o ensino de história como objeto de pesquisa
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O Ensino de História como Objeto de Pesquisa
O mínimo que se pode exigir de um historiador é que ele seja capaz de
refletir sobre a história de sua disciplina, de interrogar os diferentes sentidos
do trabalho histórico, de compreender as razões que levam à
profissionalização de seu universo acadêmico. O mínimo que se pode exigir
de um educador é que seja capaz de sentir os desafios do tempo presente, de
pensar sua ação nas continuidades e mudanças do trabalho pedagógico, de
participar de uma maneira crítica da construção de uma escola mais atenta
às realidades sociais.
Antônio Nóvoa apud Ana Gasparello (2007, p.73)
Como todo trabalho historiográfico, esta tese teve sua presente reconfiguração
formulada a partir de uma inquietação contemporânea: o expurgo, em 2010, da
disciplina Fundamentos de História do Amazonas dos currículos das séries finais do
ensino fundamental da rede de ensino do município de Manaus1.
A medida refletiu o mesquinho uso político do processo educativo, o desrespeito
com os docentes, a inobservância das orientações do CME, o descaso com a formação
de alunos capazes de compreender tanto o tempo vivido dentro de processos cujas raízes
se espraiam no tempo, quanto a si mesmos como protagonistas das transformações
sociais e, portanto, da História. Além disso, demonstrou que, histórica e
pedagogicamente, a Secretaria Municipal de Educação desconhece a trajetória tomada
por um dos saberes científicos escolarizados que pertencem a sua grade.
Historicamente, porque sequer conhecia que cerca de oitenta anos antes, um
eminente professor e pesquisador, Arthur Cezar Ferreira Reis, em meio a debates sobre
a integração nacional, promovia em seus escritos e palestras a necessidade de trazer para
a sala de aula a história regional. Os efeitos deste ato seriam, dentre outros, de mostrar
1 A alteração curricular processou-se no ano de 2010. Foram retiradas do currículo municipal dos anos
finais do Ensino Fundamental as disciplinas Fundamentos de História do Amazonas, Fundamentos de Geografia do Amazonas, Ensino Religioso, além da alteração da oferta da disciplina Educação Física. No último bimestre do ano letivo anterior, a toque de caixa, algumas reuniões foram realizadas com grupos não representativos de docentes a fim de tentar legitimar tal decisão. Na prática, quando os professores retornaram às escolas, após férias de fim de ano, foram comunicados que não teriam mais a matéria para lecionar, o que gerou, inclusive, problemas administrativos de lotação de pessoal. Após algumas manifestações individuais e do ICHL/UFAM, o Conselho Municipal de Educação resolveu se pronunciar favoravelmente ao expurgo das disciplinas, desde que, no caso de FHA, a carga horária e os conteúdos programáticos fossem incorporados pela disciplina História. Até a presente data, a recomendação não foi cumprida. A este respeito ver T. NORMANDO, O humanista que negou a história aos cidadãos.
aos alunos que a disciplina deixava um caráter fastidioso quando passava a ser
relacionada com as ações humanas e com as questões da terra natal do alunado.
Pedagogicamente, porque ignora que a História ensinada superou os preconceitos sobre
si e vem sendo alvo de um denso processo de valorização e reflexão em todo país, cujos
efeitos já podem ser medidos tanto em termos quantitativos – como o volume de
publicações voltadas para especialistas e leigos – quanto qualitativos – na preparação
dos futuros professores, por exemplo.
Este trabalho pretende sugerir uma contribuição para repensar o papel do ensino
escolar de História no Amazonas, ponderando sobre as características assumidas nos
anos 1930, momento em que, em meio à forte efervescência intelectual, o Estado
ditatorial varguista lançou mão de variadas estratégias no campo educacional em busca
de forjar uma legitimidade político-institucional.
Cabe antes, então, historicizar como se conformou essa viragem da História
ensinada a partir da sua historiografia e de suas escolhas teórico-metodológicas.
1.1 – A História Ensinada, legitimada como objeto de pesquisa: em busca de suas
raízes historiográficas
A História Ensinada hoje ocupa lugar de destaque entre os interesses dos
historiadores brasileiros: é o que nos permite constatar o evidente crescimento de
publicações sobre o tema, além do significativo número de teses e dissertações
defendidas sobre questões concernentes ao ensino de História, conforme mostram os
sites de bibliotecas digitais de algumas das principais Instituições de Ensino Superior do
país2.
Esse processo de acomodação nos espaços de produção historiográfica tomou
seu curso em meados dos anos oitenta. Antes disso, o momento era de incessantes lutas
pela redemocratização do Brasil e os historiadores estiveram às voltas com
preocupações de outras naturezas: grosso modo, alguns buscaram compor sínteses
políticas e econômicas que pudessem explicar os processos de formação da nação
enquanto outros optaram por desnudar categorias e sujeitos silenciados, revelando suas
faces, aspirações e resistências em trabalhos de história social, principalmente3.
A pesquisa histórica realizada neste período entrincheirou-se em temas que,
acreditava-se, eram mais autênticos para contribuir nas lutas contra os modelos
excludentes de organização político-econômica e social impetrados pelos governos
autoritários. Neste contexto, não só o conjunto de professores dedicados às pesquisas
sobre ensino de História era reduzido como os resultados das investigações eram postos
em segundo plano na medida em que seus fóruns de divulgação e discussão acadêmica
2 Foram consultados sites das seguintes Universidades: Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da
PUC-SP; Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da Unicamp. Sistema Nou-Rau; Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP; Teses e dissertações defendidas na Universidade federal do Rio Grande do Sul; Teses e dissertações do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense. Além dos sites: Domínio Público; Grupo de Estudo e Pesquisa em História da Educação - GEPHE; Grupo de Pesquisa em Ensino de História; HISTEDBR: Grupo de Estudos e Pesquisas “História, Sociedade e Educação no Brasil” da Faculdade de Educação/Unicamp; Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira; Projeto Pensar a Educação, Pensar o Brasil: 1822-2022; Sociedade Brasileira de Historia da Educação.
3 Deseja-se aqui apenas evidenciar o distanciamento das questões de história ensinada com outros
vieses da pesquisa histórica no período. Para uma melhor análise da recente historiografia brasileira, ver o clássico C.F. CARDOSO & R. VAINFAS, Domínios da História; além de M.C. FREITAS, Historiografia brasileira em perspectiva; e para um olhar sucinto: José J. ARRUDA & José M. TENGARRINHA, Historiografia luso-brasileira contemporânea.
não alcançavam grande expressão no métier dos historiadores brasileiros4. O resultado
dessa desqualificação foi uma historiografia do ensino de história praticamente
desconhecida, inclusive, no interior dos próprios cursos de licenciatura. De modo
perverso, as pesquisas sobre os métodos, os embates teóricos, os sujeitos, os desafios da
disciplina escolar não interessaram justamente à História.
Nestes termos, não é despropositado pensar que os professores graduados neste
ínterim tiveram pouquíssimas referências para compreensão processual do ensino de
História, impossibilitando-os de identificar as raízes de suas práticas profissionais
dentro de conjunturas e dinâmicas próprias – uma questão deveras importante que vem
acompanhando alguns intelectuais desde a primeira República: em 1917, por exemplo,
Jonathas Serrano debruçou-se sobre o quê e como deve ser ensinado pelos professores
de História quando publicou sua Methodologia da História na Aula Primária, pois,
em seus termos:
O desconhecimento de bons methodos não acarreta apenas sensível perda de
tempo, prejuízo aliás já não despiciendo; traz ainda a fadiga, produz o tédio,
e quase sempre gera aversão crescente à matéria mal ensinada. [...] Dahi,
por exemplo, em história, a condemnação do velho erro que fazia da bella
sciencia uma insupportavel nomenclatura recheada de uma exahustiva
cronologia. Martyrio da memória, o que devêra ser encanto da imaginação5.
Este trabalho inaugural sobre ensino de História no Brasil ligava-se, de certo
modo, a um crescente aumento da literatura pedagógica durante os anos de 1910, 1920 e
começo de 1930. A centralidade das discussões dizia respeito à escola primária, espaço
preferencial da interferência governamental e agregadora de um corpo docente mais
numeroso6. As páginas dos livros e revistas especializadas em educação tardariam a se
manifestar em relação ao secundário. Somente em 1935 foram publicadas duas obras
voltadas para esse nível de ensino, no bojo das discussões em torno da reforma
4 I. MESQUITA, Memórias/identidades em relação ao ensino e formação de professores de história:
diálogos com fóruns acadêmicos nacionais, p. 64, demonstra que a Associação Nacional de Professores de História incorporava essa concepção: quanto à formação de professores faz sentido compreender a ausência de qualquer menção nos Estatutos da Associação, pois como professor da escola básica não era ainda considerado um produtor de conhecimentos ou pesquisador, não conferia a essa categoria fazer parte do corpo de associados e apresentar trabalhos nos Simpósios da Anpuh.
5 J. SERRANO, Methodologia da História na Aula Primária, Pp. 10 e 11 – 12.
6 Cf. I. FREITAS, Os impressos pedagógicos e o ensino de História no Brasil (1880/1940), p. 6 – 7.
Francisco Campos7: o livro Como se Ensina História e a tese A História no Curso
Secundário.
Respectivamente, eram um manual de Jonathas Serrano, professor de duas
instituições que ocuparam a vanguarda do pensamento educacional brasileiro (o
Collegio Pedro II e a Escola Normal do Rio de Janeiro) e a análise acadêmica de Murilo
Mendes, experiente professor da Escola Normal de Campinas e, depois, da
Universidade de São Paulo. Em que pesem as razões diferenciadas para escrita8, pode-se
perceber algumas similitudes entre os dois trabalhos: ambos trataram do estatuto
científico da História e de aspectos metodológicos do seu ensino, responderam a
demanda de material específico para preparação de aulas do secundário, eram alinhadas
ao movimento escolanovista e, ainda que indiretamente, situaram a História escolar no
debate educacional da época, visto que:
[...] A partir de 1930 teve início um processo de consolidação do código
disciplinar da História, no contexto da sociedade brasileira pós-Revolução
de 30, o qual concretiza a institucionalização de alguns projetos de reformas
educacionais [...]. Neste contexto, o ensino de História pode ser visto como
um fator de coesão nacional e a História tida como disciplina que, por
excelência, formava os estudantes para o exercício da cidadania e seus
programas incorporavam essa concepção 9.
Serrano e Mendes tiveram seus apontamentos divulgados em grande parte do
país10
tornando-se autoridades a serem observadas por aqueles que já atuavam ou
7 Durante os primeiros meses de seu governo, Getúlio Vargas ordenou ao então ministro Francisco
Campos que planejasse uma reforma da educação nacional. O decreto número 19.890 de 18 de abril de 1931 (que ficou conhecido também como lei ou reforma Francisco Campos) introduzia mudanças profundas como, por exemplo, tornar obrigatório o ensino de história do Brasil na escola secundária. Com isto, a disciplina escolar passaria a servir como fomentadora de um determinado modelo de civismo. Sobre os reflexos da reforma de 1931: D. SAVIANI, As concepções pedagógicas na história da educação brasileira; D. VIDAL & L. FARIA FILHO, Reescrevendo a história do ensino primário: o centenário da lei de 1827 e as reformas Francisco Campos e Fernando de Azevedo.
