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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
O ENSINO DE GÊNERO E SEXUALIDADE NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES
Beliza Stasinski Lopes1
Resumo: O presente artigo visa investigar a educação de gênero e sexualidade no processo educativo, evidenciando a
necessidade de trabalhar esse tema na formação de professores e de professoras e sua inserção no currículo escolar,
tendo em vista que seu objeto de estudo se constitui enquanto um problema social. Traz autores como Engels (1996) e
Scott (1995) que têm uma perspectiva própria das relações de gênero na sociedade. Além disso, busca-se um enfoque na
construção de valores no processo educativo e a incorporação desses valores como visões sociais de mundo pelo
indivíduo através da educação. O campo da pesquisa aconteceu em 2015 e 2016, na prática docente da formação de
professores (as) de uma escola pública de ensino médio e profissionalizante de Encruzilhada do Sul, no trabalho
realizado pelas disciplinas de Sociologia e Sociologia da Educação através do tema gênero e sexualidade.
Palavras-chaves: gênero, sexualidade, educação e valores.
INTRODUÇÃO
A inserção do tema “gênero e sexualidade” no currículo do ensino médio e curso normal
aconteceu recentemente, mais especificamente depois de 20082, através da disciplina de Sociologia,
em um momento em que os livros didáticos da disciplina começaram a apresentá-lo como um
conteúdo específico, mais do que um tema transversal nos conteúdos. É importante dizer, que a
Sociologia, aprovada como componente curricular pela Lei nº11.684/2008, deixou de ser
obrigatória a partir da Reforma do Ensino Médio, realizada em 2017, pelo Governo de Michel
Temer. Nesse sentido, temos um currículo em disputa. E essa disputa é visível no próprio processo
pedagógico, no qual se revelam posicionamentos divergentes sobre o tema enquanto objeto do
conhecimento.
Nesse sentido, perguntamos: estudar gênero e sexualidade é legítimo, essa construção do
conhecimento é socialmente válida? Atores sociais se digladiam na cena política em torno dessa
questão, da mesma maneira que educadores (as) enfrentam e apresentam sua proposta de trabalho
curricular com a inclusão de gênero e sexualidade. Concebemos a construção do conhecimento
como um território em disputa, e a obliteração da disciplina de sociologia, em 2017, pela Reforma
do Ensino Médio faz parte desse processo. No entanto, não é possível, simplesmente, dar marcha ré
na história e apagar conquistas obtidas pelo movimento de mulheres em defesa de seus direitos e do 1 É estudante de Mestrado Acadêmico na Universidade de Santa Cruz do Sul, Rio Grande do Sul. Formada em Ciências
Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, bacharel e licenciatura, em 2009 e 2012. Orientanda da Prof.
Drª Cheron Zanini Moretti, no Programa de Pós-Graduação em Educação da UNISC. Professora da rede pública
estadual do Rio Grande do Sul. Mora em Encruzilhada do Sul, RS, Brasil. E-mail: [email protected] 2 A Lei nº 11.684/08 altera o art. 36 da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da
educação nacional, para incluir a Filosofia e a Sociologia como disciplinas obrigatórias nos currículos do ensino médio.
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debate de gênero. Assim como do movimento de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e
Transexuais (LGBTT), quanto ao gênero e a sexualidade. Existe um processo de consolidação tanto
do tema, como da disciplina, no momento em que é produzido sistematicamente conhecimento a
partir da categoria de análise “gênero” na sociedade e a consciência do “ser social” avançou. E esse
conhecimento não surge de debates apenas acadêmicos, apesar deste serem fundamentais, surge de
uma necessidade do movimento da própria História, e está em permanente diálogo com a realidade,
visualizando as suas contradições e, em última instância, denunciando a opressão. Dizia Marx
(1982) que não basta interpretar a realidade, é preciso transformá-la. Essa mensagem também está
colocada aos estudos de gênero da atualidade. E, é por isso, que esse tema é tão desafiador- a luta
por espaço e legitimidade que está posta na sociedade brasileira faz parte do movimento de ascenso
e dissenso da classe trabalhadora e dos grupos sociais subalternizados, e seu processo de
consciência sobre as opressões específicas que experenciam.
