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1 IMPACTOS DA FORMAÇÃO EM GÊNERO E SEXUALIDADE ENTRE ESTUDANTES DE ENSINO MÉDIO EM SANTA CATARINA 1 Natan Schmitz KREMER 2 Tânia WELTER 3 Miriam Pillar GROSSI 4 RESUMO: Apresentaremos os resultados de pesquisa cujo objetivo foi conhecer as trajetórias (VELHO, 2013) e experiências (SCOTT, 1999) de estudantes vinculados a escolas públicas participantes de projetos de Iniciação Científica no Ensino Médio (PIBIC EM/CNPq) em duas universidades públicas de Santa Catarina. Os projetos PIBIC EM foram realizados na Universidade Federal de Santa Catarina (Campus Florianópolis) e na Universidade Federal da Fronteira Sul (Campus Chapecó) entre 2010 e 2014, envolvendo vinte estudantes (onze meninas e nove meninos, entre 14 e 17 anos) de escolas públicas, grande parte pertencente às camadas populares (FONSECA, 1994). Estes projetos pioneiros de formação científica em escolas publicas objetivavam introduzir estudantes de Ensino Médio em atividades de Iniciação Científica no campo da Antropologia e nos Estudos de Gênero. A partir das narrativas de vida, verificou-se que a participação nos projetos PIBIC EM promoveram mudanças significativas na trajetória educacional de jovens estudantes. A participação no projeto permitiu a aproximação deles com a universidade e a produção de conhecimento cientifico e foi um incentivo para a continuidade dos estudos universitários. Observou-se também uma mudança na visão de mundo (VELHO, 2013) destes estudantes, a partir do contato, convivência e reflexão teórica sobre a temática das diferenças e da diversidade. Concluímos que os dois projetos empoderaram estudantes LGBT que encontraram ali apoio para travar resistência frente às diversas formas de homo-lesbo-transfobia, vivida em suas experiências escolares, sociais e familiares. PALAVRAS CHAVE: Iniciação Científica no Ensino Médio; políticas públicas para educação, gênero, sexualidades. 1 Agradecemos o apoio financeiro da FAPESC/CNPq, via projeto Antropologia, Gênero e Educação em Santa Catarina e do CNPq, via projeto Feminismo, Ciências e Educação: Relações de Poder e Transmissão de Conhecimentos, além de bolsas de extensão (PROBOLSAS/UFSC) ofertadas pela Pró- Reitoria de Extensao da Universidade Federal de Santa Catarina, via Projeto Papo Sério. 2 Estudante do curso de graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Santa Catarina. Bolsista de Iniciação Científica vinculado ao projeto Teoria Crítica, Racionalidades e Educação IV, do Núcleo de Estudos e Pesquisas Educaçao e Sociedade Contemporanea (CED/UFSC). Email: [email protected] 3 Doutora em Antropologia Social. Pós-doutoranda vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina. Pesquisadora do Núcleo de Identidades de Gênero e Subjetividades (NIGS-UFSC). Email: [email protected] 4 Doutora em Antropologia e Etnologia (Universidade de Paris V). Professora Titular do Departamento de Antropologia Social da UFSC. Coordenadora do Núcleo de Identidades de Gênero e Subjetividades (NIGS-UFSC). Email: [email protected]

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1

IMPACTOS DA FORMAÇÃO EM GÊNERO E SEXUALIDADE ENTRE

ESTUDANTES DE ENSINO MÉDIO EM SANTA CATARINA1

Natan Schmitz KREMER2

Tânia WELTER3

Miriam Pillar GROSSI4

RESUMO: Apresentaremos os resultados de pesquisa cujo objetivo foi conhecer as

trajetórias (VELHO, 2013) e experiências (SCOTT, 1999) de estudantes vinculados a

escolas públicas participantes de projetos de Iniciação Científica no Ensino Médio

(PIBIC EM/CNPq) em duas universidades públicas de Santa Catarina. Os projetos

PIBIC EM foram realizados na Universidade Federal de Santa Catarina (Campus

Florianópolis) e na Universidade Federal da Fronteira Sul (Campus Chapecó) entre

2010 e 2014, envolvendo vinte estudantes (onze meninas e nove meninos, entre 14 e 17

anos) de escolas públicas, grande parte pertencente às camadas populares (FONSECA,

1994). Estes projetos pioneiros de formação científica em escolas publicas objetivavam

introduzir estudantes de Ensino Médio em atividades de Iniciação Científica no campo

da Antropologia e nos Estudos de Gênero. A partir das narrativas de vida, verificou-se

que a participação nos projetos PIBIC EM promoveram mudanças significativas na

trajetória educacional de jovens estudantes. A participação no projeto permitiu a

aproximação deles com a universidade e a produção de conhecimento cientifico e foi

um incentivo para a continuidade dos estudos universitários. Observou-se também uma

mudança na visão de mundo (VELHO, 2013) destes estudantes, a partir do contato,

convivência e reflexão teórica sobre a temática das diferenças e da diversidade.

