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Considerações iniciais
UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
DEPARTAMENTO DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
DOUTORADO
JAILMA SOUTO OLIVEIRA DA SILVA
O ENIGMA O ENIGMA O ENIGMA O ENIGMA DA DA DA DA MORTE MORTE MORTE MORTE
EM MACHADO DE ASSISEM MACHADO DE ASSISEM MACHADO DE ASSISEM MACHADO DE ASSIS
João Pessoa
2006
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Considerações iniciais
JAILMA SOUTO OLIVEIRA DA SILVA
O ENIGMA DA MORTE
EM MACHADO DE ASSIS
Tese de Doutorado apresentada ao Curso de Pós-graduação em Letras, como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor em Letras, área de concentração em Literatura Brasileira, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal da Paraíba. Orientador: Prof. Dr. Francisco José Gomes Correia.
João Pessoa 2006
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Considerações iniciais
JAILMA SOUTO OLIVEIRA DA SILVA
O ENIGMA DA MORTE
EM MACHADO DE ASSIS
Tese de Doutorado aprovada (com distinção) em 09 de Outubro de 2006, como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor em Letras, área de concentração em Literatura e Cultura, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal da Paraíba, pela seguinte banca examinadora.
Prof. Dr. Francisco José Gomes Correia. Orientador
Universidade Federal da Paraíba.
Profª. Dra. Elisalva de Fátima Madruga Dantas. Examinadora
Universidade Federal da Paraíba.
Prof. Dr. Arturo Gouveia de Araújo. Examinador
Universidade Federal da Paraíba.
Profª. Dra. Cynthia Pereira de Medeiros. Examinadora
Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Profª. Dra. Ilza Matias de Souza. Examinadora
Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
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Considerações iniciais
A meu pai - Manoel Souto – in memorian
Por ter me ensinado, com o exemplo vivo, que a leitura estrutura um Saber que perpassa a formação acadêmica, além de ser um agradável prazer que sublima a solidão da vida; pelo tempo dedicado a ler, na minha infância, principalmente as histórias da mitologia grega.
A minha avó materna – Maria Emília – in memorian Contadora de estórias, nascida na época em que à mulher não era dado o Saber das letras. Fez dessa falta um eterno lamento, apontando-me sempre o privilégio do acesso à leitura.
A minha mãe – Raimunda da Conceição Pelos cuidados incontáveis, pelo exemplo de vida e obstinada disciplina; por sua atividade de trabalho no ambiente escolar ter me oportunizando precocemente o espaço da biblioteca como agradável recreação, antecipando assim o meu acesso à leitura.
A Liu Oliveira Pela adoção afetiva, presença de carinho sempre marcante. Por me encantar com o seu jovial modo de pensar e agir sobre a vida, na plenitude de seus 81 anos; pelos ensinamentos que sua companhia favorece, transmitidos em sábia discrição.
Para Moacir Oliveira, palavras poéticas:
Põe-me como selo sobre o teu coração, como selo sobre o teu braço. Porque o amor é forte como a morte... (Cantares, 8:6).
[...] E assim, quando mais tarde me procure Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama
Eu possa me dizer do amor que tive: Que não seja imortal, posto que é chama Mas que seja infinito enquanto dure.
(Vinicius de Morais).
Para Ana Liz e Alvaro Ramon, na companhia de vocês, renasço a cada dia, e me encanto sempre com o milagre da vida. Cada um de vocês, em seu singular modo de agir, me ensina e me desafia, cotidianamente, na impossível missão materna de educar. Fica para vocês o registro do meu desejo de educar com o coração; ser suporte sempre, apontar o caminho, sem determiná-lo; acolher as demandas, sendo tardia para falar e apta a ouvir; descobrir, juntos, a melhor trilha a seguir nos labirintos da vida. Com vocês quero crescer e partilhar intensamente tudo o que nos for dado a conhecer. Vocês são, cada um a seu próprio modo, o encontro mais ímpar, um presente surpresa, revelando-se, a cada dia, a minha melhor escolha na vida; a personificação simbólica da chama viva e imortal do amor.
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Considerações iniciais
AGRADECIAGRADECIAGRADECIAGRADECIMENTOSMENTOSMENTOSMENTOS
[...] Grandes coisas fez o Senhor por nós e por isso estamos alegres (Salmos 126:3b).
O momento de agradecer é aprazível, ainda que paradoxal. É o momento de
reconhecermos que as palavras não conseguem carregar a intensidade de afeto que desejamos transmitir. Desejo, então, registrar o meu esforço carinhoso de reconhecimento à presença de todos vocês que, durante este percurso acadêmico, estiveram envolvidos comigo em todas as nuanças que este trabalho exigiu.
Ao meu orientador, Prof. Dr. Chico Viana, por te me recebido em sua base de pesquisa, vinda de outra formação acadêmica, e ter apostado na viabilidade desta proposta interdisciplinar; pelo acolhimento ao meu incipiente Saber no campo das Letras e pela generosa e sempre competente orientação que favoreceu o processo de aprendizagem, resultando na produção da presente tese.
Aos professores Dra. Elisalva Madruga, Dr. Arturo Gouveia, Dra. Cynthia Pereira, Dra. Ilza Matias, Dra. Mônica Nóbrega, Dr. Sérgio Castro, por disponibilizarem tempo para ler e contribuir com sugestões que certamente ampliarão a perspectiva e visão deste trabalho.
A Suely Alencar, por acolher sempre minha demanda de orientação no aprendizado da psicanálise; pelas pertinentes pontuações teóricas desde o primeiro momento (pré-projeto), pelo empréstimo de livros e pelo bom ouvido de amiga e de psicanalista as minhas angústias nesse percurso.
A Ruth Dantas, pela amizade, pelo pronto acolhimento às minhas demandas teóricas, pela disponibilidade em empréstimos de livros, pelo exemplo de psicanalista.
A Ana Lúcia Carvalho, pelo feliz encontro de verdadeira amizade nesse percurso de pós-graduação; pela receptividade em disponibilizar sua casa para me hospedar; por compartilhar minhas dúvidas e angústias com sábias e pertinentes pontuações de amiga e de psicanalista; pelo desprendimento e solidariedade em repartir comigo todo o material bibliográfico advindo de sua pesquisa na França.
A Graça Morais, amiga-irmã, presença solidária em todos os intercursos deste processo; a primeira a acreditar comigo na viabilidade deste projeto e a incentivar sua execução.
A Sevy Campos, pela afetuosa adoção; por dividir comigo os cuidados hospitalares durante o período da enfermidade de minha mãe, oportunizando-me tempo para estudos; pelo carinho, apoio e solidariedade freqüentes.
A Jailma Maria, minha amiga-xará, pelo acolhimento em João Pessoa; pela disponibilidade em acatar as demandas que esse trabalho ocasionou.
A Jairo Osias, pela disponibilidade em ler e contribuir com afetuosa competência profissional as correções que se fizeram necessárias à redação deste trabalho.
A Nostradamos Lins, pela amizade, pelo amável humor “irônico” e pela atenta leitura provocadora de pertinentes pontuações ao texto.
A Campos (Dião), pela amizade que lhe motivou a peregrinação aos sebos do Rio de Janeiro à cata de livros; pela hospitalidade com que me recebeu por ocasião de minha pesquisa na Academia Brasileira de Letras e na Biblioteca Nacional; pelo carinho das constantes ligações telefônicas em solidário apoio.
A Justiniano Cipriano, representando toda a família Oliveira, pelo acolhimento, incentivo, apoio e carinho presentes em todo tempo de nosso convívio e em especial durante este percurso.
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Considerações iniciais
A Andrey Oliveira, pela amizade; pelo empréstimo de livros e pelo partilhar teórico durante nosso percurso de cumprimento de créditos disciplinares. A Maria Aparecida (Cida), pela amizade; pelo agradável acolhimento em João Pessoa; por nossas trocas de idéias teóricas no decorrer das disciplinas cursadas.
A Sandra Erikson, pelo companheirismo durante o curso; por disponibilizar seus livros em empréstimos e por sua competente contribuição na troca de idéias. A Rosilda Alves, pela bem humorada companhia nas viagens a João Pessoa e a congressos; por disponibilizar em empréstimos seus livros; pelo partilhar teórico.
A Simone Melo, pela amizade e parceria nesse percurso; pela companhia em viagens a João Pessoa; por nossas “bem humoradas” discussões melancólicas.
A Jaira Nunes, pela amizade; pela companhia em viagens a João Pessoa; pela cumplicidade; pela troca de idéias; pelo incentivo e apoio sempre presentes.
A Vivianne Leite, pela amizade e pelos velhos tempos de parceria a caminho de João Pessoa; pela sempre atual solidariedade.
A Luisa de Marillac, por nossa cúmplice e fraterna amizade que sobrevive a todos os impasses do tempo e da distância e nos torna solidárias sempre; pelo bom humor sempre presente em nossas “filosóficas” conversas sobre a vida.
A Temy e a Ulisses, eternos amigos, pela constante presença, apesar do tempo e da distância, pelo incentivo e carinho que conto sempre.
A Rita, Magda, Neide, Fátima, Dalila, Ilda, Socorro, Salete, Amarylis (amigas do “finado” Centro Clínico), pelo incentivo e solidariedade sempre atuais.
A Glenda, a Grabriella e a Ariosvaldo pelo incentivo; pela disponibilidade de negociação da carga horária, favorecendo o término desta etapa estudantil. A Kátia, Joelma, Jerusa, Ana Lúcia, Alzenir e Régia, pelo companheirismo e cumplicidade com que têm me incentivado, compreendendo minha necessidade de ausência em alguns momentos no ambiente de trabalho. A Jorge Henrique, pela elaboração da arte gráfica; pela paciência em fazer as constantes modificações adequando as imagens ao tema deste trabalho. À bibliotecária Cirlene, pelo cordial acolhimento e por disponibilizar tempo em apontar os ajustes bibliográficos demandados por este trabalho. Deixo ainda, a vocês, a palavra poética de Vinicius de Morais.
A Morte
A morte vem de longe
Do fundo dos céus Vem para os meus olhos
Virá pra os teus Desce das estrelas As loucas estrelas
Trânsfugas de Deus Chega impressentida Nunca inesperada Ela que é na vida
A grande esperada! A desesperada
Do amor fratricida Dos homens, ai! dos homens
Que matam a morte Por medo da vida.
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Considerações iniciais
Pupilo de Zeus, filho de Laertes, industrioso Ulisses, por que, em tua ousadia, concebeste em teu espírito empresa mais arriscada que as precedentes? Como ousaste baixar à morada de Hades, onde habitam os mortos insensíveis, fantasmas de homens que tanto penaram? Assim falou; e eu lhe respondi: Aquiles, filho de Peleu, o mais valente dos Aqueus, vim consultar Tirésias, solicitar-lhe um conselho, para chegar à rochosa Ítaca. Ainda não consegui aproximar-me da Acaia, nem pus os pés em minha terra; só tenho sofrido infortúnios. Mas, Aquiles, ninguém até hoje foi mais feliz do que tu, nem o será no porvir. Outrora enquanto vivias, nós os Argivos, te honrávamos como a um deus; agora que estás aqui, reinas sobre os mortos; por isso, não deves afligir-te por haver morrido. Assim falei; ele com vivacidade me retrucou: Ilustre Ulisses, não tentes consolar-me a respeito da morte; preferiria trabalhar, como servo da gleba, às ordens de outrem, de um homem sem patrimônio e de parcos recursos, do que reinar sobre os mortos, que já nada são! (Odisséia, Canto XI ).
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Considerações iniciais
R E S U M O
Este trabalho utiliza a articulação entre a literatura e a psicanálise para fazer uma
leitura das imagens e representações da morte presentes nos textos romanescos da
segunda fase de Machado de Assis, quais sejam: Memórias Póstumas de Brás
Cubas, Quincas Borba, Dom Casmurro, Esaú e Jacó e Memorial de Aires. Considera
a compreensão da psicanálise de que o ser humano, constituído a partir de uma
perda original irrecuperável, é marcado pela hiância inerente a essa constituição.
Associa tais representações à insatisfação humana ante a transitoriedade da vida.
Tendo isso em vista, procura ressaltar como a escrita machadiana maneja com
maestria a linguagem da melancolia e da ironia como via de possibilidade para falar
do irremediável mal que avassala o saber humano: a incógnita da morte. Apresenta
considerações gerais sobre o tema da morte, da melancolia e da ironia, na
perspectiva da psicanálise. Investiga, em breve percurso, o lugar da morte nos
principais contextos destacados na história da humanidade. Aborda a relação
interdisciplinar entre a literatura e a psicanálise. Procede à análise dos textos acima
citados, priorizando o texto de Memórias póstumas de Brás Cubas.
Palavras-chave: morte. Melancolia. Ironia. Literatura. Psicanálise. Machado de Assis.
Sigmund Freud.
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Considerações iniciais
ABSTRACT
This work use of articulation between makes literature and psychoanalysis, so that it
can scan some images and representation of death. They have, already, been seen
in romantic texts in the second stage of Machado de Assis, they are: Memórias
póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba, Dom Casmurro, Esaú e Jacó and
Memorial de Aires. Considering the psychoanalysis understanding that human being
is made from an irretrievable original loss, marked out through a gap inherent to that
constitution. It is bound together such representation to the human insatisfaction,
before the transition of live. Before this contingency, it stands out like Machado de
Assis’s writing it handles with mastery the melancholy language and irony as a way
of possibility for speaking of the incurable evil that hits human being knowledge: the
death’s incognita. It shows general considerations about the theme death,
melancholy and irony, according to the psychoanalysis prospect. It shows a short
path of the death’s place along the history. It is approached the interdisciplinary
relationship between the literature and the psychoanalysis. It becomes effective the
texts analysis above mentioned, becoming as a priority the texts Memórias póstumas
de Brás Cubas.
Keywords: death. Melancholy. Irony. Literature. Psychoanalysis. Machado de Assis.
Sigmund Freud.
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Considerações iniciais
SUMÁRIO 1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS................................................................................. 12
2 A MORTE: UM ENCONTRO COM O DESAMPARO............................................ 21
2.1 Anotações da psicanálise e considerações gerais. ...................................... 22
2.1.1 Considerações psicanalíticas sobre o real da morte. ...................................... 23
2.1.2 Posições do homem primitivo diante da morte................................................. 32
2.1.3 O medo da morte: a incógnita humana............................................................ 44
2.1.4 Breve percurso: contextualizando a morte....................................................... 57
2.2 Melancolia: uma face da morte........................................................................ 79
2.2.1 Considerações históricas sobre o tema da melancolia.................................... 80
2.2.2 A melancolia como objeto perdido: um encontro com a morte........................ 94
2.3 Ironia: possibilidades de dizer o não-dizível. .............................................. 106
2.3.1 Considerações gerais: rastreando um conceito............................................. 107
2.3.2 Ironia: labirinto do discurso............................................................................. 121
3 LITERATURA E PSICANÁLISE: POSSIBILIDADES DE DIÁLOGO.................. 131
3.1 Diálogo entre mestres: Machado de Assis - Sigmund Freud. ................... 132
3.1.1 Pontos de convergência: literatura e psicanálise........................................... 133
3.1.2 Machado de Assis - Sigmund Freud: intertextualidades............................... .145
4 A MORTE NA SEGUNDA FASE ROMANESCA DE MACHADO DE ASSIS..... 154
4.1 Entre o melancólico e o lúdico: travessias. ................................................. 155
4.1.1 Rememorando as Memórias póstumas: contextualização............................. 156
4.1.2 Revelando a morte: velada entre a ironia e a melancolia.............................. 167
4.1.3 Humanitismo: neologismo entre a loucura e a morte. ................................... 196
4.2 Casmurrice: uma presença da morte............................................................ 206
4.2.1 O que há entre o amor e a morte? Memórias – luto ou melancolia. ............. 207
4.3 A morte - In memorian ao amor..................................................................... 220
4.3.1 Inexplicável feminino: semblante do amor e da morte. ................................. 221
4.3.2 Memorial: melancolias, “Saudades de si mesmo”.......................................... 232
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................. 240
REFERÊNCIAS....................................................................................................... 248
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Considerações iniciais
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A morte é um verme, de duas espécies, conforme se introduz no corpo ou na alma. Mata em ambos os casos. Em mim não penetrou no corpo; o corpo geme porque a doença reflete nele; mas o verme está na alma. Nela é que eu o sinto roer todos os dias (Machado de Assis).
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Considerações iniciais
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS.
[...] Templo de glória ou região do medo, Morte, quem te arrancara o teu segredo? (Machado de Assis).
Joaquim Maria Machado de Assis1 (1839–1908) obteve amplo
reconhecimento de sua produção escrita pela crítica literária. Seu talento
desenvolveu-se ao longo de 50 anos, aperfeiçoando-se gradativamente. Escreveu
poesia e prosa, atingindo nesta última o apogeu. “Para qualquer rumo que se
orientasse, como romancista, como contista, como cronista, como crítico, Machado
de Assis encontraria a fulguração de seu gênio, visto ser ele um escritor completo”
(MONTELLO, 1998, p. 12). Sua escrita é marcante até os dias atuais, sua obra
transcende o tempo, “não fica apenas como documento de uma sociedade e de um
momento, mas se agiganta e cresce como monumento literário” (COUTINHO, 1997,
p. 24).
Ao relermos os textos desse autor, com um olhar marcado pela relação
interdisciplinar da literatura e da psicanálise, captura-nos, no traço da escrita
machadiana, a maneira de narrar, deixando sempre em aberto um semidizer,
detalhe provocador de questionamentos e convidativo à elaboração de
interpretações. Afrânio Coutinho afirma que a linguagem de Machado de Assis
destaca-se pelo uso da metáfora e do simbolismo. É uma linguagem que não esgota
o seu dizer, deixa espaço aberto ao dizer do leitor.
A arte machadiana do estilo tem sua suprema regra na estrita economia de meios. Não diz tudo. Não apenas no que tange ao estilo. Mas a tudo o mais ela exige a colaboração do leitor para completá-la. É a arte da sugestão. Nisso está a sua riqueza (COUTINHO, 1997, p. 52).
1Daqui em diante Machado de Assis. Participou da fundação da Academia Brasileira de Letras, sendo eleito 1º presidente (1897 – 1908), cargo que ocupou até a sua morte, presidindo a sua última sessão em 1º de Agosto de 1908 e falecendo em 29 de setembro do mesmo ano.
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Considerações iniciais
Na esteira da afirmação de Coutinho, refletimos sobre a genialidade da
narrativa machadiana, no fascínio que a mesma exerce sobre o leitor, suscitando
inúmeros questionamentos. Observamos no inusitado narrador de Memórias
Póstumas de Brás Cubas o espaço aberto para falar, além de tudo quanto já foi dito
acerca de sua viagem “à roda da vida”, também da sua excursão “à roda” da morte.
É ponto pacífico entre os críticos que a obra machadiana tem duas fases: um
primeiro momento, inspirado ainda pelo clima do Romantismo e por seus padrões
narrativos; um segundo, “realista”, em que fixa um cânone definitivo e particular.
Atravessa as escolas estéticas de sua época, escapando aos rigores e aos excessos
de todas elas, sabendo utilizar-se das contribuições que julgou válidas,
sedimentando seu próprio estilo (COUTINHO, 1997, p. 26). “Naturalmente, é realista
a arte machadiana. Mas de um realismo mitigado, antes um realismo impressionista.
[...] Sua arte é antes a transfiguração e interpretação da realidade do que a
reprodução fotográfica” (COUTINHO, 1997, p. 51).
Acerca dessas fases, Massaud Moisés afirma: “Duas fases têm sido
apontadas, convencionalmente, na carreira de Machado de Assis: a romântica,
desde Ressurreição até Iaiá Gárcia, e a realista, após Memórias Póstumas de Brás
Cubas” (MOISÉS, 1984, p. 392). Para este autor, a segunda fase é de maior
aprofundamento, revelando os sinais da maturidade de Machado. Já na primeira
haveria traços do que se fixaria na segunda, conferindo um estilo próprio ao escritor.
Coutinho, analisando o mesmo tema, acrescenta:
Não há ruptura brusca entre as duas fases. É mais justo afirmar que uma pressupõe a outra, e por ela foi preparada. Há antes uma continuidade. E, se existe diferença, não há uma oposição, mas sim desabrochamento, amadurecimento. Isto sim: maturação. [...] Há diferenças e semelhanças entre as duas fases. Em ambas, o gosto psicológico e a propensão à análise de costumes. O humorismo aparece nas duas, embora na primeira não associado ao pessimismo, sem o travo amargo e mórbido, sem a melancolia de finado, sem o desencanto que a descoberta da maldade humana e o sofrimento físico e moral lhe dariam depois (COUTINHO, 1997, p. 26).
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Considerações iniciais
As referências à evolução na estética da escrita de Machado de Assis têm,
consensualmente, na publicação de Memórias Póstumas de Brás Cubas2 [1881] um
marco. Muitas são as análises feitas sobre este inusitado livro. A maioria delas
encontra neste texto um fértil espaço para caracterizar a preocupação de Machado
de Assis com a análise psicológica e a especulação filosófica acerca da condição
humana. Destaca também a utilização do humor como recurso crítico, observando
que o livro retrata o contexto social do Brasil na época. Concordamos com todas
essas análises, mas nosso olhar segue outro ângulo, aparentemente o mais óbvio,
porém o apenas mencionado e não focalmente explorado, ou seja, a morte como
questão.
O protagonista-narrador Brás Cubas, que se intitula “um defunto autor”, diz
escrever suas memórias com “a pena da galhofa e a tinta da melancolia” (Assis,
1977, p. 97), paradoxo mobilizador da narrativa em que se destaca e sobressai o
teor melancólico, quase bizarro, da condição humana. Nas palavras do próprio Brás
Cubas, sua escrita é “obra de finado”. A esta junção, “galhofa” e “melancolia”, atrela-
se a ironia, manifestando-se através de fino escárnio; uma maneira possível de falar
do irremediável mal humano: o encontro com a morte, o encontro com o inominável.
Uma das personagens apresentadas por Brás Cubas, o amigo Quincas
Borba, é um filósofo, criador de um sistema chamado Humanitismo. Será esta
personagem quem dará título ao próximo livro de Machado de Assis, publicado dez
anos depois das Memórias Póstumas. No texto que leva seu nome, Borba dá
continuidade às explicações sobre o Humanitismo (com destaque, o sentido da
morte) apresentadas anteriormente a Brás Cubas, em cuja companhia irá falecer.
Deixa toda a sua herança ao professor Rubião, e estabelece, como condição para a
posse desta, que o seu cachorro, chamado também de Quincas Borba, seja adotado
e bem cuidado até a morte. O cachorro é assim nomeado como uma marca da
amizade e como busca de (breve) imortalidade, que o faria ser constantemente
lembrado, na continuidade de vida do animal. A narrativa segue, tendo como foco
Rubião, seus encontros e desencontros, e culminará com sua loucura, ruína e morte.
2 Daqui adiante usaremos apenas Memórias póstumas.Todas as citações dos textos de Machado de Assis abordados neste trabalho são das edições críticas 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, o ano está referido por volume, 1975 e 1977. Também consultamos os mesmos textos na Obra Completa organizada por Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguillar S. A., 1997. Optamos por citar os textos das edições críticas.
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Considerações iniciais
Segundo a crítica, o apogeu da escrita de Machado de Assis aconteceu com
a publicação de Dom Casmurro [1899], nove anos após Quincas Borba [1891]. Foi
aclamado como sua obra-prima e uma das mais completas criações da ficção
brasileira. A dúvida e o enigma são explorados na figura de Capitu. Com “olhos de
ressaca e ar dissimulado”, ela encarna o que há de sedutor, melancólico e mortífero
na representação do feminino. A melancolia é o fio condutor de Dom Casmurro: é de
reminiscências que se alimenta a narrativa, sustentação do semblante da morte em
sua versão real e simbólica.
Esaú e Jacó [1904], penúltimo livro de Machado, e Memorial de Aires [1908],
o último, estão entrelaçados; o Conselheiro Aires é narrador-personagem de ambos.
Diplomata, aposentado e de volta à terra natal, passa seu tempo a observar e a
escrever sobre si mesmo e sobre os que o cercam. Intermedeia suas reflexões
pessoais (filosóficas) ao contexto social vigente, tanto quanto à condição da solidão
humana. Em ambos os textos existe a relação entre o novo e o velho, entre a vida e
a morte, sustentadas pelo recurso recorrente da melancolia, dissimulada ante uma
aparente aceitação com a estagnação da vida e a proximidade da morte.
Assim, fecha-se o ciclo dos romances da segunda fase machadiana com um
narrador organizado e sistemático, formando um contraste marcante com o narrador
que a inicia. Nessa fase considerada realista, observamos que a questão da morte é
recorrente e que, para representá-la, são utilizadas diferentes abordagens. Em
alguns momentos a morte é apresentada de forma direta e objetiva: a morte do
corpo físico. Em outros, é expressa de maneira velada, simbolizada; para isso
concorrem também as representações da melancolia e da ironia. O aparecimento
recorrente do tema da morte, tanto quanto as elaborações filosóficas em torno de
seu enigmático sentido, apontam, no realismo machadiano, para uma constante
reflexão sobre o homem diante da morte – e esta não apenas no sentido orgânico,
mas no sentido simbólico, ou seja, a morte como “a dor de existir”3.
