o ensino de história como objeto de pesquisa

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O Ensino de História como Objeto de Pesquisa O mínimo que se pode exigir de um historiador é que ele seja capaz de refletir sobre a história de sua disciplina, de interrogar os diferentes sentidos do trabalho histórico, de compreender as razões que levam à profissionalização de seu universo acadêmico. O mínimo que se pode exigir de um educador é que seja capaz de sentir os desafios do tempo presente, de pensar sua ação nas continuidades e mudanças do trabalho pedagógico, de participar de uma maneira crítica da construção de uma escola mais atenta às realidades sociais. Antônio Nóvoa apud Ana Gasparello (2007, p.73) Como todo trabalho historiográfico, esta tese teve sua presente reconfiguração formulada a partir de uma inquietação contemporânea: o expurgo, em 2010, da disciplina Fundamentos de História do Amazonas dos currículos das séries finais do ensino fundamental da rede de ensino do município de Manaus 1 . A medida refletiu o mesquinho uso político do processo educativo, o desrespeito com os docentes, a inobservância das orientações do CME, o descaso com a formação de alunos capazes de compreender tanto o tempo vivido dentro de processos cujas raízes se espraiam no tempo, quanto a si mesmos como protagonistas das transformações sociais e, portanto, da História. Além disso, demonstrou que, histórica e pedagogicamente, a Secretaria Municipal de Educação desconhece a trajetória tomada por um dos saberes científicos escolarizados que pertencem a sua grade. Historicamente, porque sequer conhecia que cerca de oitenta anos antes, um eminente professor e pesquisador, Arthur Cezar Ferreira Reis, em meio a debates sobre a integração nacional, promovia em seus escritos e palestras a necessidade de trazer para a sala de aula a história regional. Os efeitos deste ato seriam, dentre outros, de mostrar 1 A alteração curricular processou-se no ano de 2010. Foram retiradas do currículo municipal dos anos finais do Ensino Fundamental as disciplinas Fundamentos de História do Amazonas, Fundamentos de Geografia do Amazonas, Ensino Religioso, além da alteração da oferta da disciplina Educação Física. No último bimestre do ano letivo anterior, a toque de caixa, algumas reuniões foram realizadas com grupos não representativos de docentes a fim de tentar legitimar tal decisão. Na prática, quando os professores retornaram às escolas, após férias de fim de ano, foram comunicados que não teriam mais a matéria para lecionar, o que gerou, inclusive, problemas administrativos de lotação de pessoal. Após algumas manifestações individuais e do ICHL/UFAM, o Conselho Municipal de Educação resolveu se pronunciar favoravelmente ao expurgo das disciplinas, desde que, no caso de FHA, a carga horária e os conteúdos programáticos fossem incorporados pela disciplina História. Até a presente data, a recomendação não foi cumprida. A este respeito ver T. NORMANDO, O humanista que negou a história aos cidadãos.

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Page 1: O Ensino de História como Objeto de Pesquisa

O Ensino de História como Objeto de Pesquisa

O mínimo que se pode exigir de um historiador é que ele seja capaz de

refletir sobre a história de sua disciplina, de interrogar os diferentes sentidos

do trabalho histórico, de compreender as razões que levam à

profissionalização de seu universo acadêmico. O mínimo que se pode exigir

de um educador é que seja capaz de sentir os desafios do tempo presente, de

pensar sua ação nas continuidades e mudanças do trabalho pedagógico, de

participar de uma maneira crítica da construção de uma escola mais atenta

às realidades sociais.

Antônio Nóvoa apud Ana Gasparello (2007, p.73)

Como todo trabalho historiográfico, esta tese teve sua presente reconfiguração

formulada a partir de uma inquietação contemporânea: o expurgo, em 2010, da

disciplina Fundamentos de História do Amazonas dos currículos das séries finais do

ensino fundamental da rede de ensino do município de Manaus1.

A medida refletiu o mesquinho uso político do processo educativo, o desrespeito

com os docentes, a inobservância das orientações do CME, o descaso com a formação

de alunos capazes de compreender tanto o tempo vivido dentro de processos cujas raízes

se espraiam no tempo, quanto a si mesmos como protagonistas das transformações

sociais e, portanto, da História. Além disso, demonstrou que, histórica e

pedagogicamente, a Secretaria Municipal de Educação desconhece a trajetória tomada

por um dos saberes científicos escolarizados que pertencem a sua grade.

Historicamente, porque sequer conhecia que cerca de oitenta anos antes, um

eminente professor e pesquisador, Arthur Cezar Ferreira Reis, em meio a debates sobre

a integração nacional, promovia em seus escritos e palestras a necessidade de trazer para

a sala de aula a história regional. Os efeitos deste ato seriam, dentre outros, de mostrar

1 A alteração curricular processou-se no ano de 2010. Foram retiradas do currículo municipal dos anos

finais do Ensino Fundamental as disciplinas Fundamentos de História do Amazonas, Fundamentos de Geografia do Amazonas, Ensino Religioso, além da alteração da oferta da disciplina Educação Física. No último bimestre do ano letivo anterior, a toque de caixa, algumas reuniões foram realizadas com grupos não representativos de docentes a fim de tentar legitimar tal decisão. Na prática, quando os professores retornaram às escolas, após férias de fim de ano, foram comunicados que não teriam mais a matéria para lecionar, o que gerou, inclusive, problemas administrativos de lotação de pessoal. Após algumas manifestações individuais e do ICHL/UFAM, o Conselho Municipal de Educação resolveu se pronunciar favoravelmente ao expurgo das disciplinas, desde que, no caso de FHA, a carga horária e os conteúdos programáticos fossem incorporados pela disciplina História. Até a presente data, a recomendação não foi cumprida. A este respeito ver T. NORMANDO, O humanista que negou a história aos cidadãos.

Page 2: O Ensino de História como Objeto de Pesquisa

aos alunos que a disciplina deixava um caráter fastidioso quando passava a ser

relacionada com as ações humanas e com as questões da terra natal do alunado.

Pedagogicamente, porque ignora que a História ensinada superou os preconceitos sobre

si e vem sendo alvo de um denso processo de valorização e reflexão em todo país, cujos

efeitos já podem ser medidos tanto em termos quantitativos – como o volume de

publicações voltadas para especialistas e leigos – quanto qualitativos – na preparação

dos futuros professores, por exemplo.

Este trabalho pretende sugerir uma contribuição para repensar o papel do ensino

escolar de História no Amazonas, ponderando sobre as características assumidas nos

anos 1930, momento em que, em meio à forte efervescência intelectual, o Estado

ditatorial varguista lançou mão de variadas estratégias no campo educacional em busca

de forjar uma legitimidade político-institucional.

Cabe antes, então, historicizar como se conformou essa viragem da História

ensinada a partir da sua historiografia e de suas escolhas teórico-metodológicas.

Page 3: O Ensino de História como Objeto de Pesquisa

1.1 – A História Ensinada, legitimada como objeto de pesquisa: em busca de suas

raízes historiográficas

A História Ensinada hoje ocupa lugar de destaque entre os interesses dos

historiadores brasileiros: é o que nos permite constatar o evidente crescimento de

publicações sobre o tema, além do significativo número de teses e dissertações

defendidas sobre questões concernentes ao ensino de História, conforme mostram os

sites de bibliotecas digitais de algumas das principais Instituições de Ensino Superior do

país2.

Esse processo de acomodação nos espaços de produção historiográfica tomou

seu curso em meados dos anos oitenta. Antes disso, o momento era de incessantes lutas

pela redemocratização do Brasil e os historiadores estiveram às voltas com

preocupações de outras naturezas: grosso modo, alguns buscaram compor sínteses

políticas e econômicas que pudessem explicar os processos de formação da nação

enquanto outros optaram por desnudar categorias e sujeitos silenciados, revelando suas

faces, aspirações e resistências em trabalhos de história social, principalmente3.

A pesquisa histórica realizada neste período entrincheirou-se em temas que,

acreditava-se, eram mais autênticos para contribuir nas lutas contra os modelos

excludentes de organização político-econômica e social impetrados pelos governos

autoritários. Neste contexto, não só o conjunto de professores dedicados às pesquisas

sobre ensino de História era reduzido como os resultados das investigações eram postos

em segundo plano na medida em que seus fóruns de divulgação e discussão acadêmica

2 Foram consultados sites das seguintes Universidades: Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da

PUC-SP; Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da Unicamp. Sistema Nou-Rau; Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP; Teses e dissertações defendidas na Universidade federal do Rio Grande do Sul; Teses e dissertações do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense. Além dos sites: Domínio Público; Grupo de Estudo e Pesquisa em História da Educação - GEPHE; Grupo de Pesquisa em Ensino de História; HISTEDBR: Grupo de Estudos e Pesquisas “História, Sociedade e Educação no Brasil” da Faculdade de Educação/Unicamp; Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira; Projeto Pensar a Educação, Pensar o Brasil: 1822-2022; Sociedade Brasileira de Historia da Educação.

3 Deseja-se aqui apenas evidenciar o distanciamento das questões de história ensinada com outros

vieses da pesquisa histórica no período. Para uma melhor análise da recente historiografia brasileira, ver o clássico C.F. CARDOSO & R. VAINFAS, Domínios da História; além de M.C. FREITAS, Historiografia brasileira em perspectiva; e para um olhar sucinto: José J. ARRUDA & José M. TENGARRINHA, Historiografia luso-brasileira contemporânea.

Page 4: O Ensino de História como Objeto de Pesquisa

não alcançavam grande expressão no métier dos historiadores brasileiros4. O resultado

dessa desqualificação foi uma historiografia do ensino de história praticamente

desconhecida, inclusive, no interior dos próprios cursos de licenciatura. De modo

perverso, as pesquisas sobre os métodos, os embates teóricos, os sujeitos, os desafios da

disciplina escolar não interessaram justamente à História.

Nestes termos, não é despropositado pensar que os professores graduados neste

ínterim tiveram pouquíssimas referências para compreensão processual do ensino de

História, impossibilitando-os de identificar as raízes de suas práticas profissionais

dentro de conjunturas e dinâmicas próprias – uma questão deveras importante que vem

acompanhando alguns intelectuais desde a primeira República: em 1917, por exemplo,

Jonathas Serrano debruçou-se sobre o quê e como deve ser ensinado pelos professores

de História quando publicou sua Methodologia da História na Aula Primária, pois,

em seus termos:

O desconhecimento de bons methodos não acarreta apenas sensível perda de

tempo, prejuízo aliás já não despiciendo; traz ainda a fadiga, produz o tédio,

e quase sempre gera aversão crescente à matéria mal ensinada. [...] Dahi,

por exemplo, em história, a condemnação do velho erro que fazia da bella

sciencia uma insupportavel nomenclatura recheada de uma exahustiva

cronologia. Martyrio da memória, o que devêra ser encanto da imaginação5.

Este trabalho inaugural sobre ensino de História no Brasil ligava-se, de certo

modo, a um crescente aumento da literatura pedagógica durante os anos de 1910, 1920 e

começo de 1930. A centralidade das discussões dizia respeito à escola primária, espaço

preferencial da interferência governamental e agregadora de um corpo docente mais

numeroso6. As páginas dos livros e revistas especializadas em educação tardariam a se

manifestar em relação ao secundário. Somente em 1935 foram publicadas duas obras

voltadas para esse nível de ensino, no bojo das discussões em torno da reforma

4 I. MESQUITA, Memórias/identidades em relação ao ensino e formação de professores de história:

diálogos com fóruns acadêmicos nacionais, p. 64, demonstra que a Associação Nacional de Professores de História incorporava essa concepção: quanto à formação de professores faz sentido compreender a ausência de qualquer menção nos Estatutos da Associação, pois como professor da escola básica não era ainda considerado um produtor de conhecimentos ou pesquisador, não conferia a essa categoria fazer parte do corpo de associados e apresentar trabalhos nos Simpósios da Anpuh.

