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UFRJ O ENSAÍSTA ESQUECIDO E O CLÁSSICO DA ANTROPOLOGIA: A QUESTÃO RACIAL PARA MANOEL BOMFIM E FRANZ BOAS Miriam Cristina da Silva Dolzani Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Ciência Política, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Ciência Política. Orientador: Aluizio Alves Filho Rio de Janeiro Janeiro de 2010

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UFRJ

O ENSAÍSTA ESQUECIDO E O CLÁSSICO DA ANTROPOLOGIA:

A QUESTÃO RACIAL PARA MANOEL BOMFIM E FRANZ BOAS

Miriam Cristina da Silva Dolzani

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de

Pós-graduação em Ciência Política, Instituto de Filosofia e

Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de

Janeiro, como parte dos requisitos necessários à

obtenção do título de Mestre em Ciência Política.

Orientador: Aluizio Alves Filho

Rio de Janeiro

Janeiro de 2010

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O ENSAÍSTA ESQUECIDO E O CLÁSSICO DA ANTROPOLOGIA:

A QUESTÃO RACIAL PARA MANOEL BOMFIM E FRANZ BOAS

Miriam Cristina da Silva Dolzani

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência

Política, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de

Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em

Ciência Política.

Aprovada por:

___________________________________

Presidente, Prof. Aluizio Alves Filho

___________________________________

Prof.ª Liana Cardoso

___________________________________

Prof. Ricardo Augusto dos Santos

Rio de Janeiro

Janeiro de 2010

RESUMO

O ENSAÍSTA ESQUECIDO E O CLÁSSICO DA ANTROPOLOGIA:

A QUESTÃO RACIAL PARA MANOEL BOMFIM E FRANZ BOAS

Miriam Cristina da Silva Dolzani

Orientador: Aluizio Alves Filho

Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação

em Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos

requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Ciência Política.

Esta dissertação trata da comparação teórica entre os autores Manoel Bomfim e

Franz Boas, que atuaram no início do século XX, e combateram as teorias racistas

predominantes nesta época. Manoel Bomfim foi um professor e intelectual brasileiro com

títulos dedicados à educação e à análise social brasileira. Franz Boas, nascido na

Alemanha e radicado nos Estados Unidos, também seguiu carreira no magistério e, no

conjunto de sua obra, fundou a antropologia cultural norte-americana. A tônica da

comparação se constitui nos argumentos contrários ao racismo que ambos os autores

construíram com base em estudos históricos e explicações naturalistas. Aceitando o

caráter ideológico das obras estudadas, o objetivo deste trabalho consistiu em explorar

as possíveis influências do pensamento liberal nessas teorias, assim como dos ideais de

liberdade e igualdade, que pudessem ter orientado as inquietações de Manoel Bomfim e

Franz Boas.

Palavras-chave: Manoel Bomfim, Franz Boas, Racismo Científico; Igualdade racial,

Liberdade.

Rio de Janeiro

Janeiro de 2010

ABSTRACT

THE FORGOTTEN ESSAYIST AND THE CLASSIC OF ANTHROPOLOGY:

THE RACIAL ISSUE TO MANOEL BOMFIM AND FRANZ BOAS

Miriam Cristina da Silva Dolzani

Orientador: Aluizio Alves Filho

Abstract da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação

em Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos

requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Ciência Política.

This thesis deals with the theoretical comparison between the authors Manoel Bomfim

and Franz Boas, who acted in the early twentieth century, and fought racial theories

prevalent at this time. Manoel Bomfim was a teacher and brazilian intellectual with titles

devoted to education and analysis of Brazilian society. Franz Boas, born in Germany and

settled in the United States, also started a career in teaching and, throughout all his

deeds, he founded the United States cultural anthropology. The keynote of the

comparison is focused on the arguments against the racism that both authors have built

on the basis of historical studies and naturalistic explanations. Accepting the ideological

character of the deeds studied, the objective of this study was to explore the possible

influence of liberal thought in these theories, as well as the ideals of freedom and

equality, which could have guided the concerns of Manoel Bomfim and Franz Boas.

Keywords: Manoel Bomfim, Franz Boas, Scientific Racism, Racial Equality, Freedom.

Rio de Janeiro

Janeiro de 2010

AGRADECIMENTOS

O percurso e o fim desta etapa possuem um grande significado para mim, pois cursar a

pós-graduação no Programa de Ciência Política da UFRJ correspondeu à realização de um

sonho. Participar desse projeto e conviver com professores tão competentes foi uma

experiência que não se apagará da minha memória. Por isso, agradeço especialmente a

Aluizio Alves Filho, por quem tenho toda admiração, pelos ensinamentos sobre a ciência

política e também sobre a vida, além de todo o apoio que me deu durante o tempo que

me orientou, fazendo-me acreditar que era possível. Agradeço também a Ingrid Sarti,

por toda paciência e amizade nas minhas idas e vindas, nas quais ela sempre

demonstrou a maior consideração, oferecendo-me toda ajuda que eu pude precisar.

Agradeço a todos os professores deste programa, com quem tive o privilégio de estudar,

que me ajudaram a alargar um pouco mais meu horizonte, assim como os profissionais

da Secretaria e da biblioteca do IFCS sempre dispostos a ajudar. Agradeço aos meus

colegas de turma com quem tive o prazer de trocar conhecimento e que tornaram mais

leves e alegres as horas de estudo. Agradeço profundamente à minha família que sempre

me incentivou e nunca me deixou desistir. Todo meu agradecimento ao meu amor e

companheiro Rafael Esteves, que suportou com todo carinho e paciência horas e horas

de silêncio e batidas no teclado, não deixando faltar o incentivo necessário ao término

deste trabalho. Nesta reta final, agradeço as palavras positivas e decisivas de amigos de

vida inteira, muito obrigada a Danielle Costa, Fabiano Silva, Thiago França e Daniel

Coelho, e a todos aqueles que de alguma forma contribuíram para este trabalho.

Às felizes coincidências da vida,

que me permitiram chegar até aqui.

SUMÁRIO

Introdução 1

Capítulo 1. Biografias e contextos 4

Duas Biografias: Manoel Bomfim

Duas Biografias: Franz Boas

Contextos sócio-políticos

Contexto Brasil

Contexto Estados Unidos

Capítulo 2. Sobre a Igualdade e a Desigualdade Racial 34

A construção do sentimento de Igualdade no Brasil e nos Estados Unidos

O problema da Raça

Capítulo 3. O Liberalismo e a liberdade para progredir 52

Alguns aspectos do liberalismo clássico

O ideal de liberdade em Boas

O ideal de liberdade em Bomfim

Considerações finais 82

Referências bibliográficas 89

Introdução

Manoel Bomfim (1868-1932) e Franz Boas (1858-1942) foram autores que

discutiram temas semelhantes a partir de diferentes perspectivas. Algumas das

suas obras, publicadas no início do século XX, posicionavam-se teoricamente frente

a um conjunto de explicações científicas e fatos históricos que compunham o

panorama desta época. Manoel Bomfim, brasileiro, refletiu sobre as condições

sociais e econômicas do Brasil e denunciou as relações exploratórias entre Brasil e

Portugal, apontando a educação como principal solução para os problemas do seu

país. Franz Boas, alemão, radicado nos Estados Unidos, deu início à corrente

culturalista da antropologia norte-americana que privilegiava a história particular de

cada povo ou nação para explicar as diferenças existentes entre eles e, para isso,

utilizou-se amplamente do conceito de cultura.

O objeto desta dissertação é o pensamento de Manoel Bomfim e Franz Boas.

Para analisar Manoel Bomfim será utilizado uma de suas obras principais obras: A

América Latina: males de origem1. E, para analisar Franz Boas, serão trabalhados

fragmentos de várias de suas publicações, tais como A Formação da Antropologia

Americana: 1883-19112, Anthropology and Modern Life3 e Cuestiones

Fundamentales de Antropologia Cultural ou The Mind os Primitive Man4. Essas

obras foram escolhidas porque, além de conterem os temas específicos para este

projeto, foram escritas para um público que ultrapassava os limites acadêmicos,

tornando mais transparente o direcionamento ideológico desses autores.

1 BOMFIM, M. A América Latina: Males de Origem, 2005. 2 BOAS, F. A formação da antropologia americana: 1883-1911, 2004. 3 BOAS, Franz. Anthropology and Modern Life, 1986. 4 O Título original deste texto é o clássico The Mind of Primitive Man (1943), que por problemas burocráticos foi traduzido com o título Cuestiones Fundamentales de la Antropogia Cultural (1964).

2

O objetivo específico desta dissertação é detalhar com que argumentos

Manoel Bomfim e Franz Boas combateram o determinismo racial que

responsabilizava a origem racial pela desigualdade social e econômica entre os

povos, privilegiando, sobretudo, a postura progressista5 de ambos sobre este

problema. E o objetivo geral deste trabalho é averiguar que posturas ideológicas

poderiam ter orientado os pensamentos de Manoel Bomfim e Franz Boas quando

escreveram as obras analisadas. Estes questionamentos sustentam-se uma vez que

Manoel Bomfim e Franz Boas marcaram posicionamentos que fugiam à tendência

geral de sua época6. A questão é, portanto, verificar que motivações teriam feito

esses autores migrarem de um saber mais consolidado para a busca de novas

explicações, baseadas em novas concepções. E a hipótese para esta questão é

averiguar se a ideologia liberal estaria na base dos argumentos de ambos os

autores contra o racismo.

O método escolhido para trabalhar esses dois autores terá como base a

sociologia do conhecimento desenvolvida por Karl Mannheim7 que enfatiza a

combinação entre os fatores sociais e culturais de um contexto histórico e a

geração do pensamento sob essas condições. A técnica metodológica utilizada para

esta análise será a revisão bibliográfica. Devido ao objetivo do projeto e aos meios

disponíveis para este estudo, as outras técnicas serão dispensadas. A revisão

bibliográfica explorará principalmente os títulos já citados de Manoel Bomfim e

Franz Boas que guiam este estudo, e também os comentadores da vida e da obra

de cada um desses pensadores.

5 Ideologia relacionada às idéias de desenvolvimento, adiantamento, aperfeiçoamento e evolução. 6 Manoel Bomfim apresenta-se contrário aos seus contemporâneos Euclides da Cunha, Nina Rodrigues e Oliveira Vianna que sustentaram argumentos racistas para explicar o cenário sócio-econômico brasileiro. Franz Boas contradiz argumentos deterministas em busca de leis gerais para o desenvolvimento humano utilizados pelos evolucionistas de sua época, tais como Frazer, Morgan, e Tylor. Ver CUNHA, E. Os Sertões: 2004. RODRIGUES, N. O animismo fetichista dos negros baianos, 2006. VIANNA, O. Populações Meridionais do Brasil, 1974. CASTRO, C. Evolucionismo Cultural, 2005. 7 MANNHEIM, K. Ideologia e Utopia, 1978.

3

As dificuldades que esta pesquisa apresentou foram principalmente de cunho

analítico pois as obras estudadas foram construídas sob diferentes temas e

contextos. Além disso, Manoel Bomfim e Franz Boas falavam a partir de

perspectivas diversas, tendo em vista que Franz Boas, na época de sua escrita, já

se encontrava bastante consciente do papel que exercia na antropologia enquanto

Manoel Bomfim escreveu tendo uma preocupação maior em refletir e desvendar os

problemas brasileiros do que elaborar uma teoria para um campo de saber

específico. Outra grande dificuldade foi buscar nos argumentos de ambos a

influência liberal citada na hipótese, pois, para isso, foi necessário um outro

parâmetro de comparação, sugerindo uma tríade, aumentando o grau de

complexidade da análise ao somar referências que não estariam em um só autor,

mas em um conjunto deles, tais como Rousseau8, Locke9 e Hobbes10.

A pesquisa será desenvolvida por meio de três segmentos. O primeiro deles

trará um estudo geral sobre a vida e obra de cada um desses autores assim como o

contexto social e político em que vivia cada um deles. O segundo capítulo será

dedicado ao exame do ideal igualitarista no Brasil e nos Estados Unidos assim como

trará as críticas de Boas e Bomfim em relação às teorias deterministas de fins do

século XIX. O terceiro capítulo se concentrará no estudo da ideologia liberal,

trazendo alguns de seus principais teóricos, e sua proposta será analisar o caráter

liberal dos discursos de Manoel Bomfim e Franz Boas em suas respectivas análises

sobre as chances de progresso em nações multirraciais, tal qual era o caso do Brasil

e dos Estados Unidos.

Em suma, a comparação teórica entre Manoel Bomfim e Franz Boas

pretendeu resgatar e sistematizar o esforço argumentativo de ambos em desafiar,

em um mesmo período histórico, as teorias deterministas racistas que 8 ROUSSEAU, J.J. Do Contrato Social, 2002. 9 LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. São Paulo: Editora Martin Claret Ltda, 2002. 10 HOBBES, T. Vida e Obra. 2004.

4

predominavam nas primeiras décadas do século XX. E esta comparação foi

realizada levando em conta principalmente o semelhante panorama mundial social

e político em que esses autores publicaram suas obras que poderão ter, ou não,

uma direta coincidência com a ideologia liberal posta naquele cenário intelectual e

científico.

Capítulo 1

Biografias e Contextos

O estudo da biografia dos autores é tema que reúne tanto a curiosidade do público

leigo quanto a de acadêmicos. O público em geral aprecia saber detalhes sobre a

vida pessoal dos autores, sua vida familiar e até mesmo os romances em que essas

personalidades estiveram envolvidas. Já o publico especializado busca conhecer

possivelmente que fato ou conjunto de fatos naquela biografia levou um autor a

levantar determinadas questões.

André Botelho1 atenta para esta ligação quando tece comentários sobre a

obra de Ronaldo Conde Aguiar2 sobre a vida e a obra de Manoel Bomfim. Segundo

Botelho, esta metodologia específica que teria origem na técnica francesa do

portrait de Saint-Beuve narra detalhes biográficos dos autores procurando

encontrar nessas pistas a união entre biografia e obra. “A obra e, num sentido mais

amplo, as ideias, são resultados de uma trajetória ou itinerário biográfico singular,

e não de tradições intelectuais ou de condições sociais, por exemplo3.” Para

Botellho, Conde Aguiar teria realizado uma biografia sociológica que privilegiou a

individualidade biográfica do autor, que procurou navegar entre o “texto” e o

“contexto”. Este tipo de abordagem ganha relevância principalmente ao estarmos

diante de obras cujos autores escolheram caminhar contrariamente ao que a elite

intelectual de seu tempo determinava como correto. Algo que suponho que tenha

ocorrido tanto nos casos de Manoel Bomfim quanto no caso de Franz Boas.

Manoel Bomfim, como já foi dito, contrariou as explicações racistas da época

e apostou em uma desacreditada educação como caminho para a revolução, e

1 BOTELHO, André. Retrato de Manoel Bomfim, Flagrante da História Intelectual

Brasileira. 2002: 85-91.

2 AGUIAR, Ronaldo Conde. O rebelde esquecido: tempo, vida e obra de Manoel

Bomfim. Rio de Janeiro: 2000. 3 BOTELHO, André. Retrato de Manoel Bomfim, Flagrante da História Intelectual Brasileira. 2002: 88

6

Franz Boas mergulhou no desconhecido mundo das etnias minoritárias nos

Estados Unidos da América para comprovar que cada grupo cultural detinha sua

própria racionalidade com amplas possibilidades de aprendizado, contrariando as

teorias racistas e deterministas de seu tempo. O objetivo deste capítulo é traçar um

resumo das biografias de Manoel Bomfim e Franz Boas, buscando destacar os

principais pontos de suas trajetórias profissionais que os levaram a tratar de

assuntos como a raça, a educação e a cultura.

Duas Biografias: Manoel Bomfim

Manoel Bomfim nasceu em 1868, na cidade de Aracaju, no Estado de

Sergipe. Veio de uma família de proprietários de terra, assim como muitos outros

intelectuais e escritores desta época. Faleceu no dia 21 de Abril de 1932, no Rio de

Janeiro, onde veio a desempenhar muitos trabalhos relacionados à educação. Sua

primeira formação foi no campo da Medicina, iniciando seus estudos em Salvador

para onde foi com dezessete anos, e se formou no Rio de Janeiro, no ano de 1890.

Trabalhou como médico na Secretaria de Polícia de 1891 a 1892 e teve dois filhos

com Natividade de Oliveira: Aníbal e Maria. Maria veio a falecer com um ano e dez

meses, fato este que desiludiu Bomfim em relação à Medicina, quando este passou

a se dedicar à área de educação.4

Em 1896, Bomfim foi convidado pelo então prefeito da cidade do Rio de

Janeiro, Francisco Furquim Werneck de Almeida, para ocupar o cargo de subdiretor

do Pedagogium. Instituição esta criada em 1890 pelo Governo Provisório para

supervisionar todas as atividades pedagógicas do país nesta época, ligando Manoel

Bomfim de forma direta ao contexto político-histórico de seu país. O Pedagogium

teria a função de supervisionar e de estimular reformas e melhorias no ensino

público, possibilitando a Bomfim um cargo em que pôde acompanhar de perto o

4 ALVES FILHO, Aluízio. Manoel Bomfim: combate ao racismo, educação popular e democracia racial, 2008: 16

7

descompasso entre os planos governistas e a realidade deficitária da educação

pública no país.5

Além disso, Bomfim ocupou o cargo de diretor de Instrução Pública no

antigo Distrito Federal entre os anos de 1895 e 1900 e entre 1905 e 1907. Em

1904, Manoel Bomfim também participou da Fundação da Universidade Popular de

Ensino Livre ligada ao Partido Operário Independente, com o objetivo de

proporcionar a educação de jovens e adultos, em uma instituição que representou

um marco na vontade de implantar um modelo de educação popular no Brasil. No

intervalo de tempo entre 1902 e 1903, em que Bomfim não exerceu atividades no

Brasil, ele esteve na França, especializando-se na disciplina de psicologia, fato que

aumenta a possibilidade de ter estado em contato com os ideais liberais justamente

no berço do iluminismo.

Bomfim também teve uma participação importante na imprensa através da

editoração e participação de artigos em Revistas voltadas principalmente para a

área de educação. Foi redator e secretário da revista A República e da Revista

Pedagogium, foi diretor da Revista Pedagógica de Educação e Ensino e um dos

fundadores da Revista Universal. Redigiu também a Revista Leitura para Todos, e

escreveu artigos para os jornais: O Correio do Povo, O Comércio, Ilustração

Brasileira, O País, Notícia e Tribuna.6

Mesmo na política, Manoel Bomfim teve uma rápida passagem quando

ocupou o cargo de Deputado Federal no lugar de Oliveira Valladão. Exerceu este

mandato de 17 de agosto de 1907 até 31 de dezembro de 1908. Ao fim deste

período candidatou-se à reeleição mas não conseguiu um resultado positivo. Após

esta experiência, passou a se dedicar ao magistério e à produção intelectual e

literária, onde conseguiu concluir um número expressivo de títulos.7

5 PRIORI, Angelo & CANDELORO, Vanessa. A Utopia de Manoel Bomfim: 2009.

6 Idem.

7 Idem.

8

Na área acadêmica, os dois temas que ganharam destaque na bibliografia

deste autor foram as condições de desenvolvimento social e econômico do Brasil, e

a educação brasileira. Dentre suas obras estão América Latina: males de origem8,

O Brasil na América9, O Brasil na História10, e O Brasil Nação11. Produziu também

especificamente para a área pedagógica como, por exemplo, Lições e Leituras para

o primeiro ano12 e Crianças e Homens13.

Bomfim, em seus escritos, se auto declarou um utopista, adjetivo também

usado por seus comentaristas. A maior utopia de Bomfim era ver o Brasil

desenvolvido, com seus problemas sociais sanados e com seu povo educado.

Ignorava as explicações deterministas da época e insistia numa revolução movida

pelo trabalho e pelo conhecimento. Além de um intérprete do Brasil, pode-se dizer

também que Bomfim foi um dos intérpretes da América Latina, pois soube apontar

as causas “de origem” dos problemas sociais e econômicos que apontavam na

época. Era sobre o modelo de colonização e na relação desigual entre colônia e

metrópole que Bomfim fixava seu olhar.

Duas Biografias: Franz Boas

Franz Boas nasceu em 1858 em Minden, localizada na região da atual Alemanha.

Residiu com os pais e com mais cinco irmãos em uma família judaica cujo pai era

um comerciante e a mãe uma professora de Jardim de Infância. Seus pais viveram

sob a influência das Revoluções de 1848 e, por isso, teriam sofrido uma forte

influência liberal, mais tarde passando-as para os seu filhos.14 As revoluções de

8 BOMFIM, Manoel. A América Latina: Males de origem, 2005.

9 BOMFIM, Manoel. O Brasil na América, 1997.

10 BOMFIM, Manoel. O Brasil na História, 2006.

11 BOMFIM, O Brasil Nação, 1996.

12 BOMFIM, Manoel. Lições e Leituras para o Primeiro Ano, 1922.

13 BOMFIM, Manoel. Crianças e Homens, 1922.

14 BOAS, F. A Formação da Antropologia Americana: 1883-1911, 2004: 63.

9

1848, capazes de interferir nas vidas de muitas famílias da Europa na segunda

metade do século XIX, corresponderam a um conjunto de fatos históricos de

alcance internacional que teve início na França e espalhou seus anseios por várias

partes da Europa, inclusive nos Estados Alemães. Este conjunto de Revoluções

uniu as forças da burguesia desejosa de entrar no comando político e também as

forças socialistas, preocupadas em sanar os prejuízos de uma economia

insatisfatória. Dessa forma, estabeleceu-se a junção de diferentes e até mesmo

contraditórios setores que estiveram juntos para derrubar monarquias e governos

autoritários. Entre outras coisas, as Revoluções de 1848 pregavam o nacionalismo,

a democracia, a liberdade e a igualdade. Por este perfil, pode-se dizer, portanto,

que Franz Boas foi criado em uma espécie de atmosfera de aspirações nacionalistas

e liberais.15

Especificamente nos Estados Alemães, o apelo se formou em torno de uma

Alemanha unificada, com um parlamento nacional e uma constituição única. Nestes

anos revolucionários o rei era Frederico Guilherme IV e as manifestações foram no

sentido de maiores conquistas no que diz respeito às liberdades civis e políticas. Os

pedidos pelo sufrágio universal e por uma Constituição uniram mais uma vez

burgueses e operários. No entanto, nos anos que seguiram imediatamente à 1848,

nem a unificação e nem a democracia foram possíveis. Após tentativas de reformas

lideradas por liberais redigindo nova constituição, prevaleceu a força e o poder das

contra-reformas lideradas pelos nobres conservadores latifundiários e por Frederico

Guilherme IV, conseguindo extinguir todas as tentativas de reforma e restabelecer o

autoritarismo e os privilégios nos Estados Alemães. A unificação Alemã só se deu,

contudo, em 1871, por liderança da Prússia e sob o comando do então chanceler

Otto Van Bismarck. Esta unificação, no entanto, não se deu democraticamente

conforme desejavam os liberais de 48, ao contrário, deu-se militarmente através de

15 FALCON, F. A formação do mundo contemporâneo, 1989: 28-38.

10

algumas guerras com alguns dos maiores adversários políticos da Prússia, como

a Áustria e a França. Ao fim da guerra com a França, em que a Prússia saiu

vitoriosa, obteve-se finalmente a unificação dos Estados Alemães, iniciando o II

Reich, sob o comando do Kaiser Guilherme I e do chanceler Bismarck, desde os

anos de 1871 até 1919.16

Porém, mesmo separado em federações e marcado por guerras e disputas

internas, o território alemão sempre foi conhecido por possuir a mesma base

linguística e cultural. E muito provavelmente este foi um dos motivos para que

Franz Boas tenha se aprofundado no ramo da antropologia e se interessado tanto

por este “espírito” que é capaz de unir pessoas em torno de uma só identidade

mesmo que sob regimes políticos distintos. Este elo invisível que por séculos uniu

imaterialmente os estados alemães e que, atualmente, de forma planejada ou não

alimenta o sentimento de nacionalismo de diversos territórios nacionais, inclusive

os Estados Unidos da América e do Brasil.