Ressaltamos ainda o modo de organização dos cinco romances dessa
segunda fase4. Começando com Memórias Póstumas5 e terminando com o Memorial
3 “Dor de existir” é um termo usado por Jacques Lacan, em referência à filosofia do Budismo, para caracterizar uma dor que é peculiar à condição do existir. Portanto, pertinente a todo humano. (“Kant com Sade”. In: Escritos (LACAN, 1998, p. 777). 4 Os cinco romances apresentam uma curiosa divisão em três blocos. O protagonista Brás Cubas e Quincas Borba têm uma interlocução nos dois primeiros textos. Dom Casmurro está isolado, como que marcando um antes e um depois na postura narrativa. Nos dois últimos livros, o Conselheiro Aires é narrador-personagem dos dois e sua narrativa é bem sistematizada.
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Considerações iniciais
de Aires, Machado de Assis escolhe narradores que proporcionam uma escrita
progressiva de lembranças marcadas pela recorrência dos temas “melancolia, ironia
e morte”. Essa progressão se efetiva também na forma de apresentar o tema da
morte: nos dois primeiros romances, os protagonistas apresentam certa irreverência
e pitadas de ironia ante a presença da morte e das atrocidades da vida.
Em destaque, o narrador de Dom Casmurro apresenta uma nuança cruel da
melancolia. A consolidação da morte, antecipada na condição de “casmurro”,
acontece a princípio imaginarizada e simbólica, antes de tornar-se efetivamente
realidade. Em Esaú e Jacó, a vertente melancólica é marcada no impasse das
indecisões e culmina com a morte física. E por último, em Memorial de Aires, a
resignação se presentifica na melancolia disfarçada em luto, como se finalmente
houvesse a aceitação da morte como destino natural e imutável da condição
humana.
É nosso objetivo neste trabalho, utilizando os cinco textos já mencionados –
prioritariamente Memórias Póstumas – (pelo fato de o narrador ser um defunto autor,
e a morte dividir igual espaço com a temática social), interpretar as imagens que
dizem respeito às representações da morte em sua vertente real ou simbólica. Para
isso procedemos a uma articulação entre literatura e psicanálise, esta última
comparecendo aqui como instrumento teórico de análise do texto e não como saber
clínico. A literatura é nosso ponto de ancoragem, motivadora do objeto de estudo em
questão. A psicanálise comparece como uma das possíveis ferramentas teóricas
que se prestam à análise dos textos. Tal enlace é plenamente viável, uma vez que
literatura e psicanálise comungam interesses e estão ambas fundamentadas na
subjetividade da linguagem.
É nosso objetivo ainda produzir um trabalho que possa ampliar o
entendimento das análises existentes sobre os textos já mencionados, como
também suprir a lacuna da falta de análises na direção que estamos abordando,
contribuindo assim para uma melhor compreensão da obra de Machado de Assis em
sua riqueza literária. Dessa feita, consideramos as interpretações já conhecidas
sobre os textos mencionados. O que aqui se elabora não é uma contestação e sim
uma constatação de que o texto literário se oferece a inúmeras óticas de leitura.
5É interessante ressaltar que memórias e memorial significam a mesma coisa: lembrança.
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Considerações iniciais
Nessa perspectiva, nosso trabalho utiliza-se do saber psicanalítico para fazer
a leitura das imagens e representações da morte existentes nos já mencionados
textos de Machado de Assis, seja em sua vertente real, seja simbólica. Para
proceder à leitura dos textos escolhidos como corpus deste trabalho, utilizamos as
edições críticas de obras de Machado de Assis e a obra completa organizada por
Afrânio Coutinho. Recorremos à contribuição de críticos, intérpretes literários e
biógrafos, quais sejam, Afrânio Coutinho, Roberto Schwarz, Lúcia Miguel Pereira,
John Gledson, Raimundo Magalhães Júnior, Massaud Moisés, Alfredo Bosi, Luis
Costa Lima, Sílvio Romero e Josué Montello.
Na inter-relação literatura e psicanálise, buscamos a produção de trabalhos
literários nessas mesmas vertentes, o que nos serviu de suporte para referendar a
viabilidade dessa relação interdisciplinar. Destacamos Luis Alberto Pinheiro de
Freitas, Francisco José Gomes Correia, Leila Perrone-Moisés, Giovana Bartucci,
Rafael Andrés Villari, Adélia Bezerra de Meneses, Jean Bellemin-Noël. Como
referência da psicanálise, examinamos, na obra de Sigmund Freud (1856–1939)
tanto os textos que tratam da análise literária, quanto os que abordam o tema da
morte, melancolia e ironia. Eventualmente pesquisamos também as contribuições de
Jacques Lacan (1901-1981), e outros freudianos nessas mesmas vertentes.
Visando a um melhor recurso didático, adotamos a sistematização deste
trabalho em cinco seções primárias, subdividindo-o em sete seções secundárias e
dentro dessas as terciárias, o que resultou na seguinte organização: seção primária
1 Considerações iniciais. Seção primária 2 - a morte: um encontro com o desamparo
- está subdividida em três seções secundárias. 2.1, Anotações da psicanálise e
considerações gerais, apresentamos quatro seções terciárias. 2.1.1, Considerações
psicanalíticas sobre o real da morte, trabalhamos, a partir do percurso de Freud6, a
condição do desamparo humano diante da questão da morte. Está anunciada em
todas as situações de perdas, seja afetiva ou objetais, seja reais ou simbólicas,
marcadas pelo traço da transitoriedade que há em todas as coisas.
6 O percurso freudiano aqui utilizado não é o cronológico, mas de acordo com a melhor aplicação do texto para o objetivo a ser fundamentado. Indicaremos sempre o ano de origem da elaboração do texto entre colchetes, [ ], seguido da página da edição que estamos utilizando. Todas as citações são das Obras completas, edição Standard brasileira – Rio de Janeiro: Imago, 1990. Reconhecemos os erros de tradução da edição brasileira (não feita direta do alemão) e consultamos o mesmo texto na edição da Amorrortu (traduzida direto do alemão para o espanhol). Porém, no corpo do trabalho, optamos por utilizar o texto em português.
18
Considerações iniciais
No percalço dessas questões, abordamos, a seção terciária 2.1.2, Posições
do homem primitivo diante da morte. Utilizamos, como texto-base, Totem e tabu
[1913] pelo fato de haver uma preocupação recorrente de Freud nesse texto com a
herança psíquica do homem moderno, a partir dos modos de organização de vida do
homem primitivo, haja vista que, no inconsciente, não há registro para a
representação da morte (FREUD, [1913] 1990, p. 99), ([1915] 1990, p. 327, p. 335,
p. 338). ([1919] 1990, p. 302). ([1923] 1990, p. 75).
Na terciária 2.1.3, O medo da morte: a incógnita humana, usamos
inicialmente o texto de Ernest Becker (A negação da morte, 1973) e o diálogo deste
com o texto freudiano sobre o medo humano referente ao encontro com a morte. Em
continuidade, retomamos em Freud os primeiros textos que instauram o conceito de
pulsão7, para melhor compreendermos o conceito de pulsão de morte, desenvolvido
em 1920, que se torna, a partir de então, determinante e fundamental na psicanálise.
Na terciária 2.1.4, Breve percurso: contextualizando a morte, percorremos
brevemente os principais recortes de períodos históricos, situando o lugar da morte
em cada momento. A marca do ritual funerário em todos os períodos de vida da
humanidade infere que há um caráter universal nessa prática, portanto marcante em
revelar um modo de pensar e representar a incógnita da morte. Usamos, como
textos-base, os trabalhos de Edgan Morin8 e Philippe Ariès9.
Na seção secundária 2.2, Melancolia: uma face da morte, estudamos a
melancolia, situando-a como um tipo de morte em vida, a morte do desejo de
reinvestir a libido no novo objeto. Na terciária 2.2.1, Considerações históricas sobre
o tema da melancolia, abordamos breves considerações sobre a trajetória do afeto
da melancolia ao longo dos principais momentos da história humana, em função de
ser, a expressão desse afeto, tão antiga quanto a construção histórica da
humanidade. Na terciária 2.2.2, A melancolia como objeto perdido: um encontro com
a morte, apresentamos a posição da psicanálise, referendada no ensino freudiano.
Completamos, quando se fez necessário, com as leituras de Jacques Lacan e outros
freudianos, como Marie-Claude Lambotte e Urania Tourinho Peres.
7 O conceito de pulsão é destaque entre os conceitos fundamentais da psicanálise. Desse modo, entendemos ser relevante acompanhar desde sua primeira formulação [1905] até o desaguar no conceito de pulsão de morte [1920], ainda mais por ser essa última vertente motivadora de águas divisoras no campo da psicanálise. 8 O homem e a morte. 9 O homem diante da morte e A história da morte no ocidente.
19
Considerações iniciais
Na seção secundária 2.3, Ironia: possibilidades de dizer o não-dizível, na
terciária 2.3.1, Considerações gerais: rastreando um conceito, na apresentação da
figura de linguagem “ironia”, rastreamos a plasticidade e a evolução de seu conceito,
para melhor entendermos a manifestação de suas inúmeras facetas. Utilizamos o
trabalho de Douglas Mueckle, Ironia e o irônico, e o de Novais Paiva, Contribuições
para uma estilística da ironia. Consultamos também o estudo de Beth Brait, Ironia
em perspectiva polifônica. Na terciária 2.3.2, Ironia: labirinto do discurso,
apresentamos a manifestação dessa figura como uma possibilidade de cindir a
ilusão de linearidade do discurso corrente. Recorremos a Freud e ao trabalho de
Marco Antônio Coutinho Jorge, nessa vertente.
Na seção primária 3 - Literatura e Psicanálise: possibilidades de diálogos -
desenvolvemos seção secundária única 3.1, intitulada Diálogo entre mestres:
Machado de Assis - Sigmund Freud, subdividido em duas terciárias. Na 3.1.1,
dedicamos a ratificar a intersubjetividade já bem referenda em inúmeros trabalhos
existentes nesse campo interdisciplinar. Na 3.1.2, Machado de Assis - Sigmund
Freud: intertextualidades, referendamos a proximidade entre a obra dos dois
mestres, apontando a base de aprendizagem nas grandes obras clássicas e nos
mestres da literatura, havendo em comum a fonte literária e filosófica, tanto quanto a
genial sensibilidade que os tornou ímpares e imortais.
Na seção primária 4 – A Morte na segunda fase romanesca de Machado de
Assis – analisamos os textos desse período, divididos em três seções secundárias,
obedecendo à ordem cronológica de publicação bem como à seqüência de método
narrativo estabelecida pelo autor. Na seção secundária 4.1, Entre o melancólico e o
lúdico: travessias, trabalhamos três seções terciárias assim distribuídos: O 4.1.1,
Rememorando as Memórias póstumas: contextualização, procedemos a uma
retomada das análises mais destacadas do já referido texto, com vistas a situar a
originalidade da narrativa, quanto à temática e à trama desenvolvida.
Na terciária 4.1.2, Revelando a morte: velada entre a ironia e o lúdico,
abordamos a representação da morte física e afetiva, a morte do desejo,
escamoteada pelo discurso lúdico da ironia, tanto quanto pelo da melancolia.
Recorremos ao suporte teórico da psicanálise para apontar a linguagem do delírio
como uma via de acesso de dizer o não possível por outro meio; dizer ludicamente
de nossa “melancólica humanidade”. Na terciária 4.1.3, Humanitismo: neologismo
entre a loucura e a morte, recortamos através da personagem Quincas Borba, o
20
Considerações iniciais
discurso do Humanitismo, atravessado nos dois textos (Memórias póstumas de Brás
Cubas e Quincas Borba) as pontuações filosóficas em torno do tema da morte e dos
seus significantes.
Na seção secundária 4.2, Casmurrice: uma presença de morte,
desenvolvemos uma única seção terciária 4.2.1, O que há entre o amor e a morte?
Memórias – luto ou melancolia. Referimos, no texto de Dom Casmurro, a tessitura
sutil do luto em que se estrutura o narrador e sua “fiel” casmurrice vinculada ao signo
da memória; o gozo mórbido alimentado nas reminiscências; a marca cruel da
melancolia. A presença da morte aparece com a força simbólica, bem antes de
efetivar-se na morte real.
Na seção secundária 4.3, A morte - in memorian ao amor, trabalhamos os
dois últimos textos machadianos. Na terciária 4.3.1, Inexplicável feminino: semblante
do amor e da morte, no texto Esaú e Jacó, fazemos o recorte da presença da morte
na impossível escolha de amor, da personagem Flora. Aproximamos aqui a morte e
o feminino, ambos inexplicáveis e sem representação no inconsciente. Na terciária
4.3.2, Memorial: melancolias, “saudades de si mesmo”, damos continuidade, no
Memorial de Aires, à análise da representação da morte, através da trajetória do
narrador-personagem, o Conselheiro Aires. Este, através do diário de notas, se faz
porta-voz das demais personagens, tanto quanto porta-voz de sutil melancolia e
refinada ironia, dissimulada no inevitável encontro com as “saudades de si mesmo”,
peculiar ao destino humano. Na seção primária 5, apresentamos as Considerações
finais.
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A morte: um encontro com o desamparo
SEÇÃO II
A MORTE: UM ENCONTRO COM O DESAMPARO
O Dia da Morte - 1859 - William-Adolphe Bouguereau (1825-1905)
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A morte: um encontro com o desamparo
ANOTAÇÕES DA PSICANÁLISE E CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE A MORTE
• Considerações psicanalíticas sobre o real da morte.
• Posições do homem primitivo diante da morte.
• O medo da morte: a incógnita humana.
• Breve percurso: contextualizando a morte.
O Triunfo da Morte ou Os 3 Destinos - Tapiz Flamenco – 1510-1520
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A morte: um encontro com o desamparo
2.1.1 Considerações psicanalíticas sobre o real da morte.
Não seria melhor dar à morte o lugar na realidade e em nossos pensamentos que lhe é devido, e dar um pouco mais de proeminência à atitude inconsciente para com a morte, que, até agora, tão cuidadosamente suprimimos? (Sigmund Freud).
Ao escolhermos falar do tema da morte, deparamo-nos com questões que
exigem o anteparo de diversas referências de saber. É uma argumentação que só
consegue ser construída a partir de certo ponto de vista - filosófico, religioso,
científico, sociocultural, psicanalítico, ou criativo e diverso campo das artes e suas
representações. Ou, melhor dizendo, o enigma da morte coloca-nos diante de uma
questão só possível de ser falada ou representada, para melhor sustentar a
imprecisão de uma resposta que não atende à dimensão da demanda a ela
formulada.
Uma vez produzidas tais respostas, jamais esgotam o tema, dando lugar a
novas indagações que fazem circular, entre os mais diversos campos do saber,
inúmeras e novas formulações. O esforço de apreensão do tema, e toda produção
alinhada nesse sentido, só atingem uma construção imaginária10. Dessa feita, só
aponta para o que é peculiar à estrutura humana, a tentativa freqüente de respostas
que apazigúem seu desamparo frente à efemeridade da existência. O caráter
inequívoco de parcialidade de toda produção ao tema referido não satisfaz a
inquietação humana, expõe sua marca de incompletude na vida e mobiliza a
sedução de novas construções para acalmar esse “mal estar”.
Aprendemos no exemplo de Sigmund Freud o quão produtivo é sustentar
uma questão e fazer circular, sobre esta, diversas referências do saber instituído,
fazendo vacilar a certeza e a precisão, para construir uma verdade com caráter de
subjetividade. Ao abrir mão de uma resposta que acalmasse a inquietação da
medicina de sua época, sobre a causa da histeria, Freud pôde criar os pilares da
10 O termo imaginário está referido ao lugar da ilusão; do engodo do sujeito. Lacan definiu o Imaginário atrelado ao Simbólico e ao Real (nó borromeano) como três ordens que estruturam o inconsciente.
24
A morte: um encontro com o desamparo
psicanálise e descobrir mais um dos desamparos humanos, a constatação de que “o
eu não é senhor nem mesmo em sua própria casa, devendo, porém, contentar-se
com escassas informações acerca do que acontece inconscientemente em sua
mente” (FREUD, [1916] 1990, p. 336). A esse desamparo, Freud nomeou como o
“terceiro grande golpe” sofrido pelo saber do “ingênuo amor-próprio dos homens”,
um golpe no narcisismo. O primeiro foi descobrir que a criatura humana não vive no
centro do universo; o segundo, que sua ascendência é evolutiva do reino animal,
portanto, não é a imagem e nem a semelhança do Criador, de acordo,
respectivamente, com as teses de Copérnico (1453-1543) e Darwin (1809-1882).
(FREUD, [1916] 1990, p. 336).
Com a descoberta do inconsciente, a psicanálise inaugura uma nova relação
com o saber e um novo modo de pensar o ser humano, que vai de encontro à
concepção centrada na razão e na consciência. Introduz-se operando uma ruptura
com a vertente de saber do ponto de vista da lógica cartesiana11, produzindo assim
um saber próprio, “um saber em posição de verdade” (QUINET, 1991, p. 10), saber
afetado pela subjetividade e uma verdade sem caráter de exatidão, mas a verdade
do sujeito. “A verdade é, finalmente, o encontro sempre faltoso com um real que não
consegue designar, no discurso, senão como ponto de umbigo, lacuna,
representação faltosa” (ANDRÉ, 1994, p. 09).
“A descoberta freudiana do inconsciente é a de que ele tem leis e comporta
desejo, sobre o qual nem sempre o sujeito quer saber” (QUINET, 2003, p. 21).
Pensar o ser humano a partir da perspectiva do inconsciente é retirá-lo da posição
de indivíduo, do plano do “penso, logo sou”, para o plano do “penso onde não sou,
logo sou onde não me penso”. (LACAN, 1998, p. 521 e 1988, p. 3912). É implicá-lo
em sua cisão de agente e, ao mesmo tempo, de (a)sujeitado, afetado em seu
discurso por lacunas e manifestações conscientes que necessitam buscar respostas
no Outro13, no sujeito do inconsciente. “Essas lacunas vão trazer para o primeiro
11 René Descartes (1596–1650) é reconhecido como o fundador da filosofia moderna. Suas teorias baseadas na física e na matemática inauguram o “Racionalismo Continental”, que se contrapôs ao empirismo reinante em sua época. Sua máxima de maior destaque “je pense, donc je suis” (Penso, logo existo) foi publicada pela primeira vez no Discurso sobre o método [1637], expressão que fundamenta a racionalidade e pela qual se tornou conhecido. 12“É aqui que se revela a dessimetria entre Freud e Descartes. Ela não está de modo algum no encaminhamento inicial da certeza fundada do sujeito. Ela se prende a que, nesse campo do inconsciente, o sujeito está em casa. E é porque Freud lhe afirma a certeza, que se faz o progresso pelo qual ele muda o mundo para nós” (LACAN, 1988, p. 39). 13 O termo “Outro” grafado com letra maiúscula tem sentido de grande Outro (pode ser usado também com a grafia A). Designa um lugar simbólico (Tesouro dos significantes; o lugar onde o significante
25
A morte: um encontro com o desamparo
plano da investigação psicanalítica aquilo que Lacan, seguindo Freud, chamou de
formações do inconsciente: o sonho, o lapso, a ato falho, os chistes e os sintomas”
(GARCIA-ROZA, 1994, p. 171).
Seguindo o rastro da invenção freudiana, acatamos sua posição sobre o
estado de desamparo original do ser humano. Biologicamente o animal humano
deixa a vida intra-uterina com o processo de maturação inacabado. Nessa medida a
inscrição humana no mundo se faz a partir de perdas. Nascer é sair de um local
imaginariamente ideal e encontrar um estranho mundo simbolicamente já
constituído, ficando o recém-nascido na dependência de um outro primordial que
responda por este despreparo; que o tome enquanto objeto de desejo, possibilitando
assim que ele se estruture psiquicamente como sujeito. A eficácia dessa
estruturação é ainda marcada por uma queda necessária desse lugar de objeto
desejado, para que o pequeno humano advenha como desejante, inscrevendo-se
como sujeito. Nessa perspectiva, a tentativa de elaboração em torno de uma perda é
uma questão, desde a origem, cotidiana do enfrentamento humano, dividindo-o entre
elaborar ou não o luto dessas perdas.
Defensor da idéia do desamparo humano, Freud se manteve irredutível nesse
ponto de vista do começo ao fim dos seus estudos e escritos. No texto O futuro de
uma ilusão [1927], analisando os caminhos da civilização e a relação humana nessa
trajetória, aponta os extremos dessa fragilidade, peculiar à cultura primitiva tanto
quanto à civilizada. Destaca ele:
Há os elementos que parecem escarnecer de qualquer controle humano: a terra, que treme, se escancara e sepulta toda a vida humana e suas obras; a água, que inunda e afoga tudo num torvelinho; as tempestades, que arrastam tudo o que se lhes antepõe; as doenças, que só recentemente identificamos como sendo ataques oriundos de outros organismos, e, finalmente, o penoso enigma da morte, contra o qual remédio algum foi encontrado e provavelmente nunca será. É com essas forças que a natureza se ergue contra nós, majestosa, cruel e inexorável; uma vez mais nos traz à mente nossa fraqueza e desamparo, de que pensávamos ter fugido através do trabalho de civilização (FREUD, [1927] 1990, p. 27 grifo nosso).
Na essência de cada um desses elementos citados, percebe-se a correlação
de forças desiguais na relação do homem com o seu meio, seja o primitivo seja o
advém), a lei, a linguagem, o inconsciente. Lacan assim o designou estabelecendo diferença ao outro (com minúscula) que se refere ao semelhante, à relação especular imaginária.
26
A morte: um encontro com o desamparo
dito civilizado. A manifestação exacerbada de todos esses elementos culmina no
inevitável confronto de ordem singular, que diz respeito ao encontro com a morte,
que reedita freqüentemente a necessidade subjetiva de cada ser, desamparado
mortal, construir sua verdade e buscar respaldos que a referendem no cabedal de
saberes disponíveis.
A morte, como traço último de tudo que vive, se antecede, na marca
transitória que há em todos os elementos marcados por vida, seja vegetal seja
animal. Ou mesmo em objetos cuja materialidade apresente fragilidade em sua
consistência. No texto intitulado Sobre a transitoriedade [1915], Freud narra um
passeio através dos campos, na companhia “de um amigo taciturno e um poeta.”14
Fala do estado de espírito melancólico do referido poeta, em como a beleza da
paisagem não conseguia fazê-lo contentar-se para que dela pudesse usufruir.
“Perturbava-o o pensamento de que toda aquela beleza estava fadada à extinção,
de que desapareceria quando sobreviesse o inverno, como toda a beleza humana e
toda a beleza e esplendor que os homens criaram ou poderão criar” (FREUD, [1915]
1990, p. 345). Refletir sobre a transitoriedade de todas essas coisas é em certa
medida deparar-se com o desamparo da limitação humana. É reconhecer a
incapacidade de controlar a evanescência peculiar à vida. É confrontar-se com um
encontro prévio da crueza da morte.
Freud discute nesse texto as reações que a constatação da transitoriedade
pode causar na mente humana e destaca dois impulsos diferentes: um de desalento,
a exemplo do seu amigo poeta, e outro de revolta e negação contra um fato provado
na realidade. Em sua exacerbada rejeição, o “taciturno” expressa: “Não! É
impossível que toda essa beleza da natureza e da arte, do mundo de nossas
sensações e do mundo externo, realmente venha a se desfazer em nada” (FREUD,
[1915] 1990, p. 345). Freud confessa sua dificuldade em argumentar com seu amigo,
mas apresenta um terceiro impulso da mente frente a essa questão. Nos diz ele:
Mas essa exigência de imortalidade, por ser tão obviamente um produto dos nossos desejos, não pode reivindicar seu direito à realidade; o que é penoso pode, não obstante, ser verdadeiro. Não vi como discutir a transitoriedade de todas as coisas, nem pude insistir numa exceção em favor do que é belo e perfeito. Não deixei, porém, de discutir o ponto de vista pessimista do poeta do que a transitoriedade do que é belo implica uma perda de seu valor.
14 As identidades do amigo e do poeta não foram reveladas por Freud.
27
A morte: um encontro com o desamparo
Pelo contrário, implica um aumento! O valor da transitoriedade é o valor da escassez do tempo. A limitação da possibilidade de uma fruição eleva o valor dessa fruição. Era incompreensível, declarei, que o pensamento sobre a transitoriedade da beleza interferisse na alegria que dela derivamos (FREUD, [1915] 1990, p. 345).
A necessidade humana de assegurar-se imortal, ou seja, de superar sua
transitoriedade, remete às mais diversas reações psíquicas, entre as quais reagir
negando o que a realidade impõe como verdade, reagir negando-se a usufruir o
belo, para escapar a sua efemeridade, ou ainda elaborar esse luto e aceitar que tudo
é transitório, sendo a própria condição humana parte dessa verdade que pode ser
constatada cotidianamente. “A beleza da forma da face humana desaparece para
sempre no decorrer de nossas próprias vidas; sua evanescência, porém, apenas
lhes empresta renovado encanto. Uma flor que dura apenas uma noite nem por isso
nos parece menos bela” (FREUD, [1915] 1990, p. 346). A busca por imortalidade
pode ainda se fazer presente na produção artística, na criação humana que
sobrevive como registro de história de vidas e constitui uma insígnia de existência,
em determinada fração de tempo, marcando épocas.
Ainda nesse texto Sobre a Transitoriedade, Freud faz uma analogia entre
essa reação pessimista de seus amigos frente ao transitório e o que desse conteúdo
apontava para o luto. “A idéia de que toda essa beleza era transitória comunicou a
esses dois espíritos sensíveis uma antecipação de luto pela morte dessa mesma
beleza...” (FREUD, [1915] 1990, p. 346). O que se abre como evidência é uma
reação frente à constatação do desamparo humano diante de perdas, estas como
sinalizadoras da morte. Se para o leigo essas reações podem ser percebidas como
algo natural, “para os psicólogos, porém, o luto constitui um grande enigma, um
daqueles fenômenos que por si só não podem ser explicados, mas a partir dos quais
podem ser rastreadas outras obscuridades” (FREUD, [1915] 1990, p. 346).