5 J. SERRANO, Methodologia da História na Aula Primária, Pp. 10 e 11 – 12.

6 Cf. I. FREITAS, Os impressos pedagógicos e o ensino de História no Brasil (1880/1940), p. 6 – 7.

Page 5: O Ensino de História como Objeto de Pesquisa

Francisco Campos7: o livro Como se Ensina História e a tese A História no Curso

Secundário.

Respectivamente, eram um manual de Jonathas Serrano, professor de duas

instituições que ocuparam a vanguarda do pensamento educacional brasileiro (o

Collegio Pedro II e a Escola Normal do Rio de Janeiro) e a análise acadêmica de Murilo

Mendes, experiente professor da Escola Normal de Campinas e, depois, da

Universidade de São Paulo. Em que pesem as razões diferenciadas para escrita8, pode-se

perceber algumas similitudes entre os dois trabalhos: ambos trataram do estatuto

científico da História e de aspectos metodológicos do seu ensino, responderam a

demanda de material específico para preparação de aulas do secundário, eram alinhadas

ao movimento escolanovista e, ainda que indiretamente, situaram a História escolar no

debate educacional da época, visto que:

[...] A partir de 1930 teve início um processo de consolidação do código

disciplinar da História, no contexto da sociedade brasileira pós-Revolução

de 30, o qual concretiza a institucionalização de alguns projetos de reformas

educacionais [...]. Neste contexto, o ensino de História pode ser visto como

um fator de coesão nacional e a História tida como disciplina que, por

excelência, formava os estudantes para o exercício da cidadania e seus

programas incorporavam essa concepção 9.

Serrano e Mendes tiveram seus apontamentos divulgados em grande parte do

país10

tornando-se autoridades a serem observadas por aqueles que já atuavam ou

7 Durante os primeiros meses de seu governo, Getúlio Vargas ordenou ao então ministro Francisco

Campos que planejasse uma reforma da educação nacional. O decreto número 19.890 de 18 de abril de 1931 (que ficou conhecido também como lei ou reforma Francisco Campos) introduzia mudanças profundas como, por exemplo, tornar obrigatório o ensino de história do Brasil na escola secundária. Com isto, a disciplina escolar passaria a servir como fomentadora de um determinado modelo de civismo. Sobre os reflexos da reforma de 1931: D. SAVIANI, As concepções pedagógicas na história da educação brasileira; D. VIDAL & L. FARIA FILHO, Reescrevendo a história do ensino primário: o centenário da lei de 1827 e as reformas Francisco Campos e Fernando de Azevedo.

8 J. Serrano atendeu demanda de Afrânio Peixoto, reitor da Universidade do Distrito Federal, para que

cada docente da Escola Normal escrevesse sobre metodologias de ensino específicas das matérias lecionadas, formando, assim, uma coleção destinada aos que se preparavam para o ingresso no magistério. Murilo Mendes, por sua vez, elaborou sua tese com vistas ao concurso para cátedra de Metodologia do Ensino Secundário da USP.

9 M. A. SCHIMIDT, Contribuições ao estudo da construção da didática da História como disciplina

escolar no Brasil: 1935 – 1952, p. 4104.

10 Especialmente Jonathas Serrano, talvez pela sua condição de sócio destacado do Instituto Histórico e

Geográfico Brasileiro (IHGB). No Amazonas, a biblioteca Arthur Cezar Ferreira Reis, que guarda o acervo

Page 6: O Ensino de História como Objeto de Pesquisa

almejavam o magistério não só pelo rigor intrínseco às suas reflexões como também

pelo circuito reduzido de intelectuais interessados nesses temas, o que pesava na

consolidação dessa didática específica11

.

Outra contribuição densa ao ponto de rivalizar com os paradigmas perpetrados

nos anos trinta veio a lume somente em 1952 com o olhar mais crítico sobre método e

instrumentos de ensino proposto pela docente da USP Amélia Americano Franco

Domingues de Castro, em sua tese de doutoramento intitulada Princípios do Método

no Ensino da História. Entre outras questões abordadas, a autora apresentou, com

inaudita erudição e embasada nos resultados de suas pesquisas, a problemática da

dicotomia entre a formação do especialista e a formação pedagógica, destacando que a

organização lógica do conhecimento histórico é a meta e não o ponto de partida do

ensino – este deve ser sempre o ponto de vista do aluno. Nesse sentido, algumas de suas

conclusões mais significativas foram:

1) A informação apresentada não deve constituir um fim em si mesma, mas o

ponto de partida para que se desenvolvam reflexões sobre o assunto, levando

à plena compreensão do mesmo.

2) A matéria deve ser organizada de acordo com a psicologia do educando,

isto é, tomando-se como ponto de partida suas possibilidades mentais de

compreendê-la e apreciá-la, assim como seus problemas e necessidades.

Deve-se, pois, partir do ponto de vista psicológico para atingir o lógico.

[...]

4) A História não pode ser reduzida a uma disciplina que apela somente

para a memória, desde que nela são solicitados os processos mais elevados

do pensamento, tais como a análise, a síntese e o raciocínio indutivo.

[...]

6) Não deve o professor esquecer-se, não obstante o relevo de sua função na

apresentação oral dos fatos que o aluno é o ser ativo no processo da

aprendizagem, devendo ele estimulá-la e dirigi-la através dos processos

adequados.

[...]12

.

Este trabalho representou um avanço enorme em termos de reflexão sobre os

métodos de ensino então usuais, mesmo considerando sua destinação original e os

do principal historiador amazonense da primeira metade do século XX e nosso principal interessado nas questões de História ensinada, possui algumas obras desse autor, uma delas Como ensinar História.

11 Para visualizar melhor esse círculo sugere-se a leitura dos dois volumes de Histórias do Ensino de

História no Brasil, de I. FREITAS.

12 A. CASTRO, Princípios do Método no Ensino de História, pp. 133 – 134.

Page 7: O Ensino de História como Objeto de Pesquisa

limites de sua circularidade, uma vez que só muito recentemente o exercício do

magistério passou a ser exclusividade dos egressos de cursos de nível superior13

.

É bastante crível que, dado o frescor das idéias e a abordagem sugerida, as

inovações metodológicas propostas pela professora Amélia Castro tenham colaborado

na formação de um novo tipo de professor mais cioso em estabelecer uma relação

ensino-aprendizagem marcada por um conhecimento sólido demonstrado através de

técnicas que requeriam posturas mais interativas com o alunado. Esse estereótipo ficou

retido na memória de várias gerações, chegando mesmo a influenciar as escolhas de

muitos profissionais14.

Ainda em 1953, o historiador amazonense Arthur Cezar Ferreira Reis, àquela

altura radicado no Rio de Janeiro, em co-autoria com Emerildo Luis Viana, Hélio Viana

e Virgílio Corrêa Filho, publica O Ensino da História no Brasil. O livro faz parte de

uma coleção idealizada pela Comision de Historia del Instituto Panamericano de

Geografia e História, composta por dez volumes que pretendiam mapear o ensino da

disciplina no continente americano15

. Seus breves capítulos esforçaram-se em

apresentar para um público internacional como a História se apresentava na estrutura

educativa brasileira, do ensino primário ao superior, passando pelo curso normal,

analisando-a como matéria complementar em Institutos de Filosofia e Ciências

Humanas, sua inserção na Escola de Estado Maior do Exército e seu ensino

especializado. Longe de propor quaisquer inovações pedagógicas, o mérito do trabalho

reside no próprio exercício de historicização da História escolar brasileira.

O modelo de docente emergido nos anos cinqüenta poderia ter se consolidado

definitivamente caso tivesse resistido às mudanças políticas que o país viveu a partir de

13

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação No. 9394, de 1996 reiterou a exigência de formação em

pedagogia ou outras licenciaturas para atuar no magistério, estabelecendo um prazo de dez anos a contar de sua promulgação para que todos professores tivessem nível superior, além de impedir os exames de suficiência (artifícios previstos na LDB N

o. 4024 de 1961 e que, na prática, permitiam aos

bacharéis atuarem como docentes).

14 Considere-se, aqui, a reflexão de E. GUSMÃO, Memórias de quem ensina história, p. 33: Se os

professores mais velhos no final dos anos 50 caracterizavam-se pelos caderninhos amarelecidos, os jovens, com formação universitária, destacavam-se pelo uso de mapas, fichamentos, visão abrangente da disciplina, rigor na cobrança e pela capacidade de descrever um mundo inusitado.

15 A saber: Vol. I La enseñanza de la historia en México; Vol. II The teachting of history in the United

States; Vol. III L’enseignement de l’histoire em Haiti; Vol. IV La enseñanza de la historia en Cuba; Vol. V La enseñanza de la historia en Colombia; Vol. VI La enseñanza de la historia en Venezuela; Vol. VII La enseñanza de la historia en Argentina; Vol. VIII La enseñanza de la historia en Honduras; Vol. IX La enseñanza de la historia en Puerto Rico; Vol. X O ensino de história no Brasil.

Page 8: O Ensino de História como Objeto de Pesquisa

1964, mas tanto quanto outras didáticas específicas, o ensino e os ensinantes de História

não ficaram imunes ao fechamento político do país com o golpe militar.

Se, praticamente desde sua instituição, o governo ditatorial promoveu

perseguições aos historiadores não alinhados, censuras aos conteúdos ministrados,

cerceamento de práticas e espaços escolares democráticos, foi em seu período mais

agudo que o regime intensificou o controle sobre a educação, atuando na formação dos

quadros docentes através do decreto-lei nº. 547, de 18 de abril de 1969. Este

instrumento legal autorizava o funcionamento de cursos profissionais de nível superior

com curta duração para atender as carências de professores em determinadas regiões do

país e isto permitiu a criação de uma licenciatura curta em Estudos Sociais, sintetizando

numa mesma matéria saberes de inúmeras áreas das Ciências Humanas, em especial de

História e Geografia16

.

Um golpe duro, sem dúvida, que refletiu não só a desqualificação da formação

docente quanto o descompromisso dos governos militares com uma educação capaz de

dirimir diferenças sociais. Todavia, os atos mais violentos dessa estratégia ainda não

tinham sido praticados: a lei 5.692, de 1971, trouxe os Estudos Sociais para o primeiro

grau, remanejou professores para essa nova disciplina escolar, substituindo História e

Geografia que a partir de então só existiriam como matérias autônomas no secundário.

Finalmente, a portaria 790, de 1976, determinou que só estariam autorizados a dar aulas

de Estudos Sociais os formados nessa licenciatura curta17

.

16

Trata do assunto de forma objetiva e esclarecedora U. ROCHA no primeiro capítulo de seu História, currículo e cotidiano escolar. Mas, o melhor texto a sintetizar essas questões ainda é o de S. FONSECA, Caminhos da história ensinada. Na página 27, a historiadora explicitou: De acordo com a resolução n

o. 8,

de 1972, do Conselho Federal de Educação, o currículo mínino destes cursos é constituído das seguintes áreas: História, Geografia, Ciências Sociais, Filosofia, Ciência Política, OSPB e as obrigatórias EPB e Educação Física, além da área pedagógica. A duração das licenciaturas curta e longa deve ser de respectivamente 1.200 horas, o que equivale a um ano e meio letivo, e 2.200 horas, o que equivale a 3 anos letivos.

17 Para dar prosseguimento a esse projeto de intervenção na educação brasileira, também foram criadas

as matérias de Organização Social e Política Brasileira (OSPB), Educação Moral e Cívica (EMC), no ensino de primeiro e segundo graus, e Estudos dos Problemas Brasileiros (EPB), no terceiro grau. Suas marcas foram a propagação do ideário de segurança nacional e legitimação do regime. Seus procedimentos didáticos ficaram gravados na memória daqueles que frequentaram essas aulas de forma impactante. O músico Lobão escreveu em sua biografia: Por outro lado, a aula mais desprezível não podia deixar de ser a de Moral e Cívica, matéria imposta e inventada pelo regime militar, com o intuito de ensinar o aluno a amar sua pátria de maneira correta, lecionada por duas octogenárias com quilos de maquiagem na cara, perucas, aquele cheiro de perfume doce com pó de arroz. Uma delas se chamava professora Yolanda, a outra Elza. Essas mestras iriam nos seguir os passos durante todos os anos do ginasial!! E com as mesmas matérias, com as mesmas canções! Mais adiante, reproduziu notícia publicada no periódico Folha da Tarde em 29/08/1986: Com quase 17 anos, Lobão resolveu abandonar o segundo grau.