Antes de seguir pela antropologia, Franz Boas formou-se e realizou

pesquisas na área das ciências naturais, em especial a física, que, apesar do

aparente distanciamento com a antropologia, ajudou Boas a perceber que a

variabilidade cultural é capaz até mesmo de modificar algumas constatações

consideradas objetivas na área das exatas. Após passar por duas outras

Universidades, a de Heidelberg e a de Bonn, Boas defendeu sua dissertação de

doutorado “Contribuições para o entendimento da cor da água” na Universidade de

Kiel em 1881 sob orientação do geógrafo Theobald Fischer. A tese sobre a cor da

água questionou a interferência do ponto de vista do observador sobre aquilo que é

visto, lançando dúvidas sobre as exatas ciências naturais, suspeita que levou Boas

também a estudar os fenômenos psíquicos. A experiência sobre a água foi

determinante na biografia de Boas para que ele iniciasse o cruzamento entre o

16 Idem. Ibidem.

11

conhecimento e exato.

Sua primeira experiência de “campo” ocorreu entre os esquimós e foi

fundamental para a sua iniciação na Antropologia. Tal expedição foi necessária para

a conclusão de sua tese sobre o entendimento da cor da água e, após um ano como

voluntário no exército Alemão, Boas deu início a sua Pesquisa de Campo no

nordeste do Canadá. Após a expedição e de volta a Alemanha, Boas foi nomeado

assistente do Antropólogo Adolfo Bastian no Museum Für Völkerkunde em Berlim.

Sua trajetória, portanto, já havia sido modificada, dando início a sua jornada pelo

campo da antropologia.17

Em 1887, Boas mudou-se definitivamente para os Estados Unidos, para

conseguir melhores chances no campo da antropologia e devido às perseguições

anti-semitas em território alemão sob o comando de Bismarck. Neste período, os

Estados Unidos já ofereciam mais possibilidades de pesquisa científica e também

maior liberdade política. Lá, Boas se casou com Marie com quem teve seis filhos de

1888 a 1906, e dos quais um morreu antes de completar um ano.

A história mostra que Boas estava correto em sua avaliação profissional, já

em 1887 tornou-se editor da revista Science, escrevendo artigos e resenhas para

esta revista. Neste período ainda, viajou mais uma vez para British Comlumbia,

onde foi obter um maior conhecimento dos costumes, crenças, e línguas dos povos

do oeste dos Estados Unidos. Em 1889, Boas assumiu a cadeira de antropologia na

Clark University, porém poucos anos depois pediu demissão alegando pouca

perspectiva profissional. Em seguida, assumiu o cargo de assistente-chefe do

departamento de antropologia da World´s Columbian Exposition de Chicago, para

realizar uma feira em homenagem aos 400 anos da viagem de Colombo aos

Estados Unidos. Finalmente, em 1896, Franz Boas foi convidado para a

Universidade de Columbia, em Nova York, onde se tornou professor de Antropologia

17

BOAS, Franz. Antropologia Cultural, 2006: 18.

12

e onde até a sua aposentadoria ensinou as disciplinas de Teoria Estatística e

Línguas Indígenas Norte-Americanas.18

Franz Boas segue, portanto, em sua carreira acadêmica, na edição de

revistas científicas e na realização de suas obras, dentre elas The Mind of Primitive

Man19, editada pela primeira vez em 1911 e dedicada ao estudo da hereditariedade

que ajudou a desmistificar a crença sobre a inferioridade das raças. Nesta obra um

dos principais objetivos era comprovar que não havia diferenças significativas entre

os mecanismos de pensamento do homem primitivo e do homem civilizado.

Entretanto, um dos textos mais comuns dentre os programas das faculdades

brasileiras de antropologia é um artigo traduzido como As limitações do Método

Comparativo20, que é usado principalmente para apontar as falhas do método

evolucionista de classificação. Esse artigo delineia as primeiras condições para se

falar em um método histórico para se fazer antropologia. Nele, um ponto se

destaca: a necessidade de estudar cada cultura como uma unidade integrada,

levando em consideração sua historia, seus processos, suas relações e contradições

internas. Desta forma, a investigação da história da cultura combate frontalmente o

método comparativo antes praticado pela corrente evolucionista da antropologia,

pondo fim à conexão aleatória de semelhanças entre povos e culturas distantes,

assim como à procura por leis gerais que determinassem o comportamento e o

desenvolvimento humano. Boas inaugura o que podemos chamar de Método

Histórico da antropologia, apesar de não tê-lo sistematizado como seus críticos

desejavam. É verdade que a antropologia Boasiana não criou um sistema fechado

de ideias, contudo, demonstrou na conclusão de suas obras – perfeitamente

passíveis de críticas metodológicas – as ideias de um verdadeiro humanista que

18

SEEMANN, Jörn. Em busca de Franz Boas na Geografia Cultural, 2005: 11.

19 BOAS, F. The Mind of Primitive Man, 1943.

20 BOAS, Franz. As limitações do método comparativo da antropologia. In: Antropologia Cultural. Rio de Janeiro, 2006: 25-40.

13

sonhava divulgar amplamente a igualdade das raças.

A herança que a contribuição de Franz Boas deixou no Brasil ficou por conta

de Gilberto Freyre. O sociólogo de Apipucos recebeu orientação de Franz Boas na

Columbia University e foi fortemente influenciado por suas ideias em relação à Raça

e à Cultura. Graças à dissociação defendida por Franz Boas entre raça humana e

comportamento humano que Gilberto Freyre foi capaz de atribuir tamanha

importância à soma das culturas para explicar o Brasil em sua obra mais

importante: Casa-Grande & Senzala21. Desta forma estabeleceu-se uma influência

direta entre a sociologia brasileira e a antropologia norte-americana.

A influência política de Franz Boas foi considerável apesar de não ter

ocupado cargos políticos, nem mesmo rapidamente, conforme ocorreu com Manoel

Bomfim. Boas não escrevia somente para o público especializado, havia títulos

perfeitamente cabíveis ao grande público como, por exemplo, Anthropology and

Modern Life22, além de cartas dirigidas a públicos heterogêneos. Em uma escrita

muitas vezes inflamada conclamou aos seus leitores sobre as injustiças cometidas

sob a justificativa racial. No prefácio de The Mind of Primitive Man denuncia, sem

citar nomes, países que não teriam permitido a edição de seus livros devido as suas

críticas ao racismo. Franz boas também buscou diversas formas de comunicação

para divulgar suas ideias. Editou o Jounal of Americam Folckore, entre 1908 e

1925, e fundou o Journal of Americam Linguistics, em 1917.23 E suas publicações

ultrapassaram o número de 700 artigos entre resenhas e livros.24

É bastante possível que a antropologia cultural norte-americana, fundada

por Franz Boas, tenha sido fortemente influenciada pelo o ideal romântico alemão

que celebrou a individualidade dos povos, a singularidade das culturas, e a

21 Ver FREYRE, G. Casa-Grande & Senzala. Rio de Janeiro: Record, 1992; 2 v.

22 BOAS, F. Anthropology and modern Life, 1986.

23 SEEMANN, Jörn. Em busca de Franz Boas na Geografia Cutural, 2005.

24 ANDREWS et al., 1943 In Seemann, 2005.

14

existência das comunidades. Entretanto, parece-me que, especialmente na

biografia de Franz Boas, o Romantismo Alemão somou-se aos ideais liberais

franceses, e o sentimento de comunidade cedeu lugar à luta por direitos iguais,

celebrando também o respeito pela individualidade não só das comunidades mas

também dos indivíduos que, apesar de suas diferenças étnicas, poderiam viver o

sonho comum de uma nação.

Contextos sócio-políticos

Ao considerar as contribuições de Manheim25 e Ronaldo Conde Aguiar26 sobre as

congruências entre autores e os contextos sociais em que viveram, logo surge a

obrigação de vasculhar com um pouco mais de atenção os acontecimentos que

marcaram os últimos anos do século XIX e os primeiros anos do século XX no Brasil

e nos Estados Unidos.

O século XX se tornou um século diferente de todos os outros não só por ser

contemporâneo, mas por ter transformado de forma significativa o mundo e as

pessoas que viveram nele. Este século foi testemunha das fortes conseqüências da

Revolução Industrial na Europa e ao redor do mundo, da força do aço, e dos

milagres que a energia elétrica e o petróleo poderiam provocar. Assim como do

surgimento de Estados-nações, do reboliço e mortes por guerras, de vitórias e de

revoluções sociais, da ira do proletariado e da vitória dos burgueses, do nascimento

da democracia, de ditaduras e também da destruição progressiva do meio ambiente

trazendo suas cada vez mais comuns catástrofes naturais.

Por outro lado, o século XX também viu muitas conquistas em favor da

liberdade do indivíduo. As liberdades civis e os direitos humanos nunca foram tão

proclamados e exigidos. As minorias, mesmo confrontadas, nunca tiveram tanta

25

MANNHEIM, Karl. Ideologia e Utopia, 1968.

26 AGUIAR, Ronaldo Conde. O rebelde esquecido: tempo, vida e obra de Manoel

Bomfim, 2000.

15

voz. As constituições nacionais nunca tentaram ser tão justas e iguais. Jogos de

poder hierárquicos cristalizados pelo tempo tiveram a chance de serem igualados

ou mesmo invertidos, como foi o caso das (re)definições dos papéis sociais de

homens e mulheres em muitos países do ocidente. Trabalhadores acreditaram como

nunca que exerciam papel-chave na produção e saíram pelas ruas a lutar por

melhores condições. Privilégios hereditários se tornaram imoralidade e o modelo

político de monarquias autoritárias não foram mais tolerados. Era a vez da

República que objetivou unir os sonhos dos desejosos por mais liberdades e dos

explorados por mais igualdade.

E por todas essas mudanças que ocorreram por todo século XX, e que

tiveram suas raízes históricas ainda em fins do século XIX, que este segmento do

capítulo irá se debruçar um pouco mais sobre os acontecimentos políticos e sociais

que moveram em especial as sociedades brasileira e norte-americana neste

período. Sociedades nas quais os autores pesquisados estariam não só inseridos,

como também participativos em movimentos que ajudaram a transformar o

panorama desses países.

Contexto Brasil

Entre 1900 e 1905 Manoel Bomfim, juntamente com seus milhões de companheiros

de Pátria, ainda viviam os efeitos da Proclamação da República, ocorrida em 1889.

A Primeira República que derrubou o Imperador D. Pedro II, pondo fim ao período

monárquico no Brasil, foi o resultado de diversos fatores que incluíram desde um

desgaste contínuo da coroa a uma série de desentendimentos com as novas classes

que já começavam a surgir e lutar pelo poder. Segundo Carone27, tendências

federalistas, movimentos republicanos, crises religiosas, questões militares,

problemas escravistas, sucessão imperial, ascensão de novas camadas oligárquicas,

urbanização e a lenta renovação das instituições do Império foram alguns dos

27 CARONE, Edgard. República Velha, 1978.

16

fatores que levaram à formação da aliança entre militares e civis republicanos

que levou ao fim o Império brasileiro.

Ao contrário de um golpe inesperado, teria ocorrido muito mais um acordo

entre as elites até então insatisfeitas. O povo, mal instruído e mal informado, pouco

teria entendido o que ocorria nas as ruas do centro do Rio de Janeiro naquele 15 de

novembro. E, desse modo, um grupo de militares do Exército brasileiro liderado por

Marechal Deodoro executou um golpe de Estado no Imperador do Brasil. Sem

guerra e sem resistência. Após esse episódio, algumas mudanças administrativas e

políticas se deram, no entanto, para a maioria do povo não houve grandes

transformações, uma vez que a estrutura oligárquica latifundiária com poucos

direitos políticos se manteve. Tal ato inaugurou no Brasil uma prática de república

bastante diferente do ideal da res publica cuja teoria sugere que as coisas públicas

devem ser tratadas com interesse público pela população.

O Governo Provisório de Marechal Deodoro a Rodrigues Alves

O Governo Provisório ficou estabelecido no mesmo dia 15 de novembro da

Proclamação da República brasileira, na Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro.

Na composição do Ministério, ganham destaque o Exército e o Partido Republicano

Paulista. Marechal Deodoro é nomeado chefe do Governo Provisório, Campos Sales

se torna Ministro da Justiça, Aristides Lobo é o Ministro do Interior, Rui Barbosa se

torna Ministro da Fazenda, a Benjamin Constant é dado o Ministério da Guerra,

Quintino Bocaiúva é o Ministro das Relações Exteriores, Eduardo Wandenkolk, o

Ministro da Marinha e Demétrio Ribeiro se torna o Ministro da Agricultura, Comércio

e Obras Públicas.

Apesar do comando inicial de Marechal Deodoro, as principais mudanças são

lideradas por Campos Sales, no Ministério da Justiça, realizando mudanças

importantes como o casamento civil obrigatório, a separação da Igreja do Estado e

a organização da Justiça Federal. Pode-se dizer que todas essas primeiras

17

mudanças seguiram uma proposta liberal e positivista, típica do pensamento

republicano desta época, que buscava maior independência do Estado sob

fortalecimento de suas próprias leis fundamentadas na lógica e na racionalidade,

em detrimento do poderio internacional e dogmático da Igreja Católica.

O próximo passo do Governo Provisório seria dar início à instalação da

Assembléia Constituinte para a elaboração da nova constituição brasileira. Contudo,

a despeito de ter sido iniciada um ano após à Proclamação da República, dia 15 de

novembro de 1890, só é finalizada a 24 de fevereiro de 1891. Tal demora é fruto de

movimentos de discórdias, alianças e desacordos entre várias frentes que lutavam

por maiores ou menores limitações em relação a determinadas instituições a serem

criadas. Uma das maiores preocupações seria a dimensão do poder dado ao

legislativo que poderia ameaçar outros setores interessados. Dentre os resultados

desta constituição pode ser citado um poder maior dado aos Estados do que previa

o projeto do governo, e a vitória do modelo presidencialista do tipo americano em

vez do parlamentarismo britânico. Como medidas liberais teríamos a eliminação do

Poder Moderador, o fim do Senado vitalício, do Conselho de Estado e a introdução

do Federalismo, desconcentrando e equilibrando um pouco mais o exercício do

poder. Estaria fundado assim um regime republicano brasileiro baseado nos poderes

Executivo, Legislativo e o Judiciário, tal qual tantas Repúblicas liberais da Europa e

também nos Estados Unidos da América.28

Contudo, apesar dos progressos liberais, pressões de monarquistas de

setores desconfiados como o novo modelo governista resultaram em limites às

liberdades civis no país. O direito do voto fica permitido a todos os cidadãos

brasileiros no gozo de seus direitos civis e políticos desde que saibam ler e escrever.

Com esta condição, grande parte do corpo total de possíveis eleitores fica fora do

processo de participação política. Além disso, no campo da Economia, Rui Barbosa 28

LACOMBE, Américo. Resumo da História do Brasil, 1977: 54.

18

investiu na produção industrial brasileira, facilitando a criação de empresas,

dando-lhes vantagens e criando uma rede de bancos emissores. Tais medidas de

fato atraíram empresas para o país mas a especulação e o excesso de moeda

circulante estimulou a inflação dando início à crise do Encilhamento. Esta crise,

ocasionada pelo excesso de papéis-moeda circulante sem obter o lastro

correspondente, incidiu em um acelerado processo inflacionário que só vai ser

amenizado anos mais tarde.

No seguir dos anos, Marechal Deodoro foi eleito de forma indireta, conforme

previa a Constituinte, mas dentro de pouco tempo considerou não haver condições

de diálogo com o Congresso. Dissolveu o Senado e a Câmara dos Deputados,

configurando um golpe de Estado que rapidamente ganhou o apoio de quase todos

os governadores. Entretanto, desta vez as reações não foram tão tranquilas como

na época do fim do Império. Rebeliões se formaram e, debilitado, Deodoro da

Fonseca entregou o poder a Floriano Peixoto.

Mesmo diante de algumas recusas, que desejavam o anúncio de novas

eleições, Floriano Peixoto seguiu no poder até 1894, mesmo tendo que enfrentar

intensas Revoluções. A primeira delas foi a Revolução Federalista do Rio Grande do

Sul, contrária ao Partido Republicano, e que foi derrotada com alto grau de

violência. A segunda revolta também de grande importância foi a Revolta Armada

do Rio de Janeiro que contou com o apoio de outros federalistas revolucionários.

Todavia, mesmo contando com alguns pontos de apoio, os revolucionários sofreram

derrota ao tentar desembarcar no Rio de Janeiro.

Vitorioso em tantos combates, Marechal Floriano consolidou-se como um

nacionalista, encarnando o símbolo da nação contra federalistas e até mesmo

contra intervenções externas. E, por este motivo, não pode se dizer que tenha

defendido todos os ideais liberais sendo ele do Partido Liberal, pelo contrário,

durante seu regime se mostrou muito mais afeito às forças conservadoras se postas

em benefício do regime republicano na manutenção e fortalecimento do poder

19

central.

Prudente de Moraes, Presidente do Brasil entre 1894 e 1898, também teve

de enfrentar revoltas, dentre elas, umas das Revoltas mais diferenciadas e

importantes já vistas desde o início da República: a Revolta de Canudos. Os

protagonistas de Canudos foram a população pobre dos sertões nordestinos,

raramente lembradas pelo poder público central, destituída de ensino formal, de

instruções de higiene e sem qualquer notícia da cidadania pregada pela democracia.

Seu líder, Antônio Conselheiro, figura tão inusitada quanto o perfil desta revolução,

reuniu e guiou o povo do Sertão mediante sua figura carismática e à fé desse povo

tão carente. Conselheiro nada tinha de Republicano, pelo contrário, pregava de

forma religiosa a volta da Monarquia e o fim do casamento civil. Foram muitas as

expedições até canudos tentando acabar com esta revolução. Porém, o

desconhecimento do território e a força inesperada dos jagunços fizeram com que

várias expedições voltassem derrotadas para o Sul.

Ao fim de uma longa sequência de batalhas que deixou os republicanos

envergonhados, temerosos e desconfiados de um levante monárquico, a Revolução

de Canudos teve fim em 1897 com um ataque envolvendo quase 8000 homens.29

Mas a vitória de Canudos não repercutiu positivamente como era o esperado,

dizimar uma população tão carente provocou reações negativas e movimentos de

revolta. Ironicamente, graças às reviravoltas da política, após uma tentativa de

assassinato impedida pelo Ministro da Guerra Marechal Bittencourt com a própria

morte, Prudente de Moraes obteve apoio popular e seguiu com seu governo até o

fim do seu mandato.

Para administrar o quarto governo da Primeira República é eleito Campos

Sales. A marca de Campos Sales é demonstrada pela prevalência do campo

econômico, abrindo uma política de contenção de gastos e medidas fiscais para o

29

LACOMBE, Américo, 1977: 73.

20

aumento da arrecadação. A preocupação com o processo inflacionário faz com

que a estabilização financeira interna se torne um dos maiores objetivos deste

governo.

No que concerne aos direitos políticos, Campos Sales mostra-se com

tendências liberais quando apoia a existência dos partidos, segundo ele,

responsáveis pelo equilíbrio na sucessão dos governos. Mas critica que os

interesses regionais venham a se sobrepor aos interesses nacionais, indicando uma

postura bastante autoritária nesse sentido.30 Como resultado de sua política de

contenção, o orçamento encerrou-se no saldo, houve um processo deflacionário,

resgatou-se o papel-moeda e o governo pagou empréstimos e também teve início o

pagamento à dívida externa. Por outro lado, também devido a essas restrições,

houve menos dinheiro circulando, menos dinheiro para empréstimo, queda nos

preços, menos atividade econômica e mais agricultores infelizes com a queda de

seus lucros. De todo modo, a estabilização da economia e a seriedade das ações de

Campos Sales permitiram que ele terminasse seu mandato, mesmo com pouca

aprovação popular.

Rodrigues Alves substituiu Campos Sales nas eleições indiretas e teve seu

governo marcado pela tecnocracia e pelas obras que conseguiu realizar. Para

manter a estabilidade política, deu continuidade à ”política dos governadores” que

atribuía maior poder às oligarquias locais para que os reboliços da capital não

chegassem a ter alcance nacional. Aproveitou-se das contas equilibradas deixadas

por Campos Sales para promover obras na cidade do Rio de Janeiro que lhe

fornecesse um aspecto de limpeza, beleza e urbanidade. Para isso, nomeou como

prefeito da cidade do Rio de Janeiro Pereira Passos que, com a Câmara fechada e

com o seu diploma de Engenheiro, conseguiu realizar transformações radicais na

cidade.