8 J. Serrano atendeu demanda de Afrânio Peixoto, reitor da Universidade do Distrito Federal, para que
cada docente da Escola Normal escrevesse sobre metodologias de ensino específicas das matérias lecionadas, formando, assim, uma coleção destinada aos que se preparavam para o ingresso no magistério. Murilo Mendes, por sua vez, elaborou sua tese com vistas ao concurso para cátedra de Metodologia do Ensino Secundário da USP.
9 M. A. SCHIMIDT, Contribuições ao estudo da construção da didática da História como disciplina
escolar no Brasil: 1935 – 1952, p. 4104.
10 Especialmente Jonathas Serrano, talvez pela sua condição de sócio destacado do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro (IHGB). No Amazonas, a biblioteca Arthur Cezar Ferreira Reis, que guarda o acervo
almejavam o magistério não só pelo rigor intrínseco às suas reflexões como também
pelo circuito reduzido de intelectuais interessados nesses temas, o que pesava na
consolidação dessa didática específica11
.
Outra contribuição densa ao ponto de rivalizar com os paradigmas perpetrados
nos anos trinta veio a lume somente em 1952 com o olhar mais crítico sobre método e
instrumentos de ensino proposto pela docente da USP Amélia Americano Franco
Domingues de Castro, em sua tese de doutoramento intitulada Princípios do Método
no Ensino da História. Entre outras questões abordadas, a autora apresentou, com
inaudita erudição e embasada nos resultados de suas pesquisas, a problemática da
dicotomia entre a formação do especialista e a formação pedagógica, destacando que a
organização lógica do conhecimento histórico é a meta e não o ponto de partida do
ensino – este deve ser sempre o ponto de vista do aluno. Nesse sentido, algumas de suas
conclusões mais significativas foram:
1) A informação apresentada não deve constituir um fim em si mesma, mas o
ponto de partida para que se desenvolvam reflexões sobre o assunto, levando
à plena compreensão do mesmo.
2) A matéria deve ser organizada de acordo com a psicologia do educando,
isto é, tomando-se como ponto de partida suas possibilidades mentais de
compreendê-la e apreciá-la, assim como seus problemas e necessidades.
Deve-se, pois, partir do ponto de vista psicológico para atingir o lógico.
[...]
4) A História não pode ser reduzida a uma disciplina que apela somente
para a memória, desde que nela são solicitados os processos mais elevados
do pensamento, tais como a análise, a síntese e o raciocínio indutivo.
[...]
6) Não deve o professor esquecer-se, não obstante o relevo de sua função na
apresentação oral dos fatos que o aluno é o ser ativo no processo da
aprendizagem, devendo ele estimulá-la e dirigi-la através dos processos
adequados.
[...]12
.
Este trabalho representou um avanço enorme em termos de reflexão sobre os
métodos de ensino então usuais, mesmo considerando sua destinação original e os
do principal historiador amazonense da primeira metade do século XX e nosso principal interessado nas questões de História ensinada, possui algumas obras desse autor, uma delas Como ensinar História.
11 Para visualizar melhor esse círculo sugere-se a leitura dos dois volumes de Histórias do Ensino de
História no Brasil, de I. FREITAS.
12 A. CASTRO, Princípios do Método no Ensino de História, pp. 133 – 134.
limites de sua circularidade, uma vez que só muito recentemente o exercício do
magistério passou a ser exclusividade dos egressos de cursos de nível superior13
.
É bastante crível que, dado o frescor das idéias e a abordagem sugerida, as
inovações metodológicas propostas pela professora Amélia Castro tenham colaborado
na formação de um novo tipo de professor mais cioso em estabelecer uma relação
ensino-aprendizagem marcada por um conhecimento sólido demonstrado através de
técnicas que requeriam posturas mais interativas com o alunado. Esse estereótipo ficou
retido na memória de várias gerações, chegando mesmo a influenciar as escolhas de
muitos profissionais14.
Ainda em 1953, o historiador amazonense Arthur Cezar Ferreira Reis, àquela
altura radicado no Rio de Janeiro, em co-autoria com Emerildo Luis Viana, Hélio Viana
e Virgílio Corrêa Filho, publica O Ensino da História no Brasil. O livro faz parte de
uma coleção idealizada pela Comision de Historia del Instituto Panamericano de
Geografia e História, composta por dez volumes que pretendiam mapear o ensino da
disciplina no continente americano15
. Seus breves capítulos esforçaram-se em
apresentar para um público internacional como a História se apresentava na estrutura
educativa brasileira, do ensino primário ao superior, passando pelo curso normal,
analisando-a como matéria complementar em Institutos de Filosofia e Ciências
Humanas, sua inserção na Escola de Estado Maior do Exército e seu ensino
especializado. Longe de propor quaisquer inovações pedagógicas, o mérito do trabalho
reside no próprio exercício de historicização da História escolar brasileira.
O modelo de docente emergido nos anos cinqüenta poderia ter se consolidado
definitivamente caso tivesse resistido às mudanças políticas que o país viveu a partir de
13
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação No. 9394, de 1996 reiterou a exigência de formação em
pedagogia ou outras licenciaturas para atuar no magistério, estabelecendo um prazo de dez anos a contar de sua promulgação para que todos professores tivessem nível superior, além de impedir os exames de suficiência (artifícios previstos na LDB N
o. 4024 de 1961 e que, na prática, permitiam aos
bacharéis atuarem como docentes).
14 Considere-se, aqui, a reflexão de E. GUSMÃO, Memórias de quem ensina história, p. 33: Se os
professores mais velhos no final dos anos 50 caracterizavam-se pelos caderninhos amarelecidos, os jovens, com formação universitária, destacavam-se pelo uso de mapas, fichamentos, visão abrangente da disciplina, rigor na cobrança e pela capacidade de descrever um mundo inusitado.
15 A saber: Vol. I La enseñanza de la historia en México; Vol. II The teachting of history in the United
States; Vol. III L’enseignement de l’histoire em Haiti; Vol. IV La enseñanza de la historia en Cuba; Vol. V La enseñanza de la historia en Colombia; Vol. VI La enseñanza de la historia en Venezuela; Vol. VII La enseñanza de la historia en Argentina; Vol. VIII La enseñanza de la historia en Honduras; Vol. IX La enseñanza de la historia en Puerto Rico; Vol. X O ensino de história no Brasil.
1964, mas tanto quanto outras didáticas específicas, o ensino e os ensinantes de História
não ficaram imunes ao fechamento político do país com o golpe militar.
Se, praticamente desde sua instituição, o governo ditatorial promoveu
perseguições aos historiadores não alinhados, censuras aos conteúdos ministrados,
cerceamento de práticas e espaços escolares democráticos, foi em seu período mais
agudo que o regime intensificou o controle sobre a educação, atuando na formação dos
quadros docentes através do decreto-lei nº. 547, de 18 de abril de 1969. Este
instrumento legal autorizava o funcionamento de cursos profissionais de nível superior
com curta duração para atender as carências de professores em determinadas regiões do
país e isto permitiu a criação de uma licenciatura curta em Estudos Sociais, sintetizando
numa mesma matéria saberes de inúmeras áreas das Ciências Humanas, em especial de
História e Geografia16
.
Um golpe duro, sem dúvida, que refletiu não só a desqualificação da formação
docente quanto o descompromisso dos governos militares com uma educação capaz de
dirimir diferenças sociais. Todavia, os atos mais violentos dessa estratégia ainda não
tinham sido praticados: a lei 5.692, de 1971, trouxe os Estudos Sociais para o primeiro
grau, remanejou professores para essa nova disciplina escolar, substituindo História e
Geografia que a partir de então só existiriam como matérias autônomas no secundário.
Finalmente, a portaria 790, de 1976, determinou que só estariam autorizados a dar aulas
de Estudos Sociais os formados nessa licenciatura curta17
.
16
Trata do assunto de forma objetiva e esclarecedora U. ROCHA no primeiro capítulo de seu História, currículo e cotidiano escolar. Mas, o melhor texto a sintetizar essas questões ainda é o de S. FONSECA, Caminhos da história ensinada. Na página 27, a historiadora explicitou: De acordo com a resolução n
o. 8,
de 1972, do Conselho Federal de Educação, o currículo mínino destes cursos é constituído das seguintes áreas: História, Geografia, Ciências Sociais, Filosofia, Ciência Política, OSPB e as obrigatórias EPB e Educação Física, além da área pedagógica. A duração das licenciaturas curta e longa deve ser de respectivamente 1.200 horas, o que equivale a um ano e meio letivo, e 2.200 horas, o que equivale a 3 anos letivos.
17 Para dar prosseguimento a esse projeto de intervenção na educação brasileira, também foram criadas
as matérias de Organização Social e Política Brasileira (OSPB), Educação Moral e Cívica (EMC), no ensino de primeiro e segundo graus, e Estudos dos Problemas Brasileiros (EPB), no terceiro grau. Suas marcas foram a propagação do ideário de segurança nacional e legitimação do regime. Seus procedimentos didáticos ficaram gravados na memória daqueles que frequentaram essas aulas de forma impactante. O músico Lobão escreveu em sua biografia: Por outro lado, a aula mais desprezível não podia deixar de ser a de Moral e Cívica, matéria imposta e inventada pelo regime militar, com o intuito de ensinar o aluno a amar sua pátria de maneira correta, lecionada por duas octogenárias com quilos de maquiagem na cara, perucas, aquele cheiro de perfume doce com pó de arroz. Uma delas se chamava professora Yolanda, a outra Elza. Essas mestras iriam nos seguir os passos durante todos os anos do ginasial!! E com as mesmas matérias, com as mesmas canções! Mais adiante, reproduziu notícia publicada no periódico Folha da Tarde em 29/08/1986: Com quase 17 anos, Lobão resolveu abandonar o segundo grau.
O resultado dessas medidas foi uma redução significativa dos espaços de atuação
de historiadores e geógrafos, exilados para o segundo grau, nível de ensino que não
contava com investimentos sólidos das esferas competentes de governo e cujas
matrículas revelavam o funil educacional existente no país. Para exemplificar: a taxa de
evasão entre 1979 e 1985 foi de 24% e a de repetência foi de 14%. Dois anos após o fim
do regime militar apenas 37% da população brasileira entre 16 e 18 anos se encontrava
matriculada no segundo grau18
.
As reações a essas medidas foram de várias ordens: desde a oferta, por parte de
algumas faculdades, de uma complementação após o término da licenciatura curta, de
maneira a estimular os alunos a prosseguirem o curso e se “especializarem” em uma das
disciplinas suprimidas até a organização de encontros para discussão do tema e
mobilização da sociedade19
. Uma alternativa de resistência menos aparente, mas
igualmente significativa foi a opção dos profissionais da área de não produzir reflexões
sobre um curso imposto e uma formação desacreditada: exceto os tradicionais
suplementos para professores, encartados nos livros dos mestres, não há nenhuma
publicação de relevância a discutir questões de métodos de ensino para Estudos Sociais
nesse período20
.