Rastreando obscuridades, Freud se debruça nas situações que se
apresentaram em sua época e na emergência das questões por elas suscitadas.
Defrontando-se com a situação avassaladora da primeira guerra (1914-1919) e a
alarmante realidade da morte, escreve sobre essa “desilusão”. Elaborou, em 1915, o
texto Reflexões para os tempos de guerra e morte, dividindo-o em duas partes: a
primeira, dedicada a falar da “Desilusão da guerra”, momento em que analisa a
posição humana na cultura civilizada e a situação desumana da guerra. Na segunda
28
A morte: um encontro com o desamparo
parte, fala sobre “Nossa atitude para com a morte”. É essa parte que detalhamos
com maior interesse, a partir do que é ressaltado de posição subjetiva frente à
situação de morte15.
A experiência de guerra16, ou de qualquer calamidade coletiva, ao colocar a
morte de forma emergente e em massa, exige elaborações urgentes e pautadas em
princípios externos de bem ou mal comuns a um determinado grupo. Divide a
percepção subjetiva que se tem da morte como fato fortuito, ocorrido ocasionalmente
em algum momento estanque da vida de alguém, para uma catástrofe de dor
generalizada que a realidade impõe como verdade concreta. “As pessoas realmente
morrem, e não mais uma a uma, porém muitas, freqüentemente dezenas de
milhares, num único dia. E a morte não é mais um acontecimento fortuito” (FREUD,
[1915] 1990, p. 329). Fora das experiências de calamidade coletiva, a atitude
humana à situação de morte é de não enfrentamento. Embora reconhecida como fim
último, destino natural de todo vivente, pensar a possibilidade de morte é
sobremaneira um pensamento adiado ou falado indiretamente. Essa divisão de
sentimentos é bem trabalhada por Freud nesse contexto de guerra e apresentada na
seguinte versão:
Revelávamos uma tendência inegável para pôr a morte de lado, para eliminá-la da vida. Tentávamos silenciá-la; na realidade, dispomos até mesmo de um provérbio [em alemão]: ‘pensar em alguma coisa como se fosse à morte’. Isto é como se fosse nossa própria morte, naturalmente. De fato, é impossível imaginar nossa própria morte e, sempre que tentamos fazê-lo, podemos perceber que ainda estamos presentes como espectadores. Por isso a escola psicanalítica pôde aventurar-se a afirmar que no fundo ninguém crê em sua própria morte, ou dizendo a mesma coisa de outra maneira, que no inconsciente cada um de nós está convencido de sua própria imortalidade17 (FREUD, [1915] 1990, p. 327).
15 Para Edgar Morin, é nos períodos de guerra que as sociedades se coagulam, se endurecem para resistir e vencer. Resumindo, é nos períodos de morte que a morte se apaga, que as preocupações com a morte desaparecem. A paz e a vida tranqüila, quando se distendem os laços sociais, vêem reaparecer o medo e o estremecimento individual. Então a idéia da morte corrói o indivíduo que voltou a encontrar seus contornos (MORIN, 1997, p. 43). 16 O estado de guerra é o exemplo universal (e contemporâneo) da dissolução da presença da morte devido à predominância da afirmação da sociedade sobre a afirmação da individualidade. O estado de guerra provoca uma mutação geral da consciência da morte. Pouco sensível quando a sociedade está fixada historicamente num tipo militar, como a Esparta dos séculos V e IV a.C., o Dahomey antes da conquista, o império Inca, ou quando o perigo a determina por um período mais ou menos longo num tipo obsidional, esta mutação é tanto mais considerável quando as estruturas liberais de paz se transformam em estrutura de guerra (MORIN, 1997, p. 41). 17 Edgar Morin comenta essa afirmação de Freud da seguinte maneira: “A ‘imortalidade’ à qual Freud faz alusão não é a mesma imortalidade das crenças na vida futura, que, cabe repetir, implicam o reconhecimento da morte. É uma ‘amortalidade’ anterior a este reconhecimento, anterior ao indivíduo,
29
A morte: um encontro com o desamparo
A situação de morte, ou do enigma em torno de sua verdade, traz uma
freqüente convocação à busca de explicações à evidência dessa realidade. É
comum a necessidade de fatos justificáveis para a causa mortis, como se, dessa
feita, acalentasse sua emergência ou negasse a veracidade dessa ocorrência como
encontro marcado, ainda que, em algum tempo não determinado, mas inevitável a
todo vivente. “Nosso hábito é dar ênfase à causação fortuita da morte - acidente,
doença, infecção, idade avançada; dessa forma, traímos um esforço para reduzir a
morte de uma necessidade para um fato fortuito” (FREUD, [1915] 1990, p. 328).
Essa situação é ainda mais avassaladora quando a morte em questão diz
respeito a alguém que é amado, seja do ponto de vista parental seja em caso de
amizade com similar valor de investimento afetivo. Entramos num estado de luto que
leva a um lamento pelo ente que foi perdido, tanto quanto uma certa precaução com
os riscos que podemos vir a correr com nossa integridade física. “Assim, a tendência
de excluir a morte de nossos projetos de vida traz em seu rastro muitas outras
renúncias e exclusões” (FREUD, [1915] 1990, p. 329). Os questionamentos impostos
ao “Eu” nas ocasiões de calamidade, onde a realidade impõe sua verdade numa
crueldade sem medidas, conduzem à procura de soluções para escapar da invasão
brutal feita pelo estado de luto. Uma das soluções apresentadas por Freud diz
respeito à busca de suporte no mundo ficcional.
Constitui resultado inevitável de tudo isso que passemos a procurar no mundo da ficção, na literatura e no teatro a compreensão pelo que se perdeu na vida. Ali encontramos pessoas que sabem morrer – que conseguem inclusive matar alguém. Também só ali pode ser preenchida a condição que possibilita nossa reconciliação com a morte: a saber, que por detrás de todas as vicissitudes da vida devemos ainda ser capazes de preservar intacta uma vida, pois é realmente muito triste que tudo na vida deva ser como num jogo de xadrez, onde um movimento em falso pode forçar-nos a desistir dele, com a diferença, porém, de que não podemos começar uma segunda partida, uma revanche (FREUD, [1915] 1990, p. 329).
acrescentaríamos. O inconsciente é um conteúdo: neste conteúdo se misturam a cegueira animal à morte e o desejo humano de imortalidade” (MORIN, 1997, p. 62, grifo do autor).
30
A morte: um encontro com o desamparo
Certamente o campo da representação das artes, como expressão do fazer e
sentir humanos, promove uma forte identificação entre o mundo ficcional e a
realidade do contexto em vigor. De igual modo, em diferentes proporções, atua
subjetivamente, “sob forma de ideais e criações artísticas, isto é, as satisfações que
podem ser derivadas dessas fontes” (FREUD, [1927] 1990, p. 24). Oferece farto
campo de análise e laboratório preciso de revelações de inúmeras questões
singulares ao ser humano. Freud revelou-se um fiel apreciador do campo das artes,
destacando especial ênfase à literatura. Utilizou amplamente o conhecimento da
literatura como base na elaboração de conceitos fundamentais à teoria psicanalítica.
No texto O Estranho [1919], propondo-se a investigar o tema da estética, e
essa não apenas associada à “teoria da beleza, mas à teoria das qualidades do
sentir” (FREUD, [1919] 1990, p. 275), Freud conduz a investigação para o campo da
ambivalência provocada pelo que é “estranho”; motivador de sentimentos “atraentes
e sublimes”, tanto quanto de repulsa e aflição. Encontra no estudo lingüístico e
conceitual da palavra “estranho” o duplo que a palavra condensa, entendendo que “o
estranho é aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho
e a muito familiar” (FREUD, [1919] 1990, p. 277). E, mesmo assim, não passível de
explicação imediata. Na aplicação desse estudo ao texto literário, encontra fértil
campo nas narrativas fantásticas, destacando detalhada análise em textos de E.T.A.
Hoffmann18 e citando exemplos na escrita de William Shakespeare.
Freud destaca nos textos de Hoffmann os temas que apontam para o
fenômeno do “duplo”. Refere-se a um estudo de Otto Rank19 sobre esse tema, para
exemplificar, nos traços estruturais das personagens dos contos, algo que é peculiar
à estrutura humana. Ressalta o “duplo” como uma repetição; uma incessante busca
humana por assegurar a imortalidade. “Essa invenção de duplicar como defesa
contra a extinção tem sua contraparte na linguagem dos sonhos... [...] o mesmo
desejo levou os antigos egípcios a desenvolverem a arte de fazer imagens do morto
em materiais duradouros” (FREUD, [1919] 1990, p. 293).
18 A narrativa citada e analisada nesse texto é “O homem da areia”; o conto “Elixir do diabo” é apenas citado como exemplo para o tema do “estranho”. No decorrer desse trabalho Freud faz referências a outros escritores e recortes de poemas, principalmente em Goethe. 19 “O tema do ‘duplo’ foi abordado de forma muito completa por Otto Rank (1914). Ele penetrou nas ligações que o ‘duplo’ tem com reflexos, com sombras, com os espíritos guardiões, com a crença na alma e com o medo da morte; mas lança também um raio de luz sobre a surpreendente evolução da idéia. Originalmente , o duplo era uma segurança contra a destruição do ego, uma ‘enérgica negação do poder da morte’, como afirma Rank; e, provavelmente, a alma ‘imortal’ foi o primeiro duplo do corpo (FREUD, [1919] 1990, p. 293 grifo nosso).
31
A morte: um encontro com o desamparo
Essa tentativa de imortalidade pelo poder do ‘duplo’, Freud relaciona ao
aspecto infantil do narcisismo primário, também comum ao modo de pensar do
homem primitivo. Com essa fase mental superada20, a idéia do ‘duplo’ atua
realmente em segmento dual e insurge em caráter inverso. “Depois de haver sido
uma garantia de imortalidade, transforma-se em estranho anunciador da morte”
(FREUD, [1919] 1990, p. 294). Essa relação dual presente no processo da
repetição21 (marcante no duplo) pode evocar a sensação de estranheza, também
comum na sensação de desamparo.
“O estranho”22, nessa vertente do que é familiar e de igual modo
desconhecido, permeia o campo de aspectos não explicáveis por si mesmos. Na
série de eventos motivadores de efeitos “estranhos”, o pensamento “animista”23
ganha destaque. “Muitas pessoas experimentam a sensação, em seu mais alto grau,
em relação à morte e aos cadáveres, ao retorno dos mortos e a espíritos e
fantasmas” (FREUD, [1919] 1990, p. 301). Nesse aspecto, a relação entre o homem
e a morte resgata resíduos do pensamento do homem primitivo. Nas palavras de
Freud,
Dificilmente existe outra questão, no entanto, em que as nossas idéias e sentimentos tenham mudado tão pouco desde os primórdios dos tempos, e na qual formas rejeitadas tenham sido tão completamente preservadas sob escasso disfarce, como a nossa relação com a morte. Duas coisas contam para o nosso conservadorismo: a força da nossa reação emocional original à morte e a insuficiência do nosso conhecimento científico a respeito dela (FREUD, [1919] 1990, p. 301).
20 “A idéia do ‘duplo’ não desaparece necessariamente ao passar o narcisismo primário, pois pode receber novo significado dos estádios posteriores do desenvolvimento do ego” (FREUD, [1919] 1990, p. 294). 21 Sobre o estranho e o processo de repetição, Freud cita um exemplo retirado do poema de Schiller baseado em Heródoto. A história do “O anel de Polícrates” (FREUD, [1919] 1990, p. 298). 22 Freud destaca duas considerações para explicar a sensação do “estranho”. “Em primeiro lugar, se a teoria psicanalítica está certa ao sustentar que todo afeto pertencente a um impulso emocional, qualquer que seja a sua espécie, transforma-se, se recalcado, em ansiedade, então entre os exemplos de coisas assustadoras, deve haver uma categoria em que o elemento que amedronta pode ser algo recalcado que retorna. Essa categoria de coisas assustadoras construiria então o estranho; e deve ser indiferente a questão de saber se o que é estranho era, em si, originalmente assustador ou se trazia algum outro afeto. Em segundo lugar, se é essa, na verdade, a natureza secreta do estranho, pode-se compreender por que o uso lingüístico estendeu das heimliche [‘homely’ (‘doméstico, familiar’)] para o seu oposto, das unheimliche; pois esse estranho não é nada novo ou alheio, porém algo que é familiar e há muito estabelecido na mente, e que somente se alienou desta através do processo de recalque” (FREUD, [1919] 1990, p. 300). 23É um sistema de pensamento que permite apreender todo o universo como uma unidade isolada, de um ponto de vista único (FREUD, [1913] 1990, p. 99). E de modo específico: crença do homem primitivo na presença dos espíritos habitando o mundo dos vivos; no poder da magia e na onipotência dos pensamentos. (FREUD, [1919] 1990, p. 300).
32
A morte: um encontro com o desamparo
Nesse impasse da complexidade de eventos não explicáveis de maneira
precisa e exata, o enigma da morte e os efeitos desse (des)conhecimento têm
destaque na psique humana. A cultura, pela criatividade da arte, proporciona meios
alternativos, que funcionam como possibilidades de elaborar e expressar esses
conteúdos provocadores de “estranhas” sensações. Do arcabouço rudimentar dos
primeiros registros rupestres à evolução do mundo “civilizado”, a criação artística
tem uma escrita fundamental na revelação do sentimento humano e suas
interrogações. A literatura, como uma vertente dessa manifestação escrita, para a
expressão de sentimentos pelo campo do imaginário, comparece como uma ampla e
profícua representação.
2.1.2 Posições do homem primitivo frente à morte.
O homem primevo assumia uma atitude notável em relação à morte. Longe de ser coerente, era, na realidade altamente contraditória. Por um lado, encarava a morte seriamente, reconhecia-a como o término da vida, utilizando-a nesse sentido; por outro, também negava a morte e a reduzia a nada (Sigmund Freud).
Buscando formulações a tantas indagações postas pela realidade fronteiriça
de vida e morte, subjacentes à calamidade da guerra, Freud retoma pontos de sua
investigação da posição do homem primitivo24 diante da morte, trabalhadas, no texto
Totem e tabu 25 [1913]. Nesse texto, revisando pesquisa antropológica26, ele explora
24 Entenda-se por primitivo o modo de organização tribal ou ainda referente à primeira formação grupal de vida coletiva. 25 Totem e tabu é um texto de destaque na obra freudiana, tanto quanto polêmico à época de seu lançamento. Publicado inicialmente na revista Imago, depois em livro sem sofrer alterações [1913]. Dividindo-se em quatro partes (O horror ao incesto; Tabu e ambivalência; Animismo, magia e a onipotência de pensamentos e O retorno do totemismo na infância), Freud explica, através da criação do mito da horda primeva e do assassinato do pai, o totemismo, a exogamia e a proibição do incesto como modelos comuns à origem social e às religiões monoteístas. 26 Entre as obras pesquisadas, Freud destaca os trabalhos de Herbert Spencer, J.G. Frazer, Andrew Lang, E.B. Tylor e Wilhelm Wundt e ainda a referência de outros trabalhos citados por eles. Não fomos a esses trabalhos nos originais, por dois motivos: primeiro, a dificuldade prática de acesso e
33
A morte: um encontro com o desamparo
o perfil de organização das sociedades primitivas, privilegiando suas crenças e
retomando os pontos convergentes no psiquismo humano que remonta há épocas.
Para Freud, o homem primevo continua a contar sua história nas marcas deixadas
nos monumentos, nos vestígios da arte, mitos e contos que a tradição preserva, “e
através das relíquias de seu modo de pensar que sobrevivem em nossas maneiras e
costumes. A partir disso, porém, num certo sentido, ele ainda é nosso
contemporâneo” (FREUD, [1913] 1990, p. 20). Ou, a estrutura da psique humana
não se afetou tanto em sua essência pela evolução civilizadora27, e essa não tem
sido suficiente para demarcar diferença tão significativa diante do enigma da morte.
Os costumes dos povos primitivos que Freud privilegiou para análise estão
inseridos numa sociedade de modelo totêmico de organização, distribuído em clãs
que convivem independentes da localidade territorial. O totem28 é a marca do clã
reconhecida e assumida por cada um de seus membros que vivem em torno desse
elo afetivo determinante de suas ações. Fazem, a partir dele, as leis29 vigentes, as
responsabilidades sociais, as crenças e as restrições, tanto quanto suas punições,
situação que coloca as primeiras comunidades frente a duas questões antigas e
bem contemporâneas: a culpa e a necessidade de expiação. A morte era a forma
punitiva mais aplicada, tanto a inimigos, quanto como expiação por infração da
norma vigente entre os integrantes do clã. O rigor da lei podia se fazer cumprir pelo
grupo social, assim como podia se efetivar (in)diretamente no fato do próprio culpado
se deixar consumir pelo efeito mágico da palavra punitiva, que culminava em sua
própria morte30.
manuseio dessas obras e, segundo, porque o nosso interesse é no pensamento de Freud sobre o tema e não na pesquisa original. 27 Entenda-se essa diferença entre sociedade primitiva e sociedade civilizada referente ao conjunto de sistemas simbólicos inerentes a cada período (sem julgamento de valor), mas em como cada um desses sistemas, evidentemente, afeta não apenas o modo de vida, como também a estrutura da formação psíquica humana. 28 O totem é um antepassado comum do clã; ao mesmo tempo, é o seu espírito guardião e auxiliar, que lhe envia oráculos, e, embora perigoso para os outros, reconhece e poupa os seus próprios filhos. Em compensação, os integrantes do clã estão na obrigação sagrada (sujeita a sanções automáticas) de não matar nem destruir o seu totem e evitar comer sua carne (ou tirar proveito dele de outras maneiras). (FREUD, [1913] 1990, p. 21) 29 As duas principais leis da religião totêmica dizem respeito à proibição da morte do totem e ao incesto. Freud faz a analogia dessa interdição ao crime do mito de Édipo e reforça sua tese do “complexo de Édipo” na origem da formação social. 30Nos casos flagrantes, em que o sujeito não está doente, em que ‘ele apenas se crê, por razões precisas, em estado próximo da morte’ por ter violado o tabu ou cometido um ato sacrílego, o corpo obedece por si mesmo à ordem mágica, e morre sem resistência, sem revolta. A afirmação da ‘consciência coletiva’ está tão presente na consciência individual, que o sacrílego, mesmo involuntário, realiza por si mesmo o decreto de morte implicado na violação do tabu (MORIN, 1997, p. 40).
34
A morte: um encontro com o desamparo
As interpretações freudianas, seguindo o rastro das pesquisas etnológicas31,
conduzem a noções de que a posição do homem primitivo, diante da morte,
revelava-se ambígua. As atitudes exteriorizadas eram contraditórias dependendo da
relação do morto e de seu status afetivo com os sujeitos envolvidos na causa da
morte. As reações dos sentimentos diferenciavam-se dependendo de quem fosse o
morto: se inimigo, amigo, familiar ou, ainda, na maneira de como enfrentar a
realidade factual da morte do próprio sujeito. Diante do inimigo assassinado havia
júbilo; em se tratando da perda de pessoas queridas, o sentimento era de
estranheza (culpa, dor e luto). A injunção de sentimentos ambivalentes, diante de um
mesmo fato, demandou meios para o enfrentamento da realidade conflitante do
enigma da morte. Segundo Freud,
O homem já não podia manter a morte à distância, pois a havia provado em sua dor pelos mortos; não obstante, não estava disposto a reconhecê-la, porquanto não podia conceber-se a si próprio como morto. Assim idealizou um meio termo: admitiu também o fato de sua própria morte, negando-lhe, porém, o significado de aniquilamento – significado que ele não tivera motivo para negar no que dizia respeito à morte de seu inimigo. Foi ao lado do cadáver de alguém amado por ele que inventou os espíritos, e seu sentimento de culpa pela satisfação, mesclado à sua tristeza, transformou esses espíritos recém-nascidos em demônios maus que tinham que ser temidos. As modificações [físicas] acarretadas pela morte lhe sugeriram a divisão do indivíduo em corpo e alma. Dessa maneira, seu encadeamento de pensamento corria paralelo ao processo de desintegração que sobrevém com a morte (FREUD, [1915] 1990, p. 332).
O reconhecimento da morte acontecia, então, simultâneo a uma negação. Na
impossibilidade de lidar com a noção do aniquilamento do próprio “eu”, foi
necessário preservar a imortalidade do outro e conservá-lo vivo de algum modo.
Mantinha-se a memória do morto, aceitando-se a divisão entre um corpo e uma
alma, como fórmula para negar o estado real de decomposição do corpo e
assegurar-lhe assim uma continuidade de vida. A dificuldade humana (primitiva) em
lidar com a ambigüidade de sentimentos provocada pela ausência corporal deixada
pelos entes queridos motivou a gênese de uma vida para além da matéria. “Sua
persistente lembrança dos mortos tornou-se a base para a suposição de outras
31 A etnologia é o ramo da antropologia que estuda os aspectos culturais dos povos (a divisão em raças, as origens e distribuição geográfica) do ponto de vista comparativo e analítico.
35
A morte: um encontro com o desamparo
formas de existência, fornecendo-lhe a concepção de uma vida que continua após a
morte aparente” (FREUD, [1915] 1990, p. 332).
Essas concepções foram se estruturando gradativamente e ganhando forma
no arsenal de crenças que a necessidade humana utiliza (historicamente) para
suportar a dor das perdas. O aperfeiçoamento dessa convicção firmou-se e
desenvolveu-se ao longo dos tempos nos diversos credos religiosos, em nome da
promessa de uma vida pós-morte mais aprazível. A transitoriedade da vida
fisiológica fica compreendida como preparação a essa outra vida futura. Essas
elaborações corroboram “com a finalidade de despojar a morte de seu significado de
término da vida. Assim, a origem da negação da morte como uma ‘atitude
convencional e cultural’ remonta aos tempos mais antigos” (FREUD, [1915] 1990, p.
334). A dor pela perda de pessoas amadas motivou a crença na divisão humana em
uma vida dupla que sobrevive para além do corpo físico; uma porção etérea que
extrapola a decomposição biológica, aguçando o imaginário do ideal humano por
imortalidade.
Analisando a necessidade humana em assimilar os fenômenos percebidos
como inexplicáveis para assim poder situar-se em relação aos mesmos, Freud cita
Wilhelm Wundt. Ele declara que as especulações demandadas pelo não
compreensível ao saber do homem primitivo reverberaram num incessante pedido
de resposta e atuaram como “produto psicológico necessário de uma consciência
mitocriadora”. Ou, dito de outro modo, a inquietação humana para compreender o
que se constitui como inexplicável motivou a criação de um mito que responda pelo
fenômeno. Freud acrescenta; “a raça humana, se seguirmos as autoridades no
assunto, desenvolveu, no decurso das eras, três grandes representações do
universo: a animista (ou mitológica), religiosa e científica” (FREUD, [1913] 1990, p.
99).
A incógnita apresentada pela realidade da morte é apontada como uma das
principais hipóteses ao desenvolvimento da primeira grande representação humana
pela “consciência mitocriadora”32. O desenvolvimento dessa “consciência” aprimorou
um “sistema de pensamento”, conhecido como animista ou mitológico, que responde
por uma compreensão do mundo a partir de um único ponto de vista (FREUD, [1913]
1990, p. 99). “O animismo, em seu sentido mais estrito, é a doutrina de almas e, no
32( WUNDT, apud FREUD, [1913] 1990, p. 99).
36
A morte: um encontro com o desamparo
mais amplo, a doutrina de seres espirituais em geral” (FREUD, [1913] 1990, p. 97).
Efetivamente, o sistema animista atribui aos seres espirituais, bons ou maus, a
responsabilidade pelos fenômenos da natureza. Para Freud,
O principal ponto de partida desta teorização deve ter sido o problema da morte. O que o homem primitivo encarava como coisa natural era o prolongamento indefinido da vida – a imortalidade. Somente depois a idéia da morte foi aceita, e com hesitação. Mesmo para nós, ela é falha de conteúdo e não tem conotações claras (FREUD, [1913] 1990, p. 98).
Certamente que diante de todos os fenômenos inexplicáveis, a realidade da
decomposição biológica, pós-morte, é de singular estranheza. Os efeitos físicos
visíveis na morte do semelhante despertam a evidência da devastação do destino
humano, fato que justifica a necessidade de uma crença que minimize a extensão do
desamparo. E como é peculiar a todo sistema para existir e se reproduzir, faz-se
necessário uma estrutura que respalde sua manutenção. “Assim, não ficamos
surpresos em descobrir que, de mãos dadas com o sistema animista, existia um
conjunto de instruções a respeito de como obter domínio sobre os homens, os
animais e as coisas – ou melhor, sobre os seus espíritos” (FREUD, [1913] 1990, p.
100). Dessa maneira, o sistema animista utiliza, como recurso de atuação, a
feitiçaria e a magia. Freud considera esses dois recursos como a técnica desse
sistema.
A feitiçaria seria, então, a arte de influenciar espíritos tratando-os da mesma maneira como se tratariam seres humanos em circunstâncias semelhantes: apaziguando-os, corrigindo-os, tornando-os propícios, intimidando-os, roubando-lhes o poder, submetendo-os à nossa vontade – através dos mesmos métodos que se têm mostrado eficazes com os homens vivos. A magia, por outro lado, é algo diferente: fundamentalmente, ela despreza os espíritos e faz uso de procedimentos e não dos métodos psicológicos do dia-a-dia (FREUD, [1913] 1990, p. 100).