Page 9: O Ensino de História como Objeto de Pesquisa

O resultado dessas medidas foi uma redução significativa dos espaços de atuação

de historiadores e geógrafos, exilados para o segundo grau, nível de ensino que não

contava com investimentos sólidos das esferas competentes de governo e cujas

matrículas revelavam o funil educacional existente no país. Para exemplificar: a taxa de

evasão entre 1979 e 1985 foi de 24% e a de repetência foi de 14%. Dois anos após o fim

do regime militar apenas 37% da população brasileira entre 16 e 18 anos se encontrava

matriculada no segundo grau18

.

As reações a essas medidas foram de várias ordens: desde a oferta, por parte de

algumas faculdades, de uma complementação após o término da licenciatura curta, de

maneira a estimular os alunos a prosseguirem o curso e se “especializarem” em uma das

disciplinas suprimidas até a organização de encontros para discussão do tema e

mobilização da sociedade19

. Uma alternativa de resistência menos aparente, mas

igualmente significativa foi a opção dos profissionais da área de não produzir reflexões

sobre um curso imposto e uma formação desacreditada: exceto os tradicionais

suplementos para professores, encartados nos livros dos mestres, não há nenhuma

publicação de relevância a discutir questões de métodos de ensino para Estudos Sociais

nesse período20

.

Neste cenário, o já lacônico volume de publicações sobre ensino de história

tornou-se mais conciso enquanto os militares mantiveram-se no poder (1964-1985) e,

assim, ganharam musculatura os combates contra a ditadura travada por meio de outros

objetos e abordagens historiográficas. Mesmo com a distensão política e o gradual

desmascaramento do colapso educacional deixado como legado, na primeira metade dos

anos oitenta, destacam-se apenas a pesquisa da pedagoga Maria Laura Franco, O Livro

Didático de História no Brasil, publicado em 1982 e o espaço conseguido junto ao

Segundo ele, a gota d’água foi durante uma aula de Organização Social e Política. “O professor teve o desplante de dizer que em nosso país não existe racismo. Pedi, então, a ele para apontar um só negro que estivesse no colégio como aluno e não como faxineiro. (LOBÃO & C. TOGNOLLI, 50 anos a mil, pp. 90 e 296).

18 Ibdem, p. 18.

19 Processos nos quais a ANPUH (Associação Nacional de Professores Universitários de História), AGB

(Associação de Geógrafos do Brasil), SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência), ANDE (Associação Nacional de Educação) e ANPED (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação) tiveram destacada participação. Idem, pp. 25 – 35.

20 Entretanto, essa opinião não é partilhada por todos os pesquisadores da área. I. FREITAS,

Fundamentos teórico-metodológicos para o ensino de História, reconhece a validade de alguns livros sobre essa matéria a exemplo de: Didática dos estudos sociais: como aprender, como ensinar, de Maria Helena Oliveira et alii; ou O ensino de estudos sociais no primeiro grau, de Dulce Maria Leme et alii.

Page 10: O Ensino de História como Objeto de Pesquisa

importante “Cadernos CEDES”: em 1983, no seu número 8 apareceu o curto artigo de

Déa Ribeiro Fenelon, A Formação do Profissional de História e a Realidade de

Ensino e um ano depois, a área ganhou uma edição exclusiva, a de no.10, para debater A

Prática de Ensino de História21

.

Maria Laura Franco, apoiada num referencial marxista ortodoxo, estudou a escrita

da história em livros didáticos a respeito de dois movimentos sociais: a sabinada e a

cabanagem. Analisou que papel os autores atribuíam ao povo nessas revoltas e concluiu

que os manuais desenvolveram uma apologia à manutenção do status quo em textos

cujas abordagens adormeciam a consciência e faziam o aluno pensar que a história é

uma sucessão de fatos, onde prevalece a vontade deste ou daquele indivíduo, a cujo

arbítrio as massas se submetem pacificamente22

.

O livro sintetizou, de alguma forma, um pensamento crítico sobre os impressos

pedagógicos que, apesar de presente na fala de muitos professores, estava pouco

estabelecido numa bibliografia produzida desde os anos setenta em função das formas

de repressão e censura imposto pelo regime de exceção militar23

.

21

O Caderno Cedes é uma publicação do Centro de Estudos Educação e Sociedade vinculada à Universidade de Campinas. Conforme inscrito em seu site (www.cedes.unicamp.br): O Centro de Estudos Educação e Sociedade surgiu em março de 1979, em Campinas (SP), como resultado da atuação de alguns educadores preocupados com a reflexão e a ação ligadas às relações da educação com a sociedade. [...] A idéia primeira de criação do Centro, assim como o primeiro número da Revista, surgiram durante o I Seminário de Educação Brasileira, realizado em 1978, na Unicamp. A partir do II Seminário de Educação Brasileira, o Cedes passou a organizar, conjuntamente com a ANPED e ANDE, as Conferências Brasileiras de Educação (CBEs). Além destes eventos, o Centro participou de inúmeros movimentos sociais de reorganização do sistema educacional, congressos, encontros, seminários, assim como esteve presente no Fórum Nacional de Educação na Constituinte e do Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública.

22 M. L. FRANCO, O livro de história no Brasil, p. 101

23 Tangencia essa questão D. GATTI JÚNIOR, A escrita escolar da História: livro didático e ensino no

Brasil (1970-1990). Às pp. 67 – 68, o autor publiciza o depoimento da eminente professora Joana Neves, também escritora de livros didáticos desde 1975, que deixa entrever o desconforto com um tipo de manual massificador de uma interpretação histórica rasa e comprometida com a legitimação do regime e as estratégias possíveis para adentrar no mercado editorial, desviando do crivo da censura: Quando a Saraiva nos convidou para fazer esse livro, fez contato primeiro com a Elza [Nadai]. [...] Nesse contato, ela deixou claro que não faria esse tipo de coisa, que a gente tinha uma crítica radical a isso, inclusive das conseqüências negativas que levava ao ensino e que nós não faríamos, pois isso contrariava o sentido do estudo da História, que deve ser aberto para a divergência, para polêmica, para construção, para criatividade e se eu já tenho uma resposta certa, já nem adianta mais mandar ler qualquer coisa. [...] O nosso contrato com a editora era de que nós faríamos um tipo de livro que não tinha a ver com a massificação. [...] Nós faríamos um tipo de livro que não seria de grande vendagem. [...] Desde o começo foi estipulado que nós faríamos um tipo de livro para uma forma mais crítica do ensino de História e, sabia-se, naquele momento, que não estaria ao alcance de todo mundo.

Page 11: O Ensino de História como Objeto de Pesquisa

Por volta do lançamento daquela edição, Franco cursava pós-doutorado na

Unicamp, instituição que parece ter assumido posição de vanguarda na divulgação do

pensamento universitário sobre educação através de iniciativas como os “Cadernos

CEDES”.

Gestada na Faculdade de Educação, a revista, poucos anos após seu lançamento,

ganhara respeitabilidade graças às abordagens interdisciplinares de temáticas diferentes

a cada número com contribuições de autores renomados e jovens pesquisadores que

forneciam um panorama atualizado sobre diferentes problemáticas e, ao mesmo tempo,

marcavam a posição política de defesa da escola pública e de um ensino crítico. Assim,

a publicação de Déa Fenelon no número dedicado às licenciaturas reiterava a

legitimidade e ampliava a visibilidade a cerca das preocupações sobre o ensino de

História.

A Formação do Profissional de História e a Realidade de Ensino foi

elaborada originalmente como conferência para o XI Simpósio Nacional da ANPUH,

realizado em 1981 em João Pessoa. Nele estão contidas críticas contundentes à

formação de 3o.

grau baseada numa licenciatura excessivamente livresca e às condições

de trabalho pontuadas por infraestrutura colegial inadequada, salas lotadas e salários

aviltantes e à insistência dos professores em construir aulas alicerçadas num aluno ideal,

mas inexistente:

Quando já professor, formado nesta colcha de retalhos, volta ao ensino de 1o

e 2o graus e não consegue se identificar quanto aos caminhos a serem

percorridos, muitas vezes repete o erro de sua formação: começa a pensar

nos alunos ideais, na escola ideal, etc. Professores universitários e de 1o

e 2o

graus unem, então para reclamar do nível dos alunos, cada vez mais baixo,

sem perceber que são suas propostas que estão extremamente fora da

realidade, não apresentam nenhum interesse específico a não ser o grau de

dificuldade. E é preciso lembrar que qualquer que seja o nível dos alunos é

com eles que temos que lidar24

.

Fenelon promoveu uma defesa pioneira da aproximação do ensino e da pesquisa

nas escolas. Ela entendeu que o contato direto com fontes é estimulante e leva os alunos

a problematização do concreto, fazendo do ensino de História algo vívido.

24

D. FENELON, A formação do profissional de história e a realidade do ensino. , p. 29.

Page 12: O Ensino de História como Objeto de Pesquisa

Raramente nossos alunos são colocados diante do problema de tentar

conduzir qualquer investigação, raramente aprendem a fazer ciência, a fazer

História e fazer História significa lidar com a sociedade, objeto dinâmico em

constante transformação, aprender a reconhecer seus próprios

condicionamentos sociais e sua posição como agentes e sujeitos da História.

[...] O verdadeiro ensino sempre pressupõe pesquisa e descoberta. Queremos

um profissional de História que seja capaz de ensinar uma História na qual

as pessoas possam se reconhecer e se identificar porque para nós a História

é uma experiência que deve ser concretizada no cotidiano, porque é a partir

dela que construiremos o hoje e o futuro25

.

Talvez pela origem do texto ser proveniente de uma fala, nota-se, a exemplo das

citações acima, que Déa Ribeiro Fenelon fez uso, em alguns trechos, do recurso

estilístico de repetir certos termos como se quisesse reafirmar a urgência de se dar

atenção à causa de um ensino mais próximo da realidade do educando, mas

principalmente àquilo que ela indica no seu prognóstico: a necessidade de uma História

escolar que contribua para reflexão e, conseqüentemente, para transformação social

através do estímulo desde muito cedo à investigação científica26

.

Considerando a necessidade de transcender a verbalização destas preocupações

em direção às ações concretas, a Profa. Fenelon, então exercendo a Presidência da

ANPUH, associada à Faculdade de Educação e ao Departamento de História, ambos da

Unicamp, realizaram, em fins de 1983, um encontro de professores de primeiro e

segundo graus, das disciplinas de História e Estudos Sociais. No ano seguinte viria a

público os resultados dos debates na forma de Cadernos CEDES no. 10.

O dossiê foi coordenado por Ernesta Zamboni e contou com dez artigos: três

escritos por professores de Instituições de Ensino Superior e sete por educadoras de

Campinas27

. Seus objetivos eram promover uma troca de experiências entre os docentes

e propiciar uma interação entre as escolas e as universidades. Entretanto, percebe-se

certo descompasso na estrutura da edição que não é apenas numérico: as abordagens dos

25

Ibdem, p. 31.

26 Pena constatar que tais recomendações não perderam sua validade: E. ANDRADE demonstra em A

unidade necessária entre o ensino e a pesquisa em História, que decorridos 24 anos dessa crítica, a dicotomia ensino–pesquisa ainda não foi superada nos cursos de graduação e, dessa forma, os egressos que assumem seus postos nas escolas de ensino fundamental e médio continuam com dificuldades em estimular suas classes a pesquisar para construir saber histórico.

