
dezembro. A partir daí, a idéia vai congregar defensores em inúmeros partidos políticos,
começando pela formação do Partido Republicano Paulista, em 1873. Ao longo dos anos
seguintes, outros partidos se organizaram em todo o país, com menor intensidade em algumas
províncias do nordeste.
Interessante destacar que, se por um lado, a crítica que faziam ao império era bastante
ácida, a maioria dos republicanos era contrária à idéia de revolução, muito influenciados pelo
liberalismo – reformas para evitar a revolução. Conforme Quintino Bocaiúva, a evolução
histórica levaria, inevitavelmente a humanidade à república. Aí estavam também os adeptos
do positivismo.
Há que compreender a complexidade do período que aglutinava interesses em torno de
um inimigo comum – a monarquia, mas afastava por posições díspares quanto à escravidão,
por exemplo. De um lado, os cafeicultores paulistas em luta por uma posição política mais
forte; de outro lado, os oficiais do Exército, entendendo que deveriam estar à frente das
decisões quanto ao destino do país.
O movimento abolicionista inflamava os palanques, ao mesmo tempo que os hábitos
sociais e culturais sofriam as influências trazidas pelos imigrantes portugueses, italianos,
alemães, poloneses, espanhóis, japoneses, etc.
E tudo isso, obrigatoriamente, passava pela cidade do Rio de Janeiro. Que impactos
teria isso na vida de um mineiro marianense? Teria ele já uma idéia dessa dinâmica social,
experimentada na convivência em Ouro Preto, então capital da Província de Minas Gerais?
Teria sido toda essa convulsão o motivo de sua escolha pela capital do império? Que razões o
teriam levado a escolher a Medicina e não o curso de Direito, em São Paulo?
Desprovido dos necessários recursos financeiros, atuou como jornalista enquanto
cursava os estudos superiores. Tal posição favoreceu o contato com esse ambiente das
agitações políticas e sociais que assolavam o Rio de Janeiro. Considerando sua trajetória ao
retornar a Mariana, podemos afirmar que as idéias republicanas influenciaram suas escolhas
políticas futuras. Ainda acadêmico de Medicina, recebeu um convite para ocupar uma cadeira
de deputado na Assembléia Provincial. Recusou o convite com a justificativa de reservar suas
colaborações para o novo regime. Não nutria grandes simpatias pelo império.
Na introdução da tese que defendeu em janeiro de 1888, sobre “hydrophobia”, relativo
à Cadeira de Pathologia Médica, ressalta-se o legalista, mas também o valor da pátria, da
humanidade, da ciência e do positivismo comtiano:
Hoje que a excelência do methodo pastoriano [refere-se a Pasteur] se divulga e se
confirma, sobre a cabeça do ilustre sabio correm as bençãos de todo o mundo; seu
nome entrou na perpetuidade gloriosa da Historia e a França consoagrou-o, como o
maior obreiro de sua supremacia scientifica, n´esta expansão ruidosa em que o nome
da Patria se alarga na Humanidade, segundo a phrase do illustre Comte.
Tanto nos inspirou na escolha do assumpto, que constitue a nossa these inaugural.
Trabalho de estudande, que se affez á mediania despretenciosa e independente, não
se presume certamente na vã expectativa de innumerados louvores; obedece a uma
disposição da lei, consagradanos Estatutos da Faculdade, e que assim se satisfaz no
esforõ perseverante de quem sempre guardou, entre as vicissitudes e os labores de
seis annos, a fé robusta, que não desfallece, a esperança, que conforta e a convicção
sincera de bem haver cumprido as leis, que o dever impõe.
DE VOLTA ÀS MINAS
De volta a Mariana para exercer sua profissão, casou-se com Maria do Carmo Breyner
Freire de Andrade, com a qual teve três filhos: Augusto Gomes Freire de Andrade, Henrique
Gomes Freire de Andrade e Carmem Freire de Andrade. Como médico, foi professor da
Escola de Farmácia de Ouro Preto, assumindo a cadeira de Higiene e Microbiologia por 30
anos. Teria sido aprovado também para a Escola de Medicina de Belo Horizonte como
professor de Patologia, mas não pode assumir dada a impossibilidade de estar, diariamente, na
capital.
Em paralelo, iniciou uma intensa carreira política, elegendo-se deputado aos 26 anos.
Foi um dos signatários da Carta Constitucional de Minas Gerais de 15 de junho de 1891 e um
dos que, em 6 de dezembro de 1893, apoiaram a candidatura de Bias Fortes para a presidência
do Estado de Minas Gerais.
Observa-se um movimento de influência múltipla: de um lado o avanço do Partido
Republicano com o crescimento do número de filiados de um lado; de outro lado a eleição de
Gomes Freire como vereador da Câmara Municipal de Mariana em 1905, que resultou na sua
indicação para o posto de presidente da Câmara e Agente Executivo, dando início a uma
intensa trajetória política. Elegeu-se Senador em Minas, para as 5ª, 6ª e 7ª legislaturas (1907 a
1918). Em virtude de sua eleição para Deputado Federal, 9ª legislatura, renunciou ao restante
do mandato de Senador Estadual, dedicando-se inteiramente à cadeira de Deputado Federal
entre os anos de 1915 e 1917.
No desempenho desses cargos políticos e do forte vínculo com João Pinheiro, então
Presidente do Estado, representou Minas Gerais no 3º Congresso da Instrução Secundária que
ocorreu na Bahia, em 1918, defendendo lá as propostas educacionais republicanas. O
relacionamento entre Gomes Freire e João Pinheiro teve origem em Ouro Preto, ainda capital
da Província, onde este montou sua banca de advocacia. Dessa relação próxima e amiga,
credita-se a influência para as futuras iniciativas de Gomes Freire em torno da implantação de
uma educação aos moldes republicanos.
Há que se considerar que Gomes Freire residia e atuava profissionalmente na região de
Mariana e Ouro Preto que, até 1894, era Capital da Província. Certamente, pode-se atribuir a
esse ambiente tão propício as importantes alianças políticas firmadas então e o forte vínculo
com o Partido Republicano Mineiro (PRM).
A convivência entre os personagens foi, no mínimo, inspiradora para Gomes Freire
que manteve amizade e relações política com João Pinheiro até a morte deste em outubro de
1908. Os periódicos relataram inúmeras visitas de João Pinheiro à casa de Gomes Freire,
deixando clara a fidelidade política mútua. O texto de O Germinal de 27 de dezembro de
1914, que lançou a candidatura de Gomes Freire para Deputado Federal, trouxe o trecho que
afirmava estar o mesmo
filiado as doutrinas philosophicos-sociais e as formulas administrativas do imortal
João Pinheiro da Silva, em cuja fileira sempre militou com enthusiasmo e lealdade
sincera desde as eras academicas emanado pela identidade de ideais republicanos.
Não só a carreira política mas os atendimentos médicos de Gomes Freire também
obtiveram sucesso e alcançaram repercussão positiva na cidade e na vizinhança. Contratado
como médico da “Compania das Minas de Passagem” de Mariana, propriedade de ingleses,
ainda atendia em consultório próprio. Seus atendimentos também privilegiavam pessoas sem
condições financeiras e crianças carentes do Grupo Escolar.
Acrescente-se a isso inúmeras ações relacionadas à saúde e higiene públicas enquanto
ocupou o cargo de Agente Executivo.
O respeitado médico e político foi professor da Escola de Farmácia de Ouro Preto por
mais de 30 anos, ministrando a disciplina de “Higiene e Microbiologia”. No início dos anos
30, Gomes Freire abandonou a politica e passou a residir em Belo Horizonte, onde faleceu em
1938.
Essa mudança pode ser atribuída a alguns fatores, incluindo os de ordem política: a
Revolução de 30 alterou profundamente o jogo das forças políticas, limitando o espaço de
atuação do grupo liderado por ele. Acrescente-se a isso o apoio da Igreja Católica, na figura
de Dom Helvécio, na derrubada da facção republicana então no poder, que em 1934,
conseguiu nomear um novo prefeito para a cidade, Dr. Josaphat Macedo.
Em 1900, com mais 13 companheiros, fundou o jornal que inicialmente chamou-se
Rio Carmo e que, em 1905, passa a ser intitulado O Germinal – segundo palanque
republicano. Estudos em torno da trajetória desse periódico vem sendo desenvolvidos,
procurando compreender desde a escolha do nome, seu significado, até a repercussão das
idéias disseminadas pelo jornal. Não há dúvidas, no entanto, de que atuava como porta-voz do
Partido Republicano.
Como presidente do jornal, Gomes Freire dele se utilizou como porta-voz do diretório
político do Partido Republicano de Mariana para defesa da nova forma de governo – a
República. O caráter intencional do jornal fica explícito, e reafirmado, no exemplar do dia 25
de dezembro de 1901, nos dizeres que declara ter Rio Carmo:
nascido para a defeza do povo, há sido a nossa divisa o lemma conhecido semper impendere vero, e sem animosidades, e sem armar aos applausos de quem quer que seja, por nossa vez se só temos applaudido na justa proporção em que se nos permite censurar, quando se az preciso. (...) mas ha, sobretudo, um pensamento politico mais elevado que nos domina é este a defeza intransigente da Republica, a luta pela sua regeneração.
As ações de Gomes Henrique Freire de Andrade, em Mariana, nas primeiras décadas
do século XX, despertaram as atenções para o fato de que o âmbito da educação estava
permeado pela política e que, possivelmente, a própria criação do Grupo tenha sido uma
dentre as tantas outras iniciativas para a consolidação do regime republicano. Afirmar que as
relações entre política e educação compõem o cenário da escola brasileira não é nenhuma
novidade, e para a República essa relação foi imprescindível.
Não só a criação dos grupos escolares foi fruto dos interesses republicanos como
também toda a cultura escolar esteve impregnada de iniciativas com caráter claramente
intencional. Por exemplo, as festas escolares foram práticas que perseguiram o ideal de uma
nação civilizada, a escola era o espaço fundamental para se criar os cidadãos. Nessas
festividades as principais datas cívicas comemoradas eram: 21 de Abril consagrando o mártir
da República – Tiradentes; 7 de setembro, em comemoração a Independência do Brasil; 15 de
novembro, em comemoração à Proclamação da República e 19 de novembro em
comemoração à Bandeira Nacional. Além da exaltação de “heróis” da pátria, hinos patrióticos
eram executados e as autoridades discursavam. As cerimônias se constituíam, portanto, em
um espaço privilegiado para a disseminação dos ideais republicanos, enquanto corporificou os
símbolos, os valores e a pedagogia moral e cívica que lhe era própria.
Tem-se que considerar também que o cenário político da cidade, no início do século
XX, é bastante rico e complexo, e que a todo o momento estava implícito um interesse maior
de se conseguir a aprovação da nova forma de governo. Por isso, a propaganda republicana
fortemente executada não pode ser deixada de lado. Um estudo mais detalhado de suas
implicações e pontos de vistas vêm sendo desenvolvido a fim de compreender melhor qual
concepção de educação os republicanos apresentavam a população de Mariana e a que público
o jornal atendia. Pesa também a grande proximidade entre o personagem que se pretende
estudar, Gomes Freire, e o jornal “O Germinal”, uma vez que ele o presidiu durante muitos
anos esse.
O nome do jornal é uma das primeiras questões levantadas, pois passa de “Rio Carmo”
para “O Germinal” no ano de 1905. O primeiro nome certamente faz alusão ao curso d`água
em torno do qual surgiram as primeiras edificações que deram origem à cidade de Mariana, o
Ribeirão do Carmo, mas o segundo ainda é motivo de reflexão. Que relação teria esse nome
com a realidade local? Seria Emile Zola o autor preferido de Gomes Freire? Seria uma
homenagem ao autor, cuja história de vida aponta para algumas semelhanças com a vida de
Gomes Freire? Ambos eram órfãos de pai e foram educados pela mãe, com muitas
dificuldades financeiras. Como também a semelhança no tocante ao engajamento político,
característica sempre presente na vida do escritor. Cabe recordar que a mãe de Gomes Freire
era de descendência francesa.
Ou seria alguma alusão quanto à vida dos mineiros do carvão e os mineiros das minas
de Mariana? Ou seria uma influência da amizade com Alphonsus Guimarães? Teria nosso
médico político inclinações literárias? Ou a escolha do nome O Germinal denota uma posição
política mais à esquerda do que os republicanos da época?
Consideramos como terceiro palanque de difusão republicana o Grupo Escolar de
Mariana, criado em 06 de junho de 1909, pelo Decreto n.2572. Inicia as atividades em agosto
do mesmo ano, quando toma posse o diretor José Ignácio de Sousa e os primeiros professores.
José Ignácio foi aluno de Gomes Henrique na Escola de Farmácia, onde se formou em
1898, medianamente aprovado. Talvez, influenciado pela mesma perspectiva política, a
exemplo do mestre, tenha se dedicado mais a isso do que aos rigores acadêmicos. O fato é que
acompanhou Gomes Henrique no partido político, no jornal, no grupo escolar, na Câmara
Municipal de Mariana. Transferiu-se para Ituiutaba no final de 1917 e também tem sido
objeto de outras pesquisas.
Tido como patrono do Grupo Escolar de Mariana, Gomes Freire emprestou seu nome
à Caixa Escolar, significativamente inaugurada no Dia da Bandeira; e ao mesmo grupo
escolar, no período de 1914 a 1931.
Sempre presente nas premiações dos exames finais, também ocupou-se da educação
no cumprimento dos cargos políticos.
A mudança do nome do Grupo Escolar de “Dr. Gomes Freire” para “Dom Benevides”
foi resultado de disputas políticas na cidade, entre a Igreja e o governo republicano local.
Iniciadas na década de 20, refletiam um movimento maior em Minas Gerais, no qual a Igreja
combateu a laicização do ensino implantado por João Pinheiro. Dom Helvécio foi quem, na
cidade de Mariana, assumiu a frente nesse conflito sendo referência para demais cidades de
Minas Gerais.
A imprensa da época revela um clima de tensão entre o poder eclesiástico e os
republicanos: cada um se atribui o mérito pela construção do prédio próprio do Grupo
Escolar.
No círculo de suas amizades pode-se destacar Alphonsus de Guimaraens, que além de
fazer referências a Gomes Freire em algumas de suas poesias, também foi colaborador em “O
Germinal”. Na biografia escrita pelo neto do escritor (GUIMARAENS FILHO, 1995:200)
encontram-se dois capítulos dedicados a esta amizade, dos quais destaca-se o trecho:
Pode dizer-se que teu grande amigo em Mariana foi o médico Dr.Gomes Freire de Andrade. Letrado, sensível, chefe político, professor, senador, interessado em tua vida, de tocante solicitude. Nos versos humorísticos que viria a escrever em Mariana há dois sonetos que falam do Dr. Gomes, como era familiarmente chamado.
O quarto palanque a Banda Musical União XV de Novembro, fundada pelo próprio
Gomes Freire. Desde o nome até as participações nas festas escolares e cívicas, estava
impregnada do pensamento republicano. Responsável por inúmeras apresentações em
logradouros públicos, às vezes fora de Mariana, a ela coube a honra de executar, pela primeira
vez, o “Hino de Mariana”, com música de Antônio Miguel e letra do poeta Alphonsus de
Guimaraens.
Num cenário rico e complexo, de uma intensa atividade profissional e política, um
personagem comum suscita inúmeras as perguntas ainda sem resposta. Informações esparsas,
dados incompletos, fontes raras... Muito por fazer, mesmo porque, nosso personagem –
Gomes Henrique Freire de Andrade – muito também fez.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
CARVALHO, Carlos Henrique de. República e imprensa: as influências do positivismo na concepção de educação do professor Honório Guimarães: Uberabinha, MG: 1905-1922. Uberlândia: Edufu, 2004. p.58
CARVALHO, José Murilo de. A Formação das Almas: O Imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
CARVALHO, Rosana Areal; MARQUES, E. F.; FARIA, V. L. Grupo Escolar de Mariana: educação pública em Mariana no início do século XX. Revista HISTEDBR On-line, Campinas, v. 21, p. 2-14, 2006.
______. O Grupo Escolar de Mariana e as fontes para a história da educação na Região dos Inconfidentes. In: CONGRESSO LUSO-BRASILEIRO DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO, 6., 2006. Anais do VI Congresso Luso-Brasileiro de História da Educação, 2006.
CARVALHO, Rosana Areal; VIEIRA, L. C. Política e educação: enlaces e entrelaces no Relatório de 1911 do Grupo Escolar de Mariana. In: CONGRESSO DE PESQUISA E ENSINO DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO EM MINAS GERAIS, 4., 2007. Anais. Juiz de Fora: UFJF, 2007.
CHARTIER, Roger. A história cultural : entre prática e representações. Lisboa: Difel, 1986.
FALCON, Francisco. Por uma História Política. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997.
FARIA FILHO, Luciano Mendes de. Dos pardieiros aos palácios: cultura escolar e urbana em Belo Horizonte na Primeira República. Passo Fundo: UPF, 2000.
GATTI JÚNIOR, Décio; INÁCIO FILHO, Geraldo. História da Educação em perspectiva. Campinas: Autores Associados; Uberlândia: EDUFU, 2005.
GONDRA, José. A arte de civilizar: medicina, higiene e educação na Corte Imperial. Rio de Janeiro: UERJ, 2004.
GUIMARAENS FILHO, Alphonsus de. Alphonsus de Guimaraens no seu ambiente. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional/Departamento Nacional do Livro, 1995.
LOMBARDI, J. C.; CASSIMIRO, A. P. B. S.; MAGALHÃES, L. D. R. (orgs.). História, cultura e educação. Campinas, SP: Autores Associados, 2006.- (Coleção educação contemporânea)
MAXÍMO, Círian Gouveia, CARVALHO, Carlos Henrique de. Da ordem educacional ao progresso social: concepção de educação vinculada pela imprensa (Uberlândia, MG, 1920-1945) In: LOPES,Ana Amélia Borges de Magalhães; GONÇALVES, Irlen Antônio; FARIA FILHO, Luciano Mendes; XAVIER, Maria do Carmo. (Org.). História da Educação em Minas Gerais. Belo Horizonte : FCH/FUMEC, 2002. 656p., v.1
RESENDE, Maria Efigênia Lage de. Formação da estrutura de dominação em Minas Gerais: o novo PRM – 1889-1906. Belo Horizonte: UFMG, 1982.
SOUZA, Rosa Fátima de. Templos de Civilização: A Implantação da escola primária Graduada no Estado de São Paulo (1890-1910). São Paulo: Editora da UNESP, 1998.
http://www.dichistoriasaude.coc.fiocruz.br Acessado em
06 de fevereiro de 2009.
47
Percepções acerca do ensino de História em uma escola confessional feminina (1915-1928)
Verônica Albano Viana Costa
Ana Cristina Pereira Lage
Resumo: O estudo parte das reflexões sobre a história do ensino de história em uma instituição
confessional feminina. Parte-se do pressuposto que a questão da valorização da nação é freqüente
no ensino de História do período, mas verifica-se a particularidade da valorização do Império
passado em detrimento da República em vigor para a escola em estudo. Utiliza-se como agentes
desta pesquisa as discentes do Colégio Nossa Senhora de Sion de Campanha, Minas Gerais,
representantes das elites locais, por meio da produção escrita entre 1915 e 1928, contida em um
livro de redações de alunas, consideradas pelas freiras como melhores, de variadas séries e
também com conteúdos diversos. Pretende-se dialogar especificamente com as redações de
conteúdo histórico para compreender o discurso contido nestes textos, o qual dialoga
constantemente com a História Sagrada. Busca-se refletir com as discussões mais recentes acerca
do imaginário, das apropriações, da história da escrita e da análise do discurso.
Palavras-chave: ensino feminino – ensino de história – escola confessional
Perceptions sur l’enseignement de l’histoire dans une école confessionnal féminin (1915 – 1928)
48
Résumé : L'étude part de la réflexion sur l'histoire de l'enseignement de l'histoire dans un
établissement confessionnel féminin. Il a été supposé que la question de la récupération de la
nation est commune dans l'enseignement de l'histoire de la période, mais il est une caractéristique
de l'appréciation passée de l'Empire au détriment de la République en vigueur pour l'école à
l'étude. Il est utilisé comme agents de cette recherche, les étudiants du Collège de Notre-Dame de
Sion à Campanha, Minas Gerais, les représentants de l'élite local, à travers la production écrite
entre 1915 et 1928, figurant dans un livre de mémoires d'étudiants, et mieux traitées par des
religieuses de différentes séries et également avec divers contenus. Il est destiné spécifiquement
parler avec le contenu éditorial de l'histoire pour comprendre la parole dans ces textes, qui
dialogue avec l'Histoire Sacré. Vise à refléter le plus récent des discussions sur l'imaginaire, des
appropriations, de l'histoire de l'écriture et l'analyse du discours.
Mots-clé: enseignement féminin – enseignement de l’histoire – école confessionnal
Este trabalho se insere na perspectiva da história do ensino de história investigada a partir
da cultura escolar. Utiliza-se como fonte um caderno de redações encontrado no acervo particular
da Congregação de Nossa Senhora de Sion em Campanha (MG). O caderno reúne as redações de
alunas consideradas como melhores, de variadas séries e também de conteúdos diversos, escritas
entre 1915 e 1928.
A fabricação de um caderno de redações aponta para a dinâmica que envolve sujeitos,
conhecimentos, comportamentos e valores, elementos constitutivos da cultura escolar. O ato de
escolher determinados textos para constituir o caderno de redações e a sua produção indica um
conjunto de práticas vivenciadas cotidianamente no interior da escola. Assim sendo, esse objeto
49
tem um valor incomensurável, permitindo refletir acerca das múltiplas formas pelas quais os
conhecimentos escolares são apropriados, bem como sobre as práticas conformadas na e pela
instituição escolar.
Embora o caderno apresente redações de natureza variada, pretende-se dialogar
especificamente com nove redações de conteúdo histórico. A documentação aqui analisada
apresenta uma dimensão singular, pois trata-se de fonte primária, uma materialização da memória
no processo de ensino-aprendizagem da História. É um exemplar revestido de originalidade e que
permite adentrar pelos domínios exclusivos do Colégio analisado, das representações produzidas
acerca da História que, de uma maneira ampliada, compõe um certo imaginário do período,
profundamente assentado na tradição católica.
A opção de vincular essa pesquisa às discussões sobre o imaginário justifica-se por
entender que a existência dos indivíduos é mediada por representações que têm múltiplas e
complexas funções. Para Baczko (1985), as representações guiam e interferem nas ações e
comportamentos, colocam-se no lugar do mundo e asseguram a coesão social e, portanto, o
imaginário, composto pelo conjunto das representações compartilhadas por uma comunidade, faz
com que os indivíduos percebam e organizem a sua própria existência e torna-se inteligível e
comunicável por meio do discurso. Assim, enquanto uma instituição social, a escola tem estreitos
vínculos com o imaginário, no qual estão ancoradas as matrizes culturais de suas práticas. Desta
forma, o conjunto de nove redações de conteúdo histórico apresenta-se como um corpus
documental, cujos enunciados (manuscritos) materializam o discurso. A sua abordagem será
realizada por meio da análise da narrativa e das categorias de análise da História da escrita
(SILVA, 2002), buscando compreendê-lo como um conjunto articulado.
50
O COLÉGIO NOSSA SENHORA DE SION DE CAMPANHA
O Colégio foi fundado pela congregação francesa Nossa Senhora de Sion, na cidade sul-
mineira de Campanha e funcionou entre os anos de 1904 e 1965. A pretensão inicial da
Congregação Sionense era educar meninas, na sua maioria filhas de ricos fazendeiros, vindas de
todo o Estado de Minas Gerais e até de outras regiões. Eram chamadas de Meninas de Sion. As
freiras praticavam também a ação de educar meninas pobres da região. Estas meninas eram
chamadas de Martas ou Martinhas, em homenagem à Santa Marta. Viviam também internas no
Sion e, em troca do ensino que recebiam, ajudavam na limpeza do prédio. Têm-se que ressaltar
também que não poderia haver contatos entre as Meninas de Sion e as Martinhas. Como o
caderno de redações encontrado refere-se somente à produção das Meninas de Sion, pretende-se
aqui dialogar com as especificidades do ensino proposto para estas alunas.
Segundo Manoel (1996), no Brasil do final século XIX e início do XX, a visão católica
apresentava uma concepção de sociedade, poder político e relações familiares que eram
convenientes à forma de vida da oligarquia brasileira. Mesmo que a educação dita liberal
reforçasse o caráter individualista e o civismo como força para a implantação de uma Nação, a
educação católica não fugia aos interesses da oligarquia, já que esta sempre ensinou ao católico
ser ordeiro e obediente.
Embora a oligarquia desejasse modernizar-se, temia a modernidade com relação à
educação de suas filhas, pois tinham que educá-las de acordo com as exigências de um mundo
moderno, mas levando em consideração que esta educação não poderia subverter a posição de
subalternidade das mulheres. A educação dos internatos católicos era propícia para as intenções
desta oligarquia.
51
Por outro lado, a Igreja Católica combatia ao mundo moderno pelo investimento na
educação. A educação de meninas e jovens fazia parte dos conceitos elaborados pela Igreja dita
Ultramontana, pois as discentes poderiam ser, posteriormente, educadoras dos filhos e da
sociedade conforme os princípios do catolicismo. Esta educação ocorreria nas escolas
implantadas pelas diversas Congregações que chegaram no Brasil a partir da segunda metade do
século XIX.
A implantação do Colégio Sion na cidade de Campanha foi uma proposta de alguns
representantes políticos e religiosos da região. Foi escolhido um imóvel um pouco retirado da
cidade, um palacete que, no final do século XIX, funcionara um Hotel Sanitário, local de
descanso para curar pessoas com problemas pulmonares. As aulas iniciaram no dia 16 de outubro
de 1904. Em diversos artigos de jornais da época encontra-se a necessidade da comunidade local
em privilegiar a nova escola, demonstrando que era preciso implantar na cidade uma educação
voltada para o seu desenvolvimento e progresso. Têm até um caráter redentor contra a “lethargia”
presente na sociedade campanhense da época. A educação, neste momento, dialoga com o
discurso político, atende às suas necessidades, quais sejam: desenvolver determinadas aptidões
para apreender o discurso da ordem e alcançar o progresso. A instalação do Colégio na cidade ia
de encontro às ansiedades dos políticos e da elite local, pois “salvaria” a todos do “definhamento”
em que se encontrava a cidade.5
A monumentalidade do prédio também era relatada em diversos editoriais. O espaço
escolar passava a exercer uma ação educativa dentro e fora dos seus limites. Ele dialogava com o
espaço urbano. Ele recebia em seu interior diversos símbolos: o relógio, o sino, as fitas, cruzes,
boletins, etc. A arquitetura escolar tinha que demonstrar respeitabilidade, admiração, prestígio,
5 Fonte: Jornal A Campanha, 19/09/1904, p.01. Acervo Centro de Estudos Campanhenses Monsenhor Lefort, Campanha/MG. (LAGE, 2007, p. 130)
52
labor e disciplina. Havia também uma preocupação com a saúde e a higiene. O ambiente escolar
tinha que demonstrar a ordem da missão civilizadora republicana com as condições ideais de ar,
luz, mobiliário e postura dos alunos. Neste contexto, aliam-se com a mesma intencionalidade
educadores, médicos, higienistas e políticos.
O ambiente escolar torna-se o responsável pela melhor educação e disciplina, onde
pregavam a necessidade de um afastamento do mundo externo e reclusão no universo feminino
escolar. As meninas entregues às Irmãs de Sion, recebiam o ensino considerado “completo” para
a sua época, nos moldes europeus. Além de receber aulas de educação física, compatível com o
discurso higienista de sua época, tinham também aulas de competências básicas de leitura, escrita
e cálculo; diversas matérias de natureza científica e aquelas de formação moral, cívica e
instrumental.
Dialogando especialmente com o período compreendido pelo caderno de redações (1915-
1928) e a grade curricular proposta ao ensino primário, percebe-se uma alteração no ensino de
História neste período. Até 1915, todas as turmas do primário (1o. ao 4o. ano) aprendiam
História do Brasil separadamente de História Sagrada e, em alguns momentos, História Antiga.
A partir de 1916, foi implantado uma única disciplina referente à história, a História Cívica e
Moral6. Infelizmente não foi possível fazer tal levantamento para o mesmo período referente ao
curso Normal, devido à falta de fontes. O ensino neste momento no Colégio compreendia o Curso
Primário de quatro séries e o Curso Normal, este variando entre três ou quatro anos. Ocorreu
6 Fonte: Livro de Resultados do curso primário do Colégio Sion. 1906-1929; Acervo do Centro de Memória Cultural do sul de Minas, UEMG- Campanha. (LAGE, 2007, p. 277-280)
53
ainda a introdução do curso fundamental, intermediário, de dois anos a partir de 1925. É possível
quantificar o número de alunas presentes no momento estudado7:
ano primário Fundamental normal total
1915 78 - 99 177
1916 71 - 102 173
1917 95 - 115 210
1918 56 - 100 156
1919 86 - 80 166
1920 125 - 86 211
1921 124 - 60 184
1922 135 - 125 260
1923 100 - 85 185
1924 110 - 72 182
1925 100 28 73 201
1926 79 57 69 205
1927 56 41 62 159
1928 90 41 58 189
Percebe-se uma variação a cada ano no número de alunas matriculadas na instituição,
provavelmente ligada às crises econômicas presentes no cenário brasileiro neste período,
afetando diretamente aos fazendeiros, atividade exercida pela maioria dos pais das discentes aqui
analisadas.
7 Fonte: Livros de matrículas das alunas do Colégio Sion, 1906 – 1965. Acervo do Centro de Memória Cultural do sul de Minas, UEMG- Campanha . (LAGE, 2007, p.137-139)
54
A classificação das alunas nas turmas acontecia no momento em que as notas eram
lançadas nas atas de notas, como: Distinção, Plenamente e Simplesmente. A quantidade de
distinções tornava possível colocar o nome da aluna gradativamente. As notas de uma
determinada turma não eram lançadas de forma alfabética, mas de forma a contemplar no topo da
lista a aluna que obtivesse uma maior quantidade de distinções. A distinção também pode ser
analisada na necessidade do Colégio ter um caderno com as suas melhores redações.
As meninas de Sion também participavam da ordem pelo seu vestuário. O uniforme não
diferenciava dentro da comunidade escolar, mas era, por outro lado, motivo de distinção em
relação à sociedade local. O uniforme e o enxoval deveriam ser padronizados, segundo os
costumes da época. A distinção entre as turmas acontecia somente de acordo com as cores, onde
cada série deveria portar uma cor diferenciada em suas faixas, cordões da cintura e cruzes do
pescoço.
PRÁTICAS DE ESCRITA: O CADERNO ESCOLAR
Até o final do século XVIII, a escola elementar basicamente dispunha-se a ensinar a ler,
entretanto, a necessidade de introduzir o aluno nas múltiplas funcionalidades da escrita
possibilitou a produção de um campo disciplinar característico do modelo escolar moderno
(VIDAL & GVIRTZ, 1998). A partir de meados do século XIX, a alfabetização orienta-se para a
leitura e também para as práticas da escrita. Nesse contexto, o caderno escolar, suporte de uma
prática de escrita, apresenta-se para o aluno como um espaço destinado à realização das
aprendizagens pretendidas e também como ordenação do espaço bidimensional próprio à ordem
gráfica e do tempo destinado a estas aprendizagens (HEBRARD, 2001).
55
Segundo Vidal (1995), a partir da última década do século XIX, os cadernos foram
lentamente introduzidos nas escolas primárias brasileiras, merecendo inclusive legislação para
sua introdução nas escolas isoladas. Assim, constituíram-se no principal suporte das atividades de
aprendizagem dos alunos e também de controle do trabalho docente, já que também eram
utilizados como instrumentos burocráticos para os registros da dinâmica do ensino pelos
professores e para o acompanhamento dos inspetores escolares.
Pela própria natureza do objeto e sua inserção no contexto educativo, o caderno escolar
revela-se um testemunho valiosos sobre a escrita, sobre métodos e conteúdos escolares e sobre os
sentidos e significados construídos pelos sujeitos envolvidos na complexa dinâmica escolar. Parte
substancial do tempo escolar conforma-se sobre o caderno que assume uma variedade de formas
e finalidades voltadas para os objetivos de aprendizagem e para as múltiplas modalidades de
registros da vida interna da escola, entre as quais, aquelas cuja deliberada intenção é registrar a
memória da produção escolar individual ou coletiva.
O caderno de redações do Colégio Nossa Senhora de Sion pode ser compreendido como
um lugar de registro da memória da produção dos sujeitos envolvidos no processo de ensino-
aprendizagem. Nessa perspectiva, esse “artefato” é portador de referências à identidade da
Instituição, sendo encontrado em bom estado de conservação no acervo particular da
Congregação Nossa Senhora de Sion, em Campanha, MG.
Em seu conjunto, com capa dura, perfazendo 189 páginas, no total de 57 redações
elaboradas por alunas de diversas séries dos cursos Primário e Normal entre 1915 e 1928,
apresentam uma mobilidade de conteúdos, podendo supor que no caderno eram reunidos os
textos que expressavam os saberes e os valores considerados significativos. Além de redações, foi
encontrada em suas páginas uma prova de História Sagrada e também um trabalho de turma
(como ensinar a ler). Pode-se classificá-las e quantificá-las segundo os seguintes assuntos, sendo
56
que, por exemplo, uma redação de caráter histórico contém também questões morais e religiosas,
assunto verificado como predominante no discurso das alunas:
Assunto Quantidade
Moral e/ou religioso 32
Histórico 09
Aspectos geográficos e urbanos 06
Perfil de colegas 05
Informações sobre o Colégio 02
Perfil de professoras 01
Prova de História da Igreja 01
Trabalho de turma sobre lição de leitura elementar
01
Total 57
A escrita está organizada com letras bem traçadas, sem uma regularidade de caligrafia,
pois a longevidade do caderno certamente impôs a tarefa de transcrição dos textos a diferentes
pessoas. A autoria e indicação da classe da aluna/autora são inscritos sempre no final das
redações. As margens estão sempre do lado direito, o que confere uma regularidade ao
preenchimento das folhas. Os parágrafos são demarcados por um espaço posterior, sendo o
parágrafo seguinte iniciado em outra linha rente à margem, exceto as duas últimas redações
analisadas. Chama ainda atenção a ausência de títulos na maioria dos textos e o cuidado no
desenho das letras maiúsculas, especialmente na escrita dos nomes de personagens históricos ou
religiosos.
57
AS REDAÇÕES DE CONTEÚDO HISTÓRICO
A disciplina História esteve presente nas escolas brasileiras desde o século XIX,
compunha o quadro das disciplinas escolares, portanto apresentava objetivos, conteúdos
selecionados, métodos próprios e saberes que foram organizados e reelaborados ao longo do
processo de escolarização. No complexo campo de estruturação da História como disciplina
escolar coaduna-se múltiplas dimensões do social conformando um currículo com três
subdivisões: História Sagrada, História da Civilização e História Pátria (FONSECA, 2003). Nos
primeiros programas de História, ainda no Império, o ensino da História sagrada era mais
difundido que a História laica, portanto, os valores e comportamentos veiculados pela disciplina
vinculavam-se à moral cristã. Mesmo com a implantação da República, e a conseqüente
separação do Estado e da Igreja, a História permaneceu veiculando a moral cristã, em especial
nas escolas confessionais (BITTENCOURT, 2004).
A análise das redações permite identificar um discurso histórico associado à moral cristã.
Percebe-se a educação como um local de disputa simbólica. Se a República implanta novos
símbolos, relacionados ao seu ideário, a Congregação de Sion preocupa-se em ensinar e valorizar
símbolos tanto religiosos, como também monárquicos. As redações consideradas de caráter
histórico, em um total de nove, são classificadas da seguinte maneira:
Título referência autora classe data no. páginas
Christovão Colombo
Visita de Colombo a Isabel de Castela e conquista da América
Innocencia Saboia
Verde, 3o. ano primário
S/d 03
nenhum Vinda da família real para o Brasil
Amélia Azevedo
Azul, 4o. ano primário
S/d 02
nenhum Execução de Ma. Antonieta
Margarida de Azevedo
Violeta, 4o. ano normal
1916 03
58
Título referência autora classe data no. páginas
nenhum Separação de Portugal da Espanha
Innocencia Saboia
Branca, 1o. ano Normal
S/d 03
nenhum Partida/ exílio de D. Pedro II
Amélia Azevedo
Violeta, 4o. ano normal
1919 01
nenhum Tentativa de retorno para o Brasil e morte de D. Luís, neto de Pedro II
Cornélia Pereira
Violeta, 4o. ano normal
1920 04
nenhum Execução de Ma. Antonieta
Alba de Lima
Violeta, 4o. ano normal
1923 02
Perfil de D. Pedro II
Histórico de D. Pedro II Irene Pereira Violeta, 4o. ano normal
1925 06
Perfil histórico de D. Pedro II
Histórico de D. Pedro II
Dolores Meirelles
Violeta, 4o. ano normal
1925 08
Verifica-se não haver nenhuma alusão aos governantes da República recém instalada, mas
percebe-se o saudosismo com relação à Monarquia, presente tanto nas redações referentes à
História de Portugal, quanto à França e ao Brasil. Verifica-se também uma continuidade no
discurso das mestras de classe e no aprendizado das alunas. Assim, embora escritas em
momentos distintos, percebe-se uma semelhança nas redações das alunas que escreveram acerca
da morte de Maria Antonieta (1916 e 1923), provavelmente utilizando o mesmo livro didático
e/ou a mesma mestra. Ambas narram o momento de sua execução, no qual a personagem é
encaminhada para a morte com altivez e dignidade cristã. É tomada por uma grande tristeza
quando pensa em seus filhos e recebe uma flor, jogada por uma criança do povo. A grande
singularidade das duas narrativas é a comparação da execução com o martírio de Jesus Cristo e a
recuperação de sua coroa no Reino Celeste, como se segue:
59
...Maria Antonieta que tinha sido audaz ante os soffrimentos e injurias chorou ao receber aquella esmola infantil que sahia de um coração puro e sincero: chorou de reconhecimento! Succumbiu a infame! Bradou uma voz selvatica, mas aquella lagrima de gratidão ainda mais que a altivez fará admirar a Rainha que trocou as glorias passageiras por uma coroa immortal. (Margarida de Azevedo, 1916) ...Num gesto gracil e meigo anjinho leva a mão á flôr aos labios e lhe envia um beijo casto e honesto. Ante esta dadiva infantil, a rainha que até então estivera serena e digna perante as injurias da plebe ignara, chora... “- Chora! Chora a traidora!” brada a multidão desenfreada, ebria de prazer. Redobram os insultos e as imprecações. Mas Deus cingia com a coroa da gloria a fronte da Rainha – Martyr! (Alba de Lima, 1923)
A questão da importância da Coroa, conquistada preferencialmente no mundo celestial,
está presente também em outras narrativas. Assim, no momento em que escreve-se sobre a
participação na Primeira Guerra Mundial, a tentativa de retorno ao Brasil e a morte de D. Luís
Orléans e Bragança (1878-1920), o herdeiro da monarquia brasileira, novamente valoriza-se a
coroa recebida no reino celeste:
...Passaram-se annos. D. Luiz quer pela penna, quer nos campos de batalha brandindo a espada cobria de gloria immoredoura o nome da sua e da nossa patria e mostrava assim ao mundo inteiro do que era capaz um filho do Brasil. Mas a morte traiçoeira veiu roubar nos esse heroe que viveu e morreu para Deus, para o Brasil e para o Dever. E agora, o D. Luiz, do alto do ceu onde foste receber a corôa que te recusaram neste mundo vela pelo Brasil e faze com que embora republicano pela forma , seja elle um reino, onde para sempre e em tudo reine N.S.J.C. Pois assim terás conseguido o ideal que em vida não pudeste realizar de ver o Brasil unido, poderoso e feliz. (Cornélia Pereira, 1920)
A idéia de uma aproximação dos reinos terrenos com o reino celestial é predominante em
todas as narrativas. Quando discute-se a vinda da Corte Real Portuguesa para o Brasil, em 1808,
fala-se da tristeza do povo português com a vinda de D. João VI, dos ingleses protetores e de um
menino (Pedro I) carregado de patriotismo para salvar a monarquia portuguesa. O texto constrói
uma imagem positivada do príncipe real. O jovem Pedro reúne os atributos necessários para o
exercício da autoridade real. Sua representação é portadora da força de um caráter resoluto e de
60
profundos sentimentos de amor pela terra que se transformará em sua segunda pátria. A narrativa
focada naquele que se transformou no “Defensor perpétuo do Brasil” busca legitimá-lo como
governante e oferecê-lo como modelo de conduta para todos os brasileiros. Por outro lado, as três
redações que falam de D. Pedro II enfatizam a sua importância histórica, sendo que duas fazem
alusão às comemorações do centenário de seu nascimento (1925) e tomam um número maior de
páginas do caderno. A tentativa de afirmação de uma tradição imperial brasileira é recorrente.
