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Universidade Federal do Rio de Janeiro Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Núcleo Pró-acesso ___________________________________________________________________________________________________________________ Núcleo Pró-acesso/UFRJ - www.proacesso.fau.ufrj.br Edifício da FAU/ Reitoria – sala 443 – Cidade Universitária – Ilha do Fundão, Rio de Janeiro R.J. CEP: 21941-590 - telefone: (21) 2598-1663 O Ensino da Arquitetura Inclusiva como Ferramenta para a Melhoria da Qualidade de Vida para Todos Cristiane Rose Duarte & Regina Cohen. Este artigo é resultado das atividades de ensino do Núcleo Pró-Acesso da UFRJ que contam com o apoio do Fundo de Amparo à Pesquisa no Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). O trabalho tem sido desenvolvido pelas arquitetas Cristiane Rose de Siqueira Duarte e Regina Cohen – Coordenadoras do Núcleo Pró- Acesso da UFRJ. Uma versão desta metodologia ganhou em 2002 o prêmio da Associação Européia de Ensino de Arquitetura (AEEA). Veja no rodapé como mencionar este artigo. RESUMO Visando fomentar o desenvolvimento de uma visão mais holística do espaço construído, este artigo tem por objetivo alargar o debate sobre as necessidades espaciais e psico-sociais da diversidade humana (abrangendo desde as pessoas com deficiência até a terceira idade) no âmbito dos cursos de graduação em Arquitetura e Urbanismo. Para tanto, estaremos ilustrando nossos questionamentos por meio de exemplos retirados de nossa experiência didática implantada na FAU/UFRJ. Os resultados desta proposta pedagógica aqui apresentada fazem emergir diversas questões metodológicas concernentes ao ensino do projeto arquitetônico. Entre outros aspectos, buscamos mostrar a eficiência de métodos dinâmicos de aprendizado, que agrupam, num mesmo curso, ensinamentos teóricos, simulações e relatos sobre as experiências vivenciadas assim como uma freqüente e intensa atividade projetual. O mais importante, no entanto, remete-se à maneira pela qual os estudantes de arquitetura são ensinados sobre o Outro, o que, sem dúvida, afeta sua compreensão sobre a diversidade humana e influi decisivamente em suas futuras vidas profissionais. Com base nos resultados obtidos, o artigo comenta que a questão da diferença humana inserida como premissa fundamental do projeto arquitetônico de visão humanística tem revelado um poder multiplicador que vem superando expectativas e apontando para a geração de novas mentalidades necessárias ao planejador de nossas futuras cidades. I- INTRODUÇÃO O ensino da Arquitetura se vê constantemente confrontado à necessidade de responder às mudanças tecnológicas e econômicas de um mundo cada vez mais globalizado. Enquanto docentes, vemo-nos muitas vezes impelidos a prepararmos nossos alunos para enfrentar um mercado do trabalho cada vez mais saturado e competitivo. No entanto, ainda é raro, em nossas escolas de Arquitetura e Urbanismo, que todas estas preocupações de ordem tecnológica e econômica sejam acompanhadas de uma reflexão sobre a importância da função social do espaço construído assim como de um real estímulo ao desenvolvimento de uma visão mais holística do ambiente urbano. No presente artigo, procuraremos mostrar que o ensino da Arquitetura Inclusiva, voltada para a acessibilidade de um maior número de usuários, é uma ferramenta bastante eficaz no sentido de aproximar a formação do arquiteto dos conceitos humanísticos defendidos por toda uma corrente de cientistas sociais (dentre os quais Tuan, 1976) e ainda tão negligenciados por outras. Como mencionar este artigo : DUARTE, Cristiane Rose de Siqueira ; COHEN, R. O Ensino da Arquitetura Inclusiva como Ferramenta par a Melhoria da Qualidade de Vida para Todos. In: PROJETAR 2003. (Org.). Projetar: Desafios e Conquistas da Pesquisa e do Ensino de Projeto. Rio de Janeiro: Virtual Científica, 2003, p. 159-173..

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O Ensino da Arquitetura Inclusiva como Ferramenta para a Melhoria da Qualidade de Vida para Todos

Cristiane Rose Duarte & Regina Cohen.

Este artigo é resultado das atividades de ensino do Núcleo Pró-Acesso da UFRJ que contam com o apoio do Fundo de Amparo à Pesquisa no Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). O trabalho tem sido desenvolvido pelas arquitetas Cristiane Rose de Siqueira Duarte e Regina Cohen – Coordenadoras do Núcleo Pró-Acesso da UFRJ. Uma versão desta metodologia ganhou em 2002 o prêmio da Associação Européia de Ensino de Arquitetura (AEEA).

Veja no rodapé como mencionar este artigo.∗

RESUMO

Visando fomentar o desenvolvimento de uma visão mais holística do espaço construído, este artigo tem por objetivo alargar o debate sobre as necessidades espaciais e psico-sociais da diversidade humana (abrangendo desde as pessoas com deficiência até a terceira idade) no âmbito dos cursos de graduação em Arquitetura e Urbanismo. Para tanto, estaremos ilustrando nossos questionamentos por meio de exemplos retirados de nossa experiência didática implantada na FAU/UFRJ. Os resultados desta proposta pedagógica aqui apresentada fazem emergir diversas questões metodológicas concernentes ao ensino do projeto arquitetônico. Entre outros aspectos, buscamos mostrar a eficiência de métodos dinâmicos de aprendizado, que agrupam, num mesmo curso, ensinamentos teóricos, simulações e relatos sobre as experiências vivenciadas assim como uma freqüente e intensa atividade projetual. O mais importante, no entanto, remete-se à maneira pela qual os estudantes de arquitetura são ensinados sobre o Outro, o que, sem dúvida, afeta sua compreensão sobre a diversidade humana e influi decisivamente em suas futuras vidas profissionais. Com base nos resultados obtidos, o artigo comenta que a questão da diferença humana inserida como premissa fundamental do projeto arquitetônico de visão humanística tem revelado um poder multiplicador que vem superando expectativas e apontando para a geração de novas mentalidades necessárias ao planejador de nossas futuras cidades.