27 São as professoras universitárias Dea Ribeiro Fenelon e Ernesta Zamboni, da Unicamp além de Luiza

Margareth Rago, da Universidade Federal de Uberlândia. Ainda as professoras de primeiro e segundo grau Maria Silvia Bassanezi, Vera Lucia De Rossi, Maria Carolina Galzerani, Maria Helena Paes, Vera Lucia Gói, Paulo Cosiuc e Dulce Maria Leme.

Page 13: O Ensino de História como Objeto de Pesquisa

professores universitários são sensivelmente diferentes daquelas realizadas pelas

professoras do primeiro e segundo graus.

Mesmo sem se furtar a alguns exercícios de teorização, os docentes do sistema

estadual e da rede particular focaram seus relatos em suas experiências pedagógicas:

estudos da noção de tempo e espaço através da história dos bairros; a relação dos

conteúdos da antiguidade clássica e da época moderna com a vida cotidiana dos alunos;

os limites dos livros didáticos para a criticidade das aulas; o uso de documentos e fichas

de consulta para complementação ou substituição dos manuais escolares; o chamado

“estudo do meio” para compreensão do patrimônio histórico urbano.

Suas narrativas apresentaram êxitos e limites dessas metodologias e a validade

delas para construção de uma relação ensino-aprendizagem desprendida dos contornos

ideológicos impostos pelo poder público:

A principal preocupação do presente trabalho [...] foi permitir que nossos

alunos percebessem com maior clareza que a História não é um amontoado

de datas, nomes e fatos passados para serem decorados, mas sim, que ela é

viva, capaz de possibilitar a compreensão da realidade mundial e o lugar do

Brasil dentro dela, desenvolvendo hábitos e atitudes que consideramos mais

condizentes com a sociedade democrática que queremos [...]28

.

Mostraram, portanto, os esforços estabelecidos por aqueles que tinham a tarefa

cotidiana de resignificar a prática escolar, superando os limites da formação acadêmica

e a desconfiança de diretores, supervisores e pais quanto à validade dos

encaminhamentos pedagógicos propostos. Os subsídios das professoras universitárias ao

volume, apesar de relevantes, percorreram trilhas diferenciadas que lhes conduziram a

análises de conjunturas e modelos teóricos aplicáveis ao ensino de História.

Dea Fenelon redigiu outra pujante crítica àquilo que chamou de engodo dos

Estudos Sociais e demais cursos de curta duração, situando-os numa conjuntura

educacional marcada pela desvalorização do professor, pela precarização do trabalho

dos demais profissionais do magistério, pelo autoritarismo instalado nas Universidades

e nas escolas e, reiterando sua posição outrora expressa, pelo apartamento entre a

produção e a socialização da ciência. As licenciaturas, em sua opinião, deveriam voltar-

28

M. GALZERANI, A expansão mercantilista e a formação do Brasil colônia: uma experiência didática na periferia de Campinas, p. 43.

Page 14: O Ensino de História como Objeto de Pesquisa

se para formar indivíduos capazes de produzir conhecimento, relacionar-se

criticamente com a produção científica, transmitir aos estudantes tanto um saber

determinado quanto os elementos que permitem sua crítica 29

.

Utilizando-se de uma apreciação pouco menos incisiva, mas ainda consoante a

essa bandeira de luta, Margareth Rago dissertou sobre os encaminhamentos

metodológicos para identificação e recuperação de fatos locais como expressões de

saberes apropriados pelos alunos a partir da investigação histórica.

Ao tomar por base um protesto popular ocorrido em Uberlândia em 1959, ela

orientou seus alunos finalistas do curso de História a delinear um quadro das condições

de vida e de trabalho das classes subalternas30

para explicar o quebra-quebra que

chocou as autoridades da pacata cidade, propondo, após pesquisa em jornais de época e

da realização de entrevistas, em substituição ao senso comum que atinava somente ao

aspecto pitoresco do ocorrido, um olhar inquiridor da complexa teia social da

localidade, como reflexo das contingências da conjuntura política nacional. Sua

preocupação maior no artigo, contudo, não fora a de explicitar os passos da realização

do trabalho, mas sim dar lastro científico que servisse de estímulo para a realização de

atividades similares ao introduzir o pensamento de E.P. Thompson e George Rudé, até

então intelectuais pouco traduzidos para a língua portuguesa.

De certa maneira, destoando das posições assumidas pelas congêneres de ensino

superior, Ernesta Zamboni encerra a revista com texto mais denso, tratando do

desenvolvimento das noções de espaço e tempo nos alunos da primeira série do

primeiro grau. Partindo de um olhar piagetiano, ela teceu suas argumentações

substituindo, paulatinamente, o referencial psicológico por concepções advindas das

ciências humanas numa orientação interdisciplinar que não se limitou à óbvia

aproximação História–Geografia, como os conceitos supõem, pois sabendo-se,

portanto, da importância do conhecimento das relações espaço-temporais, cabe à

escola desenvolvê-las, propiciando ao aluno condições para se situar historicamente31

.

Para tanto, ela conclamou a um diálogo com saberes pouco estimados na escola:

reconheceu a importância da educação artística e da educação física para agregar valor

29

D.R. FENELON, A questão dos Estudos Sociais, p. 22.

30 M. RAGO, Uma experiência de pesquisa em História: o quebra-quebra de 1959, p. 25.

31 E. ZAMBONI, Desenvolvimento das noções de espaço e tempo na criança, p. 65

Page 15: O Ensino de História como Objeto de Pesquisa

pedagógico aos jogos infantis que ajudam no desenvolvimento das percepções de

espacialidade e temporalidade.

Entretanto, sua assertiva mais incisiva foi inscrita logo nos primeiros parágrafos:

Como a formação e o desenvolvimento da noção de tempo e espaço estão

diretamente ligados a aprendizagem da geografia e história e demais

ciências humanas, há muitos geógrafos preocupados de como se dá o

desenvolvimento da noção de espaço; entretanto, a preocupação com a

formação de tempo, cronologia, periodização é pequena entre os

historiadores.32

Pouco desenvolvida no decorrer da explanação, essa afirmativa alcançou o âmago

da divergência das abordagens, pois refletiu a incipiência das questões de ensino de

História no seio acadêmico: pregava-se por uma História transformadora da sociedade,

instrumentalizadora da cidadania e avessa à memorização de nomes, datas e fatos,

porém não se cogitava avançar na reflexão sobre os encaminhamentos a serem

efetivados no âmbito da sala de aula para enfrentar problemas corriqueiros como o

desinteresse pela disciplina tomada por decorativa ou a abstração dos conceitos

históricos para crianças e adolescentes, por exemplo.

Considerando que disciplinas como História da Educação ou Metodologia do

Ensino de História eram (e, em grande medida, ainda são) sigladas nos departamentos

de fundamentos de pedagogia, o contato que os graduandos faziam com as questões de

ensino levantadas pelos historiadores se inscrevia, geralmente, em torno de críticas às

políticas públicas ou, então, de dimensões teóricas que respondiam pouco às demandas

dos professores de primeiro e segundo graus. Faltava, aquela altura, pesquisa

sistemática que fornecesse base para proposições em torno dos desafios e das

alternativas para compreensão de uma História-problema também por parte dos

educandos.

Ainda assim, o encontro de professores e o lançamento da revista eram sinais que

uma viragem nos estudos sobre ensino de História começava seu curso. Tal guinada

deitaria definitivamente suas raízes a partir da segunda metade dos anos oitenta e teve

como marco a publicação de uma obra coletiva de pesquisadores da Pontifícia

32

Ibdem, p. 64.

Page 16: O Ensino de História como Objeto de Pesquisa

Universidade Católica de São Paulo intitulada Ensino de História: Revisão Urgente33

.

Sua representatividade reside na publicização dos resultados de um ciclo completo de

intervenção sobre a didática da História: principiou por uma crítica teórica sobre a

história ensinada tal como estava posta nas instituições educativas, passou pela defesa

de uma proposta curricular para o ensino de História na 5a. série do primeiro grau e,

baseada nela, expôs uma exitosa experiência sobre o estudo de um dos tópicos do

programa de ensino com alunos de uma escola estadual da periferia de São Paulo.

Iniciaram os trabalhos apoiados por um financiamento do SESu/MEC destinado a

confecção de material instrucional, porém, na medida em que estudavam, os

proponentes do projeto perceberam a necessidade de estreitamento dos laços com os

temas relativos à realidade do magistério ginasial e secundarista34. Ao afastarem-se da

idéia original, conseguiram entender que sem uma ingerência no currículo da disciplina,

seus esforços apenas fabricariam uma nova embalagem para velhos conteúdos.

O amadurecimento de um novo currículo para a 5ª. série ginasial passou pelas

considerações acerca de quem é o personagem central do processo ensino-aprendizagem

e como alcançá-lo efetivamente. No decorrer do ano letivo, ao propor novos

encaminhamentos metodológicos para discutir um conceito-chave, as noções de tempo

histórico, o projeto recuperou a história de vida dos alunos e, em função da origem da

maioria, desdobrou-se numa pesquisa complementar para melhor compreender a

migração dos nordestinos, seus problemas de adaptação na cidade grande e sua

exploração enquanto mão-de-obra desqualificada.

A partir de uma problemática inicial – “como viviam os homens

antigamente?” – Conceição [Cabrini] identificou que, para seus alunos, o

antigamente se dava no meio rural. A partir desse “antigamente” e desse

“meio rural”, selecionou como objeto de estudo a migração nordestina. A

origem nordestina de seus alunos propiciou-lhes maior interesse pelo objeto

de estudo e a oportunidade de colocarem sua experiência de vida. Isso

facilitou-lhes a descoberta e a generalização, assim como uma melhor

compreensão de sua realidade atual35

.

33

C. CABRINI et alii, O ensino de história: revisão urgente. Sua primeira edição foi lançada em 1986, mas a pesquisa relatada foi realizada entre os anos de 1983 e 1984.

34 Ibdem, p. 8: Começamos por organizar discussões semanais sobre o ensino e o aprendizado em geral e

o de História em particular, procurando nos embasar e nos reciclar; passamos a comparecer com mais constância a reuniões, encontros, congressos, etc., em que se discutiam esses dois amplos temas e cada vez mais nos envolvemos com eles.

35 Idem, p. 118.

Page 17: O Ensino de História como Objeto de Pesquisa

Nunca antes uma obra com o relato de uma pesquisa efetivada por professores

universitários em conjunto com seus pares de primeiro grau e que contou com a

participação primordial de alunos alcançara tanta repercussão nos cursos de História.

Era um exemplo real, circunscrito historicamente numa determinada época e espaço, tão

críveis, tão próximos da realidade vivenciada pelos futuros profissionais do magistério

que os incitava a deixar de lado a formalidade curricular e tentar abordagens mais

significativas para comunidade escolar. Ao mesmo tempo, a materialização de um

discurso de compreensão da sociedade através da educação e, particularmente, do

ensino de História e, também, um sopro de crença e incentivo em prol de uma nova

História ensinada, resumida na única linha da conclusão do livro, não à toa voltada para

os jovens professores: Coragem: vá em frente! 36

.

Não tardou para que as questões de ensino, por tanto tempo negligenciadas,

extrapolassem os esporádicos meios impressos e demandassem a constituição de fóruns

específicos para a socialização de suas inquietações, uma vez que os Simpósios

Nacionais de História não possibilitavam espaços acadêmicos de discussão. Como

estratégias de enfrentamento à relutância da ANPUH em reconhecer a História ensinada

como objeto de investigação e campo legítimo para intervenção do historiador, foram

organizados o Encontro Nacional Perspectivas do Ensino de História (a partir de 1988)

e o ENPEH – Encontro Nacional de Pesquisadores do Ensino de História (desde 1993).

De certa maneira, pressionada pelos esforços desses dois eventos de grande alcance, a

Associação representativa dos profissionais da História foi abrindo espaço nas páginas

da Revista Brasileira de História para publicação de dossiês concernentes ao ensino da

disciplina escolar, e ampliando o suporte ao GT História e Educação nos Simpósios

Nacionais37

.