30 CARONE, Edgard. República Velha, 1978: 123.

21

Dentre as obras realizadas para modernizar a cidade do Rio de Janeiro

estavam a demolição de extensas áreas de velhas construções, o alargamento de

ruas, a criação de novas avenidas como a Beira Mar, e a construção do Cais do

Porto. O resultado dessas obras foi fundamental para que o Rio de Janeiro entrasse

no mapa das cidades modernas de aspiração europeia, e o suficiente para cristalizar

um processo de fragmentação que só viria a se ampliar entre áreas de um Rio de

Janeiro rico e belo e outro feio e carente. Contudo, tamanhas transformações não

agradaram a todos, eclodindo uma revolta motivada por uma desconfiança

generalizada em relação ao governo e à eficiência da vacina obrigatória. Dentre as

motivações dos rebeldes, estariam a demolição de várias casas e cortiços para dar

lugar às novas vias, o pudor alegado pelos chefes de família em ter suas casas

“violadas” pelos agentes sanitários, e a resistência de setores contra-republicanos

prontos para apoiar qualquer início de Revolta. A exemplo dos casos semelhantes,

esta Revolta também foi abafada dentro de pouco tempo.

Essa pequena sequência dos principais feitos e circunstância dos quinze

primeiros anos da República sugerem que os primeiros presidentes tiveram mais

preocupação em manter a unidade federativa unificada do que em praticar os ideais

de liberdade e igualdade propostos pela Revolução Francesa e pela Revolução

Americana. A primeira constituição brasileira republicana, apesar de ter sido

inspirada na constituição norte-americana, pouco mudou a estrutura concentradora

de riqueza e oligarquia que já vinha dos tempos do Império. E, mesmo com os

escravos libertos, não é registrada nenhuma tentativa significativa de integrá-los

econômica e socialmente à sociedade brasileira. Ao contrário disso, o que existe

nesses anos é uma medida que legaliza todos os imigrantes que estivessem no

Brasil, em uma clara política de apoio à imigração para preencher os postos de

trabalho que se criavam.

22

Ideias e ideais brasileiros

O mundo das ideias da Primeira República brasileira estava alimentado não só por

acontecimentos gerados no seio de seu país, mas também por mudanças radicais

pelas quais passava o mundo naquele momento. A influência da Revolução

Francesa é direta e inegável, os escritos dos pensadores tais Comte31, Rousseau32 e

Locke33 estavam no discurso de muitos oradores da elite brasileira. O fim da

Monarquia e a derrubada dos privilégios da nobreza se tornaram inadiáveis mesmo

na falta de uma burguesia forte e numerosa.

No interior do movimento republicano, dentre as correntes principais, havia

o positivismo, o liberalismo e, de forma menos expressiva também o socialismo e o

anarquismo. E além dessas correntes conceituais, havia as tradições que

apresentavam um perfil mais particularizado, a exemplo dos Jacobinos, a ala mais

extremada do republicanismo, que apareceria ainda muitas vezes como

protagonistas de turbulências e repressões na Primeira República.

Entre os republicanos históricos havia os que se ligavam à corrente liberal spenceriana e federalista, à moda Alberto Sales e dos paulistas em geral, e os que se inspiravam antes na tradição da Revolução Francesa, que favorecia uma visão mais rousseauniana do pacto social, mais popular e centralista, ao estilo Silva Jardim Lopes Trovão e Joaquim Serra. E havia ainda os positivistas, que exultaram com o advento do novo regime, julgando ter chegado a hora, a que se consideravam destinados, de exercerem a tutela intelectual sobre a nação.34

O Partido Republicano que vigorou no período da Primeira República teve

início em 1873 e foi extinto em 1937. Entre as primeiras medidas tomadas pela 1ª

República esteve a extinção do bipartidarismo que acompanhara a vida do 2º.

Reinado - Partido Conservador e Partido Liberal. O Partido Conservador foi

31

COMTE. A. Vida e Obra, 2004.

32 ROUSSEAU, J. J. Do Contrato Social, 2002.

33 LOCKE, J. Segundo tratado sobre o governo, 2002.

34 CARVALHO, José. Os Bestializados: 24

23

perseguido por ser inimigo direto da República, por desejar a Restauração e por

querer trazer de volta o sistema de aristocrata de privilégios que se instaurou no

Império. Já o Partido Liberal não encontrou apoio o suficiente em um contexto que

não lhe favorecia. Afinal, que chances um Partido Liberal de tendências burguesas

poderia ter em um cenário ainda extremamente oligárquico e ditatorial?

O Partido Republicano Paulista, por sua vez, instaurou-se no poder e só

cedeu espaço ao também Partido Republicano Mineiro. Esse núcleo principal do

Partido Republicano revezou-se no poder nos anos da Primeira República e

empossou seus líderes através de voto indireto. O setor mais radical do

republicanismo ficou conhecido como “jacobinos”, em alusão direta ao movimento

radical existente na Revolução Francesa empenhado no fim da Monarquia. Os

jacobinos, em geral, eram totalmente avessos às intervenções de origem

portuguesa, a favor dos governos ditatoriais e da contenção imediata e violenta das

revoltas federalistas. A saber:

Os jacobinos mantiveram um clima generalizado de tensão política, especialmente durante a campanha de Canudos no governo de Prudente de Moraes. Quebravam jornais, promoviam arruaças, vaiavam congressistas, espancavam e matavam portugueses, perseguiam monarquistas, assassinavam inimigos. Em 1897 tentaram matar o presidente da República, depois de terem feito o mesmo com o último presidente do conselho de ministros da monarquia.35

Dentre as correntes de pensamento ativas no Brasil, uma das quais mais se

destacaram foi a corrente positivista que, aliás, guarda uma história bastante

peculiar no Brasil. Obtendo um grande sucesso entre as classes médias e militares,

foi capaz de se transformar em metodologia, ideologia e até mesmo religião. A

Filosofia Positiva criada por Auguste Comte procurou transportar para a vida política

e social a lógica positiva utilizada nas ciências naturais. A doutrina positivista

prioriza a experiência, a causalidade e as certezas, buscando leis gerais. No meio

35 CARVALHO, José. Os Bestializados: 23

24

social seria necessário buscar o por quê dos fenômenos para melhorar seus

resultados. Como planejamento de governo, o positivismo transformou-se em lema

para a manutenção da ordem em torno de um poder central voltado para o bem

geral. Acreditava-se que estando o legislativo nas mãos do executivo poder-se-ia

ganhar tempo e promover mais rapidamente o progresso, se a vontade do

governante estivesse voltada para a racionalidade. A racionalidade deveria estar

acima de todos os dogmas religiosos, políticos ou ideológicos. E seguindo este

pensamento, as ditaduras republicanas que se seguiram após a proclamação da

república tornar-se-iam perfeitamente viáveis ao invés de estabelecer um contra-

senso. Pois o Positivismo comtiano, no qual se inspiraram tantos nomes da primeira

república, não era essencialmente liberal e sim essencialmente ordeiro,

centralizador e voltado para o progresso.

A forma do Positivismo no Brasil teve a vantagem de transformar-se em

ação prática, feito que muitos outros ideais não conseguiram, tornando-se

utópicos. Guerreiro Ramos36 aponta como um dos principais teóricos do

Positivismo no Brasil o intelectual Teixeira Mendes, que acreditava na transformação

gradual da sociedade através do esclarecimento dos homens, e que a regeneração

mental e moral desses mesmos homens traria como consequência a reforma

política das sociedades humanas. Guerreiro Ramos apontou, ainda, como grande

vantagem do positivismo possuir um programa de governo com metas claras e

possíveis, tais como a supressão da hereditariedade monárquica, a supressão da

religião de Estado, a promulgação de instituições civis que assegurassem a

liberdade de pensamento do indivíduo e a abolição da escravidão.

O resultado da influência do positivismo na Primeira República pode ser

encontrado na série de governos republicanos autoritários que se sucederam e

mesmo na tendência tecnocrata de suas administrações. A técnica e a ciência

36 RAMOS, Guerreiro. Introdução Critica à Sociologia Brasileira. 1995.

25

poderiam certamente substituir as longas discussões que tanto atrasavam as

decisões. Para fazer bastaria saber para saber. Este modelo técnico e autoritário

pode ser vislumbrado, por exemplo, no modo como foram feitas as grandes

reformas urbanísticas pelo prefeito-engenheiro Pereira Passos durante o período em

que a Câmara e o Senado estavam dissolvidos, justamente para apressar todo o

mecanismo de compra, venda e execução de obras.

Outro de pensamento do período da Primeira República seria o Liberalismo.

O ideais liberais nascidos na revolução Francesa que se espalharam pelo mundo

também chegaram ao Brasil, através de seus políticos e intelectuais, muitas vezes

tendo como intermediários os próprios portugueses. Porém, para José Murilo de

Carvalho37, os ideais liberais já estavam presentes desde a Monarquia, surgindo na

forma de modificação de práticas e leis que se deram ao logo de todo século XIX. A

Lei de Terras, em 1850, que permitia a propriedade privada pode ser um bom

exemplo deste tipo de atitude. A permissão das Sociedades Abertas, abrindo o

capital para investidores também corresponderia a uma típica prática liberal e foi

realizada ainda em tempos imperiais, em 1882. As liberdades individuais tão

próprias do liberalismo como a liberdade de pensamento, de reunião e de profissão

também já haviam sido concedidas pelo governo imperial. E, talvez um dos maiores

símbolos liberais desta época, a abolição da escravidão, também foi assinada por

alguém da família Imperial, atraindo, por isso mesmo, a simpatia da população

negra e das classes desprivilegiadas.

Talvez a novidade que a Constituição de 1891 tenha trazido de mais

revolucionária em termos de direitos políticos individuais tenha surtido pouco efeito

na prática. O término da exigência de renda mínima para a franquia eleitoral não

teve efeitos diante da persistência da alfabetização para possuir o direito ao voto.

Deste modo, os analfabetos não podiam votar porque não eram cidadãos

37 CARVALHO, José. Os Bestializados, 1987.

26

completos, no entanto, uma vez fora do processo político devido a esta restrição,

pouco tinham a fazer para melhorar sua situação.

Exigia-se para a cidadania política uma qualidade que só o direito social da educação poderia fornecer e, simultaneamente, desconhecia-se este direito. Era uma ordem liberal, mas profundamente antidemocrática e resistente a esforços de democratização. 38

O socialismo também esteve presente com o apoio de intelectuais e

movimentos operários, mas não chegou a ter uma força significante neste

momento, talvez até mesmo pela diminuta parcela de operários atuantes no Brasil

nesta época. A corrente anarquista que era um pouco mais potente fazia-se

presente junto a levantes e jornais de esquerda. Porém, trazida por imigrantes que

vieram a sofrer perseguições em governos militares, não conseguiu adesão maciça

das camadas populares que, a despeito de todas as novidades, ainda guardava

respeitos e saudades da antiga monarquia. De todo modo, a única corrente que

parece não ter obtido qualquer sucesso durante a Primeira República foi a

Democracia, com este regime figurando uma série de governos autoritários cuja

principal meta foi manter a união do país mesmo que através de punições, prisões,

extradições, lutas e massacres.

Contexto Estados Unidos

No segmento anterior percebeu-se que para entender os ânimos do período

histórico das publicações de Manoel Bomfim, foi necessário regressar um pouco

mais, pois, no momento da virada do século, o Brasil ainda vivia fortemente as

consequências da Proclamação da República e do modo como ela foi instaurada. Da

mesma forma, para investigar o período histórico das publicações de Franz Boas,

também ocorridas nos primeiros anos do século XX, é necessário fazer um regresso

histórico às questões mais importantes ocorridas nos Estados Unidos nesse período.

38 CARVALHO, José. Os Bestializados: 45

27

Revolução Americana, Guerra Civil e a primeira constituição republicana

Se para o Brasil um marco importante é a Proclamação da República em

1889, o grande marco para os Estados Unidos é a Revolução Americana. A

Revolução Americana, no entanto, ocorreu de maneira muito diferente da República

brasileira. Primeiramente, a participação popular por parte de uma burguesia de

fato existente em uma sociedade já em processo se industrialização deu o tom

desta Revolução. Somado a isso, tem-se verdadeiramente um impasse entre

colonizado e colonizador, pois a população dos Estados Unidos não estava mais

satisfeita com a situação economicamente desvantajosa de permanecer colônia, e o

colonizador britânico desejava manter forçadamente esta situação.

Para executar o levante, o Congresso adotou a Declaração da

Independência, no dia 4 de Julho de 1776, redigida por Thomas Jefferson que

imortalizou as seguintes palavras: “Sustentamos ser evidentes por si mesma a

verdade de que todos os homens nascem iguais, são dotados pelo seu Criador de

certos direitos inalienáveis, e que entre estes direitos estão a Vida, a Liberdade e a

busca da Felicidade39”. Estaria justificada, então, o início da Revolução e estariam

proferidos os ideais que guiariam muitas constituições ao redor do mundo.

Para tornar realidade as palavras de Thomas Jefferson foram necessários

seis anos de duros embates entre o exército da colônia comandado por George

Washington e o exército britânico em solo norte-americano. Mesmo com muitas

perdas, o exército da colônia conseguiu a vitória auxiliada por uma valiosa ajuda

financeira da nação francesa somada ao envio de tropas para reforço vindas desta

mesma nação. Após esse período, os Estados Unidos finalmente conseguiu o

reconhecimento de sua independência e elaborou, então, a primeira Constituição

política do mundo. Não foi fácil estabelecer uma constituição geral para uma Nação

39 MORRISON-COMMAGER. História dos Estados Unidos da América: 35

28

cuja principal característica era existência de Estados fortes com interesses

bastante particulares, além disso, legitimar um poder central poderia significar para

esses estados ceder poder e ficar vulnerável a mais taxações.

Para a elaboração da constituição foi instaurada a Convenção Constitucional

da Filadélfia para que os Representantes de Estado chegassem a um acordo. O

desafio, portanto, era estabelecer um caminho do meio entre a promulgação do

governo central e uma relativa autonomia das ex-treze colônias. Um dos pontos

concordados era a existência dos três poderes, o Executivo, o Legislativo e o

Judiciário, interligados em um funcionamento harmonioso em que nenhum deles

pudesse controlar os outros dois. A ideia dos três poderes equilibrados e

harmônicos já era conhecida por meio de pensadores como Locke e Montesquieu, e

se efetivou sem maiores problemas. Outro mote seria a existência de duas casas de

parlamento também visando o equilíbrio, onde uma seria responsável por votar leis

e orçamentos e a outra para planejar e solucionar a política externa.40 O Brasil,

conforme vimos anteriormente, se encarregou de levar essas e outras decisões

para sua própria constituição de 1889, tendo reconhecida imediatamente a sua

réplica pelos norte-americanos. Vejamos as palavras de Robert Adams, um

Republicano, na função de ministro americano junto a corte imperial, em telegrama

ao seu presidente no dia 19 de novembro de 1889:

Em minha opinião, a forma republicana de governo está firmemente estabelecida, mesmo que o atual ministério caia. Nossa constituição e bandeira foram copiadas, e, pensando em nossas futuras relações desejo que nosso país seja o primeiro a reconhecer a republica41”

E, após a independência dos Estados Unidos estar proclamada, o grande

acontecimento transformador da sociedade norte-americana foi a Guerra Civil, ou

Guerra de Secessão, travada entre os Estados do Norte e os Estados do Sul dos

Estados Unidos, que se estendeu até 1865 com a vitória dos países do norte. 40 NEVINS, Allan. História dos EUA, 1967: 163

41 BRASIL. 1989. In: RAFAELLI, 2006: 53.

29

A Guerra civil dos Estados Unidos, além de um conflito interno,

estabeleceu a luta de duas mentalidades, de dois sistemas econômicos e de dois

sistemas políticos. Os Estados do Norte tinham como opção econômica o comércio,

a manufatura e a industrialização, juntamente com a mão de obra livre e com sua

vida social voltada para os centros urbanos. E os Estados do Sul, em posse de solos

férteis, havia optado por uma economia baseada na agricultura e no modelo do

plantation, ocasionando uma distribuição mais concentrada da renda nas mãos dos

latifundiários muito dependentes de mão de obra escrava e com sua vida social

voltada para as grandes fazendas.

O estopim da Guerra Civil foi a eleição de Abraham Lincoln para presidente

dos Estados Unidos, que, como grande abolicionista que era, atraía a simpatia dos

negros e o ódio dos latifundiários do sul de seu país. O motivo mais relevante que

teria feito os Estados do Sul contrariarem a constituição norte-americana era o

desejo de abolição da escravidão de um norte já industrializado. Os Estados do Sul

sentiram-se seguros para entrar na guerra pois acreditaram que o norte industrial

não teria como sobreviver sem seus provimentos. Assim, os latifundiários do sul

que produziam principalmente algodão, arroz e milho promoveram um Congresso

em fevereiro de 1861 e declararam a fundação dos Estados Confederados da

América sob a liderança de Jefferson Davis, dissolvendo, dessa forma, a República

dos Estados Unidos da América. A seguir, as justificativas sulistas:

“As causas da secessão, segundo as consideravam seus protagonistas, foram expressadas com clareza pelas convenções dos estados. “O povo dos Estados do Norte,” declarou a de Mississippi, “assumiu uma posição revolucionária em relação aos Estados do Sul.” ”Seduziram nossos escravos fazendo com que eles nos deixassem” e dificultaram sua entrega que a lei sobre escravos fugitivos garantia. Reivindicaram o direito “de proibir a escravidão nos territórios” e em qualquer Estado que no futuro seja admitido na União. “Insultaram e ultrajaram nossos concidadãos em viajem entre eles... tomando seus servos e pondo estes em liberdade”. “Estimularam uma invasão hostil de um Estado do Sul para provocar a insurreição, a matança e rapina”. A tudo isso acrescentava a Carolina do Sul: “Qualificaram de pecaminosa a instituição da Escravatura, permitiram

30

funcionar abertamente entre eles” sociedades abolicionistas, e “uniram-se para eleger para alto cargo de Presidente dos Estados Unidos um homem cujas opiniões e propósitos são adversos à escravatura. 42

O trecho anterior em que estão elencadas algumas das justificativas de

estados sulistas como Mississippi e Carolina do Sul são interessantes para realizar o

exercício da inversão e perceber como um mesmo argumento liberal e até mesmo

republicano pode servir como base para propósitos completamente diferentes. Os

abolicionistas dos estados do norte, com fundamentos liberais, defendiam o direito

natural da liberdade entre os seres humanos, classificando a escravidão como um

arbítrio ou anormalidade. Os mesmos apoiavam-se em sua constituição para

apontar a traição da confederação dos estados do sul na tentativa de se separar,

ferindo o princípio de união dos Estados Unidos. Os escravistas dos estados do sul,

por sua vez, com argumentos igualmente liberais, exigiam que seu modelo

econômico fosse respeitado, e que suas leis em favor da escravidão não fossem

violadas. Defendiam a liberdade, sim, mas a liberdade de propriedade e a liberdade

de cultivarem suas terras conforme quisessem e suas leis permitissem. Para os

estados do sul, princípio da igualdade entre os seres não necessariamente deveria

ser concretizado em todos os indivíduos, podendo estar de fora a população negra

se as suas regras particulares assim ditassem. E, mediante todo esse raciocínio, os

estados sul achavam-se perfeitamente legitimados na tentativa de cessão como

resposta à traição iniciada pelos estados do norte, que não respeitaram as leis e as

determinações em vigor.

O período de Guerra Civil naturalmente provocou danos e gastos tanto nos

estados do norte quanto nos estados do sul. Entretanto, o norte e seu modelo

econômico capitalista industrial demonstrou ter tirado mais vantagens desse

processo, o que contribuiu para a vitória do norte sobre o sul. Um deles foi a maior

42 MORISON, S. & COMMAGER, H. História dos Estados Unidos da América. 1973: 223.

31

quantidade de imigrantes nos estados do norte, que por sua constante

necessidade de mão de obra contava com mais pessoas dispostas a alistarem-se

para a guerra. Outro fator importante foi a saída marítima que Abraham Lincoln

encontrou para suprir a necessidade das indústrias. Os estados do norte foram

procurar do outro lado do continente os provimentos necessários para continuar

sua industrialização. A malha ferroviária mais eficiente também teria favorecido o

norte, tanto no escoamento da produção quanto na mobilidade dos soldados. E

mais um fator indiscutível seria uma força naval superior dos estados do norte

capazes de efetuar um bloqueio econômico para o sul através do mar. Todos esses

fatores contribuíram para que os Estados da América do Norte se unissem

novamente e desta vez sob o julgo dos estados do norte e seus ideais de liberdade

e democracia43.

No mais, os Estados Unidos como um todo saíram fortalecidos da Guerra

Civil. Apesar das intensas baixas - os números divergem mas fala-se algo entre

500.000 e 600.00 americanos – as indústrias tiveram que se transformar para

continuar funcionando, tecnologias tiveram de ser incorporadas para aumentar a

produção, terras do oeste foram urbanizadas, a metalurgia se fortaleceu, o

transporte ferroviário cresceu e o comércio se expandiu. E os anos de paz que se

seguiram só serviram para aumentar ainda mais essa potência produtiva que

mostrou toda sua força para o mundo na Primeira Guerra Mundial.

O crescimento dos Estados Unidos entre os anos de 1850 a 1900 fora

espantoso. Dispondo de recursos naturais abundantes e um enorme quantitativo de

imigrantes com o objetivo de trabalhar e enriquecer, este país mudou radicalmente

seus números. Neste período, sua população aumentou de cinco para setenta e seis

milhões de habitantes, e sua riqueza interna de sete para oitenta e oito bilhões de

dólares. O ideal da educação livre e pública tinha sido alcançado, o ideal da

43 MORISON, S. & COMMAGER, H. História dos Estados Unidos da América. 1973: 229.

32

imprensa livre mantido e o ideal da liberdade religiosa conquistado. Vejamos toda

essa movimentação entre 1870 e o início do século XX nas palavras do historiador

Hofstader :

“During this period American settlers and entrepreneurs had filled up a vast area of a land between the Mississippi River and California and had spanned the country with a railroad network of more than a quarter of million miles. The number of farms (…) had doubled (…) and the production of wheat, cotton and corn had increased (up to) two and-a-half times (…) whole systems of industry and (...)industrial production were created (…) the production of... coal increased five times of (…) petroleum twelve times, of steel (products) more then 140 times. The urban population jumped from 9.9 million to 30.1 million (…). Toward the end of century it became (…) evident that all this material growth had been achieved at a terrible cost in human values and in the waste of natural resources. 44.