I- INTRODUÇÃO

O ensino da Arquitetura se vê constantemente confrontado à necessidade de responder às mudanças tecnológicas e econômicas de um mundo cada vez mais globalizado. Enquanto docentes, vemo-nos muitas vezes impelidos a prepararmos nossos alunos para enfrentar um mercado do trabalho cada vez mais saturado e competitivo. No entanto, ainda é raro, em nossas escolas de Arquitetura e Urbanismo, que todas estas preocupações de ordem tecnológica e econômica sejam acompanhadas de uma reflexão sobre a importância da função social do espaço construído assim como de um real estímulo ao desenvolvimento de uma visão mais holística do ambiente urbano.

No presente artigo, procuraremos mostrar que o ensino da Arquitetura Inclusiva, voltada para a acessibilidade de um maior número de usuários, é uma ferramenta bastante eficaz no sentido de aproximar a formação do arquiteto dos conceitos humanísticos defendidos por toda uma corrente de cientistas sociais (dentre os quais Tuan, 1976) e ainda tão negligenciados por outras. ∗ Como mencionar este artigo: DUARTE, Cristiane Rose de Siqueira ; COHEN, R. O Ensino da Arquitetura Inclusiva como Ferramenta par a Melhoria da Qualidade de Vida para Todos. In: PROJETAR 2003. (Org.). Projetar: Desafios e Conquistas da Pesquisa e do Ensino de Projeto. Rio de Janeiro: Virtual Científica, 2003, p. 159-173..

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De fato, temos assistido a uma valorização de modelos arquitetônicos cada vez mais "standardizados", copiados por nossos alunos a partir de repertórios adquiridos em diversos veículos de divulgação profissional.

Não pretendemos, no presente artigo, discorrer sobre a variedade destes modelos, que podem ir desde a alusão à cultura de um país mais industrializado até, numa escala “micro”, ao culto à própria perfeição do homem-padrão. O que pretendemos sustentar aqui, enquanto educadores, é que se faz cada vez mais necessária a ampliação de atividades didáticas que provoquem uma reflexão crítica, fazendo com que o aluno analise e tome consciência das fontes de construção de seus modelos, para que possam, então, decidir sobre a sua adoção ou não.

A reflexão sobre o ensino de projetos de espaços inclusivos (capazes de acolher uma maior diversidade de usuários) proposta no presente artigo, se quer um dentre as muitas possibilidades de promoção destes questionamentos no ensino de arquitetura.

Assim, buscaremos mostrar, com base em nossa proposta didática, as maneiras pelas quais tentamos trazer à consciência do futuro arquiteto a reflexão de como as pessoas portadoras de deficiência podem construir suas identidades, moldar suas visões de mundo, transmitir a idéia que fazem de si mesmos e a idéia que fazem do Outro.

Na passagem para o século XXI, assistimos a grandes avanços científicos, tecnológicos e culturais que, de forma direta ou indireta, foram o resultado da criatividade e competência universitária, que têm sido alguns dos pilares da difusão da cultura e da formação de opinião no país. Mas, as Universidades, além de profissionais qualificados, precisam formar cidadãos. Estes indicarão alternativas e propostas baseadas nos princípios da igualdade com diversidade, da liberdade com solidariedade, verdadeiros indícios de modernidade. Entende-se, assim, que a Universidade deve dar este salto qualitativo para o novo século, repensando suas missões e respondendo às necessidades de sua época.

II- É POSSÍVEL SER UM HUMANISTA EM TERRA DE HOMEM-PADRÃO?

Já em 1976, Tuan, em seu ensaio sobre a geografia humanística, anunciava um processo de distanciamento entre a abordagem científica e tecnológica das ciências aplicadas e o necessário alargamento de visão das disciplinas humanísticas. O referido autor ressalta, no entanto, que a abordagem tecnológica de visão mais "estreita" e voltada para a eficiência e a economia, data de muito tempo, tendo sua origem confundida com a construção do pensamento ocidental.

De fato, quando pensamos nas premissas pragmáticas que tomam por base o homem-padrão, compreendemos o grande distanciamento entre a visão holística e abrangente defendida por Tuan e os preceitos arquitetônicos que, até hoje, permeiam nossos projetos.

Chamamos de homem-padrão aquele modelo de homem atlético, culto e possuidor de todas as habilidades físicas e mentais. Seu corpo possui proporções estudadas desde a Grécia antiga e tomadas como medida-padrão para a própria dimensão arquitetônica.

No Renascimento, a importância atribuída à "perfeita proporção" do corpo humano é facilmente ilustrada pelos estudos de Da Vinci que, enquanto anatomista, artista e "arquiteto", aprofundou-se na análise da perfeição matemática da forma humana. A imagem de um corpo musculoso e "proporcional" de um homem circunscrito em um círculo e em um quadrado é emblemática e é usada para realçar a proporcionalidade das formas desde sua publicação no livro De Divina Proportione, por Luca Pacioli, em 1490 (Raposo et al., s/d).