No interregno entre 1986 e 1996, seguiram-se as publicações de algumas outras

obras na área38

, mas foi com o estabelecimento da nova Lei de Diretrizes e Bases da

36

Idem, p. 131.

37 Para uma apreciação das tensões envolvidas no processo de afirmação da História ensinada nos

fóruns acadêmicos nacionais ver I. MESQUITA, op. cit.

38 Em especial: O ensino de História e a criação do fato, outra obra coletiva organizada por Jaime Pinsky

e publicada em 1988. Contando com a colaboração de outros quatro historiadores (Elza Nadai, Paulo Miceli, Cirece Bittencourt, Nicholas Davies) seu enfoque é sobre o uso escolar de uma categoria de difícil apreensão no ensino ginasial e secundário, o fato histórico. Original em sua proposta, igualmente obteve grande inserção na licenciatura, mesmo seguindo uma opção de discussão fundamentalmente

Page 18: O Ensino de História como Objeto de Pesquisa

Educação que uma nova conjuntura despontou e ensejou a implementação de novas

políticas públicas que favoreceram a ampliação de pesquisas educacionais, inclusive,

daquelas voltadas para o ensino de História. Com a necessidade de cumprir os

dispositivos da LDB 9394/96 no tocante à formação superior dos docentes, muitos

Estados e Municípios, incentivados financeiramente pelo Governo Federal, buscaram

estabelecer convênios com Instituições de Ensino Superior para oferta de graduação nas

áreas que compõem o currículo básico. Esta demanda substancial a qual foram

submetidas às Instituições de Ensino Superior acabou por chamar atenção da academia

para o que estava sendo ensinado, para quem, através de quais metodologias e com

quais interesses.

Este foi mais um impulso para que os pesquisadores focados nos problemas de

ensino de sua área específica deixassem o incômodo papel coadjuvante aos quais

estavam relegados e se acomodassem em uma posição de maior destaque nos

departamentos universitários e programas de pós-graduação. Consolidou-se o

movimento de valorização dessas questões cujas decorrências permitiram tanto o

reconhecimento merecido dos pioneiros das pesquisas nesse campo, quanto o

aparecimento de uma nova geração de professores universitários que cuidaram de

aprofundar sua legitimação indicando um inebriante mosaico de possibilidades de

investigação fruto de diálogos interdisciplinares39

. Resultante desse processo houve, a

partir da década de 1990, o incremento de teses e dissertações defendidas e livros

publicados que se dedicaram, principalmente, às análises sobre livros didáticos,

questões de metodologia de ensino, formação e trabalho docente.

Os trabalhos sobre impressos pedagógicos, particularmente livros didáticos, são

mais numerosos. Tratam, em geral, da produção e circulação dos manuais e das

concepções de história inscritas em suas páginas. Nestes termos, são exemplos

teórica. Dois anos depois, a Revista Brasileira de História edita o número História em quadro-negro: escola, ensino e aprendizagem. Nove textos formam o primeiro dossiê sobre ensino do principal veículo de divulgação da produção historiográfica e, dentre eles, destacam-se o de autoria de Cláudia Ricci e o de Cláudia Gagliardi et alii nos quais são tratados, a partir do ponto de vista dos professores secundaristas, as relações estabelecidas entre os saberes produzidos nas universidades e sua disseminação nas escolas de primeiro e segundo graus. Ressalte-se que a RBH voltaria a dedicar outros dossiês ao tema: em 1992/93 (N

o 25/26), em 1998 (N

o 36) e em 2004 (N

o 48).

39 A título de reconhecimento, entre esses desbravadores reverenciamos Elza Nadai, Déa Ribeiro

Fenelon, Circe Bittencourt, Joana Neves, Marcos Silva, Ernesta Zamboni. Da nova geração, destacam-se: Selva Guimarães Fonseca, Thaís Nívea Fonseca, Luis Fernando Cerri, Décio Gatti Jr., Martha Abreu, Rachel Soihet, Holien Bezerra, Itamar Freitas.

Page 19: O Ensino de História como Objeto de Pesquisa

sugestivos pela qualidade das análises A escrita escolar da História, de Décio Gatti Jr

e Concepções de História e de Ensino em manuais para o ensino médio brasileiros,

argentinos e mexicanos, tese de doutoramento defendida na USP por Vitória

Rodrigues e Silva.

O livro de Gatti Jr. explora vários aspectos da feitura e circulação do livro

didático entre os decênios de 1970 e 1990, mas seu diferencial está nas ponderações a

respeito das implicações posteriores à passagem de uma escrita individual do texto

didático, quase artesanal, para o uso de equipes técnicas recheadas de “especialistas”,

focadas para agradar o mercado editorial e dispostas a refinar mecanismos de

reprodução de valores e comportamentos úteis ao Estado.

As editoras de livros didáticos, de modo geral, haviam se tornado uma

indústria interessada em produzir mercadorias em um formato próximo ao

dos livros que já tinham alcançado amplo sucesso de vendas, o que

significou, no evoluir histórico, a consolidação de uma determinada fórmula

editorial, quase única para os livros daquela época. À época, as editoras

eram constituídas de seus editores, personagens dos mais importantes no

circuito da produção de livros didáticos ou não; dos autores das obras, que

em alguns casos estavam se deslocando para um papel de atores

coadjuvantes no processo de fabricação dos livros; dos agentes literários,

que vivem à caça de textos e autores que se enquadrem na pauta editorial da

empresa em que trabalham; do pessoal de vendas e de divulgação e

marketing, que ocupavam o segundo lugar em importância nas decisões

editoriais, abaixo apenas dos editores, quando não imiscuídos de ambas as

atividades40

.

Utilizando-se da História Oral, o trabalho recuperou a trajetória intelectual e

profissional de tradicionais autores de manuais para o ginásio e secundário: Joana

Neves, José Jobson de Andrade Arruda, Ricardo de Moura Faria e Flávio Costa Berutti

– que além de manterem sólida reputação nos meios universitários, também têm uma

trajetória na produção desse tipo de material iniciada em meados dos anos setenta que

lhes permitiu protagonizarem muitas das tensões e polêmicas no processo de criação e

gerenciamento da produção didática.

A tese de Vitória Silva tem sua originalidade na comparação entre obras

brasileiras, argentinas e mexicanas destinadas ao que seria equivalente ao ensino médio

nesses países. Acessoriamente, cotejou os diferentes sistemas educacionais e como eles

40

D. GATTI JR., op. cit., p. 139. Grifo nosso.

Page 20: O Ensino de História como Objeto de Pesquisa

interagiam com o ensino de História. Isto trouxe ao seu trabalho uma compreensão mais

ampla dos movimentos que a história ensinada está inserida em nível latino-americano.

Sua análise identifica que nos materiais instrucionais latino-americanos ainda

prevalece como eixo estruturante do curso correspondente ao ensino médio uma

História do capitalismo, em que pese os esforços dos escritores em reiterar o valor em si

do conhecimento histórico que colabora para formação de indivíduos cultos, cidadãos e

com autonomia intelectual.

Por outros caminhos, é a “história dos vencedores” que ainda se impõe,

mesmo que se procure ser crítico à forma como eles venceram. Não há, desse

modo, espaço para conhecer outras temporalidades que não estejam

subordinadas ao tempo único do capital. E aqui talvez possamos identificar

um processo de reacomodação de uma tradição. Se na perspectiva

humanista, o estudo da História se subordinava à formação geral do

indivíduo, que deveria conhecer a trajetória civilizacional das sociedades

ocidentais, desde a Antiguidade, essa perspectiva temporal mais longa

perdeu relevância considerando-se suficiente que o aluno conheça o

processo pelo qual a ordem capitalista se estabeleceu, expandiu-se e

consolidou sua dominação. Portanto, estamos nos distanciando cada vez

mais do modelo de formação humanista, da valorização do domínio de uma

cultura clássica41

.

As discussões sobre metodologias de ensino de história são comuns,

principalmente, entre as dissertações de mestrado. Talvez pela característica que esses

cursos assumiram no Brasil, onde há uma grande pressão pelo cumprimento do prazo

enxuto de 24 meses, tenham sido encorajadas pesquisas sobre métodos aplicados em

escolas ou áreas bem determinadas. Um exemplo é o trabalho de Patrícia Bastos de

Azevedo, Ensino de história e memória social, defendido na Universidade Federal

Fluminense.

O trabalhou girou em torno da observação de uma única turma de 7ª. série de certa

escola de Niterói. Desta análise foram sugeridos vínculos entre a teoria da Ação

Comunicativa, de Habermas, com a construção da memória social e seu papel no fazer

pedagógico da sala de aula de história. Seria, em seu limite, algo próximo de um estudo

41

V. SILVA, Concepções de História e de Ensino em manuais para o ensino médio brasileiros, argentinos e mexicanos, p. 244.

Page 21: O Ensino de História como Objeto de Pesquisa

de micro-história, caso a autora tivesse intenção de incorporar conceitos e métodos

ginzburguianos42

.

Quanto à formação e trabalho docente, as reflexões de Selva Guimarães Fonseca

têm se notabilizado no cenário das publicações sobre o tema. Graduada em História e

Pós-Doutora em Educação, a professora Selva publicou diversos livros, entre os quais,

dois referenciais para história ensinada: o clássico Caminhos da história ensinada, de

1993, e Espaços de formação do professor de história, de 2008. Esses trabalhos

refletem a preocupação em inventariar e cotejar experiências de formação profissional,

práticas de ensino e propostas curriculares brasileiras e estrangeiras. Percorrem trilhas

investigativas semelhantes também Thaís Nívea Fonseca, Ernesta Zamboni, Sônia

Regina Miranda, dentre outros de maior destaque.

Ressalte-se que, a partir dos anos 2000, a publicação de coletâneas organizadas

por historiadores que não tinham no ensino de História sua principal linha de

investigação tornaram-se freqüentes, associando o nome de mestres já reconhecidos ao

de outros em processo de consolidação da carreira universitária. Este parece ser o caso

de História na sala de aula, coordenado por Leandro Karnal, eminente professor na

Universidade Estadual de Campinas, ainda hoje mais conhecido pelos seus estudos nas

áreas de Moderna e América, do que por suas contribuições aos temas de ensino. Outro

nicho ocupado com bastante propriedade foi aquele voltado para o magistério das séries

iniciais do ensino fundamental, inclusive com colaborações em coleções voltadas

prioritariamente para os graduandos em pedagogia43

.

42

P. AZEVEDO, Ensino de História e memória social: a construção da história-ensinada em uma sala de aula dialógica, diz à p. 146: A memória social não se cala. Mesmo que a ignoremos, ela se introduz na sala de aula. Na sala de aula de história sua intromissão é mais freqüente e contumaz, pois a memória é um elemento inerente ao ensino de história. Acreditamos que o diálogo argumentativo cria a possibilidade de articularmos memória social e História, viabilizando uma análise coletiva e cooperativa, produtora de uma memória social fruto da reflexão, que pode transbordar o fazer da sala de aula de história para outros espaços sociais.

43 Para exemplificar no primeiro caso: A. MONTEIRO, A. GASPARELLO & M. MAGALHÃES, Marcelo de

Souza. (Orgs.), Ensino de História: Sujeitos, saberes e práticas; C.PINSKY (org.), Novos temas nas aulas de História; L. KARNAL (org.) História na sala de aula; H.ROCHA, L. REZNICK & M. MAGALHAES (orgs.), A História na Escola. Em relação às publicações voltadas para o magistério nas séries iniciais do ensino fundamental: M. SCHIMIDT & M. CAINELLI, Ensinar História; C. MOREIRA & J. VASCONCELOS, Didática e avaliação da aprendizagem no ensino de história; J. VASCONCELOS, Fundamentos epistemológicos da História; I. FREITAS, Fundamentos para o ensino da História.