É claro que a amplitude de desenvolvimento em direção à condição de

potência capitalista acabaria por gerar problemas típicos de sociedades modernas

capitalistas, como o surgimento das desigualdades, crises cíclicas na economia,

concentração de riqueza, desemprego e subemprego, proliferação de doenças

contagiosas e atritos culturais entre brancos e negros. Essas falhas foram

observadas e apontadas pelos progressistas da época que desejavam o

aperfeiçoamento de sua sociedade e que, paulatinamente, em um regime liberal

foram efetuando dispositivos políticos e legais para sanar esses problemas, que,

como sabemos, até hoje perduram em maior ou menor grau.

Ideias e Ideais norte-americanos

Destrinchar todas as ideias que poderiam estar povoando as mentes dos

governantes e dos intelectuais norte-americanos em fins do século XIX é uma

44

Durante este período, os colonos americanos e os empresários tinham conquistado uma vasta área de terra entre o rio Mississípi e a Califórnia, e tinham expandido o país com uma linha férrea de mais de um quarto de milhão de milhas. O número de fazendas (...) tinha dobrado (...) a produção de trigo, algodão e milho teve um aumento de até duas vezes e meia (...) todo sistema de produção industrial cresceu (...) a produção de carvão aumentou cinco vezes (...) a de petróleo doze vezes, a de aço (produtos) mais de 140 vezes. A população urbana saltou de 9,9 milhões para 30,1 milhões (...). Perto do fim do século, tornou-se (...) evidente que todo esse crescimento material tinha sido conseguido a um custo terrível em valores humanos e na perda de recursos naturais. (tradução minha). Hofstadter, 1969, p. 70 et.seq. In Sousa, M. Brasil e Estados Unidos: nação imaginada: 28

33

tarefa impossível. Seja pela distância física e temporal do cenário em questão,

seja pela dificuldade em si que essa tarefa traz. Mas é possível delinear algumas

ideias que provavelmente eram conhecidas de muitos dos que se dedicavam às

letras ou, até mesmo, poderiam ter acesso a elas através dos meios de

comunicação. Essas ideias talvez possam iluminar a análise de certas teorias que

aqui serão tratadas. Algumas são de extrema abrangência e impacto tal como é a

teoria Darwinista sobre a Origem das Espécies.

A obra Origin of Species45 de Charles Darwin publicada em 1859 gera um

impacto em diversos ramos de conhecimento e nas mentalidades de forma geral.

No aspecto religioso, essa teoria já causa um estrondo pelo próprio princípio: não é

Deus o benfeitor criador da vida humana, a vida humana é o resultado de

complexos processos evolutivos da vida em geral. Esta doutrina, apesar de

controversa, se difundiu rapidamente pelo mundo, através de artigos de Revistas e

Conferências. Seu aspecto evolucionista traz como um dos argumentos principais

que organismos complexos derivam de organismos mais simples. Ou seja, de que

por meio da adaptação organismos mais simples vão pouco a pouco

complexificando seus mecanismos internos para sobreviver. A teoria da evolução

biológica, assim como seu paralelo, a teoria da evolução social, ganhou

rapidamente adeptos ao redor do mundo que as utilizaram com ou sem critérios

para explicar toda sorte de fenômenos sociais. E assim a teoria da evolução foi

incorporada a diversos campos de pensamento, como o Direito, a História, a

Economia, a Sociologia, a Filosofia, a Religião e a Arte.

A Teoria sobre a origem das espécies também contribuiu para pôr em debate

o transcendentalismo e fortalecer o pensamento do pragmatismo. Todo esse

movimento de racionalização das ideias não tem início em um ponto fixo do mundo

45 O livro A Origem das Espécies teve grande impacto por apresentar, dentre outros temas, a Teoria da Evolução e a Teoria da Seleção Natural, que defendem o progressiva evolução das espécies dos organismos mais simples até os organismos mais complexos. Ver DARWIN, C. A Origem das Espécies, 2004.

34

mas pode ser dito que houve maior divulgação após a Revolução Francesa e

divulgação dos escritos de seus pensadores. A progressiva substituição do

pensamento mitológico pelo racional por parte dos intelectuais da época resultou

em todo um rearranjo de explicações sobre os fenômenos. A necessidade de

demonstração dos fatos e até mesmo a metodologia do materialismo histórico fez

com que alguns dogmas religiosos e sociais fossem revisitados à luz da razão e

outras conclusões passaram a ser defendidas.46

O pragmatismo somado à racionalidade desestabilizou verdades e fez com

que qualquer conclusão pudesse ser verificada. Essa possibilidade de reavaliação se

adequaria perfeitamente à sociedade norte-americana que acabara de se formar e

que precisava estabelecer verdades próprias e, ao mesmo tempo, verdades

mutáveis. Necessitando impor leis próprias, mas antes de tudo leis humanas,

contestáveis e sujeitas a mudanças conforme a transformação da própria

sociedade. E o empirismo, por sua vez, pôde dar fundamento a todas as

descobertas realizadas em prol da ciência e do crescimento econômico, tornando os

Estados Unidos um campo fértil para o progressismo que lá foi se instalar.

O clima de mudanças políticas, a prática dos ideais de liberdade e igualdade,

e a mentalidade acadêmica aberta a mudanças e reavaliações provavelmente

forneceu os instrumentos necessários para que estudiosos como Franz Boas

viessem a contestar a doutrina da desigualdade das raças. A aposta de Boas em

uma série de testes e pesquisas por própria conta para comprovar a igual

capacidade das raças, assim como a plena possibilidade do negro e do índio serem

integrados à sociedade norte-americana, sem dúvida, ajudou a compor a unidade

do sonho americano.

46 MORISON, S. & COMMAGER, H. História dos Estados Unidos da América. 1973: 270.

Capítulo 2

Sobre a Igualdade e a Desigualdade Racial

Este capítulo será dedicado a relacionar o ideal de igualdade no Brasil e nos Estados

Unidos ao tema racial. No primeiro segmento será feito um resgate das obras do

historiador Jackson Turner1, dos Estados Unidos, e do também historiador Oliveira

Lima2, do Brasil, através do título de Melissa Sousa3, procurando identificar de que

maneira o sentimento de igualdade contribuiu para a construção do nacionalismo

nessas duas sociedades multiétnicas. E, seguidamente, será feita uma análise sobre

o problema racial para Boas e Bomfim com o detalhamento de suas respectivas

argumentações para combater a doutrina racista e sustentar a crença de ambos em

uma pretendida igualdade racial.

A construção do sentimento de igualdade no Brasil e nos Estados Unidos

No primeiro capítulo vimos que Brasil e Estados Unidos possuem histórias

semelhantes. Para iniciar suas histórias modernas, esses países tiveram de

enfrentar a natureza em estado primitivo, precisaram enfrentar interesses diversos

entre nativos e colonizadores, necessitaram ultrapassar fronteiras e construir

civilização nas mais diversas paisagens. Além disso, Brasil e Estados Unidos

passaram por um grande impacto derivado da imigração em parte europeia e em

parte africana.

1 SOUSA, Melissa. Brasil e Estados Unidos: nação imaginada, 2008. 2 Frederick Jackson Turner (1861-1932) foi um historiador americano cuja principal obra: TURNER, J. The Significance of the Frontier in American History. 3ª ed. Malabar. Krieger: 1985, ainda não foi traduzida e nem publicada no Brasil. 3 Manoel de Oliveira Lima (1867-1928) foi um escritor e embaixador do Brasil em diversos países, escreveu diversas obras históricas sobre o Brasil. Dentre elas, OLIVEIRA LIMA, M. Formação Histórica da Nacionalidade Brasileira: 1997

36

Em termos sócio-culturais, Brasil e Estados Unidos tiveram a tarefa de

conciliar diversas nacionalidades buscando a concretização de uma nação e a

integração do elemento negro e índio em igualdade de condições apesar da

exploração que esses povos sofreram. E se as duas nações um dia foram colônias,

tiveram de escrever com suas próprias mãos o dia de sua independência, que nem

em um, nem em outro caso foi dada de presente, mesmo sob circunstâncias

díspares. A abolição ocorreu antes aos Estados Unidos na condição de guerra, para

só depois chegar à pátria verde e amarela, ainda na condição de reinado. Impondo

independência total e a construção de uma nação chega a República aos Estados

Unidos, para só mais tarde chegar ao Brasil, ainda com ares de oligarquia. No

caminho da Industrialização, os Estados Unidos conseguiram números muito mais

expressivos em um tempo que a riqueza do Brasil ainda vinha das fazendas e dos

cafezais. Porém, como semelhança importante pode-se destacar a habilidade de

seus governantes em manter a unidade territorial e política desses países, mesmo

tendo que utilizar a guerra e governos autoritários para isso.

No entanto, na realização dessas repúblicas, o direito da igualdade ganhou

traços diferentes nas duas nações. Se formos seguir a avaliação de Melissa Souza4,

as origens históricas dos Estados Unidos já compõem para a formação de uma

sociedade mais igualitária do que a brasileira. O imigrante, ao chegar nos Estados

Unidos, teria de enfrentar a natureza com seu corpo e sua vontade, para conquistá-

la e para obter riquezas através de seus esforços. Em uma colônia de povoamento,

como foi o caso dos Estados Unidos, todos os imigrantes de muitas partes do

mundo chegam no objetivo de construir riqueza e apostar em uma vida melhor.

Desejavam de fato construir uma nova nação nos aspectos morais, legais e

ideológicos. A marcha para o Oeste seria para homens bravos e aventureiros que

fariam tudo para manter a dignidade neste novo país, com um povo “novo”, com

regras novas.

4 SOUSA, Melissa. Brasil e Estados Unidos: nação imaginada. 2008.

37

O homem norte-americano que deixa sua sociedade para trás e é

regenerado pela natureza vai em busca de uma sociedade mais justa e igualitária e,

por isso mesmo, não irá deixar cair em demagogia o princípio da igualdade e da

democracia, e nem abrir mão do direito da liberdade. A questão da democracia,

então, se torna crucial no debate norte-americano, sustentada pela crença geral

nos valores da liberdade e da igualdade, em uma sociedade que fora feita por meio

da coragem dos imigrantes e que, portanto, precisava factualmente ser dirigido por

eles. E se isto não correspondia à realidade, ao menos era caminho a ser seguido.

Segundo Souza5, ao analisar a obra do historiador Jackson Turner6, a

conquista do Oeste realizada por homens comuns, que não se ilustraram nas

universidades, será o ponto de partida para uma sociedade igualitária. A força

desses homens, em contato direto com suas terras e com os perigos da natureza

irá ditar o clima de respeito mútuo pela conquista de um novo continente. Toda

referência ao aristocrático, ao privilégio, incluindo os saberes dos intelectuais

europeus e suas cátedras nas universidades parecerão ameaçadores.

O mérito do esforço pessoal e a simbologia do homem comum seriam, desta

forma, os pilares desta nova democracia que se apresentava. Fatos históricos como

a existência de uma guerra para conquistar o desligamento com a Metrópole, a

eleição de Abraham Lincoln, homem sabidamente rústico e de espantosa liderança,

e a necessidade de uma Guerra Civil para estabelecer uma igualdade concreta para

todo cidadão norte-americano nos mostram a forte vocação desta nação para a

democracia.

Por outro lado, a história do Brasil relatada pelo historiador Oliveira Lima7 e

também analisada por Melissa de Mello e Souza aponta como mito criador da nação

Brasil não o povo brasileiro, mas o Imperador D. João VI. É o início do reinado de

5 SOUSA, Melissa. Brasil e Estados Unidos: nação imaginada, 2008. 6 TURNER, J. The Significance of the Frontier in American History. 3ª ed. Malabar. Krieger, 1985. 7 OLIVEIRA LIMA, M. Formação Histórica da Nacionalidade Brasileira, 1997.

38

D. João VI que promove o Brasil de colônia longínqua à nação com pompas

europeias. Ou seja, não é o rompimento com a Metrópole que inaugura o

sentimento de nacionalidade do Brasil, e sim o estreitamento da ligação com ela. O

povo descrito nesta narrativa não representa nada de conquistador, mesmo porque

este povo pouco avança além do litoral. Seu maior objetivo, pelo contrário, não é

celebrar o poder de ser um homem comum em uma sociedade de homens comuns,

é sim deixar de ser um homem comum em uma sociedade de privilégios.

O Brasil, desde o seu nascimento como nação, teria gerado um centro de

poder e de cultura intelectual no qual seria importante se estar. Ao invés de

irradiar, o modelo de corte brasileiro concentraria poder. As novidades a serem

valorizadas viriam de lá, as novas ideias, teorias e tecnologias também. Nesta

configuração o povo excluído desta roda de influências não estaria nada mais do

que em uma posição desigual e desprivilegiada, agindo como receptor de uma

cultura válida que só poderia vir de fora e de seu centro irradiador.

Será a conjunção entre as instituições culturais trazidas da Europa por D.

João VI e a originalidade “adaptada” da natureza e do povo que irá fundar a nação

brasileira. As instituições culturais virão para “adiantar” o processo de civilização

brasileira ao mesmo tempo em que coloca esta mesma nação como objeto de

estudo. Bibliotecas, institutos de arte, música e pesquisa científica, escolas e

instituições de ensino superior serão implantadas para cumprir o seu papel de

modernização e disseminadores de conhecimento. A natureza, que no mito nacional

dos Estados Unidos foi conquistada para o povoamento e o desenvolvimento, no

Brasil será explorada para ganhos ao curto prazo ou objeto de estudo para

brasileiros e missões científicas estrangeiras. Assim poder-se-ia fundar um Brasil

moderno e genuíno num só tempo.

A República brasileira instaurou-se e seguiu em seus governos eleitos por

participação indireta a ignorar a massa do povo brasileiro como sujeito das

relações, tornando a democracia um sentimento pouco apreciado entre os

39

brasileiros. Assim, se os Estados Unidos construiu sua unidade diante da conquista

de uma fronteira, com o suor daqueles que se arriscaram a povoá-la, o Brasil teria

forjado a sua unidade na colaboração de um reinado concentrador, de uma cultura

por muitas vezes transplantada e em torno da exuberância de uma natureza

explorada e pouco conhecida.

O sentimento de igualdade, obviamente, não poderia ter se posto de forma

prioritária conforme ocorreu com o povo do norte. A igualdade não se colocou como

sentimento de urgência no Brasil. Com uma sociedade ex-escravista estratificada,

uma população pouco instruída, uma regionalização sob fortes comandos e

governos autoritários, não se conseguiu criar neste país uma crença eficaz o

bastante que fizesse o povo enxergar-se como elo participativo no processo

democrático, construindo nas mentes um indivíduo brasileiro abstrato que pudesse

representar qualquer cidadão desse país.

Mas, por outro lado, se foi impossível estabelecer um sentimento de

igualdade entre os indivíduos brasileiros confrontado à realidade sócio-econômica

deste país, surgiu um outro símbolo tão forte quanto inesperado. A figura do

mestiço, aterrorizante para muitos intelectuais racistas brasileiros desta época8,

começa a ser vislumbrada como opção para construir um sentimento comum de

“brasilidade”. Seja na ótica do embranquecimento ao longo prazo ou mesmo na

expectativa de mistura para se moldar um só brasileiro típico, o mestiço passa a

ser o símbolo de reconhecimento da nação hierarquizada. Vejamos trecho de

Oliveira Lima sobre a resistência pernambucana contra a Ocupação Holandesa no

século XVII:

“(...) a revolta (…) foi a primeira afirmação certa e irrecusável da unidade, eu poderia dizer, na nacionalidade brasileira. Não era mais Portugal, era o Brasil que se insurgia agora e enfrentava a Holanda. E a observação de que as diferentes raças, que se misturavam sob nosso céu, tomaram, cada qual, sua parte notória e gloriosa no restabelecimento da autoridade portuguesa, foi feita pelos oradores exaltados (…)

8 ALVES FILHO, Aluizio. Manoel Bomfim: combate ao racismo, educação popular e democracia radical. 2008: 34-35.

40

Colonos de Portugal, brasileiras de nascença, índios e negros se bateram de perfeito acordo para expulsar o inimigo. (…)9.

O Brasil que se forma a partir da mistura de “raças” passa a representar,

então, um forte símbolo de unidade em um Brasil distinto em tantas regionalidades

e classes sociais. Os Estados Unidos, por sua vez, tendo como ponto forte a

igualdade de oportunidades como unificador da identidade, relega a segundo plano

a mesma origem multiétnica, destacando apenas a participação do elemento

europeu em suas diferentes nacionalidades. Este país seguirá, então, em uma

política cultural bipartida entre brancos e negros por todo século XX, deixando de

incorporar, assim como fez o Brasil, o mestiço a sua identidade nacional10. Desta

forma, Brasil e Estados Unidos construirão cada um a sua maneira sua identidade

nacional assim como fundamentarão o ideal da igualdade de formas distintas.

E Se fica concordado que Brasil e Estados Unidos vieram de uma origem

multiétnica em um tempo em que predominavam as teorias racistas, resta saber de

que forma Manoel Bomfim e Franz Boas combaterão as teorias deterministas em

vigor no início do século XX, e com que argumentos tentarão comprovar a igual

capacidade intelectual e de desenvolvimento entre as raças.

O Problema da Raça

O desafio posto por Manoel Bomfim e Franz Boas inclui soluções

argumentativas que proporcionassem uma situação de igualdade de capacidades

entre os indivíduos de todas as raças. Em especial, o desafio era tentar inserir o

imigrante negro recém-liberto, no contexto das repúblicas brasileira e norte-

americana, no grupo total de cidadãos em busca do progresso individual e coletivo.

9 OLIVEIRA LIMA, Formação Histórica da Nacionalidade brasileira, p. 194 et. Seq. In: Souza, 2008. 10 Sobre o fenômeno da mestiçagem brasileira ver FREYRE, G. Casa-grande & Senzala, 1992 e sobre a discussão do antropólogo Roberto Da Matta sobre a questão racial no Brasil e nos Estados Unidos ver Da MATTA, R. O que faz do Brasil, Brasil. Ed. Rocco: 1997.

41

Por isso, a seguir iremos discutir alguns pontos das obras desses autores em que

eles tratam especificamente da teoria racista, e, ainda, avaliam os riscos e as

possibilidades do componente mestiço da formação de uma nação.

Em primeiro lugar, põe-se claro que o problema da raça é entendido aqui

como o impasse no qual muitos cientistas se ativeram quanto à concordância ou

discordância em relação à teoria da superioridade das raças. Essa teoria teve como

um dos seus maiores precursores Arthur Gobineau11, considerado por muitos o pai

do racismo científico, defensor da ideia de que a raça branca possuía originalmente

o monopólio da beleza, da inteligência e do vigor enquanto a união com outras

variedades de raças resultaria em seres híbridos, débeis, fortes mas sem

inteligência e sobretudo feios.12 É contra este atestado condenatório da raça negra,

indígena, povos mestiços e outros considerados primitivos que Bomfim e Boas irão

se debater.

É importante salientar que nenhum dos dois autores irá considerar uma

plena igualdade entre as raças, ou seja, continuarão a validar o estatuto de raças e

não o de uma única raça para classificar o conjunto total dos seres humanos,

contrariando o modo conforme esta questão é entendida atualmente13. O máximo

que Boas e Bomfim vão estabelecer como verdade é que se trata de uma única

espécie humana. E, portanto, apesar de possuírem diferenças raciais, estarão em

um mesmo nível comparativo. A discussão sobre as consequências cruzamento de

raças, pois, ainda irá gerar uma discussão para os dois autores.

11 Arthur de Gobineau (1816-1882) foi um diplomata e escritor francês que teorizou sobre a diferença das raças na sua obre mais famosa “Ensaio sobre a desigualdade das raças”, publicado pela primeira vez em 1885. 12 Ver ALVES, Aluízio. Manoel Bomfim: um ensaísta esquecido: 29. 13 De acordo com a opinião dos antropólogos atuais e também com a declaração da UNESCO sobre as raças, publicada em 18 de julho de 1950, qualquer diferenciação intelectual entre seres humanos baseada em sua origem racial deve ser descartada. Segundo esta declaração, a utilização do termo raça corresponderia muito mais a um “mito” do que a uma verdade. As diferenciações constatadas entre os grupos humanos até agora seriam insuficientes para comprovar a existência de raças da forma que as teorias racistas utilizaram esse termo. Desta forma, espécie humana e raça humana teriam significados indiferenciados.

42

Bomfim segue fundamentalmente uma argumentação lógica para desmontar

o racismo científico. Depois de perguntar a quem interessaria a validação da

superioridade das raças e perceber que tal teoria não significa mais do que uma

justificação para a dominação dos mais fortes sobre os mais fracos, o autor passa a

usar como recurso a história para confrontar tal superioridade.

Que vem a ser esta teoria? Como nasceu ela? A resposta a estas questões nos dirá que tal teoria não passa de um sofisma abjeto do egoísmo humano, hipocritamente mascarado de ciência barata, e covardemente aplicado a exploração dos pobres pelos fracos.14

Valendo-se do princípio desta teoria em que os brancos europeus são mais

capacitados ao progresso por serem os mais fortes, assinala momentos outros da

história antiga onde os brancos foram derrotados por raças não brancas para

conseguir inverter a lógica desta premissa. Pois, se os brancos europeus fossem

definitivamente superiores às demais raças, o que explicaria sua derrota em vários

outros momentos históricos para povos de outras raças? Além disso, Bomfim

retoma dados históricos das civilizações latino-americanas em estado avançado,

como os Incas, para provar a capacidade de progresso dessas raças morenas

desbancando novamente a teoria racista. Ora, concluía Bomfim, se a raça branca

fosse definitivamente superior por natureza, o que explicaria tantos eventos

contraditórios em que esta raça não obteve êxito perante os menos capacitados.

Estaria comprovado, através do método histórico, que a teoria da

superioridade das raças e sua ampla aceitação nas elites europeias não passava de

um engodo a fim de justificar o parasitismo praticado pelas metrópoles sobre as

colônias da América Latina.