Concluímos que os dois projetos empoderaram estudantes LGBT que encontraram ali

apoio para travar resistência frente às diversas formas de homo-lesbo-transfobia, vivida

em suas experiências escolares, sociais e familiares.

PALAVRAS CHAVE: Iniciação Científica no Ensino Médio; políticas públicas para

educação, gênero, sexualidades.

1 Agradecemos o apoio financeiro da FAPESC/CNPq, via projeto Antropologia, Gênero e Educação em

Santa Catarina e do CNPq, via projeto Feminismo, Ciências e Educação: Relações de Poder e

Transmissão de Conhecimentos, além de bolsas de extensão (PROBOLSAS/UFSC) ofertadas pela Pró-

Reitoria de Extensao da Universidade Federal de Santa Catarina, via Projeto Papo Sério. 2 Estudante do curso de graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Santa Catarina.

Bolsista de Iniciação Científica vinculado ao projeto Teoria Crítica, Racionalidades e Educação IV, do

Núcleo de Estudos e Pesquisas Educaçao e Sociedade Contemporanea (CED/UFSC). Email:

[email protected] 3 Doutora em Antropologia Social. Pós-doutoranda vinculada ao Programa de Pós-Graduação em

Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina. Pesquisadora do Núcleo de Identidades

de Gênero e Subjetividades (NIGS-UFSC). Email: [email protected] 4 Doutora em Antropologia e Etnologia (Universidade de Paris V). Professora Titular do Departamento de

Antropologia Social da UFSC. Coordenadora do Núcleo de Identidades de Gênero e Subjetividades

(NIGS-UFSC). Email: [email protected]

2

AMARRANDO CORDAS

Movimentos sociais e conhecimentos acadêmicos têm demandado ao estado

brasileiro há décadas mudanças nas legislações e criação de políticas públicas. A partir

deste conjunto de fatores e tendo como foco questões de gênero, sexualidade e étnico

raciais, observou-se no Brasil, a partir de 2003, a criação de secretarias especiais em

nível federal (exemplo, da Secretaria de Políticas para as Mulheres – SPM, a Secretaria

de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão - SECADI e a

Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial - SEPIR), além de inúmeras

políticas públicas, políticas de ações afirmativas (políticas de cotas para negros5, escola

pública, renda familiar), leis de combate às violências raciais e sexistas, entre outras.

Foram criados programas nacionais de formação continuada para educadores em gênero

e diversidade (sexual, étnico-racial) na escola (GDE), anti-homofobia (exemplo,

Programa de Combate à Violência e à Discriminação Contra GLTB e de Promoção da

Cidadania Homossexual, conhecido como “Brasil sem Homofobia”, entre outras

iniciativas como a criação do concurso de redações, artigos e projetos pedagógicos (do

Ensino Médio à Pós-Graduação) “Construindo a Igualdade de Gênero" (GROSSI, 2014;

FERNANDES, 2011, GESSER; MELLO; STUKER, 2014).

Observou-se também maior democratização do acesso à educação, criação ou

fortalecimento de programas de formação científica na educação básica. Um deles,

Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica no Ensino Médio (PIBIC EM),

é financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico

(CNPq) e tem o objetivo de “fortalecer o processo de disseminação das informações e

conhecimentos científicos e tecnológicos básicos, e desenvolver atitudes, habilidades e

valores necessários à educação científica e tecnológica dos estudantes”.

Essa estrutura estatal possibilitou a realização e financiamento de projetos

visando o questionamento de práticas discriminatórias nas escolas e fora dela,

investimento na formação de estudantes e educadores e no fortalecimento de uma

cultura para os direitos humanos. É o que observamos em projetos como o Papo Sério6.