Neste cenário, o já lacônico volume de publicações sobre ensino de história
tornou-se mais conciso enquanto os militares mantiveram-se no poder (1964-1985) e,
assim, ganharam musculatura os combates contra a ditadura travada por meio de outros
objetos e abordagens historiográficas. Mesmo com a distensão política e o gradual
desmascaramento do colapso educacional deixado como legado, na primeira metade dos
anos oitenta, destacam-se apenas a pesquisa da pedagoga Maria Laura Franco, O Livro
Didático de História no Brasil, publicado em 1982 e o espaço conseguido junto ao
Segundo ele, a gota d’água foi durante uma aula de Organização Social e Política. “O professor teve o desplante de dizer que em nosso país não existe racismo. Pedi, então, a ele para apontar um só negro que estivesse no colégio como aluno e não como faxineiro. (LOBÃO & C. TOGNOLLI, 50 anos a mil, pp. 90 e 296).
18 Ibdem, p. 18.
19 Processos nos quais a ANPUH (Associação Nacional de Professores Universitários de História), AGB
(Associação de Geógrafos do Brasil), SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência), ANDE (Associação Nacional de Educação) e ANPED (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação) tiveram destacada participação. Idem, pp. 25 – 35.
20 Entretanto, essa opinião não é partilhada por todos os pesquisadores da área. I. FREITAS,
Fundamentos teórico-metodológicos para o ensino de História, reconhece a validade de alguns livros sobre essa matéria a exemplo de: Didática dos estudos sociais: como aprender, como ensinar, de Maria Helena Oliveira et alii; ou O ensino de estudos sociais no primeiro grau, de Dulce Maria Leme et alii.
importante “Cadernos CEDES”: em 1983, no seu número 8 apareceu o curto artigo de
Déa Ribeiro Fenelon, A Formação do Profissional de História e a Realidade de
Ensino e um ano depois, a área ganhou uma edição exclusiva, a de no.10, para debater A
Prática de Ensino de História21
.
Maria Laura Franco, apoiada num referencial marxista ortodoxo, estudou a escrita
da história em livros didáticos a respeito de dois movimentos sociais: a sabinada e a
cabanagem. Analisou que papel os autores atribuíam ao povo nessas revoltas e concluiu
que os manuais desenvolveram uma apologia à manutenção do status quo em textos
cujas abordagens adormeciam a consciência e faziam o aluno pensar que a história é
uma sucessão de fatos, onde prevalece a vontade deste ou daquele indivíduo, a cujo
arbítrio as massas se submetem pacificamente22
.
O livro sintetizou, de alguma forma, um pensamento crítico sobre os impressos
pedagógicos que, apesar de presente na fala de muitos professores, estava pouco
estabelecido numa bibliografia produzida desde os anos setenta em função das formas
de repressão e censura imposto pelo regime de exceção militar23
.
21
O Caderno Cedes é uma publicação do Centro de Estudos Educação e Sociedade vinculada à Universidade de Campinas. Conforme inscrito em seu site (www.cedes.unicamp.br): O Centro de Estudos Educação e Sociedade surgiu em março de 1979, em Campinas (SP), como resultado da atuação de alguns educadores preocupados com a reflexão e a ação ligadas às relações da educação com a sociedade. [...] A idéia primeira de criação do Centro, assim como o primeiro número da Revista, surgiram durante o I Seminário de Educação Brasileira, realizado em 1978, na Unicamp. A partir do II Seminário de Educação Brasileira, o Cedes passou a organizar, conjuntamente com a ANPED e ANDE, as Conferências Brasileiras de Educação (CBEs). Além destes eventos, o Centro participou de inúmeros movimentos sociais de reorganização do sistema educacional, congressos, encontros, seminários, assim como esteve presente no Fórum Nacional de Educação na Constituinte e do Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública.
22 M. L. FRANCO, O livro de história no Brasil, p. 101
23 Tangencia essa questão D. GATTI JÚNIOR, A escrita escolar da História: livro didático e ensino no
Brasil (1970-1990). Às pp. 67 – 68, o autor publiciza o depoimento da eminente professora Joana Neves, também escritora de livros didáticos desde 1975, que deixa entrever o desconforto com um tipo de manual massificador de uma interpretação histórica rasa e comprometida com a legitimação do regime e as estratégias possíveis para adentrar no mercado editorial, desviando do crivo da censura: Quando a Saraiva nos convidou para fazer esse livro, fez contato primeiro com a Elza [Nadai]. [...] Nesse contato, ela deixou claro que não faria esse tipo de coisa, que a gente tinha uma crítica radical a isso, inclusive das conseqüências negativas que levava ao ensino e que nós não faríamos, pois isso contrariava o sentido do estudo da História, que deve ser aberto para a divergência, para polêmica, para construção, para criatividade e se eu já tenho uma resposta certa, já nem adianta mais mandar ler qualquer coisa. [...] O nosso contrato com a editora era de que nós faríamos um tipo de livro que não tinha a ver com a massificação. [...] Nós faríamos um tipo de livro que não seria de grande vendagem. [...] Desde o começo foi estipulado que nós faríamos um tipo de livro para uma forma mais crítica do ensino de História e, sabia-se, naquele momento, que não estaria ao alcance de todo mundo.
Por volta do lançamento daquela edição, Franco cursava pós-doutorado na
Unicamp, instituição que parece ter assumido posição de vanguarda na divulgação do
pensamento universitário sobre educação através de iniciativas como os “Cadernos
CEDES”.
Gestada na Faculdade de Educação, a revista, poucos anos após seu lançamento,
ganhara respeitabilidade graças às abordagens interdisciplinares de temáticas diferentes
a cada número com contribuições de autores renomados e jovens pesquisadores que
forneciam um panorama atualizado sobre diferentes problemáticas e, ao mesmo tempo,
marcavam a posição política de defesa da escola pública e de um ensino crítico. Assim,
a publicação de Déa Fenelon no número dedicado às licenciaturas reiterava a
legitimidade e ampliava a visibilidade a cerca das preocupações sobre o ensino de
História.
A Formação do Profissional de História e a Realidade de Ensino foi
elaborada originalmente como conferência para o XI Simpósio Nacional da ANPUH,
realizado em 1981 em João Pessoa. Nele estão contidas críticas contundentes à
formação de 3o.
grau baseada numa licenciatura excessivamente livresca e às condições
de trabalho pontuadas por infraestrutura colegial inadequada, salas lotadas e salários
aviltantes e à insistência dos professores em construir aulas alicerçadas num aluno ideal,
mas inexistente:
Quando já professor, formado nesta colcha de retalhos, volta ao ensino de 1o
e 2o graus e não consegue se identificar quanto aos caminhos a serem
percorridos, muitas vezes repete o erro de sua formação: começa a pensar
nos alunos ideais, na escola ideal, etc. Professores universitários e de 1o
e 2o
graus unem, então para reclamar do nível dos alunos, cada vez mais baixo,
sem perceber que são suas propostas que estão extremamente fora da
realidade, não apresentam nenhum interesse específico a não ser o grau de
dificuldade. E é preciso lembrar que qualquer que seja o nível dos alunos é
com eles que temos que lidar24
.
Fenelon promoveu uma defesa pioneira da aproximação do ensino e da pesquisa
nas escolas. Ela entendeu que o contato direto com fontes é estimulante e leva os alunos
a problematização do concreto, fazendo do ensino de História algo vívido.
24
D. FENELON, A formação do profissional de história e a realidade do ensino. , p. 29.
Raramente nossos alunos são colocados diante do problema de tentar
conduzir qualquer investigação, raramente aprendem a fazer ciência, a fazer
História e fazer História significa lidar com a sociedade, objeto dinâmico em
constante transformação, aprender a reconhecer seus próprios
condicionamentos sociais e sua posição como agentes e sujeitos da História.
[...] O verdadeiro ensino sempre pressupõe pesquisa e descoberta. Queremos
um profissional de História que seja capaz de ensinar uma História na qual
as pessoas possam se reconhecer e se identificar porque para nós a História
é uma experiência que deve ser concretizada no cotidiano, porque é a partir
dela que construiremos o hoje e o futuro25
.
Talvez pela origem do texto ser proveniente de uma fala, nota-se, a exemplo das
citações acima, que Déa Ribeiro Fenelon fez uso, em alguns trechos, do recurso
estilístico de repetir certos termos como se quisesse reafirmar a urgência de se dar
atenção à causa de um ensino mais próximo da realidade do educando, mas
principalmente àquilo que ela indica no seu prognóstico: a necessidade de uma História
escolar que contribua para reflexão e, conseqüentemente, para transformação social
através do estímulo desde muito cedo à investigação científica26
.
Considerando a necessidade de transcender a verbalização destas preocupações
em direção às ações concretas, a Profa. Fenelon, então exercendo a Presidência da
ANPUH, associada à Faculdade de Educação e ao Departamento de História, ambos da
Unicamp, realizaram, em fins de 1983, um encontro de professores de primeiro e
segundo graus, das disciplinas de História e Estudos Sociais. No ano seguinte viria a
público os resultados dos debates na forma de Cadernos CEDES no. 10.
O dossiê foi coordenado por Ernesta Zamboni e contou com dez artigos: três
escritos por professores de Instituições de Ensino Superior e sete por educadoras de
Campinas27
. Seus objetivos eram promover uma troca de experiências entre os docentes
e propiciar uma interação entre as escolas e as universidades. Entretanto, percebe-se
certo descompasso na estrutura da edição que não é apenas numérico: as abordagens dos
25
Ibdem, p. 31.
26 Pena constatar que tais recomendações não perderam sua validade: E. ANDRADE demonstra em A
unidade necessária entre o ensino e a pesquisa em História, que decorridos 24 anos dessa crítica, a dicotomia ensino–pesquisa ainda não foi superada nos cursos de graduação e, dessa forma, os egressos que assumem seus postos nas escolas de ensino fundamental e médio continuam com dificuldades em estimular suas classes a pesquisar para construir saber histórico.
27 São as professoras universitárias Dea Ribeiro Fenelon e Ernesta Zamboni, da Unicamp além de Luiza
Margareth Rago, da Universidade Federal de Uberlândia. Ainda as professoras de primeiro e segundo grau Maria Silvia Bassanezi, Vera Lucia De Rossi, Maria Carolina Galzerani, Maria Helena Paes, Vera Lucia Gói, Paulo Cosiuc e Dulce Maria Leme.
professores universitários são sensivelmente diferentes daquelas realizadas pelas
professoras do primeiro e segundo graus.
Mesmo sem se furtar a alguns exercícios de teorização, os docentes do sistema
estadual e da rede particular focaram seus relatos em suas experiências pedagógicas:
estudos da noção de tempo e espaço através da história dos bairros; a relação dos
conteúdos da antiguidade clássica e da época moderna com a vida cotidiana dos alunos;
os limites dos livros didáticos para a criticidade das aulas; o uso de documentos e fichas
de consulta para complementação ou substituição dos manuais escolares; o chamado
“estudo do meio” para compreensão do patrimônio histórico urbano.
Suas narrativas apresentaram êxitos e limites dessas metodologias e a validade
delas para construção de uma relação ensino-aprendizagem desprendida dos contornos
ideológicos impostos pelo poder público:
A principal preocupação do presente trabalho [...] foi permitir que nossos
alunos percebessem com maior clareza que a História não é um amontoado
de datas, nomes e fatos passados para serem decorados, mas sim, que ela é
viva, capaz de possibilitar a compreensão da realidade mundial e o lugar do
Brasil dentro dela, desenvolvendo hábitos e atitudes que consideramos mais
condizentes com a sociedade democrática que queremos [...]28
.