Da mesma forma, quando Le Corbusier fez sua viagem à Grécia a fim de estudar a arquitetura clássica, ficou extasiado com a maneira pela qual os gregos usavam o número de ouro relacionando-o com a escala humana. Suas considerações contidas em seu livro

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"Vers une Architecture" já apontavam para a criação do sistema de medição que chamou posteriormente de "Modulor", no qual ele se utiliza dos números de Fibonacci, do número de ouro e das proporções humanas "standard". Le Corbusier considerou como "standard" a altura humana de 1,83m e estabeleceu esta seqüência de medidas do "Modulor" para encontrar harmonia nas composições arquitetônicas (Raposo et al. s/d).

fig. 1- Desenho de Leonardo Da Vinci fig. 2. O Modulor, de Le Corbusier

Uma pesquisa rápida na internet partindo das palavras-chave "homem-padrão" apresenta milhares de sites que se utilizam deste conceito para expor e validar dados "confiáveis" no campo da física, da biologia, da ergonomia e da arquitetura.

Felizmente, nesta mesma busca, é possível encontrar também trabalhos que reconhecem que o homem-padrão não existe e, se existe, é por pouco tempo, dado o caráter efêmero da existência do corpo humano:

"Modelos não existem no mundo real, assim como não há um ‘homem padrão’, uma ‘mulher padrão’ ou a ‘criança padrão’. Considerações dessa espécie só se prestam a afastar os princípios e as regras de direitos humanos da realidade, neutralizam alternativas, produzem a irrelevância das pessoas pelo nivelamento e produzem a desresponsabilização dos agentes públicos e dos agentes sociais" (Arzabe e Graciano, s/d).

De fato, a espécie humana não pode ser reduzida a uma medida-padrão e, por conseguinte, toda a arquitetura que se voltar unicamente para a standardização das proporções estará fadada a gerar espaços segregadores. Pessoas com dificuldade de locomoção, idosos, portadores de deficiência, pessoas obesas, gestantes, deficientes visuais, pessoas de baixa ou alta estatura entre outros, representam um grande contingente humano que tem, nos últimos anos, lutado contra as desigualdades de acesso físico no meio edificado.

É bem verdade que temos assistido, nas últimas décadas, ao surgimento de um crescente número de estudos preocupados com a readequação dos edifícios e dos espaços urbanos aos usuários portadores de deficiência. Contudo, estes trabalhos se limitam, geralmente, a estudar as características de acessibilidade física de pessoas portadoras de deficiência para subsidiar propostas de readequação dos espaços públicos ou privados. Na ótica destes trabalhos, por exemplo, é comum que a construção de rampas nas esquinas e que uma determinada percentagem de vagas para estacionamento de veículos adaptados às pessoas com deficiência física sejam considerados como "suficientes" para taxar o projeto de "acessível". Fazem-se "cartilhas de acessibilidade" para subsidiar projetos de arquitetura e desenvolvem-se teses sobre a ergonomia de pessoas com dificuldade de locomoção ou deficiência visual, por exemplo... No entanto, ainda assim, persiste o caráter

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pragmático do arquiteto-cientista que, apesar de alargar seu espectro de medidas, continua padronizando e tornando científicas as medidas matemáticas da forma do ser humano. A percepção e a experiência de todos os usuários nem sempre é levada em consideração nestes trabalhos e é aí que nos afastamos da abordagem humanística da Arquitetura.

Segundo Tuan (1976), a visão humanística nas ciências sociais é a que busca um melhor entendimento do Homem e de sua condição. O autor cita humanistas como Erasmo e Julian Huxley que, mesmo em épocas e com propósitos tão diversos, tiveram em comum a busca pela compreensão da visão de mundo do ser humano, por meio da reflexão acerca de suas relações com os espaços, com a natureza e com os ambientes diversos.

Assim, compreende-se que, ao invés de ter uma visão restrita e fincada sobre o desenvolvimento tecnológico, o humanista, sem negá-lo, abre seu campo de pensamento trabalhando sobre as perspectivas científicas, mas não a partir delas. Segundo Tuan (1976):

"[saber] como um simples espaço se torna um lugar intensamente humano é uma missão para o humanista; para tanto, ele se utiliza de interesses distintamente humanísticos, como a natureza da experiência, a qualidade da ligação emocional aos objetos físicos, as funções dos conceitos e símbolos na criação da identidade do Lugar." (1976, p.269)

Desta forma, cabe-nos aqui propor a reflexão acerca da capacidade que deveriam desenvolver os arquitetos para compreender como o espaço criado por ele será percebido e vivenciado; tornar-se-á motivo de emoção; conterá significados diversos ou constituir-se-á em símbolo para alguns.

O enfoque humanista fará com que a arquitetura seja vista como locus de ação e reação de atores sociais, e seu estudo crítico deverá preocupar-se em compreender a emoção experimentada em cada espaço (constrangimento, afeto, rejeição, indiferença). Neste sentido, sustentamos que seja necessário levar o aluno de arquitetura a compreender a experiência do homem nos espaços, a partir de sua diversidade e buscando sempre uma maior qualidade de vida para todos.