5 Embora o termo seja masculino, estamos consideramos a presença de homens e mulheres. Evitamos a

utilização de “as/os” para que o texto não se torne demasiado cansativo, e não utilizamos marcadores de

neutralidade como “x” ou “@” por sabermos que são prejudiciais às pessoas que utilizam leitores digitais. 6 Projeto de extensão realizado desde 2007 pelo Núcleo de Identidades de Gênero e Subjetividades da

Universidade Federal de Santa Catarina. Com objetivo de problematizar as representações de gênero e

3

Este texto apresenta resultados da pesquisa "Trajetórias e experiências de

estudantes com bolsa PIBIC EM vinculados ao Projeto Papo Sério (UFSC) e ao Projeto

Antropologia, Educação e Diversidade (UFFS)”7 realizada ao longo de 2014. O projeto

teve como objetivo de conhecer as trajetórias (VELHO, 2013) e experiências (SCOTT,

1999) de estudantes que participaram de dois projetos de Iniciação Científica no Ensino

Médio (PIBIC EM/CNPq). O primeiro projeto PIBIC EM foi realizado em

Florianópolis pelo Núcleo de Identidades de Gênero e Subjetividades da Universidade

Federal de Santa Catarina e coordenado pelas professoras Miriam Pillar Grossi e Tânia

Welter. O segundo foi realizado pelo projeto Antropologia, Educação e Diversidade, na

Universidade Federal da Fronteira Sul, campus Chapecó, e coordenado pelas

professoras Tânia Welter e Maria Alice Canzi Ames.

No Papo Sério (NIGS/UFSC), o projeto foi realizado entre outubro de 2010 e

fevereiro de 2012, envolveu dez estudantes de ensino médio de cinco escolas públicas

da grande Florianópolis (sete homens, três mulheres), além de estudantes de graduação

e pós-graduação e professoras da UFSC. O projeto Antropologia, Educação e

Diversidade (UFFS) foi realizado entre fevereiro de 2013 e julho de 2014, envolveu dez

estudantes de ensino médio de quatro escolas públicas da cidade de Chapecó (dois

homens, oito mulheres), além de estudantes de graduação e professoras da UFFS.

Para conhecer os impactos dos projetos nas trajetórias destes estudantes, foram

realizadas entrevistas em profundidade, um grupo focal e conversas informais.

APORTE TEÓRICO

O Brasil é um país multicultural e plurireligioso desde antes do período da

colonização europeia (século XVI). As múltiplas formas de religiosidade (mesmo no

contexto do cristianismo) trazidas da Europa pelos conquistadores conviveram e

misturaram-se a crenças e práticas dos povos tradicionais e das múltiplas religiosidades

africanas trazidas com os transplantados por meio do tráfico para o Brasil

(MUSSKOPF, 2013; WELTER, 2007; MONTES, 2012; MAFRA, 2011). sexualidade com estudantes, professores e outros profissionais de escolas públicas da Grande

Florianópolis. Desde seu início, esses projetos envolveram e impactaram milhares de estudantes e

educadores. Reflexões sobre esse projeto podem ser encontradas em Mareli Graupe et al. (2011), Ariana

Sala e Miriam Grossi (2013). Informações sobre o NIGS e outros projetos podem ser encontradas em

www.nigs.ufsc.br. 7 Orientação Miriam Pillar Grossi, co-orientação Tânia Welter. Dados iniciais desta pesquisa podem ser

encontrados em KREMER; WELTER; GROSSI, 2014.

4

Buscando compreender os espaços escolares, Guacira Lopes Louro (1997)

afirma que esta se apresenta como produtora de diferenças, distinções, desigualdades,

definindo lugares adequados para cada tipo de pessoa: homens e mulheres, brancos e

negros, heterossexuais e gays/lésbicas. A escola seria, portanto, a criadora ou

reprodutora de comportamento normativo e teria poder normalizador. Em suas palavras,

“sob novas formas, a escola continua imprimindo sua “marca distintiva" sobre os

sujeitos. Através de múltiplos e discretos mecanismos, escolarizam-se e distinguem-se

os corpos e as mentes.” (LOURO, 1997, p. 62).

As diferenciações corpóreas também interferem nas experiências destes

estudantes que não preenchem as práticas e estéticas normativas reforçadas pela

estrutura escolar. Giancarlo Cornejo (2011), por exemplo, relata que teve seu corpo

patologizado pelo professor de educação física e a justificativa para tal ação era que não

seguia a norma corpórea da masculinidade hegemônica (GROSSI, 2004; CONNELL &

MESSERSCHMIDT, 2013).