Mostraram, portanto, os esforços estabelecidos por aqueles que tinham a tarefa
cotidiana de resignificar a prática escolar, superando os limites da formação acadêmica
e a desconfiança de diretores, supervisores e pais quanto à validade dos
encaminhamentos pedagógicos propostos. Os subsídios das professoras universitárias ao
volume, apesar de relevantes, percorreram trilhas diferenciadas que lhes conduziram a
análises de conjunturas e modelos teóricos aplicáveis ao ensino de História.
Dea Fenelon redigiu outra pujante crítica àquilo que chamou de engodo dos
Estudos Sociais e demais cursos de curta duração, situando-os numa conjuntura
educacional marcada pela desvalorização do professor, pela precarização do trabalho
dos demais profissionais do magistério, pelo autoritarismo instalado nas Universidades
e nas escolas e, reiterando sua posição outrora expressa, pelo apartamento entre a
produção e a socialização da ciência. As licenciaturas, em sua opinião, deveriam voltar-
28
M. GALZERANI, A expansão mercantilista e a formação do Brasil colônia: uma experiência didática na periferia de Campinas, p. 43.
se para formar indivíduos capazes de produzir conhecimento, relacionar-se
criticamente com a produção científica, transmitir aos estudantes tanto um saber
determinado quanto os elementos que permitem sua crítica 29
.
Utilizando-se de uma apreciação pouco menos incisiva, mas ainda consoante a
essa bandeira de luta, Margareth Rago dissertou sobre os encaminhamentos
metodológicos para identificação e recuperação de fatos locais como expressões de
saberes apropriados pelos alunos a partir da investigação histórica.
Ao tomar por base um protesto popular ocorrido em Uberlândia em 1959, ela
orientou seus alunos finalistas do curso de História a delinear um quadro das condições
de vida e de trabalho das classes subalternas30
para explicar o quebra-quebra que
chocou as autoridades da pacata cidade, propondo, após pesquisa em jornais de época e
da realização de entrevistas, em substituição ao senso comum que atinava somente ao
aspecto pitoresco do ocorrido, um olhar inquiridor da complexa teia social da
localidade, como reflexo das contingências da conjuntura política nacional. Sua
preocupação maior no artigo, contudo, não fora a de explicitar os passos da realização
do trabalho, mas sim dar lastro científico que servisse de estímulo para a realização de
atividades similares ao introduzir o pensamento de E.P. Thompson e George Rudé, até
então intelectuais pouco traduzidos para a língua portuguesa.
De certa maneira, destoando das posições assumidas pelas congêneres de ensino
superior, Ernesta Zamboni encerra a revista com texto mais denso, tratando do
desenvolvimento das noções de espaço e tempo nos alunos da primeira série do
primeiro grau. Partindo de um olhar piagetiano, ela teceu suas argumentações
substituindo, paulatinamente, o referencial psicológico por concepções advindas das
ciências humanas numa orientação interdisciplinar que não se limitou à óbvia
aproximação História–Geografia, como os conceitos supõem, pois sabendo-se,
portanto, da importância do conhecimento das relações espaço-temporais, cabe à
escola desenvolvê-las, propiciando ao aluno condições para se situar historicamente31
.
Para tanto, ela conclamou a um diálogo com saberes pouco estimados na escola:
reconheceu a importância da educação artística e da educação física para agregar valor
29
D.R. FENELON, A questão dos Estudos Sociais, p. 22.
30 M. RAGO, Uma experiência de pesquisa em História: o quebra-quebra de 1959, p. 25.
31 E. ZAMBONI, Desenvolvimento das noções de espaço e tempo na criança, p. 65
pedagógico aos jogos infantis que ajudam no desenvolvimento das percepções de
espacialidade e temporalidade.
Entretanto, sua assertiva mais incisiva foi inscrita logo nos primeiros parágrafos:
Como a formação e o desenvolvimento da noção de tempo e espaço estão
diretamente ligados a aprendizagem da geografia e história e demais
ciências humanas, há muitos geógrafos preocupados de como se dá o
desenvolvimento da noção de espaço; entretanto, a preocupação com a
formação de tempo, cronologia, periodização é pequena entre os
historiadores.32
Pouco desenvolvida no decorrer da explanação, essa afirmativa alcançou o âmago
da divergência das abordagens, pois refletiu a incipiência das questões de ensino de
História no seio acadêmico: pregava-se por uma História transformadora da sociedade,
instrumentalizadora da cidadania e avessa à memorização de nomes, datas e fatos,
porém não se cogitava avançar na reflexão sobre os encaminhamentos a serem
efetivados no âmbito da sala de aula para enfrentar problemas corriqueiros como o
desinteresse pela disciplina tomada por decorativa ou a abstração dos conceitos
históricos para crianças e adolescentes, por exemplo.
Considerando que disciplinas como História da Educação ou Metodologia do
Ensino de História eram (e, em grande medida, ainda são) sigladas nos departamentos
de fundamentos de pedagogia, o contato que os graduandos faziam com as questões de
ensino levantadas pelos historiadores se inscrevia, geralmente, em torno de críticas às
políticas públicas ou, então, de dimensões teóricas que respondiam pouco às demandas
dos professores de primeiro e segundo graus. Faltava, aquela altura, pesquisa
sistemática que fornecesse base para proposições em torno dos desafios e das
alternativas para compreensão de uma História-problema também por parte dos
educandos.
Ainda assim, o encontro de professores e o lançamento da revista eram sinais que
uma viragem nos estudos sobre ensino de História começava seu curso. Tal guinada
deitaria definitivamente suas raízes a partir da segunda metade dos anos oitenta e teve
como marco a publicação de uma obra coletiva de pesquisadores da Pontifícia
32
Ibdem, p. 64.
Universidade Católica de São Paulo intitulada Ensino de História: Revisão Urgente33
.
Sua representatividade reside na publicização dos resultados de um ciclo completo de
intervenção sobre a didática da História: principiou por uma crítica teórica sobre a
história ensinada tal como estava posta nas instituições educativas, passou pela defesa
de uma proposta curricular para o ensino de História na 5a. série do primeiro grau e,
baseada nela, expôs uma exitosa experiência sobre o estudo de um dos tópicos do
programa de ensino com alunos de uma escola estadual da periferia de São Paulo.
Iniciaram os trabalhos apoiados por um financiamento do SESu/MEC destinado a
confecção de material instrucional, porém, na medida em que estudavam, os
proponentes do projeto perceberam a necessidade de estreitamento dos laços com os
temas relativos à realidade do magistério ginasial e secundarista34. Ao afastarem-se da
idéia original, conseguiram entender que sem uma ingerência no currículo da disciplina,
seus esforços apenas fabricariam uma nova embalagem para velhos conteúdos.
O amadurecimento de um novo currículo para a 5ª. série ginasial passou pelas
considerações acerca de quem é o personagem central do processo ensino-aprendizagem
e como alcançá-lo efetivamente. No decorrer do ano letivo, ao propor novos
encaminhamentos metodológicos para discutir um conceito-chave, as noções de tempo
histórico, o projeto recuperou a história de vida dos alunos e, em função da origem da
maioria, desdobrou-se numa pesquisa complementar para melhor compreender a
migração dos nordestinos, seus problemas de adaptação na cidade grande e sua
exploração enquanto mão-de-obra desqualificada.
A partir de uma problemática inicial – “como viviam os homens
antigamente?” – Conceição [Cabrini] identificou que, para seus alunos, o
antigamente se dava no meio rural. A partir desse “antigamente” e desse
“meio rural”, selecionou como objeto de estudo a migração nordestina. A
origem nordestina de seus alunos propiciou-lhes maior interesse pelo objeto
de estudo e a oportunidade de colocarem sua experiência de vida. Isso
facilitou-lhes a descoberta e a generalização, assim como uma melhor
compreensão de sua realidade atual35
.
33
C. CABRINI et alii, O ensino de história: revisão urgente. Sua primeira edição foi lançada em 1986, mas a pesquisa relatada foi realizada entre os anos de 1983 e 1984.
34 Ibdem, p. 8: Começamos por organizar discussões semanais sobre o ensino e o aprendizado em geral e
o de História em particular, procurando nos embasar e nos reciclar; passamos a comparecer com mais constância a reuniões, encontros, congressos, etc., em que se discutiam esses dois amplos temas e cada vez mais nos envolvemos com eles.
35 Idem, p. 118.
Nunca antes uma obra com o relato de uma pesquisa efetivada por professores
universitários em conjunto com seus pares de primeiro grau e que contou com a
participação primordial de alunos alcançara tanta repercussão nos cursos de História.
Era um exemplo real, circunscrito historicamente numa determinada época e espaço, tão
críveis, tão próximos da realidade vivenciada pelos futuros profissionais do magistério
que os incitava a deixar de lado a formalidade curricular e tentar abordagens mais
significativas para comunidade escolar. Ao mesmo tempo, a materialização de um
discurso de compreensão da sociedade através da educação e, particularmente, do
ensino de História e, também, um sopro de crença e incentivo em prol de uma nova
História ensinada, resumida na única linha da conclusão do livro, não à toa voltada para
os jovens professores: Coragem: vá em frente! 36
.
Não tardou para que as questões de ensino, por tanto tempo negligenciadas,
extrapolassem os esporádicos meios impressos e demandassem a constituição de fóruns
específicos para a socialização de suas inquietações, uma vez que os Simpósios
Nacionais de História não possibilitavam espaços acadêmicos de discussão. Como
estratégias de enfrentamento à relutância da ANPUH em reconhecer a História ensinada
como objeto de investigação e campo legítimo para intervenção do historiador, foram
organizados o Encontro Nacional Perspectivas do Ensino de História (a partir de 1988)
e o ENPEH – Encontro Nacional de Pesquisadores do Ensino de História (desde 1993).
De certa maneira, pressionada pelos esforços desses dois eventos de grande alcance, a
Associação representativa dos profissionais da História foi abrindo espaço nas páginas
da Revista Brasileira de História para publicação de dossiês concernentes ao ensino da
disciplina escolar, e ampliando o suporte ao GT História e Educação nos Simpósios
Nacionais37
.
No interregno entre 1986 e 1996, seguiram-se as publicações de algumas outras
obras na área38
, mas foi com o estabelecimento da nova Lei de Diretrizes e Bases da
36
Idem, p. 131.
37 Para uma apreciação das tensões envolvidas no processo de afirmação da História ensinada nos
fóruns acadêmicos nacionais ver I. MESQUITA, op. cit.
38 Em especial: O ensino de História e a criação do fato, outra obra coletiva organizada por Jaime Pinsky
e publicada em 1988. Contando com a colaboração de outros quatro historiadores (Elza Nadai, Paulo Miceli, Cirece Bittencourt, Nicholas Davies) seu enfoque é sobre o uso escolar de uma categoria de difícil apreensão no ensino ginasial e secundário, o fato histórico. Original em sua proposta, igualmente obteve grande inserção na licenciatura, mesmo seguindo uma opção de discussão fundamentalmente
Educação que uma nova conjuntura despontou e ensejou a implementação de novas
políticas públicas que favoreceram a ampliação de pesquisas educacionais, inclusive,
daquelas voltadas para o ensino de História. Com a necessidade de cumprir os
dispositivos da LDB 9394/96 no tocante à formação superior dos docentes, muitos
Estados e Municípios, incentivados financeiramente pelo Governo Federal, buscaram
estabelecer convênios com Instituições de Ensino Superior para oferta de graduação nas
áreas que compõem o currículo básico. Esta demanda substancial a qual foram
submetidas às Instituições de Ensino Superior acabou por chamar atenção da academia
para o que estava sendo ensinado, para quem, através de quais metodologias e com
quais interesses.