Compreende-se, assim, que o alcance da discussão sobre gênero através de sua inserção no
currículo do ensino médio e curso normal é determinado pelas oscilações da luta de classe e os
arranjos da política nacional e, pontua-se que a sua aplicação enquanto conceito analítico não se
limita apenas a uma única classe social, tendo em vista que todas as classes sociais presenciam
internamente as contradições da opressão e da desigualdade de gênero. No entanto, considera-se
que a radicalidade desse debate, só é possível quando se toma a perspectiva dos (as) trabalhadores
(as), tendo em vista que esses (as), além de se constituírem enquanto maioria, presenciam a forma
de opressão e discriminação mais aguda e, na maioria das vezes, o seu lado mais perverso.
Estudar gênero e sexualidade com estudantes de ensino médio da escola pública, tem sido
uma experiência rica, conflitiva e sobretudo emancipadora, na qual foi possível identificar
realidades diversas e fazer educação numa perspectiva popular em que podemos valores ou visões
sociais de mundo utópicas (LOWY, 1991) que possibilitem lutar pelo fim da exploração e opressão
concatenadamente.
‘Estudar gênero com o curso normal, é atuar na formação de professores (as), tendo a
possibilidade de fazer chegar a educação crítica e não sexista até a educação infantil e séries
iniciais, onde está a base da formação, contribuindo para uma formação não machista e não sexista.
Por isso, seguem, as reflexões e abordagens teóricas que se apresentaram na experiência vivida, em
seu processo educativo.
O campo da pesquisa aconteceu em 2015 e 2016, na prática docente da formação de
professores (as) em uma escola pública do município de Encruzilhada do Sul, no trabalho realizado
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pelas disciplinas de Sociologia e Sociologia da Educação através do tema gênero e sexualidade. A
metodologia de pesquisa tem como base a pesquisa-ação, que tem como objetivo ser uma
sistematização da reflexão que gira em torno do processo educativo na tentativa de transformá-lo.
Segundo Tripp (2005), a pesquisa-ação pode ser definida como toda tentativa continuada,
sistemática e empiricamente fundamentada de aprimorar a prática.
GÊNERO E SEXUALIDADE NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE PROFESSORAS?
É necessário se despir de preconceitos para fazer uma educação cada vez mais humana,
aberta às experiências múltiplas. Por isso, deve-se investigar a base da opressão, conhecê-la para
que através da reflexão crítica e da prática educativa possamos contribuir na sua superação,
discutindo a diversidade e o seu convívio, e fazendo emergir as contradições provenientes da
realidade. Pois, essa tem sido uma prerrogativa daqueles educadores (as) que não se conformam
com a realidade dada e fazem da sua prática pedagógica um instrumento de reconhecimento das
diferenças e de luta por igualdade.
Neste processo de disseminação deste tema nas agendas de pesquisa, de introdução do tema
no livro didático, também surge a necessidade de qualificar docentes para garantir o seu estudo no
currículo de todos os níveis escolares. Dessa maneira, se coloca a importância de estudar gênero e
sexualidade no currículo escolar.
Como mencionado, o presente trabalho traz uma abordagem sobre a problemática do ensino
das relações de gênero e sexualidade na formação de professores e de professoras. Para isso,
pergunta-se: como os (as) educadores (as) têm atuado frente as relações de gênero no ambiente
escolar? Ainda: reproduzem os velhos padrões de divisão sexual do trabalho? Ou, por fim: as
práticas educativas comtemplam e problematizam as diferenças de identidades sexuais existente em
sala de aula e na sociedade?
Tem-se como hipótese que a abordagem do tema promove uma ruptura de paradigma na
formação de professores (as). Pois, além de representar algo novo no currículo (e, não nas lutas dos
movimentos de mulheres e LGBTTs) promove a quebra de um ciclo reprodutivo de relações sociais
e políticas na medida em que oferece uma nova perspectiva para a construção do conhecimento,
diferente das existentes que se situam entre o ideal heteronormativo e o masculino. Isso se expressa,
no “simples fato”, do tema circular como um problema, como algo que merece e precisa ser
abordado, e obviamente pela reflexão gerada em torno dele.
No trabalho pedagógico, a respeito do tema que aborda a opressão de gênero, é importante
demonstrar, primeiramente, que não se trata de uma categoria de análise deslocada da realidade,
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pois constitui-se enquanto um problema social que tem gerado um conjunto de desigualdades e
violências que podemos identificar e denominar da seguinte maneira: a violência contra a mulher, a
homofobia, a transfobia, a violência doméstica, o assédio sexual, a violência sexual, desigualdade
econômica, entre outros.