A metáfora do parasitismo constitui a principal tônica do autor durante toda

a obra América Latina: males de origem, respondendo pelas causas dos principais

problemas brasileiros desta época como a economia agrícola, a escassez de

trabalho industrial, um sistema político degenerado e uma população ignorante. O

14 BOMFIM, Manoel. A América Latina: males de origem: 268

43

regime colonizador, que só visava o enriquecimento da metrópole as custas do

solapamento da colônia, era o verdadeiro motivo dos males brasileiros e não sua

raça negra ou mestiça. Vejamos um diagnóstico do autor sobre sistema

colonizador:

O sistema parasitário impunha a escravidão. E porque o regime colonial era o do puro parasitismo, foi imposta às novas sociedades uma organização política inteiramente antagônica e incompatível com os seus interesses próprios, um regime retardatário, opressivo, corrupto e extenuante. Ao mesmo tempo, condenavam-se as colônias a ser um campo de exploração de um mundo de intermediários, que iam e vinham numa corrente contínua, drenando para a metrópole toda a riqueza aqui produzida. Eis a razão por que exânime, embrutecida, a América do sul se achou, na hora da independência, como um mundo onde tudo estava por fazer: eram uns 20 milhões de homens, desunidos, assanhados, pobres, espalhados por estas vastidões, tendo notícias de que havia civilização, padecendo todos os desejos de possuí-la, mas carecendo refazer toda a vida social, política e intelectual, a começar pela educação do trabalho e pela instrução do abc.15

O parasitismo, e não a raça, seria a causa maior dos males do Brasil. E

esses males seriam transmitidos basicamente por três meios: a hereditariedade, a

imitação e a educação, que seriam mais derivadas dos costumes do que de

qualquer elemento inato. Considerando que, para Bomfim, imitação e educação

são valores e comportamentos transmitidos, e que o fator hereditariedade não

estabeleceria limites claros entre o congênito e o costume, poderíamos afirmar que

o autor coloca todo o peso dos (maus) hábitos do brasileiro em termos culturais tal

qual nós entendemos o conceito de cultura atualmente.

(...) em que consiste a hereditariedade social? Consiste na transmissão , por herança, das qualidades psicológicas, comuns e constantes, e que, por serem constantes e comuns através de todas as gerações dão a cada grupo social um caráter próprio e distintivo (...).16

15 BOMFIM, Manoel. A América Latina: males de origem: 158. 16 BOMFIM, Manoel. A América Latina: males de origem: 178.

44

Bomfim toma estas características psicológicas presentes em todos os

grupos sociais como fato incontestável, afirmando que o homem herda de seus

progenitores os caracteres da classe, ordem ou espécie. Nesta altura admite a

existência de uma herança psicológica tal qual a herança genética de Boas, num

processo de ampliação do conceito de transmissão hereditária da escala individual

para a macro escala das grandes nações.

Curiosamente, Bomfim reclama a inexistência de uma psicologia etnográfica

que viesse a discriminar, na instabilidade de conduta de um povo, a parte

exclusivamente devida à hereditariedade e a que é efeito da educação e imitação.

Uma vez que pela falta de tal ciência não seja possível separar aquilo que é devido

à herança e aquilo que seja efeito da educação. No máximo, o autor se arrisca em

colocar em poucas linhas algumas diferenciações básicas entre uma e outra

categoria: Pode-se dizer que as tendências e inclinações, a aptidão e o vigor, isto

nós herdamos, e que a educação – no sentido mais extenso do termo – completa a

formação do caráter, no sentido da tradição e da adaptação.17. Bomfim, em

poucas palavras, avança sobre a problemática que ocupará grande parte da obra

de seu contemporâneo Franz Boas.

Quanto às contribuições hereditárias que as raças negra e indígena

pudessem ter exercido na população brasileira, Bomfim é bem menos

revolucionário do que em sua análise sobre o racismo científico. Ele reconhece a

participação dessas raças na formação do caráter das populações latino-

americanas, mas acredita que as influências dos povos ibéricos sejam

predominantes ou até mesmo determinantes. Segundo o autor, as raças negra e

indígena seriam povos ainda muito atrasados que não possuiriam nem qualidades,

nem defeitos; nem virtudes que se impusessem aos outros ou causasse imitação.

E, ainda, que esses povos primitivos distinguiam-se justamente por um conjunto

de qualidades negativas, fossem elas a inconsistência de caráter, a leviandade, a

17 Idem. Ibidem: 175.

45

imprevidência e a indiferença pelo passado. A partir desses quadros vazios viriam,

então, sua grande adaptabilidade a qualquer condição de vida.18

Nestes trechos em que demonstra uma visão infantilizada e pejorativa

sobre o negro, Bomfim se aproxima das opiniões racistas dominantes de sua

época, não se mostrando capaz de brindar a diferença, e sim somente de lamentar

a inferioridade. Descrevendo um inferior que, com esforço, poderia superar suas

dificuldades inatas. Mesmo quando na tentativa de identificar as qualidades

positivas da raça negra acaba pormenorizando este povo, que seria marcado por

uma certa afetividade passiva, uma dedicação morna, doce e instintiva, sem ruídos

e sem expansão.19 Não deixando dúvidas sobre sua visão ainda bastante

hierárquica em relação às raças:

Por isso, misturada a outros povos, a influência que exercem essas raças é uma influência antes renovadora que diretriz. Expliquemos essa metafísica: são gentes infantis, que não possuem irredutíveis qualidades de caráter, e resistem menos ao influxo de ideias novas que as populações cultas, sobre as quais pesam tradições históricas especiais e uma civilização determinada.20

Por outro lado, afirma que os defeitos clássicos dos negros que seriam a

submissão incondicional, frouxidão de vontade e docilidade servil seriam antes

efeito da situação em que os colonizadores os colocaram do que proveniente de

qualquer outra motivação. É nesse constante “quase confundir” entre o que seria

consequência da herança ou da educação que Bomfim salta da lamentação das

características da raça negra à exaltação, abrilhantando os feitos dos negros dos

quilombos e sua tendência natural para o altruísmo que, segundo o autor, é

principal marca do evolucionismo moral dos povos.

Em um balanço final mais positivo que negativo quanto aos povos negros e

indígenas, principalmente se comparado aos defensores da teoria da superioridade

18 Idem. Ibidem: 261. 19 Idem. Ibidem: 261. 20 Idem. Ibidem: 261.

46

das raças21, Manoel Bomfim afirma sua principal tese de que o problema crucial do

Brasil seria o regime colonizador, que só servia para sugar as forças e riquezas do

Brasil e do povo brasileiro. E sendo esta força maléfica retirada completamente, o

Brasil tornar-se-ia capaz de resolver seus outros problemas mais facilmente; tais

como o progresso das massas e a superação hereditária dos negros e dos índios

que, conforme o autor, seriam perfeitamente capazes de adquirir a civilização se

postos em ambiente favorável.

Colocadas as principais considerações de Manoel Bomfim sobre o problema

da raça, iremos agora às concepções de Franz Boas sobre o mesmo problema.

Para começar, antes das publicações de Franz Boas ganharem proeminência nas

primeiras décadas do século XX, as populações “primitivas” ainda eram

consideradas povos inferiores ou “atrasados” para alguns especialistas22 enquanto

que, para este autor, tais diferenças advinham principalmente de fatores externos,

históricos e culturais, dando início ao que hoje conhecemos como estudos de

antropologia cultural.

A preocupação primordial de Boas em termos de raça e cultura é deixar

claro que diferenças culturais locais não podem ser confundidas com diferenciações

comportamentais baseadas em origens raciais. Apesar de validar que haveria

formas culturais de acordo com o tipo de raça, Boas não encara este conceito

como um fator decisivo independente e nem determinante. Porém, da mesma

forma que Bomfim, Boas ainda considera a categoria raça como plural, ou seja,

trabalha com o termo raças, e não raça humana assim como reconhecemos nos

dias atuais.

21 A exemplo do sociólogo lusitano Oliveira Martins, a quem Bomfim constantemente se refere antagonicamente no desenvolver de sua argumentação. 22 Referente principalmente aos autores da escola Evolucionista, tais como Tylor, Morgan e Frazer. Ver CASTRO, Celso (org.). Evolucionismo cultural. Rio de Janeiro, Zahar, 2005.

47

(...) we must say that the hereditary characteristcs are not “racially” determined, but belong to family lines that occur in all these local groups. In this case the term “racial heredity” loses its meaning. We can speak solely “hereditary in family lines”.23

Nos primeiros capítulos de Cuestiones Fundamentales de Antropologia

Cultural, Boas constrói um pensamento semelhante ao de Bomfim para invalidar a

teoria da superioridade das raças. Recorrendo a passagens históricas, realiza a

mesma pergunta recorrente: se a raça branca é definitivamente superior às demais

então por que nem sempre esteve em vantagem histórica? Inquirindo e

respondendo a essa pergunta, Boas relata variados exemplos na História Antiga em

que povos da raça branca ou foram dominadas por povos de raças diferentes ou

momentos em que raças de outros povos gozavam de posição indubitavelmente

superior aos brancos.24

Contudo, o principal argumento que desfará o nó entre características raciais

e culturais e, portanto, nas dubiedades entre os termos raça e cultura, será o

estudo do que Boas chama de linhas familiares. Boas irá se concentrar justamente

na investigação dessas linhas familiares para tentar desvendar a transmissão de

caracteres hereditários. As linhas familiares e não as hereditariedades raciais

estarão em pauta nos estudos deste autor. Para ele, as heranças familiares serão

muito mais determinantes na formação de um tipo individual do que qualquer

característica de raça.

As características de raça, por sua vez, corresponderão a um tipo médio25

racial que não existe em realidade mas somente na abstração dos indivíduos.

Entretanto, este tipo médio imaginado de uma raça poderá variar a extremos tais

que existirão casos em que alguns indivíduos de uma raça terão seus traços mais

23 Devemos dizer que as características hereditárias não são "racialmente" determinadas, mas pertencem a linhas familiares que ocorrem em todos estes grupos. Neste caso, o termo “herança racial "perde o seu significado. Podemos falar apenas em “hereditariedade em linhas familiares”. (tradução minha). BOAS, Franz. Anthropology and Modern Life: 28 24 Boas, Franz. Cuestiones Fundamentales de Antropologia Cultural: 22-32 25 Em uma definição de tipo médio que fará lembrar bastante o conceito de tipo ideal elaborado por Max Weber.

48

semelhantes aos de um indivíduo de uma outra raça do que com o tipo médio de

sua própria raça. Desta forma, pela intensiva variação de tipos que uma raça pode

apresentar, Boas acaba por desqualificar o parâmetro raça como fundamental em

uma análise quanto às qualidades hereditárias.

We must also remember that the “type” is more or less an abstraction. The characteristics traits are found rarely combined in one and the same individual, although their frequency in the mass of the population induces us to imagine a typical individual in which all these traits appear combines.26

Boas afirma que pouco pode ser dito sobre a transmissão de características

raciais além de traços aparentes como os formatos de nariz, olhos, boca e tipos de

cabelos. It is well to remember that heredity means the transmission of anatomical

and functional characteristics from ancestor to offspring. A population consists of

many family lines whose descent from common ancestors cannot be proved.27. Ao

partir deste princípio, o autor transparece as incertezas sobre as capacidades

potenciais de cada raça, abrindo amplas possibilidades para contestações às teorias

racistas.

A pureza das raças estaria, portanto, muito comprometida pela intensa

mistura das distintas linhas familiares existentes dentro de uma mesma raça assim

como devido ao constante movimento inerente ao processo de passagem de

gerações e cruzamentos familiares, não sendo possível, deste ponto de vista,

estabelecer nenhum tipo de estabilidade racial que legitime os tipos puros raciais

como algo tangível. O termo hereditariedade só teria uma aplicação correta,

26 Devemos lembrar também que o "tipo" é mais ou menos uma abstração. Os traços característicos raramente são encontrados combinados em uma mesma pessoa, apesar de sua freqüência na massa da população nos induz a imaginar um indivíduo típico em que todas essas características aparecem combinas. (tradução minha). BOAS, Franz. Anthropology and Modern Life: 22. 27 É bom lembrar que a hereditariedade significa a transmissão das características anatômicas e funcionais do ancestral à prole. A população consiste de muitas linhas familiares, cuja descendência de antepassados comuns não podem ser provada. (tradução minha). BOAS, Franz. Anthropology and Modern Life: 24.

49

portanto, se referido às linhas familiares. Extrapolando esta unidade de análise

teríamos o uso do termo raça cada vez mais vago e impreciso.

Considerando todos os tipos familiares e individuais existentes em uma

nação, a categoria de análise raça perderia totalmente seu valor e propósito. A

unidade racial, portanto, só existiria em uma determinada linha familiar, diluindo-se

ao nível do imperceptível conforme fosse sofrendo variações provocadas pela

intensa combinação de caracteres genéticos. O resultado desta lógica seria que

diferenças intra e entre raças viessem a se equivaler.

The differences between races are so small that they lie within the narrow range in the limits of which all forms may function equally well. We cannot say that the ratio of inadequate brains and nervous systems, that function noticeably worse than the norm, is the same in every race, nor that those of rare excellent are equally frequent.28

Aceita esta teoria em que valores genéticos não são mais determinantes

serão colocadas sobre o meio ambiente e sobre as condições de vida as

justificativas pelas diferenças encontradas entre os povos. Boas traz do

determinismo geográfico a influência do meio ambiente sobre as formas e

estruturas do corpo como também sobre a personalidade dos homens. Apesar de

ter esta tendência muito mais amenizada em seus trabalhos mais maduros, é nela

que irá se inspirar ao traçar comparações entre as adaptações do corpo e as

adaptações da mente em virtude das demandas do lugar.

If we bring two organically different individuals in the same environment they may, therefore, become alike in their functional responses and we may gain the impression of a functional likeness of distinct anatomical forms that is due to environment, not to their internal structure.29

28 As diferenças entre as raças são tão pequenas que se encontram dentro dos estreitos limites nos quais todas as formas podem funcionar igualmente bem. Nós não podemos dizer que a razão dos cérebros e sistemas nervosos inadequados, que funcionam visivelmente pior do que o normal, é a mesma em todas as raças, nem que aqueles de raridade excelente são igualmente frequentes. (tradução minha). BOAS, Franz. Anthropology and Modern Life: 41. 29 Se nós levarmos dois indivíduos organicamente diferentes no mesmo ambiente, eles podem tornar-se semelhantes em suas respostas funcionais e podemos ter a impressão de uma semelhança funcional das diferentes formas anatômicas que é devido ao ambiente, não à sua estrutura interna. (tradução minha). BOAS, Franz. Anthropology and Modern Life: 47.

50

Franz Boas estenderá sua análise teórica para a esfera dos comportamentos

psicológicos e sociais, construindo a sofisticada tese de que indivíduos de raças

diferentes podem vir a ter as mesmas respostas psicológicas se condicionados a um

mesmo ambiente. Rebate, por exemplo, os testes de inteligência utilizados, entre

outros fins, para corroborar a inferioridade de algumas raças. Boas defende que

tanto brancos como negros, se socializados da mesma forma, terão desempenho

semelhante em um mesmo teste de inteligência. Por outro lado, indivíduos da raça

branca, se localizados e socializados em locais extremamente díspares, como

cidade e campo, apresentarão resultados discrepantes ao realizarem os mesmos

testes. Em mais uma argumentação que contribui para o desmantelamento da

crença em qualidades específicas inerentes às raças.

A esta altura os fatores culturais estão cada vez mais presentes na teoria de

Boas. O padrão de pensamento ao qual o indivíduo é exposto em sua infância passa

a ser especialmente considerado como um potente fator no direcionamento das

maneiras de pensar e agir. A experiência do ser social ganha espaço e passa a se

sobrepor a eventuais diferenças raciais, apesar do autor ainda reconhecer a

existência de diferentes raças.

The general experience of ethnologists who deal with recent ethnological phenomena indicate that whatever organic differences between the great races there may be, they are insignificant when considered in their effect upon cultural life.(…). It does not matter from which point of view we consider culture, its forms are not dependent upon race.30

As consequências sobre o cruzamento entre as raças é um tema que

também passa pela obra de Boas, porém, sem receber uma sentença científica

definitiva. Todo o pensamento do autor indica que não haja problemas em

30 A experiência geral de etnólogos que lidam com fenômenos etnológicos recentes indica que todas as diferenças orgânicas entre as grandes raças podem existir, mas elas são insignificantes quando consideradas em seu efeito sob a vida cultural. (...). Não importa de qual ponto de vista, consideramos a cultura, as suas formas não são dependentes da raça. (tradução minha). BOAS, Franz. Anthropology and Modern Life: 60.

51

descendentes de indivíduos provenientes de raças diferentes, mas Boas não afirma

categoricamente que este cruzamento não traga nenhum tipo de conseqüência

anormal. Para ratificar seu posicionamento utiliza o exemplo das misturas raciais

ocorridas nos Estados Unidos durante e após o seu povoamento. Até onde o autor

pode alcançar, este fator não prejudica o progresso daquela nação.

No es possible determinar en el momento actual el efecto que estos procesos puedan ejercer sobre el tipo y variabilidad últimas del pueblo americano, pero no hay pruebas que nos induzcan a esperar um status más bajo de los nuevos tipos en desarollo em a América.31

A dificuldade persiste por que Boas, tal qual Bomfim, ainda crê na existência

de várias raças distintas e, seguindo a lógica das ciências da natureza no qual os

dois autores se apoiam, o cruzamento entre raças diferentes pode oferecer

resultados inesperados, tanto positivamente quanto negativamente. Assim, Boas

guarda cuidados em relação a este tópico e afirma que são necessários mais dados

e estudos para se chegar a uma conclusão confiável. A apreensão faz sentido,

sobretudo, pelo receio que o autor apresenta de que teorias catastróficas se

espalhem mundialmente, provocando uma crise profunda nos relacionamentos

raciais.

Como se pôde observar até este ponto da discussão teórica, nenhum dos

dois autores teria ousado a ponto de afirmar categoricamente a plena igualdade

entre as raças, em termos físicos, biológicos e psicológicos, mas ambos

caminharam em direção a uma aproximação significativa de potencialidades para as

raças existentes. Além disso, os fatores externos sociais ou culturais passaram a

responder significativamente pelas tendências de cada nação ou grupo cultural.

Desta forma, traços igualitaristas em termos de capacidades humanas foram

31 Não é possível determinar no momento atual o efeito que estes processos podem exercer sobre o tipo e variabilidades recentes do povo americano, mas não há provas que nos induzam a esperar um padrão mais baixo dos novos tipos em desenvolvimento na América. (tradução minha). BOAS, Franz. Cuestiones Fundamentales de Antropologia Cultural: 264.

52

percebidos nas argumentações de ambos em relação ao problema da raça, o que,

poderia indicar, a princípio, uma concordância com algumas fontes do pensamento

liberal em difusão no início do século XX. Termos como desenvolvimento e

progresso foram notados e a ideia geral encontrada tanto em Boas como em

Bomfim é a de que todos os povos teriam a possibilidade de superar as diferenças

raciais por interferência de influências ambientais e/ou culturais.

Capitulo 3

O ideal liberal e a liberdade para progredir

Alguns aspectos do liberalismo clássico

A tentativa de definir liberalismo esbarra na complexidade de amarrar todas as

possibilidades do que significa ser livre na concepção humana. Por isso, será dado a

este tópico uma orientação que se adapte aos objetivos propostos para este

trabalho. De início, fica posto que não se falará de teoria liberal em geral, deixando

de lado um maior aprofundamento nas diversas correntes sobre filosofia liberal ou

mesmo um debate sobre Economia Liberal, que incluiria até mesmo avaliações

sobre o estado de bem-estar social ou sobre o neoliberalismo. Por isso, os escritos

clássicos do liberalismo serão privilegiados, aqueles que, por tamanha difusão,

teriam mais chances de terem influenciado, de alguma forma, as questões de

Manoel Bomfim e Franz Boas.

Para efeito de uma apresentação geral, pode-se afirmar que o liberalismo é

um fenômeno que se caracteriza após o século XVI, levando o indivíduo a ser livre,

a ter plena consciência de si e de seu valor sobre a terra, pulverizando laços

corporativos e privilégios feudais. Seria a vitória da liberdade sobre a revelação, da

razão sobre a autoridade, e da ciência sobre o mito. O que provocou consequências

capazes de modificar rapidamente os costumes através de reformas na esfera

econômica e jurídica1.

No ramo conceitual o Liberalismo se subdivide em três esferas de trabalho e

interesse. O liberalismo jurídico – que se preocupa com a capacidade do Estado em

garantir os direitos do indivíduo. O liberalismo político – no sentido da luta política

parlamentar, capaz de promover sem recorrer à revolução para isso. E o liberalismo

1 BOBBIO, Norberto; MATTEUCCIi, Nicola; PASQUINO, Gianfranco . Dicionário de Política. 1999: 689.

54

econômico, que acreditava que o máximo de felicidade comum dependeria da

livre busca de cada indivíduo pela própria felicidade.2

Entre esses três ramos do liberalismo, aquele que será mais enfatizado na

análise dos textos em relação à liberdade será o que foi classificado por Bobbio

como liberalismo político, pois será observada a concepção dos autores Boas e

Bomfim sobre alguns direitos civis permitidos ou negados pelo Estado a certos

segmentos da sociedade. O que será destacado na obra desses autores é a sua

impressão ou mesmo luta sobre direitos individuais no interior de seus temas

específicos e interesses pessoais.

Tipos de Liberdade

O conceito de liberdade é complexo por apresentar um caráter subjetivo do

que pode ser tomado como liberdade ou não. Inspirada nas definições de Norberto

Bobbio será assumido que a liberdade é caracterizada pelo seu contrário, isto é, a

falta de liberdade3. Nesse sentido, dotado de liberdade é aquele que não se sente

restringido por nenhum outro a cumprir suas vontades. Restrito em relação à

liberdade é aquele que, pela vontade do outro é proibido de fazer o que deseja. Ou

seja, o conceito de liberdade é entendido a partir de um outro que pode interferir

ou não naquilo que se deseja realizar. Se não há fator restritivo pela vontade de

um agente exterior, então não há restrição de liberdade. Pode-se afirmar que

alguém é livre na medida em que se dispõe a agir livremente, ou a agir

autonomamente, ou a desenvolver ao máximo suas capacidades4.

Ainda segundo Bobbio, há ainda três fundamentos modernos no agir livre: a

liberdade natural, racional e libertadora. Na concepção naturalística de liberdade, o

homem é verdadeiramente livre quando pode fazer tudo aquilo que o satisfaz. Na

2 Idem. Ibidem: 693

3 Idem. Ibidem: 691.

4 Idem. Ibidem: 711

55medida em que o agir humano segue ou obedece aos próprios instintos ou

apetites ocasionais, precisando ter força para coagir e subordinar os outros

homens, ultrapassando seus obstáculos. Aqui a liberdade implica em desigualdade.

Nela, o homem verdadeiramente livre é um déspota. Seria a liberdade descrita por

Hobbes quando descreveu o homem em estado natural ou por Freud quando

colocou o princípio do prazer constitutivo da natureza humana.