Este foi mais um impulso para que os pesquisadores focados nos problemas de
ensino de sua área específica deixassem o incômodo papel coadjuvante aos quais
estavam relegados e se acomodassem em uma posição de maior destaque nos
departamentos universitários e programas de pós-graduação. Consolidou-se o
movimento de valorização dessas questões cujas decorrências permitiram tanto o
reconhecimento merecido dos pioneiros das pesquisas nesse campo, quanto o
aparecimento de uma nova geração de professores universitários que cuidaram de
aprofundar sua legitimação indicando um inebriante mosaico de possibilidades de
investigação fruto de diálogos interdisciplinares39
. Resultante desse processo houve, a
partir da década de 1990, o incremento de teses e dissertações defendidas e livros
publicados que se dedicaram, principalmente, às análises sobre livros didáticos,
questões de metodologia de ensino, formação e trabalho docente.
Os trabalhos sobre impressos pedagógicos, particularmente livros didáticos, são
mais numerosos. Tratam, em geral, da produção e circulação dos manuais e das
concepções de história inscritas em suas páginas. Nestes termos, são exemplos
teórica. Dois anos depois, a Revista Brasileira de História edita o número História em quadro-negro: escola, ensino e aprendizagem. Nove textos formam o primeiro dossiê sobre ensino do principal veículo de divulgação da produção historiográfica e, dentre eles, destacam-se o de autoria de Cláudia Ricci e o de Cláudia Gagliardi et alii nos quais são tratados, a partir do ponto de vista dos professores secundaristas, as relações estabelecidas entre os saberes produzidos nas universidades e sua disseminação nas escolas de primeiro e segundo graus. Ressalte-se que a RBH voltaria a dedicar outros dossiês ao tema: em 1992/93 (N
o 25/26), em 1998 (N
o 36) e em 2004 (N
o 48).
39 A título de reconhecimento, entre esses desbravadores reverenciamos Elza Nadai, Déa Ribeiro
Fenelon, Circe Bittencourt, Joana Neves, Marcos Silva, Ernesta Zamboni. Da nova geração, destacam-se: Selva Guimarães Fonseca, Thaís Nívea Fonseca, Luis Fernando Cerri, Décio Gatti Jr., Martha Abreu, Rachel Soihet, Holien Bezerra, Itamar Freitas.
sugestivos pela qualidade das análises A escrita escolar da História, de Décio Gatti Jr
e Concepções de História e de Ensino em manuais para o ensino médio brasileiros,
argentinos e mexicanos, tese de doutoramento defendida na USP por Vitória
Rodrigues e Silva.
O livro de Gatti Jr. explora vários aspectos da feitura e circulação do livro
didático entre os decênios de 1970 e 1990, mas seu diferencial está nas ponderações a
respeito das implicações posteriores à passagem de uma escrita individual do texto
didático, quase artesanal, para o uso de equipes técnicas recheadas de “especialistas”,
focadas para agradar o mercado editorial e dispostas a refinar mecanismos de
reprodução de valores e comportamentos úteis ao Estado.
As editoras de livros didáticos, de modo geral, haviam se tornado uma
indústria interessada em produzir mercadorias em um formato próximo ao
dos livros que já tinham alcançado amplo sucesso de vendas, o que
significou, no evoluir histórico, a consolidação de uma determinada fórmula
editorial, quase única para os livros daquela época. À época, as editoras
eram constituídas de seus editores, personagens dos mais importantes no
circuito da produção de livros didáticos ou não; dos autores das obras, que
em alguns casos estavam se deslocando para um papel de atores
coadjuvantes no processo de fabricação dos livros; dos agentes literários,
que vivem à caça de textos e autores que se enquadrem na pauta editorial da
empresa em que trabalham; do pessoal de vendas e de divulgação e
marketing, que ocupavam o segundo lugar em importância nas decisões
editoriais, abaixo apenas dos editores, quando não imiscuídos de ambas as
atividades40
.
Utilizando-se da História Oral, o trabalho recuperou a trajetória intelectual e
profissional de tradicionais autores de manuais para o ginásio e secundário: Joana
Neves, José Jobson de Andrade Arruda, Ricardo de Moura Faria e Flávio Costa Berutti
– que além de manterem sólida reputação nos meios universitários, também têm uma
trajetória na produção desse tipo de material iniciada em meados dos anos setenta que
lhes permitiu protagonizarem muitas das tensões e polêmicas no processo de criação e
gerenciamento da produção didática.
A tese de Vitória Silva tem sua originalidade na comparação entre obras
brasileiras, argentinas e mexicanas destinadas ao que seria equivalente ao ensino médio
nesses países. Acessoriamente, cotejou os diferentes sistemas educacionais e como eles
40
D. GATTI JR., op. cit., p. 139. Grifo nosso.
interagiam com o ensino de História. Isto trouxe ao seu trabalho uma compreensão mais
ampla dos movimentos que a história ensinada está inserida em nível latino-americano.
Sua análise identifica que nos materiais instrucionais latino-americanos ainda
prevalece como eixo estruturante do curso correspondente ao ensino médio uma
História do capitalismo, em que pese os esforços dos escritores em reiterar o valor em si
do conhecimento histórico que colabora para formação de indivíduos cultos, cidadãos e
com autonomia intelectual.
Por outros caminhos, é a “história dos vencedores” que ainda se impõe,
mesmo que se procure ser crítico à forma como eles venceram. Não há, desse
modo, espaço para conhecer outras temporalidades que não estejam
subordinadas ao tempo único do capital. E aqui talvez possamos identificar
um processo de reacomodação de uma tradição. Se na perspectiva
humanista, o estudo da História se subordinava à formação geral do
indivíduo, que deveria conhecer a trajetória civilizacional das sociedades
ocidentais, desde a Antiguidade, essa perspectiva temporal mais longa
perdeu relevância considerando-se suficiente que o aluno conheça o
processo pelo qual a ordem capitalista se estabeleceu, expandiu-se e
consolidou sua dominação. Portanto, estamos nos distanciando cada vez
mais do modelo de formação humanista, da valorização do domínio de uma
cultura clássica41
.
As discussões sobre metodologias de ensino de história são comuns,
principalmente, entre as dissertações de mestrado. Talvez pela característica que esses
cursos assumiram no Brasil, onde há uma grande pressão pelo cumprimento do prazo
enxuto de 24 meses, tenham sido encorajadas pesquisas sobre métodos aplicados em
escolas ou áreas bem determinadas. Um exemplo é o trabalho de Patrícia Bastos de
Azevedo, Ensino de história e memória social, defendido na Universidade Federal
Fluminense.
O trabalhou girou em torno da observação de uma única turma de 7ª. série de certa
escola de Niterói. Desta análise foram sugeridos vínculos entre a teoria da Ação
Comunicativa, de Habermas, com a construção da memória social e seu papel no fazer
pedagógico da sala de aula de história. Seria, em seu limite, algo próximo de um estudo
41
V. SILVA, Concepções de História e de Ensino em manuais para o ensino médio brasileiros, argentinos e mexicanos, p. 244.
de micro-história, caso a autora tivesse intenção de incorporar conceitos e métodos
ginzburguianos42
.
Quanto à formação e trabalho docente, as reflexões de Selva Guimarães Fonseca
têm se notabilizado no cenário das publicações sobre o tema. Graduada em História e
Pós-Doutora em Educação, a professora Selva publicou diversos livros, entre os quais,
dois referenciais para história ensinada: o clássico Caminhos da história ensinada, de
1993, e Espaços de formação do professor de história, de 2008. Esses trabalhos
refletem a preocupação em inventariar e cotejar experiências de formação profissional,
práticas de ensino e propostas curriculares brasileiras e estrangeiras. Percorrem trilhas
investigativas semelhantes também Thaís Nívea Fonseca, Ernesta Zamboni, Sônia
Regina Miranda, dentre outros de maior destaque.
Ressalte-se que, a partir dos anos 2000, a publicação de coletâneas organizadas
por historiadores que não tinham no ensino de História sua principal linha de
investigação tornaram-se freqüentes, associando o nome de mestres já reconhecidos ao
de outros em processo de consolidação da carreira universitária. Este parece ser o caso
de História na sala de aula, coordenado por Leandro Karnal, eminente professor na
Universidade Estadual de Campinas, ainda hoje mais conhecido pelos seus estudos nas
áreas de Moderna e América, do que por suas contribuições aos temas de ensino. Outro
nicho ocupado com bastante propriedade foi aquele voltado para o magistério das séries
iniciais do ensino fundamental, inclusive com colaborações em coleções voltadas
prioritariamente para os graduandos em pedagogia43
.
42
P. AZEVEDO, Ensino de História e memória social: a construção da história-ensinada em uma sala de aula dialógica, diz à p. 146: A memória social não se cala. Mesmo que a ignoremos, ela se introduz na sala de aula. Na sala de aula de história sua intromissão é mais freqüente e contumaz, pois a memória é um elemento inerente ao ensino de história. Acreditamos que o diálogo argumentativo cria a possibilidade de articularmos memória social e História, viabilizando uma análise coletiva e cooperativa, produtora de uma memória social fruto da reflexão, que pode transbordar o fazer da sala de aula de história para outros espaços sociais.
43 Para exemplificar no primeiro caso: A. MONTEIRO, A. GASPARELLO & M. MAGALHÃES, Marcelo de
Souza. (Orgs.), Ensino de História: Sujeitos, saberes e práticas; C.PINSKY (org.), Novos temas nas aulas de História; L. KARNAL (org.) História na sala de aula; H.ROCHA, L. REZNICK & M. MAGALHAES (orgs.), A História na Escola. Em relação às publicações voltadas para o magistério nas séries iniciais do ensino fundamental: M. SCHIMIDT & M. CAINELLI, Ensinar História; C. MOREIRA & J. VASCONCELOS, Didática e avaliação da aprendizagem no ensino de história; J. VASCONCELOS, Fundamentos epistemológicos da História; I. FREITAS, Fundamentos para o ensino da História.
Se, ainda que tardiamente, o tema parece ter ganhado cidadania44
em âmbito
nacional, no Amazonas, em particular, a discussão sobre o ensino de História ainda tem
sido ínfima. Um dos poucos historiadores de ofício que se manifestaram sobre o tema
foi Arthur Cezar Ferreira Reis, cujos escritos eram favoráveis a uma História escolar do
Estado: além de seu supracitado estudo de 1953 sobre o ensino de História no Brasil,
somente em 1965, quando já exercia o cargo de Governador, publicou obra
especificamente voltada para o ensino, intitulada Súmula de História do Amazonas.