A magia é apontada como um método anterior ao da feitiçaria e reconhecida
como mais importante dentro do sistema animista. Seus recursos são variados,
oferecendo proteção a quem dela se utiliza e podendo ser usada a serviço do bem
37
A morte: um encontro com o desamparo
ou do mal, dependendo do desejo de quem a manipula. O pensamento guiado pela
magia opera motivado pelo desejo do praticante. A magia pode ser praticada por si
própria (magia imitativa) ou dependendo de um outro (magia contagiosa) e, em
ambos os casos, sua eficácia depende do significado da ação e da realidade
esperada, ou seja, se sua ação for confirmada com o efeito registrado na evidência
do fato, sua eficácia fica confirmada, alimentando a “onipotência de pensamentos”
(FREUD, [1913] 1990, p. 108).
É interessante observar como, desde o mundo primitivo, o sistema de
pensamento faz uso de uma técnica com um modo de estratégia de ação dualista.
Essa dualidade é ainda explorada por Freud ao analisar os dois princípios de
associação usados pela magia como “semelhança e contigüidade – estão incluídos
no conceito mais amplo de ‘contato’. A associação por contigüidade é contato no
sentido literal; a associação por semelhança o é no sentido metafórico” (FREUD,
[1913] 1990, p. 108). O tipo duplo de operação de associação, conforme atribuído
por Freud, se processa idêntico ao tipo de atuação das figuras e linguagem da
metonímia e da metáfora.
Uma outra semelhança destacada por Freud é sobre o modo de evolução da
visão humana de universo, as grandes formas de representação, (a animista ou
mitológica, a religiosa e a científica). Essas podem ser comparadas às fases do
desenvolvimento libidinal humano em sua individualidade. A primeira fase é
correspondente ao narcisismo do indivíduo, ou seja, opera a partir de um único
ponto de vista, o próprio, determinado pelo eu do indivíduo; a onipotência é dirigida
para o “si mesmo”. A segunda corresponderia à fase de escolhas de objeto, e já
admite a entrada de um outro, os deuses, os pais; o foco sai da visão isolada, ainda
que, à influência dos desejos, seja partilhada entre o eu e o outro. “A fase científica
encontraria uma contrapartida exata na fase em que o indivíduo alcança a
maturidade, renuncia ao princípio de prazer, ajusta-se à realidade e volta-se para o
mundo externo em busca do objeto de seus desejos” (FREUD, [1913] 1990, p. 113).
Na fase científica, ocorre uma inversão em relação ao lugar reservado ao
campo da onipotência. Para Freud,
A visão científica do universo já não dá lugar à onipotência humana; os homens reconheceram a sua pequenez e submeteram-se resignadamente à morte e às outras necessidades na natureza. Não obstante, um pouco da
38
A morte: um encontro com o desamparo
crença primitiva na onipotência ainda sobrevive na fé dos homens no poder da mente humana, que entra em luta com as leis da realidade (FREUD, [1913] 1990, p. 111 grifo nosso).
Apesar da correspondência ser pertinente, é importante destacar que, para a
psicanálise freudiana, as etapas de desenvolvimento humano não são estanques, ou
seja, elas não acontecem num dado momento do desenvolvimento e se extinguem.
Desse modo, as fases do desenvolvimento libidinal são parte do ser do sujeito,
intrínsecas à estrutura de sua personalidade, podendo manifestar-se em menor ou
maior proporção em todas as fases de sua vida. De igual modo encontramos em
todos os sistemas humanos, acerca do universo, a mescla do modo de visão que,
em determinadas circunstâncias, podem ressuscitar padrões anteriores, tidos como
já superados, haja vista que, resíduos do modo de pensar e do agir da fase animista
sobrevivem até os dias atuais.
Em relação à crença na “onipotência de pensamentos”, entendida como
desejos realizados pelo poder da mente, Freud destaca um único meio de
possibilidade para que ela continue atuando livremente na “civilização”, sendo
legitimada e amplamente reconhecida em seu efeito de sedução mágica33.
Apenas em um único campo de nossa civilização foi mantida a onipotência de pensamentos e esse é o campo da arte. Somente na arte acontece, ainda que um homem consumido por desejos efetue algo que se assemelhe à realização desses desejos e o que faça com um sentido lúdico produza efeitos emocionais – graças à ilusão artística – como se fosse algo real. As pessoas falam com justiça da ‘magia da arte’ e comparam os artistas aos mágicos. Mas a comparação talvez seja mais significativa do que pretende ser. Não pode haver dúvida de que a arte não começou como arte por amor à arte. Ela funcionou originalmente a serviço de impulsos que estão hoje, em sua maior parte, extintos. E entre eles podemos suspeitar da presença de muitos intuitos mágicos (FREUD, [1913] 1990, p. 113).
O desconhecimento de certos fenômenos colocou o homem primitivo diante
de interrogações que o impeliram a abrir mão de sua “onipotência” e criar sua
primeira formulação teórica, a criação dos espíritos. Atrelada a essa elaboração,
33 Com referência a esse tema, Freud cita Reinach, in: ‘L’art et la magie’.(1905-12, 1, 125-36). Na opinião de Reinach, os artistas primitivos que deixaram as gravuras e pinturas nas cavernas francesas não desejavam ‘agradar’, mas sim ‘evocar’ ou conjurar. Explica assim porque essas pinturas estão situadas nas partes mais escuras e inacessíveis das cavernas e porque perigosos animais de presa não aparecem entre elas (FREUD, [1913] 1990, p. 114).
39
A morte: um encontro com o desamparo
vieram as restrições e sanções morais requerendo cuidados pertinentes à
convivência com o novo sistema. Intrínsecos a essa rede de elaboração surgem,
também, os tabus, cuja observância assegura a manutenção de uma resposta que
apazigua uma incerteza. “O homem primitivo estaria assim submetendo-se à
supremacia da morte pelo mesmo gesto com que parecia estar negando-a” (FREUD,
[1913] 1990, p. 116).
Discorrendo sobre “Tabu34 e ambivalência emocional”, Freud destaca o “Tabu
em relação aos mortos” e a importância dedicada a esse tabu pelos povos primitivos
na estruturação da vida do clã. “Os tabus podem ser permanentes ou temporários.
Entre os primeiros estão os ligados a sacerdotes e chefes, bem como a pessoas
mortas e a qualquer coisa que lhes pertença” (FREUD, [1913] 1990, p. 40). Uma vez
que os arcaicos acreditavam na autonomia dos espíritos no período subseqüente à
morte, preocupavam-se em elaborar um ritual a ser realizado nas situações pós-
fúnebres, variável de acordo com a condição motivadora da morte. O status e o grau
de afinidade da inserção do falecido no contexto da comunidade também
determinavam as circunstâncias subjacentes ao funeral. Os chefes e líderes
considerados grandes e divinos tinham o tempo de impureza imposto pelo tabu
diferenciado dos demais mortais.
O medo do espírito do morto exigia um ritual preventivo, pós-morte, para não
haver confronto com a ira do demônio em que o finado transformara-se. Esse medo
era generalizado a todos os mortos, fossem amigos, familiares ou inimigos. Era
preciso ainda alguns cuidados especiais a serem cumpridos pelo sobrevivente mais
achegado ao morto, em como ele deveria se comportar no período de luto. Reservas
especiais eram exigidas com os que mantivessem contatos de manuseio corporais
direto com o cadáver, e, principalmente ao cônjuge deste, pois pela crença primitiva
“o espírito do morto não abandona os seus parentes e não deixa de ‘pairar’ sobre
estes durante o tempo do luto” (FREUD, [1913] 1990, p. 74). Nesse sentido,
34 Tabu é um termo polinésio e seu significado diverge em dois sentidos contrários. Significa ‘sagrado’, ‘consagrado’, e por outro, ‘misterioso’, ‘perigoso’, ‘proibido’, ‘impuro’. O inverso de ‘tabu’ em polinésio é ‘noa’, que significa ‘comum’ ou ‘geralmente acessível’. Assim ‘tabu’ traz em si um sentido de algo inabordável, sendo principalmente expresso em proibições e restrições (FREUD, [1913] 1990, p. 38). Wilhelm Wundt descreve o tabu como o código de leis não escrito mais antigo do homem. É suposição geral que o tabu é mais antigo que os deuses e remonta a um período anterior à existência de qualquer espécie de religião (WUNDT, apud FREUD, [1913] 1990, p. 38).
40
A morte: um encontro com o desamparo
A morte é em geral encarada como o mais grave de todos os infortúnios; daí acredita-se que os mortos estejam extraordinariamente insatisfeitos com a sua sorte. De acordo com a as idéias primitivas, uma pessoa só morre se for morta – pela magia, quando não pela força e – uma morte assim tende naturalmente a tornar a alma vingativa e mal-humorada. Tem inveja dos vivos e anseia pela companhia dos velhos amigos; não é de admirar, portanto que envie doenças para causar a morte deles [...] Mas a noção de que a alma desencarnada é em geral um ser maldoso [...] tem também indubitavelmente, uma estreita relação com o medo instintivo dos mortos, o qual, por sua vez, é resultado do medo da morte (WESTERMARCK, 1906-8, p. 2, p. 534 apud FREUD, [1913] 1990, p. 81).
O lugar de destaque reservado para a morte nas sociedades primitivas
desloca-se nos diversos âmbitos de formação da vida social e particular de cada
sujeito, no contexto do seu clã. O tabu sobre os mortos exigia várias modificações no
cotidiano, alterando a rotina dos familiares do morto, principalmente os que
prestaram os últimos cuidados a esse e que participaram do cortejo fúnebre. Os
demais, não participantes da cena fúnebre, necessitavam ter a atenção voltada para
não se contaminarem no contato com os envolvidos diretamente, que eram
considerados impuros durante o período de luto.
A crença no alto grau de impureza portada pelos enlutados exigia um
afastamento desses do convívio social. O motivo das precauções relacionava-se ao
poder de transmissão infecciosa que seria repassada a qualquer pessoa ou objeto
tocados pelo infectado (por haver estado em contato com o morto). Dessa feita, o
principal cuidado era com os alimentos. Essas pessoas, transformadas em tabus
para o seu clã, não podiam nem tocar no próprio alimento. Comiam o que lhes era
depositado ao chão, diretamente com a boca, ou eram alimentadas, a distância de
um braço, por algum degrado social, que passava também a ser tabu, em grau
menos acentuado de contaminação. Passado o período de luto, todos os objetos
usados pelo ‘conspurcado’ eram destruídos, para que o mesmo pudesse retornar ao
meio social.
Cuidados mais severos eram reservados aos viúvos(as). Além do isolamento
imposto e as demais restrições que já eram de praxe, também ficava proibido de
tocar no próprio corpo. A cama devia ser cercada por espinheiros e as viúvas
vestiam um tipo de tanga feita de capim seco no sentido de impedir o espírito do
falecido de tentar contato sexual. O estado de viuvez durante o período de luto era
41
A morte: um encontro com o desamparo
considerado de mau agouro, o que levava a comunidade a manter-se afastada como
medida preventiva. As especificidades das restrições são variáveis no grau de
intensidade entre as diversas comunidades35, porém todas elas dão um tratamento
diferenciado ao luto por viuvez. Freud associa “a origem do caráter perigoso dos
viúvos e viúvas ao perigo da tentação” (FREUD, [1913] 1990, p.75). O desejo de
substituir o morto e a tentação em abreviar o luto colocaria os viúvos nesse perigo
tentador de desejarem e despertarem desejos em outros homens e mulheres
(candidatos a novas núpcias), podendo provocar a ira no espírito do finado. “Porque,
afinal de contas, não há necessidade de se proibir algo que ninguém deseja fazer e
uma coisa que é proibida com a maior ênfase deve ser algo que é desejado”
(FREUD, [1913] 1990, p. 91).
Um outro tabu comum entre os arcaicos está relacionado ao nome do morto.
“A evitação do nome de uma pessoa morta é uma regra que se faz respeitar com
extrema severidade” (FREUD, [1913] 1990, p.76). Para Freud, diversos motivos são
apontados para a manutenção desse tabu. Um deles é a extrema importância que
tem o nome de uma pessoa seguido da crença de que se torna parte da
personalidade dela. Portanto continuar a mencionar o nome de um morto é uma
forma de permanecer em contato com esse. Um outro motivo é a dor pela perda do
morto; a tristeza por sua ausência, seguida ainda do horror causado pela realidade
da decomposição cadavérica. E ainda, e de especial destaque, o medo que a
pronúncia do nome do falecido seja uma invocação ao seu espírito, com a
possibilidade de que esse volte a se presentificar. Inúmeras medidas são tomadas
no sentido de prevenir a repetição do nome indesejado. Desde mudar o nome de
outras pessoas de mesmo nome (assim como dos objetos) até mudar o nome de
toda a família do finado e enganar o seu espírito de possíveis aparições.
Os tabus dirigidos aos mortos têm conexão com a falta de explicações
plausíveis para a aceitação da morte como parte do processo (evolutivo) do
aniquilamento da vida e com a elaboração desse luto. A culpa relativa à hostilidade
envolvida com a vida pregressa junto ao morto reedita as relações ambíguas de
amor e ódio, não mais possíveis de serem retomadas e resolvidas. Assim “ao lado
do corpo sem vida do ente amado, passou a existir não só a doutrina da alma, a
35 Os grupos que Freud destacou para citar são os aborígines da Austrália, Colúmbia Britânica, diversas ilhas das Filipinas, tribos sul Americanas, tribos Africanas, entre outros grupos sociais com o mesmo modelo de organização.
42
A morte: um encontro com o desamparo
crença na imortalidade e uma poderosa fonte de sentimento de culpa do homem,
mas também os primeiros mandamentos éticos” (FREUD, [1915] 1990, p. 334). Foi
preciso crer na possibilidade de continuidade na vida pós-morte, para apaziguar os
pensamentos hostis (ambíguos) existentes em relação ao morto. E, para harmonizar
o sentimento de culpa, incorporou-se a proibição “Não matarás”, dogmatizado como
preceito ético no convívio social.
O embate entre grupos inimigos demarcava a “pena de morte”36 como uma
ação prioritária no seio dos primeiros povos. A estruturação social reconhecia na
guerra um meio legítimo do vencedor punir com a morte os vencidos. Esse ato
guardava estreita relação com o legado de crenças espirituais reconhecidas nos
saberes do contexto da época. O ato de canibalismo era muitas vezes praticado no
sentido de absorver a coragem do inimigo. A ameaça de morte como meio de força
coercitiva fazia sentido dentro da ordem existente. Revelava-se como um traço
marcante na estruturação humana. Tais resquícios ainda resvalam nos dias atuais.
Atendendo ao apelo civilizado, “nosso inconsciente não executa o ato de matar; ele
simplesmente o pensa e o deseja” (FREUD, [1915] 1990, p 336). Ação e intenção
são os diferenciais no transcorrer do tempo. Nas palavras de Freud,
Em suma: nosso inconsciente é tão inacessível à idéia de nossa própria morte, tão inclinado ao assassinato em relação a estranhos, tão dividido (isto é ambivalente) para com aqueles que amamos, como era o homem primevo. Contudo, como nos distanciamos desse estado primevo em nossa atitude convencional e cultural para com a morte! (FREUD, [1915] 1990, p. 338).
A cultura criou convenções para a humanidade continuar a expor seus
sentimentos hostis. A guerra continua a ser um evento “aceito” entre o povo
civilizado como meio legítimo de resolver atritos. “Ela nos despoja dos acréscimos
ulteriores da civilização e põe a nu o homem primevo que existe em cada um de
nós” (FREUD, [1913] 1990, p. 338). A legitimidade coletiva de expressão hostil,
adquirida na situação de guerra, não anula que uma outra face, em conflito, se
manifeste em culpa e demande expiação. Os primitivos recorreram à criação dos
36 Entenda-se por “pena de morte” o fato de a guerra dar ao vencedor o direito sobre a vida do vencido. Ou ainda que os combates iam até ao extremo da resolução ser definida com a morte de um dos oponentes.
43
A morte: um encontro com o desamparo
espíritos e a civilização posterior instituiu a lei de talião37. O homem civilizado recorre
ao heroísmo patriótico do dever cívico, lançando mão também das leis no sentido de
“civilizar” os efeitos devastadores da situação.
Freud retoma, na literatura mitológica, exemplos da estrutura humana frente à
morte. A relação humana com a morte é tão ímpar quanto o ato inaugural de seu
nascimento; um estrutura-se como condição ao outro38. Essa relação não se conecta
apenas do ponto de vista fisiológico de como a morte é o destino último do corpo
biológico, mas de como essa certeza (denegada) atua na formação psíquica,
definindo posições do homem consigo, com seu meio e com os seus semelhantes.
Comparando-se o posicionamento do homem primitivo (articulado ao seu meio) com
o contexto social “moderno”, encontra-se o mesmo impasse: o homem (tanto o
primevo quanto o contemporâneo) se pensa imortal e vive a constante negação
dessa premissa imposta pela realidade que comprova a efemeridade da vida. Freud
dialoga com essa questão fundamentando a tese de que não há um reconhecimento
da situação da morte no inconsciente. Diz ele:
Qual, perguntamos, é a atitude do nosso inconsciente para com o problema da morte? A resposta deve ser: quase exatamente a mesma que a do homem primevo. Nesse ponto como em muitos outros, o homem das épocas pré-históricas sobrevive inalterado em nosso inconsciente. Nosso inconsciente, portanto, não crê em sua própria morte; comporta-se como se fosse imortal. O que chamamos de nosso “inconsciente” – as camadas mais profundas de nossas mentes, compostas de impulsos pulsionais – desconhece tudo o que é negativo e toda e qualquer negação; nele as contradições coincidem. Por esse motivo, não conhece sua própria morte, pois a isso só podemos dar um conteúdo negativo. Assim, não existe nada de pulsional em nós que reaja a uma crença na morte (FREUD, [1915] 1990, p. 335).
37 Os primeiros indícios da lei de Talião foram encontrados no código de Hamurabi no reino da Babilônia. A lei consiste na justa reciprocidade do crime e da pena. Essa lei permite evitar que as pessoas façam justiça elas mesmas, introduzindo assim o início de ordem na sociedade, com relação ao tratamento de crimes e delitos. 38 No texto A negativa [1925], quando Freud trata o caráter de antítese, de uma afirmação presente em uma negativa, destaca os pares de dualidade na formação psíquica de um sujeito (princípio de prazer e princípio de realidade; externo e interno; subjetivo e objetivo; sujeito e objeto) e revela a pulsão de morte em par com a pulsão de vida como fundadora do psiquismo humano. “Julgar é uma continuidade, por toda a extensão das linhas da conveniência, do processo original através do qual o ego integra coisas a si ou as expele de si, de acordo com o princípio de prazer. A polaridade de julgamento parece corresponder à oposição dos dois grupos de pulsões que supusemos existir. A afirmativa – como substituto da união – pertence a Eros; a negativa – o sucessor da expulsão – pertence à pulsão de destruição” (FREUD, [1925] 1990, p. 299-300).
44
A morte: um encontro com o desamparo
No paralelo traçado acerca das diferenças e semelhanças das posturas
primitivas e atuais, são surpreendentes os inúmeros pontos comuns frente à
situação de morte. As reações ambíguas merecem especial destaque; os
sentimentos conflituosos de amor e ódio dirigidos aos mortos (mesmo os amados)
continuam a atuar, tanto quanto a conseqüência desse conflito quantificado pela
culpa e a necessidade de expiação. “Para o homem primevo, sua própria morte era
certamente tão inimaginável e irreal quanto o é para qualquer um de nós hoje em
dia” (FREUD, [1913] 1990, p. 331). Essas relações de ambivalência persistem tanto
no que diz respeito à própria morte de cada sujeito (a dos entes queridos e a dos
inimigos) quanto em relação a acatar a morte como uma realidade, e a negá-la,
reduzindo-a a um tema postergado que faz suplência por outros meios.
2.1.3 O medo da morte: a incógnita humana.
Entre os homens surgiu, com a razão, por uma conexão necessária, a certeza terrível da morte. Mas, como sempre na natureza a todo mal é dado remédio, ou pelo menos uma compensação, então essa mesma reflexão, que nasce da idéia da morte, também nos leva às concepções metafísicas consoladoras, das quais a necessidade e possibilidade são igualmente desconhecidas ao animal. É, em especial, em torno desse fim que se dirigem todo os sistemas religiosos e filosóficos, que são, portanto, como que o antídoto que a razão, por força de suas reflexões, fornece contra a certeza da morte (Arthur Schopenhauer).
A morte como condição natural de fim da existência não é comumente bem
vista, menos ainda aceita com naturalidade; é um assunto tabu. Embora bastante
mencionado, é pouco analisado como um desdobramento próprio do viver. É falado
como sendo referência a algo que não envolva nada de pessoal, que o “eu” esteja
resguardado, que se fale sempre em direção a outrem. Como um paradoxo, é um
tema que não cessa em sua convocação a desafiar que algo seja dito a seu
respeito. Ernest Becker no livro A negação da morte, defende a idéia de que a
atenção da mente humana está voltada para a morte, e grande parte dessa
destinada para negar a facticidade de sua existência. Em suas palavras:
45
A morte: um encontro com o desamparo
A idéia da morte, o medo que ela inspira, persegue o animal humano como nenhuma outra coisa; é uma das molas mestras da atividade humana – atividade destinada, em sua maior parte, a evitar a fatalidade da morte, a vencê-la mediante a negação, de alguma maneira, de que ela seja o destino final do homem (BECKER, 1973, p. 07).
Becker dedica parte de seu livro à análise da trajetória das idéias freudianas e
de seus herdeiros39. Usa a teoria psicanalítica como parte da sustentação teórica à
formulação de que “o medo da morte é, na verdade, uma proposição universal na
condição humana” (BECKER, 1973, p. 09). Apesar disso, abre uma discussão
crítica ao fato de Freud não ter apontado “o terror da morte” como a pulsão motora
da vida humana. Acusa Freud de haver centrado sua teoria no “dogma” do sexual e
ter deixado de perceber que a “consciência da morte”, e não a sexualidade, é a
repressão primária da estruturação psíquica. Defendendo essa idéia, Becker busca
respaldos na biografia de Freud40 escrita por Ernest Jones. Utiliza-se do biografismo
para sustentar seu ponto de vista e justificar nos hábitos pessoais do homem Freud
seu próprio “terror da morte”. Dessa feita Becker diz que só tardiamente Freud
contorna essa “falha” com o texto Além do princípio de prazer [1920]41 e coloca a
pulsão de morte como tese central da psicanálise. Segundo Becker:
Freud viu a maldição e dedicou a vida a revelá-la com todas as forças de que dispunha. Ironicamente, porém, não percebeu a precisa razão científica para a maldição. Esta é uma das razões pelas quais sua vida foi, até o fim, um diálogo consigo mesmo sobre as molas mestras dos motivos humanos. Freud se esforçava em seu trabalho, tentava fazer com que a verdade surgisse mais clara e inteiramente, e, no entanto, ela sempre parecia tornar-se mais sombria, mais complexa, mais fugidia. Admiramos Freud por sua dedicação séria, sua disposição por retratar-se, pela natureza de tentativa estilística de algumas de suas afirmações, pela revisão a vida toda, de suas idéias prediletas. [...] Mas isso é admirá-lo pelo motivo errado. Uma causa básica de seus percursos sinuosos durante a vida toda era que ele nunca abandonou
39 Becker cita a maioria dos dissidentes (discípulos de Freud) e destaca as contribuições de Otto Rank para a psicanálise. 40 Não é o objetivo desse trabalho discutir pontos da biografia de Freud. Só a usaremos quando se constituir como ponto esclarecedor para o cerne teórico que traz respaldo ao tema em questão. E isso, por reconhecermos o quanto o próprio Freud construiu a teoria psicanalítica expondo sua vida pessoal, publicando inclusive a análise de seus sonhos. 41 Em 1913, no texto Totem e tabu, Freud aponta a falta de representação no inconsciente para a questão da morte. De igual modo, sustenta essa tese em 1915 no texto Reflexões para os tempos de guerra e morte; em 1919, no texto O estranho; em 1923, no texto O ego e o id.
46
A morte: um encontro com o desamparo
de todo o dogma sexual, nunca viu ou admitiu claramente que o terror da morte era a repressão básica (BECKER, 1973, p. 104).
Acatamos a discussão aberta por Becker a respeito da negação da morte,
como conseqüência do medo que a mesma impõe. Entretanto, discordamos de que
Freud não tenha se preocupado com o tema da morte, anteriormente ao texto de
1920, no qual apresenta a pulsão de morte em contraponto à pulsão de vida, uma
vez que o desamparo humano sempre foi uma questão apontada e desenvolvida em
todo o percurso freudiano. Talvez o “nome” esperado por Becker “terror da morte”
não tenha claramente aparecido delineado. Freud teria se recusado a nomear aquilo
que não tem nome, sustentável em si mesmo; ou ainda, (re)nomeou com vários
outros significantes que deslizam para o mesmo ponto.
A sexualidade humana sempre foi teorizada por Freud nessa mesma vertente
de algo não possível de esgotar; postulada na mesma ordem de questões que
abrem caminhos para o que não é possível de definição precisa, como algo que
sempre ficara como uma hiância, “ponto de umbigo”; desenhada no destino das
pulsões. Lacan, seguindo Freud, diz que “a pulsão representa parcialmente a curva
da sexualidade no ser vivo. Como espantar-se que seu último termo seja a morte?