Mesmo destronado, o imperador continuava no coração dos brasileiros, essa presença se
materializava nas celebrações do centenário de seu nascimento ou na construção de monumentos,
“lugares de memória” em sua homenagem. Segundo as três redações, D. Pedro II foi um
governante exemplar, com educação impecável, correto em sua conduta, contrário à escravidão e
de grande moral familiar:
...Por espaço de quasi 50 annos, D. Pedro governou sabiamente o Brasil. Unindo à justiça a clemencia, preferindo aos interesses particulares o bem do povo, fez tudo prosperar, embora tivesse de sustentar mais de uma vez lutas encarniçadas como a de 1852 e a de 1855. Além de patriota ardente, era um grande christão. Via opprimidos os escravos, não tinham sido também reunidos pelo sangue de um Deus? Empregou todos os meios para a total abolição da escravatura no Brasil... (Irene Pereira, 1925) ...Em setembro aportava em terras brasileiras, a Imperatriz; recebida em meio das mais enthusiasticas orações do povo. D. Thereza Christina doi desde então a “Mãe dos Brasileiros” o anjo e a alegria de um lar real e a benfeitora de uma nação. Em S. Cristovam levava o casal feliz uma vida austera, justamente o contrario dos costumes da época, era um verdadeiro modelo da familia christã, onde a virtude florescia, embalsamando o lar com doces aromas. ...(Dolores Meirelles, 1925)
Doces aromas do lar...em um Colégio onde preparava-se as alunas para um glorioso
futuro como dignas esposas e mães, o exemplo da família imperial brasileira, nos moldes do
cristianismo, tornava-se essencial para o imaginário da época. Neste quadro, insere-se o ensino
da história proposto, mesmo já adentrando o período republicano, onde o modelo a ser seguido e
61
digno de constar no caderno de redações é o da família real e cristã, quer seja esta francesa,
portuguesa, brasileira ou celeste.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise das redações das alunas do Colégio Nossa Senhora reforça a relevância
atribuída à educação escolarizada, sobretudo a História ensinada, como instrumento de
aprendizado da política. Os saberes históricos que integravam o currículo da instituição aborda a
educação moral e cívica de suas alunas mobilizando um acervo simbólico que visa conformar
valores, condutas e visões de mundo. A memória histórica construída sobre os acontecimentos
narrados, são portadores de representações que assumem uma dimensão mais importante que os
próprios acontecimentos que lhes deram origem.
Não obstante aos esforços de diversos setores republicanos em legitimar o novo regime,
as redações revelam uma narrativa ancorada na tradição monárquica associada aos valores e
sentimentos da doutrina católica, compondo um imaginário que se apresenta como concorrente ao
imaginário republicano. A exaltação dos valores monárquicos e cristãos desqualifica e busca
invalidar a legitimidade do o ideário republicano. Embora se possa argumentar que as redações
que compunham o caderno eram escolhidas no sentido de reproduzir o discurso oficial da
instituição, é importante ressaltar a apropriação desse discurso pelas discentes, indicando, como
afirma Carvalho (1990), a força da tradição imperial e dos valores católicos profundamente
assentados na cultura brasileira do período e em constante diálogo com os saberes históricos.
62
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BACZKO, B.. Imaginação social. In: Enciclopédia Einaudi. Vol. 5, Vila dos Maia, 1985. p. 296-332.
BITTENCOURT, C. M. Fernandes. Ensino de História: Fundamentos e métodos. São Paulo: Editora Cortez, 2004.
CARVALHO, J. M.. A formação das almas: O imaginário da república no Brasil. São Paulo: Companhia das letras, 1990.
FONSECA, T.N.L.. História & ensino de História. Belo Horizonte: Autentica. 2003.
HÉBRARD, J. Por uma bibliografia material das escritas ordinárias: o espaço gráfico do caderno escolar (França — séculos XIX e XX). Trad. Laura Hansen. Revista Brasileira de História da Educação. Campinas: Autores Associados, n.1, p.115-141, jan./jun. 2001.
LAGE, A.C.P. A instalação do Colégio Nossa Senhora de Sion em Campanha: uma necessidade política, econômica e social sul – mineira no início do século XX. Campinas: UNICAMP, 2007. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2007.
MANOEL, I.. A Igreja e a educação feminina (1859-1919). Uma face do conservadorismo. São Paulo: Editora UNESP, 1996.
SILVA, A. C. L. F.. Reflexões metodológicas sobre a analise do discruso em prespectiva histórica: paternidade, maternidade, santidade e gênero. Cronos: Revista de História, Pedro Leopoldo, n. 6, p. 194-223, 2002.
VIDAL, D. G.; GVIRTZ. S. O ensino da escrita e a conformação da modernidade escolar: Brasil e Argentina, 1880-1940. Revista Brasileira de Educação, Campinas: Autores Associados, n.8, 1998
63
O ensino de história entre o dever de memória e o trabalho de memória:
representações da Ditadura Militar em livros didáticos de história1
Mateus Henrique de Faria Pereira
Miriam Hermeto
Resumo: O artigo analisa representações sobre a Ditadura Militar (1964-1985) em livros
didáticos de história, tomando duas temáticas recorrentes nos estudos escolares sobre o tema
como “escalas de observação”: a arte engajada e o Golpe de 1964. A análise se desenvolve a fim
de discutir como são estabelecidas as relações entre dever de memória e trabalho de memória no
ensino da história brasileira recente. Finalmente, apresenta-se uma reflexão sobre como essas
duas instâncias poderiam se combinar na construção de uma memória justa do passado no âmbito
do ensino de história.
Palavras-chave: dever de memória; trabalho de memória; livro didático; Ditadura Militar; Golpe
de 1964; arte engajada.
L'enseignement de l'histoire entre le devoir de mémoire et le travail de mémoire:
representations de la Dictature Militaire dans les livres scolaires d'histoire;
1 Esse artigo é resultado dos projetos de pesquisa Livros Didáticos e Representações e Evento, Livros Didáticos e Representações, financiados, respectivamente, por UEMG/FUNEDI (2005/2006), FAPEMIG (2007 e 2008) e CNPq (2007 e 2008). Agradecemos as contribuições de Andreza Cristina Ivo Pereira, Viviane dos Reis Soares e Rúbia Fernanda Ferreira Pinto, que realizaram a pesquisa empírica com os livros didáticos, a partir da qual construímos esse texto.
64
Résumé: L'article analyse des représentations sur la Dictature Militaire dans des livres
didactiques d'histoire, prenant deux thématiques récurrents dans les études scolaires sur le sujet
comme des "échelles d’analyse" : l'art engagé et le Coup de 1964. L'étude se développe afin de
discuter comme sont établis les relations entre le devoir de mémoire et le travail de mémoire dans
l'enseignement de l’histoire brésilienne récente. Finalement, se présente une réflexion sur comme
cettes deux instances pourraient se combiner dans la construction d'une mémoire juste de la
période dans le contexte de l'enseignement d'histoire.
Mots-clé: devoir de memoire; travaille de memoire; livre didatique; Dictature Militaire; Coup
d’État de 1964; l’éngagement artistique.
Trabalhos diversos dos campos de pesquisa em Ensino de História e Historiografia têm
apontado para a complexidade da relação entre história e memória na educação básica2. É com o
intuito de contribuir para esse debate que este artigo apresenta uma análise de livros didáticos de
história, produzidos desde a década de 19703, feita a partir da reflexão sobre a tensão entre os
conceitos de dever de memória e trabalho de memória (RICOEUR, 2000).
Para Paul Ricoeur, dentre outras, duas operações são fundamentais com relação à
memória. Por um lado, o dever de memória, que consiste na obrigação de fazer justiça ao
passado, por meio da lembrança. Por outro, o trabalho de memória, de crítica histórica, de
esquecimento e luto ao mesmo tempo, que pode ser uma forma de evitar os excessos do dever de
memória.
2 Ver, dentre outros, BITTENCOURT (2003), CARRETERO et. alli. (2007), CITRON (1990), DELACROIX et. alli. (1999), GASPARELLO (2004), GUIMARÃES (1988), IGLÉSIAS (2000), NAPOLITANO (2003), NOIRIEL (1998), PROST (1997), SILVA e FONSECA (2007), SIMAN (2005). Para uma aproximação entre Ensino de História e Teoria da História, ver, dentre outros, SEFFNER (2000) e RICOEUR (2005) 3 A seleção dos livros didáticos utilizados partiu de um levantamento prévio, por meio de informações de editoras e autores, das obras mais representativas e utilizadas no estado de Minas Gerais desde os anos 1970. Levamos em consideração, também, a quantidade de aparição de determinados livros em bibliotecas públicas e escolares.
65
Acreditamos que a realização de análises sobre essas operações no ensino de história é
relevante, visto que ele é, por excelência, um lugar de construção, transmissão, recriação e
reflexão sobre a memória – individual e coletiva. É no estudo de fatos e da vida do passado
distante e/ou da história do tempo presente4, no ambiente escolar, que boa parte dos cidadãos
toma contato com as representações da memória coletiva. E é nesse movimento que eles
constroem, também, o seu repertório de lembranças individuais sobre a sociedade em que vivem,
que formam sua memória individual sobre as identidades a que pertencem. No processo de
educação histórica, os conhecimentos dos sujeitos se formam em uma dinâmica de cruzamentos
entre a memória individual e a memória coletiva, a memória viva dos indivíduos e a memória
pública.
Assim, este texto procura investigar como o ensino de história, através dos livros
didáticos, tem operado com essas duas possibilidades – dever e trabalho de memória – para
compreender e explicar dimensões da política e da cultura na escrita da história do tempo
presente no Brasil, a partir do acontecimento traumático “Ditadura Militar (1964-1985)”. Para
isso, tomamos duas “escalas de observação” (REVEL, 2000): a arte engajada e o Golpe de 1964,
duas temáticas cuja presença é recorrente nos textos didáticos sobre a Ditadura Militar.
Não pretendemos reduzir o campo de pesquisa em Ensino de História ao livro didático,
porém, entendemos que ele é um dos principais meios pelos quais o processo de ensino-
aprendizagem de história ocorre5. Por isso, ele pode se tornar uma fonte privilegiada para se
pensar a relação entre ensino de história e historiografia. Nesses termos, pretende-se assumir aqui
a concepção de que a história da historiografia deve refletir sobre as memórias construídas, na
medida em que pode ser compreendida como “investigação sistemática acerca das condições de
4 Sobre os conceitos de história do tempo presente, ver, dentre outros, IHTP (1992) e FERREIRA (2000). 5 Sobre esse tema, dentre outros, ver BITTENCOURT (2001, 2003b), LAJOLO (1996), MUNAKATA (2003), VESENTINI (1984) e VILLALTA (2001).
66
emergência dos diferentes discursos sobre o passado” (GUIMARÃES, 2003: 92). Não se trata
apenas de mais uma reflexão fundada na idéia de “história da memória”, e sim, em grande parte,
de buscar compreender a memória como matriz, e não objeto do ensino da disciplina escolar e da
história acadêmica.
2. ARTE ENGAJADA NA DITADURA MILITAR: TIPOS DE REPRESENTAÇÕES NOS
LIVROS DIDÁTICOS
Há alguns anos, tanto a historiografia quanto a produção didática na área de História vêm
se ocupando de temas da história cultural. No caso das abordagens sobre a produção artístico-
cultural na Ditadura Militar, as relações entre cultura e política têm sido bastante questionadas,
criando um campo de investigação e reflexão sobre a chamada “arte engajada”.
A fim de compreender como a arte engajada vem sendo representada nos livros didáticos
de história, para refletir sobre a tensão entre o dever e o trabalho de memória no ensino de
História, nesse item procuramos apontar e problematizar algumas representações acerca da arte
engajada, de meados da década de 1960 até meados da década de 1980.
Foram analisados 46 livros didáticos, editados entre 1975 e 2004. Destes, há algumas
reedições (chegamos a acompanhar 03 reedições de uma mesma coleção) e coleções diferentes de
mesmo autor, algumas editadas concomitantemente. No recorte documental analisado, 08 livros
foram editados durante a Ditadura Militar; 04, no período de redemocratização; 32, após 1990; e
02 não têm data de publicação indicada. Apenas 04 dos livros didáticos pesquisados não fazem
qualquer menção à produção artística; mas, alguns dos que tratam da arte no período, não fazem
menção à arte engajada.
67
Identificamos quatro tipos de representação da arte engajada na Ditadura Militar nos
livros didáticos analisados6. O mais freqüente é aquele que apresenta a arte engajada como uma
produção que se faz em relação à censura da Ditadura. Nesse tipo de representação, muitas
vezes, a arte engajada parece não ter existência absoluta, mas apenas relativa à censura. Por
exemplo: “Os artistas ligados ao cinema, teatro ou música procuravam meios de burlar os
censores utilizando-se principalmente de metáforas” (COSTA,1991: 289).
Nesse tipo de representação, é como se a arte engajada “soubesse” claramente o caminho
a tomar para enganar a censura.
Chico Buarque precisou, durante um período, de utilizar-se do jogo de palavras em função do momento político. Muitas de suas canções foram censuradas, por conterem mensagens políticas que desagradavam ao governo, ou mesmo alusões às diretrizes políticas e econômicas dos governos militares (MARQUES 1991: 122).
A censura, por sua vez, é quase sempre tratada como um “ente” homogêneo e de caráter
essencialmente político. Carlos Fico (2004) esclarece as diferenças básicas entre a censura de
diversões públicas, estabelecida durante a Ditadura Militar, e a de propaganda política, muito
anterior ao golpe, legalizada desde 1945. O autor trata, ainda, do funcionamento de cada uma
dessas censuras, destacando o caráter moral, e não apenas político, da censura de diversões
públicas. Além disso, a censura não agiu da mesma maneira sobre todas as linguagens artísticas
e/ou meios de comunicação. Assim sendo, o tratamento dado ao tema nesse tipo de representação
da arte engajada nos livros didáticos é um reducionismo – e não apenas uma simplificação
didática – da complexidade desse fato histórico.
Outro tipo de representação da arte engajada que aparece comumente nos livros didáticos
é a que a toma estritamente como forma de oposição e/ou resistência ao regime de exceção.
6 Outras representações foram também identificadas. Mas, por serem representações isoladas e não hegemônicas, não foram apreendidas por nossa tipologia. Por exemplo, o tropicalismo é apontado em um dos livros como parte da Revolução Cultural; outro livro menciona a relação de competitividade entre os tropicalistas e a “música de protesto” nos festivais; outro afirma que a “canção de protesto” evoluiu da bossa nova.
68
Neste caso, assim como no tipo anterior, a arte engajada não parece ter existido como um projeto,
inclusive anteriormente ao Golpe de 1964 – o que foi um fato (RIDENTI, 2000; VINCENT,
1992). A arte engajada foi um projeto com vistas à construção de uma sociedade mais justa, que
procurava ser uma alternativa para o sistema capitalista, pelos grupos de esquerda, e não apenas
no Brasil. Nesse tipo de representação nos livros didáticos, o conteúdo de projeto social não
aparece, sobressaindo-se o conteúdo de “protesto” e “resistência” ao status quo. Por exemplo:
Em virtude do fechamento político, as produções artísticas em geral e várias publicações passaram a ter um engajamento político mais intenso. Canções de protesto, filmes e peças teatrais cuja temática era essencialmente política passaram a ocupar um espaço de contestação não institucional (FERREIRA, 1997: 173).
Ainda outra dimensão importante da chamada “produção engajada” foi também
identificada como tipo de representação nos livros didáticos analisados, embora com ocorrência
minoritária: a arte engajada como projeto de sociedade: “a cultura deveria demonstrar uma
consciência social e de classe, visando, em ultima instância, à construção de uma utopia: um
projeto global de Brasil que transformasse as estruturas socioeconômicas” (BERUTTI, 2002:
259).
É interessante notar que, embora trate de uma faceta importante do engajamento, esta
abordagem, em geral, reduz a idéia de arte engajada à sua dimensão de ação política, quase
partidária. O engajamento, na historiografia, não tem sido tratado meramente como a defesa de
um posicionamento classista e/ou político-partidário, ou como uma forma de instrumentalizar,
politicamente, a produção cultural. Análises de obras e trajetórias individuais definem o
engajamento como o comprometimento do artista com a construção de uma dada realidade
(NAPOLITANO, 2001; VILLAÇA, 2004). Essa visão de arte engajada que vem sendo produzida
pela historiografia recente não chega a aparecer nos livros didáticos.
69
Algumas vezes, mesmo as citações de obras ligadas a projetos de sociedade, produzidas
por artistas cujas trajetórias traduziam engajamento pessoal, aparecem desvinculadas de seu local
de produção e reduzem-se ao seu uso político pela sociedade. É o que se pode observar, por
exemplo, na referência à canção de Geraldo Vandré, em várias reedições (1991, 1997 e 2000) do
livro dos Piletti, que parece tomar como fonte a memória de quem viveu o período, e não
pesquisas que respaldem os dados: “Caminhando tornou-se o hino oficial de todas as
manifestações contra o regime ditatorial. Mesmo proibida, era sempre cantada pelos
manifestantes” (PILETTI & PILETTI, 1991/1997/2000).
Essa citação aponta para outro tipo de representação de arte engajada, a mais comum nos
livros didáticos: a música como a arte engajada, por natureza. Isto pôde ser depreendido com um
levantamento das linguagens artísticas mencionadas nos livros didáticos analisados, como arte
engajada:
LINGUAGENS ARTÍSTICAS NÚMERO DE OCORRÊNCIAS Música 36 Cinema 27 Teatro 25
Literatura 05 Não há menção alguma 07
Provavelmente, a predominância de representações da música como arte engajada não se
deve apenas ao papel que essa linguagem artística teve, nesse sentido, no período. Isso, a nosso
ver, deve-se à força que dos festivais da canção ganhou no imaginário popular nacional, ao
crescimento da indústria fonográfica no país desde a década de 1960 e, em grande medida, à
tradição de oralidade da cultura brasileira, na qual a música popular tem presença bastante forte.
É mais comum lembrar-se de uma canção – que toca no rádio, que se ouve nas mais diversas
ocasiões sociais – do que do trecho de uma peça de teatro ou de uma obra literária. Entretanto, é
importante ressaltar que a literatura e o teatro eram consideradas, nos anos 60, as “artes
70
engajadas” por natureza, as artes “da palavra” (RIDENTI, 2000; NAPOLITANO, 2001a e
2001b).
Assim como a música é apresentada como a arte engajada, Chico Buarque é apresentado
como o artista engajado. Um levantamento quantitativo das menções a artistas nos livros
pesquisados aponta7:
ARTISTAS NÚMERO DE OCORRÊNCIAS Chico Buarque 35 Geraldo Vandré 22 Caetano Veloso 18
Gilberto Gil 15 Glauber Rocha 13
Milton Nascimento 10 Oduvaldo Viana Filho 10
Edu Lobo 08
É interessante notar que a representação de engajamento, neste caso, não é ligada
exatamente ao conteúdo da obra do artista. Não se pretende negar o caráter político de resistência
ou de denúncia da obra musical de Chico no período da Ditadura Militar. Entretanto, sua obra
musical não foi tão explicitamente “de protesto” como a de outros compositores, como Gerado
Vandré, o compositor símbolo da canção de protesto, ou Sérgio Ricardo. Tampouco, foi tão
declaradamente de ação política como a de outros artistas envolvidos com projetos partidários,
como Oduvaldo Viana Filho ou Gianfrancesco Guarnieri8.
Essa representação majoritária de Chico Buarque como o cantor da resistência e do
protesto parece-nos ligada, primeiro, ao uso da memória como fonte para as abordagens da arte
engajada nos livros didáticos. Chico Buarque é uma dos cantores mais populares da MPB, o que
faz com que suas canções estejam presentes na memória de quem escreve os livros. Em segundo
lugar, acreditamos que essa imagem do cantor está relacionada ao primeiro tipo de representação
7 Na tabela, constam apenas os artistas que foram mencionados mais de cinco vezes no corpus documental analisado. 8 A respeito do conjunto da obra dos artistas mencionados, ver NAPOLITANO (2001b) e SOUZA (2007).
71
da arte engajada apontado neste texto. Se o conteúdo da obra musical de Chico Buarque não foi
tão explicitamente político ou de protesto quanto o de outros, a sua relação com a censura foi das
mais conturbadas no período (com destaque para a estratégia de criação do codinome “Julinho da
Adelaide”, como forma de burlar a atenção da censura). Assim sendo, o seu caso ilustra bem a
idéia de que a arte engajada no Brasil foi um produto de resistência à censura na Ditadura Militar
Mas o excesso de destaque para a imagem de Chico Buarque como cantor da resistência
chegou a gerar anacronismo nos livros didáticos. É o que se observa, por exemplo, quando, após
a transcrição dos versos de “Vai Passar”, lê-se: “Os versos acima são do compositor Chico
Buarque de Holanda e pertencem à música ‘Vai Passar’, lançada no final de 1984. O Brasil
estava prestes a virar mais uma página da nossa história encerrando o regime militar” (COSTA,
1991: 301). Como o uso da canção é o de “ilustração de um tempo”, ela pode não ser tomada
apenas como produto cultural de uma época, mas como premonição de tempos futuros.
De maneira geral, observamos que as referências à arte engajada nos livros didáticos não
aparentam ser calcadas em pesquisa. É importante ressaltar que essa afirmativa não pretende
endossar uma idéia de hierarquização dos saberes acadêmico e escolar, que toma esse último
como mera simplificação ou transposição didática do primeiro. Alinhamo-nos com a concepção
que toma a história como disciplina escolar que tem características específicas e não apenas
relacionadas com o diálogo com a produção historiográfica9.
A noção de engajamento que se apresenta nos livros didáticos é diferente da noção da
historiografia. O destaque da dimensão política deste conceito parece-nos estar ligada, em
primeiro lugar, à permanência de uma narrativa de caráter político nos livros didáticos (e no saber
histórico escolar, de maneira geral). Mas também à dimensão de dever de memória que a
disciplina escolar apresenta. Dar voz aos que foram silenciados pelos processos históricos,
9 A este respeito, dentro outros, ver CHERVEL (1990) e BITTENCOURT (2003).
72
lembrando a ação de sujeitos históricos que não estavam no poder – e, no caso dos estudos sobre
a Ditadura Militar, que lutavam contra o arbítrio – vem sendo uma das funções atribuídas à
História como disciplina escolar. No caso das representações da arte engajada nos livros
didáticos, parece que esse dever de memória é exercido com base, essencialmente, na memória
dos autores e da equipe editorial que os produzem.
3. O GOLPE MILITAR DE 1964: MUDANÇAS DE INTERPRETAÇÃO E SENTIDO EM
LIVROS DE MESMO AUTOR
Para pensar a relação entre o dever e o trabalho de memória no ensino de história, nosso
objetivo nesse item é apontar e problematizar algumas representações acerca do Golpe de 1964,
construídas por autores de livros didáticos de história entre a década de 1970 e os dias atuais,
procurando refletir sobre as razões pelas quais autores de livros didáticos reescreveram as
“origens” desse evento.
Para isto, propomos aqui, novamente, uma pergunta sugerida por Michel de Certeau
(1982), em outros termos: o que fabrica o autor de livros didáticos quando escreve a história?
Sem ter a pretensão de chegar a uma resposta definidora, procuramos analisar as mudanças de
sentido em obras diferentes de um mesmo autor. Não se desconsidera aqui o fato de que os livros
didáticos são produzidos por uma multiplicidade de sujeitos, como aponta Munakata (2000).
Entretanto, acreditamos ser válido o critério “autor” para analisar as modificações na narrativa
sobre um tema no discurso didático, sobretudo porque boa parte dos professores escolhe os livros
tomando o nome do autor como referência. Assim sendo, essa origem comum do discurso pode
nos permitir pensar sobre as representações construídas pelo “autor” de livros didáticos quando
73
escreve a história, a partir da análise da pluralidade de vozes, narrativas e interpretações
produzidas pelos livros didáticos ao longo do tempo. De qualquer forma, como se poderá
constatar, a categoria “autor” não é definidora da análise, que muito mais toma as representações
contidas e produzidas em cada obra do que as define como pertencente ao sujeito que assina o
livro.
De forma geral, três causas comuns para explicar o Golpe de 1964 nos livros didáticos
são: a renúncia de Jânio Quadros, a política nacionalista de João Goulart e os conflitos entre a
esquerda e a direita no período 10. Elas aparecem, por exemplo, nos livros de Raymundo Campos,
e Kátia Correa Peixoto Alves e Regina Célia de Moura Gomide Belisário.
No primeiro livro de Raymundo Campos (1983), a renúncia de Jânio Quadros parece ter
dado início à crise que levaria ao Golpe de 1964. O aumento das agitações políticas –
reivindicações por parte dos grupos de esquerda e de direita –, e a fraqueza do governo Goulart
teriam sido as principais causas do golpe civil e militar. Contudo, no segundo livro de Campos
(1991), a movimentação das forças populares e dos partidos de esquerda e a inclinação de Jango
para a linha nacionalista é o que aparentemente teria gerado o Golpe Militar, dando início a uma
reação das classes dominantes ao governo Goulart. Percebemos que, na segunda interpretação, o
caráter conspiratório do golpe fica mais explícito, e o autor já aponta causas do golpe que não
estariam ligadas de forma direta à ação individual de João Goulart.
Nos quatro livros didáticos das autoras Kátia Correa Peixoto Alves e Regina Célia de
Moura Gomide Belisário com os quais trabalhamos (1990, 1991, 1994 e 1999), algumas
mudanças de interpretação são visíveis. Em três deles, João Goulart teria sido o culpado pelo
Golpe Militar: seu projeto nacionalista e as reformas de base que foram propostas nos comícios
realizados em 1964 teriam sido as causas principais do golpe. A renúncia do ministro Tancredo
10 Para uma síntese das interpretações a respeito do Golpe de 1964, ver, dentre outros, FICO (2004).
74
Neves também aparece como umas das “origens” do golpe. A surpresa nas interpretações
realizadas por essas autoras aparece na obra Nas Trilhas da História, de 1999, na qual a causa
central do golpe passa a ser a política desenvolvimentista da década de 1950.
Outra causa comumente atribuída ao Golpe de 1964 é o populismo de Jango, que aparece
nos livros de Cláudio Vicentino e Vanise Ribeiro.
Nos três livros didáticos do autor Cláudio Vicentino (1994, 1995 e 2005) que analisamos,
não identificamos mudança de interpretação de um livro para outro: em todos eles, o Golpe é uma
conseqüência do populismo janguista.
Analisamos quatro livros de Vanise Ribeiro (1993, 1996, 1999a, 1999b). Nos dois livros
dos quais Carla Anastasia é co-autora, ambos destinados ao ensino fundamental, apontam-se
como causas do Golpe de 1964: as reformas de base de João Goulart; o Comício de 13 de março
realizado na Central do Brasil no Estado da Guanabara, organizado pelo Comando Geral dos
Trabalhadores – CGT – e pela Assessoria Sindical do presidente; o apoio do presidente à Revolta
dos Marinheiros que eclodiu em 25 de março; a escolha de um novo ministro da Guerra e a
anistia dos marinheiros revoltosos que haviam sido presos durante a revolta. Nos livros cuja co-
autoria é diferente a mudança de interpretação é nítida. No de 1993, o Golpe de 1964 é
apresentado como um adiamento de um golpe planejado em 1961 pelos militares e por grupos
conservadores. Entretanto, em 1999, as causas apontadas para o golpe são a crise do governo
Goulart e a não-aceitação do governo de Jango pelos golpistas.
Outra causa recorrente apontada para o Golpe de 1964 são os conflitos entre a esquerda e
a direita no período. Esse é o tom explicativo, por exemplo, de um autor de livros didáticos que é
referência para os professores: Gilberto Cotrim.
Trabalhamos com oito de seus livros didáticos (1995, 1996, 1997, 1998, 1999, 2000,
2002, 2004). Nas análises realizadas em todos eles, percebemos que não houve mudança alguma
75
na interpretação realizada acerca do Golpe de 1964. Em todos, afirma-se que a política
nacionalista e reformista de Goulart, a agitação política e social na qual o país se encontrava
naquele momento, bem como a radicalização das posições dos grupos de esquerda e de direita é
que teriam causado o golpe. É uma das poucas permanências editoriais, de cerca de dez anos.
Nos livros de Nelson Piletti encontramos ainda duas outras “imagens” para explicar o
Golpe de 1964 didaticamente.
Nos livros cujo co-autor é José Jobson Arruda (1995 e 1997), as causas apresentadas para
o Golpe são: a redução de investimentos na década de 60; a crise do Estado populista (ela
reaparece aqui), que atingiria seu apogeu no governo Goulart; o medo da burguesia, que,
ameaçada em seus interesses econômicos, teria se voltado contra o governo; uma conspiração
interna com o apoio dos Estados Unidos da América; as medidas tomadas por Jango durante seu
governo; e o desrespeito à hierarquia militar. Ao contrapormos essa interpretação à apresentada
por Arruda muitos anos antes (1977), em livro que assinava sozinho, percebemos a significativa
semelhança entre as duas abordagens.
Nos livros de Nelson Piletti cujo co-autor é Claudino Piletti (1991b e 2000) as imagens
apresentadas para explicar o Golpe de 1964 são outras. Tal como em Cotrim (cujos livros
analisados são posteriores a esse dos Piletti), o Golpe de 1964 teria sido um adiamento do golpe
que havia sido planejado em 1961, o qual intentava impedir a posse de João Goulart após a
renúncia de Jânio Quadros.
Nos livros de Nelson Piletti sem co-autoria, (1982, 1991a, 1993 e 1996), as causas
apontadas estariam bem próximas das apontadas nos títulos de co-autoria com José Jobson
Arruda: teriam sido as medidas tomadas por Jango durante seu governo (convocação do
plebiscito, estabelecimento do monopólio estatal sobre a importação de petróleo e seus derivados,
regulamentação das remessas de lucro ao exterior, assinatura de decretos que nacionalizavam
76
refinarias e desapropriavam terras para a realização da reforma agrária), e o apoio de Jango ao
desrespeito à disciplina militar.
Na análise que realizamos acerca do Golpe de 1964, percebemos que as abordagens
realizadas, muitas vezes, se concentram nas figuras de Jânio Quadros e João Goulart. Assim, um
acontecimento extremamente complexo e rico de atores acaba se fechando, dada sua
personificação.
É interessante observar que, de acordo com as narrativas dos livros didáticos analisados, o
Golpe de 1964, muitas vezes, é visto como acontecimento fruto das contingências imediatas. De
maneira geral, percebe-se a predominância do tempo curto sobre todas as outras possibilidades de
explicação e compreensão11. A interpretação dos livros aponta a inabilidade de João Goulart no
governo e a imprevisibilidade de Jânio Quadros como “origens” do golpe. Há inclusive boa dose
de determinismo. Dado o caráter dos atores, o Golpe era inevitável. As possibilidades perdidas
não são nem mencionadas12. A presença de civis e o papel desempenhado pelos militares na
tomada do poder não costuma ser problematizada, sendo, muitas vezes, apenas citadas
rapidamente pelos autores dos livros didáticos.
De algum modo, a pluralidade de explicações, às vezes de um mesmo autor, em obras
diferentes nos mostra também que, na escrita histórica do tempo presente, muitas vezes, há certa
autonomia dos autores dos livros didáticos em relação à produção historiográfica. Nesse sentido,
a reescrita da história é modificada também a partir do projeto editorial das coleções, das
parcerias estabelecidas no ato da escrita da história, da demanda social escolar e das posições
teóricas dos autores, algumas mais flexíveis que outras. Ao que parece, há, ainda, uma importante
“dimensão subjetiva” na escritura do livro didático que passa mais pelas convicções individuais,
11 Para uma análise das possibilidades temporais de interpretação do Golpe de 1964, ver DELGADO (2004). 12 Para uma análise das possibilidades perdidas no pré-1964, ver, dentre outros, FIGUEIREDO (1993) e FIGUEIREDO (2004).
77
ligadas provavelmente à experiência histórica do acontecimento, por parte dos autores e/ou
parceiros.
4. REESCRITA DA HISTÓRIA, LIVROS DIDÁTICOS E MEMÓRIA: EM BUSCA DE UMA
MEMÓRIA JUSTA
Os livros didáticos com os quais trabalhamos nesse texto desempenham, a nosso ver, o
papel de conservação e recriação da memória, ao escreverem e reescreverem continuamente a
história de acontecimentos como a Ditadura Militar. Como produtos culturais e como
instrumentos pedagógicos, os livros didáticos se tornaram guardiões e construtores da memória
(histórica?) e do saber histórico escolar. É através de suas narrativas – que conservam,
realimentam e criam a memória – que os estudantes de história podem aprender algo sobre as
coisas passadas, abraçar as coisas presentes e contemplar as futuras.
Os livros, ao criarem interpretações que serão muito veiculadas na sociedade, tornam-se
também atores históricos que interpretaram e representaram o passado, contribuindo para a
construção de uma “memória do fato”. Essas narrativas, por construírem os significados do
acontecimento no tempo, são também parte do próprio evento. Ou seja, o papel determinante das
ações de Jânio e Jango para o golpe e/ou de uma arte engajada na resistência à Ditadura Militar
passam a ser fatos componentes mesmo desse evento traumático na memória coletiva e individual,
uma vez que figuram nos livros didáticos de história.
Tanto a escrita da história dos livros didáticos quanto um olhar preconceituoso a respeito
desse tipo de impresso, são “filhos” de uma naturalização de um modelo de escrita da história
sobre o passado. Nesse sentido, o desafio para os autores dos livros didáticos é próximo do que se
78
apresenta para os historiadores contemporâneos, a saber: “a narrativa produzida pelo historiador
não pode mais ser vista como desveladora de um real pré-existente e de sua verdade implícita,
mas como parte de um complicado processo de elaboração e significação desse real a ser
partilhado” (GUIMARÃES, 2003: 92).
Percebemos que ainda é importante uma crítica sistemática, sem preconceitos, em relação
à escrita da produção didática. O ensino de história, via livro didático, poderia contribuir para
pensar um acontecimento sem necessariamente estabelecer uma relação de causa e conseqüência,
ou mesmo dar-lhe um sentido unívoco, através da apreensão das complexidades envolvidas. O
estudo da complexa relação entre memória e história, e especificamente entre dever de memória e
trabalho de memória pode, assim, ajudar-nos a pensar novas formas de ação.
Nesse sentido, cabe refletir de forma um pouco mais cuidadosa sobre essas noções que
orientam nossas reflexões. Para Maurice Halbwachs (1990), a memória coletiva sempre se
escreve no presente. É a reconstrução da história passada no tempo presente que permite, através
de um jogo de lembranças e esquecimentos, estabelecer uma identidade coletiva, exaltando,
muitas vezes com sensibilidade e emoção, elementos comuns a seus membros. Ela é, assim, uma
reconstrução subjetiva e concreta, ao contrário da reconstrução histórica que visa à universalidade
e à abstração, através do esforço de imparcialidade do historiador. O historiador interrogará o
passado a partir dos problemas que ele quer “resolver”, destacando conflitos, diferenças e
possibilidades. A história-saber, ou disciplina, pode se distinguir da memória por ter como base
certos processos e técnicas para explorar suas fontes e pela existência de um corpo de pares que
julgam o trabalho dos seus respectivos colegas (LE GOFF, 1996). De qualquer maneira, cabe
perguntar até que ponto essas distinções radicais nos auxiliam a ver a complexidade dos
processos de representação do passado no presente. No limite essas distinções podem levar a
pensar que a história só começa quando a memória termina.
79
O autor destaca que a história oferece esquemas de mediação entre os pólos da memória
individual e coletiva. Ricoeur discorda de Halbwachs pois acredita que não haja somente um
tempo individual e outro coletivo, mas que há um terceiro tempo, um tempo histórico que a que
exige um entrecruzamento da memória individual e da coletiva. Paul Ricoeur ainda coloca em
suspeita a idéia de uma memória que seja histórica, pois para ele a história pode, assim, ampliar,
completar, corrigir, e até mesmo recusar o testemunho da memória sobre o passado, mas não
pode aboli-lo. A operação historiográfica realiza uma dupla redução da experiência viva da
memória e da especulação multimilenar sobre a ordem do tempo. O filósofo destaca que esse
conhecimento é baseado no tripé rastro, documento e pergunta. Nessa direção o historiador e o
professor de história como cidadão e ator da história que se faz, “inclui, em sua motivação de
artesão da história, sua própria relação com o futuro da cidade” (p. 505). Há, pois, um privilégio
da história, através da narrativa, em escutar, criticar, corrigir e desmentir a memória coletiva de
uma dada comunidade. “É sobre o caminho da crítica histórica que a memória reencontra o
sentido da justiça” (p. 650).
Jeanne-Marie Gagnebin na mesma direção afirma que a idéia de dever de memória pode
cair na ineficácia dos bons sentimentos (2006, p. 54). Como um antídoto a autora recupera o
conceito benjaminiano de rememoração, isto é, a memória ativa que transforma o presente. A
fidelidade ao passado não pode ser um fim em si. A preocupação, presente nos livros analisados
em nosso trabalho, com a verdade do passado deve ser acrescida da busca de um presente que
possa ser também verdadeiro. No entanto, a autora destaca que o holocausto não pode ser
esquecido. Acontecimentos traumáticos como o Holocausto e a Ditadura Militar nos impõem
inevitavelmente um dever de memória.