Na liberdade racional, o homem não é livre no puro arbítrio, porém, pode

obter a verdadeira felicidade adequando-se a uma ordem necessária e objetiva. O

instrumento dessa liberdade é o conhecimento e não o instinto. E o homem no

Estado natural é o oposto ao homem no estado racional. Neste indivíduo a

verdadeira liberdade se manifesta, pois, como consciência da liberdade racional. É

liberdade do homem colocada em prol de uma finalidade racional.

A liberdade libertadora corresponderia a um misto entre a liberdade natural

e a liberdade racional. Nela o indivíduo tentaria responder ao máximo suas

vontades dentro dos limites do que estaria proposto na coletividade. Significaria a

emancipação ética do homem. Em outras palavras é o que se tenta realizar no

conjunto de leis das sociedades modernas liberais. Visando resguardar a liberdade

individual desde que ela não toque nos limites pré-estabelecidos nas constituições

políticas. Seria o Estado limitando a liberdade individual desde que existisse a

preocupação de conciliar o máximo espaço de arbítrio individual com a coexistência

de arbítrios alheios. Esses “tipos” de liberdade anteriormente descritos serão úteis

para perceber nos autores estudados quais seriam as linhas gerais da concepção de

liberdade que pretenderam seguir.

O liberalismo e alguns de seus clássicos

A doutrina do liberalismo político tece suas considerações sobre os limites

entre a liberdade do Estado e a liberdade do indivíduo. Trabalha em torno de um

56dilema que inclui manter a liberdade dos indivíduos mesmo sob a supremacia de

um Estado, que ali está ao mesmo tempo para garantir a segurança de seus

cidadãos e também suas liberdades. Essas funções do Estado Liberal entram em

conflito partir do momento em que o indivíduo sente-se oprimido pelo Estado ao

invés de protegido, o que pode ocorrer quando um outro indivíduo retira-lhe a

liberdade sem que o Estado entre em ação, ou mesmo quando é o próprio Estado

que lhe tira alguma liberdade específica. Ou seja, o problema de estabelecer um

equilíbrio em um Estado Liberal é que se todas as potências individuais forem

acatadas provavelmente não se terá uma democracia, pois, por muitas vezes, o

direito de liberdade de um coloca em risco o direito de liberdade do outro. Desta

forma, o Estado Liberal deve trabalhar no sentido de promover o máximo de

liberdade possível aos seus indivíduos desde que isso não resulte no impedimento

da liberdade de outro indivíduo. O Estado Liberal deve estar ali, portanto, para

equilibrar as forças e ações por parte da sociedade civil, que deve agir livremente

de acordo com os seus desejos, e também agir como órgão supremo cada vez que

o encontro de Liberdades causar conflito, desacordo ou insatisfação para seus

membros.

As teorias políticas liberais em voga no início do século XX ainda partilhavam

de uma espécie de otimismo que viria a ruir séculos mais tarde. A crença de que o

indivíduo dotado de pensamento racional agiria naturalmente para o seu bem e

para o bem da coletividade encontrou exemplos de confrontação. Neste primeiro

momento em que o liberalismo político se coloca na Inglaterra, por meio de

influências europeias, a preocupação maior era dar autonomia a esse indivíduo

contra as leis restritivas de governos autoritários. No florescimento do capitalismo

desejava-se, sobretudo, liberar as negociações entre os indivíduos e permitir a eles

a posse e o uso da propriedade privada, estabelecendo, portanto, um dos pilares do

liberalismo político: a liberdade de propriedade. O Liberalismo clássico também

57

previa a existência de um Estado mínimo, menos usurpador e restritivo, que se

retirasse, se possível totalmente da esfera econômica das vidas dos indivíduos.

John Locke (1632-1704), um dos pensadores mais referidos quando o tema

é liberalismo, escreveu O Segundo Tratado do Governo Civil publicado ainda sob os

efeitos da Revolução Gloriosa que aboliu a monarquia absolutista da Inglaterra.

Neste texto, os direitos naturais são entendidos como direitos individuais à vida, à

liberdade e à propriedade, representando uma doutrina política que defende maior

liberdade para o indivíduo para que este seja capaz de cumprir as suas potências e

os seus desejos.

O direito à propriedade é um conceito-chave em Locke, pois está no

fundamento de todo capitalismo moderno. Locke justifica o direito à propriedade

através de uma associação de ideias que inclui indivíduo, trabalho e propriedade.

Assim, o direito de tomar posse da natureza, que à priori deveria pertencer a todos,

justifica-se a partir da ideia do trabalho ou do fruto deste trabalho. Desta forma, se

todos os homens tem direito à propriedade, todos os homens devem também ter

direito ao trabalho:

O trabalho de seus braços e a obra das suas mãos, pode-se afirmar, são propriamente dele. Seja o que for que ele retire da natureza no estado em que lho forneceu e no qual o deixou, mistura-se e superpõe-se ao próprio trabalho, acrescentando-lhe algo que pertence ao homem e, por isso mesmo, tornando-o propriedade dele. 5

O sistema representativo de Locke é baseado nos três poderes e a esfera

jurídica é apontada para dirimir os conflitos individuais que possam surgir pela

prática indevida desta mesma liberdade. Desta forma, Locke propõe em sua obra o

que várias constituições do mundo irão transformar em direito positivo, direitos que

a princípio são considerados direitos naturais, ou seja, direitos que devem estar

subentendidos pela condição humana independente da existência de qualquer

dispositivo legal em relação a isso. Há uma certa prevalência da esfera legislativa

5 Locke. J. Segundo tratado sobre o governo civil, 2002: 30.

58

em relação aos outras duas na obra de Locke, pois ela representa o povo e pode

retirar o governante caso este não esteja respeitando as leis. Assim, as leis

positivas funcionariam como a base do governo liberal.

Locke também foi reconhecido pelo esforço que fez para difundir a ideia de

tolerância. Ao considerar que todos são iguais, supõe também que todos devem ser

tratados de forma igual mediante o Estado. Além de iguais, todos os indivíduos

também seriam livres, obrigando a eles próprios conviver com a escolha livre do

outro, mesmo que diferente da sua. John Locke discursou acerca da tolerância sob

a sua crença na igualdade e na liberdade, mas principalmente inspirado pelos

abusos da monarquia inglesa acerca das questões religiosas. Porém, assim como

suas outras ideias, o argumento da tolerância também seria adaptado a outras,

questões, outros países e outros tempos. Podendo estar presente como uma opção

de análise para os mais diversos conflitos, inclusive a questão racial da qual tratam

Manoel Bomfim e Franz Boas.

Hobbes (1588–1679) também figurou como teórico de destaque no campo

dos teóricos do contratualismo6. Entretanto sua principal obra, O Leviatã, fez com

que este autor ficasse conhecido como um defensor da monarquia absolutista. A

visão de Hobbes em relação ao homem é de um sujeito cheio de desejos e paixões

incontroláveis sempre pronto a se utilizar da força para conseguir o quer. E que

concorda em sair do estado natural para o estado social por medo de que o outro

possa agir da mesma forma violenta consigo. Por esse motivo, este indivíduo

“hobbessiano” cede os seus desejos individuais em favor de um Estado que

regulara a todos e harmonizará todos os conflitos.

O aspecto Liberal em Hobbes está no reconhecimento de que a formulação

do governo é uma ação humana iniciada por vontades individuais, mas a defesa da

liberdade cessa frente à necessidade de um governo forte e controlador. Nesta

6 Corrente de pensamento que reúne que, entre os séculos XVI e XVIII, defenderam que a origem do Estado e/ou da sociedade está num contrato. Antes do pacto os homens viveriam em um estado de natureza e só após dele passariam a viver sob regras e subordinação política.

59

teoria, o indivíduo também é dotado de poder na medida pode retirar o

governante se este de mostra incapaz de fornecer a segurança necessária aos seus

indivíduos. Ao contrário de Locke, que retira ao máximo o poder público da esfera

da vida privada, Hobbes julga de primordial a supremacia do Estado diante o

indivíduo para controlar os seus desejos e manter o contrato social.

Rousseau, um dos grandes contratualistas do século XVIII, em seu pacto

social é um dos primeiros autores a separar categoricamente a esfera pública da

esfera privada. Antes do seu pacto, que por ele é considerado legítimo, os súditos

estariam convivendo em uma situação cruel e injusta perante seu monarca que os

tiraria tudo e nada os daria de volta. Após a instituição de seu pacto formado

legitimamente, todos estariam submetidos a um poder soberano que viria de todos

e valeria para todos, tornando-os efetivamente livres.

A preocupação em Rousseau com o exercício da liberdade é fundamental, e

este problema só pode ser sanado através da deliberação pública, que é justamente

a realização da soma das vontades particulares, formando, assim, o bem público. A

intenção do autor na elaboração de seu pacto é:

“Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja, com toda a força comum, a pessoa e os bens de cada associado, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedece contudo a si mesmo, permanecendo tão livre quanto antes7.”

As leis públicas seriam instaurados nesta lógica de total alienação das

vontades particulares e posterior compatilhamento de direitos e deveres. Este

pacto daria, portanto total legitimidade às leis instituídas por um povo, que as

deveria cumprir inteiramente visando a continuidade do pacto e a manutenção

da liberdade de todos os indivíduos. Todos os associados deste pacto deveriam

estar em comum acordo já que, nesta situa ção hipotética, foram eles mesmos

que criaram as regras.“Cada um de nós põe em comum sua pessoa e todo seu

7 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Os Clássicos da Política: 220 (2006)

60

poder sob a suprema direção da vontade geral, e recebemos, enquanto corpo,

cada membro como parte indivisível do corpo8”.

Os associados deste corpo político soberano serão os cidadãos na

individualidade e povo na coletividade. Os cidadãos jamais poderá se sobrepor ao

corpo soberano, pois não estarão fazendo mais do que cumprindo as determinações

que eles mesmos se impuseram. Não podendo haver sacrifício em obedecer a si

mesmo, havendo somente, neste sentido, a prática da liberdade civil. Estando

todos submetidos por si mesmo, e todos limitados pelo julgo da lei que só os liberta

não encontram os cidadãos motivos para rebelarem-se contra o corpo soberano e

suas leis. Mas, ainda assim, se algum interesse particular tentar sobrepor-se ao

interesse geral, tão logo irá ser constrangido pelos demais, que, obrigando-o a

cumprir o pacto não farão mais do que forçá-lo a ser livre, pois é esta a condição

que garante cada cidadão contra qualquer dependência pessoal.

A legitimação de múltiplas constituições baseadas no contrato social e no

direito à liberdade ao longo do tempo comprovam que as ideias dos contratualistas

tiveram larga aceitação nos países ocidentais. Na verdade, podemos supor que

esses homens que se fizeram clássicos souberam traduzir da melhor forma os

anseios das suas sociedades na época em que escreveram.

A ascensão da burguesia e a progressiva crença nas liberdades naturais fez

com que esses ideais ultrapassassem as fronteiras das nações europeias como

França e Inglaterra e viesse a se espraiar em terras mais longínquas, como os

Estados Unidos e o Brasil. O desejo pela liberdade individual e por uma nação livre

encantou corações em mente em busca de Repúblicas Liberais. E no bojo dessas

conquistas e agitações refletiram e escreveram Manoel Bomfim e Franz Boas,

tecendo teorias nas quais iremos investigar de que forma esses autores colocaram

o sentido da liberdade.

8 Idem. Ibidem: 220

61

O Ideal de liberdade em Boas

Há diversos fatores na biografia e na obra de Boas que indicam que este

autor foi influenciado de uma forma importante pelos ideais liberais. Ao falar sobre

sua juventude, ele mesmo confirma isto: O pano de fundo dos meus primeiros

pensamentos era um lar alemão em que os ideais de revolução de 1848 eram uma

força viva9. Ao falar dos pais, dá uma nova mostra do quanto as ideias liberais

foram importantes para o seu amadurecimento.

Meus pais tinham-se libertado dos grilhões do dogma. Meu pai conservara um afeto emocional pelo cerimonial da sua casa paterna, sem permitir que isso influenciasse sua liberdade intelectual. Assim, fui poupado da luta contra o dogma religioso que atormenta a vida de tantos jovens10.

A autoridade e o dogma eram crenças definitivamente abandonadas na

biografia Boas. Estava ele estimulado pelas descobertas que só a crença na ciência

poderia possibilitar. Seguiu pela física, mas seu propósito era descobrir os efeitos

da subjetividade em relação aos fenômenos naturais. Ao apostar no determinismo

geográfico, acabou decepcionando a si mesmo, pois teve a prova através de suas

incursões que causas semelhantes definitivamente não produziam efeitos

semelhantes, necessariamente. Após uma vida inteira dedicado à descoberta

científica e conduzido por diferentes metodologias, Boas se perguntou: como

podemos reconhecer os grilhões que a tradição nos impôs? Pois, quando o

reconhecemos, somos também capazes de rompê-los11.

A crença positivista de que o conhecimento levaria à liberdade fez Boas se

debruçar sobre questões que moviam a antropologia em sua época. A corrente de

pensamento em voga para explicar as diferenças comportamentais ao redor do

mundo era a Evolucionista, que acreditava que os povos humanos seguiam por

9 BOAS, Franz. A formação da Antropologia americana, 1883-1911: 63

10 Idem. Ibidem: 63

11 Idem. Ibidem: 64

62

etapas de evolução até chegar ao desenvolvimento completo, isto é, ao padrão

das civilizações europeias. Boas discordava da metodologia empregada pelos

evolucionistas e julgava seus métodos de classificação arbitrários.

Toda teoria e metodologia de Boas caminhava no sentido da

individualização. Este antropólogo renegava a classificação por aparência sem um

estudo profundo do processo histórico de cada informação colhida. Ao invés da

metodologia comparativa dos evolucionistas, ele proporia uma metodologia

histórica para investigar as relações causas de um fenômeno, fosse ele material ou

cultural.

Franz Boas, por exemplo, justificou objetos semelhantes de culturas

distantes não através da semelhança de “estágios mentais” conforme fariam os

evolucionistas, mas sim pela possibilidade de em algum momento da história esses

povos terem entrado em contato diretamente, via aproximação casual ou guerra,

ou indiretamente, por intermédio de um outro povo, com povos que tivessem

obtido determinada conquista técnica ou cultural. Franz Boas também demonstrava

insatisfação com a classificação de objetos sem maiores cuidados conforme faziam

os evolucionistas. Estes costumavam agrupar objetos semelhantes por sua

aparência e não pelo seu uso. Boas era contrário a esta medida, uma vez que

objetos semelhantes poderiam ser usados para fins distintos. Um mesmo tipo de

chocalho, por exemplo, poderia ser usado tanto para espantar animais quanto para

produzir música em rituais religiosos, não devendo, portanto, estarem em um

mesmo tipo de classificação.

A crítica de Franz Boas também atingiria as generalizações dos esquemas de

classificação. Para ele na etnologia, é tudo individualidade12. Boas era contra as

grades generalizações que agrupavam um grande número de elementos. Pois, para

ele, cada elemento, assim como cada indivíduo, possuiria uma história particular

com processos, causas e efeitos também particulares. Para agir prudentemente

12 BOAS, Franz. 1887: 589 In: Boas, 2004.

63

diante de um fenômeno seria necessário: atravessar as aparências, transcender

o ponto de vista do observado e mergulhar na complexidade histórica dos

processos que afetam a vida humana para chegar a categorias que não eram

fundadas na mente do estudioso, mas sim derivadas do próprio fenômeno. Porém,

tudo leva a crer que se todas essas etapas são seguidas à exaustão, dificilmente se

chegará a qualquer tipo de congruência entre dois fenômenos, tornando quase

impossível o mecanismo das generalizações a que nossas mentes estão tão

adaptadas.

Todavia, mesmo sendo tão rigoroso em relação as suas deduções, Boas

povoou os seus escritos com referências ao “gênio de um povo”. O gênio de um

povo seria justamente a memória comum e o somatório de pensamentos e

comportamentos, estabelecendo a unidade de cultura. Ora, se para tecer

generalizações de qualquer tipo seria preciso dar conta de todos os processos

históricos que fizeram cada elemento do grupo chegar até ali, de que maneira teria

sido possível chegar tão rapidamente à conclusão da existência do “gênio de um

povo”.

O “gênio de um povo” poderia ser tão poderoso a ponto de adaptar

elementos vindos de fora segundo os costumes de um grupo particular. A “função”

do gênio de um povo seria, por isso mesmo, a de integrar os elementos culturais de

um grupo num nível inconsciente e que seria manifestado nas ações também

inconscientes de seus indivíduos13. Tudo isso leva a crer que ainda era muito forte

em Boas a tradição alemã que fala sobre Geist, o espírito de um povo. A esta

altura, não se tem certeza se é a ciência, através do método, que leva Boas a

chegar na conclusão da existência do “espírito” de um povo, ou se é a crença em

uma unidade, apesar de todas as diversidades constatadas por ele mesmo, que

leva Franz Boas a chegar a essa conclusão.

13 BOAS, 1911:66 In Boas, 2004: 23

64

O método histórico de Franz Boas modificou a antropologia americana

tanto quanto deixou discípulos, porém, apesar do sucesso seu método esboçava

uma fragilidade mais tarde dificuldade apontada por seus críticos. Para Boas, a

antropologia era uma ciência do homem que unia o estudo de aspectos físicos e

“espirituais”. No entanto, de que forma ele poderia produzir “ciência histórica” se

seus objetos de estudo não raramente constituíam sociedades iletradas. Como

produzir certeza sem provas? De que forma relatos coletados poderiam ser

transformados em contundentes provas científicas. Esse é um dos motivos pelos

quais Franz Boas foi acusado de não ter produzido uma metodologia

verdadeiramente. E, especialmente para este trabalho, esta “falha” permite uma

averiguação mais precisa acerca dos ideais de Franz Boas. Pois, desse modo, sua

teoria se tornaria cada vez mais representativa de um conjunto de ideias e não de

um relato científico que não inspira e nem permite contestação.

Mais uma vez fica a sensação de que a figura do ideólogo é tão forte quanto

a do cientista na obra de Boas, e é com esta motivação que entraremos agora no

campo em que as ideias e aspirações sobressaíram às deduções científicas.

Boas em diálogo com a sociedade

Franz Boas, além de escrever para o público especializado redigiu textos

para o público em geral. Os temas principais giraram em torno da questão racial e

da estrutura acadêmica nos Estados Unidos. A questão racial, que é o tema que

mais interessa aqui, se subdividiu entre a questão do negro especificamente e o

tema mais geral que incluía a tolerância que precisava haver nos Estados Unidos

por seu caráter histórico migratório. Franz Boas se desdobrou durante toda sua

carreira para convencer o seu público de que a raça negra14 poderia superar suas

14 O termo raça será usado aqui sem aspas por ser uma referência direta ao conceito de

Franz Boas de raça. A saber: para Boas a humanidade seria formada de vários tipos

65

dificuldades e se desenvolver nos Estados Unidos. Assim como se esforçou para

incutir na mente de seus leitores e ouvintes de que a miscigenação não era uma

catástrofe comprovada, e que muitos estudos ainda deveriam ser feitos para que

houvesse reais motivos para preocupação.

No ano de 1905, Boas fora convidado para palestrar na XI Conferência da

Universidade de Atlanta, cujo tema seria “A saúde e o físico do negro americano”.

Para esta ocasião, Boas fez um discurso de colação de grau15 que foi proferido no

mês de outubro desse ano e publicado em folheto na Universidade de Atlanta em

1906. Nesse discurso, Boas mescla tendências conservadoras e progressistas. Mais

uma vez, seus argumentos são todos desprovidos de provas documentais e o que

ele tem de mais convincente é um aparato histórico dubitável e muita vontade de

que as pessoas que o ouvem deem uma chance à ciência de comprovar que suas

conclusões estariam certas.

O que esta ocasião tem de especial é ser pronunciada para um público

negro, que ali ouvia um antropólogo branco e imigrante sobre as capacidades de

sua raça, assim como as previsões para o seu destino. A tentativa de Boas é de

oferecer uma visão mais ampla, com sentido de conjunto e nacionalidade, para o

público de cor negra que ali o ouvia. Suas considerações alertavam os seus

ouvintes que agora faziam parte de uma nova pátria, e que apesar das condições

naquele momento desfavoráveis, com muito trabalho eles poderiam mostrar o valor

de sua raça.

A ideia geral de Franz Boas nesse discurso é mostrar para o seu público

negro que sua raça não era inferior, pois, enquanto no seu continente originário, a

África, havia obtido êxitos e progressos16 tais quais as outras raças humanas. O

humanos, as raças, que teriam características distintas, apesar disso não constituir uma condição necessária de inferioridade.

15 Boas, F. A Formação da Antropologia Americana, 1883-1911:370-377.

16 Neste texto, Boas se alonga nos exemplos relativos a conquistas culturais dos povos africanos, tais como a fusão do ferro, a união de tribos, o poderio militar dos zulus, a construção de prédios públicos e leis, etc.

66

caminho metodológico para isso era mais uma vez exaltar a importância da

individualidade para classificação e também análise de capacidades. Para Boas,

mesmo contando com um déficit em termos culturais se comparados às civilizações

europeias, os descendentes africanos deveriam acreditar na sua individualidade e

na sua capacidade de adaptação à vida moderna:

Nossos talentos, nossos desejos e nossos ideais não são determinados apenas pelas exigências da civilização em que vivemos. Cada um de nós tem sua própria individualidade, que o torna mais ou menos apto a se adaptar às demandas da vida. Assim, cabe aos jovens e às jovens aguardar antes de se precipitar em uma vida agitada. Devem conhecer os poderes que lhes são dados, o que são capazes de realizar e que lugar o seu trabalho deve ocupar nos interesses conflitantes da vida moderna17.

A individualidade mostra-se fundamental na teoria de Boas, pois concede

um poder de transformação social que muitas vezes um olhar rígido sobre a

coletividade renega. E a individualidade, como se pode ver na revisão da teoria, é

uma das ideias primeiras do liberalismo e pode ser compreendido como núcleo

formador da sociedade liberal. Ter uma política liberal significa, entre outras coisas,

conceder o máximo de liberdade ao indivíduo contra o controle do Estado, com o

intuito de prover a este indivíduo o direito de realizar o maior número de vontades

sem ser restringido e sem restringir a liberdade do outro. Desta forma, reconhecer

a autonomia e o poder de transformação dos indivíduos negros mesmo diante das

adversidades que assolavam o seu grupo se enquadraria em uma postura que

poderíamos chamar de liberal.