III - A EXPERIÊNCIA HUMANA NOS ESPAÇOS E QUALIDADE DE VIDA

- Experiência

O ambiente construído é rico em exemplos de como os ângulos de visão, pontos de vista, formas de locomoção, maneiras de percepção e necessidades espaciais diferentes podem também resultar em maneiras diferentes de experienciar os espaços. Torna-se importante, assim, colocar em evidência, para os alunos de arquitetura e urbanismo, a existência de uma multiplicidade de formas de apreensão do espaço urbano e de enfatizar a importância de se estar atento às especificidades que influenciam as diferentes relações de afeto que as pessoas desenvolvem em relação aos espaços da cidade.

Segundo Tuan (1983) os “princípios fundamentais da organização espacial encontram-se em dois tipos de fato: a postura e a estrutura do corpo humano e as relações entre as pessoas. O Homem como o resultado de sua experiência íntima com o seu corpo e com outras pessoas, organiza o espaço a fim de conformá-lo a suas necessidades biológicas e relações sociais” (1983: 39). Verificamos, assim, que a impossibilidade de vivenciar o espaço da mesma forma que outro usuário representa uma barreira ao relacionamento; barreira esta que pode, em muitos casos, ser considerada maior do que os obstáculos físicos do espaço urbano.

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Tomemos como exemplo o caso de pessoas com dificuldade de locomoção (PDL). Para fins de ilustração do caso das PDLs, consideremos dois aspectos importantes de influência em sua percepção: os ângulos de visão e as formas de deslocamento.

Não é difícil explicar a um estudante de arquitetura que as diferenças de postura corporal destas pessoas se caracterizam pelo fato de elas se locomoverem de maneira diferente da postura de uma pessoa completamente ereta, afetando seu campo de alcance visual na percepção, comportamento e experiência dos espaços.

No caso de um cadeirante1, por exemplo, o ângulo de visão sempre estará situado à cerca de um metro do chão. Sua percepção do espaço será invariavelmente diferente daquela desenvolvida por pessoas que se locomovem a pé (quando o ângulo de visão se situa, por exemplo, a 1,60m do piso). Nestes casos, a visão que se tem do ambiente de um ângulo bem mais próximo ao chão pode ficar comprometida pois, na medida em que algum mobiliário urbano tenha altura maior que 80 cm, ele se torna um obstáculo visual para o cadeirante. Isso faz com que a cidade seja percebida como um labirinto e uma sucessão de “surpresas visuais” pois esta PDL só verá certos objetos ao aproximar-se e não verá outros por estarem muito altos.

Já uma pessoa de muletas, que se locomove invariavelmente olhando para o chão, uma vez que precisa apoiar sua muleta em locais firmes, apreenderá o espaço de forma diferente daquela percebida por pessoas que se locomovem olhando “para frente”, “para o alto” ou “para o horizonte”, sem a preocupação de desequilíbrio. As PDLs que necessitam desse ângulo de visão constantemente “para baixo”, dificilmente formam uma imagem mental a partir de uma visão panorâmica dos espaços. Nesses casos, a cognição do espaço se desenvolve a partir de um caminhar que vai avançando à medida que a pessoa vai identificando locais sem obstáculos onde ela possa se apoiar sem riscos de acidentes.

Segundo Tuan (1983), o meio-ambiente constitui-se no elemento essencial para a estruturação mental da relação espaço-tempo, pois a cognição da realidade se dá a partir de noções espaço-temporais: “o tempo está implícito em todos os lugares, nas idéias de movimento, esforço, liberdade, objetivo e acessibilidade" (1983: 96). Assim, o espaço, as distâncias, os percursos, o “longe” e o “perto” passam a ser medidos pelo esforço e não podem ser compreendidos a partir de referenciais de pessoas que não apresentam nenhuma dificuldade em seus deslocamentos.

A experiência dos espaços estrutura os padrões de identificação do sujeito com o meio ambiente. Segundo Tuan (1983: 10), “experienciar é aprender, compreender; significa atuar sobre o espaço e poder criar a partir dele”. Portanto, o arquiteto com visão mais humanística reconhece que é necessário que o processo cognitivo se desenvolva através da percepção e da apreensão do espaço para que o indivíduo possa conhecê-lo e agir sobre ele. De fato, a relação entre experiência e o conhecimento de um espaço se constitui, para Rapoport, no locus de ação das pessoas, “visto que o que não se conhece não pode ser objeto de oportunidades para atuar” (Rapoport, 1978, p.43).

A questão do afeto ao lugar está portanto nitidamente atrelada à experiência que se pode ter neste espaço. Para Tuan (1983), “espaços” transformam-se em “lugares” quando permitem que a pessoa desenvolva afetividade em relação a este local e essa afetividade só é possível através da experiência do espaço. Dessa forma, é possível compreender que, para que o objeto de nosso exemplo - uma pessoa com dificuldade de locomoção - possa criar laços afetivos e se identificar com a cidade em que habita, é preciso que ela seja capaz de se introduzir em seus espaços com seu corpo e seus sentidos, e que estes lhe permitam que sua experiência espacial se concretize de forma satisfatória.

1 Cadeirante é a pessoa que depende de cadeira de rodas para se locomover

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Neste contexto, compreende-se que, por não serem capazes de experienciar os espaços construídos como a maioria das pessoas, as PDLs tomam consciência de suas diferenças e passam a sentir a realidade de pertencer a uma minoria, o que contribui para o processo de desintegração psicológica. Com base nos depoimentos de PDLs coletados em nossas pesquisas2, vimos que é quando se depara com um impeditivo, seja de ordem física ou gerado pelo preconceito e pela discriminação, que a PDL se vê efetivamente como “diferente”, passa a achar que as outras pessoas as olham com desprezo, considerando-as “velhas”, “feias”, “incômodas”, “aleijadas”... e desenvolve então sentimentos de inferioridade.