Ricoeur nos adverte, desse modo, que é necessário propor uma política da memória
equilibrada, pois o que se vê hoje é um espetáculo inquietante que nos apresenta de um lado o
80
excesso de memória e por outro lado há um excesso de esquecimento. Como não se tem nada
melhor do que a memória para se assegurar de que alguma coisa ocorreu no passado o filósofo
em questão distingue que a ambição da memória seria a fidelidade, enquanto que a ambição da
história seria a verdade, não havendo entre essas duas ambições uma verdade sem fidelidade e
uma fidelidade sem verdade. Há certas situações que há um maior entrecruzamento entre história
e memória como no caso específico da Arte Engajada e do Golpe de 1964 representados e
analisados pelos livros didáticos de história.
O autor em questão mostra que há, de fato, certas dificuldades em relação à perspectiva temporal
curta, uma vez que o historiador escreve com a sua memória e a de outros em presença.13 Há
existência de vivos no momento da exploração dos documentos. Essa história questionaria o
adágio: “em história tratamos quase exclusivamente de mortos de outrora”14. Neste sentido, a
história do tempo presente precisa delimitar um fim, para que haja os mortos. Mesmo que o
presente seja entendido como sendo um período flexível no qual há lembranças de vivos, é
necessário um sentido de fim, de uma data de término para se instaurar um corte entre o passado
e o presente, pois, para o filósofo em questão, não existiria história até os dias atuais. Sem esse
corte, não seria possível delimitar o lugar dos mortos, a fim de liberar o lugar dos vivos. Mesmo
com ele, aliás, os lugares ainda podem ser confundidos15.
Para o autor de A memória, a história e o esquecimento o distanciamento entre história e
memória se aprofunda na fase explicativa, em que é explorada a questão Por quê? O
conhecimento histórico tenta fazer a articulação entre os eventos, estruturas e conjunturas,
distribuição dos objetos pertinentes da história sobre múltiplos planos econômico, social, político,
cultural, religioso. Afirma Ricoeur que “a história não é somente mais vasta que a memória, mas
13 RICOEUR. Écrire L’Histoire du Temps Present, 1991, p.35-42. 14 RICOEUR. Le Débat, 2002, p. 59. Ver, também, RICOEUR. La mémoire, l’histoire, l’oublie, 2000, p. 441. 15 RICOEUR. Le Débat, 2002, p. 59-61.
81
também seu tempo é folheado” (RICOEUR, 2000, p.647). Tendo em vista as questões discutas o
filósofo afirma que esta competição não pode ser decidida somente no plano epistemológico. A
problemática do perdão atravessa a memória, a história e o esquecimento como horizonte
escatológico de uma memória feliz. Mas, o autor adverte que a Shoah, por exemplo, é um
obstáculo ao testemunho, à explicação, ao julgamento e ao perdão, fazendo vacilar o
empreendimento historiográfico. Se o testemunho só é compreendido se ele reencontra a
capacidade ordinária de compreensão, como iríamos compreender, explicar, aceitar
acontecimentos horrendos sofridos pela humanidade? Assim, são estes acontecimentos difíceis a
explicar que colocam à prova a nossa capacidade de escuta e de compreensão. Aqui, pois, está em
jogo a memória que impede explicações e representações pelos traumas causados pelos
acontecimentos.
Para que haja algum tipo de reconciliação do presente para com o passado é preciso o
trabalho, o labor, um retoque ou conserto, uma recomposição. O importante é trabalhar, laborar,
elaborar, atuar de maneira dinâmica com a co-laboração. Assim o trabalho de rememoração se
coloca contra a compulsão de repetição. Os livros didáticos analisados, de diversas formas,
contribuem, até mesmo quando distorcem o passado, para esse difícil exercício de rememoração
desse passado terrível e recente da história do Brasil.
A partir das reflexões desse filósofo, compreendemos a memória como a presença do
ausente, como uma ponte essencial de ligação entre o passado e o presente. É por essa razão que
a memória deve ser considerada como matriz da história, pois ela é a guardiã da relação
representativa do presente ao passado16. Refletir sobre a memória, tanto individual como coletiva,
é uma forma de contribuir para que ela não reste fossilizada diante da compulsão presentista por
repetição (podendo abrir-se em direção à memória do outro), e nem se perca diante de uma
16 Ibidem.
82
história teleológica17. As reflexões de Ricoeur nos lembram da função da dívida ética da história
em relação ao passado. O autor defende a noção de horizonte, inserindo o perdão como uma
utopia que tem uma função libertadora. Portanto, Ricoeur entende o dever e o trabalho de
memória como dívidas das gerações presentes com o passado. Entendemos, assim, que é
fundamental pensar criticamente e conscientemente sobre relação entre o dever e trabalho de
memória no ensino de história a fim de que o mesmo possa ser uma importante fonte de ética de
responsabilidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pode parecer desnecessário voltar a essa discussão – sobre história e memória, saber
histórico e saber histórico escolar – que ocupa pesquisadores da área de ensino de História há
algum tempo. Entretanto, acreditamos que nossa pesquisa pode trazer quatro conclusões que são
contribuições para o debate.
Primeiro, ela aponta para o fato de que o cuidado com a pesquisa histórica na redação de
textos didáticos – que vem sendo grande, sobretudo em tempos de PNLD – parece diminuir
quando se trata de abordagens didáticas relativas à história do tempo presente. Os livros didáticos
parecem ceder, neste caso, à tentação da memória em detrimento da história.
Segundo, no caso específico da Ditadura Militar, que foi analisado, há também uma
questão que diz respeito ao “acontecimento traumático”. A operação do dever de memória torna-
se, ao que parece, mais incisiva, visto que se pretende fazer justiça àqueles que não teriam
aceitado passivamente o arbítrio. Mas isto dá direção maniqueísta e gera repetição de uma
17 DOSSE. Ricoeur, 2004.
83
memória dos “não-vencidos” nos livros didáticos, o que pode impedir a apreensão da
complexidade do processo histórico.
Terceiro, a confiança na memória de quem escreve os livros combinada ao intuito de
cumprir o dever de memória, pode criar heróis e vilões, bem como ações para eles, que não
correspondem aos fatos realmente ocorridos no passado. A pesquisa histórica sistemática sobre o
tempo presente pode levar a considerar não apenas resistência ou legitimação, mas a dinâmica
dos jogos de aceitação, resistência e dominação implicados na relação Estado/sociedade na
Ditadura Militar.
Finalmente, o excesso do dever de memória nos livros didáticos no que se refere à
Ditadura Militar pode impedir que o ensino de história contribua para a realização de
reconciliação crítica do presente com o passado, o que poderia contribuir para evitar “repetições”
de acontecimentos e processos históricos.
Segundo Ricoeur, tal reconciliação crítica se faz por meio da combinação do dever de
memória com o trabalho de memória. Não se trata, portanto, de apenas fazer justiça ao que se
passou, trazendo à lembrança o que teria sido silenciado, esquecido ou reprimido. Talvez uma das
funções do ensino de história e da historiografia seja exatamente a de “corrigir” a memória e seus
abusos, inclusive problematizando os livros didáticos. Ou seja, nem lembrar Chico Buarque como
um herói de resistência à Ditadura e Jango como o culpado pelo Golpe de 1964, nem esquecer o
caráter engajado da produção de Chico ou o traço “populista” de Jango. Trata-se, sim, de
caminhar em direção a uma memória justa, que possibilite ao presente ter a justa medida da
complexidade das relações que se construíram no passado18.
18 Sobre esse tema, ver ABEL et. alli. (2006) e BAUSSANT (2006).
84
Se a história pode contribuir para o difícil exercício de reconciliação crítica com o
passado, em direção à transformações no presente, o ensino de história desempenha aí um papel
fundamental. Ele pode ser o lugar de compartilhar as experiências diversas – do bom e do ruim,
da ação e da omissão – que permita construir outros presentes a partir da compreensão do
passado. A busca de compreender o passado em sua complexidade deveria superar o excesso de
lembrança/esquecimento, bem como a tentação de atribuir culpa a um ou outro sujeito. Assim,
cremos, o ensino poderia contribuir para a superação de uma história puramente traumática, a fim
de se caminhar em direção a outros horizontes. Não se trata de aceitar e/ou perdoar o inaceitável
e/ou imperdoável, mas sim de que o ensino de história possa contribuir para se refletir sobre
acontecimentos traumáticos de outrora a fim de que nada semelhante possa voltar a ocorrer. A
esse respeito é impossível não recordar da afirmação de Adorno que uma das exigências da
educação contemporânea é a exigência que Auschwitz não se repita e nem nada semelhante (Ver,
Gagnebin, 2006). No caso brasileiro, poderíamos afirmar o mesmo a respeito da Ditadura Militar
(1964-1985). Afinal, “a história demarca os limites para um futuro possível e distinto, sem que
com isso possa renunciar às condições estruturais associadas a uma possível repetição dos
eventos” (Koselleck, 2006, p. 145).
A combinação de dever e trabalho de memória no ensino de história pode ser um
instrumento de “reconciliação justa” com o passado, a fim de iluminar o presente e o futuro.
Debater sobre essas questões poderia, assim, a nosso ver, contribuir para que as promessas não
85
cumpridas no passado possam desabrochar, a partir da ação e da esperança, em nosso próprio
tempo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Fontes
ALENCAR, Álvaro Duarte de. História do Brasil: Evolução econômica, política e social. 5ª ed. São Paulo: Saraiva. 1983.
______. História do Brasil: Evolução econômica, política e social. 10ª ed. São Paulo: Saraiva. 1985.
ALENCAR, Francisco; CARPI, Lucia; RIBEIRO, Marcus Venicio T. História da Sociedade Brasileira. Rio de Janeiro: Ao livro Técnico. 1985.
ALVES, Kátia Corrêa Peixoto; BELISÁRIO, Regina Célia de Moura Gomide. História . Ensino
Fundamental – Volume 4. 2ª ed. Belo Horizonte: Vigília. 1990.
______. História . Ensino Fundamental – Volume 4. Nova edição ampliada. Belo Horizonte:
Vigília. 1991.
______. História : Os Rumos da Humanidade. 8ª série. Belo Horizonte: Vigília. 1994.
86
______. Nas Trilhas da História . Ensino Fundamental. Belo Horizonte: Dimensão. vol.4. 1999.
BERUTTI, Flávio. História : Tempo e Espaço. 8ª série. Belo Horizonte: Formato Editorial. 2002.
CAMPOS, Raymundo. História do Brasil. Ensino Médio. São Paulo: Atual. 1983.
______. História do Brasil. Ensino Fundamental – volume 2. São Paulo: Atual. 1991.
CASTRO, Julierme de Abreu e.. História do Brasil: para estudos sociais. 6ª série. São Paulo: IBEP. 1981
COSTA, Luís César Amad; MELLO Leonel Itausiu A. História do Brasil. 2ª ed. São Paulo. Editora Scipione, Ensino Médio. 1991.
______. História do Brasil. São Paulo: Scipione. Ensino Médio. 1999.
COTRIM, Gilberto. História e Consciência do Brasil. Ensino Médio. 2ª ed. São Paulo: Saraiva. 1995.
______. História e reflexão. Ensino Fundamental – Volume 4. São Paulo: Saraiva. 1996.
______. História Global : Brasil e Geral. Ensino Médio – Volume Único. São Paulo: Saraiva. 1997.
87
______. História Global: Brasil e Geral. Ensino Médio – Volume Único. 2ª ed. São Paulo: Saraiva. 1998.
______. História Global: Brasil e Geral. Ensino Médio – Volume Único. 5ª ed. São Paulo: Saraiva. 1999.
______. Saber e Fazer História: História Geral e do Brasil. 8ª série. São Paulo: Saraiva. 2000.
______. História : Brasil e Geral. Ensino Médio – Volume Único. São Paulo: Saraiva. 2002.
______. Saber e Fazer História: História Geral e do Brasil. Mundo Contemporâneo e Brasil
República. 8ª série. 3ª ed. São Paulo: Saraiva. 2004.
DARÓS, Vital. Lições de História do Brasil: Império e Republica. 6ª série São Paulo: FTD. 1981.
DREGUER, Ricardo; TOLEDO, ELIETE. História : Cotidiano e Mentalidade. Da hegemonia burguesa à era das incertezas: séculos XIX e XX. 2ª ed. São Paulo: Atual. 8ª série. Ensino Fundamental. 2000.
FARIA, Ricardo de Moura; MARQUES, Adhemar Martins. Síntese do Brasil II Belo Horizonte: Lê. 1981.
FERREIRA, José Roberto Martins. História . São Paulo: FTD. s/d.
______. História . São Paulo: FTD. 8ª série. Livro do Professor. 1990.
88
______. História . São Paulo: FTD. 1997.
FERREIRA, Olavo Leonel. História do Brasil. 17ª ed. São Paulo: Ática. 1995.
FILHO, Milton Benedicto Barbosa; STOCKLER, Maria Luiza Santiago. História do Brasil do Império à Republica. 7ª ed. São Paulo: Scipione. 1993.
GOMES, Paulo Miranda; MOURA, Nelson de; GONZÁLEZ, Maide Inah. História Geral da Civilização Brasileira. vol. 02. Belo Horizonte: Editora Lê. s/d .
HERMIDA, Borges. História do Brasil. 6ª série São Paulo: Cia Editora Nacional. s/d.
KOSHIBA, Luiz. História do Brasil. Ensino médio. 6ª ed. São Paulo: Atual. 1993.
MARANHÃO, Ricardo; ANTUNES, Maria Fernanda. Trabalho e Civilização: Uma História Global. O Mundo Contemporâneo (do século XIX aos dias atuais). Volume 4. São Paulo: Editora Moderna. Ensino Fundamental. 1999.
MARQUES, Adhemar; BERUTTI, Flávio; FARIA, Ricardo. História : Os Caminhos do Homem. Belo Horizonte: Editora Lê. V. 4, 1º grau. 1991.
______. História : Os Caminhos do Homem. Belo Horizonte: Editora Lê. V. 4, 1º grau. 1993.
MOCELLIN, Renato. Brasil: para compreender a História. Curitiba: Nova Didática. 2004.
89
MONTELLATO, Andrea; CABRINI, Conceição; CATELLI JÚNIOR, Roberto. História Temática. O mundo dos cidadãos. 8ª série. São Paulo: Scipione. 2000.
MOTA, Myriam Becho; BRAICK, Patrícia Ramos. História das Cavernas ao Terceiro Milênio . São Paulo: Editora Moderna. Ensino Médio. 1997.
NADAI, Elza; NEVES, Joana. Da Colônia à Republica. 7ª ed. São Paulo: Editora Saraiva. 1985.
______. História do Brasil 2: Brasil Independente. São Paulo: Saraiva. 1985.
______. História do Brasil: da Colônia a Republica. 9ª ed. São Paulo: Saraiva. 1986.
______. História do Brasil. 18ª ed. 2° grau. São Paulo: Editora Saraiva. 1996.
ORDONEZ, Marlene. História do Brasil. 6ª série. São Paulo: IBEP. 1975.
PILETTI, Nelson. História do Brasil. Ensino Médio e vestibulares. São Paulo: Ática. 1982.
______. História e Vida: Brasil da independência aos dias atuais. 2ª ed. São Paulo. Editora Ática, vol.2. 1990.
______. História do Brasil: Da Pré-História do Brasil aos Dias Atuais. 13ª ed. São Paulo: Ática. 1991.
______. História do Brasil: Da Pré-História do Brasil aos Dias Atuais. 15ª ed. São Paulo: Ática. 1993.
90
______. História do Brasil: Da Pré-História do Brasil aos Dias Atuais. Ensino Médio. 18ª ed. São Paulo: Ática. 1996.
PILETTI, Nelson; ARRUDA, José Jobson de A.. Toda a História: Historia Geral e Historia do Brasil. 3ª ed. Ensino Médio. São Paulo: Ática. 1995.
______. Toda a História: Historia Geral e Historia do Brasil. 7ª ed. Ensino Médio. São Paulo: Ática. 1997.
PILETTI, Nelson; PILETTI, Claudino. História e Vida. 8ª série. 2ª ed. São Paulo: Ática. 1991.
______. História e Vida. 8ª série. 2ª ed. São Paulo: Ática. 1997.
PILETTI, Nelson; PILETTI, Claudino. História e Vida. 8ª série. 3ª ed. São Paulo: Ática. 2000.
______. História e Vida Integrada. 8ª série. São Paulo: Ática. 2002.
RAMOS, Luciano. História do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional. 6ª série. s/d.
REZENDE, Antonio Paulo; DIDIER, Maria Thereza. Rumos da História: Nossos Tempos. O Brasil e o Mundo Contemporâneo. Volume 3. São Paulo: Atual. 2° grau. 1996.
RIBEIRO, Vanise; VALADARES, Virgínia Trindade; MARTINS, Sebastião. História : Assim Caminha a Humanidade. 8ª série. Belo Horizonte: Editora do Brasil. 1993.
RIBEIRO, Vanise. Brasil: Encontros com a história. São Paulo: Editora Brasil. vol. 4. 1994.
91
RIBEIRO, Vanise; ANASTASIA, Carla. Brasil: Encontros com a História. Ensino Fundamental. São Paulo: Editora do Brasil. vol. 4. 1996.
______. Brasil: Encontros com a História. Ensino Fundamental. São Paulo: Editora do Brasil, vol. 4. 1999.
RIBEIRO, Vanise; TRINDADE, Virginia; MARTINS, Sebastião. História : Assim Caminha a Humanidade. São Paulo: Editora do Brasil. vol.4. 1999.
RODRIGUE, Joelza Ester. História em Documento: Imagem e Texto. 2º edição. São Paulo: FTD. 8ª série. Manual do Professor. 2000.
______. História em Documento: Imagem e Texto. 2º edição. São Paulo: FTD. 8ª série. Manual do Professor. 2002.
SANTOS, Maria Januaria Vilela. História do Brasil. 6ª série. 16 ed. São Paulo: Ática. 1984.
SCHMIDT, Mario. Nova História Crítica do Brasil. 2º grau. 3º ed. São Paulo. Nova Geração. 1994.
______. História Crítica do Brasil . 2º grau. São Paulo: Nova Geração. 1998.
TEIXEIRA, Francisco M.P. História do Brasil. 6ª série São Paulo: Editora Ática. 1980.
Livros, capítulos, artigos
92
ABEL O., CASTELLI-GATTINARA E., LORIGA S. et ULLERN-WEITE I. (orgs.). La juste mémoire, Lectures autour de Paul Ricœur. Genebra: Labor et Fides. 2006.
BATISTA, Antônio Augusto Gomes. Textos, Impressões e Livros Didáticos. In: CAMPELLO, B. S.; CALDEIRA, P. da T. & MACEDO, V. A. A.. Formas e Expressões do Conhecimento: introdução às fontes de informação. Belo Horizonte: Escola de Biblioteconomia da UFMG. 1998.
BAUSSANT, Michèle (org.). Du vrai au juste. La mémoire, l'histoire et l'oubli. Québec, Presses de l’Université Laval. 2006.
BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez. 2004.
______. Identidade nacional e ensino de história do Brasil. In: KARNAL, Leandro (org.). História na sala de aula: conceitos, práticas e propostas. São Paulo: Contexto. 2003.
______. O livro didático não é mais aquele. Nova História. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, dez. 2003.
______. Práticas de Leitura em livros didáticos. Revista da Faculdade de Educação, São Paulo, 22(1): 89-110, jan./jun. 1996.
BOSI, Alfredo. O Tempo e os tempos. In: NOVAES, Adauto (org.). Tempo e História. São Paulo: Companhia das Letras: Secretaria Municipal da Cultura. 2006.
CARRETERO, Mario; ROSA, Alberto; GONZÁLEZ, Maria Fernanda et. alli. Ensino da história e memória coletiva. Porto Alegre: ArtMed. 2007.
CERTEAU, Michel. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária. 1982.
93
______. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes. 1994.
CHARTIER, Roger (Org.). Práticas da Leitura. São Paulo: Editora Estação Liberdade. 1996.
CHAUVEAU, A.; TÉTARD, P. H. (orgs.). Questões sobre a história do presente. São Paulo: EDUSC. 1999.
CHERVEL, André. História das disciplinas escolares: reflexões sobre um campo de pesquisa, Teoria e Educação, Porto Alegre, nº 2. 1990.
CITRON, Suzanne. Ensinar história hoje: a memória perdida e reencontrada. Lisboa: Livros Horizontes. 1990.
COSTA, Ângela Maria Soares da. Prática Pedagógica: o uso do livro didático no ensino de história. In: ENCONTROS E PERSPECTIVAS DO ENSINO DE HISTÓRIA, 3.,1999, Curitiba. Curitiba: Aos Quatro Ventos. 1999.
DELACROIX, Christian; DOSSE, François; GARCIA, Patrick. Les courants historiques en France. Paris: A. Colin. 1999.
DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. 1964: temporalidade e interpretações. In: REIS, Daniel Aarão Reis, RIDENTE, Marcelo e SÁ MOTTA, Rodrigo Patto. O golpe e a ditadura militar: 40 anos depois (1964-2004). São Paulo: Edusc. 2004.
DOSSE, François. História e Ciências Sociais. São Paulo: EDUSC. 2004.
94
______. O Império dos Sentidos: a humanização das Ciências Humanas. São Paulo: EDUSC. 2003.
DUTRA, Eliana de Freitas; CAPELATO, M. H. Representação Política. O reconhecimento de um conceito na historiografia brasileira. In: Ciro Flamarion; Jurandir Mallerba. (Org.). O Conceito de Representação – Perspectivas Interdisciplinares. Campinas: Papirus. 2000.
FERREIRA, M. M. História do Tempo Presente: Desafios. Cultura Vozes, Petrópolis, v. 3, p. 111-124. 2000.
FICO, Carlos.. Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. Revista Brasileira de História . São Paulo, vol.24, n. 47. Disponível em: http://www.scielo.br. Acessado em: 11/10/2005. 2004
FIGUEIREDO, Argelina Cheibub. Democracia ou Reformas? Alternativas democráticas à crise política: 1961-1964. São Paulo: Paz e Terra. 1993.
______. Estruturas e escolhas: era o golpe de 1964 inevitável? In: 1964-2004: 40 anos do golpe. Ditadura Militar e Resistência no Brasil. Rio de Janeiro: 7 letras. 2004.
GAGNEBIN, Jeanne-Marie. Lembrar, Escrever, Esquecer. São Paulo: Ed. 34. 2006.
GASPARELLO, Arlete Medeiros. Construtores de identidades: a pedagogia da nação nos livros didáticos da escola secundária brasileira. São Paulo: Iglu. 2004.
GUIMARÃES, Manuel L. L. S. Memória, história e historiografia. In: BITTENCOURT, José Neves; BENCHETRIT, Sara Fassa; TOSTES, Vera Lúcia Bottrel (Orgs.). História representada: o dilema dos museus. Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional. 2003.
95
GUIMARÃES, Manuel L. S. Nação e civilização dos trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico e o Projeto de uma História Nacional. Estudos Históricos. Caminhos da historiografia - nº 1. 1988/1
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice. 1990.
IGLÉSIAS, Francisco. Historiadores do Brasil: capítulos de historiografia brasileira. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira; Belo Horizonte: Ed. UFMG. 2000.
INSTITUT D’HISTOIRE DU TEMPS PRÉSENT (IHTP). Écrire l’histoire du temps présent. Paris: CNRS. 1992.
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio. 2006.
LAJOLO, Marisa. Livro Didático: um (quase) manual de usuário. Em Aberto, Brasília, 16 (69): 3-9, jan./mar. 1996.
LE GOFF, Jacques. História e Memória. 4ª edição. Campinas: Editora da Unicamp. 1996.
MIRANDA, Sonia Regina; LUCA, Tânia Regina de. O livro didático de história hoje: um panorama a partir do PNLD. Revista Brasileira de História. São Paulo, vol. 24, nº. 48. 2004.
MUNAKATA, Kazumi. Histórias que os livros didáticos contam, depois que acabou a ditadura no Brasil. In: FREITAS, Marcos Cezar (org.). Historiografia Brasileira em Perspectiva. 5ª edição. São Paulo: Contexto. 2003.
MUNAKATA, Kazumi.. Livro didático: produção e leituras. In: Abreu, Márcia. (Org.). Leitura, história e história da leitura. 1 ed. Campinas: Mercado de Letras, v. 1. 2000
96
NAPOLITANO, Marcos. A arte engajada e seus públicos. Estudos Históricos, 28, FGV, Rio de Janeiro. 2001.
NAPOLITANO, Marcos. História contremporânea: pensando a estranha história sem fim. In: KARNAL, Leandro (org.). História na sala de aula: conceitos, práticas e propostas. São Paulo: Contexto. 2003.
NAPOLITANO, Marcos. “Seguindo a canção”; engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969). São Paulo: Annablume/Fapesp. 2001.
NOIRIEL, Gérard. Qu’est-ce que l’histoire contemporaine?. Paris: Hachette. 1998.
POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3. (http. //www.cpdoc.fgv/revista/asp/dsp_edicao.asp?cd_edi=15) 1989.
PROST, Antoine. Douze leçons sur l'histoire. Paris: Le Seuil. 1997.
REVEL, Jacques. Microanálise e construção do social. In: ______ (org.). Jogos de escalas. A experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Editora FGV. 1998.
RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Ed. UNICAMP. 2007.
______. Remarques d’un philosophe. Écrire L’Histoire du Temps Present. Paris: Seuil. 1991.
______. La mémoire, l’histoire, l’oubli . Paris: Seuil. 2000.
97
______. Memoire: approches historiennes, approche philosophique. ILe Débat. Paris: Galimard. 2002.
______. O passado tinha um futuro. In: MORIN, Edgar. A Religação dos Saberes: o desafio do século XXI. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. 2005.
RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do PCP à era da TV. Rio de Janeiro: Record. 2000.
SEFFNER, Fernando. Teoria, metodologia e ensino de História. In: GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos et. al. Questões da teoria e metodologia da história. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS. p. 257-288. 2000.
SILVA, Marcos; FONSECA, Selva Guimarães. Ensinar história no século XXI; em busca do tempo entendido. Campinas: Papirus. 2007.
SIMAN, L. M. C. Representações e memórias sociais compartilhadas: desafios para os processos de ensino e aprendizagem da História. Cadernos CEDES, São Paulo, v. 25, n. 67, p. 348-364. 2005.
SOUZA, Miliandre. Do teatro militante à música engajada; a experiência do CPC da UNE (1958-1964). São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo. (Coleção História do Povo Brasileiro). 2007.
VESENTINI, Carlos A. A teia do fato: uma proposta de estudo sobre a memória histórica. São Paulo: HUCITEC/USP. 1997.
______. Escola e livro didático de História. In: SILVA, Marcos (org.). Repensando a história. Rio de Janeiro: Marco Zero: ANPUH. 1984.
98
VILLALTA, Luiz Carlos. O Livro Didático de História no Brasil: perspectivas de abordagem. Revista Pós-História – Revista do Programa de Pós-graduação em História da Unesp-Assis, Assis (9): 39-69. 2001.
VILLAÇA, Mariana Martins. Polifonia tropical; experimentalismo e engajamento na música popular (Brasil e Cuba, 1967-1972). São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP. 2004.
VINCENT, Gérard. Ser comunista? Uma maneira de ser. In: PROST, Antoine; VINCENT, Gérard (org.). História da Vida Privada; Da Primeira Guerra a nossos dias; vol. 5. São Paulo: Companhia das Letras. 1992.
99
A teologia política isidoriana
Sergio Alberto Feldman
Resumo: Este artigo visa analisar a concepção isidoriana do poder. O eixo central do mesmo
são as relações de poder entre a Igreja Católica e a monarquia visigótica, tendo como
temporalidade, o período em que Isidoro de Sevilha, liderou o episcopado hispano-visigótico
e serviu de referência a alguns dos monarcas visigodos. As fontes documentais estão
centradas nas obras do bispo hispalense. A percepção da finalidade da História impregna a
visão de mundo isidoriana: o rei é um servidor de Cristo e recebe um officium. Tem uma
função pública que se destina a ordenar e proteger a sociedade dos fiéis e manter os dogmas e
preceitos da fé, encarnados na Igreja, a única e legítima representante de Cristo. Isidoro
concebe nas suas obras um modelo de príncipe, fazendo uso de alguns monarcas exemplares.
Palavras chave: Isidoro de Sevilha, teologia, reino visigótico, modelo monárquico,
concepção de poder
Isidore of Seville’s political theology
Abstract: The objective of this article is to analyze the Isidorian concept of power. Its central
axis are the power relationships between the Catholic Church and the Visigoth monarchy, and
100
the time line would be the period in which Isidore from Seville, led the visigothic-hispanic
episcopate and was used as reference by some of the Visigoth monarchs . Document sources
are centered in the works of the hispalense bishop. The perception of finality in History is
embedded in the Isidorian view of the world: the king is a server of Christ and receives an
officium. He has a public function and the objective is to put order and protect the society of
the faithful as well as to keep and p[reserve the dogmas and precepts of faith in the Church,
the sole legitimate representative of Christ. Isidore, in his works, conceives a model of prince
using some exemplary monarchs.
Key words: Isidore of Seville, theology, Visigothic kingdom, monarchical model, conception
of power.
Isidoro de Sevilha mantém uma unidade de pensamento através de toda a sua obra.
Um olhar detalhado permite perceber que toda a sua obra tenta fazer uma junção entre o saber
clássico e o pensamento eclesiástico tardo antigo objetivando a elevação de espírito de
clérigos e letrados do reino visigótico. Seus motivos são tanto terrenos como espirituais: a
ignorância era um lugar comum na Hispânia visigótica e sem algum patamar mínimo de
saberes e crenças, a Cristandade não poderia evoluir e se projetar como hegemônica, no
espaço peninsular. Urgia elaborar um projeto educativo para clérigos, ordenar e hierarquizar o
poder espiritual e direcionar e submeter a monarquia aos projetos globais da Cristandade.
O projeto global de sociedade, concebido por Isidoro foi resumido, por Fontaine como
tendo como pilares, quatro tópicos principais: “Pátria Gothorum, rex rectus, civitas Dei
peregrinans, e romanitas”. 1 Sua concepção de monarquia se insere neste projeto global, e
1 FONTAINE, Jacques. Isidoro de Sevilla, padre de la cultura européia. In: La conversion de Roma: Cristianismo y paganismo. Madrid, 1990, p. 272. Fortalecer a unidade política, direcionar os reis a serem protetores da Igreja e obedientes a mesma, restaurar e manter alguns dos resquícios dos saberes clássicos. Isso é que veremos através da análise de sua obra.
101
dentro do mesmo deve ser compreendida. Política e religião são inseparáveis e existem para
ordenar a sociedade cristã, na busca de seus ideais e de sua finalidade histórica.
Na sua obra procura construir um modelo de rei cristão ideal e de uma monarquia que
cumpra o seu papel na História, ajudando a aproximar a segunda vinda de Cristo. Com Isidoro
a concepção do monarca cristão, desenvolvida a partir de Constantino, se transforma. Os
monarcas do Baixo Império eram concebidos como defensores da fé e da Igreja católica: sua
proteção e seu respeito pela fé cristã são os pilares da relação entre Imperium e Ecclesia.
Reydellet entende que Isidoro inova ao conceber a realeza não mais como o produto
do direito natural, mas como o governo do povo cristão. 2 Traz como fundamento a reflexão
de Gregório Magno e Agostinho, que enfatizam a noção de função e serviço. 3 O momento
histórico propicia a construção de um modelo renovado de monarca: Isidoro compreende esta
situação e almeja definir uma nova concepção de monarca cristão.
A unidade religiosa que se sucedeu ao III CT (589) e a conversão de Recaredo
propiciou novas condições. Após a conversão do rei e da nobreza visigóticos ao catolicismo,
unificando a classe dominante do reino visigodo, e consumando a aproximação dos invasores
com a nobreza hispano-romana católica de origem senatorial, não tarda a se unificar todo o
território, fato consumado com Suintila. 4
Existem bolsões de paganismo, focos de heresia e comunidades judaicas, mas são
minoritários e por vezes estão em regiões periféricas e isoladas. A unidade se direciona de
maneira favorável aos propósitos da Igreja e da Monarquia.
Os reinados de Liuva II, Viterico e Gundemaro serão uma fase de transição. A
ascensão ao trono de Sisebuto renova em Isidoro a expectativa de diálogo com o monarca.
2 REYDELLET, Marc. La royauté dans la litterature latine de Sidoine Apollinaire à Isidore de Séville. Roma: École Française de Rome, 1981, p. 554-555. Reydellet afirma que a novidade de Isidoro é que este concebe: “[...] la royauté non plus comme le produit du droit naturel mais comme le governement du peuple chrétien en tant que tel”. 3 Id., ibid., loc. cit.. Reydellet sublinha: “L’ accent est mis ainsi sur la notion de fonction et de service”. 4 REYDELLET, Marc. La conception du souverain chez Isidore. In: ISIDORIANA : Estudios sobre Isidoro de Sevilla en el XIV centenario de su nacimiento. Leon: Centro de Estudios S. Isidoro, 1961, p. 457.
102
Sua obra literário-religiosa servirá para nós como fonte de reflexão, pois nela se percebem
suas concepções de religião, mas também de política e poder, alias indissociáveis.
Voltemo-nos neste momento as fontes isidorianas, para captar um ponto inicial de
análise.
Na vasta criação literário-religiosa de Isidoro podemos encontrar inúmeras reflexões
sobre a monarquia, que permitiriam uma análise e uma reflexão mais profunda sobre a visão
do Hispalense sobre a função do monarca cristão. Optamos direcionar nosso foco, apenas a
três destas obras, seguindo as sugestões de Marc Reydellet, pois acreditamos que estas obras
nos ofereçam reflexões que julgamos importantes para construção da concepção isidoriana de
monarquia. 5 Seriam as Etimologias, as Sentenças e as Histórias.
Toda a obra de Isidoro reflete a busca de um “porque” à História, no duplo sentido da
universalidade da Divina Providência e do direito público da tradição romana. 6 Convergem
aqui duas tendências diametralmente opostas: o direito romano e o conceito da presença
divina no processo histórico. Trata-se de uma construção ideológica. Esta visão pode ser
percebida na concepção do monarca, de acordo a Isidoro. Voltemos nosso olhar a uma destas
obras.
A primeira obra é a “Las Historias” ou simplesmente História. 7 Trata-se de uma obra
repleta de detalhes interessantes, formando um recorte ideológico 8 da presença dos visigodos
5 Id., ibid., p.457-458. Delineia as fontes sobre a concepção do soberano cristão em Isidoro, citando as Etimologias, as Sentenças III, e trechos da Historia. Faremos uso destas mesmas fontes mas com uma leitura própria. 6 GARCIA MORENO, Historia de España visigoda. Madrid: Cátedra, 1989, p. 111. Diz que os pensadores hispano-visigodos estavam preocupados em encontrar, “un sentido a la historia contemporánea en el doble plano de la universalidad de la Divina providencia y del derecho publico de la tradición romana […] .bajo el ropaje ideológico del dominio […] de la gens Gothorum, de la nación goda”.(Remontamos o texto) 7 ISIDORO DE SEVILHA. De Origine Gothorum, Historia Wandalorum, Historia Sueborum. In:Cristóbal Rodríguez Alonso (ed.) Las Historias de los godos, vândalos y suevos. León: Centro de Estudios S. Isidoro, 1975. Ao citar esta obra nas referências utilizaremos o nome do autor e a denominação: Las Historias. No corpo do texto usaremos o nome História. 8 TEILLET, Suzanne. Des goths à la nation gothique: les origines de l’idée de nation en Occident du Ve au VIIe
siècle. Paris: Les Belles Letres, 1984. Autora ressalta, no cap. XIII, que no prólogo da sua obra, Isidoro traça o encontro da gloriosa gens Gothorum, com a Espanha, que é descrita como uma mãe fecunda. Tendo desposado antes os romanos, agora desposa a gens Gothorum, numa semelhança nada casual com a cidade de Jerusalém, viúva e abandonada que encontra um novo e vigoroso esposo: o seu Salvador e Redentor. (p. 498)
103
na história do mundo antigo. Isidoro não é um historiador e seu recorte visa transmitir uma
mensagem: todo gesto, todos os exemplos e cada uma das atitudes tomadas pelos personagens
têm a sua razão de ter sido selecionada e descrita na obra. É uma seleção minuciosa de
exemplos do que um monarca deve, e do que um monarca não deve fazer. Tudo em
linguagem alegórica, repleto de “typos” ou figuras simbólicas que se assemelha a uma
interpretação do texto bíblico, por um clérigo. Não é a obra de um historiador, mas sim de
clérigo letrado, conhecedor da sabedoria clássica e que pretende usa-la como o veículo de
uma mensagem cristã. Seus personagens são revestidos das qualidades cristãs ou dos defeitos
que a Patrística, e Isidoro em específico quer ressaltar.
Isidoro traz assim para sua História, um estilo alegórico, de pequenos e simbólicos
textos de suas obras exegéticas, todas elas montadas e ordenadas para um público semi-
letrado, pouco culto e que necessita de uma formação básica para pregar, evangelizar e
expandir as crenças básicas da Cristandade, através de breves textos e modelos morais
elevados. Seria uma seqüência de resumos das vidas de personagens (mini-biografias) em que
se tratava de extrair modelos de vida, ações valores que se queria incutir. 9
A Historia isidoriana inicia-se com a “De laude Spaniae”, um elogio e exaltação da
Espanha, aonde se constrói uma identidade territorial do espaço ibérico. 10 Dentro da visão
isidoriana, a Hispânia, seria uma formosa mãe, fecunda, bela e produtiva sendo por todos
desejada. 11 Tomada pelos romanos, mas viúva dos mesmos é desposada pelos visigodos. Um
simbólico e romântico encontro? Trata-se de uma alegoria que descreve o encontro do povo,
da terra e da unidade político-religiosa almejada pelo autor. Desta maneira Isidoro traça as
raízes deste encontro singular: a Espanha que espera por seu amado, o povo godo. A
9 FELDMAN, Sergio Alberto. Exegese e alegoria: a concepção de mundo isidoriana através do texto bíblico. Revista de História: Dimensões. Vitória (Espírito Santo): v. 17, p. 133 – 149, 2005. 10 ISIDORO DE SEVILHA. Las Historias, op. cit. , p. 168-170. 11 Id., ibid., loc. cit., aonde afirma ser a Espanha mãe de príncipes e povos (principum gentiumque mater Spania); belíssima (pulcherrima); rainha das províncias (regina provinciarum); ornamento do mundo (ornamentum orbis); repleta de qualidades e belezas, que foi tomada e amada (rapit e amavit), pelo glorioso povo (gens) dos godos.