A pedagogia do insulto (JUNQUEIRA, 2009), recorrentemente utilizada por

estudantes e profissionais da educação diante de pessoas que não se ajustam aos padrões

culturais de corporalidade hegemônica, expressão de gênero ou orientação sexual,

estimula a invisibilização e ocultação das diferenças, processo definido como pedagogia

do armário (JUNQUEIRA, 2009). Ao invés de problematizar as diferenças, insistem em

modelos específicos de sexualidade e gênero contribuindo para produção e controle da

heterossexualidade e de exclusão de outras vivências que não preenchem a hegemonia.

As violências interferem nas expectativas de sucesso e rendimento escolar,

produzindo intimidação e estigmatização, desinteresse, simulando comportamentos para

ocultar as diferenças e estimulando processos de evasão ou expulsão escolar (BENTO,

2011). Este processo tumultua a configuração, profissionalização e ocupação de espaços

das pessoas também em outros espaços coletivos (PERES, 2009, p. 245).

Consideramos que a escola pode ser o espaço da educação com vias ao respeito

às diferenças (GRAUPE E GROSSI (2014).

[a escola é] O espaço sociocultural em que as diferentes identidades se encontram, se

constituem, se formam e se produzem, portanto é um dos lugares mais importantes para

se educar com vias ao respeito e à diferença. Daí a importância de se formar

professores/as, orientadoras pedagógicas, gestoras e demais profissionais da Educação

5

Básica quanto aos conteúdos específicos das relações de gênero, étnico-raciais e da

diversidade de orientação sexual, para que saibam trabalhar com seus alunos e alunas

temas da diversidade em suas variadas formas e transversalmente. (GRAUPE &

GROSSI, 2014, p. 29).

Para concluir, além de ser uma instituição disciplinadora, reprodutora das

normatividades e, em especial, da heteronormatividade, vemos a escola como espaços

de transformação e democratização do conhecimento para todos os estudantes

CARACTERIZANDO INTERLOCUTORES

Apresentamos abaixo de forma esquematizada características que situam os

interlocutores8 do projeto de pesquisa "Trajetórias e experiências de estudantes com

bolsa PIBIC EM vinculados ao Projeto Papo Sério (UFSC) e ao Projeto Antropologia,

Educação e Diversidade (UFFS)".

Projeto Papo Sério

Nome e

instituição

Pertencimento

Étnico9

Estado

civil

atual

Pertencimento

religioso

Escolaridade Fonte dos

dados

Amanda10

Branca Solteira Estudante de

graduação em

Design IFSC

Conversa

informal

Carlos

Pardo Solteiro Igreja

Internacional

da Graça de

Deus

Estudante de

graduação em

Design UFSC

Entrevista

realizada em

junho de 2014

em Florianópolis

João

Solteiro Estudante de

graduação em

Direito UNISUL

Conversa

informal

Laura

Negra11

Solteira Assembleia de

Deus

Estudante de

graduação em

Design UFSC

Entrevista

Monica

Casada

mãe

Assembleia de

Deus

Concluiu o EM Conversa

informal

Pedro

Solteiro Concluiu o EM Conversa

informal

8 Disponível em: http://www.cnpq.br/web/guest/pibic-ensino-medio (visualizado em 18 de dezembro de

2014). 9 Referente aos estudantes que reencontramos para entrevistas, utilizamos a auto declaração destas

pessoas. No caso de estudantes para os quais não realizamos tal questionamento, utilizamos nossa leitura

fenotípica que, possivelmente, está equivocada frente ao auto reconhecimento destas pessoas. 10

Seguindo orientação antropológica (FONSECA, 2008), optou-se por utilizar nomes fictícios para

identificar estudantes-bolsistas que participaram da pesquisa. 11

Durante entrevista afirmou não saber como se autodeclarar. Ao fim, com os gravadores desligados,

envia-nos uma mensagem pelo Facebook: “Já sei, eu sou negra. É por causa do cabelo, eu acho”.

6

Projeto Antropologia, Educação e Diversidade

Nome Pertencimento

étnico

Estado

civil atual

Pertencimento

Religioso

Escolaridade Fonte dos dados

Ana

Branca Solteira Umbanda Ensino

Médio

incompleto

Grupo focal

realizado em

junho de 2014 em

Chapecó

Daniel Branco

Solteiro Assembleia de

Deus

Ensino

Médio

incompleto

Entrevista

realizada em

junho de 2014 em

Chapecó

Paula

Branca Solteira Católica Ensino

Médio

incompleto

Grupo focal

realizado em

junho de 2014 em

Chapecó

Stela

Branca Solteira Católica Ensino

Médio

incompleto

Grupo focal

realizado em

junho de 2014 em

Chapecó

A INICIAÇÃO CIENTÍFICA COMO FORMAÇÃO DE ESTUDANTES

Segundo os relatórios finais dos projetos (GROSSI; WELTER; FRÓES, 2012;