Pois que a presença do sexo está ligada à morte” (LACAN, 1988, p. 168). Nas
palavras da psicanalista Betty Fuks:
Se na primeira tópica Freud enfatiza a não representação da morte no inconsciente, na segunda, embora não abandone sua primeira formulação, sustenta que a dimensão visível da pulsão de morte aparece através dos efeitos da pulsão de destruição, inscrita na barbárie de nossa cultura superegóica. 42
É na esteira desses significantes que percorremos o rastro, nomeável, daquilo
que se constitui, e permanece, como o inominável, haja vista a dificuldade humana
em enfrentar e aceitar a própria morte, dada a falta de representação no
inconsciente para tal elaboração (FREUD, [1913] 1990, p. 99), ([1915] 1990, p. 327,
p. 335, p. 338). ([1919] 1990, p. 302). ([1923] 1990, p. 75)43. Este fato não impede
42 Na apresentação da tradução brasileira de Mannoni, Maud. O nomeável e o inominável: a última palavra da vida. 1991, p. 10. 43Referências já anteriormente mencionadas, no entanto, achamos pertinente repeti-las.
47
A morte: um encontro com o desamparo
que o “medo da morte” se inscreva, insistentemente demandando que algo seja dito
a respeito desse (des)conhecimento. Há uma constante expectativa de que um
sentido possa ser construído e possibilite o convívio com o impensável que é a
experiência da própria morte, visto que só é possível conhecer a experiência de
morte em relação ao outro. E esse, ainda que sendo um semelhante, nada pode
compartilhar, apenas se oferece à visão de horror, da inerte transformação do corpo.
No percurso do balizamento das relações entre a morte e a sexualidade,
retomemos em Freud a gênese do conceito de pulsão que redundará na dualidade
do par antagônico representado por Eros44 e Tánatos45. Freud ressaltou que o
animal e o humano diferenciam-se pela força regente em seu ser. O primeiro tem
como força motora o instinto (geneticamente dado), e o segundo a pulsão, a ser
construída psiquicamente e mapeada no corpo. Lacan vai fundamentar com grande
propriedade esse movimento da pulsão, na via de inscrição do sujeito mediada pela
linguagem.
O sujeito nasce no que, no campo do Outro, surge o significante. Mas por este fato mesmo, isto – que antes não era nada senão sujeito por vir-se coagula em significante. A relação ao Outro é justamente o que, para nós, faz surgir o que representa a lâmina – não a polaridade sexuada, a relação do masculino com o feminino, mas a relação do sujeito vivo com aquilo que ele perde por ter que passar, para sua reprodução, pelo ciclo sexual. Explico assim a afinidade essencial de toda pulsão com a zona da morte, e concilio as duas faces da pulsão – que, ao mesmo tempo, presentifica a
44 Eros (no Grego, ‘’Epws) o deus do amor, é considerado o mais belo dos deuses imortais. (Hesíodo) Dotado de natureza vária e mutável é um dos mitos que mais evoluíram desde as mais antigas teogonias. Na teogonia de Hesíodo, Eros nasceu do Caos, ao mesmo tempo em que Geia e Tártaro. Numa variante da cosmogonia órfica, o Caos e Nix (a noite) estão na origem do mundo. Nix põe um ovo, do qual nasce Eros, enquanto Urano e Geia se formam das duas metades partidas. O tema da genealogia de Eros é fator de inúmeras especulações entre poetas, filósofos e mitólogos. Platão, no Banquete, cita Eros como um demônio, intermediário entre os deuses e os homens, preenchendo o vazio de cada um. Tomando o discurso da sacerdotisa Diotimia, Platão o define como concebido pela união de Poros (Expediente) e de Pénia (pobreza). Desse parentesco díspar, Eros tem características também díspares, sempre em busca de atingir um objetivo. Ele é uma força, uma energia, perpetuamente insatisfeito e inquieto em busca de satisfação, é uma “carência” sempre em busca de “plenitude” e usa de todo expediente para atingir seu objeto. Eros é ainda apresentado como filho de Hermes e Afrodite, ou Ares e Afrodite, (representando opostos). Personifica-se na versão infantil ou adulta e representa a libido, que impele toda existência a se realizar na ação (BRANDÃO, 2001, p. 356). 45 Na teogonia de Hesíodo, Nix (a noite), por partenogêse, gerou entre outros filhos Tânatos (a Morte) irmã gêmea de Hipno (o sono), e o seu significado está relacionado a dissipar-se, extinguir-se, tornar-se sombra, escuridão. Tânatos é uma cessação, uma descontinuidade, uma inversão da vida. É o aspecto perecível e destruidor da vida. Ambivalente, representa um rito de passagem, é a divindade que introduz as almas às trevas do inferno ou às luzes do paraíso. (BRANDÃO, 1991, p. 398).
48
A morte: um encontro com o desamparo
sexualidade no inconsciente e representa, em sua essência, a morte (LACAN, 1998, p. 187-188).
O termo “pulsão”46 é utilizado pela primeira vez por Freud em Três ensaios
sobre a teoria da sexualidade [1905]. Neste texto, o termo é compreendido “como
representante psíquico de uma fonte endossomática de estimulação que flui
continuamente; é um dos conceitos da delimitação entre o anímico e o físico”
(FREUD, [1905] 1990, p. 157). Ao analisar as maneiras de expressão da pulsão na
vida sexual do humano, Freud aponta que, se o objetivo sexual “esperado” é
concebido pela união dos órgãos genitais, existe uma série de desvios para esse fim
ser atingido. Na origem humana, o registro biológico do corpo, homem ou mulher,
não porta a garantia de uma escolha de gratificação sexual compatível com o sexo
biológico definido no corpo, ou seja, há uma operação a ser mediada entre a psique
e o corpo.
Essa construção é referendada pelo fato de a criatura humana nascer em
condições prematuras; sua inscrição na cultura é sempre pela via do desejo de um
Outro (é desejo de desejo). A linguagem incide sobre o corpo instaurando o circuito
pulsional. “Ocorre que o indivíduo da espécie humana é um deficiente instintivo.
Com efeito, nada em seu sistema genético-neurológico lhe define o objeto capaz de
acalmar seu mal estar” (JERUSALINSKY, 1989, p. 23). A priori, é um feixe de
tensões fragmentado e é uma ação psíquica de fora, de um outro ser humano
tutelar, que age sobre o pequeno infans na tentativa de responder a suas
insatisfações.
A sexualidade infantil é então postulada por Freud [1905], como tendo caráter
anárquico. Declaração causadora de celeuma para o meio conservador da época,
inclusive na sociedade científica. Ele afirma que a sexualidade está presente na
criança desde a mais tenra infância e que sua busca por gratificação no corpo é
polimorfa e errante. Essa afirmativa se contrapõe a toda noção de ingenuidade
infantil reservada à criança até então. O cerne da questão está do lado da inserção
do entendimento de pulsão como atuante na sexualidade e de sua possibilidade de
46 A palavra pulsão é derivada do latim pulsio, designa o ato de impulsionar (ROUDINESCO, 1998, p. 628). Na língua alemã trieb, traduzida para o inglês como instinto. Como a tradução da Standard brasileira (Imago) foi derivada da língua inglesa, permaneceu com essa escolha errônea, divergente da palavra utilizada por Freud. “A pulsão freudiana nada tem a ver com o instinto (nenhuma das expressões de Freud permite essa confusão)” (LACAN, 1998, p. 865).
49
A morte: um encontro com o desamparo
satisfação ser metonímica. Implica dizer que a atividade pulsional de satisfação é
sempre parcial e é ela quem constitui propriamente a sexualidade humana. A partir
dessa primeira referência, Freud vai desenvolvendo sucessivamente o conceito de
pulsão, transformando-o em um dos pilares fundamentais da teoria psicanalítica.
No primeiro dualismo proposto para teoria da pulsão, no texto A concepção
psicanalítica da perturbação psicogênica da visão [1910], Freud afirma que “Todas
as pulsões orgânicas atuantes em nossa alma podem ser classificadas, seguindo as
palavras do poeta, como fome e amor” (FREUD, [1910] 1990, p. 200). A pulsão é
assim apresentada em par, como “pulsões sexuais” e “pulsões de
autoconservação47”. Uma garantindo a repetição do organismo, e a outra atuando
para que o organismo só chegue até a morte por vias naturais. Um ano depois, no
artigo Formulações sobre os dois princípios do funcionamento psíquico, as duas
classes de pulsões são associadas a dois modos de funcionamento do aparelho
psíquico; as pulsões sexuais ficam regidas pelo princípio de prazer, e as de
autoconservação sob o domínio do princípio de realidade.
Em 1914, no trabalho sobre o narcisismo: uma introdução, Freud
problematiza a distribuição metódica dos dois grupos pulsionais entre sexuais e
autopreservativos e já aponta a possibilidade de reformulação, pondo em
interrogação a dualidade na seguinte afirmação: “A diferenciação da libido, numa
espécie que é adequada ao ego e numa outra que está ligada a objetos é o colorário
inevitável de uma hipótese original que estabelecia distinção entre as pulsões
sexuais e as pulsões do ego” (FREUD, [1914] 1990, p. 94). Dessa forma, a partir da
Introdução ao narcisismo, a libido passa a ser o subsídio energético do campo da
pulsão, portanto de cunho sexual, ficando em questão o aspecto da
autoconservação. Ou seja, a dualidade tende a se diluir numa visão de mão única.
Conforme apresentado por Freud [1905] e aprofundado no texto As pulsões e
seus destinos48 [1915], o conceito de pulsão faz fronteira entre o anímico e o
47 As pulsões de autoconservação também podem ser denominadas de pulsões do eu. 48 Freud subdivide o movimento da pulsão em quatro termos. Primeiro, em relação a sua pressão, [drang] o fator motor, a quantidade de força ou a medida da exigência de trabalho que ela representa, sua parcela de atividade. Segundo, a finalidade [Ziel] é sempre a satisfação, que só pode ser obtida eliminando-se o estado de estimulação na fonte da pulsão. A finalidade última permanece imutável, mas poderá ainda haver diferentes caminhos conducentes à mesma finalidade última, de modo que uma pulsão pode apresentar várias finalidades próximas, ou intermediárias, que são combinadas ou intercambiadas umas com as outras. Terceiro, o objeto [objekt] é a coisa em relação à qual a pulsão é capaz de atingir sua finalidade, é o que há de mais variável numa pulsão. E por último, a fonte [Quelle] é o processo somático que ocorre num órgão ou parte do corpo, e cujo estímulo é representado na vida mental por uma pulsão (FREUD, [1915] 1990, p. 142-143).
50
A morte: um encontro com o desamparo
somático; a pulsão é assim entendida “como representante psíquico dos estímulos
que se originam no corpo e alcançam a mente como uma medida de exigência de
trabalho que é imposta ao psíquico em conseqüência de sua ligação com o corpo”
(FREUD, [1915] 1990, p. 142). Essa forma de escrita freudiana, com referência a
uma intercessão entre o psíquico e o corporal, gerou margens às interpretações
biologizantes da pulsão. É válido salientar que, “ao mesmo tempo em que a pulsão
representa o corpo no psiquismo, ela só se faz presente neste último através de
seus representantes psíquicos: a idéia (Vorstellung) e o afeto (Affekt)” (GARCIA-
ROZA, 1987, p. 16).
A partir de Freud, pode-se inferir essa concepção de ser humano e sua
relação com o objeto imaginário de satisfação. Trata-se de uma desnaturalização do
corpo, esse não marcado pelo instinto, como no animal, que tem o objeto próprio de
satisfação, como traço hereditariamente fixado. No humano, o registro se faz pela
pulsão (trieb), que não possui objeto definido em como alcançar a plena realização e
sim destinos alternativos parciais e que deslizam sempre (GARCIA-ROZA, 1990, p.
68). A psicanálise respalda, assim, que o corpo biológico não porta geneticamente o
objeto apaziguador da falta humana. É no corpo que a pulsão se constrói, porém, a
partir da incidência da linguagem.
A suposição de Freud é de que a pulsão procura uma satisfação que já foi obtida um dia, na nossa pré-história individual, antes do interdito que nos tornou humanos. A partir de então, foi inibida quanto ao seu objetivo e obrigada a um caminho de aventuras que Freud chamou de triebschicksale – as vicissitudes da pulsão. Pela ameaça que trazia consigo, foi proibida de se apresentar diretamente aos olhos assustados do humano. Portadora do gozo e da morte, viu-se forçada a fazer-se representar pelos seus representantes para poder ter acesso ao mundo da subjetividade. (GARCIA-ROZA, 1987, p. 17 grifo nosso).
O não saber especificar qual seja o objeto de plena satisfação inscreve a
criatura humana numa constante errância na busca deste objeto obturador da falta.
“Essa falha não é da ordem de uma imperfeição que os progressos da pesquisa
permitiriam preencher, mas sim ela constitui a chave para a própria estrutura do
saber” (ANDRÉ, 1994, p. 10). Qualquer objeto pode ser tomado como um objeto
para a pulsão, e nenhum deles vai ser o objeto da pulsão. O estatuto de um objeto
51
A morte: um encontro com o desamparo
para a pulsão é intermediado sempre pelo desejo e pela fantasia.49 Citando Garcia-
Roza:
A perda do objeto absoluto é a perda de algo que nunca foi tido, já que a psicanálise se situa desde o começo no lugar da linguagem. Da mesma forma que a pulsão, ele resulta da incidência da palavra sobre o corpo, e não há um ‘antes’ relativo a essa incidência. Assim, tanto a pulsão como o desejo e seus objetos são efeitos da linguagem (GARCIA-ROZA, 1990, p. 67).
Nos desdobramentos feitos por Freud desde a instauração do conceito de
pulsão, passando por um primeiro dualismo que foi posto em dúvida, ele acrescenta,
em 1920, no texto Além do princípio de prazer, um novo dualismo pulsional. A
pulsão de morte é inserida em par antagônico com a pulsão de vida50. Para Freud,
“da ação concorrente e antagônica desses dois procedem os fenômenos de vida que
chegam ao seu fim com a morte” (FREUD, [1920] 1990, p. 134). “É ao introduzir a
pulsão de morte que Freud destaca o estatuto conceitual da pulsão em sua
radicalidade” (JORGE, 2000, p. 61). E esse se torna um dos conceitos mais
discutidos, assim como promotor de águas divisoras no campo da Psicanálise.
A aceitação da ação desse novo dualismo pulsional opera uma abertura no
sentido de que, por essa via, seja possível uma aproximação ao esclarecimento do
paradoxo (inconsciente) do sintoma como uma forma de satisfação da pulsão, ainda
que gerando desprazer. “Esse paradoxo só se esclarece a partir da concepção de
que toda pulsão é pulsão de morte (devido ao intrincamento de Eros e Tánatos)
situando-se a satisfação do sintoma para além do princípio de prazer” (QUINET,
2003, p. 49).
O âmbito pulsional é o campo de Eros em que brotam as flores do mal, onde a pulsação da vida é mordida pela morte. Nos anos 20, Freud encontra o que considera seu verdadeiro dualismo pulsional: Eros tende à união, à aspiração
49 Partindo de Freud e da Filosofia, Lacan teoriza sobre o objeto “a”. As pulsões, tal qual o objeto, são efeitos da linguagem, são resultados da incidência da palavra sobre o corpo. O objeto “a”, resíduo e índice da “coisa” não possível de nomear, institui-se quando se institui o corpo pulsional. Não é um objeto em particular, é um furo em torno do qual giram os significantes. Nenhum objeto pode ocupar o seu lugar, mas todos os objetos se pretendem a esse lugar. Ele vai ser o que sobra como resto indizível na interseção do real, simbólico e imaginário, ordens que estruturam o inconsciente (GARCIA-ROZA, 1999, p. 64). 50A pulsão de vida encampa as pulsões sexuais e as pulsões de autoconservação; ambas são regidas por Eros em oposição à pulsão de morte, regida por Tánatos.
52
A morte: um encontro com o desamparo
ao Um, à vida, a reprodução, e a pulsão de morte é destrutividade e desunião, o impulso que na vida só quer morrer. A pulsão de morte é o que vem fazer objeção ao Um da relação sexual de complementariedade prometida por Eros (QUINET, 2003, p. 47).
A inserção da vertente da pulsão de morte, em contraposição às pulsões de
vida, traz, em sua essência, a questão da compulsão a repetição. Embora já falado
em textos anteriores, é só no Além do princípio de prazer [1920] que o tema é
tratado com prioridade. Um ano antes é destacado no texto O Estranho [Unheimlich],
como algo que se repete e, mesmo assim, apresenta-se diferente e não como uma
reprodução do mesmo. Freud destaca esse efeito de repetição do inconsciente
apresentado, como ato, no texto Recordar, repetir e elaborar [1914]. Ele destaca que
“podemos dizer que o paciente não recorda coisa alguma do que esqueceu e
recalcou, mas expressa-o pela atuação ou atua (acts it out). Ele o reproduz não
como lembrança, mas como ação; repete-o, sem naturalmente saber o que está
repetindo51” (FREUD, [1914] 1990, p. 196).
Freud apresenta num caminho gradativo à construção de sua hipótese da
pulsão de morte nos sete capítulos do já referido texto de 1920. Esquadrinha a
questão da compulsão à repetição. Primeiro, em relação aos sonhos traumáticos, e
em como esses conduzem a uma repetição da cena causadora do trauma. Segundo,
em referência ao impulso repetitivo do brincar de uma criança52, que representa num
jogo de carretel a cena simbólica da presença e ausência de sua mãe. Terceiro,
problematiza a compulsão à repetição e essa manifestação na situação de
transferência entre analista e analisando, caracterizando a “neurose de
transferência53”. E nesse sentido, ele afirma:
51 No Posfácio do caso Dora, Freud analisa o manejo da transferência e observa que os conteúdos referidos pela paciente não foram recordados, foram repetidos e expostos como ato (FREUD, [1905] 1990, p. 114). 52 Freud cita o repetitivo jogo de uma criança de um ano e meio com um carretel na ausência da mãe, repetindo os sons ‘o-o-o-ó’ ao jogar o carretel e ‘dá’, ao resgatá-lo. Freud os identificou como os advérbios alemães (fort e da) representando respectivamente “ir embora” e “ali”, e que essa era a forma da criança transportar para um plano simbólico o mal estar provocado pela saída de sua mãe (FREUD, [1920] 1990, p. 26). 53 A compulsão à repetição, nesse caso, impele o paciente a reviver uma cena traumática não como uma recordação passada, mas como ligada a algo presente na sua relação com o analista. Pode se manifestar como condição para que a análise aconteça, tanto quanto como impedimento a essa, dependendo do manejo operado pelo analista.
53
A morte: um encontro com o desamparo
Chegamos agora a um fato novo e digno de nota, a saber, que a compulsão à repetição também rememora, do passado, experiências que não incluem possibilidade alguma de prazer e que nunca, mesmo há longo tempo, trouxeram satisfação, mesmo para os impulsos pulsionais que desde então foram recalcados (FREUD, [1920] 1990, p. 34).
Nesse processo gradual, Freud chega à hipótese (considerada por ele mesmo
como especulativa) “de que todas as pulsões tendem à restauração de um estado
anterior de coisas” (FREUD, [1920] 1990, p. 55), ou seja, ele destaca agora um
caráter paradoxal da pulsão, o caráter conservador.
Se tomarmos como verdade que não conhece exceção o fato de tudo o que vive morre por razões internas, tornar-se mais uma vez inorgânico, seremos então compelidos a dizer que o ‘objetivo de toda vida é a morte’, e, voltando o olhar para traz, que as coisas inanimadas existiram antes das vivas (FREUD, [1920] 1990, p. 56).
Freud dá seguimento à sua hipótese, defendendo que a matéria inanimada
sofreu a ação de uma força, da qual não se tem explicação precisa, e a tensão
provocada por essa agressão resultou em um esforço da matéria para se libertar da
tensão, e esse modo de defesa operado provocou o surgimento da primeira pulsão,
“a pulsão de retornar ao estado inanimado”. Dessa feita, o circuito entre viver e
morrer se dava num percurso de certa brevidade, dada a estrutura simples dessa
substância viva. A constância prolongada da repetição desse circuito entre nascer,
morrer, recria-se com facilidade. Foi quebrada por novas influências externas que
obrigaram a substância a criar um novo percurso, um pouco mais complexo, para
atingir o seu objetivo de morte. Esse segundo modo de atuação, para atingir seu
objetivo de morte à sua própria maneira, resultou na pulsão de conservação.
O paradoxo entre a posição, ou função, dos dois grupos de pulsões,
demanda maiores esclarecimentos. A pulsão de morte traz em sua especificidade a
tendência compulsiva de movimento regressivo de retorno a um estado inorgânico e
as pulsões de vida de evitar que a morte ocorra de uma forma não natural. Dito de
outro modo,
54
A morte: um encontro com o desamparo
Trata-se de pulsões componentes cuja função é garantir que o organismo seguirá seu próprio caminho para a morte e afastar todos os modos possíveis de retornar à existência inorgânica que não sejam os imanentes ao próprio organismo. Não temos mais de levar em conta a enigmática determinação do organismo (tão difícil de encaixar em qualquer contexto) de manter sua própria existência frente a qualquer obstáculo. O que nos resta é o fato de que o organismo deseja morrer apenas de seu próprio modo. Assim, originalmente, esses guardiões da vida eram também os lacaios da morte. Daí surgir à situação paradoxal de que o organismo vivo luta com toda sua energia contra os fatos (perigos, na verdade) que poderiam auxiliá-lo a atingir mais rapidamente seu objetivo de vida, por uma espécie de curto-circuito. Tal comportamento, entretanto, é precisamente o que caracteriza os esforços puramente pulsionais, contrastados com os esforços inteligentes (FREUD, [1920] 1990, p. 57).
Freud retoma na VI parte do Mal-estar na civilização [1929] o caráter duplo
das pulsões formulado em 1920. Reitera a compulsão à repetição como norteadora
da hipótese da origem da vida no crescente esforço ambíguo de destruição e
reconstrução. “Isso equivalia dizer que, assim como Eros, existia também uma
pulsão de morte. Os fenômenos da vida podiam ser explicados pela ação
concorrente, ou mutuamente oposta, dessas duas pulsões” (FREUD, [1929] 1990, p.
141). O que se põe em causa é como vislumbrar a atuação da pulsão de morte, haja
vista que as manifestações de Eros são facilmente identificadas. Até então, a pulsão
de morte aparentava ser silenciosa no percurso de destruição do organismo em sua
busca pelo estado de repouso inorgânico. O que Freud acrescenta é a quebra desse
silêncio da pulsão no contexto da civilização.
Uma idéia mais fecunda era a de que uma parte da pulsão é desviada no sentido do mundo externo e vem à luz como uma pulsão de agressividade e destrutividade. Dessa maneira, a própria pulsão podia ser compelida para o Serviço de Eros, no caso de o organismo destruir alguma outra coisa, inanimada ou animada, ao invés de destruir o seu próprio eu (self). Inversamente, qualquer restrição dessa agressividade dirigida para fora estaria fadada a aumentar a autodestruição, a qual, em todo e qualquer caso, prossegue. Ao mesmo tempo, pode-se suspeitar, a partir desse exemplo, que os dois tipos de pulsão raramente – talvez nunca – aparecem isolados um do outro (FREUD, [1929] 1990, p. 141).
A repetição, como modo de manifestação da pulsão de morte, não implica
reprodução, mas criação de um novo. “A repetição não representa uma coisa, ela
significa algo, ela é em sua essência de natureza simbólica” (GARCIA-ROZA,1987,
p. 44). A compulsão à repetição está referida a conteúdos recalcados, e o prenúncio
55
A morte: um encontro com o desamparo
de seu retorno exige um movimento de trabalho psíquico para proteger-se dessa
ameaça. A relação dos dois campos pulsionais acontece de maneira bastante
imbricada. Por seu lado, a pulsão de vida traz em si uma busca por renovação em
sua vertente de pulsão sexual, pois atua como garantia da reprodução da vida,
enquanto que a pulsão de autoconservação atua na perspectiva de que a morte só
seja atingida por vias naturais ao organismo. A pulsão de morte é entendida como
desejo de retorno ao inorgânico, diretamente imbricada em sua relação com as
pulsões de vida em um paradoxo. Nas palavras de Lacan,
A pulsão, como tal, e uma vez que é então pulsão de destruição, deve estar para além da tendência ao retorno ao inanimado. O que ela poderia ser? – senão uma vontade de destruição direta. [...] Vontade de destruição. Vontade de recomeçar com novos custos. Vontade de Outra-coisa, na medida em que tudo pode ser posto em causa a partir da função do significante. Se tudo o que é imanente ou implícito na cadeia dos acontecimentos naturais pode ser considerado como submetido a uma pulsão dita de morte, é somente na medida em que há a cadeia significante. Efetivamente, é exigível que, nesse ponto do pensamento de Freud, o que está em questão seja articulado como pulsão de destruição, uma vez que ela põe em causa tudo o que existe. Mas ela é igualmente vontade de criação a partir de nada, vontade de recomeçar (LACAN, 1991, p. 259).
A pulsão de morte é apontada como anticultural por Freud e como antinatural
por Lacan (1991, p. 260) “Não no sentido dela ter como alvo a destruição da
natureza e da cultura, mas no sentido de colocar em causa tanto uma como outra,
de recusar a permanência do ‘mesmo’, de provocar na natureza e na cultura a
emergência de novas formas” (GARCIA-ROZA, 1999, p. 135). Nesse ponto o oposto
se revela, a pulsão de vida representada por Eros busca a unidade, a constituição
da união, enquanto que a pulsão de morte54, fiel em sua descontinuidade, precipita a
diferença.
No Seminário sobre A ética da psicanálise, Lacan destaca a complexidade do
entendimento da pulsão e a coloca além da dimensão do sentido energético,
abrangendo também uma dimensão histórica (LACAN, 1991, p. 256).
54 Desde que Freud apresentou em 1920 o par antagônico de pulsões de vida e de morte, que ele o retoma e também volta a referendá-lo, sempre com maior convicção, da importância desse, como fundamento para a psicanálise. Dessa feita, esse par está também na base de discussões dos textos O ego e o id [1923] e em Análise terminável e interminável [1937].