Nesse sentido, é importante, enquanto objeto de pesquisa estudar a escola, o ambiente
escolar e suas relações, pois este é um espaço de reprodução das relações estruturais da sociedade.
Segundo Bourdieu apud Freitag (1986)
,
O sistema educacional é visto como uma instituição que preenche duas funções estratégicas
para a sociedade capitalista: a reprodução da cultura [...] e a reprodução da estrutura de
classes. Uma das funções se manifesta no mundo das representações simbólicas ou
ideologia, a outra atua na própria realidade social. (FREITAG, 1986. p. 24).
Na escola ocorre parte do processo de socialização dos seres em formação, onde aprende-se
uma maneira de ser e de agir que serão fundamentais no aprendizado na vida. Segundo Gramsci
apud Freitag (1986 p.37), na sociedade civil, “a dominação se expressa sob a forma de hegemonia”.
Nesse sentido, entende-se que na escola pode-se apreender também uma perspectiva contra
hegemônica e as reflexões sobre as relações de gênero se inserem nesse contexto, salientando que
estas não se limitam ao ambiente escolar, mas permeiam toda a vida do sujeito, desde de sua
formação primária até a inserção nos mais diferentes espaços da sociedade. Por isso, a necessidade
de trabalhar esse tema associado a perspectiva da construção de novos valores ou visões sociais
utópicas de mundo- para usarmos uma expressão de Lowy3 (1991) para identificar as relações
sociais de uma realidade ainda não existente, emancipadas.
O ensino-aprendizagem sobre a questão de gênero solicita uma busca sobre a origem sócio
histórica do problema, ou pelo menos, uma busca sobre as primeiras formulações da questão teórica
sobre a opressão de gênero. Nesta busca, encontramos em Engels (1996) um relevante aporte. A
contribuição deste autor, que está eminentemente ligada a obra de Karl Marx (1995), encontra-se na
obra “A origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado” de 1884. Com ela, Engels (1996)
pautou a dominação de classe e a opressão da mulher dizendo que essas estão estritamente ligadas e
também imbricadas na origem da propriedade privada sob a forma em que a conhecemos
atualmente. Esse artigo estabeleceu um marco teórico pelo qual foram realizados vários estudos
3 Segundo Lowy (1991, p.14) “visões sociais de mundo seriam, portanto, todos aqueles conjuntos estruturados de
valores, representações, ideias e orientações cognitivas esses unificados numa perspectiva, por um ponto de vista social,
de classes sociais determinadas”.
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sobre o tema da opressão da mulher na sociedade até chegar a problematização sobre o conceito
gênero, como evidência Haraway (2004), em seu artigo: Gênero, para um dicionário marxista.
Outra contribuição fundamental para os estudos de gênero é a da historiadora Joan Scott
(1995). Ela é uma pesquisadora norte-americana e uma das precursoras na introdução da categoria
gênero para o estudo da sociedade. Compreendeu o gênero da seguinte maneira: “um elemento
constitutivo de relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero
é uma forma primária de dar significado às relações de poder” (Scott, 1995, p.106). Acrescenta
que é importante desmistificar o papel do homem e da mulher que consistem em construções sociais
e, por isso, são históricas. As diferenças biológicas não são necessariamente determinantes, assim
como a oposição binária que ocorre entre um sexo e outro deve ser desconstruída, colocando em
questão tanto a noção de oposição quanto a de identidade.
Para pensar a atualidade da questão de gênero se buscou, ainda, a contribuição de Louro
(2007) que diz “é relevante refletir sobre as possibilidades e as impossibilidades que essa cultura
coloca para a sexualidade” (Louro, 2007, p.35). E traz para a reflexão como estão regulados hoje as
normas que vigiam os sujeitos na forma que experimentam prazeres e desejos. Essa abordagem nos
permite aproximar o olhar crítico sobre a escola, que consiste em um espaço altamente normativo e
as relações estabelecidas nesse ambiente e, sobretudo, torna-se importante quando observamos as
relações juvenis que são permeadas pelos estímulos da própria sexualidade.
GÊNERO E SEXUALIDADE: QUAL EDUCAÇÃO?