104
construção não é traçada de maneira simples e aleatória: Isidoro busca no longínquo passado
as glórias e as nobres origens da “Gens gothorum”. Volta-se a alegoria bíblica e trata de
enobrecer as origens dos visigodos. Encontra em Magog, filho de Jafet, o ancestral bíblico
para o “povo eleito”. 12
A construção segue por tortuosos caminhos, geralmente sem fundamento em crônicas
e nem em autores clássicos: os godos aparecem na guerra civil entre César e Pompeu, mas do
lado do ultimo fortalecendo a legalidade e a “Respublica”; conflitam com os imperadores do
Baixo Império, entre os quais Constantino. 13
Nem a batalha de Andrinopla ou Adrianópolis é descrita como um desastre romano
(ótica romano-centrista), mas sim uma justificada reação dos godos à violência dos imperiais
e uma vitória dos bons e justos: a descrição da morte do imperador Valente ferido por uma
flecha, sendo em seguida queimado, é um exemplo disto. 14 Na verdade trata-se de uma nova
alegoria isidoriana: na sua versão os primeiros godos que se converteram ao cristianismo se
tornaram católicos, mas Valente enviara um missionário (Ulfilas ou Gulfilas), clérigo ariano
que viria a convertê-los: estes godos arianos teriam ardido no “fogo eterno” por sua opção
ariana. A culpa disto seria de Valente que teria sido punido da mesma maneira, ardendo em
chamas. 15
12 Id., ibid., c. 1, p. 173. Afirma: “Gothorum antiquissimam esse gente, quorum originem quidam de magog Iafeth filio suspicantur a similitudine ultimae syllabae”. Como se pode perceber esta genealogia é traçada apenas com o fundamento da semelhança entre as três últimas letras de Magog, com godos. Uma prova nada convincente, mas uma argumentação que dá um efeito de nobreza e estirpe aos godos. 13 Id., ibid., c. 3-5, p. 175-179. TEILLET, op. cit. , p. 482, diz que a presença de godos na batalha de Farsalia, entre César e Pompeu é um anacronismo, que pode ser uma invenção de Isidoro. Diz: “[...] mention anachronique qui a toute chance d’être une adaptation sinon une invention d’Isidore”. Isidoro não fundamenta e nem cita suas fontes. Constrói sua obra em busca de seus objetivos: exaltar a nobreza do “noivo” godo, diante de sua “noiva” Espanha. 14 Id., ibid., c. 9, p. 187. Diz que o Imperador mereceu ser queimado vivo, pois havia entregue ao fogo eterno almas tão belas. O texto diz: “[...] ut mérito ipse ab eis vivens cremaretur incêndio qui tam pulchras animas ignibus aeternis tradiderat” E qual seria o sentido desta cruel afirmação? Valente é considerado o responsável pelo envio de Ulfilas (Gulfilas), bispo ariano que convertera os godos ao cristianismo ariano, execrado por Isidoro. 15 Id., ibid., loc. cit. V. também TEILLET, op. cit., p. 483. Autora diz que este “clichê” foi passado por Jordanes, à Orósio e a Isidoro. Diz: “[...] ce cliché était également empruté a Orose por Jordanès”.
105
Essa leitura permeia toda a obra: uma construção de situações e análises, em que causa
e efeito, pecado e punição se sucedem. A postura e o valor dos godos são usualmente
louvados: Isidoro exalta sua coragem, seu senso de liberdade e sua aptidão para governar. 16
As suas razões são ideológicas e muito perceptíveis através do texto. Sua revisão da imagem
dos visigodos é clara e intencional. Seu papel da queda do império ocidental é indiscutível e
fundamental. A imagem de barbárie em oposição a romanitas e a civilitas precisava ser
resgatada. Ele executa esta tarefa com afinco e dedicação.
Um exemplo é a descrição da entrada dos godos em Roma com Alarico (410): os
godos protegem e não invadem os lugares sagrados, ou seja, as Igrejas católicas. Não ferem e
nem matam e nem escravizam os que se refugiaram nas Igrejas e tampouco os que clamaram
em nome de Cristo e dos santos. 17 A queda de Roma se revelou um trauma criativo para
Agostinho, vir a escrever sua magna obra “A Cidade de Deus”. Isidoro reinventa o papel dos
visigodos e os redime desta mácula. Trata-se de um povo digno, valoroso e cristão.
Na seqüência são descritos os reinados de reis visigodos. Uma das grandes ironias que
o cronista franco Gregório, bispo de Tours, fazia aos visigodos, era que eram regicidas. 18 Um
hábito, nada elogioso e que não servia para os propósitos de Isidoro. Assim sendo, a narrativa
de Isidoro, muda o enfoque e cria outra ênfase e uma nova leitura dos fatos.
Os reis godos arianos são descritos, numa seqüência quase contínua como tendo sido
assassinados por algum dos seus seguidores: Alarico e Ataulfo não deixam filhos para sucedê-
los, e isto é associado a profecia de Daniel (c.18); Sigerico é morto pelos seus seguidores (c.
16 FONTAINE, Jacques. Conversion et culture chez les wisigoths d’Espagne. In: FONTAINE, Jacques. Culture et spiritualité en Espagne du IVe au VIIe siécle. Londres: Variorum Reprints, 1986, p. 117.O autor afirma: “La trame idéologique du livre est claire: des grands thémes gothiques (la vaillance des Goths, leur sens de la liberté, leur aptitude à gouverner”. Isso não exclui os componentes romanos da cultura e das idéias. Isso pode ser visto na Laus Spaniae. 17 ISIDORO DE SEVILHA. Las Historias, op. cit., c. 15, p. 195. Afirma que não tocaram os que se refugiaram nos lugares santos: “[...] et mors et captivitas indultas est qui ad sanctorum limina confugerunt”. E também pouparam aos que pronunciaram o nome de Cristo e dos santos, mesmo se fora dos locais sagrados:”[...] et nomen Christi et sanctorum nominaverunt”. 18 ORLANDIS, J. Historia de España: la España visigótica. Madrid: Gredos, 1977., p. 90. Cita o turonense: “[…] la detestable costumbre de dar muerte a los reyes que no les agradaban y poner en su lugar al que mejor les parecería […]”.
106
20); Turismundo é assassinado por seus irmãos (c.30); Teuderico é assassinado por seu irmão
Eurico (c.33); alguns reis morrem de morte natural, tais como Valia e Eurico. Qual é a
importância destas descrições?
Em quase todas há uma moral implícita: morrem ou são punidos pelo que fizeram.
Suas atitudes explicam a morte violenta e a sua punição: nada ocorre por acaso ou por
motivações dinásticas ou conflito entre a monarquia e grupos nobiliárquicos. Explicações
metafísicas são um de seus eixos interpretativos para explicar os conflitos de poder. A
presença de Deus e dos demônios é constante na Historia, durante este trecho, que antecede a
conversão de Recaredo.
Um exemplo é a descrição da batalha entre Átila rei dos hunos e uma coalizão
romano-germânica: a descrição de prodígios no céu e na terra (terremotos, eclipses, cometa,
coloração vermelha como sangue na parte norte do céu): tudo isso Isidoro interpreta como
sendo obra divina para simbolizar a carnificina da batalha. 19
A obra de Isidoro (Historia) difere da obra do Biclarense, 20 que tem o Império como
centro e referência cronológica: o reino visigodo é o foco central e só a historia do encontro
da Hispânia e dos visigodos é que interessa. Não se pode dizer que há um rompimento com a
cultura clássica; Isidoro afirma implicitamente que a cultura e a civilização romanas foram
assumidas e continuadas por um povo germânico, romanizado e portador de uma nobreza sem
igual. 21 Os visigodos seriam superiores aos romanos e ocupariam seu vazio. Isidoro não
acredita em uma ruptura absoluta, com as invasões: entendendo o Império como um “meio
19 Id., ibid., c. 26-27, p. 214-215. Afirma que o desastre e derrota dos hunos fora castigo celeste (caelestibus plagis). Uma clara intervenção de Deus, na História, nas batalhas e nas ações humanas. Os reis são claramente punidos por seus atos e gestos. 20 JOÃO DE BICLARO. Crônica. Madrid: C S I C, 1960. Trata-se de um clérigo e cronista que descreve o reino visigótico no período anterior ao III Concílio de Toledo (589), mas não extrapola o reinado de Recaredo. Tem uma ótica romano-centrista e serviu de fonte e referencia a Isidoro. 21 REYDELLET, La conception, op. cit.,p. 463-464.
107
cultural”, compreende que havia uma continuidade. 22 O uso da expressão provincia na laus
Spaniae, reflete esta visão.23
A Historia é um livro claramente ideológico que retrata as pessoas e os fatos de
acordo à visão isidoriana de mundo. Autores como Fontaine e Reydellet reforçam esta opinião
em suas obras. 24 Uma das questões levantadas por ambos é a da biografia real. Reydellet
entende que a galeria de reis apresentada, de maneira simbólica é retratada através de um
balancete, no qual o bem é recompensado e o mal punido. A partir dos últimos reis arianos e
dos reis católicos com os quais Isidoro conviveu, os fatos são acompanhados pelo retrato
moral dos príncipes. 25 A nossa percepção das fontes nos leva a crer que se trata de uma
ideologia, retratada através de recursos aparentemente literários e historiográficos. 26
A biografia real não era uma novidade na época de Isidoro: Sidonio Apolinário
escrevera sobre Teodorico II; Cassiodoro sobre Teodorico o Grande; e Gregório de Tours
sobre Clóvis e a dinastia merovingia. O interesse variava, mas sempre se oferecia um modelo
e um exemplo. A maldade de certos reis se associava a sua morte de maneira cruel. 27
Esta semelhança com certas passagens da Bíblia, pode ser entendida. Na visão da
Igreja a Bíblia oferecia resposta para fatos passados, presentes e futuros Sendo a maioria dos
biógrafos de origem clerical usam de seu conhecimento exegético para escrever suas
22 Id., ibid. p. 464. Reydellet afirma: “Dans la mesure où pour lui l’Empire n’est qu’ un mileu culturel, l’Empire dure encore”. Essa visão tem certos questionamentos, mas pode ser pelo menos a intenção de Isidoro, ao realizar sua imensa obra pedagógica, de tentar educar clérigos e a alta nobreza. 23 ISIDORO, Las Historias, op. cit., De laude Spaniae, p. 168-169. Descreve a Hispania como a “reginae provinciarum” ou seja, a rainha de todas as províncias. Uma mistura de pertinência e de separação: continuidade e diversidade. 24 REYDELLET., La royauté,op. cit., p. 523 et seqs.; La concepcion, op. cit., p. 463 et seqs.; FONTAINE, Jacques. Isidore de Séville et la culture classique dans l’Espagne wisigothique. Paris: Études Augustiniennes, 1983, v. I, p. 180 et seqs., seriam os trechos que melhor analisam a obra histórica de Isidoro e no qual se baseiam a maior parte das reflexões adiante alinhavadas. 25 REYDELLET, La royauté, op. cit., p. 526. Diz: “Quand on arrive à la période contemporaine de l’auteur, les faits sont accompagnés d’un portrait moral du prince”. Essa opinião é por nós compartilhada, como citamos no trecho anterior. 26 Id., ibid., loc. cit. Reydellet reforça nossa opinião ao dizer que seja conscientemente ou não, Isidoro faz uma obra claramente permeada de uma ideologia. A sua visão de mundo e do papel dos reis está em cada trecho. Diz: “..que l’estéthique littéraire rejoint, consciemment ou non, une idéologie”. 27 REYDELLET, La royauté, op. cit., p. 529. Afirma: “[...] mauvaise vie conduit à male mort”.
108
biografias. As semelhanças entre Isidoro e o autor (ou os autores) dos livros de Samuel (I e II)
e dos Reis (I e II) não é casual.
Isidoro concebe a História de maneira exegética: a presença de Deus na História é
absolutamente normal e perceptível para ele e outros; o Bem e o Mal são premiados ou
punidos, numa moral de filmes de Hollywood, aonde os vilões são castigados no final. Assim
sua leitura deve ser vista com cuidado e reserva. O texto não pode ser dissociado de seu
contexto e da maneira pela qual era escrito e pela qual era entendido.
Uma visão de mundo por vezes dualista permeia a obra: o Bem e o Mal fazem parte de
um conflito que atravessa o mundo natural e o mescla com o sobrenatural. Os limites da
realidade são tênues: as duas cidades agostinianas se encontram e se misturam.
Voltemos a nossa atenção para a obra história e suas descrições de príncipes. A função
da biografia é basicamente centrada em dois aspectos: colocar os reis diante de suas
responsabilidades e mostrar que eles não são protagonistas da história, que estejam acima das
leis divinas, sofrendo as conseqüências de suas atitudes e ações; o segundo aspecto seria a
função social de servir de exemplo para seus sucessores e para os povos, sendo um modelo
político e social. Neste caso Isidoro faz claramente um juízo de valor, seja direto ou
simbólico, seja nas linhas ou nas entrelinhas.
Em todos os reis que retrata, usa de um recurso que já utilizara no De Ortu: como
nasceu, o que fez e como morreu. 28 Os reis anteriores ao período em que Isidoro viveu são
brevemente descritos e sua biografias se assemelham àquelas dos personagens bíblicos no De
Ortu. Isso muda no reinado do último rei ariano, Leovigildo o pai de Recaredo.
O rei Leovigildo é o primeiro que foi contemporâneo de Isidoro: é descrito com louvor
pelo seu papel de unificador e vencedor de batalhas e duramente criticado por sua política
28 ISIDORO DE SEVILHA, De ortu et obitum patrum: Vida y muerte de los santos. Introducción, edición crítica y traducción por C. C. Gómez. Paris: Societé d’Editions “Les Belles Lettres, 1985. Esta obra traz uma coletânea de mini biografias de personagens do AT e do NT. Todas têm uma estrutura simples e semelhante: nascimento, obra e morte. Nunca ultrapassam três linhas do texto, mas refletem algum valor moral e ético.
109
religiosa. 29 Isidoro dedica um capítulo a exaltar suas ações militares (c. 49) e contrapõe outro
capítulo a criticar sua ação religiosa (c. 50); num terceiro capítulo (c. 51) fala da obra
unificadora do rei a nível interno, mas critica a mesma, como tendo excessos e sede de poder.
30Critica a política religiosa, mas elogia seus feitos político-militares. 31 Isidoro hesita em
demonstrar sua admiração e seu respeito pelos feitos do monarca: trata-o como quase um
tirano, movido pelo furor da heresia ariana. 32
Apesar disto deixa transparecer que Leovigildo é um modelo monárquico: funda
cidades, cunha moedas, desenvolve um ritual de corte e majestade 33 e se torna de fato o
fundador da monarquia toledana: se torna um símbolo na obra isidoriana. 34 Ainda que tivesse
sido um herético ariano, a grandeza de sua obra permitiria a unidade do reino visigótico, a
partir de seu filho e sucessor Recaredo.
Isidoro se omite de dizer algo, sobre o concilio ariano e a tentativa de unificar os
cristãos da península ibérica, numa Igreja nacional de orientação ariana e é “telegráfico” ao
comentar sobre a revolta de Hermenegildo. 35 Sabemos que Hermenegildo foi beatificado pelo
29 REYDELLET, La royauté, op. cit, p. 530. 30 ISIDORO, Las Historias, op. cit., c. 49-51. 31 REYDELLET, La royauté, op. cit, p. 530. Afirma que Isidoro alterna louvor e critica a Leovigildo: “Ainsi Liuvigild est loué pour son oeuvre militaire, et blamé pous as politique religieuse”. REYDELLET, La conception, op. cit.,p. 464, diz que ”Il a été visiblement séduit par l’oeuvre du grand unificateur”. Na visão de Reydellet, Isidoro descreve a grandeza de Leovigildo mesmo sendo ferozmente crítico a sua obra religiosa. 32 REYDELLET, La royauté, op. cit., p. 531. Diz: “Liuvigild devient chez Isidore, un tyran “rempli de la fureur de l’ herésie arienne”, dautant plus dangereux qu’il agit moins par la violence que par la corruption”. Se refere a atitude de Leovigildo de tentar atrair católicos ao arianismo, que segundo Isidoro pouco resultou; obteve algumas conversões pela violência, mas só deu certo nos casos em que ocorreu suborno (corrupção). No dizer de Isidoro: “[...] plerosque sine persecutione inlectos auro rebusque decepit”. Uma utilização do poder de maneira tirânica, na ótica isidoriana. Ainda mais se foi movido no intuito de converter católicos ao arianismo. 33 ISIDORO, Las Historias, op. cit., c. 51, p. 258-259. Afirma que foi Leovigildo o primeiro que se apresentou aos “seus”, (visigodos) coberto pela vestimenta real, afirmando que antes dele as roupas e o assento, eram comuns entre o primus inter pares (rei) e seus nobres: “[...] primusque inter suos regali veste opertus solio resedit, nam ante eum et habitus et consenssus communis ut genti, ita et regibus erat”. 34 REYDELLET, La royauté, op. cit., p. 531-532. Diz que: “[...] Isidore ne soit pas resté insensible au sens de la majesté royale dont Liuvigild fit preuve”. REYDELLET, La conception, op. cit.,p. 464, diz de maneira mais incisiva, que Isidoro trata Leovigildo como um simbolo:“Il est certain qu’ aux yeux du Sevillan, Liuvigild fait figure de symbole: il est vraiment le foundateur de la royauté tolédane”. 35FONTAINE, Conversion, op. cit.,.p. 118. Isidoro concorda com o Biclarense e sua versão quase “telegráfica”: “[...] est rapide et sans aménité”. Um certo incomodo de tratar deste tema pode ser percebido. Um silêncio comprometedor que denuncia uma sensível questão. Os acordos tácitos do III CT (589) permitem vislumbrar que não se denegria a pessoa de Leovigildo e não se apoiava a tirania que havia ameaçado a estabilidade da monarquia para não inspirar futuros golpes de estado. Havia a intenção de se criar uma dinastia
110
papa e que ficou sob o estigma de tirano no reino e na Igreja visigótica. Isso se explica pelo
pacto entre a monarquia e a Igreja consumado no III Concílio de Toledo. O mesmo cuidado é
dado ao tratar de seu irmão Leandro de Sevilha, que teve papel fundamental na revolta de
Hermenegildo e se aliou com o inimigo bizantino, num colaboracionismo que pode ser
entendido como traição a Hispânia e a gens Gothorum. 36 Há silêncios que falam mais do que
mil palavras.
O personagem-modelo que segue a Leovigildo é seu filho e sucessor Recaredo. As
aclamações que foram registradas nas atas do III CT (589) deixam uma idéia do prestígio de
Recaredo junto ao clero hispânico e fazem eco na obra isidoriana. Isidoro desenvolve sua
narrativa descrevendo o príncipe modelo, que serviria como exemplo para seus sucessores. O
propósito de parte de sua obra e do livro (História) é: propiciar “seja na forma teórica, como
um tratado de ética, seja na de um relato de vida e virtudes dos reis que conseguiram, ou
estiveram muito perto de conseguir, a perfeição almejada”. 37 Os personagens isidorianos
modelares realizam, pelo menos parcialmente este ideal de príncipe cristão. 38
Os dois monarcas mais exemplares são Recaredo e Suintila, que cada qual, de sua
maneira, dão continuidade ao processo de unificação religioso e territorial. Isidoro mostra nos
dois, qualidades impares e constrói seu modelo de monarca. 39 Recaredo é objeto de um
panegírico, ao estilo dos panegíricos dos imperadores, e de certa forma antecipando os
36 Id., ibid, p. 117-118. Fontaine afirma: “[...] rien sur la “collaboration” de Léandre avec les Byzantins, sur sa trahison du prince régnant, sur son rôle probable dans la rebellion d’ Hermenegild [...]”. Outro silêncio que fala alto: uma traição ao poder legítimo e aliança com um dos maiores inimigos do Estado. 37 MARTIN, Maria Sonsoles Guerras. A teoria política visigoda. In: BONI, Luis Alberto de (org.) Idade Média: Ética e política. 2.ed., Porto Alegre: Edipucrs, 1996, p. 87. 38 REYDELLET, La conception, op. cit.,p. 463. Afirma: “Cet idéal du prince chrétien, Isidore, dans son historia Gothorum, nous montre comment certains rois wisigoths ont pu réaliser, tout au moins en partie” 39 Id., ibid., loc. cit. O autor diz que o gênero histórico permite a Isidoro: “[...] de suggérer un idéal de la monarchie wisigothique et de souligner certains aspects proprement politiques qui n’avaient pas leur place dans le cadre moralisant des sententiae.”. Ou seja, tudo o que não se insere numa obra teológica e moralista, como as Sentenças, pode servir de complemento à construção de um modelo de monarca, num livro histórico que cumpre assim, sua função de ensinar através da História, os caminhos de Deus.
111
”espelhos de príncipes medievais”. 40 Os melhores dons físicos e espirituais lhe são
atribuídos: respeito pela religião, piedoso e pacifico (c. 52). 41 Administrou as províncias com
equidade e moderação; era bondoso (que seu rosto refletia tal benevolência), e chegava a
atrair o carinho e o afeto dos maus, tal a sua bondade; agiu de maneira liberal com os que
sofreram confiscos de seu pai, restituindo seus bens, seja para os senhores como para a Igreja.
42
Essa liberalidade pode ser interpretada por nós, como qualidade ou como defeito:
enfraquecer a monarquia devolvendo terras ao clero e a nobreza, como parte de acordos
políticos.
As semelhanças entre os personagens do Ortu não são casuais: há certos paralelismos
na visão isidoriana de outro pai e de outro filho: David e Salomão. Leovigildo simboliza neste
caso David e Recaredo pode ser compreendido como uma alegoria de Salomão. Um guerreiro
e o outro pacífico; o filho muito mais sábio que o pai. Isidoro diferencia o final dos dias de
Salomão que foram inadequados e em desacordo com sua trajetória de vida e os de Recaredo
que seguiu coerente e modelar desde o início de seu reino até sua morte. Faz assim uma clara
diferença de Recaredo com Salomão que se distancia de seus valores na hora da morte e de
certo modo com seu similar imperial, Constantino, que de forma incoerente foi algumas vezes
partidário do arianismo, para não falar do paganismo. 43
40 FONTAINE, Conversion, op. cit., p. 118. Afirma que Recaredo é objeto de um modelar panegírico. Diz: “[...] le ton du portrait le place sur la ligne qui relie les panegyriques impériaux aux ”miroirs des princes” medievaux”. 41 ISIDORO, Las Historias, op. cit., c. 52, p. 260-261. Religioso (cultu praeditus religionis), piedoso e pacifico (hic fide pius et pace praeclarus). Estas qualidades aparecem em contraste com seu pai Leovigildo, denominado irreligioso (inreligiosus), inclinado pela guerra (et bello promptissimus). O contraste não é casual e espelha uma diferenciação entre um príncipe cristianíssimo e um príncipe “ariano”. 42 Id., ibid., c. 55, p. 264-267. Sua bondade era tanta que influía no ânimo de todos até dos maus. “[...] egregiae bonitatis tantamque in vultu gratiam habuit et tantam in animo begnitatem gessit, ut in omnium mentibus influens etiam malos ad affectum amoris sui adtraheret [...]” Uma idealização poucas vezes vista. A entrega de propriedades da Igreja e de alguns dos membros de famílias poderosas mostra um tipo de acordo entre partes: no III CT com a Igreja e na tentativa de obter apoio nobiliárquico para sua dinastia e a continuidade da mesma após sua morte. 43 REYDELLET, La royauté, op. cit., p. 540. Comparando com o De Ortu, 34, 59 (Salomão) enfatiza que Recaredo se distanciou dos costumes de seu pai (Historia, c. 52) tendo “[...] paternis moribus longe dissimilis”. O autor enfatiza que, de acordo a Isidoro, Recaredo foi coerente nas suas ações: “Reccaréde, au contraire, a
112
Isidoro insiste que Recaredo já havia se convertido desde o início de seu reinado. 44
Isso não combina com as informações do Biclarense: Recaredo se converteu no décimo mês
de seu primeiro ano de reinado. 45 Sendo João de Bíclaro a fonte mais importante de Isidoro,
entende-se que esta contradição não é distração ou casualidade: trata-se de opção alegórica.
Recaredo deve aparecer com coerência e cumprindo seu papel de monarca cristão exemplar.
A intenção da obra não é historiográfica, mas sim educativa e ideológica.
Isidoro descreve uma vida coerente, tal como os modelos bíblicos do De Ortu, aonde a
hora da morte é um momento crucial: o arrependimento e a busca de Deus, mesmo que tardia
pode ser a salvação. A morte de Recaredo é descrita como a conclusão de sua missão coroada:
“sabendo que o reino que lhe havia sido encomendado (por Deus) para utilizar dele no
objetivo da salvação (de si próprio e de seus súditos), tratou de alcançar com bons princípios
um bom fim”; 46 “e desta maneira a fé da verdadeira gloria que recebeu no inicio do seu
reinado, tratou de acrescentar, há pouco tempo, com a profissão pública de arrependimento”.
47
No entender de Reydellet isso corresponde à visão isidoriana dos últimos tempos que
no microcosmo espelha o macrocosmo da escatologia: os últimos momentos da vida são
fundamentais para um grande homem se unir a Deus e a sua obra. 48 Toda a coerência de uma
suivi tout a long de son règne la voie droite”. Há uma razão importante a ser explicada. O final de cada personagem no De Ortu, tem um significado ético, serve como ensinamento. O mesmo se dá com Recaredo 44 ISIDORO, Las Historias, op. cit., c. 52, p. 260-261. Recaredo, segundo o texto se converteu no inicio do seu reinado: “[...] In ipsis enim regni sui exordiis catholicam fidem adeptus [...]” Uma unidade com a coroa recebida no inicio de seu reino; uma unidade e coerência ao longo de todo o reinado. 45 João de Biclaro, op. cit., p. 30 e 138. Diz: “Reccaredus primo regni sui anno mense X catholicus deo iuvante efficitur”. Qual a razão da diferença entre o Biclarense e Isidoro? 46 ISIDORO, Las Historias, op. cit., c. 56, p. 266-267. Diz da morte e do objetivo de sua vida. Era utilizar o reino e sua função como um caminho para a salvação: “[ ...] sciens ad hoc illi fuisse conlatum regnum, ut eo salubriter frueretur, bonis initiis bonum finem adeptus [...]”. 47 Id., ibid., loc. cit. Conclui dizendo da maneira cristã com que assume seu fim ao fazer sua profissão publica de fé: “[...] fidem enim rectae gloriae, quam initio regni percepit, novissime publica confessione paenitentiae cumulavit” . É um monarca executando muitos dos princípios teóricos de Isidoro (relatados no livro II das Sentenças) em prática. Um modelo de monarca desde o inicio de seu reinado até sua morte. A tradução no corpo do texto é fundamentada na tradução castelhana. 48 REYDELLET, La royauté, op. cit., p. 540. Afirma em sentido menos amplo que o utilizado por nós a importância dos últimos gestos de um personagem: “D’une façon générale, l’eschatologie d’Isidore insiste sur
113
vida dedicada à fé, à moderação, à justiça, e á missão apostólica de converter e salvar seu
povo. Desde o inicio de seu reinado até sua morte: daí a necessidade de adiantar a sua
conversão. Na obra isidoriana há o constante uso de alegorias e a inserção do sobrenatural no
natural. Não se pode entender como uma adulteração dos fatos, mas uma releitura alegórica
da realidade. O simbolismo é um veículo de compreensão da realidade. A exegese extrapola o
texto bíblico e se superpõe a história num contexto neo-platônico cristão.
Recaredo é declarado gloriosíssimo e religiosíssimo príncipe, 49 no trecho que
antecede a descrição do III CT; o autor fala a seguir, de seu papel no processo de unificação e
repete todo o dogma trinitário, como se pretendesse deixar claro, sua aceitação plena por
todos: rei e membros do concílio. 50.
Voltemo-nos aos paralelos entre Leovigildo e Recaredo. O Hispalense contrapõe as
virtudes do filho diante dos excessos do pai. Utiliza muitos verbos para definir Leovigildo e
muitos adjetivos para compor a personalidade refinada e sacra do rei “apostólico”. 51 A
personalidade de Recaredo é descrita em duas partes uma sobre suas ações religiosas e
político-militares e a outra para descrever sua personalidade e características pessoais. 52 O
filho supera o pai e complementa sua obra de maneira coerente com sua função de monarca
cristão. Adiante veremos como Isidoro salienta seu outro personagem modelar, Suintila
através do uso de recursos semânticos.
Outro aspecto bastante difícil de analisar e concluir de maneira segura é a súbita
declaração de Isidoro que após a morte de seu pai, Recaredo foi “coroado rei”. Isidoro não
les derniers moments de la vie. Plusiers fois, il repete que seul compte lê dernier acte, ce qui est surtout consolant pour les ouvriers de la onzième heure” . 49 Id., ibid., c. 53, p. 262-263. Numa versão é chamado de gloriosissimus princeps e na outra de religiosissimus princeps. Ambas antecedem ao sínodo e ao III CT (589) que culminou com a unidade religiosa. 50 Id., ibid., loc. cit. 51 REYDELLET, La royauté, op. cit., p. 534. Leovigildo só recebe adjetivos bastante pejorativos e de certa forma servem de crítica: furore repletus, quibusdam suorum perniciosus, inreligiosus, bello promptissimus. 52 Id., ibid., loc. cit. Os adjetivos, já descrevemos antes.
114
utiliza este termo em outros trechos do livro. 53 Qual o sentido desta afirmação? Não há
consenso entre os autores. 54 Trata-se de sentido literal ou simbólico?
Recaredo era príncipe consorte (consortes regni), junto com seu irmão Hermenegildo,
nomeado ainda em vida de seu pai Leovigildo. 55 É provável que se tratasse de um
coroamento “simbólico”: mesmo que Isidoro conhecesse o uso da coroa e a descrevesse nas
Etimologias. 56
Uma das interpretações que podem ser percebidas, utilizando a obra isidoriana é o fato
de que uma coroa delimita um espaço interno e um espaço externo: dentro da Igreja (intra
Ecclesiam) e fora da Igreja (extra Ecclesiam). 57 Isso permite fazer algumas tentativas de
explicar este trecho. Uma seria entender a coroa que delimita o espaço dos que se incluem no
reino (unificado por Leovigildo e posteriormente concluído por Suinthila) e os que se uniram
pela fé (unificada por Recaredo). O objetivo é unir todos em um só corpo e uma só alma: mas
o que fazer com hereges, pagãos e judeus? Ficam fora de uma coroa (espiritual) e, portanto
devem ficar fora da outra coroa (súditos do reino).
Reydellet acredita se tratar de um outro simbolismo. Recaredo recebeu a coroa da
realeza pelo seu mérito apostólico, de ter trazido povos à fé em Cristo, ao seio da Igreja. Foi
53 ISIDORO DE SEVILHA, Las Historias, op. cit., p. 260-261. Diz que após a morte de Leovigildo, seu filho Recaredo “regno est coronatus”. Repare que nas Historias, Isidoro descreve a ascensão de novos monarcas visigodos dizendo ora “reinar” (regnat) ora “suceder” (succedit in regnum) ou se referindo a escolha de um novo rei diz: “foi eleito príncipe” (princeps electus est). Não utiliza o termo coroa e coroação. 54 VALVERDE CASTRO. Maria R. Ideología, simbolismo y ejercicio del poder real en la monarquía visigoda: un proceso de cambio. Salamanca: Universidade de Salamanca, 2000, p. 191-192. Esclarece que o uso da coroa não era pleno. Se fazia uso do cetro,do hábito purpúreo e da diadema. Esta se assemelhava a coroa. 55 ORLANDIS, op. cit., p. 104. Isto os tornava herdeiros da coroa sem necessidade de nomeações ou cerimônias. REYDELLET, La royauté, op. cit., p. 536, deixa a dúvida: se havia uma coroa ou se o diadema das moedas de Leovigildo, seria apenas uma imitação puramente formal das moedas bizantinas? E acredita que Isidoro se refere a um coroamento simbólico de Recaredo. Há diversos argumentos para tanto que nos eximiremos de debater. 56 ISIDORO, Etimologias, l. 19, c. 30, v. 1-3. Fala da origem das coroas. Que se tratava de: “[…] señal de victoria y signo de honor regio; se ponía en la cabeza de los reyes, significando los pueblos esparcidos por el orbe, de los cuales se rodeaba como cabeza de todos”. Na versão original: “[...] corona insigne victoriae, sive regii honoris signum; quae ideo in capite regum ponitur ad significandum circumfusos in orbe populos, quibus adcinctus quasi capit suum coronatur”. 57 REYDELLET, La royauté, op. cit., p. 538. Diz, enfatizando, dois espaços e dois reinados (Leovigildo e Recaredo): “Isidore aime opposer intra Ecclesiam à Extra Ecclesiam, le dedans au dehors. De même, quand il nous dit que la couronne représente les peuples circumfusos in orbe, dont est ceinte la tête du roi, il implique que ce dernier est un principe de rassemblement et cela correspond d’ailleurs à la réalité visigothique depuis le règne de Liuvigild”.
115
coroado pela “coroa da realeza” e não para exercer a função real. 58 Numa situação prevista e
compreendida antecipadamente por Deus (onisciente e atemporal), que lhe recompensa
antecipadamente, pelos seus feitos em prol da Igreja e que reparavam o que seu pai fizera. 59
A coroa não se resume à coroa dos imperadores e reis, mas possui um duplo símbolo: trata-se
da insígnia da realeza e ao mesmo tempo de um “oficio apostólico”, ou seja, uma missão
divinamente consagrada que lhe dá uma aura sacra. 60
Este é o ponto que diferencia Isidoro, de seu mestre e inspirador Gregório. O termo
officium tem origem romana e se reveste de valores morais e éticos. No pensamento
gregoriano, o poder é uma missão, um dever, não se trata de um privilégio pessoal. Está
fundamentado na noção de serviço, para o bem de todos seus súditos. 61 Recaredo se torna na
obra de Isidoro um santo coroado. 62 Qualidades que ele porta na visão isidoriana: a doçura, a
generosidade, a clemência, a bondade, a graça. 63
No trecho que falamos da vida e da morte, e de toda a coerência entre as duas citamos
o termo salubriter. Este termo exigiria que nos alongássemos mais em sua análise. De
58 Id., ibid., p. 538-539. Afirma que Recaredo, “[...] été couronné de la royauté et non pour exercer la royauté”. Uma simbologia que difere das descrições da ascensão ao trono de monarcas anteriores: Recaredo é recompensado pelo que fará, mesmo antes de fazê-lo, por Deus que o consagra. Seu zelo pela Igreja, o eleva a Coroa. 59 Id., ibid., loc. cit. A coroa é comparada com a coroa de S. Pedro martirizado, um dos poucos exemplos semelhantes na obra isidoriana. A coroa do mártir alegoricamente atribuída por um mérito apostólico. Diz Reydellet que a coroação é “[...] la recompense, anticipée san doute, de son zèle pour l’Église”. 60 Id., ibid., p. 539. Reydellet sintetiza numa frase um conceito amplo e refinado, que diferencia Isidoro, de seus antecessores e inspiradores (Agostinho e Gregório magno). Dá uma consistência diferente ao conceito gregoriano de officium e começa a construção de sua visão de monarca cristão: “La couronne revêt ici la double valeur d’ insigne de la royauté et de l’apostolicum officium”. 61 RIBEIRO, Daniel Valle. A sacralização do poder temporal: Gregório Magno e Isidoro de Sevilha. In: SOUZA, José Antônio de C.R. de; BONI, Luis Alberto de (org.) O reino e o sacerdócio: o pensamento político na alta Idade Média. Porto Alegre: Edipucrs, 1995, p. 99-100. Ribeiro cita trecho de Gregório magno (Moralia, 21, 15. PL. 76, 203, com tradução de TURRA Jr. Dante; MAFRA Johnny José que diz: “A mesma diversidade que veio do erro foi retamente ordenada pelos desígnios divinos, de tal modo que um homem seja dirigido por outro, já que nem todos vivem igualmente. Os homens justos quando estão no poder, não se vestem da força do mando, porém da igualdade de natureza; nem se vangloriam de governar os homens, mas de serví-los”. O mesmo conceito que Isidoro desenvolve nas Sentenças que justifica por causa do pecado original, que alguns mandem nos outros e os controlem para evitar que pequem. A mesma idéia de serviço e officium que dá ao cargo do monarca uma noção de função sacra e em prol dos membros da comunidade de fiéis. 62 REYDELLET, La royauté, op. cit., p. 541. O autor diz: “Les vertus prêtées à Recarède sont celles d’un saint couronée [...] ”.REYDELLET, La conception, op. cit.,p. 465. O mesmo autor repete: “Fidèle jusqu’au bout aux exigences de sa foi, Reccared incarne l’idéal du saint couronée”. 63 ISIDORO DE SEVILHA, Las Historias, op. cit., c.55-56, p.266-267; REYDELLET, La royauté, op. cit., p. 542-543. Autor percebe em Isidoro a descrição de certo poder sobrenatural: “[...] ce ne serait pas trahir Isidore que de parler d’ un pouvoir surnaturel” .
116
maneira superficial e a guisa de reflexão percebemos que na questão do officium, podemos
inserir este tema: a “saúde pública”. Parece-nos que se trata da dupla idéia de fazer o bem aos
seus súditos, encaminhando-os à prática de bons hábitos e nas sendas da fé verdadeira, quanto
se trata da saúde pessoal do soberano; tanto no hemisfério do político quanto no hemisfério do
espiritual, numa visão que unifica a saúde nos dois planos. 64
Nesta concepção pode se perceber que não há espaço para judeus, hereges e
dissidentes. È um caso de saúde publica. Os riscos de contaminação devem ser devidamente
extirpados e excluídos da sociedade cristã e do convívio com os seguidores da fé verdadeira.
Infectam a saúde publica. O modelo de Recaredo é completo e plenamente construído por
Isidoro: um monarca cristão que se insere na historia, de maneira plena. Um novo conceito
está criado: o monarca cristão.
O terceiro personagem é Sisebuto. É de nosso conhecimento, que existiram boas
relações pessoais entre o monarca e Isidoro. O Hispalense dedica duas de suas obras a
Sisebuto e trata-o como “filho e Senhor”. 65
O rei é considerado como um monarca letrado e discípulo de seu mentor espiritual e
intelectual, sendo visto como autor de obras literárias.
Compôs em c. 614, um poema astronômico (De eclipsi lunae) que alguns consideram
um complemento do De Natura rerum isidoriano, a ele dedicado. Uma obra de hagiografia
denominada Victa sancti Desiderii Viennensis, 66 na qual de maneira habilidosa utiliza-se de
64 REYDELLET, La royauté, op. cit., p. 543. Diz: “Salubriter que j’ai rendu aussi vaguement que possible, contient la double idée de bienfaisance à l’egard des sujets et de la salut du souverain; le mot se réfère à la fois à la “santé“ politique du royaume et à son salut spirituel”. 65 DIAZ y DIAZ, M. C. Escritores de la Península Ibérica, In: Patrologia IV: del Concilio de Calcedonia (451) a Beda: Los padres latinos. Madrid: BAC, 2000, p. 104 (de natura rerum) e p. 111 (Etimologias). 66 GARCIA MORENO, op. cit., p. 147-148. Considera o monarca um representante do “Renacimiento isidoriano”.
117
uma hagiografia para compor um libelo político contrário a monarquia franca, em especial
criticando a rainha Brunequilda, cuja conduta moral reprovava. 67
Atribui-se, a Sisebuto uma carta ao rei lombardo Adaloaldo e à sua mãe Theodolinda.