56
A morte: um encontro com o desamparo
Essa dimensão se marca pela insistência com que ela se apresenta, uma vez que ela se refere a algo memorável porque memorizado. A rememoração, a historização, é coextensiva ao funcionamento da pulsão no que se chama de psiquismo humano. É igualmente lá que se grava, que entra no registro da experiência, a destruição (LACAN, 1991, p. 256).
Lacan retoma em Freud a concepção sobre o objeto de satisfação, sempre
posto como falta, - aquilo que Freud chamou de “a coisa” Das Ding, ou para que
ainda usou o termo Das Sache, como representação da “coisa” que passa pela
palavra estando submetida à ordem simbólica. A “coisa” (Das Ding) é aquilo que não
se nomina, a não ser por representação, por uma construção que sirva de borda
para revestir o vazio de um furo interminável. E é em torno desse furo que se mira
no vazio da “coisa” que uma emergência se faz para que algo seja construído em
suplência ao insuportável dessa hiância. Nas palavras de Lacan,
Essa coisa, da qual todas as formas criadas pelo homem são do registro da sublimação, será sempre representada por um vazio, precisamente pelo fato dela não poder ser representada por outra coisa – ou, mais exatamente, de ela não poder ser representada senão por outra coisa. Mas em toda forma de sublimação o vazio será determinante (LACAN, 1991, p. 162).
E, nesse sentido, Lacan aponta três modos de sublimação, dentre as
incontáveis possibilidades da psique humana, que, por diferentes caminhos, busca
dar um sentido ao inapreensível que se faz emergente nesse lugar vazio, qual seja,
a arte, a religião e o discurso da ciência. “Toda arte se caracteriza em torno desse
vazio” (LACAN, 1991, p. 163) é uma presença – ausência em referência ao furo do
vazio. “A religião consiste em todos os modos de evitar esse vazio” (LACAN, 1991,
p. 163, grifo nosso), e através de diversos e refinados cerimoniais “obsessivos55”,
escamoteia deparar-se com oco, próprio do vazio. Temos, ainda, o discurso da
ciência, “na medida em que, para a nossa tradição, ele é originado no discurso da
55 Freud destaca em O futuro de uma ilusão [1927] a estreita relação entre os ritos religiosos e os ritos do comportamento obsessivo.
57
A morte: um encontro com o desamparo
sabedoria, no discurso da filosofia” (LACAN, 1991, p. 163), e também opera como
uma recusa ao lugar do vazio.
Assim como na arte em que há uma Verdrängung, um recalque da coisa – como na religião talvez haja uma Verschiebung – é propriamente falando, de Verwerfung, que se trata no discurso da ciência. O discurso da ciência rejeita a presença, uma vez que em sua perspectiva se delineia o ideal do saber absoluto, isto é, de algo que estabelece, no entanto, a Coisa, não a levando ao mesmo tempo em conta (LACAN, 1991, p. 164).
A arte como essa possibilidade de construir alguma coisa em torno do vazio
proporciona uma representação da “Coisa”. Estrutura-se como uma vertente de
estabelecer um diálogo, um contorno na imprecisão da forma. Recobre o que se
constitui, desde sempre, como sem possibilidade e nomeação, apenas em reflexo,
pela construção da produção artística. Ou no semblante da elaboração de fé ou,
ainda, na racionalização conceitual, que facilita limitar e nomear, atividade própria às
conquistas da cultura civilizada.
2.1.4 Breve percurso: contextualizando a morte.
Todo saber tem seu além, ou melhor, cada saber constrói o seu além. Assim como a religião nos fala de um além, a física e a psicanálise também nos remetem a um além, isto é, nos remetem para aquilo que está fora do seu universo discursivo, mas que ao mesmo tempo é condição essencial para esse universo. Não há um universo sem um além. Isto, na medida que cada universo define seus próprios limites e esse além é o lugar de cada universo discursivo. Nada nos impede de pensar esse além como a morte, na medida em que a morte é nomeável, mas aquilo sobre o qual nada temos a dizer. Esse além ou essa morte não são, portanto, o lugar do nada, do vazio do ser, mas do silêncio do discurso. O que aí se nadifica não é o ser, mas a palavra (Garcia-Roza).
58
A morte: um encontro com o desamparo
O medo, natural no homem, de se deparar com a fatalidade da morte inquieta;
conduz a uma busca incessante de explicações e construções seja espirituais,
sociais seja científicas e racionais para lidar com esta verdade factual e ambígua,
individual como experiência única para cada ser e, ao mesmo tempo, coletiva, por
ser um fim comum à condição dos organismos vivos, independentemente da forma
como o evento ocorra e da causa que o provoque. Negar essa fatalidade não é
apenas um meio de adiar seu enfrentamento, mas também um modo de reconhecer
a proporção avassaladora de sua presença.
Ao longo da peregrinação humana, independente do contexto cultural, a
história se repete. O enfrentamento e a aceitação do fim da existência do corpo
biológico envolvem diversos posicionamentos, revestindo-se de diferentes rituais. O
medo da extinção demanda emergente uma suplência que faça frente a essa
devastação, campo fértil a criações de mitos. A idéia de um paraíso outrora existente
e um dia perdido aguça a imaginação humana, e realidades idílicas minimizam ou
adiam o enfrentamento da crua realidade avassaladora da morte. Nas palavras de
Françoise Dastur,
Com efeito, não há cultura a não ser quando um certo domínio do escoamento irreversível do tempo é assegurado, o que implica o emprego de um sem-número de técnicas destinadas a, progressivamente, amenizar a ausência; e a ausência por excelência é a do morto, que não desaparece momentaneamente, mas absolutamente e de maneira insubstituível. É porque não é ilegítimo ver no luto, tomado no vasto sentido da aceitação da ausência, a origem da própria cultura. Se toda cultura é então, num amplo sentido, cultura de morte, o que os ritos funerários manifestam tão bem quanto à conservação das palavras vivas na escrita, o culto dos ancestrais, os relatos mitológicos e a literatura em geral, é precisamente porque esse corte radical que é a morte deve ser assumido – o que significa dizer ao mesmo tempo aceito e negado (DASTUR, 2002, p. 17).
Dessa feita, percorremos a gênese de algumas dessas construções, inseridas
na diversidade peculiar das especificidades de cada conjuntura ao longo da
história56, considerando a obstinação criativa da raça humana em apreender o
56 O nosso objetivo é ter uma breve visão geral do lugar reservado à morte nos principais períodos da história humana (considerando a especificidade do mundo ocidental) levando em conta que essa, via de regra, está associada a uma construção “mística” de sustentação. Consideramos ainda que o mundo ocidental se rege por um mesmo texto base (a Bíblia) como regra prática de fé, muito embora, a partir desse texto, não haja um saber unificado e sim blocos institucionais que orientem seus credos de formas divergentes entre si.
59
A morte: um encontro com o desamparo
entendimento da morte, visando a desmistificar esse enigma ou, pelo menos, a
suportar a sua existência.
A aquisição da escrita tem um lugar preponderante nos fundamentos
estruturais do arcabouço das crenças que sustentam a angústia humana ante a
efemeridade da existência. Desde que o homem domina essa ferramenta, um texto
“mestre” sempre norteia as regras de fé e práticas assegurando a base desse saber.
“O Bhagavad Gita, Os Upanishads, o Livro Tibetano dos mortos, a Bíblia e o Corão57
abordam a extinção da existência humana como questão essencial do entendimento
da vida” (GOLDBERG, 1992, p. 03). A base fundamental dos legados de fé é
assegurar que a vida terrena encontre referência numa outra vida, ou seja,
intermedeiam a oferta, a certeza da imortalidade e o preço a ser pago por essa, haja
vista que todos os credos operaram gerenciando as correlações de forças de uma
renúncia a prazeres terrenos, com vistas a um lucro a ser resgatado na posteridade,
na vida eterna.
O primeiro épico apontado como sendo destinado a uma meditação sobre a
transitoriedade da vida é a epopéia mesopotâmica de Gilgamesh.58 Narra a saga do
rei sumério, o quinto da primeira dinastia pós-diluviana da cidade de Uruk.
Gilgamesh (2750 – 2600 a.C.), lendário rei, semideus, que tinha status intermediário
de um homem-animal e ainda assim a condição de mortal, fato evidenciado com
angústia, por ocasião da morte de seu melhor amigo, Enkidu, também semideus. A
57Entres outros, esses são exemplos de textos norteadores de fé, de Oriente a Ocidente, destacáveis e importantes na história da humanidade. O Bhagavad Gita é uma escritura sagrada do hinduísmo, também chamada de Canção do divino mestre e contém as palavras de krishna. Esse texto faz parte da epopéia de Mahäbhärata e foi compilada na forma atual nos séculos V e I a.C. Os Upanishads (literalmente “assentado abaixo”) são a redação das lições dos mestres hindu. Não se sabe quantos Upanishads já existiram, mas cento e oito foram preservados, alguns em prosa, outros em versos – desses, dezesseis foram reconhecidos por Shankara como autênticos oficiais. O Livro Tibetano dos mortos, criado pela civilização pré-budista Bön do Tibete, para indicar como tratar a força psíquica deixada para trás por uma pessoa morta. Destina-se aos mitos – as tradições e aos rituais a respeito de uma pessoa morta. A Bíblia, legado do povo hebreu, único povo monoteísta da antiguidade, ao mundo cristão, foi escrita por quarenta e quatro escritores, sessenta e seis livros que formam um só. Dividem-se a princípio em dois grandes grupos (antigo e novo testamento) e subdividem-se em blocos por cinco grandes temas, e cada livro, individualmente, é completo em si mesmo, com tema próprio de análise. O Corão ou Alcorão é o livro sagrado do Islamismo, significa recitação. É a palavra literal de Alá, revelada ao profeta Muhammad (Maomé) ao longo do período de vinte e dois anos. Foi redigido na linguagem árabe por seus seguidores no século VII d. C. 58 A epopoéia de Gilgamesh é apresentada como sendo o primeiro texto conhecido sobre o tema da morte, como também a mais antiga obra literária da história da humanidade. Seu registro provém de uma tábua de argila em escrita cuneiforme do século VII a C. É parte dos achados da antiga biblioteca de Nínive, referente ao império assírio de Assurbanipal (668-627 a C.) A primeira tradução moderna foi realizada na década de 1860, pelo estudioso inglês George Smith. Gilgamesh, Documentos acerca da Bíblia. Apresentação, tradução e notas de F. Malbran-Labat, Éd. du cef, 1992, p. 59.
60
A morte: um encontro com o desamparo
dor da perda remeteu o rei a refletir sobre a transitoriedade de sua existência e o
mobilizou a procurar uma solução para reverter esse mal. Inconsolável, empreende
então uma perigosa viagem em busca de um remédio capaz de evitar a realidade da
morte.
Recorrendo aos registros dos grandes momentos históricos da construção
humana, já na primeira etapa mais rudimentar, a Pré-história59, (o Paleolítico, ou
Antiga Idade da Pedra) (500 a 30 mil a C), quando surge o grupo família, o domínio
do fogo, e os rudimentos de linguagem, aparecem também os primeiros indícios dos
rituais funerários. Alguns autores dividem esse período inicial em dois momentos e
apresentam o Paleolítico superior (30 a 18 mil a C.) e, referido a esse, o surgimento
da arte, com a magia, esculturas e pinturas rupestres, descobertas que evidenciam a
necessidade do sentimento humano de se fazer representar, em alguma via de
expressão que materialize o seu pensamento interior, um registro subjetivo dirigido a
um outro; uma marca, símbolo de uma presença num recorte de tempo.
Para Edgar Morin, “o passaporte de humanidade em ordem, científico,
racional, evidente, é a ferramenta: homo faber. As determinações e as idades da
humanidade são as de suas ferramentas” (MORIN, 1997, p. 23). Associado a essas,
existe uma ferramenta “sentimental” que registra, para além do campo da ciência,
algo que escapa, à primeira vista, ao sentido da explicação racional, “mas que
contém uma revelação comovente: a sepultura, ou seja, a preocupação com os
mortos, ou seja, a preocupação com a morte” (MORIN, 1997, p. 23). Embora em
campos opostos, ainda que, ao mesmo tempo, simultâneos, ferramenta e sepultura
cumprem sua função em desvendar e também em velar o estranho enigma que é a
humanidade. Para Morin, se quisermos compreender a morte, é preciso começar a
trilhar o labirinto do saber sobre o que é ser humano, haja vista que “o dado
primordial, fundamental, universal da morte humana é a sepultura” (MORIN, 1997, p.
24). E essa é tão antiga quanto as demais aquisições criativas que surgiram com o
59 Não se faz necessário detalharmos no corpo do texto as três fases de desenvolvimento da pré-história (alguns autores a subdividem em três e outros em duas), apenas fazer referência ao lugar de destaque reservado à morte desde a organização humana mais primitiva. A segunda etapa da Pré-história é o Neolítico ou Nova Idade da Pedra (18 a 5 mil a. C.). Ocorre a domesticação dos animais, o advento da agricultura, do tear e os esboços de concepções religiosas. A terceira etapa, a Idade dos Metais (5 a 4 mil a C.) foi quando se desenvolveu o emprego do cobre, bronze, ferro e outros metais, a agricultura, o transporte, o início das instituições como o Estado e as organizações religiosas com poderes estabelecidos e principalmente de domínio e punição. Em seguida, vieram o Egito, os sumérios, acádios, assírios e persas, as cidades-estados gregas, o Império Romano e, nesse, o início da era cristã e seus efeitos até os dias atuais.
61
A morte: um encontro com o desamparo
advento da ferramenta e que deram rumo ao percurso cognitivo das grandes
descobertas.
Os estudos etnológicos referendam que “não existe nenhum grupo arcaico,
por mais primitivo que seja, que abandone seus mortos ou que os abandone sem
ritos” (MORIN, 1997, p. 25). Independente do conceito apreendido da morte, ela é
parte da vida e demanda um sentido, motivador da construção de um rito. Via de
regra, o rito está associado a uma forma de elaborar a ausência do falecido, como
também associado à idéia de continuidade do morto em uma outra morada. Pode
ser entendido como um sono, a espera de uma viagem de acesso a um lugar
melhor; de um passe de morada à casa dos ancestrais. Todos esses lugares são
como referência a um prolongamento da vida terrena (MORIN, 1997, p. 26) A
questão da imortalidade vela e desnuda a realidade concreta da morte. Para Morin,
Todos reconhecem que o morto não é mais um vivente comum, pois é transportado, tratado de acordo com ritos especiais, enterrado ou queimado. Existe, portanto, uma consciência realista da morte incluída na noção pré-histórica e etnológica de imortalidade: não a consciência da ‘essência’ da morte, esta jamais foi conhecida e jamais o será, pois a morte não tem ‘ser’; e sim da realidade da morte; se a morte não tem ‘ser’, no entanto é real, acontece; depois esta realidade vai encontrar seu nome exato: a morte, e mais tarde ainda será reconhecida como lei inelutável: ao mesmo tempo em que se pretender imortal, o homem se chamará de mortal. Assim, a mesma consciência nega a morte: ela nega como aniquilamento, mas a reconhece como fato (MORIN, 1997, p. 26, grifo nosso).
Intermediando a realidade da morte e a crença da aquisição da imortalidade,
se ergue o ritual funerário. É o preparo do corpo do morto para o sepultamento,
como também o primeiro momento que os vivos têm para começar o processo de
elaborar o luto e o preparo para a ausência definitiva. É o ritual funerário que
mistifica, em alguma medida, o horror da decomposição cadavérica que está por vir,
independente do método de rito e do destino final do corpo na forma de
sepultamento60. “A etnologia nos mostra que em toda parte os mortos foram ou são
60 Os registros etnológicos revelam diversos tipos de sepultamentos entre os primitivos. “Os mortos mustersenses são enterrados; pedras são amontoadas sobre os seus despojos, cobrindo especialmente o rosto e a cabeça. O esqueleto é pintado com uma substância cor de sangue”. [...] “Os Koriaks do leste siberiano lançam seus mortos ao mar, estes são confiados ao oceano e não abandonados.” [...] “Nas ilhas Andaman, após a morte de alguém, os nativos desertam da aldeia por vários meses, e colocam guirlandas de folhas para advertir o estrangeiro do perigo” [...] “Nos elevados planaltos de Madagascar, durante a vida inteira, os Kiboris constroem a casa de alvenaria de sua morte”. (MORIN, 1997, p. 26). Há também as tribos que queimam seus mortos.
62
A morte: um encontro com o desamparo
objetos de práticas que correspondem, todas elas, a crenças referentes a sua
sobrevivência (na forma de espectro corporal, sombra fantasma, etc) ou a seu
renascimento” (MORIN, 1997, p. 25).
A expressão criativa, revelada na arte pelo fazer humano, associa-se também
como uma outra forma de escrita, revelando o campo dos sentimentos na vertente
do enfrentamento com a morte. A arte funerária dos egípcios é a revelação mais
antiga de vidas destinadas a cultuar a espera da morte e a dominar a presença do
medo. É ainda a revelação de um modo de viver em função da morte; de vidas
dedicadas a se especializarem na “arte” de como encontrar a morte; de como fazer
da transitoriedade mortal uma ponte à imortalidade. O corpo embalsamado aguarda
a evidência dessa crença. Espera em um aparente sono, adornado por seus
pertences pessoais, nas faraônicas moradas, casa dos mortos, similitude da vida
recém-abandonada.
A idéia da imortalidade mobilizou o mundo arcaico a criar um ritual61 de
convivência entre o mundo dos mortos e o mundo dos espíritos. Os mortos, em
forma de espectro espiritual, continuam a atuar como participantes dos bens, da
guerra, da caça, da colheita e como norteadores de bons ou maus fluídos. Alguns
rituais também se constituem para apaziguar esse convívio entre os dois mundos
paralelos. Constrói-se um arsenal de formas de relacionamentos que incluem
oferendas de alimentos e de objetos. Esses simbolizam aparente meio de trânsito do
universo dos mortos ao mundo dos vivos; rituais que, embora modificados ao longo
da história, permanecem nos dias atuais e cumprem a função de guardiãs da
memória do morto; garantias dessa ambígua relação afetiva desencadeada com a
realidade da morte. Segundo Morin,
[...] é este complexo dialético que revelam os funerais e os lutos. O luto exprime socialmente a inadaptação individual à morte, mas, ao mesmo tempo, ele é este processo social de adaptação que tende a fechar a ferida dos indivíduos sobreviventes. Após os ritos da imortalidade e o fim do luto, após um ‘penoso trabalho de desagregação e de síntese mental’, só então a sociedade, ‘tendo voltado à paz, pode triunfar da morte’. A ‘sociedade’, por certo, mas não oposta ao indivíduo, trata-se aqui da realidade humana total. E do mesmo modo, no que concerne à crença na imortalidade, a religião vai
61 Para Brandão, “através do rito, o homem se incorpora ao mito, beneficiando-se de todas as forças e energias que jorraram nas origens. A ação ritual realiza no imediato uma transcendência vivida. O rito é a práxis do mito. É o mito em ação. O mito rememora, o rito comemora” (BRANDÃO, 2002, p. 39).
63
A morte: um encontro com o desamparo
se encontrar no nó complexo de inadaptação e de adaptação (MORIN, 1997, p. 80).
A angústia que a morte demanda na individualidade de cada ser é, em
alguma medida, amenizada na inserção com um outro, um semelhante, igualmente
portador do mesmo destino. Os grupos arcaicos são o modelo mais consistente da
vida individual existindo, submetida à estrutura do grupo. “Viver é justamente
pertencer intimamente a seu grupo, vivos ou mortos, os membros do clã pertencem
intimamente ao grupo, ao clã” (LÉVY-BRUHL. Apud MORIN, 1997, p. 38). Nos
grupos primitivos a existência individual está absorvida ao sentimento de existência
atrelado à relação simbiótica do grupo. Nesse contexto, “a participação do indivíduo
no corpo social é um dado imediato contido no sentimento que ele possui de sua
própria existência” (LEVY- BRUHL, apud MORIN, 1997, p. 40). Em função disso,
para esse autor, o medo da morte tem menor relevância entre os grupos primitivos
que nos grupos sociais posteriores.
Esses primeiros modelos de vida social instituída são a primeira referência da
vida individualizada pedindo guarida no aparato de sustentação do grupo social. O
contato com a morte, no plano individual, encontra suporte nos ritos de passagem
elaborados em grupo e na idéia de imortalidade, garantia de continuidade e
reencontro coletivo. Mesmo assim, destaca-se a evidência de “que nenhuma
sociedade, inclusive a nossa, conheceu ainda a vitória absoluta, seja da
imortalidade, seja da consciência desmistificadora da morte, seja do horror da morte,
seja da vitória contra o horror da morte” (MORIN, 1997, p. 38).
Nos trâmites “naturais” de evolução histórica, mesmo considerando-se as
nuanças de conjuntura62, pode-se evidenciar o lugar de destaque mitificado por cada
cultura em relação à questão da morte, tanto quanto sobre o destino, reservado aos
mortos e aos mais próximos, envolvidos nesse contexto da extinção da existência.
Morin destaca um “tríplice dado da consciência humana da morte (consciência
realista, consciência traumática, afirmação de um além-morte)”, como também o
62 Não nos deteremos nessa questão, mas é importante ressaltá-la. “A diferenciação social desde o grupo arcaico, depois quando esta diferenciação chegou às relações de classes, a luta de classes, faz pesar suas determinações sobre a consciência do horror da morte” (MORIN, 1997, p. 50). Assim as figuras religiosas de destaque; dominadoras da magia, ou dominadoras de um saber clerical místico, tanto quanto a figura política de relevância no contexto; o rei divinizado modifica o lugar da morte e oferece um outro tipo de sentido, como se um certo domínio a esse respeito pudesse ser encontrado no saber supremo, dessas, igualmente míticas figuras.
64
A morte: um encontro com o desamparo
detalhe importante da “coexistência originária e dialética” (MORIN, 1997, p. 38). Dito
de outro modo, o humano se contradiz na sedução e na repulsa presente na
situação da morte. “O que chamamos de ‘consciência humana de morte’ é apenas
uma parte, um dos dois pólos das realidades antropológicas da morte. Pois, nós o
veremos claramente, junto ao horror da morte, existe o seu contrário, o risco da
morte” (MORIN, 1997, p. 38).
Em relação ao “terror da morte” que persegue o humano em sua efemeridade
encontra-se uma fenda que se manifesta em duas vertentes: o canibalismo e o
assassinato. “O canibalismo é coisa originalmente humana. Praticado desde a pré-
história, ele existe ainda em muitas tribos arcaicas, quer seja o endocanibalismo
(canibalismo dos funerais) quer o exocanibalismo (devoração dos inimigos) (MORIN,
1997, p. 65). Num outro pólo dessa mesma lacuna, aparentemente contraditória, e
igualmente reveladora da essência da estrutura humana, nos deparamos com o
assassinato. Segundo Morin,
O assassinato, que aparentemente contradiz de modo tão violento ‘o horror da morte’, é um dado humano tão universal quanto este horror. Humano porque o homem é o único animal a matar seu semelhante sem necessidade vital: se o vestígio do primeiro ‘crime’ pré-histórico conhecido é muito mais recente que o primeiro túmulo, este miserável crânio despedaçado pelo sílex testemunha a seu modo sobre o humano. Universal porque se manifesta desde a pré-história, porque se perpetra durante toda a história, exprimindo lei (talião, castigo), encorajado pela lei (guerra), ou o inimigo da lei (crime). Quantos crânios despedaçados desde o primeiro ‘assassinato’. Poderíamos agora repetir o que já dissemos a respeito da sepultura. Nas fronteiras do no man’s land, o assassinato aparece, passaporte manchado de sangue, como um fenômeno tão humano que a Bíblia, com o crime de Caim, faz dele a primeira notícia da crônica da família terrestre, e que Freud o considera como o ato originário da humanidade (assassinato do pai pelos filhos, na horda primeva) (MORIN, 1997, p. 66).
A trajetória de construção da história humana está atrelada a sua relação com
a morte e às situações de riscos em direção a esse encontro. “O risco de morte vai
além da guerra, vai além da barbárie do homicídio, envolve todos os setores da
atividade humana” (MORIN, 1997, p. 72). A busca, “compulsiva de repetição”, em
direção ao risco de morte, intermedeia o contraponto entre se saber mortal e se
desejar imortal. Está no âmago das correlações de forças entre as pulsões de vida e
de morte que se mesclam no fazer cotidiano, quase que imperceptíveis, de tão
65
A morte: um encontro com o desamparo
intrínsecas à estrutura humana. “O risco de morte é o paradoxo supremo do homem
diante da morte, pois contradiz total e radicalmente o horror da morte. E, no entanto,
não menos que este horror, o risco de morte é um dado fundamental” (MORIN,
1997, p. 70).
A assimilação dos conceitos e preceitos culturais tem, na criação dos mitos,
uma ferramenta de linguagem preponderante. A disseminação e sustentação de
saberes construídos por via mítica respaldam o repasse de conteúdos de aceitação
questionáveis, via “fábula”63 facilitam a compreensão e a elaboração de sentimentos
difíceis de suportar e coincidentes, na personagem e na realidade da vida. Os mitos
interpretam “o mundo como produto de uma criação de dramas e aventuras quase
humanos”, facilitando a identificação (como em espelho) da realidade e da fantasia.
“O mito, neste sentido, é a irrupção do cosmo no homem, é o cosmomorfismo64.
Com suas metamorfoses, as lendas supõem a analogia do homem e do mundo65
(MORIN, 1997, p. 96). E, atrelado a esses, a construção do conjunto de tabus, que
são sutilmente assimilados e incorporados como parte do viver sem demandar
maiores questionamentos.