Com o intento de fornecer base factual para os professores de ensino primário e
secundário, o professor silenciou sobre aspectos teóricos ou metodologias adequadas
para os conteúdos, mas admitiu que sua mais conhecida obra História do Amazonas,
bastante usada nas escolas - apesar de não ter sido sua finalidade torná-la material
instrucional - se republicada, deveria ser revista para o uso didático:
Foi ação ousada, reconheço. Impunha-se, no entanto, elaborá-la com
urgência, para dar fundamento à conscientização que pretendíamos criar
nas novas gerações, preparando-as para um estado d`alma permanente no
particular dos dias que se seguissem para o Amazonas. Numa reedição que
tivesse que fazer, a “História do Amazonas” seria inteiramente refundida e
acrescida. Os elementos novos colhidos são imensos e autorizam uma outra
realidade. Não me disponho a realizar essa tarefa agora. Os problemas do
Estado consomem o tempo que seria necessário para revisão e para os
acréscimos. Esta “Súmula” pretende suprir a falta que, de trabalho dessa
espécie, vem sendo sentida pelo magistério amazonense. Não inova. Pretende
dizer o essencial.45
Com exceção de alguns poucos manuais didáticos, o ensino de História só
voltaria a ser alvo de atenção cerca de quarenta anos depois de lançada a obra de Reis
num movimento que tinha conexão com a conjuntura de incentivo à formação de
quadros docentes graduados nas secretarias de educação. Em 2003, o Governo do
Estado firmou um convênio com a Universidade Estadual do Amazonas para graduar
docentes através de cursos à distância, ministrados por módulos televisionados via
satélite. O programa, conhecido como PROFORMAR, previa que os professores
44
Conforme expressão de Manoel L. S. GUIMARÃES, Escrita da História e Ensino da História, p. 35.
45 A. REIS, Súmula de História do Amazonas, p. 12.
titulares de cada disciplina produzissem material inédito para uso. Isso incluía,
evidentemente, a disciplina Metodologia e Prática de Ensino de História e Geografia46
.
Para esta finalidade foi escrita a obra Metodologia e prática do ensino de
história e geografia, coordenada pelo professor Hideraldo Lima da Costa, do
Departamento de História da UFAM. Publicada inicialmente em forma de apostila, o
trabalho foi lançado em 2007, como livro ainda voltado prioritariamente para uso na
formação inicial dos professores da rede estadual. Nele são discutidas questões relativas
aos objetivos e conteúdos de história para o primeiro e segundo ciclo do ensino
fundamental, o PCNH (Parâmetros Curriculares Nacionais de História), o livro didático,
entre outros.
Em que pese esse desinteresse regional, hoje é insofismável a legitimidade da
História ensinada como objeto de preocupações dos historiadores, como corrobora o
CNPq através de seu Diretório dos Grupos de Pesquisa no Brasil: existem cadastrados
84 grupos que articulam estudos sobre diversos aspectos do ensino de história em suas
linhas de pesquisa, o que reitera quão firmada está a área de pesquisa47
.
Se, por um lado, as conjunturas acadêmicas e a historiografia relativa aos estudos
da História Ensinada estão postas como sugerimos acima, e, na medida em que este
trabalho se inscreve em um de seus aspectos – uma História do ensino de História –, é
preciso desvelar, agora, quais perspectivas teóricas favoreceram esse processo de
consolidação e de quais formas elas permeiam esta pesquisa.
46
Estranhamente, a grade curricular do curso Normal Superior previa esta disciplina que englobava conteúdos das duas áreas de conhecimento. Como se vê, parece que nem a Universidade Estadual nem historiadores e geógrafos da região atentaram para as discussões e lutas contra os Estudos Sociais feitas no restante do país vinte anos antes.
47 Consulta realizada em janeiro de 2011 em http://dgp.cnpq.br/buscaoperacional/
1.2 – Uma chave de compreensão para os estudos sobre a História da História
Ensinada: Culturas, Saberes e Disciplinas Escolares a partir da História Cultural
Em linhas gerais, esta investigação reafirma seu interesse pela compreensão das
características assumidas pela História ensinada na década de 1930 no Estado do
Amazonas e, em seus limites, deseja iluminar a interação entre um saber acadêmico e
escolar de Clio. Como dito anteriormente, este é, a exemplo de todo trabalho
historiográfico, fruto de seu tempo, não apenas porque motivado por questões
contemporâneas, mas por sua proposição, da forma como feita, ter sido possível graças
à consolidação da História cultural, uma abordagem de pesquisa que recolocou o tema
da História das disciplinas escolares em primeiro plano, inscrevendo sua autenticidade
tanto entre as preocupações de historiadores quanto de educadores. Neste sentido,
almejou realizar-se como um trabalho de História da Educação, se tomados esses dois
termos de maneira interdisciplinar e não apartados, como uma especialidade da
pedagogia refugada pelos historiadores como se convencionou pensar.
As raízes desse preconceito ligam-se à tradição universitária brasileira que
vinculou as classes e pesquisas ligadas em algum aspecto à História dos processos de
ensino-aprendizagem aos departamentos de fundamentos pedagógicos das Faculdades
de Educação, refletindo, em última análise, o espaço diminuto que as questões de ensino
ensejaram nos cursos das áreas de humanidades e exatas até bem pouco tempo.
Assumindo a responsabilidade pela produção desses conhecimentos e fiéis aos
cânones de seu universo intelectual, os educadores constituíram um conjunto de
reflexões que gravitavam em torno de uma história das idéias e das práticas pedagógicas
de amplo espectro, que não se articulavam necessariamente com as especificidades dos
interesses educativos das diversas ciências que compunham os currículos escolares:
Sem querer em nenhum momento negar as contribuições fornecidas pelas
problemáticas da história do ensino, estas têm se revelado demasiado
‘externalistas’: a história das idéias pedagógicas é a via mais praticada e a
mais conhecida; ela limitou-se, por demasiado tempo, a uma história das
idéias, na busca interminável de origens e influências48
.
48
D. JULIA, A cultura escolar como objeto histórico, p. 12. Não se trata aqui, evidentemente, de menosprezar os enfoques pedagógicos sobre o assunto ou diminuir a importância da produção intelectual dos educadores para as demais áreas do conhecimento. Somos tributários das obras de Paulo Freire, Demerval Saviani, Miguel Arroyo e António Novoa, dentre outros. Reiteramos, portanto,
Esta opção teórico-metodológica restringiu o olhar pedagógico, deixando-o
insuficiente para dar conta de um leque mais vasto de questões sobre, no que interessa-
nos nesse estudo, a História das práticas educativas emergidas a partir da necessidade de
melhor compreender as transformações do cotidiano e dos sujeitos escolares. Tal
limitação incentivou a prospecção deste campo por outros cientistas sociais,
especialmente pelos historiadores que se valeram de seu métier para fundamentar a
ampliação da noção de fontes, o refinamento do tratamento documental, a re-
significação do discurso oficial, a identificação de novos personagens, a valorização das
entrelinhas e dos silêncios.
Este diálogo, que serviu para estimular a escrita de uma História da Educação
lato sensu, propiciou enorme incremento nas pesquisas sobre a História das disciplinas
escolares – e do ensino de História, em particular – posto que a viragem proporcionada
pelo adensamento de seus estudos no Brasil foi se apropriando das contribuições de
pensadores como Dominique Julia, André Chervel, Jean-Claude Forquin e António
Viñao Frago, protagonistas na consolidação dos diálogos entre educação, antropologia,
lingüística e História. Como sabido, dentro dos domínios de Clio, os estudos dos
saberes, disciplinas e cultura escolar foram acolhidos entre os historiadores partidários
de uma renovada História de viés Cultural49
cuja dimensão analítica foi incorporada aos
trabalhos tanto de um grupo de neomarxistas da nova esquerda britânica quanto de
adeptos da terceira geração da Escola dos Annales.
Do primeiro conjunto, emergido de um movimento historiográfico que, em
meados dos anos cinqüenta, ousou propor alternativas à leitura dogmática da teoria
marxista, destaca-se o inglês Edward Palmer Thompson. Originário do Partido
Comunista e pensador atuante, ministrou na Universidade de Leeds cursos não
acadêmicos noturnos para os trabalhadores, experimento que acabou por aproximá-lo
apenas a constatação que nestes temas, até bem pouco tempo, foram tímidas as aproximações dos pedagogos com outras áreas das humanidades.
49 O termo Nova História Cultural foi popularizado pela obra de Lyn HUNT, A Nova História Cultural e
designa uma produção historiográfica que se contrapunha a uma História Cultural Clássica reinante entre cerca de 1800 e 1950 e sobre a qual P. BURKE, O que é História Cultural?, p. 16 dizia: Esse período também poderia ser chamado de ”clássico” no sentido de que foi um tempo em que os historiadores culturais concentravam-se na história dos clássicos, um “cânone” de obras-primas da arte, literatura, filosofia, ciência e assim por diante.
daquilo que seria o grande tema de pesquisa seu e do companheiro Raymond Williams:
os estudos culturais.
Seu esforço mais original foi de nuançar justamente um conceito bastante caro ao
marxismo: para ele, a classe não surgiu tal como o sol numa hora determinada. Ela
estava presente ao seu próprio fazer-se50
. Em outros termos, para entendê-la, era
necessário estudar a experiência de modelação da identidade social não como algo
posterior, mas inerente à constituição da própria classe, urgindo, para tanto, a
recuperação das manifestações da cultura popular que revelassem as variadas formas de
resistência e luta dos setores populares, sem, contudo, invalidar as inter-relações
recíprocas entre os universos culturais subalterno e dominante51
. Nesse
empreendimento, reiterou uma History from below, vista de baixo, em que a valorização
de temas ora silenciados (ritos, crenças, hábitos) e de fontes pouco usuais nos estudos
de esquerda (jornais, processos criminais, festas etc.) foram trazidas a lume, dando
aporte a uma escrita marxista da História a partir da cultura popular.
As resistências a este modelo analítico vieram tanto da direita quanto da
esquerda: ora apontavam sua parcialidade em função da opção nítida de intervenção na
esfera político-social em favor dos trabalhadores; ora denunciava-se seu desalinho com
o pensamento comunista habitual, por conta da opção por uma categoria pouco
trabalhada nos escritos deixados por K. Marx. Essa possibilidade de pensar Clio
perspectivada pela cultura não enfrentou apenas desconfianças no seio da ortodoxia
marxiana dos anos sessenta até alcançar sua consolidação cerca de duas décadas depois,
pari passu também arrostou tensões para se legitimar dentro de um movimento que, em
50
E. P. THOMPSON, A formação da classe operária inglesa, p. 9. A pesar do destaque a Thompson, não se pode menosprezar a contribuição na introdução desta perspectiva cultural entre os historiadores marxista de Georges Rudé e Raymond Williams, além do próprio Eric Hobsbawm que, mesmo sendo amplamente reconhecido como praticante de uma História social, não se futura em fazer uma análise cultural do jazz e discutir a invenção das tradições. Sobre essa renovação historiográfica marxista ver, dentre outros, J. FONTANA, História: análise do passado e projeto social; P. SCHOFIELD, História e marxismo; E. HOBSBAWM, Sobre História.
51 Cf. R. VAINFAS, História das mentalidades e história cultural, p. 157. Cabe o registro de que nesta
tese, em particular, é possível perceber uma proximidade com a idéia de circularidade cultural defendida por C. GUINZBURG no prefácio da edição italiana de seu O queijo e os vermes. E. P. Thompsom, Costumes em comum, p. 17, diz: Mas uma cultura é também um conjunto de diferentes recursos em que há sempre uma troca entre o escrito e o oral, o dominante e o subordinado, a aldeia e a metrópole; é uma arena de elementos conflitivos, que somente sob uma pressão imperiosa [...] assume a forma de um sistema. E na verdade o próprio termo cultura, com sua invocação confortável de um consenso, pode distrair nossa atenção das contradições sociais e culturais, das fraturas e oposições existentes dentro do conjunto.
tese, lhe seria mais propício por conta de sua genealogia dialógica, a Escola dos
Annales52
.