Neste círculo vicioso, muitos espaços construídos excluem as pessoas portadoras de deficiência que, por sua vez, deixam de se considerar como agentes passíveis de inclusão no espaço e passam a rejeitar os lugares, acelerando ainda mais o processo que os afasta do convívio com os demais usuários. A exclusão espacial e a exclusão social passam, então, a significar praticamente a mesma coisa.

Portanto, podemos considerar que, ao apresentar barreiras, o espaço construído poderá estar acentuando a diferença de uma pessoa com deficiência, aumentando sua dificuldade e tornando-a incapaz de viver sua vida cotidiana. Vê-se, portanto, que muitas das limitações e incapacidades de alguns não se devem a uma falta de habilidade de se adaptarem ao ambiente, mas a uma deficiência do espaço construído de abrigar diversidades. Neste caso, a deficiência em si não é o fator causador da imobilidade e sim a falta de adequação do meio.

Numa formação mais holística da construção do espaço, buscar-se-á compreender que, muito mais do que a preocupação com a eliminação de barreiras urbanas, deve-se pensar o espaço inclusivo como aquele que permite a opção de experienciar os espaços. Ou seja, é a possibilidade de escolha em experienciar os espaços que faz a diferença. Nesse contexto, pode-se acreditar que os espaços inclusivos sejam aqueles capazes de fornecer à pessoa portadora de deficiência um sentimento de segurança, competência e liberdade com vistas a dirigir as suas ações, podendo estabelecer uma relação harmoniosa com o mundo exterior. Esta é uma questão intimamente relacionada com a concepção de qualidade de vida.

- Qualidade de Vida

A fim de atingir nossos objetivos, também costumamos propor a nossos estudantes uma reflexão sobre a Qualidade de Vida e o Desenvolvimento Sustentável das cidades de amanhã. Assim, nós esperamos fazê-los compreender que o arquiteto tem uma missão muito mais elevada do que a de pensar nos aspectos estéticos e funcionais dos edifícios.

De fato, segundo instituições internacionais como a Organização das Nações Unidas, a UNESCO e o Banco Interamericano de Desenvolvimento, o desenvolvimento sustentável pressupõe a inexorável integração entre o meio-ambiente e o desenvolvimento econômico e social dos povos.

Uma das propostas do Fórum Global sobre a Reforma Urbana, que ocorreu durante a Conferência Rio-92, estabeleceu que: "o direito às necessidades fundamentais deve ser articulado com o direito à cidade e à cidadania, compreendendo nesta conquista, uma profunda integração com o meio-ambiente, buscando sua potencialidade, de modo a garantir o direito de ir e vir de todo cidadão; enfim, garantindo-lhe o direito à vida" (In: Charte d'Aalborg, 1994). Percebe-se, a partir deste trecho que, associada ao conceito de cidadania, a noção de meio-ambiente aponta para um conceito mais amplo de "qualidade de vida", no qual a sociedade possui um papel ativo, enquanto agente, atriz e produtora das questões ambientais.

2 Duarte e Cohen, 1999 e 2001

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Abrindo as discussões também para um foco sobre as legislações existentes, mostramos aos alunos que, apesar da existência de leis que garantem o acesso para todos3, o que geralmente estes grupos encontram, é uma organização espacial que os exclui da experiência urbana, oferecendo obstáculos (físicos e socio-culturais) que os impedem de viver em igualdade de condições nas nossas cidades4.

Em nossa opinião, procurar fazer com que o aluno tome consciência de que é necessário re-inventar uma nova ordem ambiental mais igualitária é, em essência, apostar na capacidade destes jovens universitários, potencialmente formadores de opinião, de fazer emergir os ideais almejados pela Conferência Rio'92 e por tantos outros fóruns... pois sabemos que não haverá jamais soluções científicas e industriais realmente eficazes para o desenvolvimento do planeta sem a efetiva transformação das mentalidades, das estruturas sociais e dos hábitos individuais e coletivos.

IV – ACESSIBILIDADE E DESENHO UNIVERSAL

Antes de apresentar nossa metodologia de ensino, acreditamos ser importante delinear os conceitos de Acessibilidade e de Desenho Universal, que embasam nosso trabalho e permeia os projetos propostos a nossos alunos, como mostraremos mais adiante.

O conceito de “Acessibilidade” traz a idéia da possibilidade de acesso a todos. Neste sentido, estamos incluindo pessoas que vivem determinadas situações de dificuldade às quais todos os indivíduos são passíveis de se submeterem em algum momento de suas vidas: pessoas idosas; pessoas com mobilidade reduzida; pessoas com visão sub-normal; pessoas portadoras de deficiência física, neurológica ou sensorial; pessoas obesas; pessoas de baixa estatura, crianças, mulheres grávidas etc.

Se a Acessibilidade pressupõe a "possibilidade e a condição de utilizar, com segurança e autonomia, os edifícios, o espaço, o mobiliário e os equipamentos urbanos"5, é possível fazer com que os estudantes de arquitetura compreendam que as soluções arquitetônicas que respondem a especificidades de "segurança e autonomia" abrem possibilidades de convívio entre as diferenças. Sublinha-se, assim, que a acessibilidade ao espaço construído não deve ser compreendida como um conjunto de medidas que favoreceriam apenas às pessoas portadoras de deficiência -o que poderia até aumentar a exclusão espacial e a segregação destes grupos-, mas sim medidas técnico-sociais destinadas a acolher todos os usuários em potencial.