Para abordar gênero e sexualidade na formação de professores (as), é preciso saber qual a
concepção de educação sob qual estamos trabalhando. É importante destacar que conscientemente
ou não todos nós educadores (as) temos uma concepção de educação. Ela pode ser tradicional,
liberal, bancária, construtivista, popular e emancipatória, entre outras. Acontece que, normalmente,
buscamos nos enquadrar numa ou em outra, ou até mesmo em mais de uma. É importante conhecê-
las para saber quais são os pressupostos teórico-metodológicos que orientam nossa prática
pedagógica. Permite, também, uma reflexão mais profunda sobre o que fazemos ou faremos em sala
de aula, por isso as disciplinas de filosofia da educação no currículo do Curso Normal são tão
importantes.
Em relação a perspectiva estudada na educação tradicional, certamente o debate de gênero e
sexualidade atual, representa algo contraditório, tendo em vista que ocorre uma reprodução dos
valores defendidos de uma educação sexista, na qual o sexo masculino e o feminino se constroem
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em oposição contínua, sendo um deles o detentor do poder no universo de relações. Qualquer
prática que reproduza essa lógica dominante e crie condições para sua reprodução, definitivamente
reproduz o senso comum e não cria condições para sua transformação.
Contrapondo a esta perspectiva temos a da educação emancipadora que parte do pressuposto
que, nós educadores (as) devemos ser intermediários de um processo reflexivo que leve a
permanente crítica da realidade, de sua opressão e desigualdade, que nos faça mais abertos ao
diálogo, mais humanos na compreensão e solidariedade aos outros. Ou seja, agentes de uma
educação para a liberdade.
É interessante entender o processo educativo como um processo contínuo de construção de
saberes e de sujeitos. E importante delimitar nossa prática social dentro de um determinado
contexto social, econômico e político, em que reflete nossa prática pedagógica. Muitas coisas são
“herdadas” da educação tradicional, mas que, no entanto, não deixam de serem pautadas pela
própria dinâmica da sociedade. Nesse sentido, usufruímos de conquistas que foram resultado de
lutas sociais, como a conquista do sufrágio universal, a possibilidade de as mulheres estudarem,
entre outras. Algumas outras formas de emancipação que dizem respeito ao direito da mulher de
decidir sobre seu corpo, e a não violência sexista, ainda são problemas sociais não resolvidos.
Na perspectiva da educação emancipadora o papel do educador (a) tem sido sobretudo
transformador, na medida que em sua prática educativa não fomente o sexismo, o machismo e o
ódio de qualquer orientação sexual e diversidade de gênero. Como por exemplo, separar funções
sociais, objetos, brincadeiras, bem como comportamentos e características pela clivagem de sexo,
significa reproduzir um padrão de tipos emocionais e comportamentais que criam uma sociedade
desigual, excludente e opressora.
Isso nos leva a refazer a pergunta inicial. Por ser a opressão de gênero um problema social
devemos estudar gênero na formação de professores (as)? Isso só será necessário, a partir do
momento em que se objetiva transformar as relações sociais e agressões físicas que sofrem milhares
de mulheres no mundo inteiro, vítimas de uma cultura de violência e da violência sexual, também
conhecida como a “cultura do estupro”, talvez esses sejam os problemas mais graves e visíveis,
mas também, merece destaque, a desigualdade econômica, tendo em vista, que a maioria dos pobres
do mundo são mulheres, acrescentasse a isso, vivemos em um mundo em que espaços de poder e
decisão ainda pertencem eminentemente ao sexo masculino.
Existe uma ideologia que produz e reproduz essa realidade, a sua base está, segundo Engels
(1996), na noção e no conceito de propriedade privada que nasce junto a sociedade de classes. Essa
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teoria defende que a mulher passa a ser vista como uma propriedade que fornece força de trabalho
barata para o sistema capitalista de produção. Para Engels (1996), acabar com a opressão contra as
mulheres significa romper com esse conceito de propriedade que intensificou a opressão específica.
No entanto, questiona-se qual o papel da educação nesse processo? A educação em si não propõe
rupturas, ela é um processo que dialoga diretamente com o sujeito e com as visões sociais de mundo
ideológicas da sociedade.
A educação é prática social e, como tal, constitui-se na principal forma de construção
cultural. Através dela as sociedades se criam e se reproduzem essa educação pode ser conservadora
ou transformadora, se conservadora ela não incorpora o debate de gênero, elas tomam para si a
ideologia dominante, e reproduzem a opressão de gênero e sexualidade, esta perspectiva tem sido
hegemônica na educação tradicional desde seus primórdios.