Marc Bloch e Lucien Febvre, nos anos 1930, inovaram ao pôr em prática um
vigoroso combate contra a persistência de uma historiografia évélementielle e
positivista, substituindo-a por uma história-problema. Escolheram como armas os mais
variados elementos da produção humana como fontes históricas e como estratégia
principal uma prática interdisciplinar que dialogava com as ciências humanas, em
especial com a sociologia, a geografia, a economia, a antropologia e a lingüística, além
da psicologia. Nesta revolução, o interesse pela cultura apareceu inicialmente na forma
de mentalidades ou outillage mental. Particularmente Febvre, utilizou-se ao limite
dessas aproximações para gestar os estudos sobre as atitudes coletivas, iniciado com seu
famoso livro sobre Rabelais no qual discutia se a idéia de ateísmo era operacionalizável
na França do século XVI. Apesar do frescor dessa abordagem, o conceito de
mentalidades nunca foi apresentado de maneira precisa:
A mentalidade era uma maneira de ser, um conjunto de valores partilhados,
não-racionais, não-conscientes e, de uma certa forma, extra classe. Falava-
se de permanências mentais e de sentimentos que atravessavam épocas e
culturas, partilhados por diferentes extratos sociais, mas sem que houvesse
um trabalho de aprofundamento teórico do conceito53
.
Essas fragilidades ficaram num plano secundário no pós-guerra quando Fernand
Braudel assumiu a direção da Revista dos Annales, a presidência da VI seção da École
Pratique des Hautes Études e, posteriormente, da Maison des Sciences de L`Homme,
construindo em torno de si um poder incomum mesmo para os padrões da academia
52
Essa importante escola, não à toa apelidado por Burke de revolução francesa da historiografia por romper com uma História rankeniana, substituindo uma escrita oficial e laudatária por problemas a serem resolvidos a partir do uso, ao mesmo tempo, crítico e criativo de fontes que pudessem revelar o homem no tempo. Teve três gerações distintas: a inaugural, entre 1920 e 1945, capitaneada por Marc Bloch e Lucien Febvre; uma segunda no período 1945 – 1968 e definida pela onipresença de Fernand Braudel; e, após a aposentadoria deste, a ascensão da terceira linhagem, a partir de 1968, em que seus sucessores desmobilizaram a sua rígida influência e fragmentaram-na. Sobre o movimento consultar principalmente P. BURKE, A Escola dos Annales; J. C. REIS, Escola dos Annales; M.P. CAIRE-JABINET, Introdução à Historiografia; J. FONTANA, op. cit.; M. Roberts, A escola dos Annales e a escrita da História.
53 Cf. S. PESAVENTO, História & História Cultural, p. 31. C.F. CARDOSO também elaborou outra crítica
sobre as mentalidades, especialmente no capítulo sétimo de seu Um Historiador fala de teoria e metodologia. Sobre o livro Le problème de l`incroyance au XVIe siècle: La réligion de Rabelais, foram utilizados os comentários de P. BURKE, A Escola dos Annales, pp. 39 – 42.
francesa54
. Saíram de pauta não por conta de uma sofisticação teórica que lhe resolvesse
seus problemas, mas porque os interesses de estudo braudeliano privilegiaram a vida
material, a demografia e a economia por intermédio de uma história quantitativa, ainda
que regional e serial, com pretensões de elaboração de sínteses globalizantes.
A partir de 1968, os Annales optaram por uma distensão do centralismo
administrativo e teórico-metodológico que havia sido posto em prática por F. Braudel, o
que deu espaço para emergência, destoando das linhas de pesquisa apoiadas, de
trabalhos enfocados nas mentalidades, principalmente de medievalistas como George
Duby e Jaques Le Goff e historiadores da época moderna como Robert Mandrou,
Phillipe Ariés e Jean Delemeau. Seus temas (bruxaria, a morte, a infância, o medo e a
culpa) tiveram grande apelo junto a um público mais geral, algo que, de certa forma,
autorizou a edição de outras obras dessa natureza. Contudo, nem todos que trilhavam
essas sendas gozavam da mesma respeitabilidade nos meios intelectuais ou conseguiram
demonstrar de maneira satisfatória suas abordagens sem cair naquilo que Ciro
Flamarion Cardoso qualificou como uma anedótica iluminação de fantasmas.
As críticas que demonstravam a falta de rigor teórico, o excessivo empirismo e a
opção pelos micro-recortes foram muito consistentes, minando a credibilidade nos
círculos acadêmicos, em que pese o sucesso editorial entre os não especialistas. Por
volta do início dos anos oitenta, os historiadores pareceram capitular e abandonaram as
mentalidades em favor de outra abordagem analítica que ganhara força ao se reinventar,
a História Cultural, ancorada em quatro princípios fundamentais em busca de
legitimidade:
– O rompimento com a fugidia idéia de mentalidades, sem rompimento com a
abordagem da longa duração;
– O distanciamento tanto com a História das idéias quanto com a abordagem
clássica, fincada nas manifestações culturais oficiais e/ou elitizadas;
– A valorização das estratificações e dos conflitos sociais como objetos de
investigação; e
54
Cf. BURKE, ibdem,p. 57.: Sendo um homem de grande respeitabilidade e de personalidade dominante, Braudel manteve sua poderosa influência, mesmo depois de sua aposentadoria, em 1972. Tendo conservado em suas mãos, durante os anos de direção, o controle dos fundos para a pesquisa, publicações e nomeações, guardou para si um grande poder, que usou para promover o ideal de um mercado comum das ciências sociais, onde a História era um membro dominante. As bolsas de estudo concedidas a jovens historiadores [...] ajudaram a difundir o novo estilo francês de fazer História.
– A pluralidade de caminhos de investigação histórica, o que permitiu uma
fecunda aproximação com uma antropologia de inspiração em Clifford Gertz, com
paradigmas alhures ao mundo francês (em especial, a micro-história italiana) e com
conceitos inovadores como o de representação proposto por Roger Chartier55.
Não obstante seus estudos tomarem, em linhas gerais, a cultura como um
intrincado conjunto de significados partilhados e construídos por homens de diferentes
origens e classes sociais para explicar o mundo56
, essa emergente Nova História
Cultural caracterizou-se pelo resgate das identidades, dos conflitos, dos significados
revelados sutilmente nas formas de interação que se dão entre os partícipes de uma
mesma sociedade, instituição ou grupo. Ela propôs-se a ser plural, no sentido da
ampliação dos objetos e sujeitos, e popular, ao valorizar as expressões, quase sempre,
anônimas, iletradas e/ou irreverentes dos setores sociais subalternos – e nisso
aproximou-se do projeto thompsiano de desvelamento das manifestações culturais
populares:
Em síntese, historiadores franceses dos Annales e historiadores ingleses
neomarxistas trabalhavam, do final dos anos 1960 aos anos 80, com uma
história social que avançava para os domínios do cultural, buscando ver
como as práticas e experiências, sobretudo dos homens comuns, traduziram-
se em valores, idéias e conceitos sobre o mundo. Mesmo que seus membros
marxistas permanecessem marxistas e que os integrantes da agora chamada
Nova História, herdeira dos Annales, não se definissem teoricamente, era
possível distinguir algumas preocupações comuns, que perpassavam o
trabalho dos historiadores.57
55
Cf. R. VAINFAS, op. cit., pp. 148 - 149. Ainda à p. 148 ele vaticina: Micro-história à parte, o grande refúgio das mentalidades foi, contudo, o da chamada história cultural, refúgio este sim mais consistente, posto que, em suas primeiras versões, procurou defender a legitimidade do estudo do ‘mental’ sem abrir mão da própria história como disciplina ou ciência específica – o que não é de somenos importância – e, buscando corrigir as imperfeições teóricas que marcaram a corrente das mentalidades nos anos 70. Os ‘historiadores da cultura’ [...] não recusam, pelo contrário, a aproximação com a antropologia, nem a longa duração. [...] É lícito afirmar, portanto, que a história cultural é, neste sentido, um outro nome para aquilo que, nos anos 70, era chamado de história das mentalidades.
56 O conceito de cultura é, certamente, um dos mais complexos das ciências sociais. Aqui a definição
(propositalmente simplificada, aliás) apoiou-se nos escritos de D. CUCHE, A noção de cultura nas ciências sociais, pp. 33 – 63; K. SILVA & M. SILVA, Dicionário de conceitos históricos, pp. 85 – 88; A. BURGUIÈRE, Dicionário das ciências históricas, pp. 205 – 210; T. BOTOMORE, Dicionário do pensamento marxista, pp. 93 – 96; A. ALMEIDA et alii, Dicionário breve de História, pp. 62 – 63.
57 Segundo S. PESAVENTO, op. cit., p. 32.
Esses aportes teóricos estão permitindo a compreensão da escola enquanto
espaço no qual seus sujeitos e suas práticas são valorizados como microcosmos de
interações sócio-culturais. Dessa forma, a História pode tomar as suas próprias
experiências escolares como objeto de estudo, permitindo assim se enxergar a partir de
categorias como culturas, saberes e disciplinas escolares.
Delimitar o que seja uma Cultura Escolar é uma essencial e árdua tarefa
assumida pelos renovadores dos estudos sobre História da educação. Um dos pioneiros
foi o francês Andre Chervel, principal crítico da teoria de transposição didática58
.
Advogava que a escola não apenas reproduzia um saber acadêmico, erudito e/ou
superior, mas tinha a capacidade de engendrar uma cultura singular e original, produtora
de saberes articulados a sua dinâmica própria. Dessa forma, embora o colégio traduzisse
os saberes e comportamentos esperados pelos governos, havia algo de imprevisível em
seus efeitos, justamente por conta da luta por autonomia dos seus sujeitos em relação ao
sistema escolar.
Esse caminho também foi escolhido por Dominique Julia. Estudioso dos
processos educativos na Europa moderna, inclusive o papel do Ratio studiorum na
educação jesuítica a partir do século XVI, é muito respeitado entre os pesquisadores
brasileiros do tema, principalmente após publicação, em 2001, de seu famoso artigo no
n. 1 da Revista Brasileira de História da Educação. Lá tratou de tecer contornos dessa
efêmera categoria em termos de normas capazes de estabelecer quais
conhecimentos/condutas o colégio deveria ensinar; práticas que permitissem a
transmissão de conhecimentos e incorporação de comportamentos desejados; culturas
infantis, que são modos de agir estabelecidos entre pares de uma instituição de ensino e
que independem do que é prescrito. Porém, ressalvou que os processos formais de
escolarização não monopolizam os modos pelos quais se dão a aquisição de
58
A transposição didática tem como principal expoente Yves Chevallard e, em síntese, diz que o sistema didático seria resultado de uma relação entre professor-aluno-saber. O savoir savant (saber erudito), para poder ser ensinado, é transformado em saber a ser ensinado. Assim, o saber escolar era uma simplificação daquele produzido na academia. Por essa lógica, a escola não produziria conhecimentos e, portanto ela e seus sujeitos tinham um papel inferior aos centros de pesquisa universitários. A esse respeito ver, principalmente: T. FONSECA, História & Ensino de História; C. BITTENCOURT, Ensino de História; E. PESSANHA et alii, Da história das disciplinas escolares à história da cultura escolar.
conhecimentos e de habilidades, retirando das salas de aulas, bibliotecas ou pátios a
centralidade no processo de aquisição dessa cultura59
.