68 Esta carta mostra uma face missionária do rei visigodo que assume a função de propagar a
verdadeira fé e tentar converter o rei lombardo. 69 Na carta percebe-se a forte influencia de
Isidoro em “seu filho e Senhor”. 70 Uma identidade perceptível nas ações e na obra literária.
A descrição deste rei, na obra isidoriana, e em especial na “Historia”, não faz jus a
excelente relação entre Isidoro e o seu amigo Sisebuto 71, pois chega a ser fria e superficial. 72
No texto da História, vemos o autor iniciar a descrição do reinado, com uma severa
crítica a política judaica de Sisebuto. O Hispalense censura a conversão forçada dos mesmos,
afirmando ter o monarca mostrado grande zelo, mas não agindo de acordo a sabedoria. 73 Sua
critica é sobre o método inadequado, não sobre a atitude em si, que define como sendo um
gesto de zelo religioso. Percebe-se que não há uma crítica pela conversão forçada, mas pela
ingerência excessiva em assuntos eclesiásticos. 74 Garcia Moreno considera que por sua
cultura e conhecimentos clássicos, o monarca assumiu uma tendência de influência tardo-
67 .DIAZ y DIAZ, op. cit., p. 95-96. Autor argumenta que há duvidas sobre o saber do monarca quando se faz a análise literária da sua hagiografia. Diz que: “Es curioso como el estilo lingüístico y literario de esta obra manifiesta conocimientos inferiores a los que deja suponer el poema”. 68 FONTAINE, Conversion, op. cit., p. 134. Considera que a carta foi escrita entre 616 (ascensão de Adaloaldo ao trono) e 621 (morte de Sisebuto). 69 Id., ibid., loc. cit. Fontaine afirma a postura missionária do rei dizendo: “C’est un catholicisme wisigothique devenu missionaire [...]”. 70 Id., ibid., loc. cit. A atitude de Sisebuto se modela, a partir de um estilo político-religioso bizantino e com intenções políticas de criar uma aliança de monarquias bárbaras católica contra Bizâncio. Fontaine desenvolve uma longa análise que demonstra a relação intima de Sisebuto com o pensamento e com as obras de Isidoro e de seu irmão Leandro de Sevilha. 71 GARCIA MORENO, op. cit., p. 148. Autor salienta que “[…] el rey mantuvo una estrecha relación de amistad y colaboración, al menos en la primera parte de su reinado”. É neste período em que se escreve as obras encomendadas por Sisebuto à Isidoro. 72 REYDELLET, La royauté, op. cit., p. 544. Diz: “Le portrait qu’Isidore fait du prince surprend par une certaine froideur”. Haveria alguma razão? Reydellet concluirá ao final do trecho que se trata de um uso pedagógico, serve para o grande propósito de toda obra de Isidoro: instruir. 73 ISIDORO DE SEVILHA, Las Historias, op. cit., c.60, p. 270-273. Diz que os converteu no inicio do reino: “Qui initio regniIudaeos ad fidem Christianam permounens aemulationem quidem habuit, sed non secundum scientiam [...]”. E segue dizendo que deveria tê-los convertido pela razão da fé (fidei ratione oportuit)mas não condena, a atitude do rei, apenas censura a maneira que foi feita. Pois seja pela ocasião, ou seja, pela verdade, contanto que Cristo seja anunciado: “[...] sive per occasionem sive per veritatem doncc Christus adnuntietur” . 74 REYDELLET, La royauté, op. cit., p. 544. Isidoro se serve do exemplo de Sisebuto para enunciar um princípio de política e condenar “[...] une intervention abusive du pouvoir séculier en matière ecclésiastique”.
118
romana, que lhe levou a imitar os imperadores e interferir em assuntos eclesiásticos. 75 Isso
pode ter sido a razão de Isidoro criticar o seu gesto precipitado.
Sob outra maneira de analisar, podemos considerar que é preciso colocar esta crítica
de Isidoro a Sisebuto, na devida perspectiva. Há que contextualizá-la na obra de Isidoro: a
estrutura da “Historia”, tem uma montagem semelhante às obras de exegese e biografia: cada
coisa está disposta num local adequado, para fazer o efeito pedagógico correto. Isidoro não
podia omitir este feito, dadas às conseqüências do mesmo nas gerações seguintes. Trata de
elaborar sua construção do texto de maneira que ocorra um crescendo: de um erro inicial aos
grandes feitos de um monarca fiel e piedoso. O que pode se perceber é que a colocação da
conversão forçada no “início do reino” sublinha uma exceção, um erro no início de seu
reinado, atenuado a seguir pelos seus feitos.
Na visão de Reydellet deve-se entender o texto isidoriano, neste caso, da mesma
maneira que outros textos do mesmo autor: tendo as ações dispostas de maneira a se chegar a
um aperfeiçoamento do príncipe. 76 A seguir Isidoro deixa este fato para trás e inicia sua
construção do modelo de rei sábio. Pode-se perceber a maneira que Isidoro tenta construir
uma semelhança entre Sisebuto e o rei bíblico Salomão, mostrando sua preocupação em
descobrir os segredos e a natureza das coisas (De natura rerum), um modelo de príncipe
sábio. 77 Lidera campanhas contra asturianos e rucones; participa pessoalmente e se sai
vencedor de algumas batalhas contra os bizantinos. Neste contexto Isidoro mostra a clemência
e a piedade de Sisebuto: liberta os cativos inimigos, e paga seu resgate, redimindo-os e até
75 GARCIA MORENO, op. cit., p. 148. O autor descreve esta interferencia do rei, como sendo uma tendência cesaropapista: “Pero esa misma formación literaria habría permitido a Sisebuto familiarizarse, y adoptar, concepciones de la función monárquica muy enraizadas en la tradición tardorromana e imperial, con una clara tendencia centralizadora y cesaropapista, como se reflejaría en algunos de sus mas significativos actos de gobierno”. Adiante cita conflitos com o alto clero: critica o bispo Cecilio de Mentesa, o metropolitano Eusebio de Tarragona. A maior parte destes choques era devido ao seu desejo de influenciar mais na nomeação dos bispos (p.152). 76 Id., ibid., loc. cit. Afirma que aqui se volta ao tema do início e do final, tal como no De Ortu e outras obras. Diz: “Nous retrouvons la le theme du “debut” e de la “fin”, du progress”. 77 REYDELLET, La conception, op. cit.,p. 465. Diz que Isidoro exalta o príncipe letrado. E que não há duvida que ele vislumbra em Sisebuto “une replique de Salomon, qu’il nous dépeint lui même comme soucieux de découvrir la nature des choses [...]”.
119
usando seu próprio tesouro. 78 Seu gesto é digno de um monarca cristão: piedoso e
desapegado de valores materiais.
A morte de Sisebuto é descrita na versão breve como tendo sido por morte natural ou
envenenamento, mas corrigida na versão larga por morte natural ou uma infecção
medicamentosa (excesso de um remédio). 79
O terceiro exemplo de príncipe cristão virtuoso é o sucessor de Sisebuto: Suintila.
Havia sido o comandante do exército em algumas das campanhas de seu antecessor. 80 O seu
reinado pode ser dividido em duas fases. Na primeira se dedicou a consolidar definitivamente
a presença visigoda na Península Ibérica, unificando-a e expulsando definitivamente os
bizantinos. 81 Em seguida na esteira de seu sucesso tenta reforçar os aspectos imperiais de seu
governo e preparar a criação de uma dinastia: associa seu filho Ricimero (Ricimiro) ao trono.
Esta política lhe renderá oposição de diversos setores da nobreza e culminará com a sua
deposição por uma revolta nobiliárquica em 631. 82 Isso causará uma aguda crise institucional
e motivará a convocação do IV CT (633). Isidoro será o líder do IV CT e participará da
reorganização institucional, sendo o autor ou o inspirador, da maioria de seus cânones,
inclusive os que de alguma maneira condenam Suintila.
A obra de Isidoro denominada “História” foi concluída após a primeira fase do reinado
de Suintila, cerca de meia década antes do IV CT, e nela o personagem do rei vencedor e
78 ISIDORO DE SEVILHA, Las Historias, op. cit.,c. 61, p.272-275. Afirma que foi tão clemente:que após sua vitória: “[...] ut multos ab exercitu suo hostili praeda in servitutem redactos pretio dato absolveret eiusque thesaurus redemptio existeret captivorum”. Segundo o autor Isidoro não se refere ao tesouro real ao utilizar o termo thesaurus. O termo para o tesouro real era aerarium ou fiscus. A palavra thesaurus. Serve aqui para simbolizar um tesouro que Isidoro constitui no céu: troca-se aqui do plano material para o espiritual. 79 Id., ibid., c. 61, p. 274-275. 80 Id., ibid., c. 61, p. 272-273. Isidoro cita que Sisebuto dominara os rucones por meio de seus generais: “Ruccones montibus arduis undique comsaeptos per duces evicit”. Um destes duces, era o Dux Riquila; outro era o Dux Suintila. GARCIA MORENO, op. cit., p. 150, diz que o Dux Suintila submetera os rucones. Há certas evidencias da importância do papel de Suintila nas campanhas bem sucedidas contra os bizantinos no reinado de Sisebuto (p. 149). V. ISIDORO DE SEVILHA, Las Historias, op. cit., c. 62, p. 274-275. 81 GARCIA MORENO, op. cit., p. 153-154; ORLANDIS, op. cit., p. 142. 82 GARCIA MORENO, op. cit., p. 155; ORLANDIS, op. cit., p 144-145.
120
unificador é exaltado de maneira exemplar. 83 A obra estava concluída: a Hispânia e os godos
finalmente se uniam com plenitude. Esse era o plano da obra: da “De laude Spaniae” até a
unidade se concluía um processo. A unidade religiosa de 589 (III CT) era complementada
pela unidade política.
Um “segundo Recaredo”, nos diria Fontaine. 84 A última pedra do edifício político
construído por Leovigildo e que se tornava um reino cristão com Recaredo, se unificava com
Suintila. Isidoro não economiza adjetivos e louvores ao rei vencedor: assemelha-se a César. 85
O rei é qualificado de gloriosissimus. 86
Imediatamente, declara que tomou o cetro do poder por graça de Deus. 87 Adiante
determina que se trate do primeiro rei que governava toda a Espanha, alcançando a glória de
um triunfo superior ao dos demais reis que o antecederam. 88 As virtudes régias recebem a
moldura de um capitulo inteiro, curto, mas de uma amplitude de louvor sem comparação em
toda a obra, talvez salvo em Recaredo.
Os louvores para Recaredo são de uma grandiosidade humilde. Reydellet supõe que o
Hispalense exagera, por se tratar de um monarca vivo, na época da edição da obra. 89 Se para
Leovigildo havia muitos verbos e poucos adjetivos; se para Recaredo havia muitos adjetivos;
83 Por isso a aparente contradição de elogiar Suintila e “conspirar” ou ajudar os conspiradores a legitimar a rebelião contra Suintila. Não havia escolha ao idoso Isidoro: o Estado devia seguir sendo o veículo da cristianização e do progresso da fé verdadeira. Na pagina seguinte analisamos este contraste. 84 FONTAINE, Conversion, op. cit., p. 117. Diz: “[...] un second Reccared, le roiSuinthila, vient en 624 de chasser les Byzantins de leurs dernieres positions dans le sud de la péninsula [...]”. 85 REYDELLET, La conception, op. cit.,p. 465. O autor afirma esta idéia, pois Isidoro utiliza conceitos e terminologias semelhantes na sua Crônica (para César) e na História (para Suintila). Diz: “Ce rapprochement suggère une idealisation de Suinthila en nouveau César”. 86 ISIDORO DE SEVILHA, Las Historias, op. cit.,c. 62, p. 274-275. Inicia seu reinado com a data da ascensão e a afirmação: “gloriosissimus Suinthila”. 87 Id., ibid., loc. cit., aonde declara: “[…] gratia divina regni suscepit sceptra”. 88 Id., ibid., loc. cit. Isidoro declara sua grandiosidade e seu feito inédito de unir sob uma só coroa a Hispania: “Postquam vero apicem fastigii regalis conscendit, urbes resíduas, quas in Spaniis Romana manus agebat, proelio conserto obtinuit auctamque triumphi gloriam prae ceteris regibus felicitate mirabili reportavit, totius Spaniae intra oceani fretum monarchiam regni primus idem potitus, quod nulli retro principium est conlatum”. 89 REYDELLET, La royauté, op. cit., p. 547. Diz: “La seule explication de possible ded’um tel décalage est que, parlant d’un roi vivant”..
121
para Suintila há muitos substantivos. 90 Um rol de qualidades e virtudes: fidelidade,
prudência, habilidade, exame minucioso dos juízos, atenção primordial ao governo do reino,
generosidade para com todos e ainda mais com os pobres e necessitados, disposição para o
perdão, tanto que mereceu ser chamado, não somente príncipe dos povos, mas também pai
dos pobres. 91 Trata-se, de uma clara demonstração de um modelo real, já que Isidoro fala de
regiae virtutes: está sendo modelado um ideal político. 92
A contradição que salta a vista é a maneira pela qual Suintila foi deposto por uma
conspiração nobiliárquica e em seguida como Isidoro teve enorme importância na
remontagem do sistema efetuada no IV CT (633). Para entender como na “História” ele é
tratado como pai dos pobres (pater pauperum) 93 e nas atas do concilio é denominado como
tendo obtido bens com “confiscos dos pobres” (possessione rerum quas de miserorum
sumtibus hauserant maneant alieni). 94 Uma mudança radical que deve ser entendida como
resultado da falta de opções do alto clero e de Isidoro, diante do fato consumado da deposição
de Suintila e a ascensão ao trono de Sisenando. 95 Não vamos nos estender nos detalhes dos
fatos.
Isidoro construiu seu modelo de rei, sob a inspiração de Martinho de Braga, que
elaborara um tratado moral para ser utilizado pelos reis Suevos: “Formulae vitae honestae”.
90 REYDELLET, La royauté, op. cit., p. 547. Diz: “Le portrait de Reccarède était une succession d’adjectifs, ici règne le substantif”. 91 ISIDORO DE SEVILHA, Las Historias, op. cit.,c. 64, p. 278-279. Além das virtudes militares, Isidoro exalta as virtudes próprias da majestade real (regias majestatis virtutes): “[...] fides, prudentia, industria, in iudicis examinatio strenua, in regendo cura praecipua, circa omnes munificentia, largus erga indigenteset inopes misericordia satis promptus, ita ut non solum princeps populorum, sed etiam pater pauperum vocari sit dignus”. 92 REYDELLET, La royauté, op. cit., p. 547. Afirma: “Pour la première fois dans l’Histoire, apparaît ici la nótion de regiae virtutes et cela est important dans l’elaboration d’un idéal politique”. 93 ISIDORO DE SEVILHA, Las Historias, op. cit., c. 64, p. 279 94 VIVES, Jose. Concilios visigóticos e hispanos romanos. Madrid: CSIC, 1963, p. 221 (IV CT, seqüência final); V. também: ORLANDIS, Jose; RAMOS LISSON, Domingo. Historia de los concilios de la España romana y visigoda. Pamplona: Universidad de Navarra, 1986, segunda parte, cap. IV, p. 261- et seqs. 95 GARCIA MORENO, op. cit., p. 154 -155; ORLANDIS, Historia de España, op. cit., p 144-145. Ambos os autores concordam que se nos basearmos no Pseudo Fredegário (crônica franca não contemporânea aos fatos, podemos entender que se tratava de uma política imperial do monarca e que favorecia alguns de seus fideles regis e desfavorecia a grande maioria dos nobres. Estes confiscos não seriam contra o povo, mas sim contra alguns poderosos senhores. Isso levou a conspiração e ao fato consumado diante do qual Isidoro teve que tomar parte ativa do projeto que se consumou no IV CT.
122
96 O conceito de virtudes reais configurado por Martinho, é adaptado por Isidoro: este separa
as virtudes militares, das virtudes reais propriamente ditas. Isidoro não concebia o monarca
como sendo apenas um comandante vencedor: estas virtudes não são apenas boas qualidade
para um rei, mas simboliza a “essência da majestade”. 97 Um rei precisa delas para ser um rei
verdadeiro. Algumas das virtudes descritas precisam ser analisadas e discutidas. A fidelidade
(fides) não deve ser vista como a lealdade, mas como a crença na verdadeira fé: tal como
Recaredo, se espera que o rei seja católico, fiel a Deus e a crença verdadeira (católica). 98 Um
rei que defenda a verdadeira doutrina.
A prudência (prudentia) é um valor tradicional da cultura clássica. O termo
“ industria” (traduzimos por habilidade), também atribuído a Suintila, só pode ser entendido se
utilizarmos como referência e termo de comparação, a descrição que Isidoro faz de Gesaleico,
rei do inicio do séc. VI: muito vil, incapaz e desacertado. 99 Seria a falta de iniciativa, uma
apatia e certa indiferença com as coisas do reino. A virtude seguinte do unificador seria o
exame extremado dos juízos (in iudicis examinatio strenua), de maneira a propiciar a
verdadeira justiça: esta qualidade depende da anterior (industria) As qualidades de
generosidade para com todos (munificiencia) e ainda mais com os pobres e necessitados,
disposição para o perdão (misericordia) são consideradas como qualidades de imperadores do
Baixo império: se insere na tradição de ervegetismo real. 100
96 ORLANDIS, Historia de España, op. cit., p. 100. Diz que Martinho de Braga compôs a Formulae Vitae honestae, “[…] exposición de Etica cristiana que dedicó al rey Miro [...]”. REYDELLET, La royauté, op. cit., p. 548. Afirma que sem dúvida o modelo de Martinho lhe influenciou. “Sans doute Martin de Braga lui avait-il montré la voie avec sa Formulae Vitae honestae”. 97 REYDELLET, La royauté, op. cit., p. 549. Reydellet diz com convicção que Isidoro concebe estas virtudes como sendo condições ou deveres de um monarca. Essas virtudes são essenciais ao rei. A função exige estas virtudes do titular do trono. Diz: “[...] veut peut-être insister sur le fait que ces vertus, non seulement sont bonnes chez un roi, mais constituent l’essence même de la majesté, c’est à dire de ce que fait le roi e le met au dessus des autres”. 98 Id., ibid., loc. cit., aonde diz: “[...] non pas la loyatité mais la foi religieuse ; non pas la pieté comme Reccaredequi etait fide pius, mais la rectitude de la doctrine; le roi doit être catholique” . 99 ISIDORO DE SEVILHA, Las Historias, op. cit., c. 37, p. 233. Chama-o de “[...] vilissimus, ita infelicitate et ignavia summus [...]”. 100 REYDELLET, La royauté, op. cit., p. 551. Assemelham-se as figuras descritas por Cassiodoro em “Variae”. Trata-se de um modelo baixo imperial.
123
O mesmo se daria com a atenção primordial ao governo do reino: um monarca deve
ser muito envolvido com as questões dos súditos: deve reger e corrigir. Estas qualidades
definidas e descritas através de Suintila podem ser revistas e compreendidas melhor, em outra
obra isidoriana. Isidoro compara nas Etimologias a ação do monarca com a do sacerdote. A
palavra sacerdote vem de santificar, e rei vem de reger. E conclui: não rege o que não corrige.
101 O rei dotado destas três virtudes atuaria na sociedade e controlaria o comportamento
social. 102
Poder e atuação idealizada e desejada pela Igreja. O rei era governante por vontade
divina para impor a seus súditos a vontade divina emanada através de sua representante na
Terra: a Igreja. Seria uma clara divisão gelasiana das duas espadas: uma concepção que já
define que o monarca deve servir a Deus, a Igreja e em sua função primordial está a repressão
do pecado espalhado pelo mundo desde a Queda, com o Pecado Original. Neste ponto da obra
Isidoro atinge o auge de sua definição e busca de um modelo monárquico:
O final do livro é dedicado a um tema bastante sensível entre os monarcas: a sua
sucessão. Isidoro se tornará o co-autor do cânone 75, do IV CT (633), que definiu a eleição
dos sucessores dos reis por um colegiado composto pela nobreza e pelo alto clero.
Na obra História, ele se contradiz, com esta perspectiva. Há uma aura mágica na sua
descrição de Ricimero, o filho de Suintila, associado por seu pai ao trono e presumível
sucessor do trono. O trecho tem um colorido “sui generis”: fala do brilho de seu rosto que
demonstra sua índole sagrada e as qualidades únicas que herdou de seu pai. 103 Um retrato das
suas virtudes que com certeza farão com que os céus intercedam a seu favor, quando chegue
ao trono: isso nunca veio a ocorrer, pois seu pai foi deposto, como vimos.
101 ISIDORO, Etimologias, op. cit., L IX, c. 3, v. 4. Diz: “La palabra rey viene de regir (reges a regendo); pues como sacerdote viene de santificar, así rey viene de regir, y no rige el que no corrige” . 102 REYDELLET, La royauté, op. cit., p. 550. Reydellet diz: “[...] celui qui ne corrige pas ne régit pas [...] Il faut comprende que Suinthila portait un soin particulier à être un roi qui gouverne, qui régit et qui corrige”. 103 ISIDORO DE SEVILHA, Las Historias, op. cit.,c. 65, p. 280-281. Entre algumas expressões podemos salientar: “[...] in cuius infantia ita sacrae indolis splendor emicat[...]” ou “[...] ut in eo et meritus et vultu paternarum virtutum effigies praenotetur”.
124
A associação ao trono já fora feita por Liuva e Leovigildo; novamente através deste
ultimo, com seus filhos Hermenegildo e Recaredo; do ultimo com seu filho e sucessor Liuva
II, que acabou deposto e morto.
Qual seria a posição de Isidoro e da maior parte do alto clero hispânico diante da
sucessão ao trono? A participação de Isidoro e de todo o episcopado no IV CT e nas decisões
relacionadas com o cânone 75 deixam dúvidas e obscurecem a compreensão da possível
preferência do Hispalense. Com a exceção de Chindasvinto, não ocorreram sucessões
familiares a partir de 633.
Isso não significa que Isidoro fosse contrário à sucessão dinástica. Vale recordar que
Bráulio de Saragossa (Zaragoza), discípulo de Isidoro, sugeriu a Recesvinto que seguisse o
exemplo de David e designasse seu filho para sucedê-lo. 104 Bráulio concorda, estimula e
abençoa a sucessão, em carta ao monarca. Na opinião de Lynch & Galindo, Recesvinto só
decidiu nomear seu filho como sucessor após as bênçãos do bispo e sua plena aceitação. 105
Isso pressupõe que a Igreja não era francamente a favor da eleição real, e que poderia mudar
de postura de acordo ao momento político.
Se observarmos a obra isidoriana, não vemos na História, a utilização do termo eleger
salvo em uma exceção, no caso de Sigerico, do qual pouco fala, apenas que foi morto. 106 Se
Isidoro considerasse a eleição como maneira correta, teria utilizado mais vezes esta expressão
104 RIESCO TERRERO, L., Epistolario de San Braulio. Introducción, edición crítica y traducción, Sevilla, 1975, p. 148-149. Braulio é direto e explicito. Compara a sucessão de Moisés (que designou Josué) e de David (que nomeou seu filho Salomão) à coerência que seria a sucessão de Chindasvinto por Recesvinto. Diz: “Unde celorum regem et sedium omnium rectorem supplici prece deposcimus, qui et Moysi Ihesum sucessorem et in David trono filium eius constituit Salomonem, ut clementer insinuet vestri(s) animis ea que suggerimus et perficiat auxilio omnipotentie sue que in nomine eius, a vobis petentes fieri obtamus” . Podemos perceber que Bráulio não só concorda como estimula e abençoa com a graça divina, a nomeação do filho como sucessor. 105 LYNCH, Carlos; GALINDO, Pascual. San Bráulio obispo de Zaragoza (631-651): su vida y sus obras. Madrid: C S I C, 1950, p. 95. Diz: “En el 649 Chindasvinto asoció a su hijo Recesvinto en el trono. Esta determinación dinástica se hizo tan sólo después de una carta en que Braulio se lo suplicó al rey” .(Destaque feito por mim) 106 ISIDORO DE SEVILHA, Las Historias, op. cit., c. 20, p. 204 - 205. Diz: “[…] Gothis Siegericus princeps electus est”.
125
em sua obra que tende a oferecer modelos reais, para serem seguidos. Com Suintila e seu
filho, Isidoro encerra a sua “Historia”.
A nossa análise prossegue com o livro das Etimologias e com as Sentenças, duas
vigas mestras da obra isidoriana. Em ambas, vemos algumas definições muito importantes
para tentar entender a concepção isidoriana de monarquia.
Acreditamos que as “Sentenças”, obra magna de Isidoro tenha sido redigida durante o
reinado de Sisebuto. Nesta obra também se encontra o essencial das idéias isidorianas sobre
monarquia. No primeiro livro das Sentenças, Isidoro faz uma síntese da fé cristã definindo
categorias fundamentais; no segundo descreve os vícios e as virtudes e o processo de
conversão; no terceiro, parte das premissas desenvolvidas nos livros anteriores e analisa
alguns aspectos da vida social, orientando e pregando à sociedade atitudes e valores.
Neste terceiro livro encontramos a imagem do príncipe ideal em cinco capítulos: do 47
ao 51. Nas Etimologias há também vários trechos, e definições diversas. A definição
etimológica de rei e reino, feita por Isidoro pode servir de inicio para a seqüência de nossa
reflexão. No trecho anterior, no qual descrevemos Suintila, definimos que o rei deve corrigir.
Se “não rege o que não corrige”, a função do rei seria corrigir. Portanto o nome de rei se
obtém e se mantém, quando o monarca age corretamente e perde-o quando age mal. 107
Há uma clara concepção de poder e da função coerciva do Estado. No caso da
Antigüidade tardia, e que prevalecerá na alta Idade Média trata-se de uma concepção negativa
do Estado. Nas palavras de Bobbio, a função essencial do Estado seria “remediar a natureza
má do homem” [...] “considerando-o particularmente no seu aspecto repressivo”. 108
107 ISIDORO DE SEVILHA, Sentencias, L. 3, c. 48, v. 7. Afirma: “Reges a recte agendo vocati sunt ideoque recte faciendo regis nomen tenetur, peccando amittitur”. V. também: MARTIN, op. cit. , p. 86. Considera que a visão das Sentenças coincide com a das Etimologias, L. IX, c. 3, v. 4, apenas ampliando e complementando a sua analise, nas Sentenças. REYDELLET, La conception, op. cit.,p. 460-461, considera que: “Le nom même de rex revèle l’idéal auquel il est appelé[...]”. 108 BOBBIO, Norberto A teoria das formas de governo. 6. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1992, p. 78.
126
O livro das Etimologias nos dá definições diversas sobre conceitos tais como, rex,
princeps, dux, tyrannus. Uma das máximas isidorianas é a afirmação que: o nome do rei vem
de agir com retidão, na qual reafirma o que disse nas Sentenças. 109 O principal dever do rei é
agir com justiça e fazer o bem para os seus súditos.
Haveria uma brecha visível para as revoltas e os regicídios tão típicos, caso o rei não
cumprisse a sua função e se tornasse um tirano? Acreditamos que não é esta a intenção de
Isidoro. 110 Nossa opinião se fundamenta no conceito do Hispalense sobre o rei mau. Isidoro
considera que o rei mau é um castigo aos povos, tendo sido enviado por Deus para puni-los
por sua má conduta. 111
Percebe-se novamente uma forte influência bíblica: nas Escrituras, vemos que bastava
o povo pecar para ser punido de alguma forma: ora por invasão, ora por domínio, ora por um
governante cruel. Isidoro não se choca e não estimula a conspiração contra o poder
constituído. A legitimidade do governante vigente não é contestada: trata-se da vontade divina
e deve ser respeitada.
O fato inegável é que Isidoro trata de construir um conceito de rei justo e
fundamentado na moral e no bom serviço. Um rei que faça o mal se desvia de sua “razão de
ser” e se aproxima de um tyrannus. 112
Isidoro constrói uma idéia de rei santo: o modelo de Recaredo é um exemplo. Isidoro
enfatiza a semelhanças dos homens santos e dos reis, dizendo que no texto bíblico, ambos são
109 ISIDORO, Etimologias, op. cit. , L IX, c. 3, v. 4. Já citada em nota anterior. E enfatiza ao complementar: ”Rex eris, si recte facias: si non facias non eris”. Define-se aqui a maior função e a razão de ser dos monarcas: agir retamente e fazer a justiça, servindo de modelo para seus súditos. 110 REYDELLET, La conception, op. cit.,p.460-461, considera que: “Cette formule ne signifie pas qu’il soit legitime de déposer le mauvais roi”. 111 ISIDORO DE SEVILHA, Sentencias, L. 3, c. 48, v. 11. Quando os reis são bons, isto se deve ao favor de Deus; mas quando são maus, se deve aos pecados /crimes do povo. Diz: “Reges quando boni sunt, muneris est Dei, quando vero mali,sceleris est populi” . REYDELLET, La conception, op. cit.,p.460-461, concorda conosco e afirma que: “[...] la these soutenue par Isidore, selon laquelle les mauvais rois sont envoyés par Dieu pour le châtiment des peuple [...]”. 112 REYDELLET, La conception, op. cit., p. 461 afirma que o sentido da palavra tyrannus em Isidoro, é diferente do utilizado em outros autores. Não se trata de um governante ilegítimo, mas sim um governante mau. O autor acha que isso se deva a influência de Agostinho (Cidade de Deus, V, 19). Nos afirma: “Le seul sens possible de ces formules est que le roi qui fait le mal se met en contradiction avec le signification essentielle du mot rex, révélée par la etymologie: il devient dés lors un tyrannus”.
127
denominados reis. Ambos agem com retidão, controlam seus sentidos e dominam com acerto
o perigo dos vícios utilizando o bom juízo de sua razão. 113 Um rei assim sendo, é o senhor de
seus súditos, mas também senhor de si mesmo: não se deixa levar pelos sentidos, fraquezas,
vícios, desejos carnais ou sede de poder. Um rei idealizado: um servidor de Deus, um rei
santo.
O rei que não faça assim não será punido na vida terrena: será punido no inferno. 114
Usa de figuras alegóricas dizendo que quanto mais alto o posto e a honraria que um
governante se eleva, mais perigo corre; se abusar de seu poder e agir com maldade, maior será
o seu pecado. Os poderosos sofrerão terríveis tormentos: pagarão suas penas com juros. 115
Para Isidoro o problema não é apenas político e ele não dissocia a política da religião:
a política está inserida na religião e dela depende. O rei é um exemplo para seus súditos e
influencia-os para o bem e para o mal: por isso é preciso que não peque, a fim de que seu
descontrole e seu mau exemplo, não constituam um estímulo que conduza seu povo para os
“vícios”, que é uma expressão semelhante a pecado. 116
Se não for por imitação, o súdito também pode agir de maneira maldosa, por
obediência aos monarcas. 117 Assim ao rei compete ser um homem santo e não propagar a
maldade e o erro. Não precisa ser severo demais, e deve mesclar as virtudes da justiça e da
113 ISIDORO DE SEVILHA, Sentencias, L. 3, c. 48, v. 7. Diz: “Nam et viros sanctos proinde reges vocari in sacris eloquiis invenimus eo quod recte agant, sensusque proprios bene regant, et motus resistentes sibi rationabili discretione componant”. 114 ISIDORO DE SEVILHA, Sentencias, L. 3, c. 48, v. 6. Adverte aos que agem com soberba e prepotência, ostentando os símbolos do poder, vestidos da coroa e das vestes reais, lembrando o seu triste fim: “Qui vero prave regnum exercent, post vestem fulgentem et lumina lapillorum, nudi et miseri ad inferna torquendi descendunt”. 115 ISIDORO DE SEVILHA, Sentencias, L. 3, c. 50, v. 4. Isidoro novamente enfatiza o risco do governante, não temer a Deus e nem as chamas do inferno e se desviar e sucumbir aos vícios:“[...] Reges autem, nisi solo Dei timore metuque gehennae coerceantur, libere in praeceps proruunt, et per abruptum licentiae in omne facinus vitiorum labuntur”. O termo Gehenna é hebraico e significa inferno. No versículo seguinte (5) fala do pagamento com juros aos que mais recebem, mais se exige: “Cui etenim plus committitur, plus ab eo exigitiur, etiam cum usura poenarum”. 116 ISIDORO DE SEVILHA, Sentencias, L. 3, c. 50, v. 6. Isidoro afirma que o exemplo dos reis contamina os súditos: “Reges vitam subditorum facile exempli suis vel aedificant, vel subvertunt, ideoque principem non oportet delinquere, ne formam peccandi faciat peccati eius impunita licentia”. 117 ISIDORO DE SEVILHA, Sentencias, L. 3, c. 50, v. 7.
128
piedade. 118 O Hispalense enfatiza a grandeza da piedade, que supera a rigidez da justiça:
entende a justiça, neste trecho das Etimologias no seu senso estrito.
Nas Sentenças, ao qualificar a justiça, num capitulo que se denomina “A justiça dos
príncipes”, 119 Isidoro volta à vertente moralista e prática. Insiste no combate a soberba e ao
abuso de poder, propõe o modelo davídico: o rei ungido não se gaba de seus méritos, mas
sabe de sua igualdade com o gênero humano, sendo todos os humanos, iguais e mortais. 120
O poder foi criado por Deus e emana de cima para baixo: trata-se de uma necessidade
para ordenar a sociedade e impedir o pecado: se for assim utilizado é bom. 121 O poder deve
ser utilizado para os propósitos divinos: ordenar a sociedade, coagir e controlar o pecado e os
vícios, e fazer o bem.
O rei não o pode utilizar para seus próprios interesses: trata-se de um dever, de um
serviço ou officium. 122 A perigosa ilusão das honras é ressaltada por Isidoro, que adverte
inúmeras vezes, sobre este risco: numa delas denomina “inchação do coração”, à soberba. 123
O seu fundamento são os autores latinos, tais como Sêneca, Suetônio, e Tácito que discutiram
118 ISIDORO, Etimologias, op. cit., L IX, c. 3, v. 5. Isidoro qualifica a justiça e a piedade, enfatizando a severidade da primeira e dando a entender a relativa superioridade da piedade (virtude cristã). Diz: “Regiae virtutes praecipuae duae: iustitia et pietas. Plus autem in regibus laudatur pietas; nam iustiia per se severa est” . 119 ISIDORO DE SEVILHA, Sentencias, L. 3, c.49 (De iustitia principum). 120 MARTIN, op. cit., p. 1-4. A partir do exemplo de David descreve as qualidades do rei: humilde, coerente na justiça, ciente de sua fragilidade, bondoso com o povo, e que sabe admitir seus erros e corrigi-los, tal qual David. 121 Id., ibid., p. 85. Diz que no cap. 47, do terceiro livro das Sentenças, “encontramos duas constantes do pensamento isidoriano: o poder vem diretamente de Deus e foi estabelecido por Ele para o bem comum”. ISIDORO DE SEVILHA, Sentencias, L. 3, c. 47, v.1 (veja nota seguinte).Isidoro repete no L. 3, c. 48, v. 5 que o poder que se recebeu de Deus, para reprimir o mal, é bom. Afirma: “Potesta bona est, quae a Deo donante est, ut malum timore coerceat [...]”. O poder desde que direcionado para a função de reprimir o mal, se torna bom. O negrito é nosso. 122 REYDELLET, La conception, op. cit., p. 458.Segundo o autor, Isidoro repete o modelo romano de rei, que deve ordenar a sociedade, legislar; bem diferente do modelo germânico de chefe militar. Diz: . “[...] considère la royauté non pas comme une dignité mais comme un service, un officium, et qu’elle voit dans la confection des lois sa mission fondamentale; conception toute romaine d’ailleurs, aux antipodes de la tradition germanique du roi conçu comme un chef de guerre”. 123 ISIDORO DE SEVILHA, Sentencias, L. 3, c.48, v. 8, diz: “[...] dumque ad culmen potestatis venerint, in apostasiam confestim labuntur, tantoque se tumore cordis extollunt, ut cunctos subditos in sui comparatione despiciant [...]”. Perceba-se a irônica expressão tumor (inchação, orgulho e vaidade) do coração. O negrito é nosso.
129
o poder e desenvolveram o conceito de officium. 124 O rei não tem nenhuma superioridade
sobre seus súditos.
Mas se todos são iguais perante Deus, por que são diferentes na vida terrena? Qual
seria a razão de ser para o poder? Isidoro concebe toda a sua visão de mundo a partir do
pecado original. Afirma que por causa do pecado original, Deus impôs ao gênero humano, o
castigo da servidão, que por vontade divina é imposta aos que Deus entende que não podem
usufruir a liberdade. 125
Essa postura entra em contradição com a doutrina do batismo: o pecado original seria
perdoado pelo batismo. Isidoro complementa dizendo que apesar disto, Deus dispôs a vida
dos homens, de maneira hierárquica a fim de que “a licença dos súditos para fazer o mal fosse
reprimida pelo poder dos soberanos”. 126
Na opinião de Reydellet trata-se de uma contradição que não tem por fundamento nem
Agostinho e nem Gregório Magno. 127 O segundo enfatiza a terapêutica do pecado pelo poder
aplicado de maneira adequada. 128 Isidoro entra em contradição: o poder é a conseqüência do
pecado original, mas o batismo anula o pecado original e desta maneira anula o poder. Assim
sendo a razão de se manter o poder ou justificá-lo se perde. Isidoro apenas diz: assim dispôs
Deus. 129 Reydellet concorda com o dilema e a contradição e oferece duas maneiras de
124 REYDELLET, La conception, op. cit.,p. 459. 125 ISIDORO DE SEVILHA, Sentencias, L. 3, c. 47, v. 1. Identifica a origem do poder no pecado original. Diz: “Propter peccatum primi hominis humano generi poena divinitus illata est servitutis, ita ut quibus aspicit non congruere libertatem, his misericordius irroget servitutem”. 126 Id., ibid., loc. cit. Isidoro conceitua a origem do poder na repressão dos pecados, pelo rei. A razão de ser do poder, seria a repressão do mal, dos vícios, do mal. Diz: “Et licet peccatum humanae originis per baptismi gratiam cunctis fidelibus dimissum sit, tamen aequus Deus ideo discrevit hominibus vitam, alios servos constituens, alios dominos, ut licentia male agendi servorum potestate dominantium restringatur”. 127 REYDELLET, La conception, op. cit.,p. 459. Reydellet não vê fundamento na subordinação do homem por causa do pecado original. Nem vê apoio na doutrina de Agostinho e nem na de Gregório: “Cela peut, en effet légitimement surprendre: la Bible ne dit rien de tel, pas plus que saint Augustin ou saint Grégorie qui sont généralement la source d’Isidore dans les sententiae”.V. também REYDELLET, La royauté, op. cit., p. 568-570. 128 REYDELLET, La royauté, op. cit., p. 569. Diz: ”Gregoire insistait davantage sur le pouvoir comme remede du péche”. 129 ISIDORO DE SEVILHA, Sentencias, L. 3, c.47, v. 1. Diz: “[...] tamen aequus Deus[...]”. Assim dispôs Deus.