Para Boas, seria primordial que os negros reconhecessem a condição da raça

negra tanto para celebrar as vitórias do passado quando para terem em mente as

dificuldades do futuro neste processo de adaptação. Reconhecer os poderes que

lhes são dados corresponderia a ter um conhecimento tal sobre a riqueza de sua

cultura que gerasse a energia necessária em direção à superação e auto-afirmação

17 Idem. Ibidem: 371

67

desse povo em um novo continente. Entretanto, ao retornar ao passado para

evocar as lembranças encorajadoras, Franz Boas acaba por sempre se referir a

conquistas materiais de maneira muito semelhantes àquelas que os evolucionistas

se remetiam. O que ocorre quando destaca a capacidade de invenção de técnicas

do povo africano assim como sua capacidade em alguns episódios de formar uma

organização social semelhante às instituições europeias, tornando clara sua visão

progressistas em relação aos diferentes modelos de cultura.

Em um dos trechos mencionados relativos ao passado africano, Boas

ressalta que no tempo que estiveram em contato com os povos árabes, os africanos

foram capazes de aprender com eles e desenvolver cidades, organizar feiras,

edificar mesquitas, prédios públicos e executar lei por intermédio de juízes. Basta

um pouco de atenção para perceber que a maioria das benfeitorias destacadas por

Boas assemelham-se ao tipo de organização social ocidental e moderno. Ou seja,

para provar que os negros nos Estados Unidos poderiam se adaptar trabalhando ao

lado dos brancos, era imprescindível mostrar avanços técnicos no passado que se

aproximassem do tipo de cultura valorizada o ocidente. Vejamos:

Quando alguém afirmar que a raça de vocês está fadada à inferioridade econômica, olhem com confiança para o lar de seus ancestrais e digam que têm a intenção de recuperar a força que seus povos de cor tinham antes de chegar a este continente. Podem dizer que vão trabalhar com forças brilhantes e que não vão se desencorajar com a lentidão de seu progresso, pois vocês não só tem de recuperar o que foi perdido no transplante da raça negra do seu solo nativo para a América, mas também devem atingir níveis mais elevados do que os alcançados por seus ancestrais18.

Os seu público ouvinte constituído por pessoas negras não podia desistir

apesar das constantes depreciações e da própria ciência boasiana que considerava

possível haver alguma desfavorecimento anatômico ou mental por parte da raça

negra,afinal, tudo isso poderia ser resolvido através de adaptações individuais. A

18 Idem. Ibidem: 374

68

partir do seu raciocínio com base nas linhas familiares19, este autor estava

convencido que por mais que os tipos médios entre duas raças estivessem distantes

na sua composição, não estariam mais distantes do que dois tipos reais de uma

mesma raça. Por isso, essa diferenciação não poderia significar um impedimento

total. Parece plausível imaginar que existam características hereditárias um pouco

diferentes, mas é arbitrário inferir que as do negro, por serem um pouco diferentes,

sejam inferior20.

Mesmo sabendo que as diferenças culturais entre povos obrigados a

conviver pelas circunstâncias poderiam provocar tensões, e que essas tensões

poderiam demorar a se dissolver, conforme o caso de europeus e judeus. E que,

ainda, esforços individuais não levariam à solução dessas questões em pouco

tempo, Boas tinha uma visão otimista sobre a inserção do negro na sociedade

americana. Acreditava que se todos os indivíduos empenhassem o máximo de sua

capacidade em melhorar sua condição econômica, acabaria por diminuir o

sentimento de desprezo em relação a sua própria raça. Assim, mesmo

reconhecendo a força da coletividade, Franz Boas apostava na superação de cada

indivíduo para comprovar as potências de grupo racial. Uma imensa possibilidade

de aperfeiçoamento e a certeza do sucesso devem ser estímulos para vocês,

mesmo que seja necessário muito tempo para vencer a massa dos indolentes21.

Não bastaria, contudo, igualar o desempenho pessoal dos negros ao

desempenho dos brancos. Para vencer o antagonismo, seria necessário que não

houvesse nenhuma mácula na trajetória desses indivíduos negros em continente

americano. Pois, se qualquer um deles errasse, cometesse um crime ou não

correspondesse ao comportamento esperado, logo esta falha remeteria à

inferioridade de sua raça. Seus padrões morais devem ser os mais elevados22.

19 Ver capítulo II

20 Idem. Ibidem: 375

21 Idem. Ibidem: 377

22 Idem. Ibidem: 377

69

Os negros em continente americano, portanto, deveriam se utilizar da

liberdade concedida por este país para comprovar que eram capazes de adquirir

habilidades e, através de seu trabalho, obter riqueza e progresso o suficiente para

convencer tanto a raça branca quanto sua própria raça do valor do povo africano.

Deveria buscar nas raízes históricas da África exemplos que os fizessem crer em si

mesmos, e unir forças para suprir uma possível desvantagem em relação às outras

raças.

Olhando para o trabalho de sua vida dessa maneira, tudo deve-se combinar para transformá-los em felizes idealistas. Há uma meta natural definida diante de vocês, a qual - embora possa estar num futuro remoto – será atingida, se todos vocês cumprirem o seu dever, o que realizarão apoiados na consciência de sua responsabilidade. Que a felicidade e o sucesso sejam a recompensa de seus esforços!23

Franz Boas, ao falar com os representantes da cultura africana em seu país,

em nenhum momento pôs a responsabilidade de inserção sobre os ombros do

Estado. Ou mesmo culpou os brancos pelos conflitos, comparando essa

animosidade com outras tantas no curso da historia. Assim como não cogitou

nenhuma forma de compensação ao povo que outrora tinha sido escravizado e

explorado. Boas coloca sobre os ombros do próprio indivíduo negro a

responsabilidade de se fazer aceitar. É ele que deve superar suas deficiências –

anatômicas ou não – e igualar-se ao imigrante europeu através do fruto de seu

trabalho, comprovando que também pode ser ativo nesta nova terra soterrando de

uma vez as acusações sofridas.

Se o discurso acima analisado foi direcionado a uma plateia formada por

pessoas negras, o próximo texto será dirigido ao público branco, onde, da mesma

forma, Franz Boas se aplicou em falar sobre a importância de conhecer a história da

cultura negra para que ficasse provado que suas habilidades poderiam ser

praticadas sem prejuízo dos resultados desejados. A próxima carta analisada foi

23 Idem. Ibidem: 377

70

remetida aos líderes da comunidade financeira e do bem-estar social tendo

como objetivo arrecadar fundos para institutos que visassem colher e difundir

informações sobre a cultura negra para que os brancos, assim, pudessem respeitá-

la e admirá-la. Parece plausível que a atitude de nosso povo em relação ao negro

poderia ser materialmente modificada se conhecêssemos melhor o que o negro fez

e realizou na sua terra natal24.

Da mesma forma que os intelectuais progressistas, Boas acreditava no

poder reformador do conhecimento científico se amplamente disseminado. E era

nesse intuito que ele desejava alcançar o cidadão comum norte-americanos branco

com suas descobertas para que eles pudessem mudar a sua mentalidade.

Considerando que o futuro de milhões está em jogo, acredito que não se deve poupar energia para tornar a relação entre as duas raças mais saudáveis e para decidir por meio de uma investigação científica sem preconceitos qual política deve ser adotada25.

Franz Boas também tece considerações à questão racial em geral nos

Estados Unidos. Pelos seus escritos, observa-se que o medo da miscigenação é

grande neste país nesta época, pois ainda não se sabia exatamente quais seriam os

resultados de cruzamentos entre pessoas de raças diferentes, conforme se

acreditava ser. Entretanto, é interessante observar que da mesma forma que Boas

lança uma série de fatos históricos desta vez para comprovar que nem os povos

europeus eram de fato “sangue puro”, lamenta constantemente a impossibilidade

de comprovar cientificamente que as piores previsões estariam de fato erradas. A

seguir, a forma como o autor abre o discurso26 em relação aos problemas raciais na

América no ano de 1908:

Neste ensaio, proponho discutir esses problemas a fim de tornar claro o caráter hipotético de muitos pressupostos

24 Idem. Ibidem: 378

25 Idem. Ibidem: 379

26 Discurso proferido como vice-presidente da Seção H, Associação Americana para o Progresso da Ciência, Balimore, 1908; conforme publicado na Science 29 (1909): 839-849;mais tarde incorporado em Boas 1911. In: Boas. 2004: 380.

71

geralmente aceitos. Tentaremos formular os problemas e delinear certas diretivas de pesquisa que prometem solucionar as questões envolvidas, que hoje não podem ser resolvidas com precisão científica27.

Apesar das impressões de Franz Boas terem se modificado naturalmente

devido ao amadurecimento do autor. Pode-se observar que suas concepções em

relação à questão racial se manteve estruturalmente a mesma até os seus últimos

textos. Mas mesmo que tivesse havido uma mudança significativa em referência ao

início do século XX, a postura aqui trabalhada de Boas sobre esta questão teria se

mantido para que houvesse chances de um diálogo indireto se estabelecer entre ele

e Manoel Bomfim, a fim de se comparar o pensamento de ambos na mesma época.

Pode-se notar que não faz parte da ideologia de Boas construir uma

valorização em torno da cultura negra pelo simples fato de o povo negro fazer parte

da humanidade, conforme prega a carta dos direitos humanos editada pela

Organização das Nações Unidas na metade do século XX. Neste primeiro momento

do século XX e neste primeiro momento do liberalismo, as igualdades ainda não são

fatos dados, elas precisam ser conquistadas. Conquistadas através da aquisição de

habilidades, da educação e também do trabalho. O respeito ao povo negro deveria

vir junto com as comprovações que eles já haviam constituído um povo rico,

vencedor e cheio de conquistas. O único fato dado nas políticas liberais desta época

é o ideal da liberdade, e é através dele que o indivíduo deve tornar-se igual.

Mesmo se pondo a divulgar tanto o poder da ciência, Boas não conseguir ser

reconhecido como científico pelos seus sucessores. O autor se apoiou em

observação, relatos e medições para fundamentar seus argumentos, mas as

comprovações científicas, que viriam a comprovar a igualdade das raças, só

chegariam depois, através da biologia. Antes disso, o que se observa é uma enorme

vontade balizada por um forte ideal de igualdade a mover este corajoso intelectual

27 BOAS, Franz. A Formação da Antropologia Americana: 1883-1911: 381

72que além de fundar uma corrente antropológica agiu por muito tempo como

ativista em favor da liberdade, da igualdade, do progresso e da tolerância.

O Ideal de liberdade em Bomfim

Manoel Bomfim escreveu e publicou diversos textos durante a sua vida,

inclusive em Revistas como já foi citado anteriormente. Porém, ao contrário de

Boas que tinha um público mais especializado na área de antropologia, entende-se

que Bomfim ao escrever Males de Origem escreveu um Ensaio. Ensaio este que

poderia se dirigir tanto a um público especializado, por exemplo, atores políticos,

sociólogos ou historiadores de sua época, quanto ao público interessado em geral.

E, dessa forma, entendo que ao escrever Males de Origem, Bomfim estava

dialogando também com a sociedade como um todo, e, por isso, a sua concepção

sobre Liberdade será baseada também nesta obra.

O ideal de liberdade estabelecerá uma das bases do pensamento deste

autor. A liberdade para Bomfim significará o ponto de partida para qualquer

sociedade que deseje ser efetivamente republicana e democrática. Pois somente a

partir da prática da liberdade que o indivíduo poderá ser consciente de suas

escolhas e participativo de seu próprio governo. Sem a liberdade, o povo seria

apenas uma massa conduzida em direção a sua própria miséria, material e moral.

Contudo, para o ideal de liberdade se concretizar seria preciso conquistar

um outro valor igualmente iluminista e moderno: o ideal da igualdade. Liberdade e

igualdade, na teoria de Bomfim, são valores intrinsecamente ligados que colaboram

no sentido de emancipar o indivíduo e dar a ele o privilégio do autogoverno, ou

seja, a capacidade de governar a si próprio, mesmo que por meio de seus

representantes eleitos democraticamente. Para alcançar a liberdade, seria inadiável

diminuir o nível de desigualdade exposto em uma sociedade outrora escravocrata, e

dotada de uma abissal diferença socioeconômica entre suas classes sociais.

73

Manoel Bomfim recorre assim como Franz Boas à metodologia histórica

para investigar minuciosamente as relações entre as classes que compunham a

sociedade brasileira de sua época. Comparando as sociedades a organismos vivos,

Bomfim defende que seria mister investigar não só suas condições de lugar, mas

também sua condição de tempo. Só assim poderia se compreender porque uma

dada sociedade se encontraria em uma determinada situação. Uma nacionalidade é

o produto de uma evolução; o seu estado presente é forçosamente a resultante de

ação do seu passado, combinada à ação do meio28. Manoel Bomfim pensa assim a

partir de uma perspectiva biológica darwiniana, que crê que todos os seres vivos

atuais são o resultado do processo de adaptação de milhares de anos. Sendo assim,

a sociedade brasileira, ou por que não dizer o organismo social brasileiro seria o

resultado de diversos processos adaptativos entre seus indivíduos e o meio a que

eles estariam expostos.

A sociedade brasileira seria um organismo adaptado a um sofrido processo

de exploração do tipo predatória em que o colonizador teria sugado as energias de

sua vítima até que ela se degenerasse quase por completo. O parasita, o

colonizador, e o parasitado, a colônia, estabeleceriam entre si uma relação tão

desigual que só poderia resultar em um fenômeno prejudicial para ambos. Parasita

e parasitado comporiam um cenário enfermo que degeneraria tanto um quanto

outro.

Curioso é perceber que apesar de em uma primeira vista o colonizador

parecer ser o grande vitorioso deste mecanismo, estaria ele tão prejudicado quanto

o próprio parasitado. Pois, se de acordo com a teoria darwiniana é justamente a

luta pela vida que desenvolve o organismo, o destino do parasita seria

naturalmente a atrofia. No adiantado curso da história, a colônia portuguesa estaria

não só atrofiada sem a fonte de sua seiva, como também atordoada sem saber o

que fazer para suprir suas próprias necessidades. Acostumada a “sugar” riquezas

28 Bomfim, Manoel. A América Latina: males de origem: 58

74

sem esforço, estaria a pátria colonizadora paradoxalmente “atrasada” ao fim do

processo de intensa exploração. Tão atrasada quanto a sua presa, espoliada e

também degenerada.

No correr do século XVII e do XVIII, a Ibéria, que havia dado ao mundo Cervantes, Camões, Murilo, Lope de Veja, Ribera... desaparece, evolui, degenera; não se vê um só nome espanhol ou português entre os homens que fundam a cultura moderna e dominam a natureza, ou naqueles que refazem a filosofia racionalista, que iluminará as gentes na conquista da justiça e da liberdade29.

Neste pequeno trecho Bomfim demonstra seu lamento por uma das perdas

que ele considera mais fundamentais no processo de degeneração. A perda de

“inteligências” seria um dos prejuízos mais significativos no estado de

degenerescência causado tanto por um contexto de atrofia quanto por um contexto

de exploração. Nestas linhas Bomfim também deixa clara sua grande admiração

pela transformação intelectual conhecida como iluminismo, que reunira os

pensadores que fundaram as ideias norteadoras das sociedades modernas. Ciência,

justiça, liberdade, trabalho livre e desenvolvimento econômico corresponderiam,

portanto, às adaptações das sociedades que souberam se desenvolver no decorrer

do tempo e se civilizar. Eram esses os sonhos de Bomfim para o Brasil, eram por

essas adaptações que o organismo social brasileiro deveria passar.

Manoel Bomfim estabelece uma relação direta entre desigualdade e (falta

de) moralidade, uma vez que relações desiguais sempre resultarão em um processo

degenerativo para ambos os lados dessa assimetria. De acordo com Manoel

Bomfim, o modo como ocorreu a colonização brasileira, baseado em um violento

sistema de escravidão, naturalmente provocaria uma animosidade entre as partes

envolvidas, fundando um processo que caminharia contrariamente aos sentimentos

de colaboração e solidariedade presentes em uma sociedade moderna. O progresso

29 Idem. Ibidem: 63

75

moral e o surgimento de sentimentos nobres, tais quais o amor, a cordialidade,

o altruísmo e a justiça só poderiam ser possíveis em ambiente de maior equidade.

Vivendo parasitamente, uma sociedade passa a viver às custas de iniquidades e extorsões; em vez de apurar os sentimentos de moralidade, que apertam os laços de sociabilidade, ela passa a praticar uma cultura intensiva dos sentimentos egoísticos e perversos30.

Para comprovar a sua tese sobre degenerescência das gentes e das almas,

Bomfim detalha o sistema de exploração e maus-tratos imposto ao escravo, e

analisa os possíveis efeitos morais ocorridos tanto para o negro explorado quanto

para as famílias aristocratas. Trabalhar e produzir era tudo que caberia ao negro

nas terras dos senhores, para que uma outra classe composta pela aristocracia,

pela nobreza e pelo fisco se beneficiasse. O raciocínio, segundo Bomfim era

simples. O objetivo era enriquecer e para isso bastava a posse de terras, a compra

de escravos e o pagamento dos impostos. Tomadas essas medidas, a preocupação

seria retirar o máximo de trabalho da classe explorada.

Só o escravo trabalhava, só ele era produtivo: nenhum braço português tocava os engenhos, nas roças de S. Tomé ou do Brasil”. E com isto resultou que o trabalho foi considerado, cada vez mais coisa vil, infamante. O ideal para todos para todos era viver sem nada para fazer – ter escravos e à custa deles passar a vida e enriquecer.31

O ponto para Bomfim são as consequências que um regime iníquo e cruel

como este poderia causar nas gerações que o vivenciaram. Que tipos de “vícios” de

comportamento esta conjuntura poderia trazer para a nação brasileira em sua

totalidade. O primeiro deles já está posto na citação anterior. O horror ao trabalho

seria uma marca que certamente teria uma grande importância na cultura

brasileira32. Ao contrário dos Estados Unidos, que fundaram a sua nação sob a

30 Idem. Ibidem: 67

31 Idem. Ibidem: 148

32 Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil, e Roberto da Matta, em Carnavais, Malandros e Heróis tratam desse espírito aventureiro do colonizador português e das

76

crença no valor do trabalho, que dignificaria o indivíduo, o Brasil formou-se em

torno da crença de que o trabalho desvalorizaria o indivíduo. Que o trabalho neste

país seria para os desafortunados e para os excluídos.

Ora, se há um sistema em que uma minoria que se orgulha de não ter de

trabalhar e explorar o trabalho da maioria, e, por outro lado, um grupo expropriado

de todos os seus direito que vê-se obrigado a realizar todo trabalho, desumanizado,

tendo como única saída a morte, obviamente, esse sistema caminhará para o

conflito, ou, como houve no Brasil, para a inanição e o extermínio.

A desigualdade, em qualquer situação, confrontando exploradores e

explorados jamais, na opinião de Bomfim, poderia caminhar para o progresso.

Atores antagônicos não se sentirão impelidos a colaborar para um futuro melhor.

Não há, e o bom senso diz que não pode haver, na mente daquele que é

francamente explorado um desejo sincero de fazer o melhor trabalho. E o

progresso, na concepção de Bomfim, vem justamente da luta diária com a natureza

para obter os melhores resultados e melhores adaptações. Somente este desejo

generalizado de encontrar as melhores soluções, não só para si, mas para a

coletividade, estimularia o desenvolvimento de uma nação em busca de soluções

científicas. E de que forma um indivíduo poderia desejar o progresso de uma nação

com a sua colaboração se ele não conseguia garantir o direito sobre o seu próprio

corpo. Que espírito de coletividade poderia ter alguém que não conseguia

experimentar a própria existência.

Tudo isso seria piorado pelos excessos de crueldade com que o senhor de

terra administrava os seus escravos. O negro era submetido a diversos tipos de

castigo caso fugisse ou se negasse a trabalhar. Extraído de sua humanidade,

qualquer violência ao seu corpo não poderia trazer nenhum tipo de remorso às

mente cristãs.

consequências do sistema de escravidão brasileiro, que, somados, resultariam em uma espécie de “horror ao trabalho” que seria característico da cultura brasileira.

77

Em toda fazenda, havia um quarto – uma prisão, aparelhado por dois ou três troncos, gargalheiras, cepos, correntes... Ali apodreciam, invariavelmente, um ou dois negros. Pela manhã ao tempo que se marcavam as tarefas aos outros escravos, esses no quarto do tronco expiavam o crime de haver fugido ao trabalho devorador – esses recebiam a refeição quotidiana, de bolos ou açoites, quatro ou cinco dúzias, aplicadas com todo requinte sobre as carnes doloridas, inflamadas, sensíveis como uma chaga muitas vezes magoada e renovada33.

Manoel Bomfim segue nesta narrativa de horror por muitas linhas ainda.

Utilizando-se de adjetivos, pausas e cadências própria para comover aquele que lê.

Neste momento, o objetivo é tocar o leitor com o remorso que o senhor não teve, é

identificar a dor do leitor com aquele que por ventura não seria considerado

humano. Não há mais dúvidas, mesmo considerando o negro com um caráter

inferior ao branco34, a narrativa de Bomfim coloca-o em caráter de igualdade ao

mergulhar em seu sofrimento. Os detalhes da dor e da chaga do negro, por um

momento, aproxima-o da humanidade.

Bomfim preocupa-se também com a moral daqueles que convivem com essa

atrocidade. Aquele que assiste todo esse circo de crueldade ou enlouqueceria ou

ficaria imune a qualquer tipo de apelo. A tendência seria cada vez mais “coisificar”

o escravo vendo-o como uma máquina. A violência cotidiana daria origem aos

sentimentos de ódio e indiferença de um grupo contra o outro. E baseada no ódio e

não na solidariedade estariam as bases dessa sociedade partida e profundamente

desigual.

Ainda no rastro da história, Bomfim conclui que o Estado, que deveria

proteger seus cidadãos e garantir direitos, em tempos imperiais e escravocratas

exerceriam a função apenas de cobrar, coagir e punir aqueles que não conseguiam

pagar os impostos. O Estado passa a ser inimigo e não representante, conforme

nas sociedades democráticas. E esse Estado espoliador e tirânico teria construído

33 Idem. Ibidem: 64

34 Ver capítulo 2.

78uma imagem negativa que se estenderia até a época em que Bomfim escreveu

Males de Origem. Estado e povo estariam, então, em lados diferentes e

contrapostos.