Page 22: O Ensino de História como Objeto de Pesquisa

Se, ainda que tardiamente, o tema parece ter ganhado cidadania44

em âmbito

nacional, no Amazonas, em particular, a discussão sobre o ensino de História ainda tem

sido ínfima. Um dos poucos historiadores de ofício que se manifestaram sobre o tema

foi Arthur Cezar Ferreira Reis, cujos escritos eram favoráveis a uma História escolar do

Estado: além de seu supracitado estudo de 1953 sobre o ensino de História no Brasil,

somente em 1965, quando já exercia o cargo de Governador, publicou obra

especificamente voltada para o ensino, intitulada Súmula de História do Amazonas.

Com o intento de fornecer base factual para os professores de ensino primário e

secundário, o professor silenciou sobre aspectos teóricos ou metodologias adequadas

para os conteúdos, mas admitiu que sua mais conhecida obra História do Amazonas,

bastante usada nas escolas - apesar de não ter sido sua finalidade torná-la material

instrucional - se republicada, deveria ser revista para o uso didático:

Foi ação ousada, reconheço. Impunha-se, no entanto, elaborá-la com

urgência, para dar fundamento à conscientização que pretendíamos criar

nas novas gerações, preparando-as para um estado d`alma permanente no

particular dos dias que se seguissem para o Amazonas. Numa reedição que

tivesse que fazer, a “História do Amazonas” seria inteiramente refundida e

acrescida. Os elementos novos colhidos são imensos e autorizam uma outra

realidade. Não me disponho a realizar essa tarefa agora. Os problemas do

Estado consomem o tempo que seria necessário para revisão e para os

acréscimos. Esta “Súmula” pretende suprir a falta que, de trabalho dessa

espécie, vem sendo sentida pelo magistério amazonense. Não inova. Pretende

dizer o essencial.45

Com exceção de alguns poucos manuais didáticos, o ensino de História só

voltaria a ser alvo de atenção cerca de quarenta anos depois de lançada a obra de Reis

num movimento que tinha conexão com a conjuntura de incentivo à formação de

quadros docentes graduados nas secretarias de educação. Em 2003, o Governo do

Estado firmou um convênio com a Universidade Estadual do Amazonas para graduar

docentes através de cursos à distância, ministrados por módulos televisionados via

satélite. O programa, conhecido como PROFORMAR, previa que os professores

44

Conforme expressão de Manoel L. S. GUIMARÃES, Escrita da História e Ensino da História, p. 35.

45 A. REIS, Súmula de História do Amazonas, p. 12.

Page 23: O Ensino de História como Objeto de Pesquisa

titulares de cada disciplina produzissem material inédito para uso. Isso incluía,

evidentemente, a disciplina Metodologia e Prática de Ensino de História e Geografia46

.

Para esta finalidade foi escrita a obra Metodologia e prática do ensino de

história e geografia, coordenada pelo professor Hideraldo Lima da Costa, do

Departamento de História da UFAM. Publicada inicialmente em forma de apostila, o

trabalho foi lançado em 2007, como livro ainda voltado prioritariamente para uso na

formação inicial dos professores da rede estadual. Nele são discutidas questões relativas

aos objetivos e conteúdos de história para o primeiro e segundo ciclo do ensino

fundamental, o PCNH (Parâmetros Curriculares Nacionais de História), o livro didático,

entre outros.

Em que pese esse desinteresse regional, hoje é insofismável a legitimidade da

História ensinada como objeto de preocupações dos historiadores, como corrobora o

CNPq através de seu Diretório dos Grupos de Pesquisa no Brasil: existem cadastrados

84 grupos que articulam estudos sobre diversos aspectos do ensino de história em suas

linhas de pesquisa, o que reitera quão firmada está a área de pesquisa47

.

Se, por um lado, as conjunturas acadêmicas e a historiografia relativa aos estudos

da História Ensinada estão postas como sugerimos acima, e, na medida em que este

trabalho se inscreve em um de seus aspectos – uma História do ensino de História –, é

preciso desvelar, agora, quais perspectivas teóricas favoreceram esse processo de

consolidação e de quais formas elas permeiam esta pesquisa.

46

Estranhamente, a grade curricular do curso Normal Superior previa esta disciplina que englobava conteúdos das duas áreas de conhecimento. Como se vê, parece que nem a Universidade Estadual nem historiadores e geógrafos da região atentaram para as discussões e lutas contra os Estudos Sociais feitas no restante do país vinte anos antes.

47 Consulta realizada em janeiro de 2011 em http://dgp.cnpq.br/buscaoperacional/

Page 24: O Ensino de História como Objeto de Pesquisa

1.2 – Uma chave de compreensão para os estudos sobre a História da História

Ensinada: Culturas, Saberes e Disciplinas Escolares a partir da História Cultural

Em linhas gerais, esta investigação reafirma seu interesse pela compreensão das

características assumidas pela História ensinada na década de 1930 no Estado do

Amazonas e, em seus limites, deseja iluminar a interação entre um saber acadêmico e

escolar de Clio. Como dito anteriormente, este é, a exemplo de todo trabalho

historiográfico, fruto de seu tempo, não apenas porque motivado por questões

contemporâneas, mas por sua proposição, da forma como feita, ter sido possível graças

à consolidação da História cultural, uma abordagem de pesquisa que recolocou o tema

da História das disciplinas escolares em primeiro plano, inscrevendo sua autenticidade

tanto entre as preocupações de historiadores quanto de educadores. Neste sentido,

almejou realizar-se como um trabalho de História da Educação, se tomados esses dois

termos de maneira interdisciplinar e não apartados, como uma especialidade da

pedagogia refugada pelos historiadores como se convencionou pensar.

As raízes desse preconceito ligam-se à tradição universitária brasileira que

vinculou as classes e pesquisas ligadas em algum aspecto à História dos processos de

ensino-aprendizagem aos departamentos de fundamentos pedagógicos das Faculdades

de Educação, refletindo, em última análise, o espaço diminuto que as questões de ensino

ensejaram nos cursos das áreas de humanidades e exatas até bem pouco tempo.

Assumindo a responsabilidade pela produção desses conhecimentos e fiéis aos

cânones de seu universo intelectual, os educadores constituíram um conjunto de

reflexões que gravitavam em torno de uma história das idéias e das práticas pedagógicas

de amplo espectro, que não se articulavam necessariamente com as especificidades dos

interesses educativos das diversas ciências que compunham os currículos escolares:

Sem querer em nenhum momento negar as contribuições fornecidas pelas

problemáticas da história do ensino, estas têm se revelado demasiado

‘externalistas’: a história das idéias pedagógicas é a via mais praticada e a

mais conhecida; ela limitou-se, por demasiado tempo, a uma história das

idéias, na busca interminável de origens e influências48

.

48

D. JULIA, A cultura escolar como objeto histórico, p. 12. Não se trata aqui, evidentemente, de menosprezar os enfoques pedagógicos sobre o assunto ou diminuir a importância da produção intelectual dos educadores para as demais áreas do conhecimento. Somos tributários das obras de Paulo Freire, Demerval Saviani, Miguel Arroyo e António Novoa, dentre outros. Reiteramos, portanto,

Page 25: O Ensino de História como Objeto de Pesquisa

Esta opção teórico-metodológica restringiu o olhar pedagógico, deixando-o

insuficiente para dar conta de um leque mais vasto de questões sobre, no que interessa-

nos nesse estudo, a História das práticas educativas emergidas a partir da necessidade de

melhor compreender as transformações do cotidiano e dos sujeitos escolares. Tal

limitação incentivou a prospecção deste campo por outros cientistas sociais,

especialmente pelos historiadores que se valeram de seu métier para fundamentar a

ampliação da noção de fontes, o refinamento do tratamento documental, a re-

significação do discurso oficial, a identificação de novos personagens, a valorização das

entrelinhas e dos silêncios.

Este diálogo, que serviu para estimular a escrita de uma História da Educação

lato sensu, propiciou enorme incremento nas pesquisas sobre a História das disciplinas

escolares – e do ensino de História, em particular – posto que a viragem proporcionada

pelo adensamento de seus estudos no Brasil foi se apropriando das contribuições de

pensadores como Dominique Julia, André Chervel, Jean-Claude Forquin e António

Viñao Frago, protagonistas na consolidação dos diálogos entre educação, antropologia,

lingüística e História. Como sabido, dentro dos domínios de Clio, os estudos dos

saberes, disciplinas e cultura escolar foram acolhidos entre os historiadores partidários

de uma renovada História de viés Cultural49

cuja dimensão analítica foi incorporada aos

trabalhos tanto de um grupo de neomarxistas da nova esquerda britânica quanto de

adeptos da terceira geração da Escola dos Annales.

Do primeiro conjunto, emergido de um movimento historiográfico que, em

meados dos anos cinqüenta, ousou propor alternativas à leitura dogmática da teoria

marxista, destaca-se o inglês Edward Palmer Thompson. Originário do Partido

Comunista e pensador atuante, ministrou na Universidade de Leeds cursos não

acadêmicos noturnos para os trabalhadores, experimento que acabou por aproximá-lo

apenas a constatação que nestes temas, até bem pouco tempo, foram tímidas as aproximações dos pedagogos com outras áreas das humanidades.

49 O termo Nova História Cultural foi popularizado pela obra de Lyn HUNT, A Nova História Cultural e

designa uma produção historiográfica que se contrapunha a uma História Cultural Clássica reinante entre cerca de 1800 e 1950 e sobre a qual P. BURKE, O que é História Cultural?, p. 16 dizia: Esse período também poderia ser chamado de ”clássico” no sentido de que foi um tempo em que os historiadores culturais concentravam-se na história dos clássicos, um “cânone” de obras-primas da arte, literatura, filosofia, ciência e assim por diante.

Page 26: O Ensino de História como Objeto de Pesquisa

daquilo que seria o grande tema de pesquisa seu e do companheiro Raymond Williams:

os estudos culturais.

Seu esforço mais original foi de nuançar justamente um conceito bastante caro ao

marxismo: para ele, a classe não surgiu tal como o sol numa hora determinada. Ela

estava presente ao seu próprio fazer-se50

. Em outros termos, para entendê-la, era

necessário estudar a experiência de modelação da identidade social não como algo

posterior, mas inerente à constituição da própria classe, urgindo, para tanto, a

recuperação das manifestações da cultura popular que revelassem as variadas formas de

resistência e luta dos setores populares, sem, contudo, invalidar as inter-relações

recíprocas entre os universos culturais subalterno e dominante51

. Nesse

empreendimento, reiterou uma History from below, vista de baixo, em que a valorização

de temas ora silenciados (ritos, crenças, hábitos) e de fontes pouco usuais nos estudos

de esquerda (jornais, processos criminais, festas etc.) foram trazidas a lume, dando

aporte a uma escrita marxista da História a partir da cultura popular.

As resistências a este modelo analítico vieram tanto da direita quanto da

esquerda: ora apontavam sua parcialidade em função da opção nítida de intervenção na

esfera político-social em favor dos trabalhadores; ora denunciava-se seu desalinho com

o pensamento comunista habitual, por conta da opção por uma categoria pouco

trabalhada nos escritos deixados por K. Marx. Essa possibilidade de pensar Clio

perspectivada pela cultura não enfrentou apenas desconfianças no seio da ortodoxia

marxiana dos anos sessenta até alcançar sua consolidação cerca de duas décadas depois,

pari passu também arrostou tensões para se legitimar dentro de um movimento que, em

50

E. P. THOMPSON, A formação da classe operária inglesa, p. 9. A pesar do destaque a Thompson, não se pode menosprezar a contribuição na introdução desta perspectiva cultural entre os historiadores marxista de Georges Rudé e Raymond Williams, além do próprio Eric Hobsbawm que, mesmo sendo amplamente reconhecido como praticante de uma História social, não se futura em fazer uma análise cultural do jazz e discutir a invenção das tradições. Sobre essa renovação historiográfica marxista ver, dentre outros, J. FONTANA, História: análise do passado e projeto social; P. SCHOFIELD, História e marxismo; E. HOBSBAWM, Sobre História.