Devemos frisar aqui que, nos dias atuais, após uma gradativa alteração na visão de alguns planejadores urbanos, o conceito de Acessibilidade já é adotado na literatura especializada e as terminologias "arquitetura inclusiva","desenho inclusivo" e "projeto inclusivo" têm sido encontradas cada vez com maior freqüência, tendo evoluído para o conceito e filosofia de "Desenho Universal".

O conceito de "Desenho Universal" nos traz também a idéia de produtos, espaços, mobiliário e equipamentos concebidos para uma maior gama de usuários. Em nossa opinião, este conceito representa uma visão positiva uma vez que não se restringe ao objeto arquitetônico, transcendendo largamente suas fronteiras, seja fisicamente, culturalmente ou socialmente falando.

V - EXPERIÊNCIA DIDÁTICA

A fim de melhor situar nossa experiência pedagógica, devemos comentar que, em nosso país, apesar da existência de leis que garantem o direito dos grupos minoritários, muito

3 Como demostra FREEMAN, 1998. 4 A este respeito ver: DUARTE, C.R. e COHEN, R., 2002. 5 ABNT, 1994.

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pouco é concretizado no que concerne ao direito das pessoas portadoras de deficiência. Não é de se estranhar, portanto, que esta mentalidade se reflita em muitas escolas de Arquitetura do país, que nem sempre conseguem fornecer, de forma sistemática, disciplinas voltadas para este tema. Sem dúvida, apesar de algumas experiências anteriores, ainda havia esta lacuna a ser preenchida no ensino de arquitetura da UFRJ.

Nossas atividades voltadas para o tema da acessibilidade se iniciaram por meio de pesquisas desenvolvidas no âmbito dos programas de pós-graduação, que se constituem em setores sempre mais abertos às idéias voltadas para a qualidade de vida. Em seguida, criamos o "Núcleo Pró-acesso" (Núcleo de Pesquisa, Ensino e Projeto sobre Acessibilidade e Desenho Universal) vinculado ao Programa de Pós-graduação em Arquitetura, da FAU/UFRJ. Hoje, as atividades do Núcleo Pró-acesso são bastante diversificadas e envolvem o ensino, a pesquisa e a extensão.

Nossas atividades de ensino junto a estudantes de graduação começaram por meio de nossa participação com consultorias no âmbito das aulas de atelier de projeto. No entanto, verificávamos, naquela época, que essas "assessorias" não eram suficientes para fazer o aluno compreender a verdadeira dimensão dos fatores socio-culturais e comportamentais implícitos aos projetos acessíveis. Parecia-nos que estes alunos continuavam a considerar a acessibilidade como sendo uma simples questão técnica para responder a "mais uma restrição contra a liberdade de criar espaços"6 tal como se fosse como um código de obras que impõe tamanho de vãos, dimensões de corredores e taxa de ocupação... Foi então que criamos uma disciplina específica sobre Acessibilidade e Desenho Universal, no âmbito do curso de graduação em Arquitetura.

Oficializada há dois anos na FAU/UFRJ, a disciplina optativa "Métodos e Técnicas de Projeto Inclusivo" teve sua metodologia desenvolvida a partir de nossa experiência tanto em sala de aula como em campo, envolvendo alunos de graduação e de pós.

A fim de evitar o risco de desmotivar o estudante a cursar a disciplina até o final sem perder o entusiasmo necessário a todo programa de ensino realmente eficaz, buscamos elaborar um método de ensino muito dinâmico, no qual todo ensinamento se remete sempre à prática projetual.

Ilustremos aqui com o relato de um dia de aulas: ao entrar em classe, o aluno é convidado a efetuar, em meia hora, um croquis de uma cantina para almoço de estudantes, por exemplo. Normalmente, por já ter sido apresentado a alguns conceitos sobre a acessibilidade de pessoas usuárias de cadeiras de rodas, o aluno costuma elaborar seu projeto dentro de parâmetros que atendem às dificuldades de locomoção destes usuários. Em seguida, os alunos são convidados a experimentar o espaço da cantina da faculdade usando vendas nos olhos, como se fossem cegos. Neste momento, surpreendidos, e às custas de alguns tombos e tropeções, eles tomam consciência desta "outra" realidade... Voltando à sala de aula, assistem ao depoimento de pessoas portadoras de deficiência visual e, finalmente, são convidados a refazerem seus projetos, usando cola-relevo sobre papel, para que estes sejam discutidos com os palestrantes cegos.

Desta forma, usando o fator surpresa e sempre remetendo o ensinamento ao projeto de arquitetura, procuramos atingir os objetivos da disciplina que são:

− sensibilizar o alunado de arquitetura sobre as necessidades espaciais e ambientais da diversidade humana, buscando uma visão mais humanística da profissão;

− criar subsídios para projetos de arquitetura que favoreçam a integração e a participação dos usuários portadores de deficiência ou com mobilidade reduzida nos espaços urbanos;

6 Frase proferida por aluno de graduação.

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− demonstrar que a inclusão socio-espacial e o projeto esteticamente correto são compatíveis.

A distribuição do conteúdo didático ao longo do curso segue uma seqüência metodológica que se divide em quatro módulos que privilegiam ora o conteúdo mais teórico, ora as experiências sensitivas ou ainda a presença de palestrantes para discussões informais, como expomos a seguir.