Para garantir o domínio no século em que o mundo começava a ansiar por

liberdade e igualdade, a opção era manter o segmento explorado na ignorância de

seus direitos. Manoel Bomfim foi um progressista que, assim como Boas, acreditava

profundamente no poder de transformação promovido pelo conhecimento e pela

ciência. A divulgação do conhecimento seria a grande arma contra as iniqüidades

mantidas pelas sociedades desiguais por excelência, como a monarquia. Desta

forma, sua lógica de pensamento sustenta que quanto mais inculto o povo de uma

nação estivesse, menos ameaçaria os privilégios das minorias. Uma vez educados e

“ilustrados” seria muito mais difícil manter um sistema de tamanha desigualdade e

violência.

A solução seria, pois, o Estado interessar-se pelo seu povo, estudá-lo saber

de suas necessidades e, o mais importante de tudo, educá-lo. Um programa de

instrução básica voltado para a massa era uma das “utopias” de Manoel Bomfim.

De que adiantaria dar início a uma República – lembrando que Bomfim vivenciou

quase todo período da Primeira República – que repetisse o modelo monárquico em

termos de exploração, antagonismo em relação ao povo, e falta de participação

política, perguntava ele. Pois uma República de analfabetos, para Bomfim, não

corresponderia a uma República verdadeira.

Bomfim era forte crítico do uso da palavra República em um sentido apenas

retórico, vazio de prática e significado. A República para ele deveria ser um regime

sobretudo adaptado às necessidades e dificuldades de um povo. Em Males de

Origem, Bomfim revelou o pavor que tinha da tradição “livresca” presente no Brasil

de repetir inadvertidamente as conclusões dos clássicos europeus para solucionar

problemas que tinham características peculiares ao nosso contexto. Observou e

lamentou a cópia irrefletida da constituição dos Estados Unidos para elaborar a

79

constituição brasileira. Como ferrenho defensor da observação para a resolução

de problemas, da originalidade para a análise dos fatos, espinhava-se cada vez que

notava a discrepância entre o significado que ele acreditava ter a República e o

modo como ela se deu no Brasil. Para ele, A República acima de tudo deveria ser o

regime político para prover felicidade a uma nação. E se, conforme o método da

observação leva a crer, cada nação terá seus próprios desejos de felicidade, o

modelo de República, e principalmente sua constituição deveria variar de nação

para nação. Eis o que para Bomfim deveria ser a República:

(...) – a eliminação de todos os abusos, liberdade e amor entre os homens, um pouco de felicidade para os que esperam justiça e carinho desde as primeiras idades. Era isto que se aclamava na República, e não esta, em si, que, abstrata, nada significa. E dos estadistas de exige que a façam concreta35.

A Educação seria o meio para transformar ideais de República em República

de fato. A ideia seria reconhecer que o povo brasileiro, formado por indígenas, ex-

escravos e mestiços teriam tido seu desenvolvimento prejudicado pelo meio

opressor em que viveram. Sendo assim, uma nova educação que os considerasse

homens livres e elementos primordiais de uma nação seria o suficiente para

“corrigir” os defeitos de caráter provocados pelo governo explorador. Desta forma,

gozando de instrução e de educação para o trabalho livre, o cidadão brasileiro

poderia progredir individualmente e contribuir coletivamente para o progresso da

nação.

Entretanto, Bomfim lamenta que a República de seu tempo ainda não tinha

se dado conta dos benefícios que uma boa educação poderia trazer. Segundo ele,

as medidas em favor da instrução pública eram inexistentes. E os poucos recursos

que havia eram direcionados para a construção de universidades – para formar

bacharéis e doutores. Bomfim revoltava-se com essas medidas, pois, assim, mais

uma vez a sociedade estaria se partindo: poucos doutores de um lado e uma

35 Idem. Ibidem: 222

80

imensidão de ignorantes de outro. A seguir, Bomfim, referindo-se aos homens

públicos e suas medidas:

(...) apuram a instrução superior, antes de propagar a primária – fazem doutores boiar sobre uma onda de analfabetos. Em vez do Ensino Popular, que prepare a massa geral da população – elemento essencial numa democracia, em vez da instrução profissional-industrial, donde tem saído o progresso econômico de todas as nações, hoje ricas e prósperas – em vez disso reclamam-se universidades – já alemães, já francesas36.

A crença de Manoel Bomfim gira todo o tempo em torno da transformação

através da educação. Para ele, as personalidades de raça seriam moldáveis o

bastante para sofrerem influência do meio, seja ela negativa ou positiva. Com a

interferência do meio, e, mais precisamente, com a interferência da educação sobre

os indivíduos, eles tenderiam a se moldar de acordo com os estímulos vindos de

fora. Melhor se fossem eles o apreço pela liberdade, pela igualdade e pelo trabalho.

A liberdade, portanto, só poderia haver nas condições da existência de uma

democracia e de cidadãos para essa democracia. É a partir desta concepção que

Manoel Bomfim traçará a crucial relação entre vontade e liberdade. A vontade é

discutida por Bomfim como o estímulo primeiro que todo ser humano tem para ser

pôr diante de uma situação, para traçar uma conduta e para realizar uma escolha.

Todo, indivíduo, portanto teria a potência de praticar a sua vontade. No entanto,

quando um grupo humano é subjugado em todas as suas formas de liberdade, ele

não irá praticar este enredo de escolhas que deveria ser possibilitado a qualquer

pessoa. De tão esmagado e explorado, esse indivíduo se tornaria apático e

extremamente frouxo em suas vontades. Tornaria-se fraco para escolher, para

negar ou para aceitar, e ficaria restrito a obedecer aos mandos dos grupos

opressores.

Quem diz vontade, diz liberdade para querer, alternativas para escolher, conhecimento para julgar e deliberar; não se queira achar vontade culta e tenaz em quem nasceu escravo,

36 Idem. Ibidem: 203

81

e viveu toda a existência dominado, abatido, subjugado o corpo, anulado a inteligência pela ignorância37.

Contudo, Manoel Bomfim diferencia dois tipos de vontade. Ou seja, dois

tipos de liberdade para querer. A primeira corresponderia a uma vontade mais

primitiva, a vontade que a todo momento nos guia de um lado a outro. O outro tipo

de vontade, a que interessa a Bomfim, é a vontade lapidada pela moral e

construída através da educação. Esta vontade primeira submetida à educação

garantiria a constância do querer e a vontade dirigida a um objetivo

predeterminado.

A vontade “primitiva” transformada em vontade “esclarecida”, segundo as

palavras de Bomfim, seriam capazes de transformar as mentes e os hábitos dos

indivíduos em favor de um plano maior de caráter coletivo em direção ao

progresso. A educação poderia prover a este indivíduo não só as técnicas para lidar

com o mundo natural, mas, antes disso, a vontade de descobrir este mundo. Desta

forma, as virtudes humanas poderiam ser talhadas pelas instruções e orientações

diárias com o objetivo de transformar o indivíduo em cidadão. A vontade

esclarecida ultrapassaria os objetivos inconstantes da vontade primitiva e

prepararia o indivíduo para a execução de metas maiores, considerando mais

atores do que a ele próprio. A educação para as mentes e sentimentos seria capaz

até mesmo de inspirar interesses coletivos e inclinações altruísticas. Faria o ser

humano perceber que faz parte de um todo orgânico e que precisaria colaborar

para o progresso de todos. Em busca desses objetivos maiores seria capaz de

dominar as suas paixões e ceder em prol da liberdade e do direito do outro, criando

sentimentos de bondade e compaixão.

A educação para Bomfim significa liberdade sobretudo porque se o indivíduo

acreditar que suas cessões ou atos são o melhor a se fazer, em um sentido ético,

será absolutamente desnecessário o uso da força para fazê-lo cumprir qualquer

37 Idem. Ibidem: 338

82demanda que esteja em sua prioridade. E esse sentimento de liberdade é

resultado justamente de quando somos “obrigados por nós mesmos”, ou seja,

quando conseguimos executar exatamente aquilo que nos propomos. E se assim

ocorrer não há violência, há somente exercício da vontade.

Uma sociedade livre, composta de indivíduos livres, que é livre para traçar

planos e cumpri-los, certamente faz transparecer toda sua inteligência e caminha

para a felicidade. Para Bomfim, uma nação de indivíduos que se sentem atuantes e

responsáveis por seus atos, quando exposto a um ambiente livre e equitativo,

tenderá aos sentimentos de colaboração, amor, bondade, justiça, beleza, verdade e

trabalho. Essas pessoas estimuladas pelos seus avanços individuais diários e pela

realização de suas vontades “esclarecidas” não hesitarão em colaborar em um

projeto coletivo cujo objetivo é a felicidade para si e para o outro.

Considerações Finais

A análise sobre os autores Manoel Bomfim (1868-1932) e Franz Boas (1858-1942)

que incluiu um estudo sobre a biografia de ambos, os contextos sócio-políticos em

que viveram e detalhamentos sobre pontos de suas obras permitiu que fosse

traçada uma comparação entre as suas ideias e, ainda, que essas ideias fossem

remetidas a um panorama maior de transformações históricas e intelectuais

vivenciadas no início do século XX.

No campo biográfico e contextual destacaram-se várias congruências entre

os dois autores que puderam de algum modo justificar pontos de vista semelhante

sobre temas importantes de sua época, tal qual a abolição da escravidão e o novo

lugar que o indivíduo de cor negra deveria ocupar nas sociedades brasileira e norte-

americana. Franz Boas, apesar de nascido e crescido em um território alemão,

migrou ainda jovem para os Estados Unidos e lá se fixou, possibilitando uma

experiência próxima com as ideias circulantes nesta época. E, Manoel Bomfim,

nasceu e seguiu carreira no Brasil, trabalhando, produzindo e trocando experiências

com os brasileiros.

Se levarmos em consideração os fatos históricos ocorridos em fins do século

XIX e início do século XX, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, iremos

observar que grandes mudanças ocorreram na estrutura organizacional desses

países. Tanto um quanto outro país foram influenciados por ideais republicanos que

abalaram as organizações políticas que se mantiveram até o século XIX. De modo

geral, arranjos hierárquicos fundados no princípio da hereditariedade foram

combatidos e substituídos por estruturas políticas mais liberais, igualitaristas e

democráticas.

Entretanto, como pudemos observar no decorrer da pesquisa, Brasil e

Estados Unidos manifestaram de forma distinta as influências dos ideais de

igualdade e liberdade. Os Estados Unidos, com seu perfil de colônia de

povoamento, tiveram uma postura mais combativa e prática em relação a esses

84

ideais. Romperam relações com o agente colonizador após a sua independência,

elaboraram uma constituição política baseada no princípio do federalismo, e ainda

assumiram os custos de uma guerra em que o norte vencedor conseguiu

concretizar os ideais de liberdade civil, extinguindo o regime escravista em seu

país. O Brasil, com o perfil de uma colônia de exploração, seguiu a mesma

orientação progressista, porém, com muitas adaptações. Independente, mas ainda

imperial, instituiu a propriedade privada e aboliu a escravidão. Após a República,

entrou em guerras internas para garantir a unidade nacional, optando por uma

política dos governadores que permitiu que a massa da população ficasse de fora

do processo político quando proibiu o voto aos analfabetos e fez pouco para

alfabetizá-los.

A maneira de perceber de que forma os autores Manoel Bomfim e Franz

Boas corresponderam a essa série de transformações foi, naturalmente, avaliar as

suas obras objetivando reconhecer referências, citações e orientações políticas que

revelassem de que lugar eles falavam e que tipos de influências eles poderiam

trazer em seus textos. E esse questionamento só se fez plausível, pois havia um

aparente descompasso entre os argumentos principais desses dois autores e aquilo

que seus contemporâneos, pares, ou colegas de profissão defendiam.

Mas, enfim, que tipos de contribuições tão inovadoras esses autores

trouxeram? Manoel Bomfim, em um tempo em que a ideologia racista era

dominante, se propôs a combater a ideia de que as raças inferiores – negra e

indígena - seriam incapazes de alcançar o desenvolvimento da raça superior – a

raça branca. E o progresso para elas seria uma questão de educação. Franz Boas,

por sua vez, no campo da antropologia, renegou alguns dos principais postulados

da corrente evolucionista em voga nesta época, dentre eles, o desenvolvimento

unilinear da cultura humana, e o método de classificação hierárquica dos povos

baseado em artefatos materiais colhidos aleatoriamente de diversas partes do

85

mundo. Para Bomfim, a humanidade era multicultural e os objetos precisavam ser

dotados de significado.

Pode-se notar, portanto, que Boas e Bomfim assumem uma postura

contrária a de seus contemporâneos. De forma até mesmo surpreendente, esses

autores negam qualquer tipo de determinismo biológico para o comportamento

humano e apostam na superação das dificuldades raciais através do estímulo e do

aprendizado. Mesmo sem provas científicas, sem testes laboratoriais que

comprovassem a equiparação das raças, esses autores insistiam em convencer os

seus leitores e ouvintes que, sim, era possível haver uma unidade de indivíduos

com potenciais semelhantes. O que poderia ser isso? Será que eram visionários?

Seres a frente de seu tempo? Este questionamento moveu este trabalho e ainda

apontou algumas possíveis soluções para este enigma.

Em verdade, quando analisados um pouco mais demoradamente, vemos que

Manoel Bomfim e Franz Boas não constituíam heróis a frente de seu tempo, pelo

contrário, os dois autores poderiam ser considerados extremamente

contemporâneos. A obra de ambos, por exemplo, apresentam fortes relações com a

teoria darwinista sobre a origem das espécies. Até mesmo influenciados pelas suas

formações originais – Bomfim formou-se médico, enquanto Boas doutorou-se em

física – os dois autores usaram amplamente a teoria do evolucionismo biológico e

também o seu paralelo, a teoria do evolucionismo social ou cultural. É fortemente

presente na teoria de ambos o pensamento da progressiva complexidade dos

organismos vivos. Ou seja, Boas e Bomfim acreditaram que organismos sociais,

assim como organismos vivos, desenvolviam-se de organismos simples para

organismos complexos.

Manoel Bomfim, por exemplo, baseia toda sua teoria explicativa sobre os

males da América Latina na relação biológica entre presa e predador. Para Bomfim,

o predador (o colonizador) ao longo do processo de colonização iria perdendo as

suas adaptações necessárias para a sobrevivência e iria se transformando em um

86

ser inferior, tal qual é o verme que suga, com anatomia indiferenciada e incapaz de

conseguir alimento por conta própria. O explorador, então, traçaria o caminho

inverso da evolução darwiniana, ele involuiria, perdendo tudo que conquistara até

então. Franz Boas também apresentou fortes traços do pensamento evolucionista

quando reconhece que os indivíduos da raça negra, nos Estados Unidos, deveriam

se esforçar para alcançar o progresso que a civilização norte-americana já tinha

conseguido. Ou, ainda, quando ressalta as capacidades da raça negra destacando

conquistas materiais, tecnológicas e organizacionais tendo como parâmetro de

comparação o modelo da sociedade norte-americana.

Outro ponto importante entre os dois autores é a impossibilidade de

comprovar cientificamente aquilo que pretendem afirmar. Boas e Bomfim alardeiam

que nenhuma raça é incapaz de aprendizado. Passam grande parte de seus textos

alegando que quando exposto a um ambiente favorável, qualquer indivíduo pode

assimilar conhecimentos instrumentais assim como sentimentos nobres. Mas não

apresentam nenhuma prova cabal que dê essa certeza nem aos leitores e nem a

eles mesmos. Por isso, não raro Manoel Bomfim e Franz Boas pedem auxílio aos

governantes para apoiar a ciência em busca de evidências que comprovem a igual

capacidade das raças. Outra preocupação de ambos os autores era o fenômeno da

mestiçagem. Segundo eles, a mistura de raças ainda era recente, e não havia como

ter certeza sobre nenhum tipo de resultado. Mas, ainda assim, Boas e Bomfim

insistiam que, se era impossível comprovar que a mistura racial era saudável,

também não havia provas científicas que essa mistura traria prejuízos.

A insistência dos autores em desacreditar o pensamento racista talvez seja

respondida pela concepção geral de vida e de organização social que ambos

defendiam. Na leitura de seus livros é comum encontrar citações que exultam os

pensadores iluministas e as maravilhas de ciência. Pode-se dizer que tanto Manoel

Bomfim quanto Franz Boas eram fortes representantes do progressismo nos seus

respectivos países. Inspirados por doutrinas positivistas e pelos ideais de liberdade

87

e igualdade, lutaram para que a ciência encontrasse as respostas para auxiliar na

procura pela felicidade. A ciência teria um aspecto duplo no progresso das nações.

Por um lado, ela poderia, através dos avanços tecnológicos, prover o

desenvolvimento material dessas nações colocando-as no nível mais desejado pelos

dois autores – a civilização. Por outro, a racionalidade e o positivismo poderiam

ajudar a implantar nas mentes de todas as raças, mas principalmente daquelas

consideradas mais fracas, os sentimentos de amor, solidariedade, liberdade e

igualdade.

Dentre os principais valores que deveriam ser incutidos nos indivíduos nas

nações brasileira e norte-americana estaria também o apreço ao trabalho. Manoel

Bomfim acreditava que negros e indígenas estariam “na infância” da humanidade.

Sendo, portanto, raças moldáveis que deveriam ser trabalhadas por um plano

maior de nação, onde deveriam ser cerceados os sentimentos negativos como

preguiça, apatia, egoísmo e todo tipo de paixão para se estimular os sentimentos

considerados positivos como a colaboração, a solidariedade e o trabalho. Franz

Boas também deixa claro no comunicado que fez para a comunidade negra de seu

país que a solução para a desigualdade estaria no trabalho. Seria através do

aprendizado, do trabalho, e do fruto de seu trabalho, a riqueza, que a comunidade

negra comprovaria sua capacidade e conquistaria o respeito dos imigrantes

europeus nos Estados Unidos.

A defesa das liberdades civis e a valorização do trabalho que surge nas

obras de Manoel Bomfim e Franz Boas indicam o importante traço liberal que foi

tomado como hipótese no início desse trabalho. Sem contar as variadas vezes em

esses autores conclamam com todas as letras as maravilhas do pensamento liberal.

Referindo-se a um liberalismo em sua primeira fase, que reclamava pela igualdade

de oportunidades e pela liberdade de desenvolvimento individual. Este liberalismo

que não punha sob a responsabilidade do Estado a igualdade concreta de todos os

indivíduos de uma nação, mas festejava a possibilidade de se obter individualmente

88

qualquer forma de progresso através da educação e da racionalidade. Seria ele, o

indivíduo, a peça mais importante da sociedade, estaria também sobre ele a

responsabilidade de progredir. O Estado seria responsável, sim, por prover um

meio favorável para que esses organismos se desenvolvessem, uma vez que a

adaptação em direção ao progresso ocorreria naturalmente no processo de luta

pela sobrevivência.

E, para este meio ser favorável, a ideia de “aprendizado” seria fundamental.

Boas, ao contrário dos evolucionistas, acreditou que existiam diversas culturas,

com significados próprios, e não uma só cultura em estágios diferentes. As culturas

particulares, portanto, constituiriam um todo integrado de diversos elementos,

formando o “espírito” de uma cultura. Quando exposto a uma outra cultura,

conforme ocorreu com os negros e com os indígenas, seria possível que, apesar do

impacto, esses indivíduos se adaptassem e progredissem. A ideia de “aprendizado”

em Bomfim surge de modo ainda mais evidente. Seria através da educação que os

grupos a princípio desfavorecidos iriam se adaptar e progredir. Justamente por isso

que Manoel Bomfim reivindica a oferta de instrução pública para a massa da

população. Educada e instruída, a população brasileira poderia de fato se tornar

cidadã, participando ativamente do processo político e aprendendo a valorizar os

ideais iluministas de colaboração e solidariedade.

Sem querer reduzir as obras dos autores, que sem dúvida permitem uma

multiplicidade de olhares além deste que foi construído aqui, pode-se afirmar que

Manoel Bomfim e Franz Boas foram indivíduos que, através de suas obras,

mostraram-se influenciados pelos fenômenos sociais e culturais de seu tempo,

identificando-se com os ideais de liberdade, da igualdade e da democracia, e que

lutaram especialmente pela liberdade de todos os indivíduos, independente da raça

a qual pertenceriam. Ideologia a qual, não coincidentemente, se encaixaria

perfeitamente no ideal republicano que Estados Unidos e Brasil vivenciavam aquele

momento. A ideologia liberal serviria como um ótimo “antídoto” para os problemas

89

enfrentados por esses dois países por causa da mistura de etnias que acontecia

devido ao intenso processo de imigração pelo qual tinham passado. Somente uma

ideologia defensora das liberdades civis e que desse ao indivíduo a possibilidade

plena de desenvolvimento se adequaria a sociedades multiculturais como Brasil e

Estados Unidos.

Sendo assim, Franz Boas e Manoel Bomfim, como declarados progressistas

que eram, desejavam para suas nações o máximo de desenvolvimento possível,

nas esferas econômica, social e cultural. Desejavam para seus países o máximo de

ganhos que o progresso poderia alcançar, e, para isso, não poderiam abdicar de

seu próprio povo. Era preciso crer que todas as pessoas poderiam aprender, que

todas aquelas diferenças aparentes entre as raças era apenas transitória, e que

toda desigualdade poderia ser remediada. Seria a crença no indivíduo, na mudança,

e no progresso através da ciência e da racionalidade que teriam movido esses

autores em suas sagas em busca da comprovação da igualdade entre as raças.

Desta forma, Estados Unidos e Brasil, países miscigenados desde a sua

origem, poderiam olhar positivamente para o futuro e ter ciência como aliada. As

desigualdades raciais e sociais deveriam ser vencidas para a unidade prevalecer.

Pois se essas nações tinham o objetivo de serem ricas e prósperas, deveriam contar

com a colaboração de todos os seus participantes. Populações fragmentadas não

seriam capazes de desenvolver sentimentos nobres e obter a evolução moral que

Boas e Bomfim tanto desejavam. Em um leque de diversas teorias a serem

apropriadas, Manoel Bomfim e Franz Boas escolheram doutrinas que davam a

chance de progresso as suas nações, abandonando a tendência das forças

conservadoras que insistiam em manter “cada coisa em seu lugar” e que eram a

favor dos privilégios e das relações sociais assimétricas. Portanto, as teorias desses

autores apoiaram-se nas ideologias liberais existentes em sua época e apostaram

na igualdade e na liberdade como valores para erguer nações fortes e

desenvolvidas.

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