WELTER; AMES; LEWER, 2014), a formação científica dos bolsistas PIBIC EM dos

dois projetos ocorreu em espaços acadêmicos e outros através da participação em

grupos de estudos, oficinas, minicursos, debates de filmes, eventos científicos, leituras e

produções textuais, análises de filmes e documentários, realização de visitas a cursos de

graduação de diversas instituições, visitas a espaços das universidades, realização de

viagens de estudo, intercambio estudantil, participação como autores e apresentadores

de trabalhos em eventos científicos, realização de projetos de pesquisa e pesquisa de

campo, digitalização de trabalhos acadêmicos, transcrição de entrevistas, tabulação de

dados, produção de relatórios parciais e finais de pesquisas, dentre outras atividades de

iniciação à ciência.

ALGUMAS TRAJETÓRIAS TANGENCIADAS PELO PIBIC EM

Dos rendimentos escolares

Segundo os estudantes-bolsistas, as atividades realizadas nos projetos de

iniciação científica no ensino médio impactaram seu rendimento escolar. Estes afirmam

7

que passaram a ter mais facilidade na compreensão e produção de textos, foram

motivados a debater sobre o que aprendem e a aprofundar as pesquisas. Daniel, por

exemplo, afirma que se sentiu estimulado a pesquisar em livros, artigos científicos, em

aprofundar os conhecimentos e que se sente um pesquisador. Um dos processos

fundamentais para se chegar à condição de pesquisador foi, para este, fazer fichas de

leitura e resenhas.

A universidade como possibilidade

As pesquisas de Cláudia Fonseca (1994) em camadas populares demonstrou que

apesar de grande prestigio atribuído à educação formal, nem a realidade, nem o sonho

da instituição muda a vida das pessoas. Acredita-se na escola "como veículo de

ascensão socioeconômica", mas os mecanismos são mal-apreendidos e os "saberes

‘práticos’ são fornecidos pelo grupo social — família e bairro”, ficando a experiência

escolar como "iniciação esotérica a um clube social da elite" (1994:150).

No Projeto Papo Sério, grande parte dos estudantes-bolsistas do PIBIC EM,

foram estimulados a participar de processos seletivos para acessar a universidade.

Observou-se que nos anos de 2013 e 2014 metade dos estudantes (5) que participaram

do Projeto Papo Sério (UFSC) acessaram o ensino superior.

Questionados, destacam que o projeto PIBIC EM teve papel de centralidade na

decisão para seguir estudando. Compilamos abaixo um fragmento da entrevista

realizada com Carlos que explicita isto.

Pesquisador: Tu achas que foi um elo para tornar a universidade um espaço mais

possível para ti?

Carlos: Não foi um elo, foi o elo, assim, digamos, porque acima do desenvolvimento do

projeto, tudo mais, abriu minha mente para olhar a universidade não como um sonho

possível, mas como um algo possível, porque essa visão, ainda mais vinda de escola

que vem de comunidade, é a visão de simplesmente: "Ah, eu vou terminar o Ensino

Médio e com o Ensino Médio eu vou conseguir uma boa colocação no mercado de

trabalho", mas a gente sabe que hoje em dia não é assim, para qualquer coisa que tu vai

fazer tem que ter uma graduação, tem que ter um curso superior, então para mim, abriu

completamente esta visão. Eu tinha a visão muito limitada de "Ah, terminei o Ensino

Médio, vou procurar um serviço, um emprego, algo que eu consiga ganhar bem e

consiga ajudar minha mãe", não pensando em mim, não pensando em meu

desenvolvimento, e com o meu desenvolvimento ajudar minha família (...), e o projeto

me colocou dentro da universidade e eu vi que era uma coisa possível, que era assim

que iria me ajudar e que iria ajudar o meu futuro, então para mim teve este impacto tão

grande, abriu meus horizontes e fez eu enxergar que eu poderia ter um futuro aqui

dentro.

8

Importante destacar que cinco estudantes do projeto da UFSC não haviam

ingressado o ensino superior até 2014. As motivações conhecidas para isto são: uma

estudante casou e teve recentemente um filho; um estudante foi morar em São Paulo;

um estudante interrompeu os estudos para prestar serviço militar e não temos

informações sobre dois estudantes.