Inicialmente, o aluno recebe uma maior carga teórica. Neste mesmo momento, e tendo por base uma bibliografia específica, os estudantes são estimulados a debater sobre "segregação espacial" e "estigma", assim como sobre as características de um espaço urbano passível de se transformar em cenário de congregação das diferenças.

Num segundo momento, é privilegiada a presença de conferencistas que apresentam deficiência física ou necessidades especiais. Ao longo de suas intervenções, estes palestrantes falam abertamente com os alunos sobre suas dificuldades, apresentam sugestões para a resolução de problemas espaciais e comentam sobre as barreiras arquitetônicas e urbanas que lhes colocam inevitavelmente em situações de segregação espacial.

Figura 3 - Palestrante cega fala aos estudantes sobre suas dificuldades em face de uma arquitetura que nem sempre lhe

é acessível. As histórias vividas ao lado de seu cão-guia (também na foto) muito divertiram os alunos.

Em seguida, inicia-se um módulo didático em que é privilegiada a vivência espacial. Neste momento, são organizados exercícios nos quais os alunos experimentam concretamente os aspectos físicos, perceptivos e emocionais das pessoas portadoras de deficiência. A finalidade desses exercícios de vivência é atingida quando os alunos, experimentando andar em cadeiras de rodas ou com olhos vendados, se surpreendem com a enorme dificuldade que encontram para ultrapassar algumas barreiras arquitetônicas que julgavam inexpressivas.

Tendo por base relatos sobre as dificuldades de implantação de exercícios de vivência em cadeiras de rodas praticados em alguns países do mundo e até mesmo no Brasil, decidimos que, no caso de nossa disciplina, proporíamos uma discussão prévia identificando os locais mais freqüentados pelos alunos no próprio campus da universidade. Assim, os grupos elegem roteiros e uma lista de atividades que costumam realizar no cotidiano de suas vidas na Universidade... No entanto, são surpreendidos por terem que realizar estas tarefas tendo uma outra condição física.

A cada grupo de dois ou três alunos são fornecidos: uma cadeira de rodas, uma venda para os olhos e uma bengala e um tapa-orelhas. Alguns exemplos destas atividades cotidianas são: percorrer o pátio de estacionamento, ir à biblioteca para consultar um livro, assistir a

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uma aula no anfiteatro, realizar tarefas administrativas como inscrição em disciplinas; ir ao bar para lanchar etc.

Geralmente, as principais barreiras físicas catalogadas pelos alunos são: escadarias, falta de vagas especiais, pavimentação irregular; balcões demasiadamente altos; laboratórios de informática desprovidos de programas de sintetizador de voz ou lupa eletrônica para permitir consultas a livros por deficientes visuais; bibliotecas dispondo de sistema de fichas dispostas em prateleiras altas demais; alarmes contra incêndio sonoros e jamais visuais; salas de aula sem condições físicas para acolher pessoas portadoras de deficiência (sejam estudantes ou docentes); elevadores sem sinalização sonora que avise ao cego o andar a que chegou; salas de aula pouco iluminadas impedindo que uma pessoa surda faça leitura labial durante as aulas etc.

É interessante notar que, ao longo das discussões e relatos referentes a estas experiências, compreedem que cada deficiência necessita de uma resposta arquitetônica específica mas que é necessário, principalmente, que estas respostas se complementem, uma vez que, é comum que o arquiteto mal informado faça projetos que beneficiem algum tipo de deficiência e que, ao mesmo tempo, criem dificuldades para outra modalidade de diferença.

O mais interessante, contudo, é o despertar destes alunos para as questões psico-sociais que acompanham inevitavelmente o confronto com a falta de acessibilidade. Sensações como frustração, vergonha, medo, insegurança, falta de autonomia são constantemente relatadas pelos alunos como extremamente reveladoras. Alguns exemplos dessas impressões enumeradas pelos alunos são:

- a sensação de impotência ao não conseguir freqüentar determinados espaços acadêmicos;

- a vergonha de pedir ajuda quando necessária;

- a sensação de um deficiente visual ficar perdido em espaços amplos e abertos;

- o cansaço gerado para percorrer superfícies mal pavimentadas;

- o constante medo de cair;

- a frustração por não conseguir visualizar objetos situados em estantes muito altas ou sobre balcões, como na disposição dos livros em bibliotecas,

- o medo por não conseguir ouvir alarmes de incêndio e a sensação de exclusão quando não se ouve o que estão falando ao seu redor;

- a revolta pela reação das pessoas que muitas vezes assumem atitudes de piedade, e a sensação de que estão sendo apontados por serem diferentes.

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Figuras 3, 4, 5 e 6 - na experiência de percurso, estudantes andam em cadeira de rodas, usam vendas nos olhos ou um tapa-orelhas. O mais interessante é vê-los vivenciar as dificuldades emocionais provocadas pelas barreiras arquitetônicas...

No final do semestre letivo, a carga de projeto aumenta em relação aos ensinamentos teóricos e exercícios de vivência. É então estimulada a criação de um programa arquitetônico que deve ser atendido a partir de projetos individuais. Para facilitar este trabalho, convidamos pessoas com deficiência a visitar o atelier de trabalho e falar informalmente com os alunos.

Apesar de ser uma experiência incipiente, temos verificado que a disciplina tem revelado um poder multiplicador que superou nossas expectativas. Muitos alunos que cursaram a disciplina têm elegido, como tema de seus trabalhos finais de graduação, projetos acessíveis, centros de reabilitação, residências para a terceira idade etc.