130
resolver a dúvida: ou o poder não seria conseqüência do pecado original ou o batismo não
anularia todas as conseqüências do pecado original. 130
Há também uma outra conseqüência do pecado original que o batismo não anula: a
morte. Isidoro não se aprofunda no tema e deixa claro que não pretende mostrar a origem do
poder, mas apenas justificá-lo. O batismo iguala a todos os cristãos diante de Deus e propicia
a criação de uma comunidade sagrada de membros: a Igreja. É o sacramento constitutivo da
Igreja. Pela unção que o acompanha o cristão, se torna membro do corpo espiritual do Rei
Eterno. 131 O batismo é o ponto de partida de toda a teoria isidoriana de poder. A partir da
vinda de Jesus, todos os fiéis participam da realeza de Cristo: a Igreja unifica os fiéis.
A teologia política isidoriana renova os conceitos existentes no Baixo Império. Um
sentimento de inferioridade grassava entre as monarquias bárbaras diante do Império: este era
o único universal, o único legítimo e fundamentado na História. Nas palavras de Reydellet, os
reinos bárbaros sofriam de um complexo, que ele denomina “pecado original”. 132
Isidoro altera esta visão, desenvolvendo um novo conceito de monarquia cristã. Isso se
fundamenta na substituição do Império pela Igreja, como principio de universalidade. A idéia
de Império universal era totalitária e não deixava espaço às monarquias, que se assemelhavam
a rivais inferiores; a Igreja admitia a pluralidade, pois se compunha de uma infinidade de
células que juntas compunham o reino ou a realeza de Cristo.
Por que Isidoro fazia esta mudança? Deve haver várias razões. Uma delas nos
interessa muito e vamos tentar desenvolvê-la. Além das razões políticas e da busca de unidade
em todos os aspectos sociais, há razões religiosas. Os arianos e os judeus negavam de sua
130 REYDELLET, La royauté, op. cit., p. 570. Trata-se de uma contradição quase insolúvel e que Isidoro se desvia dela e evita discuti-la. 131 Id., ibid., p.571. Diz: “Par l’onction qui l’accompagne, le chrétien devient membre du corps spirituel du Roi Éternel”. 132 Id., ibid., p. 556. Diz: “[...] il la délivra de son péché originel, du poids de son origine historique et de son statut d’infériorité en face de l’Empire”.
131
maneira, a validade da Trindade, de acordo ao credo de Nicéia. Os arianos estavam vencidos e
em fase de desaparição: sua ênfase era nas diferenças entre o Pai e o Filho. Já os judeus
negavam a Trindade como sendo um desvio do monoteísmo do Antigo Testamento. A
teologia de Isidoro é essencialmente cristológica. 133 Diferente de Gregório Magno que
enfatiza a moral, Isidoro enfatizou a questão tipológica, na maior parte de sua obra, para
provar a divindade de Jesus. 134 Por quê?
Em primeiro lugar para combater os judeus e arianos. E em segundo lugar para
construir a sua concepção político-religiosa. Isidoro não era monarquista, por ideologia. Era
“realista”, pois vivia na realidade: vivia num mundo de reis. Inseri-los na cristandade e fazê-
los parte do plano divino, era seu objetivo.
A sua cristologia era um dos fundamentos de sua fé. Por isso estabeleceu a partir dela
a doutrina política. De acordo a Isidoro, o significado da palavra Cristo era “ungido”: os reis e
sacerdotes do período bíblico eram ungidos com um óleo bento. 135 Assim sendo Cristo não
seria o nome próprio do Senhor: seria uma espécie de título que podia ser ostentado por reis e
sacerdotes. 136
O nome do Redentor era Jesus (Ieshu), que em hebraico provém do radical salvação
(Ieshuá), pois veio trazer a salvação para todos os povos. 137 Por isso Isidoro insiste em juntar
133 Id., ibid., p. 557. Diz: “La théologie d’Isidore est donc, avant tout, fondée sur une christologie”. E enfatiza toda a obra teológica de Isidoro, tendo como fundamento a comprovação da divindade de Jesus. 134 Id., ibid.. Reydellet confirma o que frisamos no capitulo anterior: “[...] s’interesser plus à la typologie qu’à la morale: tous les principaux personnages de l’Ancien Testament sont les figures du Christ”. Isso analisamos e frisamos muito em nosso texto,referenciado anteriormente: FELDMAN, Sergio Alberto. Exegese e alegoria: a concepção de mundo isidoriana através do texto bíblico. 135 ISIDORO, Etimologias, L.VII, c. 2, v. 2. Usa da tradição bíblica para explicar. Diz: “Christus namque a chrismate est appellatus, hoc est unctus. Praeceptum enim fuerat Iudaeis ut sacrum conficerent unguentum, quo perungui possent hi qui vocabantur ad sacerdotium vel ad regnum...”. 136 Id., ibid., v. 4. O nome ungido ou Cristo não é exclusivo do Salvador: ”Non est autem Salvatoris proprium nomen Christus, sed communis nuncupatio potestatis”.Serve para ocupantes de cargos especiais:sacerdotes e monarcas. 137 Id., ibid., v. 7. Diz: “Iesus Hebraice, Graece “sotér”, Latine autem salutaris sive salvator interpretatur, pro eo quod cunctis gentibus salutifer venit”. Não temos como anotar em grafia grega o termo “sotér”.
132
os dois termos e compor o nome completo Jesus Cristo: Jesus o “Salvador” e Cristo o ungido
ou o “rei”. 138 Assim não importa o rei que nos salva, mas o Rei Salvador. 139
Isidoro não enfatiza a unção sacerdotal e deixa-a praticamente de lado. A realeza de
Cristo é reafirmada nas “Alegorias”, quando Isidoro descreve os presentes simbólicos dos três
reis magos, que simbolizam uma das facetas de seu triplo poder: o incenso simboliza
divindade, a mirra sua humanidade e o ouro sua realeza. 140 Esta realeza seria ampla e
irrestrita: “regem omnium saeculorum”. Ela se fundamenta na dupla natureza (humana e
divina) e através do tempo e do espaço.
Toda a exegese isidoriana trata de demonstrar que Cristo descende de David, e que foi
anunciado pelos profetas: preenche todos os aspectos destas profecias e promessas. O “De
Fide” enfatiza estas teses seguidamente, 141 indo e voltando a este tema; as “Allegoriae”
também o fazem.
Isidoro repete seguidamente que nunca mais surgiram reis em Israel, depois do
aparecimento de Cristo: Herodes era um estrangeiro e não pertencia a descendência de David.
142 Jesus Cristo não abolira esta realeza de Israel, mas a perpetuara pelos séculos: a ampliara e
a tornara universal. Ele representa as virtudes e o poder do Pai, e “governa, administra e rege
todas as criaturas do céu e da terra”: o governante supremo. 143 E sendo a Igreja universal e
tendendo à conversão de todos os povos e se expandindo para todas as terras, em seu seio se
consumaria a realeza: a Igreja é o “Regnum Christi”.
138 Id., ibid., v.8. Diz: “Sicur enim Christus significat regem, ita Iesus significat salvatorem” 139 Id., ibid., v.9. Diz: “Non itaque nos salvos facit quicumque rex, sed rex Salvator”. 140 ISIDORO DE SEVILHA, Allegoriae, 142. ML 83, 117. Aonde descreve os magos e seus presentes: “Magi figuraverunt gentium populos lucem fidei cognituros indicantes sacramentorum muneribus Christum per thus esse Deum, per myrrham hominem passum atque sepultum, per aurum regem omnium saeculorum”. 141 FELDMAN, Sergio Alberto Isidoro de Sevilha e a desmontagem do Judaísmo In: Relações de poder, Educação e Cultura na Antiguidade Idade Média. Santana do Parnaíba: Solis, 2005, v.1, p. 341-352. Neste analisamos a obra De Fide Catholica. 142 REYDELLET, La royauté, op. cit., p. 559. Reydellet frisa alguns aspectos. Um deles é o uso de um texto de Agostinho, no qual a tese central é a desaparição da realeza em Israel após o nascimento de Cristo: “Ce texte insiste particulièrement sur la disparition de la royauté em Israël, a partir de la naissance du Christ”. Além disso, considera Herodes um “rex alienigena”, que não pertencia a casa real de Judá pois não descendia de David. 143 ISIDORO, Etimologias, L.VII, c. 2, v. 24. Isidoro qualifica seu poder, como virtus (por que é temporal e espiritual). Diz: “Virtus pro eo quod omnem potestatem Patris in semetipso habeat, et omnem caeli terraeque creaturam gubernet, contineat atque regat”.
133
Nas palavras de Reydellet, a realeza de Cristo se dá no interior da Igreja, na qual o
”Cristo é Esposo”. 144 Inúmeros tipos são descritos para simbolizar o casal Cristo e Igreja. Um
destes são Ruth e Boaz, os bisavôs do rei David, iniciador da dinastia real da qual sairia o
ungido. Sendo Ruth moabita, Isidoro a denomina estrangeira, e vê nela Igreja proveniente dos
gentios, e que se dirige ao Cristo; seu esposo Boaz era da tribo de Judá, representa o Cristo,
verdadeiro esposo da Igreja. 145
E o que simboliza esta unidade de Cristo na Igreja, através desta tipologia de um casal
sagrado? A Igreja é sua representante única na Terra, já que sendo a sua esposa, se uniu a Ele,
numa só carne, através da Revelação contida no Novo Testamento. 146 São dois em um só:
Cristo e a Igreja são uma só realidade: o Cristo é Rei e Esposo e a Igreja é sua representante
na terra e portadora de sua verdade.
Só a Igreja pode interpretar as Escrituras, já que é a representante do seu esposo e Rei.
Isidoro já analisara em suas obras exegéticas estas idéias. Nas “Alegorias” compara, por
exemplo, Maria com a Igreja, esposa de Cristo, que sem deixar de ser Virgem, nos concebeu
por virtude do Espírito Santo, e também nos deu a “luz”, permanecendo virgem. 147 Ou em
outro trecho, entre muitos, diz que “o esposo é Cristo (João II), que celebra suas bodas com a
Igreja, em cuja união a água se converte em vinho, por que os fiéis passam pela graça do
batismo a coroa da Paixão”. 148.
144 REYDELLET, La royauté, op. cit., p. 560-561. O autor diz que a realeza de Cristo se consuma “à l’intérieur de l’Église dont le Christ est l’Époux”. (p. 560). E adiante complementa, a : “ 145 ISIDORO DE SEVILHA, Allegoriae, 82-83. ML 83, 112. Sobre Ruth diz: “Ruth alienigena, quae Israelitico viro nupsit, Ecclesiam ex gentibus ad Christum venientem ostendit”. Sobre Boaz que alegoriza o tipo de Jesus, diz:”Booz autem Christum verum Ecclesiae sponsum expressit” 146 ISIDORO, Etimologias, L.VII, c. 2, v. 33. Isidoro desenvolve neste trecho a unidade de Cristo (esposo e Rei) com a Igreja (esposa e representante legal do Rei). Diz: “Sponsus, quia descendens de caelo adhaesit Ecclesiae, ut pace Novi Testamenti essent duo in carne una”. 147 ISIDORO DE SEVILHA, Allegoriae, 139. ML 83, 117. Diz: “Maria autem Ecclesiam significat, quae cum sit desponsata Christo, virgo nos de Spiritu sancto concepit, virgo etiam parit (Matth. I)”. 148 Id., ibid., 233, ML 83, 127. Diz de maneira alegórica que a união de Cristo esposo, com a Igreja é simbolizada no batismo e na Paixão (água que vira vinho/ sangue). Diz: “Sponsus (Joan. II) Christus est; cujus nuptiae cum Ecclesiae celebrantur, in cujus conjunctione aqua in vinum mutatur, quia credentes per lavacri gratiam transeunt ad passionis coronam”.
134
Na “De Fide”, Isidoro afirma que a insígnia da realeza de Cristo seria a cruz, como
anunciado por Isaías (9,6), fazendo uma alegoria da cruz e da coroa. 149 Isidoro prossegue na
sua reflexão, estabelecendo a especificidade da realeza de Cristo: enfatiza de maneira ideal e
através de figuras ou tipos, a importância da unção dos reis judeus. Esse era o sinal da relação
especial dos reis com Deus, do pacto de Deus com a monarquia judaica, descendente da casa
de David. O símbolo da unção dos reis prossegue o processo de eleição iniciado com o pacto
dos Patriarcas com Deus. O novo pacto e o Cristo (ungido) não o anulam, mas o ampliam
para “as gentes”, ou seja, o que era um privilégio de uma nação se torna o bem de todas. 150 A
relação não é direta com a realeza bíblica, mas com o Cristo (ungido).
A unção real visigoda foi instituída para sacralizar a realeza visigodo católica. Não é
fácil se definir o momento exato em que os reis começaram a ser ungidos, mas com certeza a
influência isidoriana é marcante: o IV CT estabeleceu por escrito as normas da sucessão real
em 633 d. C., mas tudo indica que somente em 672 ocorreu a primeira unção, com Wamba.
151 A necessidade de legitimar o rei e impedir os sucessivos golpes de Estado e os regicídios
são alguns dos motivos desta legislação canônica e do desenvolvimento deste rito. 152
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Isidoro não desenvolveu toda esta teoria apenas para resolver as questões da
estabilidade da monarquia. Esta reflexão se insere na maneira que Isidoro concebia o
momento histórico. Após Cristo ter descido a Terra pela primeira vez este assumiu a plenitude
149 ISIDORO DE SEVILHA, De fide, op. cit., L. 1, c. 34, v. 1-2, ML 83, 483-484. Diz: “Quis enim regum potestatis insígnia in humero portat et non aut in capite coronam, aut aliqua propriae vestis ornamenta?”. 150 REYDELLET, La royauté, op. cit., p. 562. Diz: “Mais avec le Christ, ce qui etait le privilège d’une nation devient le bien de tous” . 151 ORLANDIS, José. Estudios de Historia eclesiástica visigoda. Pamplona: EUNSA, 1987, p. 89-90. O autor tece analises diversas sobre o tema, de maneira ampla e muito profunda. 152 Id., ibid., c. VI, p. 83-92.
135
da realeza de Israel, para transferi-la às nações: depois dele não houve mais reis em Israel. 153
A Igreja é definida por Isidoro como sendo universal (católica) e o termo grego “Eclésia”,
traduzido em latim, significa “convocação”, caracterizando sua vocação de congregar a todos
os povos. 154 Em toda a extensão da sua obra “De Fide”, Isidoro diferencia a limitada
presença dos judeus diante da multidão de povos que a Igreja congrega: fala, por exemplo, do
“povo da circuncisão” e do “povo das gentes”. 155 O que une esta imensidão de povos é a
Igreja e seu rei e esposo Cristo. A interpretação do Salmo 101 serve de oportunidade para uma
leitura alegórica do v. 23, aonde se fala da união de povos sob uma crença única e um só Rei:
Isidoro a interpreta de maneira a justificar a unidade sob a Igreja e sob Cristo. 156
Há a um só tempo uma concepção que enfoca a monarquia visigótica e outra que se
insere na finalidade da História: o microcosmo reflete o macrocosmo. Cristo e o Juízo final
seriam a finalidade da História: o monarca seria uma alegoria do Cristo ou ungido, numa
dimensão política local.
Essas alegorias se repetem por toda a obra do Hispalense. Fazendo uma alegoria que
utiliza a figura de Miriam, (irmã de Moisés e Aarão), compara-a com a Sinagoga. Num trecho
do 157Livro de Números (cap. 11), Miriam se enciúma da esposa etíope de Moisés e começa a
falar de maneira desrespeitosa da mesma. Deus a pune com uma doença de pele (lepra!) mas
153 REYDELLET, La royauté, op. cit., p. 563. Diz: “[...] le Christ assume la plénitude de la royauté d’Israël pour la transférer aux nations. Après Lui il n’y a plus de rois d’Israël ”. 154 ISIDORO, Etimologias, L.VIII, c. 1, v.1. Isidoro define o termo Igreja a partir do seu significado em grego, para definir seu caráter universal e convocatório. Diz: “Ecclesia Graecum est, quod in Latinum vertitur convocatio, propter quod omnes ad se vocet. Catholica, universalis (Kat’hólon), id est secundum totum”. Em seguida aclara que nenhuma das seitas heréticas tem o seu alcance e extensão. 155 ISIDORO DE SEVILHA, De fide, op. cit., L. 2, c. 24, v. 4, ML 83, 531. Diz: “populum circumcisionis”e contrapõe o “populum gentium”. Isso se repete diversas vezes no texto isidoriano, principalmente no “De fide”. 156 ISIDORO DE SEVILHA, De fide, op. cit., L. 2, c. 1, v. 3-4, ML 83, 499. Num longo trecho selecionamos duas citações. Numa diz que se unirão em um único grupo, diversos povos impregnados de crenças diversas e se reúnem numa mesma fé, se chamarão um reino e também um único povo de Deus. Diz: “In unum utique, id est, in unum regem, ut qui diversorum ritu simulacrorum regna multa, et populi multi dicebantur, in unam convenienda fidem, unus Dei populus, unumque regnum vocetur”. E numa segunda citação, na seqüência qualifica os “outros”, os infiéis ou Babilônia, como ele alegoriza, sendo os que vivem na casa e mulher do Diabo: “ [...] Babyloniam scilicet, quae diaboli et domus, et conjux est, et Christo fidei conjugio copulari”. Os destaques são nossos. 157 ISIDORO DE SEVILHA, Allegoriae, 61. ML 83, 108. Diz o bispo de Sevilha: “Maria, soror Moysi (Num. XII), Synagogae speciem praetulit, quae leprosa propter detractionem et murmurationem contra Christum exstitat ” .
136
ao final do episódio, Moisés obtém o perdão e a cura da irmã que fizera maledicência. Recai
sob Miriam a punição de isolamento e quarentena fora do acampamento.
Este episódio serve para simbolizar, nas “Alegorias”, a figura da Igreja que reúne os
gentios, na esposa etíope (representando os povos que entraram na Igreja) que desposou
Cristo (figurado por Moisés). E a invejosa e ciumenta Miriam, simboliza a Sinagoga, que
desata em injúrias e calúnias contra o Cristo e contra a Igreja e fica coberta de feridas e lepra.
Esta unidade entre Cristo e a Igreja e entre o Rei e o esposo, se traduz também na
visão da realeza por Isidoro: muitos reinos e povos formando uma unidade sob um só Rei, ou
nas palavras de Reydellet, “em um só Rei”. 158
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de governo. 6. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1992.
DIAZ y DIAZ, M. C. Escritores de la Península Ibérica. In: Patrologia IV : del Concilio de Calcedonia (451) a Beda: Los padres latinos. Madrid: BAC, 2000.
FELDMAN, Sergio Alberto. Isidoro de Sevilha e a desmontagem do Judaísmo. In: Relações de poder, Educação e Cultura na Antiguidade Idade Média. Santana do Parnaíba: Solis, 2005, v.1, p. 341-352.
______. Exegese e alegoria: a concepção de mundo isidoriana através do texto bíblico. Revista de História: Dimensões. Vitória (Espírito Santo): v. 17, p. 133 – 149, 2005.
158 REYDELLET, La royauté, op. cit., p. 564. O autor fala da unidade dos povos e gentes sob um Rei único, ou seja: a unidade deles em Cristo. Frisa, portanto a diferença entre estar sob o domínio de Cristo e ser uma unidade em Cristo. Diz: “Isidore revê d’une véritable République chrétienne de toutes les nations rassemblées sous un seul Roi, ou plutôt, comme il se dit si fortement, en un seul Roi”.
137
FONTAINE, J. Conversion et culture chez les wisigoths d’Espagne. In: FONTAINE, J. Culture et spiritualité en Espagne du IVe au VIIe siécle. Londres: Variorum Reprints, 1986.
______. Isidoro de Sevilla, padre de la cultura européia. In: La conversion de Roma: Cristianismo y paganismo. Madrid, 1990.
______. Isidore de Séville et la culture classique dans l’Espagne wisigothique. Paris: Études Augustiniennes, 1983.
GARCIA MORENO, L. A. Historia de España visigoda. Madrid: Cátedra, 1989.
ISIDORO DE SEVILHA. Allegoriae quaedam sacre scripturae. In: MIGNE (ed.) Patrologia Latina , t. 83, c. 97-130.
______. Allegoriae quaedam sacre scripturae. In: MOLINERO, L. La alegorias de la Sagrada Escritura de S. Isidoro de Sevilla. Buenos Aires: Cursos de Cultura Catolica, 1936.
______. Chronicon. In: MIGNE (ed.) Patrologia Latina, t. 83, c. 1017-1058.
______. De Ortu et obitum patrum: Vida y muerte de los santos. Introducción, edición crítica y traducción por C. C. Gómez. Paris: Societé d’Editions “Les Belles Lettres, 1985.
______. Etimologias. Tradução de L. Cortés y Góngora e introdução e índices de S. M. Díaz. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1951.
______. Etimologias. Tradução de J. Oroz Reta; E. A Marcos Casquero, introdução de M. C. Díaz y Díaz. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1982.
______. De fide catholica ex veteri et novo testamento contra judaeos. In: MIGNE (ed.) Patrologia Latina, t. 83, c. 449-538.
______. Las Historias de los godos, vandalos y suevos. Ed. C. Rodrigues Alonso, León: Centro de Estudios S. Isidoro, 1975.
138
______. Los tres libros de las “Sentencias”. In: Santos padres españoles II: San Leandro, San Isidoro, San Fructuoso. Introducciones, versión y notas de J. Campos Ruiz; I. Roca Melia. Madrid: BAC, 1971.
JOÃO DE BICLARO. Crônica. Madrid: C S I C, 1960.
LYNCH, Carlos; GALINDO, Pascual. San Bráulio obispo de Zaragoza (631-651): su vida y sus obras. Madrid: C S I C, 1950.
MARTIN, M. S. G. A teoria política visigoda. In: DE BONI, L. A. (org.) Idade Média: Ética e política. 2.ed., Porto Alegre: Edipucrs, 1996.
ORLANDIS, José. Estudios de Historia eclesiástica visigoda. Pamplona: EUNSA, 1987
______. Historia de España: la España visigótica. Madrid: Gredos, 1977.
______. Historia del reino visigodo español. Madrid: Rialp, 1988.
ORLANDIS, J.; RAMOS LISSON, D. Historia de los concilios de la España romana y visigoda. Pamplona: Universidad de Navarra, 1986.
RIESCO TERRERO, L., Epistolario de San Braulio. Introducción, edición crítica y traducción, Sevilla, 1975.
REYDELLET, M. La conception du souverain chez Isidore In: Isidoriana. Leon: 1961.
______. La royauté dans la litterature latine de Sidone Apollinaire à Isidore de Seville. Roma: Ecole Française de Rome, 1981.
RIBEIRO, Daniel Valle. A sacralização do poder temporal: Gregório Magno e Isidoro de Sevilha. In: SOUZA, José Antônio de C.R. de & BONI, Luis Alberto de (org.) O reino e o sacerdócio: o pensamento político na alta Idade Média. Porto Alegre: Edipucrs, 1995.
TEILLET, S. Des goths à la nation gothique: les origines de l’idée de nation en Occidente du Ve au VII e siècle. Paris: Belles Lettres, 1984.
139
VALVERDE CASTRO, M. R. Ideología, simbolismo y ejercicio del poder real en la monarquía visigoda: un proceso de cambio. Salamanca: Universidad de Salamanca, 2000. VIVES, Jose (ed.) Concilios visigóticos e hispanos romanos. Madrid: CSIC, 1963.
.
140
“Vou cantar para ver se vai valer” 159: a configuração da categoria MPB no
repertório das intérpretes (1964-1967)
Luiz Henrique Assis Garcia
Resumo: A proposta deste artigo é investigar a configuração da categoria MPB através da
análise de práticas musicais e escolhas estéticas realizadas por cantoras que participaram do
momento de sua elaboração inicial, ocorrido num contexto de importantes transformações na
história da música popular brasileira: a revisão crítica do projeto modernizador lançado pela
bossa nova e a efervescência dos embates em torno do “nacional” e do “popular”.
Para tanto, considero a sigla MPB, criada em meados dos anos 1960, como signo em aposta
(SAHLINS), que deve ser abordado no contexto de sua elaboração e uso, e não como
expressão sinônima de “música popular brasileira”. Um exame do repertório em disco de
cantoras como Nara Leão, Elis Regina, Maria Bethânia, Flora Purim e Gal Costa, entre 1964 e
1967, mostra um leque de escolhas que revela intercâmbios e ajuda a entender o ecletismo
que cerca o emprego da emergente categoria.
Palavras- Chave: Cantoras - História da MPB - categoria em aposta
159 Trecho de Reza (Ruy Guerra - Edu Lobo)
141
“Vou cantar para ver se vai valer”: the configuration of the category MPB in the female
interprets’ repertoire (1964-1967)
Abstract: This article intends to investigate the configuration of the category MPB through
the analysis of musical practices and aesthetical options performed by female singers that
actuated at the moment of its early elaboration, occurred in a context of important
transformations in the history of brazilian popular music: the critical revision of modernizing
project launched by bossa nova and the blossoming of engagements around the “national” and
the “popular”.
In order to do it, I consider the acronym, bred in middle of the 60s, as a sign-in-bet
(SAHLINS), that should be approached in the context of its elaboration and use, and not as
synonym expression for “brazilian popular music”. An examination of the repertoire in record
of female singers as Nara Leão, Elis Regina, Maria Bethânia, Flora Purim and Gal Costa,
between 1964 and 1967, shows a number of choices that discloses interchanges and helps to
understand the diversification that rounds the emergent category.
Key- Words: Female singers - MPB's history - sign-in-bet
Nas prateleiras das lojas de discos novos ou usados (CDs e/ou LPs), nas colunas dos
críticos especializados, nos catálogos de gravadoras ou sites de música na internet, consagrou-
se uma expressão que abarca uma gama considerável da produção musical realizada no Brasil:
MPB. No entanto, é preciso evitar tomar a sigla de forma irrefletida. É necessário refletir
sobre seus diferentes usos, e entendê-los como constitutivos dos significados – muitas vezes
contraditórios – que lhe são socialmente atribuídos. Em alguns momentos, ela aparece
142
identificada a certa geração de compositores e intérpretes, em outros a um gênero, e, ainda,
enquanto categoria que abarca literalmente toda a música considerada popular e brasileira.
A proposta deste artigo é investigar a configuração desta categoria através da análise
de práticas musicais e escolhas estéticas realizadas por cantoras que participaram do momento
de sua elaboração inicial, ocorrido num contexto de importantes transformações na história da
música popular brasileira: a revisão crítica do projeto modernizador lançado pela bossa nova e
a efervescência dos embates em torno do “nacional” e do “popular” (NAPOLITANO, 2002:
70). Vale ressaltar, portanto, que adoto a sigla MPB, criada em meados dos anos 1960, como
categoria em aposta a ser discutida no contexto de sua elaboração e uso, e não como
expressão sinônima de “música popular brasileira”, já que esta pode ser usada para fazer
referência à música urbana não erudita desde a modinha em fins do XVIII, ou, no contexto da
fonografia, desde as primeiras gravações de samba nas primeiras décadas do século XX
(BASTOS, 1996: 175).
Se o recorte proposto demarca um período marcado por antagonismos, é necessária a
critica de uma visão que imputa fronteiras bem definidas entre movimentos musicais
classificados como antagônicos, desconsiderando certas nuances, tanto no que diz respeito à
sua suposta “unidade interna” quanto à oposição mutuamente excludente dos mesmos. Um
exame do repertório em disco de cantoras como Nara Leão, Elis Regina, Maria Bethânia,
Flora Purim e Gal Costa, entre 1964 e 1967, mostra um leque de escolhas que revela
intercâmbios e ajuda a entender o ecletismo da então emergente categoria MPB.
A CATEGORIA MPB COMO SIGNO EM APOSTA
143
Para o antropólogo Marshall SAHLINS, o mundo simbólico é marcado por conflitos
de natureza social e política, há disputas em torno dos significados e das possibilidades de
instituí-los. A cultura, longe de ser uma estrutura estanque e estática, está sempre em
transformação, ainda que esta esteja destinada a preservar a mesma estrutura: “quanto mais as
coisas permanecem as mesmas, mais elas se transformam!”. Inserida na história, alterada por
eventos (mesmo aparentemente insignificantes!), a cultura vai se redefinindo através da ação
dos homens: “Toda reprodução da cultura é uma alteração, tanto que, na ação, as categorias
através das quais o mundo atual é orquestrado assimilam algum novo conteúdo empírico.”
(SAHLINS, 1990: 181).
Assim, na sua antropologia histórica (ou seria o inverso?) é possível perceber uma
dialética estrutura/evento, onde a cultura funciona como síntese entre estabilidade e mudança.
Ele faz desta forma uma crítica das distinções ocidentais entre história e estrutura,
estabilidade e mudança, como contrários “lógicos e ontológicos”. Em sua análise, “(...) o
evento é inserido em uma categoria preexistente e a história está presente na ação corrente.”
(SAHLINS, 1990: 182). Para entender a invenção dentro da cultura, ele atribui uma
responsabilidade pessoal pela autoria das categorias ao sujeito na ação: afirma a
potencialidade inventiva do uso instrumental dos símbolos.
O signo teria então um valor no sistema, diferente do seu valor no uso instrumental
pelo sujeito ativo (na ação). Na competitividade pelos símbolos (escassos), a práxis social os
põem em constante risco. O sujeito faz uma aposta objetiva (baseada na desproporção entre
as palavras e as coisas) de que poderá obter legitimidade para seu uso “interessado” dos
signos. Nota-se aqui a valorização do conceito de interesse [ = inter est (Latim): isso faz uma
diferença] articulado à ação que pressupõe um nível de imprevisibilidade do mundo social.
SAHLINS enfatiza inclusive que ela pode ter efeitos imprevistos, uma vez que “a ação
simbólica é um composto duplo, constituído por um passado inescapável e um presente
144
irredutível” (SAHLINS, 1990: 189). Neste sentido, considero que a categoria MPB segue
sendo um signo em aposta, de modo que a chave para compreendê-la historicamente está
exatamente na investigação das tentativas de definir seu sentido.
Em seu texto Adeus à MPB, Carlos SANDRONI levanta algumas questões sobre a
gênese da categoria. Até os anos 1940, o uso da expressão “música popular” era marcado pelo
viés folclorista, remetendo ao mundo rural. Mesmo Mário de Andrade, pioneiro no estudo da
música urbana, costumava denominá-la “popularesca”, em contraste com a anterior.
(SANDRONI: 2004, 27-28). Entretanto, com o ganho de relevância social da música urbana
veiculada por rádio e disco a partir dos anos 1930, motivando uma nova forma de produção
intelectual sobre a música, realizada por autores “do meio” como Almirante, Ari Barroso e
Francisco Guimarães, o Vagalume. Seriam estes, nas palavras de SANDRONI, “os primeiros
intelectuais orgânicos da música popular urbana no Brasil” (SANDRONI, 2004:27). Com eles
o uso do qualificativo “popular” passou a ser aplicado à produção musical urbana.
Essa concepção se consolidaria inclusive pela aceitação do próprio movimento
folclórico desenvolvido entre os anos 1940-1960, estabelecendo uma distinção analítica entre
“folclore” e “popular”: a primeira, rural, anônima e não-mediada; a segunda, urbana, autoral e
mediada (SANDRONI, 2004:28). Para os folcloristas, porém, embora a música popular
apresentasse traços que remetessem ao “povo”, estava “contaminada pelo comércio e pelo
cosmopolitismo”, e, portanto, não atingia a profundidade da música folclórica, o autêntico
reservatório da identidade nacional (SANDRONI, 2004:28).
Durante a década de 1960, a expressão música popular brasileira, em meio ao intenso
debate ideológico do período, acabou sendo transmutada na sigla MPB. Recorro agora a
alguns autores que, recentemente, vêm discutindo essa transformação. Martha ULHÔA define
MPB como gênero dentro da música brasileira popular (ULHÔA, 2000: 2):
145
Enquanto prática musical ela emergiu do samba urbano carioca das décadas de ‘30 e ’40, agregou outros ritmos regionais, como o baião nos anos 50, passou pela Bossa Nova, Tropicalismo e festivais da canção nos anos 60, para se consolidar como categoria na década de ’70. (ULHÔA, 2000: 4)
Em outro artigo, ULHÔA procura uma aproximação antropológica, considerando a
pertinência da escuta dos usuários da MPB para definir os critérios de avaliação do gênero.
(ULHÔA, 2002: 5). Ela entende ser um elemento complicador o fato do termo MPB ser
aplicado simultaneamente por um grupo sonoro160 restrito que distinguiria sua “linha
evolutiva” e pela indústria fonográfica para referir-se a um segmento de mercado, com
prestígio mas menor índice de vendas. SANDRONI também observa que, ao final dos anos
1990, a sigla MPB tornara-se uma etiqueta mercadológica (SANDRONI, 2004:30). Assim,
MPB é um rótulo ambíguo, pois se em sentido restrito remete a um repertório e produção
musicais ligados a um grupo específico, em sentido amplo “parece abarcar a totalidade da
‘Música Popular Brasileira’” (ULHÔA, 2002: 4).
(...) nos anos 1960s emerge a categoria eclética do que seria denominado posteriormente como MPB, uma categoria que identifica não mais um ritmo específico, mas uma postura estética, ligada a um projeto de modernização da música popular (...) [e os artistas que participaram de sua construção] (...) mediam a tradição do samba e ritmos regionais à inserção no mundo da produção musical globalizada (ULHÔA, 2002: 4)
Marcos NAPOLITANO oferece uma perspectiva histórica sobre o conceito que
considero de bastante validade para a discussão que estou propondo. Ele constata um ciclo de
renovação musical radical que tem como marcos a bossa nova e tropicalismo. No bojo deste
ciclo ocorrem o surgimento e consagração da MPB:
(...) sigla que sintetizava a busca de uma nova canção que expressasse o Brasil como projeto de nação idealizado por uma cultura política influenciada pela ideologia nacional-popular e pelo ciclo de desenvolvimento industrial, impulsionado a partir dos anos 50 (NAPOLITANO, 2002: 1)
160 Conceito proposto pelo antropólogo John BLACKING para caracterizar “um grupo de pessoas que compartilha uma linguagem musical comum, junto com conceitos sobre música e seus usos” (ULHOA, 2002:2).
146
NAPOLITANO segue a posição de Charles PERRONE ao considerar a MPB um
“complexo cultural” e não um gênero musical específico. Considera que houve, desde a bossa
nova, um processo que chama de “institucionalização” da MPB, que deslocou o “lugar social”
da canção, mas “(...) não significou uma busca de identidade e coerência estética rigorosa e
unívoca”. Para ele as canções de MPB “(...) seguiram sendo objetos híbridos, portadores de
elementos estéticos de natureza diversa, em sua estrutura poética e musical” (NAPOLITANO,
2002: 2).
Enquanto SANDRONI privilegia um recorte mais longo e enfatiza os muitos sentidos
atribuídos ao conceito de “música popular”, os trabalhos de ULHÔA e NAPOLITANO se
voltam, ainda que por vieses diferentes, à problemática relacionada mais diretamente ao
emprego da sigla MPB a partir da década de 60. Mas é possível identificar em todos eles a
natureza escorregadia da categoria, que escapa à definição tradicional de gênero musical e
solicita expressões como “postura estética” ou “complexo cultural”. Ao mesmo tempo,
sinalizam uma posição que incorpora a dinâmica histórica e trata a questão para além da
crítica e teoria musicais, considerando que a disputa simbólica aí envolve atores e contextos
diversos, inclusive o público e o mercado.
Daí a pertinência de propor aqui o entendimento da categoria MPB como signo em
aposta, considerando-a num contexto de negociações que envolveram a incorporação estética
de elementos musicais locais, regionais ou internacionais, a re-valorização de certos gêneros e
tradições e o re-posicionamento dos compositores e/ou intérpretes em relação ao mercado,
contudo sem a perda do prestígio de sua “aura” artística. Os músicos, ainda que em vieses
diferentes, compartilharam o entendimento de que a modernização da música popular
brasileira não deveria ser refratária em relação à tradição. Por outro lado, estiveram em geral
distantes de uma leitura “folclorista”, essencialista e excludente em relação a outras tradições
ou inovações, mesmo que não fossem “nacionais”. A MPB constituiu uma história e uma
147
geografia em transformação, na medida em que ia incorporando sonoridades que remetiam a
espaços, tradições e inovações negligenciadas no projeto de modernização da canção iniciado
pela bossa nova.
Sendo assim, uma aproximação que focaliza as escolhas dos repertórios de discos de
cantoras num momento em que a categoria começava a ser difundida pode ser de grande valia
para favorecer um melhor entendimento da mesma, na medida em que algumas intérpretes
daquele período estiveram na “linha de frente” dos embates estéticos e políticos daquele
período, como mostrarei a seguir.
A MPB NO REPERTÓRIO DAS INTÉRPRETES
Antes de investigar a discografia selecionada, julgo ser adequado fazer alguns
apontamentos para apoiar a discussão. Eles visam articular algumas reflexões sobre a canção
e o canto como objetos de estudo ao exame de alguns aspectos específicos do funcionamento
da indústria fonográfica no período abordado neste artigo.
A canção se define basicamente na refinada coordenação de informações musicais
contidas nas melodias e suas correspondentes letras, configurando a forma mais característica
e difundida da música popular brasileira. Nas belas palavras de WISNIK: “Meio e mensagem
do Brasil, pela tessitura densa de suas ramificações e pela sua penetração social, a canção
popular soletra em seu próprio corpo as linhas da cultura (...)” (WISNIK, 1987:123).
Em seu pormenorizado estudo sobre a composição de canções, Luiz TATIT identifica
o cancionista ao malabarista. Ao compor, ele procura “(...) equilibrar a melodia no texto e o
texto na melodia (...)” (TATIT, 1998: 9). Sua habilidade é a de um “gesticulador que manobra
148
sua oralidade, e cativa, melodicamente, a confiança do ouvinte.” (TATIT, 1998: 9). Ao
transformar a fala em canto, ou prover as palavras que produzem a fala no canto, o
cancionista procura solidificar em um conjunto memorizável o mesmo material utilizado para
“(...) a produção efêmera da fala cotidiana.” (TATIT, 1998: 11). Para o autor, o pronto
reconhecimento do ouvinte com a canção – e a conseqüente identificação com o artista - vem
da própria agregação da música à linguagem verbal, na entoação com a qual o cancionista
projeta na música uma naturalidade, ou seja:
(...) nunca se sabe exatamente como ele aprendeu a tocar, a compor, a cantar, parece que sempre soube fazer tudo isso. Se despendeu horas de exercícios e dedicação foi em função de um trabalho que não deu trabalho. Foi o tempo de exteriorizar o que já estava pronto (...) (TATIT, 1998: 17)
Sua íntima conexão com a cultura oral faz com que seu conteúdo seja algo de fácil
transmissão e memorização (dentro do horizonte flexível e de improvisação próprios da
mesma), o que se nota na adoção de uma série de procedimentos mnemônicos, como a
repetição do refrão, ou a associação entre o estrato lírico e melódico (a letra amarrada à
melodia, os aspectos timbrísticos influenciando a escolha de palavras e a formação dos
versos) com o arranjo e, em especial, com a harmonia (certa rima coincidindo com certa
passagem harmônica, por exemplo). Lembro que a canção apresenta tal flexibilidade de
execução que pode mesmo dispensar o uso de quaisquer instrumentos musicais que não a voz
e o próprio corpo. Suas possibilidades de difusão, portanto, são bem maiores e mais baratas
que as de um livro ou jornal.