A educação transformadora ou crítica está presente no processo educativo nos seus mais
diferentes níveis, através de movimentos de educação, de perspectiva teórico-metodológicas, da
prática de educadores de forma coletiva ou isolada que continuamente ou em algum momento da
sua profissão promoveram processos educativos libertadores.
O conceito de Gramsci (1985) de hegemonia e contra hegemonia retrata de forma mais
precisa esse quadro que foi referido acima, se considerado que os educadores (as) são agentes em
um processo de construção cultural e sua prática educativa é fundamental para um processo de
mudança na sociedade. Afinal, é uma minoria que olha e age ante aos problemas sociais e não quer
sua transformação, isso está determinado basicamente pelo interesse de classe e do nível de
consciência dos indivíduos dessa classe. O problema é que as instituições sociais que trabalham na
manutenção das opressões históricas são muito eficientes e quase que indestrutíveis. Ou seja, a
transformação da sociedade não é uma tarefa fácil, e nem para poucos, requer um esforço num dado
processo histórico.
O conceito de gênero enquanto categoria ativa na história, é instrumento de análise. No
entanto, e sobretudo, é categoria de ação, a medida que orienta um conjunto de práticas educativas e
sociais. Por isso, vamos analisar um trabalho concreto de conscientização, e problematização das
relações de gênero, voltando-nos ao ambiente escolar.
O CAMPO EMPÍRICO – GÊNERO NA SALA DE AULA
Nos anos de 2015 e 2016, no nível do ensino médio e ensino normal profissionalizante,
incluiu-se no currículo escolar o tema gênero e sexualidade, numa escola de Encruzilhada do Sul,
Rio Grande do Sul. Em cada um dos três anos de ensino aconteceram diferentes formas de abordá-
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la. Vamos apresentar três situações específicas, referentes a cada um desses anos, com algumas
reflexões do trabalho realizado.
No primeiro ano, foi elaborada uma linha do tempo discutindo a evolução do conceito de
família e o papel da mulher dentro da mesma desde os tempos pré-históricos4. Essa atividade
pedagógica tinha como objetivo desnaturalizar a compreensão sobre família enquanto instituição
social (sempre) presente em nossas sociedades, além de atribuir um caráter histórico, e analisar que
o papel da mulher na sociedade, tendo em vista as transformações da família ao longo do tempo. Na
continuidade da discussão do tema, foi proposto que cada aluno (a) expusesse, em forma de texto, a
sua compreensão sobre o papel da mulher na sociedade atual, e os principais problemas que as
mulheres estão enfrentando, relacionando com aspectos como: família, trabalho, maternidade,
violências.
Através da leitura dos textos dos estudantes, pode-se perceber que, em geral, têm uma
perspectiva “positiva” sobre o papel da mulher na atualidade, atribuindo a sua inserção no mercado
de trabalho, como algo que “resolveu por si só” os problemas que elas enfrentavam no passado,
principalmente sobre a questão da liberdade e autonomia econômica, tendo em vista que as
mulheres se ocupavam, eminentemente do trabalho doméstico, não remunerado. A maioria dos
alunos (as) mostrou-se preocupada com a dupla jornada de trabalho realizada pelas mulheres. Neste
aspecto, apresentam estar cientes que as mesmas acumulam o trabalho doméstico e as atribuições da
maternidade- atividades de cuidado não-remuneradas, portanto, com trabalhos remunerados. Em
contrapartida, aspectos como a violência de gênero, a desvalorização do trabalho das mulheres e a
questão do aborto, não foram abordados como problemas. É interessante destacar, que um dos
trabalhos reproduziu preceitos de uma visão machista sobre as mulheres, ao firmar que: “algumas
mulheres merecem serem chamadas de vagabundas” e não “merecem o que têm”.
Depois de realizada a leitura dos textos, colocou-se o tema para discussão em sala de aula.
E, como resultado do debate em torno da questão, os estudantes concluíram que a) tratar
pejorativamente as mulheres constitui-se em uma das dimensões da opressão de gênero. E, b) que
os homens podem ter o mesmo comportamento que as mulheres e não recebem a mesma
denominação pejorativa. Assim, os alunos (as), após debate, consideraram que o texto reproduz a
expressão do machismo existente em nossa sociedade.
4 Neste momento foi realizada uma linha do tempo com a formas de família pré-monogâmicas, tal qual expõe Engels (1996) no Livro “A origem da família, da propriedade privada e do Estado”, salientando o Estado Selvagem, A barbárie, com as famílias consanguíneas, a família punaluana, a família pré-monogâmica até chegar a família monogâmica. O estudo possibilita visualizar que historicamente existiram outras formas de família, baseada em outras formas de organização da sociedade.