VI - CONSIDERAÇÕES FINAIS

Algumas considerações de ordem pedagógica merecem ser colocadas aqui. Buscaremos esboçar, inicialmente, algumas considerações sobre os exercícios de simulação e vivência propriamente ditos. Em seguida, parece-nos importante apresentar também observações acerca da reação dos alunos face ao aprendizado dos conceitos que embasam a arquitetura inclusiva e, finalmente, comentaremos alguns resultados que emergem nas práticas projetuais tendo por fundamento o conteúdo didático aqui traçado.

No que concerne às práticas de simulação, é interessante observar que os alunos aceitam iniciar o exercício como se estivessem participando de uma grande brincadeira. Percorrer os corredores da Universidade em cadeira de rodas, ou tendo os olhos vendados, parece-lhes, num primeiro momento, um jogo curioso e até divertido de ser praticado com o grupo. Alguns alunos até se arriscam a "apostar corrida em cadeira de rodas" assim que nelas se instalam. No entanto, é possível notar a mudança de comportamento à medida que o exercício se desenrola. O fato de se realizar o exercício com atividades e em locais bem conhecidos dos alunos parece ter um peso decisivo no processo. Produz-se, então, uma visível tomada de consciência e aparece claramente a compreensão de um outro nível de responsabilidade que, entre outros efeitos, ativa e fortalece o diálogo entre o professor e o aluno. Esta relação se faz muito nítida desde a reunião após o primeiro exercício de simulação, quando os estudantes demonstram a vontade de colaborar com um mapeamento das dificuldades encontradas, parando para ouvir e buscando assimilar a opinião de todos os membros da turma, com uma visível seriedade até então inexistente.

Por outro lado, como dissemos mais acima, são convidados palestrantes portadores de deficiência para conversas e conferências ao longo do período letivo. Esta situação cria também um contexto particular para o aluno, que se encontra na presença imediata da

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diferença. Esta iniciativa apresenta sempre resultados consideráveis pois as categorizações estereotipadas das pessoas portadoras de deficiência diminuem e até desaparecem durante as conversas informais: o aluno está ao lado de uma pessoa como ele e que tem algumas sugestões que lhe permitirão aproveitar mais desta arquitetura que estará produzindo. Frente a esta situação de proximidade quase afetiva aliada ao reconhecimento da gravidade da "falta de acesso", os alunos têm demonstrado atingir uma maior concentração que favorece a assimilação do conteúdo pedagógico proposto. O aluno descobre, então, que a diferença entre ele e o palestrante pode não ser a deficiência deste último, mas a falta de capacidade da Arquitetura em acolher certas pessoas de forma igualitária.

Finalmente, devemos sublimar que este conhecimento, uma vez assimilado, encontra uma melhor inserção no aprendizado do projeto arquitetônico propriamente dito. Durante a elaboração de seus projetos de arquitetura, o aluno demonstra ter adquirido a capacidade de imaginar a si-mesmo vivendo situações de dificuldade física no interior do espaço criado em seu projeto. Hoje, já ousaríamos dizer que podemos reconhecer, dentre os projetos de atelier efetuados em disciplinas de planejamento, aqueles trabalhos produzidos por alunos que acompanharam nossa disciplina: estes projetos apresentam características que testemunham a preocupação com o bem-estar dos usuários por meio de maiores possibilidades de realização de atividades e de percursos sem barreiras. São projetos acadêmicos que consideram visivelmente a compatibilidade entre as diferenças humanas e não mais simples trabalhos que apenas tentam um "ajuste" às legislações restritivas voltadas para a acessibilidade.

Dissemos que a difusão de nossa experiência didática no presente artigo tem o objetivo de alargar o debate sobre a urgência de se colocar as necessidades ambientais e psico-sociais do ser humano como premissa do ensino de Arquitetura. Por outro lado, temos consciência de que não devemos reduzir nossos objetivos a um conjunto de diretrizes, mas manter nosso processo aberto para permitir que os alunos fiquem surpresos com o inesperado, iluminados com o imprevisível; pois, como diz Buarque: “uma boa aula não podia terminar sem alguma surpresa para os alunos, como se ensinar fosse provocar, e não [apenas] transmitir conhecimentos” (Buarque, 2000 p.8).

Sabemos que os resultados de nossa proposta metodológicos apenas serão sentidos, concretamente, com o passar dos anos e com o ingresso, no mercado de trabalho, dos profissionais que estamos formando. No entanto, reiteramos que, se criarmos subsídios para programas de integração socio-espacial das pessoas portadoras de deficiência, estaremos ao mesmo tempo contribuindo para a construção de uma cidadania plena para todos e subsidiando a emergência de novos paradigmas de concepção urbanística e arquitetônica para as cidades brasileiras. Assim, o impacto social de planejadores formados com uma visão mais holística do espaço construído será enorme, pois representará o aumento da "qualidade de vida" não apenas dos 14% da população brasileira que possui algum tipo de deficiência (segundo censo IBGE 2000) mas também da população como um todo que estará convivendo com a diversidade humana e sentindo os resultados da mudança de mentalidade destes novos planejadores, atuais alunos de arquitetura e urbanismo.

Resta-nos esperar, apenas, que estes futuros arquitetos e urbanistas trabalhem também pela eliminação de outras barreiras, além das físicas, como as barreiras sociais, culturais, políticas e burocráticas. Barreiras que se solidificam através da falta da consciência de que a convivência com a diversidade no seio dos espaços se constitui na verdadeira ferramenta para a melhoria da qualidade de vida de todas as pessoas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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