A aquisição da linguagem, marca decisiva no ato de fundação humana, abriu
o processo mito-criador66 a seu interminável circuito67. Segundo Morin,
[...] Foi o ponto de partida de uma prodigiosa dialética mão-cérebro e cérebro-palavra, mãe de todas as técnicas e de todas as idéias. Tudo está ligado: o maxilar, libertado pela mão da maior parte de seu antigo trabalho, ela própria libertada pela ferramenta, ferramenta esta produzida pela mão inteligente... O focinho se transformou em rosto, o sílex, em ferramenta, a mão se tornou inventiva, e o espírito se viu tomado pela morte... (MORIN, 1997, p. 89, grifo nosso).
63 O termo “fábula” aqui utilizado não se propõe a questionar a veracidade do mito. Apenas queremos destacar a narrativa como representação de fatos, que facilita sua assimilação com a realidade da vida. 64 O mito traz a dupla vertente entre o cosmomorfismo e o antropomorfismo, visto que animais, plantas e coisas têm sentimentos humanos, se comportam como humanos e exprimem desejos humanos (MORIN, 1997, p. 96). 65 Já comentamos o lugar do totem, mito por excelência, nas comunidades arcaicas e em nome dele, as leis e os tabus erguidos, sustentando a estrutura de toda vida tribal. 66 A função do mito é similar à construção criativa da arte. Favorece a criação do duplo que possibilita viver situações sem correr o risco de se consumir nelas. Viver na atividade criativa o mais além da elaboração de desejos protegidos no campo irreal da fantasia. 67“Através da linguagem, do símbolo, do mito, do totem”, o sentimento humano; pura pulsão, se libera a participar a liberar sua realidade nessa fantasia. “No encontro deste ‘cósmico’, se realiza a apropriação do mundo e do homem e pelo homem” (MORIN, 1997, p. 97).
66
A morte: um encontro com o desamparo
O mito é porta-voz da linguagem humana em todas as culturas, e situa-se
entre o duplo paradoxo do campo da razão e da fé. Seu sentido nas culturas
primitivas “é o relato de um acontecimento ocorrido no tempo primordial, mediante a
intervenção de entes sobrenaturais” (BRANDÃO, 2002, p. 35). As principais origens
míticas68 referem-se à Teogonia: o nascimento dos deuses; à Cosmogonia: que
conta a criação do mundo; e à Escatologia: mitos que explicam o destino do homem
após a morte. Encarnando fenômenos cuja gênese são fundamentais à vida, “o mito
é sempre uma representação coletiva, transmitida através de várias gerações e que
relata uma explicação do mundo. Mito é, por conseguinte, a parole, a palavra
‘revelada’, o dito (BRANDÃO, 1997, p. 36). Mesmo nas culturas não pagãs ou
politeístas, o mito veste o caráter aceitável ao contexto, e cumpre sua função de
apaziguar o espaço entre o mundo das incertezas e a necessidade de uma palavra
que preencha essa lacuna.
A travessia humana da Pré-história (última etapa da Idade dos Metais) para a
história se faz pela aquisição da escrita, marca ímpar nos desdobramentos que essa
ferramenta inscreve na raça humana. A cultura grega terá destaque no mundo
antigo69 por todo o legado deixado à história da humanidade. A construção
mitológica grega oferece um aprendizado bem peculiar, no relacionamento entre os
deuses do Olimpo e os terrestres mortais. A Ilíada70, como herança de narrativa
épica, seguida da Odisséia71 são, ambas, parte da constituição formadora da criação
literária até nossos dias. O legado grego protegido pelo processo da cultura
helenística assegurou a imortalidade dessa herança cultural para a posteridade.
Os gregos tinham um sistema religioso marcado por múltiplas cerimônias aos
deuses com oferendas ritualísticas de armas, jóias, esculturas, vasos sagrados e
mesas de libação para o sacrifício animal. A relação entre deuses e humanos
acontecia com maior proximidade e as intervenções divinas mais visíveis. Cavernas
68 Os mitos portam a verdade segundo a ótica de um contexto cultural e é nesse recorte que sua força é melhor exercida. 69 Não estamos desconsiderando a contribuição das civilizações anteriores como, por exemplo, a egípcia e mesopotâmica (principalmente no que diz respeito ao culto à morte). Apenas damos maior enfâse ao mundo grego pelo excedente de intertextualidade com essa mitologia até os dias atuais. 70A Ilíada é considerada o primeiro texto escrito do mundo ocidental. A autoria, embora questionada, é atribuída a Homero. Narra a história da guerra entre gregos e troianos e, em meio a essa, todas as nuanças da estrutura humana entre amores, escolhas, dores, perdas, mortes e funerais, na relação desigual entre os deuses do Olimpo (imortais) e os pobres mortais, à mercê dessa intervenção. 71Pelo prisma histórico, a Ilíada é considerado um poema bem mais antigo. A Odisséia reflete um estágio muito posterior da história da cultura. (JAEGER, 1995, p. 37).
67
A morte: um encontro com o desamparo
e grutas integram a parte primitiva dos templos como locais de adoração e sepultura.
Os jogos eram parte intrínseca do culto (BRANDÃO, 2000, p. 53). A morte tinha
lugar privilegiado entre os rituais e a sepultura era um direito que não podia ser
negado para que o espírito do morto não ficasse a vagar sem destino. Segundo
Brandão,
Ao culto em favor dos vivos estava indissoluvelmente ligado o culto em benefício dos mortos. Estes eram inumados e não cremados. Os cadáveres eram introduzidos pelo alto em salas mortuárias profundas, providas de oferendas e de objetos da vida comum: indumentárias, armas, talismãs, vasos e até archotes, o que mostra que para os minóicos a vida no além continuava muito semelhante àquela que tiveram neste mundo. As oferendas eram renovadas, e até mesmo sacrifícios eram oferecidos aos mortos, sem que se possa afirmar com certeza se estes foram divinizados (BRANDÃO, 2000, p. 57).
A partir da Era Cristã inauguram-se novas concepções do homem frente as
suas questões diante da morte. O mito se reveste de fé, ganha caráter de
veracidade, e o cristianismo recobre com maior propriedade os mitos pagãos. A
morte jaz adormecida e seu temor fica adiado e mistificado na esperança de um
recomeço no paraíso resgatado. Ariès afirma que, “desde que o Cristo ressuscitado
triunfou sobre a morte, a morte neste mundo tornou-se a verdadeira morte, e a morte
física, acesso à vida eterna” (ARIÈS, 1981, p.14). Sem dúvida que a religião72, cristã
ou não, oferece explicações paliativamente aceitáveis sobre o entendimento da
morte73, variando conforme a especificidade de cada credo. O fato é que a criatura
humana necessita de alguma palavra que apazigúe o “mal-estar” causado pelo
enfrentamento dessa questão.
“Num mundo submetido a mudanças, a atitude tradicional diante da morte
aparece como um dique de inércia e continuidade” (ÁRIES, 1981, p. 31). Uma
atitude global frente à morte, uma posição acrônica, resistiu às pressões evolutivas
durante cerca de dois milênios, mas paulatinamente cedeu às mudanças e pôde-se
observar esse movimento evolutivo e quase em posição oposta ao enfrentamento 72 “Religião” é aqui usado no sentido do termo de culto prestado a uma divindade, mas, também, e principalmente, no sentido de mais além, ou seja, na elaboração psíquica que a fé em um determinado credo, estrutura de regras e práticas, de interditos morais no contexto social e o fio tênue entre o profano e o sagrado, motivadores de medos, culpas e rituais expiatórios. 73 A idéia do duplo (morte-renascimento) já presente nas crenças primitivas, ganha melhor respaldo no arcabouço de fé cristã.
68
A morte: um encontro com o desamparo
atual (ARIÈS, 1981, p. 31). Na sociedade contemporânea a morte perde seu lugar
no seio da família como parte de acontecimento natural, sua presença se revela
como uma erupção dolorosa. “A atitude antiga em que a morte está ao mesmo
tempo próxima, familiar, diminuída, e insensibilizada, opõe-se demais à nossa, e nos
causa tanto medo que nem ousamos dizer-lhe o nome” (ARIÈS, 1981, p. 31).
Ariès toma de empréstimo da lingüística as noções de sincronia e diacronia
para analisar as atitudes humanas diante da morte, dividindo-as nessas duas
vertentes. Num primeiro recorte histórico ele considera que há um momento de
sincronia e vai chamá-lo de morte domada. É o primeiro período da Idade Média;
período da morte anunciada. “Sua característica estava no fato de que ela dava
tempo pra ser percebida74” (ARIÈS, 1981, p. 07). A literatura dessa época
exemplifica ricamente a relação do homem com a morte. É a morte honrosa e
esperada dos cavaleiros; a morte dos soberanos, ou ainda a morte dos monges
piedosos. O enfermo admite sua verdade e toma as atitudes necessárias à ocasião.
A morte anunciava-se e era bem vinda. “As mesmas palavras passaram assim de
época em época, imóveis como um provérbio” (ARIÈS, 1981, p. 29). Segundo Ariès,
Sabendo de seu fim próximo, o moribundo tomava suas providências. E tudo vai ser feito muito simplesmente, como no caso dos Pouget ou dos mujiques de Tolstoi. Em um mundo de tal forma impregnado do maravilhoso como o dos Romans de la table ronde [Romances da Távola Redonda], a morte era algo muito simples (ARIÈS, 1981, p. 31).
A crença em avisos de premonição aguça esse universo de existência
sobrenatural permeando a realidade de uma maneira aparentemente simples e
natural. “Essa crença de que a morte avisa, que atravessou os séculos, sobreviveu
por muito tempo nas mentalidades populares. Tolstoi teve o gênio de reencontrá-la,
perseguido como era pela morte e ao mesmo tempo pelo mito do povo” (ARIÈS,
1981, p. 11). A morte no contexto dessa época era parte, um fascículo da história de
cada sujeito. Ainda que “nem todo mundo possuía tanta clarividência, mas todos
74 A exceção se dava para as mortes terríveis, como é o caso de pestes ou mortes súbitas, ditas como excepcionais, não sendo, portanto, levadas em conta e não havendo necessidades de serem mencionadas. Ser acometido de morte repentina era como receber um castigo da cólera divina. O suicídio também não era bem visto e os que assim procediam perdiam o direito de serem enterrados em solo santo, ou junto aos demais cristãos, ou seja, não tinham direito ao ritual cerimonioso do funeral.
69
A morte: um encontro com o desamparo
sabiam que iam morrer, e sem dúvida a previsão tomou formas proverbiais que
passaram de época para época” (ARIÈS, 1981, p.10). O fato é que ela não era
temida, era recebida como sendo chegada a hora de sua vinda. “Furtar-se ao aviso
da morte era expor-se ao ridículo” (ARIÈS, 1981, p. 11).
Naturalmente que o moribundo se enternecia com a sua vida, com os bens possuídos e com os seres amados. Mas o seu pesar nunca passava de uma intensidade muito fraca em relação ao patético desse tempo. O mesmo acontecerá ainda em outras épocas, que também tinham facilidade de declamação como a era barroca. O desgosto por deixar a vida ficava, portanto, associado à simples aceitação da morte próxima. Estava ligado à familiaridade com a morte, numa relação que permanecerá constante através dos tempos (ARIÈS, 1981, p. 17).
A aceitação da morte, inserida nas providências a serem tomadas, envolve
algumas etapas de ritual. A primeira diz respeito à retrospectiva da vida num ato de
lamento, “uma evocação, triste, mas muito discreta, dos seres e das coisas amadas,
uma súmula reduzida de algumas imagens” (ARIÈS, 1981, p. 32). Após esse
lamento nostálgico, segue-se o recebimento do perdão, por parte dos que
acompanham o moribundo em seu leito de morte e esse perdão porta as bênçãos de
Deus. Para o moribundo, agora é tempo de contrição; esquecer o mundo e voltar-se
a Deus. As orações dividem-se em dois momentos: um pedido de perdão dirigido a
Deus e uma absorção sacerdotal. Esse ato eclesiástico era administrado pelo
sacerdote com a leitura dos salmos e no ato de aspergir o corpo com água benta75.
Ao fim das preces, cumpre-se apenas esperar a morte com resignado silêncio
(ARIÈS, 1981, p. 33).
Todo esse cerimonial da morte, organizado e presidido pelo próprio
agonizante (auxiliado pelo médico ou o padre), era cumprido com simplicidade, sem
excessos emocionais e nem dramáticos. Contava com a presença dos familiares,
amigos, incluindo as crianças. Era uma cerimônia pública, embora no quarto do
enfermo, em que todos os envolvidos transitavam livremente pelo recinto. E
igualmente acompanhavam o cortejo ao último jazigo (ARIÈS, 1981, p. 34).
75 Era dado ao moribundo o Corpus Christi. A extrema–unção era reservada aos clérigos e dada solenemente aos monges na igreja (ARIÈS, 1981, p. 34).
70
A morte: um encontro com o desamparo
Para manter o mundo dos vivos numa certa reserva ao mundo dos mortos, os
cemitérios eram situados fora das cidades, à margem das estradas. Existia ainda a
herança do mundo primitivo, o cuidado com o destino dos mortos e a possibilidade
de retorno ao convívio cotidiano dos que tinha deixado ao morrer. “Apesar de sua
familiaridade com a morte, os antigos temiam a proximidade dos mortos e os
mantinham a distância. Veneravam as sepulturas, em parte porque temiam a volta
dos mortos” (ARIÈS, 1981, p. 36). Depositavam nas sepulturas inúmeras oferendas,
porém as localizavam a certa distância da comunidade. O retorno dos mortos,
através das sepulturas, para dentro da cidade, começou com o culto aos mártires, de
origem africana, em necrópoles extra-urbanas (a princípio). A veneração desses
atraía adeptos a essas sepulturas, vindo depois o enterro cristão acontecer dentro
do pátio das igrejas76. Era uma forma de o morto absorver a proteção dos santos.
Essa repugnância à proximidade dos mortos logo cedeu entre os cristãos antigos, primeiro na África e em seguida em Roma. Tal mudança é notável: traduz uma grande diferença entre a atitude pagã e a nova atitude cristã em relação aos mortos, apesar do reconhecimento comum da morte domada. Daí por diante e durante muito tempo, até o século XVIII, os mortos deixaram de fazer medo aos vivos, e uns e outros coabitaram nos mesmos lugares, por trás dos mesmos muros (ARIÈS, 1981, p. 11).
“Ainda se pode reconhecer a estreita relação entre o cemitério77 e a igreja nas
palavras que os designam e na ambigüidade do seu emprego. Para estabelecer um
cemitério, construía-se uma igreja” (ARIÈS, 1981, p. 56). Com a mudança da
mentalidade cristã do temor no convívio com os mortos, ou pelo menos, com a
habitação dos mortos, os cemitérios perderam a posição sacra.78. Passaram a ser
parte das localidades pobres e os enterros acontecendo em valas comuns, sem
ataúde, apenas com o envolvimento do sudário79. É comum nesse período a
exposição de ossos em covas rasas e até com a possibilidade de brotarem da terra
76 A mudança dos cemitérios ao convívio da cidade começou com o enterro do clero dentro das igrejas (perto do santíssimo) 77 Aitre et charnier (Adro e carneiro) são os termos mais antigos para designar o cemitério na língua falada. A palavra cemitério pertenceu de preferência, por muito tempo, à língua erudita dos clérigos: uma palavra grega latinizada. (ARIÈS, 1981, p. 56). 78 O cemitério na igreja ou em campo privado ficava reservado ao clero e aos que podiam pagar por direitos a essas sepulturas. 79 É a época de extrema pobreza em que assolam grandes surtos de epidemias. Há um grande número de mortes com enterros coletivos.
71
A morte: um encontro com o desamparo
em valas úmidas e fétidas. O pórtico das igrejas também era usado para enterros. “A
função cemiterial começava no interior da igreja, aquém dos seus muros e
continuava além deles...” (ARIÈS, 1981, p. 56).
Houve uma grande ruptura entre as atitudes mentais diante dos mortos da Antiguidade e as da Idade Média. Na Idade Média, os mortos eram confiados, ou antes, abandonados à igreja, e pouco importava o lugar exato de sua sepultura que, na maior parte das vezes, não era indicada nem por um monumento nem mesmo por uma simples inscrição. Por certo, desde o século XIV e, sobretudo, desde o século XVII, observa-se uma preocupação mais forte e mais freqüente em localizar a sepultura, e esta tendência testemunha um sentimento novo que se exprime cada vez mais, sem que se possa impor inteiramente. A visita devota ou melancólica ao túmulo de um ente querido era um ato desconhecido (ARIÈS, 2003, p. 74).
A segunda metade da Idade Média80 trouxe sutis modificações. Começa uma
fase em “que, pouco a pouco, darão um sentido dramático e pessoal à familiaridade
tradicional do homem com a morte” (ARIÈS, 2003, p. 46). A velha tradição de
sincronia estava associada a um destino socializado pela natureza humana como
condição natural da espécie, era o destino coletivo. Dentre as lentas mudanças
sociais, destaca-se o poder da Igreja. O cristianismo opera nessas modificações
destacando a individualidade de cada sujeito e a responsabilidade deste perante o
juízo final. Ocorre uma exaltação dos temas do Apocalipse81; temas macabros
envolvendo a decomposição cadavérica e a epígrafe funerária como uma marca
individualizada, personificada de cada sepultura.
A escatologia passa então a ter seu suporte de sustentação nos
ensinamentos e nas revelações apocalípticas. Essas falam da ressurreição dos
mortos, do grande juízo final e da separação entre justos e injustos. É ressaltada a
prestação de contas individual, segundo o merecimento de cada um; juízo inscrito no
livro da vida. Ariès denomina esse momento do homem frente à morte como a morte
de si mesmo. O isolamento pessoal com esse momento. Apesar de acompanhado,
morre-se sozinho e com o destino final ignorado. Michel Foucault retrata assim esse
período: 80 Começando a partir do século XI e XII. 81 A palavra “Apocalipse”, usada como título do último livro da Bíblia, vem do grego apokalupsis, significa ‘revelação daquilo que estava anteriormente escondido ou que era desconhecido’. Desvenda os grandes acontecimentos do encerramento da história, inclusive a revelação de Jesus Cristo em seu segundo advento (Bíblia anotada de Dr. C. I. SCOLFELD. 1983, p.1282).
72
A morte: um encontro com o desamparo
Até a segunda metade do século XV, ou mesmo um pouco depois, o tema da morte impera sozinho. O fim do homem e o fim dos tempos assumem o rosto das pestes e das guerras. O que domina a existência humana é este fim e esta ordem à qual ninguém escapa. A presença que é uma ameaça no interior mesmo do mundo é uma presença descarnada. E eis que nos últimos anos do século esta grande inquietude gira sobre si mesma: o desatino da loucura substitui a morte e a seriedade que a acompanha. Da descoberta desta necessidade, que fatalmente reduzia o homem a nada, passou-se à contemplação desdenhosa deste nada que é a própria existência (FOUCAULT, 2002, p. 16).
Nessa perspectiva da morte, como sendo a morte de si mesmo, inaugura-se
uma posição irreversível em relação à posição anterior com a resignação ao destino
coletivo, a morte domada. No código cristão “o salário do pecado é a morte e o dom
gratuito de Deus é a vida eterna” (Romanos, 6:23)82. Resta saber como estar dentro
da abrangência desta “graça”. A morte se transfere para uma posição temível.
Passa a ser um momento de enfrentamento e de ajustes de contas com o poder
divino. Do lugar de sono anterior, “os mortos dormem”83; na passagem do lugar de
descanso à espera da ressurreição, para o lugar do silêncio e da incerteza sobre a
punição ou absorção no julgamento cristão.
A morte gradativamente ganha novos sentidos, da exaltação dramática e
arrebatadora ao esvaziamento individual. O homem “já se ocupa menos da própria
morte e, assim, a morte romântica, retórica, é antes de tudo a morte do outro - o
outro cuja saudade e lembrança inspiram, nos séculos XIX e XX, o novo culto dos
túmulos e cemitérios” (ARIÈS, 2003, p. 64). Para Ariès, o luto exacerbado dessa
época está relacionado à dificuldade de aceitar a morte do outro. “Esse sentimento é
a origem do culto moderno dos túmulos e dos cemitérios” (ARIÈS, 2003, p. 72).
Essas mudanças já se fazem notar a partir do século XVI. Um novo prisma abrange
o tema da morte que passa a ser associada a um sentido erótico. Ariès observa que,
Do século XVI ao XVIII, cenas ou motivos inumeráveis, na arte e na literatura, associam a morte ao amor, Tanatos a Eros – temas erótico-macabros ou temas simplesmente mórbidos, que testemunham uma extrema complacência
82
Epístola de São Paulo aos Romanos (Bíblia Sagrada anotada por SCOFIELD, p. 1151). 83 Durante o primeiro milênio não se concebia a morte como a separação entre a alma e o corpo, mas um misterioso sono do ser indivisível. Repousava-se para esperar o dia da ressurreição. (ARIÈS, 2003, p. 190).
73
A morte: um encontro com o desamparo
para com os espetáculos da morte, do sofrimento, dos suplícios (ARÈIS, 2003, p. 65).
Esses temas se estendem de sua representação na literatura e na arte,
abrangendo também o cerne de figurações de aspecto religioso. Imagens místicas
de santos são representadas numa forte aproximação do êxtase sacro ao transe
amoroso84. Para Ariès,
Como o ato sexual, a morte é, a partir de então, cada vez mais acentuadamente considerada uma transgressão que arrebata o homem de sua vida cotidiana, de sua sociedade racional, de seu trabalho monótono, para submetê-lo a um paroxismo e lançá-lo, então, em um mundo irracional, violento e cruel. Como o ato sexual para o Marquês de Sade, a morte é uma ruptura (ARIÈS, 2003, p. 65).
O período de transição da Idade Média à Idade Moderna, logo após o ápice de
um mundo marcado pelas pestes, traz a marca macabra da presença da morte. Os
sentimentos mistos (a “mania” e o torpor melancólico) revelavam-se em danças
frenéticas e paradoxalmente macabras. A exemplo da conexão criada nesse período
entre a morte e o erotismo, encontra-se “a dança da morte (Dance macabre,
totentanz), que evoca o duplo terror da peste e do frenesi da dança” (SCLIAR, 2003,
p. 98). A morte, assim, associada ao erótico, ganha conotação obscena, um tipo de
transgressão que atinge impiedosamente a humanidade.
É essa ruptura que vai marcar acentuadamente a maneira de lidar com a
morte a partir de então. “Essa noção de ruptura nasceu e se desenvolveu no mundo
das fantasias eróticas. Passará ao mundo dos fatos reais e ocorridos” (ARIÈS, 2003,
p. 66). Dessa feita, houve uma sublimação e os conteúdos eróticos ficaram
subjugados à beleza. “A morte não será desejável, como nos romances macabros,
mas sim admirável por sua beleza: é a morte que chamaremos de romântica”
(ARIÈS, 2003, p. 66). Essa posição devolve à morte o cerimonial ritualístico de
passagem acompanhado pelos parentes e amigos. A diferença é que ela não é mais
84 É um forte exemplo dessa representação a imagem das duas santas romanas, Santa Tereza e Santa Ludovica Albertoni, feitas por Bernini. Estas são representadas no momento em que são enlevadas pela união mística com Deus, mas seu êxtase mortal tem toda a aparência deleitada e cruel da excitação amorosa (ARIÈS, 2003, p. 147).
74
A morte: um encontro com o desamparo
banalizada. Há muita comoção, choro, sofrimento e súplicas. A dor dos
acompanhantes revela a insatisfação com a separação do morto.
Em direção oposta ao horror, surge nessa época uma veneração romanceada
ao tema da morte. Um anelo ao paraíso perdido e reencontrado apenas com a
morte. Ela será inspiração ao diário de jovens sonhadores e de poetas. A tristeza
passa a ser cultuada e a literatura repleta de narrativas que idealizam relações de
amor impossíveis, culminando com a morte dos enamorados, e essa, como uma
promessa de continuidade juntos num outro mundo além, para sempre, imortalmente
juntos. É um momento de complacência para com a idéia da morte, pano de fundo
para o Romantismo. Segundo Ariès,
Seremos tentados a explicar esse transbordamento de afetividade macabra pela religião, a religião emotiva do catolicismo romântico e do pietismo, do metodismo protestante. Evidentemente, a religião não é estranha ao caso, mas o fascínio mórbido da morte exprime, sob uma forma religiosa, a sublimação das fantasias erótico-macabras do período precedente (ARIÈS, 2003, p. 68).
Paralelo a essa postura romântica, coabita uma evocação de morte realista e
verdadeira referente à presença do próprio cadáver. Ocorre um culto ao
“despojamento” e ao “esvaziamento” do corpo e da vida que se reflete em uma visão
de mundo permeada por um imaginário fantasioso, repleto de “ilusões romanescas”.
“A morte tornou-se nesse período – e somente nesse período – um objeto de
fascínio”. Convivem lado a lado duas vertentes, “relacionadas uma com a outra – a
do erotismo macabro e a do mórbido. Do século XVI ao XVIII, operou-se uma nova
aproximação, em nossa cultura ocidental, entre Tanatos e Eros” (ARIÈS, 2003, p.
147).
O contato com cadáveres e práticas de exumação, inclusive, fora do campo
da investigação da medicina, permearam o contraditório plano do sublime e do
profano na postura humana diante da morte. “A literatura erótica do século XVIII
aproximou duas transgressões da vida regular e ordenada da sociedade: o orgasmo
e a morte” (ARIÈS, 2003, p. 151). O Marquês de Sade é o extremo da representação
do “encadeamento de fatos erótico-macabros e mórbidos” (ARIÈS, 2003, p. 151).