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A segunda atividade, acontece na turma de segundo ano, e tinha como objetivo conhecer a
categoria gênero. E o primeiro passo, consistiu em explicar a diferença entre identidade de gênero e
sexualidade, considerando que a primeira é uma construção social e histórica, entre se identificar
com o masculino e o feminino; e, a segunda é expressão de nossas vontades e desejos sexuais em
relação ao sexo oposto ou mesmo sexo. A partir dessa definição temos a constatação de diferentes
identidades de gênero e sexualidades na sociedade. Também foi problematizada a questão da
homossexualidade, em um dado contexto era concebida como doença.
Nesse momento, foi feita uma referência a uma diferença pautada pela sexualidade humana
que não tem garantido até nossos dias o direito a existência. A homossexualidade, até 17 de maio de
1990, era considerada uma doença mental pela Organização Mundial da Saúde (OMS), explicada
como uma “inversão congênita” que também podia ser adquirida, ou seja, algo que devia ser curado
e banido. Os indivíduos com esta orientação sexual não podiam exercer livremente sua sexualidade,
eram de forma mais contundente e, ainda são, reprimidos em grande parte por diversos pessoas.
Este quadro tem se alterado a partir de um processo organizativo dos movimentos reivindicatórios
por direitos e por autodeterminação, como o direito à livre orientação sexual, ou seja, pela
visibilidade. Se gerou, com isso, em sala de aula, uma reflexão sobre a questão. No entanto, foi
constatado que ainda ocorrem inúmeros casos de intolerância entre os (as) jovens.
A turma, exceto, um aluno, demonstrou descontentamento em estudar a temática da
sexualidade, influenciado pela questão religiosa. Os demais foram muitos (as) receptivos (as) ao
conteúdo e demonstraram grande interesse em estudar o assunto, realizaram uma atividade de
debate em que chegaram à conclusão que as várias formas de identidade de gênero e sexualidade
devem ser respeitadas, e que o entendimento dessas expressões sexuais como doença é preconceito
de uma sociedade que não consegue lidar com a questão.
E, por fim, a terceira atividade que, também, aconteceu através de um debate. Porém, o
mesmo foi organizado entre as turmas de terceiros anos e dentro do tópico sobre movimentos
sociais. Nesse debate, duas alunas expuseram os motivos da existência e a necessidade do
feminismo, abordando questões como o aborto e a autonomia da mulher em decidir sobre seu corpo,
as propagandas da mídia que exploram ideais de beleza feminina, as causas da violência contra a
mulher e a construção social do ser mulher e ser homem. O debate ocorreu com a colaboração de
um grande número de alunos (as) e foi muito enriquecedor.
A conclusão a que se chega com esses dois anos em que se abordou o tema gênero e
sexualidade, é que se pode, além de informar os alunos (as) sobre questões relacionadas a
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sexualidade humana, debater temas importantes para a compreensão deles da sociedade em que se
vive, e também formar opiniões críticas em relação ao debate atual sobre a opressão específica de
gênero.
Encontrou-se resistências, pautadas pela questão política e religiosa. Mas, a receptividade
foi maior que a resistência. Da mesma forma, prevaleceu uma vontade de saber e tomar posição
sobre os assuntos levantados.
Também, encontrou-se alguns estudantes que não quiseram estudar gênero, alegando ser
ideológico, teve-se que parar a discussão do tema na turma, devido ao conflito gerado em torno da
questão, mais tarde um grupo de meninas na turma voltou a apresentar esse debate através de um
seminário de movimentos sociais, em que foi apresentado o movimento feminista.
Por isso, volta-se a pergunta inicial, se é legitimo estudar esse tema enquanto conhecimento
socialmente válido, as oposições a isso têm aparecido em muitas instâncias do debate, inclusive na
sala de aula. No entanto, o estudo sobre o tema, tem sido conflitivo, mas compensador. Entendido o
conflito, como uma das dimensões do surgimento do novo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Temos um acúmulo teórico sobre gênero e sexualidade que foi construído inicialmente a
partir das lutas sociais, ganhou as ruas com a manifestação de demandas sobre questões sociais,
como o sufrágio universal no início do século XX, o maio de 1968 e a libertação sexual nos anos
1960, a luta por valorização do trabalho feminino e pelo fim da opressão a livre orientação sexual
iniciada no século XX. Todas essas lutas sociais têm como sustentação teórica um conjunto de
elaborações construído, principalmente, por intelectuais orgânicos que trouxeram uma outra
perspectiva para a prática docente e o processo educativo.