Sob este viés, o estudo de Paul ZUMTHOR, ainda que debruçado sobre período
bastante diverso, oferece um arcabouço teórico bastante útil para refletir sobre a canção. Para
ele, não é a mera presença da letra que define a canção, mas a presença de um índice de
oralidade, quer dizer:
149
(...) tudo o que, no interior de um texto, informa-nos sobre a intervenção da voz humana em sua publicação – quer dizer na mutação pela qual o texto passou (...) de um estado virtual à atualidade e existiu na atenção e na memória de certo número de indivíduos. (ZUMTHOR, 1993:35)
O texto da canção não se destina apenas à leitura, evidenciando em si a “ligação
habitual entre a poesia e a voz” (ZUMTHOR, 1993:36). É a voz que realiza a canção, “(...)
discurso definido pela singularidade da arte vocal que o implica” (ZUMTHOR, 1993:37).
Dito isto, fica claro que a voz não se resume a um meio de enunciação da letra, mas constitui
o instrumento que torna possível a canção no momento mesmo da performance. A atenção se
volta então não só para o que está sendo cantado, mas para a maneira da voz fazer soar as
palavras e sons, fonemas e sílabas, vogais e consoantes. Heloísa VALENTE considera a voz
(e as partes do corpo que participam na sua emissão) como instrumento musical
extremamente versátil, com o qual o cantante consegue expressar os vários aspectos que
compõem o universo da música, como timbre, volume, altura (do grave/baixo ao agudo/alto) e
ritmo (VALENTE, 1999:104-115).
É preciso assinalar que aqui trato especialmente da canção inserida no contexto da
indústria cultural e dos meios de comunicação de massa, o que tem razoável influência em sua
elaboração, difusão e apreensão. Basicamente, refiro-me aos processos tecnológicos que
promovem a ruptura de limitações de espaço e tempo em grande escala. Ressalta-se aí a
possibilidade de registrar os sons e separá-los de seus emissores originais no tempo e no
espaço, aquilo que SCHAFER denominou esquizofonia (SCHAFER, 2001: 131-133). Com o
rádio surgiu a possibilidade de transmissão à distância. SCHAFER ainda observa que, se nos
primeiros tempos ouvia-se rádio seletivamente, depois os programas passaram a ser ouvidos
displicentemente. Para ele, o rádio “(...) tornou-se a canção dos pássaros da vida moderna, a
paisagem sonora ‘natural’ (...)” (SCHAFER, 2001: 137). O gravador e o fonógrafo trouxeram
também alterações para as estratégias de composição, pois a possibilidade de ouvir repetidas
150
vezes um disco abona a necessidade de repetir temas com a finalidade de acionar a memória
do ouvinte (SCHAFER, 2001: 137).
Através destes meios, ela passou a ter um alcance ainda maior, potencializando a
desterritorialização, que, em escala e grau reduzidos, sempre fez parte da canção enquanto
formato musical, uma vez que os cantadores sempre foram – e de certa forma ainda
continuam sendo - andarilhos. A circulação da informação musical, por si só, anterior aos
modernos meios de comunicação de massa, foi fundamental para a constituição do que
chamamos música popular brasileira (VIANNA, 1995: 104). O discurso musical possui de
fato um nível de abstração que o distingue. Tal flexibilidade faz da música uma linguagem
bastante aberta às transações e reapropriações por parte dos sujeitos, facilitando a confecção
de novos sentidos para um mesmo construto sonoro. Isso transparece na discussão realizada
pelo crítico Edward W. SAID a respeito do elemento transgressivo na música: “(...) o
elemento transgressivo na música é sua habilidade nômade de se prender, ela própria, e
tornar-se parte das formações sociais, de alterar suas articulações e sua retórica de acordo com
a ocasião, e com a audiência (...)” (SAID, 1992: 118-119).
Por outro lado, a forma de organização destes meios agiu muitas vezes como força
homogeneizadora, tornando a “escuta” mais controlada. Hermano VIANNA mostra como o
rádio – e especialmente a Rádio Nacional – atuou de forma significativa na transformação do
samba no ritmo associado à identidade nacional brasileira, culminando na criação do samba
exaltação, cujo modelo mais bem acabado é Aquarela do Brasil (VIANNA, 1995: 110). Jesus
MARTÍN BARBERO, por sua vez, demonstra como o rádio, em toda América Latina, atuou
como instrumento do Estado na construção da hegemonia das identidades nacionais
(MARTÍN BARBERO, 1997:230). Como coloca VALENTE, o rádio “pode ser considerado a
primeira parede sonora do nosso século, pois fecha o indivíduo no familiar (...)” (VALENTE,
1999:57). Para a autora, a paisagem sonora do século XX estaria, a partir de então, marcada
151
pela presença da voz “mediatizada”, afastada de seu local de produção, de sua fonte de
origem: o corpo humano (VALENTE, 1999:56).
Apoiando-se em ZUMTHOR, VALENTE, considera que a “ausência do volume do
corpo”, da presença física do intérprete, é “a única dimensão da performance que desaparece
na mediatização técnica” (VALENTE, 1999:121)161. Isto significa, antes de mais nada, que as
qualidades subjetivas da performance podem ser apreciadas mesmo nas gravações em disco, e
que a audição da mesma faixa não suscitará necessariamente a mesma interpretação. O
emprego do conceito de performance permite assinalar a realização de um processo
comunicativo que requer um público que interpreta gestos, movimentos, intenções presentes
no momento mesmo em que ocorre o evento poético – no caso da canção, poético-musical.
Como afirma FRITH, trata-se de uma experiência de sociabilidade, na medida em que o
artista depende de uma platéia que corresponda envolvendo-se no evento, realizando, ela
própria, uma performance (FRITH, 1996: 206).
Vale notar que, se na era de ouro do rádio os intérpretes eram mais valorizados que os
compositores, os anos 60 vêem surgir o compositor – intérprete com um peso preponderante.
Mudança significativa e concomitante é o deslocamento do foco das vendas, do compacto
simples para o LP de 33 1/3 rotações por minuto, acompanhado pelo surgimento das fitas
cassete. A ênfase deslocou-se do intérprete para o compositor que executa seu próprio
material, articulando-se à lógica da rotulação das composições por movimentos culturais e
não gêneros, na medida em que permitia ao mercado musical organizar o consumo em torno
deles:
(...) No período anterior, dos discos de 78 e 45 rpm e dos compactos, a indústria vendia “músicas” gravadas de certos gêneros, um subproduto da atividade de
161 Trata-se de uma consideração aplicável aos aspectos tecnológicos do período em questão, pois a própria autora adverte que o uso do sampler e da manipulação digital do som permite hoje a fabricação de uma voz sem corpo emissor.
152
músicos e cantores. A partir do LP, a indústria passa a vender o produto dos artistas, isto é, compositores conhecidos relacionados a movimentos culturais determinados. Isso permite maior estabilidade da demanda, pois assegura o estabelecimento de uma certa fidelização do consumidor. (ALMEIDA & PESSOTI, 2000: 93-94)
A essa fusão de papéis – uma tendência difundida internacionalmente - os italianos
denominaram cantautore, e uma expressão aproximada em português seria a que emprega
TATIT: cancionista. Aliás, é bastante pertinente a observação deste autor sobre a ascensão e
domínio da figura do compositor masculino da década de 60 para 70, uma vez que o
fenômeno corresponderia à necessidade de um corpo por trás da voz, de um dono da voz,
acentuada durante um período de autoritarismo político, em que a ausência de uma “voz”
deixou de ser apenas uma metáfora. Entretanto, cabe a ressalva de que as cantoras
identificadas com a configuração da MPB conseguiram, mesmo sem compor, associar suas
“vozes” às canções – via performance - de modo a reivindicar uma certa “posse” sobre elas, o
que transparece na preocupação de caracterizar a interpretação como ato criativo,
compartilhado por cantoras de estilos bem diversos, como Elis Regina e Nara Leão.
Um exame do repertório de algumas das principais intérpretes do período entre 1964-
1967 permite colher evidências sobre o delineamento do que começava então a ser conhecido
como MPB. Seguindo uma proposição de NAPOLITANO, creio que se deve evitar uma visão
simplificada da MPB emergente, considerando-se a “(...) gama variada de perspectivas
musicais e poéticas (...)” que abrigava (NAPOLITANO, 2001: 105), sem identificá-la
esquematicamente como “canção de protesto”. A opção por discos de intérpretes possibilita a
visualização do quadro a partir das escolhas de canções de autores diferentes, evidenciando
suas afinidades ao co-habitarem num mesmo LP.
Cabe observar que o padrão de produção para um long-playing procurava atingir uma
homogeneidade que expressasse a personalidade musical da intérprete, a sua marca própria,
como as próprias capas dos discos evidenciam. Não é acaso muitos LPs serem intitulados
153
apenas com o próprio nome da cantora, ou então com uma formulação assertiva sobre seu
estilo musical. A título de amostra: Nara (Nara Leão -Elenco, 1964), Opinião de Nara
(Philips, 1964), Samba – eu canto assim (Elis Regina - Philips, 1965) e Flora é M.P.M. (Flora
Purim - RCA, 1964). Escolhi as três cantoras pelos estilos distintos e pela participação
peculiar de cada uma na história da MPB. Nara manteve o estilo econômico e intimista de
orientação bossanovista, mas tornou-se, com o show Opinião, a principal intérprete de
canções engajadas da época. Elis, por outro lado, interpretava de modo bem expressivo, até
mesmo épico, sendo influenciada por cantoras de rádio e crooners de boate. Teve papel
decisivo no lançamento e registro da obra de vários compositores que despontavam então no
novo cenário da MPB. Flora, por fim, apresentava um estilo diferenciado, muito influenciado
pela improvisação jazzística e, em termos da intensidade da interpretação, intermediário em
relação às outras duas. Selecionando um LP de cada cantora, organizei um quadro
comparativo dos respectivos repertórios, indicando os títulos e créditos de composição:
Quadro 1:
154
Nara
Elenco, 1964.
Flora é M.P.M.
RCA, 1964.
Samba - eu canto assim Philips,1965.
Marcha da quarta-feira de cinzas (Carlos Lyra –
Vinicius de Moraes)
Diz que fui por aí (H. Rocha - Zé Keti)
O morro (Feio não é
bonito) (Gianfrancesco Guarnieri – Carlos Lyra)
Canção da terra
(Ruy Guerra - Edu Lobo)
O sol nascerá
(Élton Medeiros - Cartola)
Luz negra (Hiraí
Barros – Nelson Cavaquinho)
Berimbau (Baden Powell -
Vinicius de Moraes)
Vou por aí (Baden Powell – Aloysio de Oliveira)
Maria Moita (Carlos
Lyra – Vinicius de Moraes)
Réquiem por um amor
(Ruy Guerra - Edu Lobo)
Consolação
(Baden Powell - Vinicius de Moraes)
Naná (Moacyr Santos
– Vinicius de Moraes)
A morte de um deus de sal (Roberto Menescal -
Ronaldo Bôscoli)
Cartão de visita (Carlos Lyra - Vinicius de
Moraes)
Sabe você (Carlos Lyra - Vinicius de Moraes)
Definitivamente (Edu
Lobo)
Se fosse com você (Waldir Gama)
Maria Moita (Carlos
Lyra - Vinicius de Moraes)
Hava Nagila (A. Z. Idelson)
Reza
(Ruy Guerra - Edu Lobo)
Samba do carioca
(Carlos Lyra - Vinicius de Moraes)
Primavera (Carlos
Lyra - Vinicius de Moraes)
Borandá (Edu Lobo)
Nem o mar sabia (Roberto Menescal - Ronaldo
Bôscoli)
Reza (Ruy Guerra - Edu Lobo)
Menino das laranjas (Théo de Barros)
Por um amor maior (Ruy Guerra - Francis
Hime)
João Valentão (Dorival Caymmi)
Maria do Maranhão (Nelson L. e Barros - Carlos
Lyra)
Resolução (Lula Freire - Edu Lobo)
Sou sem paz (Adylson Godoy)
Pot-pourri Consolação (Baden Powell -
Vinicius de Moraes) Berimbau (Baden Powell-
Vinicius de Moraes) Tem dó (Baden Powell-
Vinicius de Moraes)
Aleluia (Ruy Guerra - Edu Lobo)
Eternidade (Adylson Godoy - Luiz Chaves)
Preciso aprender a ser só
(Paulo Sergio Valle - Marcos Valle)
Último canto (Ruy Guerra - Francis Hime)
155
A primeira observação que cumpre fazer é sobre os autores recorrentes. Temos dois
dos principais compositores identificados à vertente nacionalista da bossa nova, Carlos Lyra
(9 ocorrências) e Vinícius de Moraes (13), figurando no repertório dos três LPs,
predominantemente como parceiros. Neste aspecto, vale destacar o repertório do musical
Pobre menina rica utilizado por Nara (Maria Moita) e, especialmente, por Flora (as 5 canções
da dupla). Seus demais parceiros, Guarnieri e Nelson Lins e Barros, como o próprio Lyra,
eram nomes importantes nas fileiras da arte engajada. Outra parceria importante é a de
Vinícius com Baden Powell, cujas canções Berimbau e Consolação figuram nos LPs de Nara
e Elis. Vale lembrar que as duas pertencem ao projeto que veio a ser denominado de “afro-
sambas” 162. Outro autor recorrente é Edu Lobo (8, sendo seu parceiro mais freqüente Ruy
Guerra), naquele momento o mais prestigiado da geração de jovens compositores da
emergente MPB. Além da recorrência dos autores, há repetição, bem menos significativa, de
algumas canções: Reza , Maria Moita e os dois “afro-sambas”.
As diferenças mais significativas entre os repertórios dos LPs, são, por sua vez,
reveladoras da personalidade musical de cada intérprete e de seu posicionamento ante os
debates então correntes na música popular. No disco de Nara, a presença de composições de
sambistas tradicionais, como Zé Kéti, Cartola e Nelson Cavaquinho, assinalam a opção pela
aproximação com o samba “autêntico”, com “o morro”, defendida pela vertente nacionalista
que queria romper com o elitismo, as letras descompromissadas e a influência da música
norte-americana. Opção que Nara explicitaria no próprio espetáculo Opinião, no trecho em
que se apresenta como alguém que sempre viveu em Copacabana mas que não aceita se
prender a um certo estilo de música (bossa nova): “Eu quero cantar toda música que ajude a
162 Segundo Baden, Berimbau foi composta por volta de 1960, mas incorporada por Vinícius no conjunto dos “afro-sambas”, que seriam reunidos no LP Os Afrosambas. Forma, 1966. Entrevista a O Pasquim, n°35, 09-15/02/1970, p.15.
156
gente a ser mais brasileiro, que faça todo mundo querer ser mais livre”.163 Noto que um crítico
como Flávio RÉGIS considerava o show e o disco Opinião de Nara como um resumo do
programa dos novos compositores, em relação às fontes da cultura popular164. Não há, porém,
uma ruptura com o repertório e os timbres bossanovistas, que não, portanto, considerados
incompatíveis com a proposta de engajamento.
Entre as da lista de Elis, figuram algumas canções lentas, sem cunho político,
interpretadas com intensidade emocional - o que se evidencia no uso de ornamentos vocais e
na duração estendida das notas, procedimento que TATIT denomina de passionalização
(TATIT, 1990: 42). É o caso de Eternidade e Preciso aprender a ser só. Tais características
também se apresentam na interpretação de Elis para canções engajadas, ressaltando seu
caráter épico, como em Reza. Esse modelo de interpretação, que seria consagrado pela
performance de Elis em Arrastão (Edu Lobo e Vinícius de Morais) no I Festival Nacional de
Música Popular Brasileira da TV Excelsior em 1965, representava uma afronta aos ideais
estéticos bossanovistas. No provocativo ensaio Da Jovem Guarda a João Gilberto (1966), o
crítico e poeta Augusto de CAMPOS não só constatava esta oposição, mas procurava através
dela criticar o desvio da MPB dos procedimentos intimistas de interpretação da bossa, que a
Jovem Guarda estaria preservando (CAMPOS, 1968:112). A própria maneira “enxuta” de
interpretar da bossa nova estaria inserida numa perspectiva não apenas estética, de
contraposição ao exagero e expressionismo “operístico” dos cantores tradicionais, mas
adequada à evolução dos meios eletroacústicos que tornara “(...) desnecessário o esforço
físico da voz para a comunicação com o público (...)” (CAMPOS, 1968: 54).
Usando como exemplo a própria Elis Regina, CAMPOS condena o canto
melodramático e exagerado. Para ele, tal postura estaria contrariando o ideal de concisão e
precisão da interpretação joãogilbertiana. Por outro lado, para um crítico favorável a Elis, a
163 VÁRIOS. Show Opinião. Philips LP, 1965. 164 RÉGIS, Flávio. "A nova geração do samba". Revista Civilização Brasileira, n° 7, maio 1966, pp. 367-368.
157
ênfase gestual e o excesso de efeitos vocais empregados pela cantora procuravam imprimir às
canções uma alta dose de emocionalismo, aí identificados ao cantar “popular”, “autêntico”.
Seria um elogio ao canto afro-brasileiro de “força primitiva” ao qual “o disco e o rádio
negaram valor artístico”165. A questão da interpretação tornara-se um ponto chave dos
embates estéticos, e alguns emepebistas estavam aí rompendo claramente com as proposições
bossanovísticas. Esta “teatralização da canção”, executada de modo a apresentar letra e voz
combinados a gestos e ações, tornara-se comum em peças teatrais e programas de televisão,
operando como uma “coreografia do engajamento”. É o que transparece na análise da fusão
dos aspectos visuais e sonoros na interpretação de Maria Bethânia para a canção Carcará
(CONTIER, 1998:36). Esta discussão ressalta por contraste o elitismo que pairava nas
colocações do poeta concretista, que rejeitava procedimentos que o engajamento político
vinculava simbolicamente à cultura popular.
Outro elemento marcante era o espaço dado por Elis a novos compositores. Além das
de Edu, há canções de Francis Hime, com letras de Ruy Guerra, e Menino das laranjas, de
Théo de Barros. As mudanças de andamento e divisões rítmicas características, bem como o
arranjo feito por Paulo Moura, mostram o estilo desenvolvido por ela no “Beco das Garrafas”,
em shows em que cantava acompanhada por trios de piano, baixo e bateria, evidenciando uma
leitura do samba inspirada no hot-jazz - daí o surgimento da expressão samba-sessions para
caracterizar a performance musical daqueles trios. É significativo que se trata de uma canção
com forte cunho político, abordando o trabalho infantil e as injustiças e contrastes sociais no
meio urbano, sintetizadas de forma arguta no bordão que imita a fala dos meninos: “Compra
laranja, doutor / Ainda dou uma de quebra pro senhor” .
Já no disco de Flora Purim, a diferença que chama mais atenção é a presença de uma
canção em hebraico, Hava Nagila, a única do repertório dos três LPs composta em outra
165 “Fino da Bossa”. Realidade, São Paulo: Abril, n º 5, ago. 1966, p.10.
158
língua que não o português. Pelo contraste, ela ressalta a preferência absoluta das intérpretes
pelo repertório de procedência “nacional” e “popular”. O arranjo, principalmente a seção
rítmica, contudo, segue o padrão samba-jazz do “Beco das Garrafas”. Aliás, este é o padrão
dominante no disco, cuja coordenação musical ficou sob as baquetas do baterista /
percussionista Dom Um Romão. A cantora demonstra em muitos trechos de canções a
habilidade de improviso (especialmente nas variações rítmicas em torno das divisões
silábicas) e a exploração da amplitude de seu registro vocal que depois viriam a ser marcantes
em seu trabalho desenvolvido nos Estados Unidos a partir dos anos 70. Estes dois elementos
evidenciam a abordagem da voz como instrumento musical, que a escolha do repertório
procura ressaltar. Por isso, talvez, a presença de duas canções da dupla Menescal e Bôscoli, da
ala jazzificada , Zona Sul, “marítima” e “sorridente” da bossa nova. Contudo, estão arranjadas
de modo a aproximá-las do restante do repertório. De qualquer forma, elas demonstram
compatibilidade dentro de um LP com forte presença de canções engajadas, deixando entrever
que a cisão entre as correntes da bossa não era tão nítida, por exemplo, na perspectiva de
arranjadores e instrumentistas.
Por esta seleção é possível perceber a variedade de opções do repertório “engajado”.
Há composições identificadas à vertente nacionalista da bossa nova, há sambas de morro e
trabalhos da nova geração de compositores que, ainda que fossem influenciados pela bossa,
buscavam caminhos diferentes. Quando se tratava da determinação da “autenticidade” do
samba, várias leituras eram possíveis – mesmo a aproximação feita por Nara em direção ao
samba “de morro” apresenta-o permeado por padrões de arranjo bossanovistas e convivendo
com composições de Carlos Lyra e Vinícius de Moraes, por exemplo. Os afro-sambas, por sua
vez, não podem ser interpretados como mero desenvolvimento dentro da bossa nacionalista,
pois rompem com alguns de seus padrões, especialmente na sua concepção rítmica e execução
violonística:
159
Os ‘afro-sambas’ consistem na criação de uma célula harmônico-percutiva, particularmente propícia à execução no violão, que sustenta um ritmo agressivo, vigoroso, acentuado, inspirado diretamente nos candomblés da Bahia. Uma estilização do material do batuque e do samba ‘primitivo’ baiano, suporte para melodias de frases curtas e cadências recorrentes, como um mantra ritual, que assume ares políticos ao enfocar a predominância de valores éticos (e estéticos) básicos, calcados na experiência ‘popular’. (NAPOLITANO, 2001: 115)
Talvez seja possível pensar que, da mesma maneira que a batida da bossa nova
pretendia sintetizar o som da escola de samba, a batida de afro-samba do violão de Baden
Powell pretendia sintetizar o som dos rituais de candomblé da Bahia. Neste sentido, o trabalho
da dupla se aproxima da abordagem feita por Edu Lobo do material folclórico nordestino,
incorporando sua inspiração rítmica e melódica à estrutura harmônica elaborada a partir de
procedimentos presentes na bossa nova e no jazz:
Em linhas gerais, poder-se-ia definir o paradigma lançado pela obra de Edu Lobo, entre 1964 e 1965, como uma tentativa de uma canção épica nacional-popular, matizada nos efeitos contrastantes (poéticos e melódicos) e apoiada em acordes menos óbvios (uso constante da sétima e da nona) e arranjos mais funcionais e menos ornamentais. Por outro lado, Edu Lobo não dava prioridade ao gênero ‘samba’ e seus efeitos rítmicos mais exuberantes. Daí, talvez, decorra a sensação de economia de meios e sutilezas que tem ao ouvir suas canções, sobretudo quando interpretadas por ele mesmo. (NAPOLITANO, 2001: 113)
A presença das composições de Edu no repertório das três cantoras evidencia seu
prestígio naquele momento. Intelectuais nacionalistas consideravam Edu o exemplo a ser
seguido. Seu trabalho, especialmente em parceria com letristas como Ruy Guerra, Guarnieri
ou Vinícius de Moraes, completava a “subida ao morro” com a “ida ao sertão” (Reza,
Borandá, entre outras) na geografia da canção engajada. Daí ser apontado como antídoto ao
deslocamento para fora protagonizado pela bossa nova: “A grande novidade trazida por Edu é
160
que nele a influência do jazz foi definitivamente substituída pela música erudita de autores
modernos brasileiros, acima de tudo o Villa-Lobos das Bachianas.”166
Tal afirmação questionável em face de depoimentos do próprio Edu Lobo. Em uma
entrevista de 1971, ele recusa o rótulo de “erudito” e afirma que nunca fez “pesquisa” e que a
crítica se equivocava: “o sujeito passa a achar que você tem uma cultura musical que você não
tem” 167. Como já foi mostrado, foi primeiramente através da bossa nova o contato de Edu
com Villa-Lobos. Havia uma tentativa de limar a presença envenenadora do jazz na obra de
Edu para conferir-lhe atestado de “nacional e popular”. Mas como aponta NAPOLITANO,
Edu mescla temas épicos com um tratamento sutil, o que pode ser visto como evidência da
continuidade da influência da bossa e do jazz em seu processo criativo (NAPOLITANO,
2001: 111). É exatamente esta gama de influências entrecruzadas que se apresenta nas
gravações feitas pelas cantoras, ressaltando uma ou outra característica de acordo com a
afinidade das mesmas com o estilo de cada uma.
Vale lembrar que Edu ainda dividiria um disco com Maria Bethânia pelo selo Elenco
em 1966, trazendo, entre outras canções, Candeias, que Gal gravaria em seu disco de estréia,
Veleiro e Pra dizer adeus (ambas com Torquato Neto) que Elis gravaria no mesmo ano em
seu LP seguinte, Elis. Neste mesmo disco, a cantora gravou composições de Caetano e Gil.
Exatamente as duas primeiras - Roda (G.Gil/ João Augusto) e Samba em paz (C. Veloso)
exaltam o povo e posicionam-se favoravelmente a uma transformação social da qual o próprio
samba - como expressão síntese do “popular” – é protagonista. Diz a canção de Caetano: “O
samba vai vencer/ quando o povo perceber/ que é o dono da jogada”. Em tom de desafio,
Roda cobra engajamento e preconiza a justiça social: “(...) Quero ver quem vai ficar/ quero
ver quem vai sair (...) Se lá embaixo há igualdade/ Aqui em cima há de haver (...)”.
166 RÉGIS, Flávio.op.cit., p. 368. 167 Entrevista de Edu Lobo em O Pasquim, n° 103, 24-30/06/1971.
161
O alinhamento de Gil e Caetano com a herança da bossa nova e as novas posições da
canção engajadas é evidente em seus primeiros LPs, como se pode ouvir em Domingo,
dividido pelo último com Gal, que ainda não trazia o sobrenome Costa na capa e no texto da
contracapa. Canções de amor como Coração vagabundo e Nenhuma dor (C. Veloso/Torquato
Neto) utilizam-se de procedimentos harmônicos e poéticos recorrentes na bossa nova. Em
canções de Caetano como Um dia, Quem me dera e Remelexo, os acordes dissonantes e a
“batida” aparecem ainda combinadas com elementos melódicos, arranjos (a cargo de Dori
Caymmi, Francis Hime e Roberto Menescal) e temas que remetem à Bahia, denotando
especialmente a influência da imagética e da sonoridade “litorâneas” de Dorival Caymmi.
Surgem plantas, mares, flautas que emulam a brisa da praia, percussão, rodas de
samba e expressões como “Valha-me Deus! Nossa Senhora!” (em Remelexo) e referências
explícitas à paisagem local, como em Um dia: “No Raso da Catarina / Nas águas de
Amaralina / Na calma da calmaria / Longe do mar da Bahia / limite da minha vida / Vou
voltando pra você”. Completando o repertório, Gal canta composições de Edu Lobo
(Candeias) e Sidney Miller (Maria Joana), esta última um belo exemplar de canção
participante, com balanço bossanovista e letra engajada, idealizando o universo popular
através da celebração do samba - “não é de nada quem não é de samba” - e fazendo a
denúncia da injustiça social – “não vive bem quem nunca teve dinheiro / Não tem casa pra
morar” .
Importante notar, para todos os casos, que a interferência da performance das
intérpretes deve ser considerada re-significadora das obras. Isto fica bem nítido quando são
comparadas as versões de Flora e Elis para Reza - a primeira mais balançada, ágil,
improvisada; a segunda, mais arrastada e dramática - ou de Nara e Elis para Berimbau – uma
mais intimista, a outra mais energética. As cantoras aproximaram as composições de sua
própria personalidade musical, o que de certo modo apara algumas diferenças que ficam mais
162
audíveis nas interpretações dos próprios compositores. Suas performances revelam, portanto,
semelhanças e contrastes dentro do repertório de canções engajadas, ingredientes disponíveis
para apropriações que demonstravam divergências e interseções. Revelam também a
proximidade entre os compositores e intérpretes de uma geração, inclusive aqueles que viriam
a protagonizar o movimento tropicalista a partir de 1967.
A análise dos repertórios e gravações, dentro do recorte proposto, permite detectar
uma situação limite, em que categorizações anteriores, como bossa nova e samba, começaram
a ser questionadas. Daí o título de Samba-eu canto assim, que combina perfeitamente com o
gesto expressivo de apresentação, com a mão estendida, da fotografia de Elis na capa do
disco. Como o texto do encarte identifica o conteúdo do LP como música popular brasileira e
moderna, pode-se entender que esta é a qualificação dada ao samba que ela canta. O título do
LP de Flora, por outro lado, enfatiza a “moderna” e esquece a “brasileira”. Encontram-se
presentes nos LPs, de forma significativa, modos diferentes de realização do “nacional”, do
“popular” e do “brasileiro”. Entre termos tentados, abreviaturas permutadas e siglas lançadas
como dados na mesa de jogo, insinuava-se a necessidade de uma nova categoria que pudesse
compatibilizar os elementos da equação, para a qual as identificações de gênero ou
movimento começavam a se mostrar insuficientes. Acabaria sendo: MPB.
DISCOGRAFIA:
COSTA, Gal; VELOSO, Caetano. Domingo. Philips LP, 1967.
LEÃO, Nara. Nara. Elenco LP, 1964.
_____. Opinião de Nara. Philips LP, 1964.
163
LOBO, Edu; BETHÂNIA, Maria. Edu Lobo e Maria Bethânia. Elenco LP, 1966.
PURIM, Flora. Flora é MPM. RCA Victor LP, 1965.
REGINA, Elis. Samba eu canto assim. Philips LP, 1965.
______. Elis. Philips LP, 1966.
VÁRIOS. Show Opinião. Philips LP, 1965.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALMEIDA, Paulo Henrique de; PESSOTI, Gustavo C. A evolução da indústria fonográfica e o caso da Bahia, Bahia Análise & Dados , Salvador - BA SEI v.9 n.4, Março 2000, p.93-96.
BASTOS, Rafael Menezes. A “origem do samba” como invenção do Brasil (Por que as canções tem música?). Revista Brasileira de Ciências Sociais, n º 31, ano 11, jun. 1996, pp.156-177.
CAMPOS, Augusto de. Balanço da bossa e outras bossas. São Paulo: Perspectiva, 1968.
CONTIER, Arnaldo. Edu Lobo e Carlos Lyra: o nacional e o popular na canção de protesto (anos60). Revista Brasileira de História. São Paulo: ANPUH, v.18, n º35, 1998, pp.13-52.
FRITH, Simon. Performing rites: on the value of popular music. Cambridge/ Massachusetts: Harvard University Press, 1996.
GARCIA, Luiz Henrique Assis. Na esquina do mundo: trocas culturais na música popular
brasileira através da obra do Clube da Esquina (1960-1980). Belo Horizonte: UFMG, 2007.
Tese (Doutorando) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de
Minas Gerais, Belo Horizonte, 2007.
164
MARTÍN BARBERO, Jesus. Dos meios às mediações. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997.
NAPOLITANO, M. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB. São Paulo, Anna Blume/FAPESP, 2001.
______. História e música. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.
SAID, Edward W. Elaborações musicais. Rio de Janeiro: Imago, 1992.
SANDRONI, Carlos. Adeus à MPB. In: CAVALCANTE, Berenice (et al.). Decantando a República v.1. São Paulo: Fundação Perseu Abramo / Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004.
SAHLINS, Marshall. Ilhas de História. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990.
SCHAFER, R. Murray. A afinação do mundo. São Paulo: Editora Unesp, 2001.
TATIT, Luiz. O cancionista: composição de canções no Brasil. São Paulo: EDUSP, 1998.
______. Canção, estúdio e tensividade. Revista USP, dez./jan./fev., 1990, pp, 41-44.
ULHÔA, Martha Tupinambá de. Pertinência e música popular – em busca de categorias para
análise da música brasileira popular. In: Actas del III CONGRESSO LATINOAMERICANO
DE LA ASSOCIACIÓN INTERNACIONAL PARA EL ESTUDIO DE LA MÚSICA
POPULAR, 2000.
______. Categorias de avaliação estética da MPB – lidando com a recepção da música
brasileira popular. In: Actas del IV CONGRESSO LATINOAMERICANO DE LA
ASSOCIACIÓN INTERNACIONAL PARA EL ESTUDIO DE LA MÚSICA POPULAR,
2002.
165
VALENTE, Heloísa de Araújo D. Os canto da voz: entre o ruído e o silêncio. São Paulo: Annablume, 1999.
VIANNA, Hermano. O mistério do samba. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995.
WISNIK, José Miguel. Algumas questões de música e política no Brasil. In: BOSI, Alfredo (org.). Cultura brasileira : temas e situações. São Paulo: Ática, 1987.
ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
166
A fuga escrava no jornal Astro de Minas: o conflito na relação senhor - escravo (1827-1839)
168
Elisa Vignolo Silva
Resumo: Nesse artigo apresentaremos os anúncios de escravos foragidos do jornal Astro de
Minas, que circulou na região de Minas Gerais e adjacências, entre os anos de 1827 e 1839. A
partir desses anúncios de escravos foragidos, que evidenciam o conflito das relações senhor-
escravo procurou-se discutir a organização senhorial para recapturar o escravo foragido e a
presença de maus tratos como indício de uma ruptura da relação paternalista.
Palavras- chave: Anúncio; escravo foragido; relação senhor- escravo, conflito.
Abstract: This article reports to fugitive slaves advertisements in the ASTRO DE MINAS
journal which spread out from 1827 to 1839 in the region of Minas Gerais.
From these advertisements, that notice the conflict in relationship between masters and slaves,
we tried to discuss the master organization for fugitive slaves capture and the announcement
of badly treatments as broken paternal arrangement indication.
Key-words: Advertisement; fugitive slaves; paternal relationship; conflict.
168 Esse artigo é parte da dissertação de mestrado defendida em 2009, intitulada “Alforriados e “Fujões”: a relação senhor - escravo na região de São João del-Rei (1820-1840)”.
167
Os jornais mineiros do século XIX costumavam ter uma parte dedicada a anúncios
diversos, tais como a venda de moradas, animais e escravos. Outros anúncios encontrados
com freqüência são os de escravos que haviam fugido de seus proprietários, esses anúncios
são praticamente a única fonte onde podemos encontrar o registro de fugas escravas.169 Em
São João del-Rei, entre os anos de 1827 e 1844, foram publicados doze periódicos.170 Dentre
eles, optamos por estudar os anúncios de escravos foragidos do jornal Astro de Minas, essa
escolha justifica-se por este ter sido o primeiro periódico publicado e o que circulou por um
período maior - de 1827 a 1839 - além do que, grande parte de seus exemplares foi preservado
e micro filmado pela Biblioteca Nacional.
O Astro de Minas era impresso na tipografia de Batista Caetano de Almeida, cidadão
importante da sociedade são-joanense, sendo, inclusive, o fundador da primeira biblioteca
pública de Minas Gerais.171 O redator do Astro de Minas era o Padre José Antônio Marinho,
que teve sua instrução nos seminários brasileiros, e não em Portugal como era de costume na
época, fato que provavelmente contribuiu para sua postura política liberal.172 Além desse
periódico, Marinho também redigiu o Jornal da Sociedade Promotora de Instrução Pública;
Oposição Constitucional e o Americano. (MOREIRA, 2006, p. 58-61)
O Astro de Minas tinha tiragens às terças, quintas, e sábados, e, em geral, cada jornal
apresentava quatro páginas. Os avisos ficavam na última página do periódico e anunciavam
assuntos diversos como a venda de escravos e de moradas, o extravio de animais e,
169 Exemplo de autores que trabalharam com essa modalidade de fonte: FREYRE, Gilberto. O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX. Recife: Imprensa Universitária. 1963; MOTT, Luiz. Os escravos nos anúncios de jornal em Sergipe. Anais do V Encontro Nacional de Estudos Populacionais. Águas de São Pedro, Associação Brasileira de Estudos Populacionais, vol.1, 1986; REIS, Liana Maria. Escravos e Abolicionismo na Imprensa Mineira – 1850-1888. Dissertação de Mestrado. Belo Horizonte: Departamento de História / FAFICH/UFMG, 1993; SCHWARCZ, Lilia Moritz. Retrato em branco e negro: jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no final do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. 170 Ver: CAMPOS, Maria Augusta de Amaral. A marcha da civilização: as vilas oitocentistas de São João del-Rei e São José do Rio das Mortes. 1998. Dissertação (Mestrado) – FAFICH/UFMG, 1998. 171Ver: VELLASCO, Ivan de Andrade. O cenário e as fontes. In: As seduções da ordem: violência, criminalidade e administração da justiça: Minas Gerais – século 19. São Paulo: EDUSC, 2004. 172 Para saber mais sobre a posição política da imprensa em Minas Gerais, ver: MOREIRA, Luciano da Silva. Imprensa e Política: Espaço público e cultura política na província de Minas Gerais 1828-1842. Belo Horizonte, FAFICH/UFMG: dissertação de Mestrado, 2006.
168
principalmente, os avisos de escravos foragidos. Estes últimos, geralmente, continham o
nome do proprietário, a idade do escravo, de onde fugiu, quando fugiu, sua etnia, sua
ocupação, suas características físicas, tais como marcas e ferimentos e a roupa que
provavelmente vestia no dia em que sumiu. Ao final do anúncio, além de acrescentar
informações diversas, o senhor geralmente prometia pagar os custos de quem capturasse o
foragido e, por vezes, prometia gratificações. Vejamos um exemplo de aviso:
A Antônio Teixeira Pinto, morador em Pouso Alto, fugiu um escravo crioulo de nome Vicente, idade 22 a 25 anos, estatura alta, cara comprida, e grande, nariz chato, dentes arruinados, fala fina; fulla, pés grandes, tem um sinal em uma das sobrancelhas. Quem delle souber queira remetter a seo Sr, que dará alvíssaras além das despesas.173
Entendemos que os anúncios fossem um meio eficaz para trazer os cativos de volta,
afinal, em praticamente todas as semanas de existência do Astro de Minas, era anunciado pelo
menos um escravo foragido. No entanto, os periódicos não nos fornecem dados concretos para
sabermos se os avisos ajudavam a localizar o fugitivo. Pudemos constatar alguns avisos de
agentes das cadeias informando que haviam sido capturados e presos escravos foragidos. Por
exemplo: “Acha-se na cadeia de Tamanduá um negro inda boçal de nome José Nação
Cassange, estatura pequena, delgado de corpo, rosto comprido, olhos pequenos, sem barba; e
diz que seu senhor chama-se Manoel Ferreira, foi apanhado no distrito de [Uberaba].” 174
Também foi localizado um aviso do proprietário do escravo fugitivo comunicando, a quem
estivesse em busca de seu cativo, que já o havia localizado:
Antônio Francisco Teixeira Coelho faz ciente aos seus agentes que dirigiu para os sertões em diligência de prenderem um escravo do mesmo que lhe fugira em principio de agosto P.P, e que este já se acha preso, e dessa mesma parte aos seus amigos que nessa diligência se havia empenhado.175
173 Astro de Minas, nº 612, quinta-feira, 27/10/1831. 174 Astro de Minas, nº 740, sábado, 25/08/1832. 175 Astro de Minas, nº 1094, 5ª-feira, 20/11/1834.