51 Cf. R. VAINFAS, História das mentalidades e história cultural, p. 157. Cabe o registro de que nesta

tese, em particular, é possível perceber uma proximidade com a idéia de circularidade cultural defendida por C. GUINZBURG no prefácio da edição italiana de seu O queijo e os vermes. E. P. Thompsom, Costumes em comum, p. 17, diz: Mas uma cultura é também um conjunto de diferentes recursos em que há sempre uma troca entre o escrito e o oral, o dominante e o subordinado, a aldeia e a metrópole; é uma arena de elementos conflitivos, que somente sob uma pressão imperiosa [...] assume a forma de um sistema. E na verdade o próprio termo cultura, com sua invocação confortável de um consenso, pode distrair nossa atenção das contradições sociais e culturais, das fraturas e oposições existentes dentro do conjunto.

Page 27: O Ensino de História como Objeto de Pesquisa

tese, lhe seria mais propício por conta de sua genealogia dialógica, a Escola dos

Annales52

.

Marc Bloch e Lucien Febvre, nos anos 1930, inovaram ao pôr em prática um

vigoroso combate contra a persistência de uma historiografia évélementielle e

positivista, substituindo-a por uma história-problema. Escolheram como armas os mais

variados elementos da produção humana como fontes históricas e como estratégia

principal uma prática interdisciplinar que dialogava com as ciências humanas, em

especial com a sociologia, a geografia, a economia, a antropologia e a lingüística, além

da psicologia. Nesta revolução, o interesse pela cultura apareceu inicialmente na forma

de mentalidades ou outillage mental. Particularmente Febvre, utilizou-se ao limite

dessas aproximações para gestar os estudos sobre as atitudes coletivas, iniciado com seu

famoso livro sobre Rabelais no qual discutia se a idéia de ateísmo era operacionalizável

na França do século XVI. Apesar do frescor dessa abordagem, o conceito de

mentalidades nunca foi apresentado de maneira precisa:

A mentalidade era uma maneira de ser, um conjunto de valores partilhados,

não-racionais, não-conscientes e, de uma certa forma, extra classe. Falava-

se de permanências mentais e de sentimentos que atravessavam épocas e

culturas, partilhados por diferentes extratos sociais, mas sem que houvesse

um trabalho de aprofundamento teórico do conceito53

.

Essas fragilidades ficaram num plano secundário no pós-guerra quando Fernand

Braudel assumiu a direção da Revista dos Annales, a presidência da VI seção da École

Pratique des Hautes Études e, posteriormente, da Maison des Sciences de L`Homme,

construindo em torno de si um poder incomum mesmo para os padrões da academia

52

Essa importante escola, não à toa apelidado por Burke de revolução francesa da historiografia por romper com uma História rankeniana, substituindo uma escrita oficial e laudatária por problemas a serem resolvidos a partir do uso, ao mesmo tempo, crítico e criativo de fontes que pudessem revelar o homem no tempo. Teve três gerações distintas: a inaugural, entre 1920 e 1945, capitaneada por Marc Bloch e Lucien Febvre; uma segunda no período 1945 – 1968 e definida pela onipresença de Fernand Braudel; e, após a aposentadoria deste, a ascensão da terceira linhagem, a partir de 1968, em que seus sucessores desmobilizaram a sua rígida influência e fragmentaram-na. Sobre o movimento consultar principalmente P. BURKE, A Escola dos Annales; J. C. REIS, Escola dos Annales; M.P. CAIRE-JABINET, Introdução à Historiografia; J. FONTANA, op. cit.; M. Roberts, A escola dos Annales e a escrita da História.

53 Cf. S. PESAVENTO, História & História Cultural, p. 31. C.F. CARDOSO também elaborou outra crítica

sobre as mentalidades, especialmente no capítulo sétimo de seu Um Historiador fala de teoria e metodologia. Sobre o livro Le problème de l`incroyance au XVIe siècle: La réligion de Rabelais, foram utilizados os comentários de P. BURKE, A Escola dos Annales, pp. 39 – 42.

Page 28: O Ensino de História como Objeto de Pesquisa

francesa54

. Saíram de pauta não por conta de uma sofisticação teórica que lhe resolvesse

seus problemas, mas porque os interesses de estudo braudeliano privilegiaram a vida

material, a demografia e a economia por intermédio de uma história quantitativa, ainda

que regional e serial, com pretensões de elaboração de sínteses globalizantes.

A partir de 1968, os Annales optaram por uma distensão do centralismo

administrativo e teórico-metodológico que havia sido posto em prática por F. Braudel, o

que deu espaço para emergência, destoando das linhas de pesquisa apoiadas, de

trabalhos enfocados nas mentalidades, principalmente de medievalistas como George

Duby e Jaques Le Goff e historiadores da época moderna como Robert Mandrou,

Phillipe Ariés e Jean Delemeau. Seus temas (bruxaria, a morte, a infância, o medo e a

culpa) tiveram grande apelo junto a um público mais geral, algo que, de certa forma,

autorizou a edição de outras obras dessa natureza. Contudo, nem todos que trilhavam

essas sendas gozavam da mesma respeitabilidade nos meios intelectuais ou conseguiram

demonstrar de maneira satisfatória suas abordagens sem cair naquilo que Ciro

Flamarion Cardoso qualificou como uma anedótica iluminação de fantasmas.

As críticas que demonstravam a falta de rigor teórico, o excessivo empirismo e a

opção pelos micro-recortes foram muito consistentes, minando a credibilidade nos

círculos acadêmicos, em que pese o sucesso editorial entre os não especialistas. Por

volta do início dos anos oitenta, os historiadores pareceram capitular e abandonaram as

mentalidades em favor de outra abordagem analítica que ganhara força ao se reinventar,

a História Cultural, ancorada em quatro princípios fundamentais em busca de

legitimidade:

– O rompimento com a fugidia idéia de mentalidades, sem rompimento com a

abordagem da longa duração;

– O distanciamento tanto com a História das idéias quanto com a abordagem

clássica, fincada nas manifestações culturais oficiais e/ou elitizadas;

– A valorização das estratificações e dos conflitos sociais como objetos de

investigação; e

54

Cf. BURKE, ibdem,p. 57.: Sendo um homem de grande respeitabilidade e de personalidade dominante, Braudel manteve sua poderosa influência, mesmo depois de sua aposentadoria, em 1972. Tendo conservado em suas mãos, durante os anos de direção, o controle dos fundos para a pesquisa, publicações e nomeações, guardou para si um grande poder, que usou para promover o ideal de um mercado comum das ciências sociais, onde a História era um membro dominante. As bolsas de estudo concedidas a jovens historiadores [...] ajudaram a difundir o novo estilo francês de fazer História.

Page 29: O Ensino de História como Objeto de Pesquisa

– A pluralidade de caminhos de investigação histórica, o que permitiu uma

fecunda aproximação com uma antropologia de inspiração em Clifford Gertz, com

paradigmas alhures ao mundo francês (em especial, a micro-história italiana) e com

conceitos inovadores como o de representação proposto por Roger Chartier55.

Não obstante seus estudos tomarem, em linhas gerais, a cultura como um

intrincado conjunto de significados partilhados e construídos por homens de diferentes

origens e classes sociais para explicar o mundo56

, essa emergente Nova História

Cultural caracterizou-se pelo resgate das identidades, dos conflitos, dos significados

revelados sutilmente nas formas de interação que se dão entre os partícipes de uma

mesma sociedade, instituição ou grupo. Ela propôs-se a ser plural, no sentido da

ampliação dos objetos e sujeitos, e popular, ao valorizar as expressões, quase sempre,

anônimas, iletradas e/ou irreverentes dos setores sociais subalternos – e nisso

aproximou-se do projeto thompsiano de desvelamento das manifestações culturais

populares:

Em síntese, historiadores franceses dos Annales e historiadores ingleses

neomarxistas trabalhavam, do final dos anos 1960 aos anos 80, com uma

história social que avançava para os domínios do cultural, buscando ver

como as práticas e experiências, sobretudo dos homens comuns, traduziram-

se em valores, idéias e conceitos sobre o mundo. Mesmo que seus membros

marxistas permanecessem marxistas e que os integrantes da agora chamada

Nova História, herdeira dos Annales, não se definissem teoricamente, era

possível distinguir algumas preocupações comuns, que perpassavam o

trabalho dos historiadores.57

55

Cf. R. VAINFAS, op. cit., pp. 148 - 149. Ainda à p. 148 ele vaticina: Micro-história à parte, o grande refúgio das mentalidades foi, contudo, o da chamada história cultural, refúgio este sim mais consistente, posto que, em suas primeiras versões, procurou defender a legitimidade do estudo do ‘mental’ sem abrir mão da própria história como disciplina ou ciência específica – o que não é de somenos importância – e, buscando corrigir as imperfeições teóricas que marcaram a corrente das mentalidades nos anos 70. Os ‘historiadores da cultura’ [...] não recusam, pelo contrário, a aproximação com a antropologia, nem a longa duração. [...] É lícito afirmar, portanto, que a história cultural é, neste sentido, um outro nome para aquilo que, nos anos 70, era chamado de história das mentalidades.

56 O conceito de cultura é, certamente, um dos mais complexos das ciências sociais. Aqui a definição

(propositalmente simplificada, aliás) apoiou-se nos escritos de D. CUCHE, A noção de cultura nas ciências sociais, pp. 33 – 63; K. SILVA & M. SILVA, Dicionário de conceitos históricos, pp. 85 – 88; A. BURGUIÈRE, Dicionário das ciências históricas, pp. 205 – 210; T. BOTOMORE, Dicionário do pensamento marxista, pp. 93 – 96; A. ALMEIDA et alii, Dicionário breve de História, pp. 62 – 63.

57 Segundo S. PESAVENTO, op. cit., p. 32.

Page 30: O Ensino de História como Objeto de Pesquisa

Esses aportes teóricos estão permitindo a compreensão da escola enquanto

espaço no qual seus sujeitos e suas práticas são valorizados como microcosmos de

interações sócio-culturais. Dessa forma, a História pode tomar as suas próprias

experiências escolares como objeto de estudo, permitindo assim se enxergar a partir de

categorias como culturas, saberes e disciplinas escolares.

Delimitar o que seja uma Cultura Escolar é uma essencial e árdua tarefa

assumida pelos renovadores dos estudos sobre História da educação. Um dos pioneiros

foi o francês Andre Chervel, principal crítico da teoria de transposição didática58

.

Advogava que a escola não apenas reproduzia um saber acadêmico, erudito e/ou

superior, mas tinha a capacidade de engendrar uma cultura singular e original, produtora

de saberes articulados a sua dinâmica própria. Dessa forma, embora o colégio traduzisse

os saberes e comportamentos esperados pelos governos, havia algo de imprevisível em

seus efeitos, justamente por conta da luta por autonomia dos seus sujeitos em relação ao

sistema escolar.

Esse caminho também foi escolhido por Dominique Julia. Estudioso dos

processos educativos na Europa moderna, inclusive o papel do Ratio studiorum na

educação jesuítica a partir do século XVI, é muito respeitado entre os pesquisadores

brasileiros do tema, principalmente após publicação, em 2001, de seu famoso artigo no

n. 1 da Revista Brasileira de História da Educação. Lá tratou de tecer contornos dessa

efêmera categoria em termos de normas capazes de estabelecer quais

conhecimentos/condutas o colégio deveria ensinar; práticas que permitissem a

transmissão de conhecimentos e incorporação de comportamentos desejados; culturas

infantis, que são modos de agir estabelecidos entre pares de uma instituição de ensino e

que independem do que é prescrito. Porém, ressalvou que os processos formais de

escolarização não monopolizam os modos pelos quais se dão a aquisição de

58

A transposição didática tem como principal expoente Yves Chevallard e, em síntese, diz que o sistema didático seria resultado de uma relação entre professor-aluno-saber. O savoir savant (saber erudito), para poder ser ensinado, é transformado em saber a ser ensinado. Assim, o saber escolar era uma simplificação daquele produzido na academia. Por essa lógica, a escola não produziria conhecimentos e, portanto ela e seus sujeitos tinham um papel inferior aos centros de pesquisa universitários. A esse respeito ver, principalmente: T. FONSECA, História & Ensino de História; C. BITTENCOURT, Ensino de História; E. PESSANHA et alii, Da história das disciplinas escolares à história da cultura escolar.