Pareceno-nos extremamente contraditório, hoje em dia, falar em educação sem pensar na
perspectiva de mudança social e cultural, sem pensar seriamente nas identidades dos sujeitos
envolvidos, seja na sua identidade sexual ou de gênero. Não somos iguais, trazemos em nós
diferenças, sejam elas por determinação biológicas, culturais ou sociais. As identidades que
sustentamos são parte de uma multiplicidade de condicionamentos sociais e históricos. Entender a
sexualidade e o gênero como uma questão não apenas puramente biológica e natural, mas uma
questão eminentemente social requer pensar a nossa responsabilidade como indivíduos históricos,
como educadores (as) sobre a construção dessa identidade e da relação que estabelecemos com a
sexualidade.
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Por isso, é necessário pensar o papel da escola, não apenas como um reflexo das relações
sociais, mas como construtora de um pensar crítico sobre nós mesmos, sobre nossas relações sociais
de gênero e sexuais. O educador (a) coloca-se enquanto referência para o conjunto de estudantes
com os quais aprende e ensina. Nesse sentido, sua concepção de mundo, seu conjunto de valores irá
influenciar diretamente na percepção e no processo de construção de identidade desses estudantes.
As diretrizes do um trabalho pedagógico que irá influenciar a prática docente deste (a) futuro
educador (a) deve conter a demanda de uma educação sexual, que perpasse todos os níveis de
ensino, concatenado com a formação sobre gênero, que por um lado pense a identidade relacional
do indivíduo em formação e por outro procure combater as práticas, regras, normas e valores de
uma sociedade desigual e injusta-ideológica, de objetificação e coisificação da mulher.
Estamos falando de uma ideologia dominante que está enraizada no nosso processo cultural,
entendido como aquilo que é um acúmulo de estruturas sociais e de identidade do grupo humano, e
que, portanto, não é facilmente mutável, para isso exige-se uma quebra paradigmática e um
conjunto de esforços coletivos, inclusive de instituições para que isso possa ser superado. No
entanto, como aponta Engels (1996) este não é um processo apenas cultural, e sim requer a
superação de leis econômicas quase inquebrantáveis da sociedade.
O educador (a) deve ter noção de sua importância quando reconhece que sua tarefa é muito
mais que reproduzir lições de sua área de formação, mas trabalhar com uma pessoa em formação de
consciências, que seu exemplo, serve como referência para a construção de práticas e ações futuras,
e que portanto deve estar preparado não só para lidar com questões e demandas que surgem no fazer
pedagógico, mas pautar questões estratégicas que dialogam com os problemas que a sociedade
ainda não conseguiu resolver, e que depende estrategicamente da educação.
Nesse sentido, para concluir, pensa-se a formação de professores e de professoras a respeito
de gênero e sexualidade enquanto uma prática que orienta valores emancipatórios, que por sua vez
estarão colaborando para a construção de identidade que promovam um conjunto de práticas e ações
de uma sociedade futura, que supere a opressão sexual e a desigualdade de gênero.
Referências
ENGELS. Friedrich. A origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. São Paulo: Editora
Escala. 1996
FREITAG. Barbara. Escola, Estado e Sociedade. Sexta ed. São Paulo: Editora Moraes. 1986.
GRAMISCI. Antônio. Os intelectuais e a organização da cultura. Tradução Carlos Nelson
Coutinho. 5º edição. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira S.A. 1985.
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THE GENDER AND SEXUALITY EDUCATION IN TEACHER TRAINING ABSTRACT
ABSTRACT: This article investigates gender and sexuality education in the educational process,
emphasizing the need to work this issue in teacher education and school curriculum, given that its
subject matter is constituted as a social problem. Brings authors like Engels, Scott and Bourdieu has
their own perspective of gender relations in society. And seeks a focus on building value in the
educational process, and the incorporation of these values by the individual through education. The
research for this study was carried out between the years 2015 and 2016 the State Institute for
Teacher Training Education Gomercinda Dornelles Fontoura in South Crossroad, the work done by
the discipline of Sociology and Sociology of Education with (the) students (as) the teaching through
the theme of gender and sexuality.
Keywords: gender, sexuality and values.