Outra referência importante é Antonio Viñao Frago, presidente da Sociedade
Espanhola de História da Educação e investigador, principalmente, dos processos de
alfabetização como práticas sociais e culturais, além da escolarização e da
profissionalização docente. Ele aprofunda os argumentos de Julia ao defender que os
estudos sobre cultura escolar permitem identificar as diferentes manifestações das
práticas acontecidas nas escolas entre alunos, professores, normas, teorias etc. Para
Frago, os espaços e os tempos escolares não eram dimensões neutras da educação, mas
constituíam corporeidades dos sujeitos escolares, impondo por sua materialidade uma
determinada aprendizagem sensorial e motora, bem como disseminavam símbolos
estéticos, culturais e ideológicos60
. Entretanto, inova ao ampliar a própria noção de
cultura escolar: ele a enxerga no plural, pois ela variava também de acordo com as
instituições de ensino e com os jogos de resistências e continuidades estabelecidos pelos
sujeitos e instituições envolvidas no processo.
Estas reflexões estão largamente difundidas na produção científica brasileira
sobre o tema e muitos dos nossos pesquisadores vêm refinando o conceito de modo a
torná-lo mais operacional em termos metodológicos, dentre os quais o professor da
UFMG e estudioso da escolarização mineira na primeira república, Luciano Mendes de
Faria Filho. Esta pesquisa, aliás, se vale de sua definição sobre cultura escolar:
[É a] forma como em uma situação histórica concreta e particular são
articuladas e representadas, pelos sujeitos escolares, as dimensões espaço-
temporais do fenômeno educativo escolar, os conhecimentos, as
sensibilidades e os valores a serem transmitidos e a materialidade e os
métodos escolares.61
Faria Filho sustenta que é fundamental pensar cultura escolar mediada por dois
tempos distintos e complementares: um mais longo no qual se dá a dimensão macro dos
processos de escolarização e outro mais curto em que se enxergam a dimensão micro
59
D. JULIA, op. cit. A RBHE é editada pela Sociedade Brasileira de História da Educação. O autor, à p. 11, reafirma o uso do termo culturas infantis, no sentido antropológico, destacando que elas se desenvolvem nos pátios de recreio e representam um afastamento em relação às culturas familiares.
60 Cf. L. M. FARIA FILHO, A cultura escolar como categoria de análise..., p. 148.
61 L. M. FARIA FILHO, Escolarização e cultura escolar no Brasil, p. 195.
das práticas escolares. Este jogo de escala permite identificar e compreender os sentidos
e os significados experienciados e compartilhados pelos sujeitos escolares de modo tal
que se permita observar as formas como são apropriadas as tradições em que estes
estavam imersos nos diversos momentos da história do processo de escolarização, além
das tensões relativas às tentativas de imposição de projetos político-culturais. De forma
semelhante, um deslocamento entre o singular (cultura escolar, quando se referir à
categoria) e o plural (culturas escolares, quando aludir-se ao objeto ou campo de
estudos) aguça a sensibilidade do cientista na identificação do devir histórico das
relações estabelecidas em âmbito escolar, cuja complexidade impede uma dissociação
entre o prescrito e o vivido.
Utilizando-se dessa percepção dinâmica, pode-se melhor identificar as
características dos Saberes Escolares, conhecimentos oriundos das ciências de
referências, mas que ao se escolarizarem são re-significados, ganhando contornos
próprios a partir não só de interesses de Estado, mas também das relações de forças
estabelecidas entre professores e alunos, principalmente. Entre os educadores, esse
objeto é visto geralmente sob a ótica dos estudos sobre currículos e nesse particular, um
nome de relevo é o do britânico Ivor F. Goodson. Levando ao limite as assertivas de A.
Chervel, ele chega mesmo a propor que, durante a apropriação pelos sujeitos escolares,
existem conteúdos que se transformam ao ponto de desconectar-se das abordagens
acadêmicas, passando, inclusive, a demandar a criação de uma disciplina universitária
para servir à formação de professores secundários daquela matéria escolar62
.
Contudo, contemporaneamente, Ana Maria Monteiro ressalta um avanço na
abordagem desse tema: o foco na complexidade das mediações envolvidas nos
processos de ensino-aprendizagem desprendidas de enfoques psicologizantes e mais
centradas nas articulações entre as didáticas específicas, o contexto sociocultural e os
saberes referenciais. Isto, no que concerne aos aspectos de ordem epistemológica,
confere um estatuto de cientificidade ao campo e [amplia] o seu potencial
gnosiológico63
.
Atendo-se aos conhecimentos históricos, Sônia Miranda também reconhece os
saberes escolares como entidades específicas, distintos da matriz de referência na media
62
A. GASPARELLO, Encontro de saberes: as disciplinas escolares, o historiador da educação e o professor, p. 78.
63 A.M. MONTEIRO, Professores de História: entre saberes e práticas, p. 23.
em que verifica lógicas insignes de objetivos, comunicação e mediação com seu público
alvo, o aluno. Entretanto, ela não considera que as especificidades assumidas sejam
suficientes para fazer desse saber histórico escolar algo independente, pois ele só existe
porque parte de uma historiografia difundida nos meios intelectuais.
[...] Tal saber mescla-se não só com distintas formas de reescrita da
História, como também com a memória, na medida em que a escola não só
congrega memórias sociais como pode funcionar como um importante
mecanismo de sua transmissão, incluindo, nesse caso, a reprodução e
reatualização permanente de memórias históricas oficiais, às quais têm
cabido o ocultamento e silenciamento de várias memórias sociais e a
subtração da consciência a respeito dos direitos fundamentais.64
Os espaços formais nos quais se dão os processos de re-significação desses
saberes são, evidentemente, as Disciplinas Escolares. Esta denominação surgiu na
Europa por volta dos anos 1910 e foi resultado das disputas entre conhecimentos que
deveriam fazer parte do currículo escolar para ajudar na formação das elites,
disciplinando suas mentes65
. Nesse sentido, suas finalidades se ligam a objetivos
educacionais amplos que são decompostos na forma de conteúdos de instrução e,
portanto, tendem sempre a mudar para se adequar ao que o Estado entender como lhe
sendo útil aos seus projetos.
As disciplinas escolares são saberes identificados por uma rubrica, com
organização própria, finalidades específicas e formas próprias para sua apresentação66
.
Esta definição lhe joga sobre os ombros, indubitavelmente, uma forte pecha de
oficialidade, porém se forem situadas como integrantes de uma cultura escolar, podem
ser entendidas igualmente como produções coletivas não só porque fruto da
acomodação dos interesses de grupos que disputam espaços de poder, mas, sobretudo,
porque refletem os convenientes processos de escolarização dos saberes.
No caso da História, afirma a professora Thaís Fonseca, espraiou-se o
entendimento pelo qual não eram vislumbradas correspondências entre o
desenvolvimento da disciplina referência e a escolar. Esta última, por um longo período
desde sua criação, assumiu um sentido providencialista, sendo ensinada com o intuito
64
S. MIRANDA, Sob o signo da Memória, p. 83.
65 C. BITTENCOURT, Ensino de História: fundamentos e métodos, pp. 40 – 41.
66 Cf. T. FONSECA, op.cit., p. 15.
de legitimar a origem das nações, o que, aliás, lhe conferiu certo destaque dentre as
demais67
.
A recuperação da História das disciplinas escolares – e da História ensinada, em
particular –, ganha fôlego renovado quando se volta para o desvelamento das práticas
escolares como práticas culturais. Para tanto, é importante identificar as chamadas
fontes culturais, isto é, textos menos formais, testemunhas indiretas das disciplinas e
cultura escolar e que, segundo Júlio Aróstegui, são definidas como aquelas escritas,
faladas, simbólicas ou audiovisuais que transmitem uma mensagem em linguagem mais
ou menos formalizada68
.
Ainda que no Amazonas seja lamentável a situação das instituições responsáveis
pelo arquivamento das fontes para História da educação, as poucas sobreviventes,
mesmo sem garantir a construção de quadros sinópticos, ainda podem permitir a
ampliação das questões a serem formuladas69
. Da compulsão de dados nos arquivos das
escolas, por exemplo, podem emergir livros de ocorrência nos quais se anotam os
desvios de comportamentos e as irregularidades cometidas pelos alunos; diários de
classe em que professores fazem os registros dos conteúdos e práticas efetuados nas
aulas; programas preparatórios para ingresso nas escolas; regulamentos escolares que
definem condutas e comportamentos para funcionários e alunos; atas de reunião dos
grêmios; diários oficiais nos quais são publicadas as punições aos infratores das regras.
A utilização dessas informações ajuda na identificação das formas como a cultura
escolar interage com as disciplinas.
Os jornais estudantis são outras opções de fontes culturais úteis nesse processo.
Eles publicam uma ampla variedade de assuntos do cotidiano escolar: desempenhos
esportivos, brincadeiras e piadas exclusivas daquele círculo, críticas literárias e poesias
escritas por alunos e professores, a “vida social” dos alunos, relatos das práticas
67
Ibdem, pp. 19 – 24.
68 J. ARÓSTEGUI, A Pesquisa Histórica: Teoria e Método, p. 500.
69 Nesse sentido, não diferem em nada das demais instituições públicas estaduais que mostram, ano
após ano, governos após governos, despreparo e desinteresse em lidar com a guarda, organização e preservação do passado inscrito nos documentos: descartes aleatórios, alocação em lugares impróprios, desorganização arquivística e restrições infundadas ao trabalho dos pesquisadores. Resta-nos, porém, as alentadoras palavras de J. MAGALHÃES, Contributo para a história das instituições educativas – entre a memória e o arquivo, p. 71: A memória de uma instituição é, não raro, um somatório de memórias e de olhares individuais ou grupais. É neste vai-e-vem entre a memória e o arquivo que um historiador constrói uma hermenêutica e um sentido para seu trabalho. Um sentido para a história das instituições escolares.
escolares em atividades extracurriculares como horas cívicas e festivais. Ao lado dos
relatos memorialísticos, eles podem também concorrer para estabelecer as relações entre
cultura e disciplinas escolares.
As teses defendidas para ocupar cátedras nos colégios, as apostilas, os livros
didáticos e aqueles cuja finalidade inicial não era didática, enfim, os impressos
pedagógicos utilizados pela História ensinada podem nos ajudar a reconstituir tanto a
autonomia entre os saberes escolares e acadêmicos quanto discernir como os conteúdos
foram utilizados para inculcar crenças, valores e comportamentos adequados ao Estado.
Os cadernos de alunos, os troféus e/ou medalhas de honra ao mérito, os
mobiliários e recursos didáticos, a própria arquitetura colegial original expressa em
plantas baixas, as fotografias do cotidiano escolar, apesar de serem sobreviventes ainda
mais raras, são importantes recursos para compor partes de um quadro sobre os
processos educativos locais.
Estas balizas teórico-metodológicas aqui descritas foram escolhidas para
construção de uma alternativa elucidativa ao problema proposto. O passo seguinte é
pensar no cenário político-educacional no qual a cultura escolar moldou-se nos anos
trinta do século vinte.