169
Através dos avisos também pudemos perceber que havia uma ajuda mútua entre os
senhores escravista para capturarem os foragidos. Existem alguns anúncios em que os
senhores sequer registram a promessa do pagamento das despesas com a captura do escravo,
como é o caso de Antônio José Pacheco, que mesmo sendo seu escravo um alfaiate, não
prometeu recompensas e nem mesmo o pagamento das despesas com a captura ou as
informações sobre seu escravo.176 Já D. Teresa de Jesus Pinto pede por caridade que lhe dêem
notícias de sua escrava já um tanto idosa que lhe havia fugido, prometendo em troca,
“ agradecer segundo suas possibilidades.” 177 O mais freqüente eram os avisos em que havia a
promessa de pagar somente as despesas com a captura. Mesmo assim, houve senhores que
prometeram gratificações generosas, como podemos perceber neste aviso: “o abaixo assinado,
administrador da dita fazenda, se compromete a dar alvíssaras 40$000 rs., além de pagar as
despesas, a quem o apresentar na mesma fazenda, ou preso em qualquer Cadeia – Francisco
dos Antunes Guimarães.” 178
O Capitão João Pedro Diniz Junqueira avisou, em abril de 1829, que tinha um escravo
pardo de nome Domingos, de 18 a 20 anos, foragido. Junqueira pedira a quem o encontrasse
que o devolvesse, e, se assim o fizesse, receberia além das despesas, 20 réis de gratificação.179
Embora não dê para saber se esse senhor recapturou seu escravo, pudemos perceber, em outro
aviso, feito alguns meses depois pelo mesmo Cap. Junqueira, sua solidariedade a outro
proprietário que também tivera um escravo foragido:
Apareceu na [Treituba] um moleque novo, que apenas diz que seu Sr. chama-se Estevão, e que mora longe, é de estatura baixa, ponta de buço, e tem uma falta de cabelo em um lado da cabeça, e chama-se José, foi preso no Angahi fazenda do Coronel João Pedro Diniz Junqueira, quem for seu dono queira mandar procurá-lo.180
176 Astro de Minas, nº 822, 5ª-feira, 07/03/1833. 177 Astro de Minas, nº 678, 5ª-feira, 29/03/1832. 178 Astro de Minas, nº 900, 3ª-feira, 20/08/1833. 179 Astro de Minas, nº 215, 5ª-feira, 02/04/1829. 180 Astro de Minas, nº 320, sábado, 05/12/1829.
170
Além do Cap. Junqueira, outros senhores anunciaram em folha pública ter localizado
um escravo de outro proprietário. Vejamos o seguinte aviso:
No dia 11 de março apareceram em casa do Cap. João Rodrigues Correa de Barros, morador na fazenda da Lagoinha Freguesia de Baependy, dois escravos novos, os quais não sabem dizer de quem são, por não saberem bem falar; um, de nação Cabinda, e outro, Congo, quem for seu dono pode procurá-los, que se lhes entregará dando os sinais.181
Na frase recorrente nos avisos “quem delle souber queira remetter a seo dono,” já
estão subentendidas tanto a fuga quanto a organização dos senhores na busca por seus
escravos foragidos. Afinal, recapturar um escravo fugitivo significava muito mais do que
sanar os prejuízos do senhor: serviria de exemplo aos demais cativos e poderia evitar novas
fugas. Como a manutenção da ordem escravista era um interesse de todos os proprietários de
escravos, podemos inclusive, dizer que era função da sociedade como um todo a recaptura de
um escravo fugido.
O auxílio aos senhores para recapturarem seus escravos podia vir, inclusive, de regiões
distantes, como é o caso do seguinte anúncio:
Acha-se na cadeia da cidade de Cuiabá, Província de Mato-Grosso, um homem pardo de nome Venâncio, estatura ordinária, e alguma barba: o qual sendo preso pela Patrulha de Polícia a 22 de dezembro de 1832 declarou ser escravo de Joaquim Thomaz de Aquino, morador no Rio Grande, nas Lavras do Funil da Província de Minas Gerais. Portanto, faz-se o presente anúncio para que chegando a notícia ao seu Senhor, este o mande receber apresentando documento que o habilite.182
Na sociedade estudada houve uma solidariedade, uma ajuda mútua entre os senhores
de diversas regiões, a fim de se preservar a ordem escravista. Entretanto, a freqüente fuga
escrava, evidente através da recorrência de avisos de cativos foragidos, demonstra que,
mesmo envoltos em diversos mecanismos de dominação, os escravos não deixaram de fugir,
e, às vezes, até para regiões distantes como foi o caso do escravo do anúncio acima.
181 Astro de Minas, nº 215, 5ª-feira, 02/04/1829. 182 Astro de Minas, nº 917, sábado, 28/09/1833.
171
Possivelmente muitos dos proprietários nunca chegaram a ver novamente seus
escravos, fato que pode ser constatado nos avisos em que os senhores mencionam que
procuram há muitos anos seus cativos desaparecidos: “a Melquiadeo José da Silveira Ferraz
fugiu há sete anos o escravo José Nação Moçambique;” 183 “a Domingos José Dantas de
Amorim fugiu há quatro anos o crioulo Florêncio;” 184 “Haverá uns cinco anos, que fugiu do
Padre Julião Antônio da Silva Resende o escravo Joaquim Ventura, preto da Costa;” 185 “há
mais de ano que o Coronel Severino [Eulogio] Ribeiro não vê seu crioulo Alexandre.” 186
A fuga de um escravo, mesmo que por um período curto, certamente significava um
prejuízo tanto econômico quanto para a autoridade do senhor escravista. Os proprietários,
provavelmente, laçaram mão de práticas paternalistas concedendo certos benefícios aos
escravos para que estes permanecessem submissos no cativeiro. Visto dessa forma, a fuga de
um escravo de determinada fazenda pode ter ajudado aos cativos que lá ficaram a
reivindicarem melhores condições dentro do cativeiro,187 ou mesmo, a fuga podia ser uma
estratégia do escravo de reivindicar algo que seu senhor não lhe queria conceder.188 No
entanto, devido às especificidade de cada sujeito, não podemos afirmar que melhor condição
de cativeiro garantiria a submissão dos escravos.
O PATERNALISMO NOS ANÚNCIOS DE JORNAIS
183 Astro de Minas, nº 784, 5ª-feira, 06/12/1832. 184 Astro de Minas, nº 808, sábado, 02/02/1833. 185 Astro de Minas, nº 1034, 5ª-feira, 03/07/1834. 186 Astro de Minas, nº 918, 3ª-feira, 01/10/1833. 187 A esse respeito Eduardo Silva divide as fugas em: fugas reivindicatórias e fugas rompimento (SILVA 2005, p. 63). 188 “Nesses casos, as fugas não são uma estratégia direta para a liberdade de fato, ou seja, eles não buscam sumir definitivamente da vista do senhor, mas simplesmente colocar-se em posição melhor para influenciar seus próprios destinos, colocados em xeque por ameaças de venda ou por morte de senhor. (...).” (MATTOS, 1985, p.170)
172
A fim de facilitar a identificação do escravo, por aquele que o encontrasse, os senhores
faziam uma breve descrição das principais características físicas dos foragidos. As descrições
englobavam os aspectos naturais à pessoa do escravo, as cicatrizes decorrentes de castigos
físicos, de ferimentos acidentais ou de doenças, além de relatarem os sinais de nação, a roupa
que vestiam ou mesmo, que levaram na ocasião da fuga. Ressaltamos que não são em todos os
avisos que encontramos essa variedade de descrição, sendo que alguns poucos se limitavam a
apenas dizer o nome do escravo e o valor da gratificação paga a quem o localiza-se.
Entendemos que o excesso de maus tratos infligidos aos escravos no cativeiro pode ter
sido um dos motivos que os levaram a fugir. Essa asseveração tem como base o estudo de
Sílvia Hunold Lara (1988). A autora se fundamenta em fontes empíricas, e, principalmente,
nas considerações de determinados jesuítas189 para afirmar que o castigo medido e pedagógico
não levaria à insurgência escrava (LARA, 1988, p. 49-56). Vejamos uma passagem na qual
Lara analisa o jesuíta Benci:
O discurso desse jesuíta sobre os castigos aconselhava basicamente moderação; ou seja, cuidado para que o excesso das punições não levasse o escravo a escapar do domínio senhorial (por fuga, suicídio ou morte), para que o poder não fosse prejudicado com seu exercício brutal, para que a punição, atemorizando o escravo, tornasse efetiva a sua sujeição. Assim, mais que uma forma humanitária da relação senhor-escravo, Benci pretendia orientar o sentido de preservar, com segurança, a continuidade do domínio senhorial. (LARA, 1988, p. 50)
Lara demonstrou que, principalmente a partir da década de 1970, a historiografia
passou a perceber que o caráter violento da escravidão não excluía necessariamente o seu
aspecto paternalista. (LARA, 1988, p. 97-113). Desse modo, o proprietário de escravos
poderia ser ao mesmo tempo, paternalista, benevolente, ou mesmo, violento e cruel com seus
189 Rafael de Bivar Marquese (2004) também analisa o discurso dos jesuítas sobre o governo dos escravos na América. Marquese busca identificar, através de textos de intelectuais contemporâneos a escravidão, entender o pensamento escravista e os mecanismos utilizados pelos senhores a fim de tornar mais lucrativo o sistema escravista. Ver: MARQUESE, Rafael de Bivar. Feitores do Corpo, missionários da mente: senhores, letrados e o controle dos escravos nas Américas, 1660-1860. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
173
escravos. Entretanto, a violência deveria seguir certos limites a fim de se evitar que os
escravos se insurgissem contra o cativeiro.
Márcia Amantino (2007) estudou 1.047 anúncios de escravos foragidos publicados ao
longo do ano de 1850 no Jornal do Commercio do Rio de Janeiro. A autora identificou em
409 anúncios informando sobre as condições de saúde e do corpo do escravo foragido.
Através deles, Amantino discutiu diversos aspectos da saúde dos escravos foragidos.
(AMANTINO, 2007, p. 1380). Mesmo não sendo o objetivo de Amantino analisar,
especificamente nesse artigo, os motivos que levaram os escravos a fugir, a autora faz a
seguinte consideração:
Para concluir, pode-se afirmar que as evidências de condições patológicas levantadas a partir dos anúncios de fujões aqui discutidos, pela sua natureza e pela freqüência em que ocorrem, parecem reforçar a hipótese de que um dos grandes motivos que levavam o escravo a fugir eram os maus-tratos, infligidos, talvez, com intenção de marcar o corpo como lição àquele e a outros rebeldes. Como maus-tratos consideramos não só os castigos físicos, mas também a má alimentação e a quebra nos direitos adquiridos. (AMANTINO, 2007, p. 1393)
Assim, entre as descrições dos escravos nos anúncios do periódico Astro de Minas
levantamos aquelas que servem de indício da existência de maus-tratos no cativeiro para, a
partir daí, discutir o código paternalista, no qual o senhor deveria respeitar determinadas
regras estabelecidas no âmbito privado das relações escravistas a fim de manter seu domínio
sobre os seus escravos.
Consideramos como vestígios de maus tratos, os relatos dos senhores que explicitaram
as marcas provenientes de torturas físicas, de acidentes de trabalho e as que demonstram
serem decorrentes de doenças. Nessa quantificação dos escravos anunciados,
desconsideramos aqueles relatos que mencionam o fato de o escravo ter os pés rachados e a
falta de dentes. Assim, entendemos que os maus tratos poderiam estar descritos de três
174
formas: as descrições que explicitam o castigo físico,190 as que aparentam serem em
decorrência de acidentes de trabalho e as decorrentes de doenças.
A título de exemplo, transcrevemos as seguintes marcas que evidenciam a presença de
castigos físicos: “(...) marca em forma de cruz no meio do peito”;191 “falta-lhe parte de um
dedo na mão direita”;192 “tem um olho arregalado por causa de uma queimadura”; 193 “tem as
mãos aleijadas por causa de uma queimadura”;194 “cicatriz na garganta de golpe de
navalha”;195 “com uma orelha a menos”;196 “com bastantes cicatrizes nas pernas e braços”;197
“faltam-lhe as unhas dos dedos grandes dos pés”;198 “tem dois sinais na cabeça de brechas”;199
“tem a falta de um olho, sinal de um golpe no beiço de cima,”;200 “com falta de parte de um
dedo da mão esquerda”;201 “tem uma cicatriz de uma facada, que levou pouco abaixo do
estomago”;202 “tem uma perna cortada, anda de muletas”;203 “com uma tortura em um dedo da
mão”;204 “com sinais de castigo nas costas e nádegas”;205 “sinais de ferro na testa”;206 “com
muitos sinais de açoites nas costas.” 207
Em muitos dos sinais de ferimentos, há indícios de que foram causados por acidentes
de trabalho, ou mesmo em decorrência da prática repetitiva do ofício que exerciam.
Apresentamos os seguintes exemplos: “tem no dedo polegar da mão direita o sinal de um
190 A menção ao fato de o escravo ter algum membro torto também foi incluído, na forma de castigo físico, como no seguinte caso: “tem uma perna arcada por ter sido quebrada.” Astro de Minas, nº 1003, 3ª-feira, 22/04/1834. 191 Astro de Minas, nº 148, 3ª-feira, 28/10/1828. 192 Astro de Minas, nº 119, 5ª-feira, 21/08/1828. 193 Astro de Minas, nº 222, sábado, 18/04/1829. 194Astro de Minas, nº 251, sábado, 27/06/1829. 195Astro de Minas, nº 396, 5ª-feira, 03/06/1830. 196Astro de Minas, nº 399, 5ª-feira, 10/06/1830. 197 Astro de Minas, nº 535, sábado, 30/04/1831. 198Astro de Minas, nº 608, 3ª-feira, 18/10/1831. 199 Astro de Minas, nº 707, 5ª-feira, 07/06/1832. 200 Astro de Minas, nº 730, 3ª-feira, 31/07/1832. 201 Astro de Minas, nº 758, sábado, 06/10/1832. 202 Astro de Minas, nº 758, sábado, 06/10/1832. 203Astro de Minas, nº 1132, 5ª-feira, 19/02/1835. 204Astro de Minas, nº 1194, 3ª-feira, 14/07/1835. 205Astro de Minas, nº 1196, sábado, 18/07/1835. 206Astro de Minas, nº 1208, 5ª-feira, 20/08/1835. 207Astro de Minas, nº 1293, 3ª-feira, 08/03/1836.
175
golpe na “juneta” principal do mesmo dedo, que tem dura”;208 “tem um sinal de golpe de
machado em um pé”;209 “aleijado de uma mão, e seu ofício é carpinteiro";210 “é alfaiate tem o
dedo calejado de tesoura”;211 “queimadura nas costas, é ferrador e arrieiro”;212 “calos nas
mãos de puxar linhas de sapateiro, de que é perfeito oficial”;213 “tem uma cicatriz no pulso de
um dos braços causado de um “puxavante,” por ser o dito tocador de tropa, outra dita na
canela estendida ao comprido. ”214
Também consideramos como prova circunstancial de maus-tratos algumas marcas
decorrentes de doenças, como é o caso da recorrente referência: “com sinais de bexiga”;215
“teve uma fístula na cara”;216 “teve um formigueiro na barriga, de que lhe ficarão sinais”;217
“tem o rosto comido de bexigas”;218 “com sinais de fístula no queixo da parte direita, a qual
ainda não está bem sã, e o rosto daquela parte alguma coisa inflamado”;219 “tem no tornozelo
uma chaga.” 220
Seria enfadonho e triste repetirmos todas as descrições de maus tratos, até porque elas,
por vezes, se assemelham. Entretanto, acreditamos que as citações acima ilustrem bem o que a
fonte nos apresenta. Poderíamos inclusive, ser questionados quanto à separação que fizemos
de os maus-tratos serem em decorrência de castigos físicos, acidentes de trabalho ou de
doenças. Principalmente porque a falta de um dedo pode ser indício de um acidente de
trabalho, e não de um castigo físico, a ausência de um olho pode ser decorrente de uma
doença, e o golpe de faca pode ter sido deflagrado em uma briga com outro cativo. No
208 Astro de Minas, nº 217, 3ª-feira, 07/04/1829. 209 Astro de Minas, nº 262, 5ª-feira, 23/07/1829. 210 Astro de Minas, nº [ ], [ ], [ ]/08/1830. 211 Astro de Minas, nº 822, 5ª-feira, 07/03/1833. 212 Astro de Minas, nº 845, 5ª-feira, 18/04/1833. 213 Astro de Minas, nº 1458, sábado, 01/04/1837. 214 Astro de Minas, nº 1461, sábado, 15/04/1837. 215 Astro de Minas, nº 394, sábado, 29/05/1830. 216 Astro de Minas, nº 395, 3ª-feira, 01/06/1830. 217 Astro de Minas, nº 517, 5ª-feira, 17/03/1831. 218Astro de Minas, nº 600, 5ª-feira, 29/09/1831. 219Astro de Minas, nº 646, sábado, 14/01/1832. 220 Astro de Minas, nº 1044, sábado, 26/07/1834.
176
entanto, na maioria dos anúncios não há uma pormenorização das causas das marcas no corpo
dos escravos. Assim, inferimos ser acidente de trabalho quando o senhor explicita um ofício
que poderia ter como conseqüência a referida marca. Consideramos castigo físico quando há
indícios para tal, e claro, quando há a referência literal de a marca ser em decorrência de
tortura. No caso das doenças, há a menção clara a sua existência, como é o caso das fístulas,
das bexigas e dos formigueiros, no entanto, alguns desses podem ter sido em decorrência de
algum castigo físico.
Consideramos que a presença de algumas marcas de doenças e de acidentes de
trabalho indique a ocorrência de maus-tratos. Temos também como fundamento para essa
assertiva as análises de Gilberto Freyre. Esse autor foi pioneiro no Brasil a analisar a
escravidão a partir dos anúncios de jornais.221 Ainda na década de 1930, Freyre apresentou
uma conferência sobre o assunto e, posteriormente, um ensaio. Tempos depois, aprofundou no
tema, ao recolher mais de dez mil anúncios de escravos foragidos, e publicou em 1963 o livro:
“O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX.” Freyre, quando analisa as
deformações físicas dos escravos fugitivos anunciados, faz as seguintes considerações:
O certo é que os anúncios de negros fugitivos, no Jornal do Commercio, do Rio, no Diário de Pernambuco, no Diário do Rio de Janeiro, em outras gazetas brasileiras do tempo do Império, por nós examinados, estão cheios de negros de “pernas cambaias”, “joelho tocando um no outro”, “pernas tortas para dentro”, “joelhos metidos para dentro”, “pernas e braços exageradamente finos”, “zambos”, arqueados, peitos estreitos, cabeças puxadas para trás ou achatadas de lado. O fato de virem da África para o Brasil em viagens que duravam meses, e aos magotes, uns por cima dos outros, nos porões úmidos, tantos negros ainda moleques e molequinhos, torna admissível que fossem efeitos de raquitismo algumas daquelas freqüentes deformações das pernas e da cabeça. Também o regime de trabalho e de alimentação em certas fazendas e para certo número de escravos – trabalho desde quase a madrugada até o sol posto, debaixo de telheiros acachapados e acrescidos de alimentação deficiente e de dormida no chão, em senzalas úmidas e fechadas –
221 “Vários historiadores já atentaram para a importância desse material, mas foi Gilberto Freyre quem o trabalhou de forma mais sistemática. “Anunciologia” (ou “ciência dos anúncios”) foi o nome adotado por Freyre para caracterizar o que ele mesmo se propunha a trabalhar. Através dos anúncios referentes a escravos, Freyre buscou reconstituir as características da população negra residente no Brasil, verificando sua constituição física e psicológica. Dessa maneira e a partir desse trabalho, esse autor trouxe importantes contribuições, na medida em que, além de descrever os tipos de negros residentes no Brasil, reconstituiu vocábulos e mesmo costumes da época.” (SCHWARCTZ, 1987, p. 137)
177
talvez favorecesse o raquitismo, apesar de todo o desfavor dos trópicos. (FREYRE, 1963, p. 221-222)
Portanto, com base nessa passagem do livro de Gilberto Freyre consideramos estas
deformações, que por vezes estão detalhadas nos anúncios, como indicativas de maus-tratos
sofridos pelos escravos no cativeiro. E visto a dificuldade em demarcar a origem de certos
sinais no corpo do escravo, resolvemos simplificar a quantificação e agrupar os anúncios de
escravos foragidos em dois níveis: os que mencionam a ocorrência de maus-tratos; e os que
não mencionam. Vejamos a tabela resultante desta quantificação:
TABELA 1 Ocorrência de maus tratos nos anúncios de escravos foragidos do periódico Astro de Minas
Maus tratos Total % Menciona 128 44%
Não menciona 166 56% Total 294 100
Fonte: dados obtidos a partir das informações constantes no conjunto de avisos de escravos
foragidos do jornal Astro de Minas.
Com essa quantificação, percebemos que o número de escravos foragidos que
apresentavam algum sinal de maus-tratos é significativo, chegando à quase metade dos
anúncios analisados. No entanto, devemos ponderar quanto ao fato de que nem toda forma de
tortura física deixara marcas no corpo do escravo, além do que, nem todos os senhores devem
ter relatado os vestígios de maus-tratos de seus cativos. Assim, podemos inferir que o número
de fugitivos que sofreram maus-tratos no cativeiro pode ter sido ainda maior. Entretanto, não
é nossa pretensão extrapolar as informações que a fonte nos traz, por isso, nos deteremos a
analisar o fato de 44% de os escravos foragidos apresentarem indícios de maus-tratos.
Freyre, ao analisar as marcas de castigos ou de punições nos escravos foragidos,
afirma que “não nos deve horrorizar demasiadamente, nos escravos fugidos, marcas nas
nádegas de castigo ou sinais de punição; lubambos nos pés; correntes nos pés. Tais castigos
faziam parte da rotina de todo um complexo sistema de relações de escravos com seus
178
senhores.” (FREYRE, 1963, p. 33). Nessas relações, o autor entende que o castigo tinha uma
função pedagógica, de educação do cativo, e não só o escravo era educado dessa forma
violenta na sociedade patriarcal, mas também o filho do senhor. Vejamos novamente nas
palavras do autor:
Mas esse patriarca que punia igualmente os filhos. Dentro do sistema patriarcal brasileiro, o menino branco e senhoril – o sinhozinho – era também castigado com palmatória, com vara de marmelo; preso nas cafuas; posto de joelho sobre o grão de milho. O castigo ao escravo, como o castigo ao filho de família fazia parte de um sistema de educação, de assimilação e de disciplina – o patriarcal – que não podia desmanchar-se em ternuras para com os necessitados de educação, de assimilação e de disciplina. Para se integrarem nos papéis ou nas funções que deviam desempenhar nesse sistema, escravo e menino precisavam ser disciplinados, assimilados e educados pelos brancos e pelos adultos à maneira da época, que era uma maneira da qual ninguém concebia que estivesse ausente a palmatória ou o chicote; o castigo que doesse no corpo; a punição cruamente física.” (FREYRE, 1963, p. 32-33)
Assim, Freyre entende que as marcas de castigos físicos nos escravos são em
decorrência de uma tentativa de educar o cativo, e que fazia parte da relação patriarcal
presente na sociedade brasileira de então. Entretanto, esse autor não considera que a violência
pedagógica praticada contar o escravo devesse ser medida e ponderada a fim de que o escravo
não se rebelasse. Em outras palavras, Freyre não faz considerações sobre o fato de que o
castigo com fins pedagógicos deveria ter certos limites e que se por acaso extrapolados
poderia levar o escravo a fugir.
Entendemos que a violência física praticada contra os escravos de forma desmedida,
sem o caráter pedagógico, poderia romper com a relação paternalista estabelecida entre os
dominados e os dominantes. E assim, seria um dos fatores que acabou por culminar com a
fuga dos escravos. A violência física medida, com um caráter pedagógico, determinada pelo
costume, era integrante do sistema paternalista, e a ruptura com essas características,
acabaram por levar a uma conseqüente quebra da relação paternalista dos senhores com seus
escravos que pudessem culminar com uma possível fuga do cativo.
179
Assim, entendemos que o exagero nos castigos e as más condições do cativeiro podem
ter causado essa ruptura na relação paternalista entre senhores e escravos. O paternalismo,
entendido aqui como um elemento que engloba simultaneamente as atitudes bondosas e as
cruéis dos dominantes com seus dominados, pode ter sido negligenciado pelos senhores.
Podemos questionar o porquê dessa negligência não ter ocasionado a fuga de todos os cativos
de um mesmo senhor? Como resposta a esta pergunta, poderíamos pensar que a relação
paternalista estabelecida entre os senhores e seus cativos, era uma relação personalizada,
individualizada, e que, por isso, alguns escravos de um mesmo plantel acabaram fugindo, e
outros não.
Assim, os anúncios de escravos foragidos do jornal Astro de Minas é clarificador no
que tange ao conflito implícito as relações escravistas, afinal, essa fonte evidência a
recorrência das fugas escravas, a organização senhorial em busca do foragido e as marcas dos
maus tratos no corpo dos cativos. Entretanto, os anúncios não deixam de ser uma fonte
produzida pelos senhores escravistas, que mesmo trazendo a tona certos aspectos não
abordados por outras fontes que se referem a escravos, ainda assim não trazem aos nossos
dias a versão dos escravos.
FONTES IMPRESSAS
Microfilmes da Biblioteca da Fundação de Ensino Superior (FUNREI/ São João Del Rei).
BIBLIOTECA da Fundação de Ensino Superior. Astro de Minas, nov. de 1827 a jun. de 1839. Caixas: 17; 18; 19; 20; 21.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
180
ALADRÉN, Gabriel. Alforria, paternalismo e etnicidade em Porto Alegre, 1800-1835. Anos 90, Porto Alegre, v. 15, n. 27, p. 125-160, jul. 2008.
AMANTINO, Márcia. As condições físicas e de saúde dos escravos fugitivos anunciados no Jornal do Commercio (RJ) em 1850. História, Ciência, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, v.14, n.4, p. 1377-1399, out.-dez. 2007. Disponível em: < http://www.scielo.br/pdf/hcsm/v14n4/14.pdf Acesso em 24/02/2009>. Acesso em: 04 mai. 2009.
______. Os escravos fugitivos em Minas Gerais e os anúncios do jornal “O Universal – 1825- 1832. Locus Revista de História, Juiz de Fora, v. 12, n. 2, 2006. p. 59-74.
ASSIS, Machado de. 50 Contos. Seleção, introdução e notas John Gledson. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
CASTRO, Hebe M. Mattos. Laços de família e direitos no final da escravidão. In: NOVAES, Fernando A.; ALENCASTRO, Luiz Felipe de (orgs.). História da vida privada no Brasil: Império .7. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v.2.
______. As cores do silêncio: significado da liberdade no sudeste escravista- Brasil século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995.
______. A escravidão moderna nos quadros do império português: o antigo regime em perspectiva atlântica. In: FRAGOSO, João; BICALHO Maria Fernanda Baptista; GOUVÊA, Maria de Fátima (Orgs.). O antigo regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
______. Escravidão e cidadania no Brasil monárquico. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 2000. Coleção: Descobrindo o Brasil.
FLORENTINO, Manolo; GÓES, José Roberto. A paz das senzalas: famílias e tráfico atlântico – Rio de Janeiro, c.1790 - c.1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997.
FREYRE, Gilberto. O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX . Recife: Imprensa Universitária, 1963.
______. Casa grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. São Paulo: Círculo do Livro, [s/d].
181
______. Sobrados e mucambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1951.
GENOVESE, Eugene D. A terra prometida : o mundo que os escravos criaram. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
______. O mundo dos senhores de escravos: dois ensaios de interpretação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
CHALHOUB. Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
GONÇALES, Andréa Lisly. Alforrias na comarca de Ouro Preto (1808-1870). População e família (Centro de Estudos de Demografia Histórica da América Latina/CEDHAL), 3 (2000), p. 157-80.
______. ‘Cartas de Liberdade’: registros de alforria em Mariana no século XVIII. Anais do VII SEMINÁRIO SOBRE A ECONOMIA MINEIRA (Diamantina), 1 (1995), p. 197-218.
______. Ás margens da liberdade: estudo sobre as práticas de alforria em Minas colonial e provincial. São Paulo: USP, 1999. Tese (Doutorado) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 1999.
GONÇALVES, Andréa Lisly; ARAÚJO, Valdei Lopes (org). Estado, região e sociedade: contribuições sobre a história social e política. Belo Horizonte: Argumentum, 2008.
GRAÇA FILHO, Afonso Alencastro. A princesa do oeste e o mito da decadência de Minas Gerais. São João Del Rei (1831-1888). São Paulo: Annablume, 2002.
LARA, Sílvia Hunoldt. Campos da violência – escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
______. Gorender escraviza história. Folha de S. Paulo, 12 de janeiro de 1991, Caderno Letras, p. F-2.
______. Fragmentos setecentistas: escravidão, cultura e poder na América portuguesa. Tese de Livre Docência. Campinas: Unicamp, 2004.
182
LATIF, Miran de Barros. As Minas Gerais. Rio de Janeiro: Agir, 1978.
LENHARO, Alcir. As tropas da moderação: abastecimento da corte na formação política do Brasil, 1808.1842. SP: Símbolo, 1979.
MOTT, Luiz. Os escravos nos anúncios de jornal em Sergipe. Anais do V ENCONTRO NACIONAL DE ESTUDOS POPULACIONAIS, Águas de São Pedro, Associação Brasileira de Estudos Populacionais, v.1, 1986.
MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1988.
MOREIRA, Luciano da Silva. Imprensa e política: espaço público e cultura política na província de Minas Gerais 1828-1842. Dissertação de Mestrado. Belo Horizonte: Fafich/UFMG, 2006.
PAIVA, Eduardo França. Escravidão e universo cultural na colônia: Minas Gerais, 1716-1789. 2. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.
REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos Malês em 1835. ed. revista e ampliada. São Paulo: Cia das Letras, 2003.
______(org.). Escravidão e invenção da liberdade: estudo sobre o negro no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1988.
REIS, J. J.; SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
REIS, Liana Maria. Escravos e abolicionismo na imprensa mineira – 1850-1888. Belo Horizonte: UFMG, 1993. Dissertação (Mestrado) – Departamento de História da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1993.
______. Vivendo a liberdade: fugas e estratégias no cotidiano escravista mineiro. Cadernos de História. Belo Horizonte, PUC Minas, 1995. p.16-23.
SCHWARCZ, Lília Moritz.. Retrato em branco e negro: jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no final do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
183
SLENES, Robert. Na senzala uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava – Brasil Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
SOUZA, Laura de Mello e. Coartação: problemática e episódios referentes a Minas Gerais no século XVIII. In: SILVA, Maria Beatriz Nizza da (Org.). Brasil: colonização e escravidão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. p.275-295.
THOMPSON, E.P. Costumes em comum. Estudos sobre a cultura popular tradicional. Trad. Rosaura Eichemberb. São Paulo: Cia das Letras, 1998.
184
SOBRE OS AUTORES Thais Nivia de Lima e Fonseca possui graduação em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (1985), mestrado em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (1996), doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo (2001) e pós-doutorado na Universidade Federal Fluminense e na Universidade de Lisboa (2006). É professora adjunto de História da Educação da Universidade Federal de Minas Gerais e do Programa de Pós-Graduação em Educação (linha História da Educação) da mesma instituição, e também é pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em História da Educação (UFMG), no qual desenvolve pesquisa sobre educação escolar e práticas educativas no período colonial. Lívia Carolina Vieira possui graduação em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (2008). Tem experiência na área de História da Educação, atuando principalmente nos seguintes temas: educação- república- grupos escolares, educação- política- grupos escolares. Atualmente é mestradanda do Programa de Pós- Graduação em Educação da Universidade Federal de São Carlos, na linha de Fundamentos da Educação. Rosana Areal Carvalho é licenciada em História pela Universidade Federal do Mato Grosso e doutorado em Ciências Humanas pela Universidade de São Paulo (2000). Atualmente exerce o cargo de professor adjunto da Universidade Federal de Ouro Preto, como docente e pesquisadora na área de História da Educação. Verônica Albano Viana Costa é graduada em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (1986). Professora de História do ensino fundamental e do ensino médio nas redes particular e pública do Estado de Minas Gerais. Atualmente é mestranda no Programa de Pós graduação da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais na linha de pesquisa História da Educação. Ana Cristina Pereira Lage possui graduação em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (1990) e mestrado em Educação (História, Filosofia e Educação) pela Universidade Estadual de Campinas (2007). Atualmente é doutoranda em História da Educação, na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais , Tendo realizado o estágio de doutoramento intercalar na Universidade de Lisboa. É professora do Centro Universitário de Belo Horizonte (UNI-BH). Tem experiência no ensino e pesquisa em História, atuando principalmente nos seguintes temas:ensino de historia e história da educação Miriam Hermeto é bacharel em História pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais - FAFICH/UFMG (1994), licenciada em História pela mesma instituição (1997) e mestre em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais - FAE/UFMG(2002). Atualmente é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História da FAFICH/UFMG e professora da Fundação Educacional de Divinópolis da Universidade do Estado de Minas Gerais (FUNEDI/UEMG). Tem experiência docente na Educação Básica e, como pesquisadora e consultora, atua principalmente nas áreas de Ensino de História e História do Brasil República, nos seguintes campos de pesquisa: história cultural, currículo de história, história do livro e da leitura (livro didático), patrimônio cultural, cognição. Mateus Henrique de Faria Pereira Professor do curso de graduação em História da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), onde leciona as disciplinas de História do Brasil Contemporâneo e Prática do Ensino de História. Doutor em História pela Universidade
185
Federal de Minas Gerais (2006), onde também se graduou em História (1999). Durante o doutorado, em 2004-2005, realizou Doutorado Sanduíche no Centre DHistoire Culturelle Des Societes Contemporaines na Université de Versailles Saint-Quentin-en-Yvelines e foi pesquisador convidado na École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris. Seus interesses de pesquisas incluem temáticas referentes à História do Livro e da Leitura; Estudos Culturais e História Cultural; Teoria da História e Filosofia; Historiografia; Ensino de História; História das Religiões; História do Brasil República e História Contemporânea; Representações do Passado; Teoria e Metodologia das Ciências Humanas e Sociais; Interdiciplinariedade, Transdiciplinariedade e Ciências Humanas. Sergio Alberto Feldman possui graduação em Historia Geral (General History) pela Universidade de Tel Aviv (Tel Aviv University - 1975), mestrado em História Social pela Universidade de São Paulo (1986) e doutorado em História pela Universidade Federal do Paraná (2004). Atualmente é professor adjunto 2 da Universidade Federal do Espírito Santo. Tem experiência na área de História, com ênfase em Historia Iberica Medieval e em História Judaica, atuando principalmente nos seguintes temas: antiguidade tardia, Cristianismo e Judaísmo, visigodos, anti semitismo e Isidoro de Sevilha. Luiz Henrique Assis Garcia graduado (licenciatura- 1997), Mestre (2000) e Doutor (2007) em História pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FAFICH) da UFMG. Atualmente é coordenador de pesquisa do Museu Histórico Abílio Barreto (MHAB) em Belo Horizonte (MG) e pesquisador colaborador do Centro de Coonvergência de Novas Mídias (CCNM) - UFMG. Tem experiência na área de História, com ênfase em História Social da Cultura, atuando principalmente nos seguintes temas: história da música popular brasileira, história do Brasil republicano, trocas culturais e cidades. Elisa Vignolo Silva é Mestre em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (2009). Especialista em História e Cultura Afro-Brasileira, PUC-Minas (2007). Bacharel e Licenciada em História pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2006). Atualmente trabalha na diretoria de Inclusão e Cidadania do Instituto Inhotim.
186
NORMAS PARA PUBLICAÇÃO
• Os artigos devem ser acompanhados de resumo, abstract ou Résumé entre 250 a 300 palavras, espaço simples, em parágrafo único e de três (03) palavras-chave, key-words ou Mots clés que caracterizam o seu conteúdo. • As resenhas devem ser apresentadas em no máximo seis (06) laudas. • O artigo deverá ser submetido sem numeração de páginas.
1. O texto deverá ter as seguintes configurações: • Fonte Times New Roman Tamanho da Fonte: 12 Título: 12, centralizado, sem caixa alta, observando maiúsculas e minúsculas. Nome do autor: 12, com entrada pelo nome, na margem direita do texto. A titulação e demais informações sobre o autor e /ou co-autor deverá constar em nota de roda-pé, pelo sistema numérico arábico. Subtítulos: 12, em caixa alta sem negrito, à margem esquerda do texto. Texto: tamanho da fonte: 12 • Configuração de Página (margens): Superior – 3 cm, inferior – 2 cm, esquerda – 3 cm, direita – 2 cm • Espaçamento: No texto entre linhas: espaço duplo Da margem superior ao título: dois espaços duplos Do título para o nome do autor: dois espaços duplos Do nome do autor para o corpo do texto: dois espaços duplos Do corpo do texto para o subtítulo: dois espaços duplos Do subtítulo para o corpo do texto: espaço duplo
2. Referências, Citações e Outros: • As referências e citações bibliográficas devem aparecer no corpo do texto, conforme normas da ABNT de outubro de 2002. * Citações com até 3 linhas, no corpo do texto, entre aspas, seguidas pela referência, no sistema autor, data, página, entre parêntesis. (SILVA, 1999:32) * Citações com mais de 3 linhas, em novo parágrafo com recuo de 4 cm, espaço simples, tamanho de letra tamanho 10, sem aspas, sem itálico, seguidas pela referência, no sistema autor, data, página, entre parêntesis. • Usar o sobrenome do autor em caixa alta, somente ao final de citações que estiverem entre aspas e dentro de parêntesis, o que equivale dizer que no texto, quando aparecer citações de autores, devem ser escritos somente com iniciais maiúsculas. Ex.: Conforme Silva (1999), o instituto de linguagem... • As subpartes do texto, se numeradas, devem vir à margem esquerda, sem recuo, seguindo as orientações da ABNT. • As referências bibliográficas devem constar ao final do trabalho, conforme normatização da ABNT de outubro de 2002. • As notas deverão ser apenas de caráter explicativo; deverão ser resumidas e colocadas ao final do artigo; e as remissões para o final do artigo devem ser feitas pelo sistema numérico arábico, sobrescrita ao texto a que se refere. • O autor deverá encaminhar, para o endereço abaixo, três cópias impressas, sendo que em duas das cópias não deverá constar nem nome do(s) autor (es), nem o da instituição à qual
187
está (estão) filiado(s), nem qualquer outro tipo de referência que possa identificá-lo(s), e na terceira, o nome e a instituição de filiação deverão estar presentes. Universidade Federal de Ouro Preto - ICHS Departamento de História - LPH – Revista de História Rua do Seminário, s/nº - Centro Cep: 35.420-000 Mariana – MG