Carlos e Laura reconhecem-se como pardo e negra12

, respectivamente. Ambos

pertencem às camadas populares florianopolitanas e estavam vinculadas a religiões

evangélicas13

no momento da entrevista.

Em Chapecó, na experiência do projeto Antropologia, Educação e Diversidade,

todos os bolsistas se reconhecem como brancos, três bolsistas pertencem às camadas

médias de Chapecó, três foram introduzidas inicialmente à Igreja Católica, duas

frequentavam esta igreja e outra frequentava também a Umbanda com a mãe durante o

período da pesquisa. A maioria tinha o sonho de continuar estudando após finalização

do Ensino Médio, embora considerassem como possibilidade apenas ingressar em

instituição de ensino superior privada. Participar do PIBIC EM numa IES federal fez

com que considerassem a possibilidade de ingressar numa instituição e ensino superior

pública (federal, especialmente).

Curiosamente, a estudante parda e o estudante negro vinculados ao projeto Papo

Sério, e um estudante vinculado ao Projeto Antropologia, Educação e Diversidade,

ambos pertencentes às camadas populares e vinculados à instituições religiosas

evangélicas, não tinham o sonho de estudar em uma instituição de ensino superior antes

de ser bolsista PIBIC EM.

Estas narrativas diferem de Daniel, que pertence às camadas populares e estava

vinculado à uma igreja protestante histórica, a Assembléia de Deus, e não considerava a

possibilidade de cursar o ensino superior no momento da pesquisa. Perguntado, afirmou

que o projeto alterou esta expectativa.

Desta maneira, foi possível perceber o PIBIC EM realizado nas universidades

federais de Santa Catarina alterou os projetos de vida (VELHO, 2013) destes

estudantes, qualificando-os para um mercado de trabalho cada vez mais competitivo,

obtendo, assim, posicionamentos considerados melhores.

12

Categorias IBGE. 13

O termo evangélico é genérico e serve para referir-se a todos os cristãos protestantes vinculados a

diversas denominações religiosas (Pierucci, 2000).

9

De Homossexualidades e religiosidades

As estudantes vinculadas ao projeto Antropologia, Educação e Diversidade

falam com facilidade sobre diversidade sexual14

e religiões.

Nas trajetórias de estudantes que passaram pelas experiências do PIBIC EM,

vinculados a igrejas evangélicas, entretanto, as experiências são outras. Carlos,

estudante e bolsista PIBIC EM da UFSC, afirma que participar do projeto "abriu meu

pensamento não só para a minha vida pessoal, aquilo que eu acredito, mas para a forma

como eu enxergava o outro (...)". Afirma ainda que, o outro, "tem a liberdade dele, as

vontades dele, tem a sexualidade, tem a religião" e conclui "então acho que é isso:

minha visão em relação ao outro mudou."

Para Laura (Projeto Papo Sério), o projeto possibilitou ter contato com

homossexuais e transexuais. Questionada afirmou que sua religião vê a

homossexualidade como algo desagradável aos olhos de Deus, que as vê como prazeres

mundanos, não espirituais. Para esta, no entanto, a vivência da homossexualidade não é

ruim. Afirma, aliás, que admira o homossexual, e completa, homossexual que tem

família. Para demonstrar o impacto do projeto, afirma perguntando: “quem sou eu para

julgar o próximo?”. E justifica, amar é um “princípio do cristianismo [e que] (...)

quando se é homossexual e ama muito mais que uma pessoa que se diz que é cristã,

poxa, essa pessoa é mais cristã do que a pessoa que se diz cristã, pois ela ama, e o

princípio é amar ao próximo como a ti mesmo e não julgar”.

Vemos no discurso de Laura uma influência das práticas de evangelização a

partir da leitura bíblica (MAFRA, 2001) e da homofobia pastoral (NATIVIDADE &

OLIVEIRA, 2004).

Os discursos de um estudante pardo e uma estudante negra, vinculados as

camadas populares de Florianópolis, explicitam o poder de transformação na forma de

olhar o outro que a formação em gênero e sexualidades podem ter.

DESATANDO OS NÓS

Por fim, percebemos que os projetos PIBIC EM realizados nas experiências do

Projeto Papo Sério, na UFSC, e no Projeto Antropologia, Educação e Diversidade, na

UFFS, impactaram sujeitos, instituições, contribuíram na transformação de trajetórias

14

Forma de descrever populações “não heterossexuais” (NATIVIDADE, OLIVEIRA, 2009).

10

individuais e engendraram novas formas de apoiaram a democratização do acesso à

universidade e às políticas públicas.

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