Page 31: O Ensino de História como Objeto de Pesquisa

conhecimentos e de habilidades, retirando das salas de aulas, bibliotecas ou pátios a

centralidade no processo de aquisição dessa cultura59

.

Outra referência importante é Antonio Viñao Frago, presidente da Sociedade

Espanhola de História da Educação e investigador, principalmente, dos processos de

alfabetização como práticas sociais e culturais, além da escolarização e da

profissionalização docente. Ele aprofunda os argumentos de Julia ao defender que os

estudos sobre cultura escolar permitem identificar as diferentes manifestações das

práticas acontecidas nas escolas entre alunos, professores, normas, teorias etc. Para

Frago, os espaços e os tempos escolares não eram dimensões neutras da educação, mas

constituíam corporeidades dos sujeitos escolares, impondo por sua materialidade uma

determinada aprendizagem sensorial e motora, bem como disseminavam símbolos

estéticos, culturais e ideológicos60

. Entretanto, inova ao ampliar a própria noção de

cultura escolar: ele a enxerga no plural, pois ela variava também de acordo com as

instituições de ensino e com os jogos de resistências e continuidades estabelecidos pelos

sujeitos e instituições envolvidas no processo.

Estas reflexões estão largamente difundidas na produção científica brasileira

sobre o tema e muitos dos nossos pesquisadores vêm refinando o conceito de modo a

torná-lo mais operacional em termos metodológicos, dentre os quais o professor da

UFMG e estudioso da escolarização mineira na primeira república, Luciano Mendes de

Faria Filho. Esta pesquisa, aliás, se vale de sua definição sobre cultura escolar:

[É a] forma como em uma situação histórica concreta e particular são

articuladas e representadas, pelos sujeitos escolares, as dimensões espaço-

temporais do fenômeno educativo escolar, os conhecimentos, as

sensibilidades e os valores a serem transmitidos e a materialidade e os

métodos escolares.61

Faria Filho sustenta que é fundamental pensar cultura escolar mediada por dois

tempos distintos e complementares: um mais longo no qual se dá a dimensão macro dos

processos de escolarização e outro mais curto em que se enxergam a dimensão micro

59

D. JULIA, op. cit. A RBHE é editada pela Sociedade Brasileira de História da Educação. O autor, à p. 11, reafirma o uso do termo culturas infantis, no sentido antropológico, destacando que elas se desenvolvem nos pátios de recreio e representam um afastamento em relação às culturas familiares.

60 Cf. L. M. FARIA FILHO, A cultura escolar como categoria de análise..., p. 148.

61 L. M. FARIA FILHO, Escolarização e cultura escolar no Brasil, p. 195.

Page 32: O Ensino de História como Objeto de Pesquisa

das práticas escolares. Este jogo de escala permite identificar e compreender os sentidos

e os significados experienciados e compartilhados pelos sujeitos escolares de modo tal

que se permita observar as formas como são apropriadas as tradições em que estes

estavam imersos nos diversos momentos da história do processo de escolarização, além

das tensões relativas às tentativas de imposição de projetos político-culturais. De forma

semelhante, um deslocamento entre o singular (cultura escolar, quando se referir à

categoria) e o plural (culturas escolares, quando aludir-se ao objeto ou campo de

estudos) aguça a sensibilidade do cientista na identificação do devir histórico das

relações estabelecidas em âmbito escolar, cuja complexidade impede uma dissociação

entre o prescrito e o vivido.

Utilizando-se dessa percepção dinâmica, pode-se melhor identificar as

características dos Saberes Escolares, conhecimentos oriundos das ciências de

referências, mas que ao se escolarizarem são re-significados, ganhando contornos

próprios a partir não só de interesses de Estado, mas também das relações de forças

estabelecidas entre professores e alunos, principalmente. Entre os educadores, esse

objeto é visto geralmente sob a ótica dos estudos sobre currículos e nesse particular, um

nome de relevo é o do britânico Ivor F. Goodson. Levando ao limite as assertivas de A.

Chervel, ele chega mesmo a propor que, durante a apropriação pelos sujeitos escolares,

existem conteúdos que se transformam ao ponto de desconectar-se das abordagens

acadêmicas, passando, inclusive, a demandar a criação de uma disciplina universitária

para servir à formação de professores secundários daquela matéria escolar62

.

Contudo, contemporaneamente, Ana Maria Monteiro ressalta um avanço na

abordagem desse tema: o foco na complexidade das mediações envolvidas nos

processos de ensino-aprendizagem desprendidas de enfoques psicologizantes e mais

centradas nas articulações entre as didáticas específicas, o contexto sociocultural e os

saberes referenciais. Isto, no que concerne aos aspectos de ordem epistemológica,

confere um estatuto de cientificidade ao campo e [amplia] o seu potencial

gnosiológico63

.

Atendo-se aos conhecimentos históricos, Sônia Miranda também reconhece os

saberes escolares como entidades específicas, distintos da matriz de referência na media

62

A. GASPARELLO, Encontro de saberes: as disciplinas escolares, o historiador da educação e o professor, p. 78.

63 A.M. MONTEIRO, Professores de História: entre saberes e práticas, p. 23.

Page 33: O Ensino de História como Objeto de Pesquisa

em que verifica lógicas insignes de objetivos, comunicação e mediação com seu público

alvo, o aluno. Entretanto, ela não considera que as especificidades assumidas sejam

suficientes para fazer desse saber histórico escolar algo independente, pois ele só existe

porque parte de uma historiografia difundida nos meios intelectuais.

[...] Tal saber mescla-se não só com distintas formas de reescrita da

História, como também com a memória, na medida em que a escola não só

congrega memórias sociais como pode funcionar como um importante

mecanismo de sua transmissão, incluindo, nesse caso, a reprodução e

reatualização permanente de memórias históricas oficiais, às quais têm

cabido o ocultamento e silenciamento de várias memórias sociais e a

subtração da consciência a respeito dos direitos fundamentais.64

Os espaços formais nos quais se dão os processos de re-significação desses

saberes são, evidentemente, as Disciplinas Escolares. Esta denominação surgiu na

Europa por volta dos anos 1910 e foi resultado das disputas entre conhecimentos que

deveriam fazer parte do currículo escolar para ajudar na formação das elites,

disciplinando suas mentes65

. Nesse sentido, suas finalidades se ligam a objetivos

educacionais amplos que são decompostos na forma de conteúdos de instrução e,

portanto, tendem sempre a mudar para se adequar ao que o Estado entender como lhe

sendo útil aos seus projetos.

As disciplinas escolares são saberes identificados por uma rubrica, com

organização própria, finalidades específicas e formas próprias para sua apresentação66

.

Esta definição lhe joga sobre os ombros, indubitavelmente, uma forte pecha de

oficialidade, porém se forem situadas como integrantes de uma cultura escolar, podem

ser entendidas igualmente como produções coletivas não só porque fruto da

acomodação dos interesses de grupos que disputam espaços de poder, mas, sobretudo,

porque refletem os convenientes processos de escolarização dos saberes.

No caso da História, afirma a professora Thaís Fonseca, espraiou-se o

entendimento pelo qual não eram vislumbradas correspondências entre o

desenvolvimento da disciplina referência e a escolar. Esta última, por um longo período

desde sua criação, assumiu um sentido providencialista, sendo ensinada com o intuito

64

S. MIRANDA, Sob o signo da Memória, p. 83.

65 C. BITTENCOURT, Ensino de História: fundamentos e métodos, pp. 40 – 41.

66 Cf. T. FONSECA, op.cit., p. 15.

Page 34: O Ensino de História como Objeto de Pesquisa

de legitimar a origem das nações, o que, aliás, lhe conferiu certo destaque dentre as

demais67

.

A recuperação da História das disciplinas escolares – e da História ensinada, em

particular –, ganha fôlego renovado quando se volta para o desvelamento das práticas

escolares como práticas culturais. Para tanto, é importante identificar as chamadas

fontes culturais, isto é, textos menos formais, testemunhas indiretas das disciplinas e

cultura escolar e que, segundo Júlio Aróstegui, são definidas como aquelas escritas,

faladas, simbólicas ou audiovisuais que transmitem uma mensagem em linguagem mais

ou menos formalizada68

.

Ainda que no Amazonas seja lamentável a situação das instituições responsáveis

pelo arquivamento das fontes para História da educação, as poucas sobreviventes,

mesmo sem garantir a construção de quadros sinópticos, ainda podem permitir a

ampliação das questões a serem formuladas69

. Da compulsão de dados nos arquivos das

escolas, por exemplo, podem emergir livros de ocorrência nos quais se anotam os

desvios de comportamentos e as irregularidades cometidas pelos alunos; diários de

classe em que professores fazem os registros dos conteúdos e práticas efetuados nas

aulas; programas preparatórios para ingresso nas escolas; regulamentos escolares que

definem condutas e comportamentos para funcionários e alunos; atas de reunião dos

grêmios; diários oficiais nos quais são publicadas as punições aos infratores das regras.

A utilização dessas informações ajuda na identificação das formas como a cultura

escolar interage com as disciplinas.

Os jornais estudantis são outras opções de fontes culturais úteis nesse processo.

Eles publicam uma ampla variedade de assuntos do cotidiano escolar: desempenhos

esportivos, brincadeiras e piadas exclusivas daquele círculo, críticas literárias e poesias

escritas por alunos e professores, a “vida social” dos alunos, relatos das práticas

67

Ibdem, pp. 19 – 24.

68 J. ARÓSTEGUI, A Pesquisa Histórica: Teoria e Método, p. 500.

69 Nesse sentido, não diferem em nada das demais instituições públicas estaduais que mostram, ano

após ano, governos após governos, despreparo e desinteresse em lidar com a guarda, organização e preservação do passado inscrito nos documentos: descartes aleatórios, alocação em lugares impróprios, desorganização arquivística e restrições infundadas ao trabalho dos pesquisadores. Resta-nos, porém, as alentadoras palavras de J. MAGALHÃES, Contributo para a história das instituições educativas – entre a memória e o arquivo, p. 71: A memória de uma instituição é, não raro, um somatório de memórias e de olhares individuais ou grupais. É neste vai-e-vem entre a memória e o arquivo que um historiador constrói uma hermenêutica e um sentido para seu trabalho. Um sentido para a história das instituições escolares.

Page 35: O Ensino de História como Objeto de Pesquisa

escolares em atividades extracurriculares como horas cívicas e festivais. Ao lado dos

relatos memorialísticos, eles podem também concorrer para estabelecer as relações entre

cultura e disciplinas escolares.

As teses defendidas para ocupar cátedras nos colégios, as apostilas, os livros

didáticos e aqueles cuja finalidade inicial não era didática, enfim, os impressos

pedagógicos utilizados pela História ensinada podem nos ajudar a reconstituir tanto a

autonomia entre os saberes escolares e acadêmicos quanto discernir como os conteúdos

foram utilizados para inculcar crenças, valores e comportamentos adequados ao Estado.

Os cadernos de alunos, os troféus e/ou medalhas de honra ao mérito, os

mobiliários e recursos didáticos, a própria arquitetura colegial original expressa em

plantas baixas, as fotografias do cotidiano escolar, apesar de serem sobreviventes ainda

mais raras, são importantes recursos para compor partes de um quadro sobre os

processos educativos locais.

Estas balizas teórico-metodológicas aqui descritas foram escolhidas para

construção de uma alternativa elucidativa ao problema proposto. O passo seguinte é

pensar no cenário político-educacional no qual a cultura escolar moldou-se nos anos

trinta do século vinte.