Áries, citando o historiador Mario Praz, afirma que
75
A morte: um encontro com o desamparo
A nova sensibilidade erótica do século XVIIII e do começo do século XIX retirou a morte da vida habitual e lhe reconheceu um novo papel no domínio do imaginário, papel esse que persistirá através da literatura romântica até o surrealismo. Este deslocamento para o imaginário introduziu nas mentalidades uma distância que anteriormente não existia entre a morte e a vida cotidiana (PRAZ, apud ARIÈS, 2003, p.151).
Morin destaca que a segunda metade do século XIX vive uma crise de morte
que é também a crise da existência humana atrelada ao individualismo. A idéia da
morte desencadeia, em meio ao contexto social, o pano de fundo que revela a
inadaptação do homem às emergentes mudanças sociais. Os intelectuais
nostálgicos do romântico “mal do século”, “voltados para o tempo já findo das
cavalgadas, das catedrais, das paixões e da magia, obcecados pela morte e pela
vida efêmera, passam bruscamente ao otimismo revolucionário” (MORIN, 1997, p.
283). A crise desse período, mola mestra da ambivalência entre o passado próximo
e a inadaptação ao presente, remete um olhar profético ao futuro; um certo escape à
realidade momentânea, revelando-se principalmente nas produções da literatura e
filosofia. Para Morin,
Esta crise, nós a consideramos aqui essencialmente segundo suas incidências na literatura, na poesia, na filosofia, isto é, no setor da civilização não especializado, ou antes, especializado no geral. Por isso, a filosofia e a literatura são os barômetros do grau de angústia difusa, das rupturas subterrâneas de uma sociedade: elas refletem uma crise que é, ao mesmo tempo, a da humanidade burguesa e a de uma nova fase da ‘condição humana’. É sobre este último ponto que a literatura e filosofia conhecem a maior ilusão (MORIN, 1997, p. 282).
O Século XIX valorizou o apego aos jazigos de família, prática que se herda
até os dias atuais. Os cemitérios passam a ser lugares que exalam sentimento de
serenidade, última morada, espaço de paz eterna. O dia dos mortos, instituído como
o dia seguinte ao dia de todos os santos85, fica reservado como uma homenagem
póstuma, a ser anualmente praticada em memória dos entes queridos, separados,
perdidos para a morte. Essa prática de culto aos mortos modificou-se deste o
período pós-guerra, moderando os excessos de comoção. Tornou-se mais formal e
85 No dia de todos os santos as rezas não exigiam a presença de visita aos túmulos e o dia de finados ficava reservado a esse comparecimento festivo e igualmente nostálgico.
76
A morte: um encontro com o desamparo
metódico. A postura moderna frente à morte é sem preservação de dogmas e nem
crenças em intermediações sobrenaturais. É com distanciamento impregnado de
certa dose de materialismo. “O culto dos mortos tornou-se hoje a única manifestação
religiosa comum aos crentes e aos descrentes de todas as confissões”86 (MORIN,
1997, p. 217).
Desde o final do romantismo o tema da morte entra em um tempo de certo
silêncio. Distancia-se da cena familiar e adentra o espaço coletivo dos hospitais e
casas de repouso. Uma mudança nesses cuidados finais ao moribundo, é que
médicos e familiares tentam dissimular a verdade da gravidade ao enfermo. “O novo
costume exige que ele morra na ignorância de sua morte. Já não é apenas um
hábito ingenuamente introduzido nos costumes. Tornou-se uma regra moral”
(ARIÈS, 2003, p. 235). A morte volta a confrontar o humano com sua verdade
individualizada. A angústia se faz presente a esse encontro e denuncia a solidão
existencial da breve efemeridade da vida.
A intolerância à perda e a dificuldade em elaborar esse luto, entre outras, são
as principais causas dessa fase de negação da morte. O avanço da ciência médica
contribuiu, pois prolonga a vida, e o enfermo, necessariamente, não é mais um
moribundo à espera da hora funesta. E, ainda que seja assim, esse momento pode
ser prolongado pelos efeitos terapêuticos e medicamentosos; acendendo as
esperanças de uma provável cura e “engodo” da morte. Cria-se um novo modelo e
estilo de morte. Ela deixa de ser pública e passa a ser discreta como uma forma de
dignidade. Com menos romance e maior racionalidade.
A equipe médica poupa aos doentes o aviso da proximidade da morte, pelas
dificuldades pessoais em se perceberem envolvidos na cadeia de reações
emocionais desencadeada pela família, ou pelo próprio doente87. “Ousar falar da
morte, admiti-la nas relações sociais, já não é como antigamente; permanecer no
quotidiano é provocar uma situação excepcional, exorbitante e sempre dramática”
(ARIÈS, 2003, p. 241). A Era Moderna priva-se diante da morte, desumaniza essa
realidade. Espera-se, da parte do doente, que haja resignação e, do lado dos
sobreviventes, um consolo rápido e sem exasperação. Inclusive é considerado um
privilégio morrer sem se dar conta da emergência da morte.
86 Essa vertente de contato com a morte tem origem no Iluminismo e desenvolveu-se em meio às técnicas da sociedade industrial, que não favoreceu as expressões religiosas (ARIÈS. 2003, p. 217). 87 O esperado é que o doente seja resignado, discreto e não tente fazer trocas emocionais com sua condição de “quase morte”. Que possa falar sem expressar e nem demandar reações emotivas.
77
A morte: um encontro com o desamparo
A vivência com a morte se veste de outras roupagens, para mascarar sua
funesta realidade. A toalete fúnebre reveste-se do sentido literal de maquiar os
traços mórbidos impregnados no corpo inerte. Herança da época romântica, só que
em outra vertente, ali se admirava “a beleza original que a morte impõe ao rosto
humano, e os últimos cuidados tinham por objetivo libertar essa beleza das
impurezas da agonia” (ARIÈS, 2003, p. 254). Na sociedade contemporânea é para
“mascarar as aparências da morte e conservar no corpo os ares familiares e alegres
da vida” (ARIÈS, 2003, p. 255).
O rito funerário exclui ainda a presença das crianças. A cerimônia passa a ser
considerada como causadora de traumas, pela dura realidade que expõe. No mundo
contemporâneo as crianças são cedo colocadas à cena sobre o amor e o
nascimento, cenas da vida, mas são deslocadas da verdade da morte. Quando
sentem a falta dos enfermos da família, ausentes do convívio por haverem sido
tragados pela morte, a informação dada não condiz com a veracidade dos fatos. A
ausência é justificada como uma viagem, referida a um bom lugar de descanso. É a
recusa de reconhecer a verdade necessária à perda, primeiro passo à elaboração do
luto.
O avanço do mundo contemporâneo, dadas as especificidades culturais,
talvez não permita se ter uma posição unificada da posição do homem diante da
morte, principalmente no que diz respeito às nuanças dos ritos funerários. No
entanto, quando se fala de estrutura humana, em sua relação com a efemeridade da
existência, algo de subjetivo, nesse sentido, universaliza e unifica o animal humano
em sua psique frente a essa questão: o enigma que vela o destino comum da
escatologia da morte.
Em nome desse enigma se erguem todos os ritos de passagem necessários a
esse ponto de ruptura. O mundo contemporâneo remete a morte ao campo supremo
do individualismo. “O conceito de morte não é a morte: ele é vazio como uma voz
oca” (MORIN, 1997, p. 281). É o ponto extremo que a angústia humana não
consegue nomear. “A morte, que corrói seu próprio conceito, vai então corroer os
outros conceitos, sapar os pontos de apoio de intelecto, demolir as verdades... Ela
vai corroer a própria vida” (MORIN, 1997, p. 281). Para Ariès,
78
A morte: um encontro com o desamparo
Existem duas maneiras de não pensar na morte: a nossa, a da nossa civilização tecnicista que recusa a morte e a interdita; e as das civilizações tradicionais, que não é uma recusa, mas impossibilidade de pensar intensamente na morte, porque ela está muito próxima e faz parte excessiva da vida cotidiana (ARIÈS, 1981, p. 24).
No mundo contemporâneo movido pelo espírito científico da racionalidade, o
não saber especificar sobre a morte impulsiona o humano a criar possibilidades de
saídas que sustentem seu desamparo frente a essa incógnita. Estimula a criar sua
própria escatologia e guiar-se por um credo que lhe responda por esse mal-estar.
Igualmente motiva a encontrar outras suplências, nas representações que a
criatividade favorece nas inúmeras vertentes de expressão da arte.
79
A morte: um encontro com o desamparo
MELANCOLIA: UMA FACE DA MORTE
• Considerações históricas sobre o tema da melancolia.
• A melancolia como objeto perdido: um encontro com a morte.
Morte na Alcova - 1895 - Edvard Munch – (1863-1944)
80
A morte: um encontro com o desamparo
2.2.1 Considerações históricas sobre o tema da melancolia.
Muitas são as melancolias deste mundo. A de Saul não é de Hamlet, a de Lamartine não é a de Musset. Talvez as nossas, leitor amigo, sejam diferentes uma da outra, e nesta variedade se pode dizer que está a graça do sentimento (Machado de Assis).
O tema da melancolia88 surge como parte de estudo no corpus desse trabalho
motivado pela recorrência de seu aparecimento nos textos machadianos.
Essencialmente por ser um recurso de linguagem para expressar o vazio
apresentado pelo ego diante de uma perda, seja essa real ou simbólica, seja
definitiva ou parcial. Ou seja, é um recurso de linguagem para expressar um
semblante da morte quando o ego se recusa a investir a libido em um novo objeto e
fica preso ao que foi perdido, morto junto a esse. Encontramos, assim, a melancolia
como uma representação constante nas mais diversas formas de expressões do
fazer humano e notoriamente no campo das artes, como um tema que não cessa em
se manifestar e, ao mesmo tempo, não se esgota ao se revelar.
A melancolia é expressão de um afeto antigo, muito amplo e complexo. É
parte do existir humano desde remotas épocas. Seu registro é encontrado desde os
primórdios dos escritos da Antigüidade. Homero descreve o sofrimento melancólico
de Belerofonte, que, injustiçado pela ira dos deuses, é condenado a vagar solitário
na planície de Aleão. (Canto VI da Ilíada, versos 200-203). Jean Starobinski
acrescenta que Homero é o primeiro a revelar miticamente o sofrimento melancólico
humano advindo da ira da divindade, mas é, também, o primeiro a registrar a busca
de um alívio proveniente do poder do medicamento (du pharmakon) pela criação da
técnica humana (STAROBINSKI, 2005, p. 39)89.
88 O termo melancolia deriva do grego melas (negro) e kholé (bile). É objeto de interesse da filosofia, literatura, medicina, psiquiatria, psicanálise (ROUDINESCO, 1998, p. 504). No campo da psicanálise o termo foi utilizado por Freud também no plural (melancolias). Recebeu, a partir dos estudos do psiquiatra suíço Adolf Meyer, a denominação de depressão. Melancolia e depressão podem coexistir como sinônimos, mas podem também receber tratamento diferenciado. A melancolia está vinculada a uma manifestação psicótica e a depressão, a uma afecção de natureza neurótica. A melancolia estaria aplicada às formas de maior gravidade (PERES, 1996, p. 12). 89
Magazine Littéraire, Out-Nov 2005.
81
A morte: um encontro com o desamparo
Na mesma vertente, o texto bíblico, no Antigo Testamento90, narra, entre a
história dos Reis, a história de Saul, primeiro rei de Israel (10º século a.C.). Destaca
seu constante conflito entre o papel político e os preceitos exigentes da religião,
ocasionando freqüentes crises de angústias; explicadas como possessão de “um
mau espírito”, enviado por Deus para puni-lo das desobediências. O rei Saul era
libertado temporariamente dessas crises, pelo som da cítara do então pastor de
ovelhas Davi. O rei se torna dependente desse recorrente resultado terapeutizante
da música, ficando esses acessos de possessões conhecidos como a melancolia do
rei (I Samuel 16:14 e 23, p. 314).
Dando continuidade à monarquia de Israel, Davi será o sucessor do trono de
Saul. Ao rei Davi é atribuída a autoria do livro dos Salmos91 bíblicos. Em grande
parte, esses descrevem a dor do salmista que compõe versos, toca cítara e canta
salmos na tentativa de aplacar a angústia de sua tristeza sem definição; questiona-
se sem encontrar a solução: “Por que estás abatida, ó minha alma? Por que te
perturbas dentro em mim? [...] Sinto abatida dentro em mim a minha alma...”
(Salmos 42:5; 42:11; 43:5, p. 580-581).
Independentemente do contexto e da época, encontram-se inúmeras
referências ao sofrimento humano, expresso através do afeto da melancolia, tanto
quanto a dificuldade em definir-se este estado de sentimento de maneira satisfatória.
Muitas são as linhas de pensamento elaboradas na tentativa de encontrar a resposta
adequada que possa desmistificar esse “mal-estar” do devir humano, quais sejam,
explicá-lo pelo viés da ciência, ou representá-lo no campo das artes. Do lado da
ciência, ocorre a tentativa de sanar “o mal” com medidas terapêuticas curativas,
obturando possibilidades criativas de expressões subjetivas. Em um sentido oposto,
a arte expõe o afeto melancólico e constrói um discurso singular, originando belas e
profundas produções. “Dizer o indizível foi sempre a luta dos poetas, por isso mesmo
não há como falar de melancolia sem presentificar aquele que, confrontando a
radicalidade da perda, encontra um caminho no ato criador” (PERES, 1996, p. 12).
Representando o saber científico, o médico grego Hipócrates (460-377 a. C.)
foi o primeiro a preocupar-se em formalizar uma definição para o termo. Ele 90 Já referimos antes o valor da Bíblia como legado do povo hebreu para o mundo cristão. O Antigo Testamento (anterior ao nascimento de Jesus de Cristo) é uma coletânea de relatos da história do povo hebreu, contando em cinco grandes blocos de temas (Lei, História, Poesia, Sabedoria, Profecias) contendo preceitos éticos para a vida. 91 Salmos é um título derivado do grego e indica um poema cantado com acompanhamento de instrumentos musicais.
82
A morte: um encontro com o desamparo
considerou melancolia “quando um estado de tristeza e medo persiste por longa
duração” (Aforismos, apud STAROBINSK, 2005, p. 40). Enquadrou o estado da
melancolia como estado patológico, conferindo-lhe um lugar na nosografia médica. A
origem desta tinha relação com a bile negra, ou melhor, com o excesso de bile negra
(Melaina kole) circulante no organismo. A teoria de Hipócrates refere-se aos quatro
líquidos, presentes no organismo, para ele determinantes dos humores, (o sangue, a
bile amarela, a bile negra e a fleuma) e dos respectivos temperamentos (Sangüíneo,
Colérico, Melancólico e Fleumático)92. O equilíbrio entre tais componentes
determinava a vida saudável, assim como o seu desequilíbrio o estado patológico.
Quando esse desequilíbrio ocorria com a bile negra, a conseqüência era o
surgimento do estado melancólico (STAROBINSK, 2005, p. 40).
Dos temperamentos, o melancólico era o mais patológico, aquele mais obviamente associado à doença. Hipocrates diferenciava a melancolia endógena, em que, sem razão aparente, a pessoa torna-se taciturna e busca a solidão, da melancolia exógena, resultante de um trauma externo. A melancolia, sintetizou o ‘Pai da Medicina’, é a perda do amor pela vida, uma situação na qual a pessoa aspira à morte como se fosse uma benção (SCLIAR, 2003, p. 70, grifo nosso)
A teoria de Hipócrates teve boa sustentação e seguidores que a
aprofundaram. Essa teoria foi dominante na Antiguidade e seus resquícios persistem
ao longo da história. O médico Galeno de Pérgamo (a.C. 129-200) dá seguimento ao
pensamento de Hipócrates acrescendo a essa teoria uma localização da melancolia
na organicidade do corpo e, dependendo desta localização, estabelecendo sua
forma de manifestação (SCLIAR, 2003, p. 43). Galeno “acreditava que o cérebro
regulava as faculdades racionais, tais como o julgamento, a imaginação, a memória,
mas as emoções seriam controladas pelo coração e pelo fígado” (SCLIAR, 2003, p.
71).
92‘O sangue imita o ar, aumenta na primavera e impera na infância. A bile amarela imita o fogo, aumenta no verão e impera na adolescência. A melancolia ou bile negra imita a terra, aumenta no outono e impera na maturidade, A fleuma imita a água, aumenta no inverno e reina na velhice’ (apud. ROUDINESCO, 1998, p. 506). Doença da maturidade, do outono e da terra, a melancolia também pode diluir-se nos outros humores e caminhar de mãos dadas com a alegria e o riso (o sangue), a inércia (a fleuma) e o furor (a bile amarela): através dessas misturas, ela afirmaria sua presença em todas as formas de expressão humana, sendo essa a origem da alternância.
83
A morte: um encontro com o desamparo
As respostas oferecidas pelo saber da medicina antiga93 mobilizaram a
reflexão sobre o estatuto patológico da melancolia. A filosofia trouxe grandes
contribuições sobre a maneira de se ver e interpretar esta “doença” principalmente
por questionar esse estatuto. “Platão distinguia duas formas de loucura: uma
resultante de doença, outra de influências divinas; não ocorreria o mesmo com a
melancolia?” (SCLIAR, 2003, p. 70). Uma grande contribuição mobilizada por essa
questão é marcadamente a de Aristóteles (384-322 a.C.). Considerando a
manifestação da bile negra e comparando-a à natureza do vinho como “modeladores
do caráter” (PIGEAUD, 1998, p. 13), Aristóteles formula o Problema XXX, “Por que
razão todos os que foram homens de exceção, no que concerne à filosofia, à ciência
do estado, à poesia ou às artes, são manifestadamente melancólicos?”
(ARISTÓTELES, 1998, p. 81)94. Scliar faz as seguintes observações da pergunta do
problema XXX,
Nessa pergunta está implícita uma importante diferenciação: seres humanos normais podem adoecer de melancolia, mas há uma melancolia natural que torna o seu portador genial ‘normalmente anormal’. O gênio surgiria pela ação da própria bile negra, que, como vinho, teria poderosa ação sobre a mente. O temperamento melancólico é um temperamento metafórico, propenso, pois, à criação – na filosofia, na poesia, nas artes. Mas os melancólicos pagam um preço: esse talento os arrebata, os conduz pela vida como um ‘barco sem lastro’, na expressão de Sócrates (SCLIAR, 2003, p. 70).
Piageaud ressalta na mesma questão formulada por Aristóteles que,
O problema é saber se existe uma norma nessa substância composta e instável. A questão é capital, pois se trata de estabelecer que o melancólico não é necessariamente um doente, e que existe, como explicitaremos, uma saúde do melancólico. É isso que explica, na segunda metade do texto, a reflexão sobre o homalon, ou seja, a constância, e o anômalon, a inconstância. A questão é mostrar que existe uma constância da inconstância (PIAGEAUD, 1998, p. 20).
93 Os tratamentos propostos na medicina da Antigüidade para a melancolia eram feitos por sangrias, purga, dietas, banhos gelados e até cirurgias cranianas. Dependia da avaliação do caso e das tentativas anteriores não apresentarem êxito. 94 Aristóteles – O homem e gênio e a melancolia O Problema XXX, I. Tradução do Grego, apresentação e notas Jackie Piageaud. Tradução: Alexei Bueno.
84
A morte: um encontro com o desamparo
A Antiguidade deixa, como herança do confronto entre médicos e filósofos, a
investigação de questões que permeiam o campo do somático e do psíquico, a
busca por localizar onde se situa, no corpo, o incômodo revelado pelas “doenças da
alma”. A mola propulsora levantada por essa questão é para situar os limites entre
normalidade e anormalidade. Para Kristeva,
Os dualismos triunfam desde a Antiguidade, uns pensados como dinâmicas de fluxo complementares, outros como antinomias problemáticas. Para além dos avanços científicos que buscam reabsorvê-la no soma, a psique, cuja localização se procura (no coração? nos humores? no cérebro?), permanece como um enigma irredutível. Estrutura de sentido, representa as ligações do ser falante com o outro. Por isso obtém um valor simultaneamente terapêutico e moral. Ao garantir a responsabilidade do indivíduo animado em relação a seu corpo, ela o subtrai à fatalidade biológica e o considera como corpo falante (KRISTEVA, 2002, p. 10).
O pensamento de Aristóteles associa o saber médico e o conhecimento
mitológico a suas novas formulações. Acrescentando que o melancólico não o é, por
ser acometido pela doença, mas é por sua natureza melancólica. As proposições
aristotélicas modificaram a visão patológica da melancolia. Conferiram a essa um
outro estatuto, um lugar de dualidade entre a contemplação e a inquietação,
inclusive, como fator mobilizador à criação. Kristeva faz as seguintes formulações
sobre as contribuições de Aristóteles,
Aristóteles inova, extraindo a melancolia da patologia e situando-a na natureza, mas também e, sobretudo, fazendo-a decorrer do calor, considerado como princípio regulador do organismo, e da mesotes, interação controlada de energias opostas. [...] Aristóteles associa exposição científica e referências míticas, ligando a melancolia à espuma espermática e ao erotismo, e referindo-se explicitamente a Dionísio e a Afrodite. A melancolia que ele evoca não é uma doença do filósofo, mas sim sua própria natureza, o seu éthos. [...] Com Aristóteles, a melancolia, equilibrada pelo gênio, é co-extensiva à inquietação do homem no Ser (KRISTEVA, 1989, p. 14).
Aristóteles considerou a melancolia como condição necessária à inspiração,
como excedente de sensibilidade; condição de ser do artista e do filósofo. A visão
aristotélica oferece uma certa sacralização para o estado de melancolia. “O
85
A morte: um encontro com o desamparo
melancólico é essencialmente polimorfo”. Considerando essa afirmação
fundamental, Piageaud conclui que “Isto quer dizer que o melancólico tem em si,
como possíveis, todos os caracteres de todos os homens. O que esclarece
prodigiosamente, a idéia mesma da criatividade melancólica” (PIAGEAUD, 1998, p.
13).
Contribuindo com acréscimos às teorias de Hipócrates e Aristóteles, são
citados os nomes de Aulus Cornelius Celsius (25 a.C.), médico romano, e Rufus de
Éfeso (98-117). O primeiro propõe um tratamento à base de exposição à luz e o
segundo focaliza “dois tipos de melancolias – uma ‘congênita’, ou natural, outra
adquirida, sobretudo pela dieta” (SCLIAR, 2003, p. 71). Esse tipo de melancolia
conferia ao portador poderes proféticos. Mas, associados a esse poder, a marcante
e forte tristeza, além da incapacidade de acompanhar a velocidade da formulação
dos pensamentos (SCLIAR, 2003, p. 71).
Robert Burton (1577-1640) publica, em 1621, A anatomia da melancolia (the
Anatomy of Melancholy). Contextualiza o percurso histórico da melancolia na
Antigüidade clássica e propõe dois tipos de melancolia, que denominou de:
melancolia amorosa e a melancolia religiosa, essa última como sendo uma doença
mais moderna. Seguindo esta lógica de Burton, a divisão da “doença” abre espaço a
duas possibilidades de reflexão: a melancolia pode ser entendida afetando o corpo,
sendo preocupação da ciência médica, ou afetando a alma, sendo caso para
consolo e reflexão filosófica (VIANA, 1994, p. 32). O saber médico, desde sua
primeira formulação com Hipócrates e seus seguidores, até os dias atuais, tem
reservado um espaço à enigmática “doença” da melancolia. Peres considera que,
Depressão e melancolia encontram-se, portanto, no cerne da questão da doença mental questionando os limites da loucura. As diferentes maneiras de nominar, de definir limites, as tentativas de compreensão dos mecanismos, dos fatores etiológicos e programas de tratamento e cura nos dizem da dificuldade de poder responder às fortes questões com as quais a melancolia nos interroga (PERES, 1996, p. 13).
A Idade Média é marcadamente caracterizada pelo domínio do saber religioso
e por grande misticismo. A doutrina cristã entra num choque de dualidade: condena
a melancolia e a reduz à condição de pecado e afastamento de Deus, ao mesmo
tempo em que os monges medievais a cultivavam. Na sua primeira fase surge o
86
A morte: um encontro com o desamparo
termo “acedia ou acídia” como sinônimo de melancolia. O termo está relacionado à
possessão por espírito maligno. “O chamado demônio do meio-dia. O demônio está
associado a tentação, a pecado: acedia era atribuída à solidão, mas também às
tentações da carne” (SCLIAR, 2003, p. 74). Essa vertente da melancolia está
associada à doença que acometia os monges em sua clausura e profunda solidão.
A escola médica de Salerno, destaque na Idade Média, tem como seu
principal representante Constatinus Africanus95. Sua teoria prioriza a doutrina dos
temperamentos, fundamentada ainda na teoria dos humores. A melancolia é vista
como resultado das relações excedentes entre o elemento seco e frio dentro do
organismo. O melancólico era identificado como alguém avarento, medroso, desleal
e de cor terrosa (PERES, 1996, p. 19). Constatinus também associa a melancolia ao
“mal de amor”, pela impossibilidade de se ter a correspondência do amor almejado,
ou pelo amor ser idealizado acima da realidade possível de atingir.
Esse período medieval faz um retorno ao pensamento cosmológico da
Antiguidade e associa a melancolia à influência de Saturno, planeta do espírito e do
pensamento. A influência astral de Saturno governa o humor melancólico. A teoria
dos humores associa-se à astrologia através da ciência árabe e seu principal
representante é Abû Ma Sar (KRISTEVA, 1989, p. 15).
Os autores do século IX estabeleceram também a correlação astrológica entre humores e planetas. O humor sangüíneo corresponderia a Júpiter, o colérico a Marte, deus da guerra, o fleumático a Vênus ou à Lua. A melancolia estaria sob o signo de Saturno, planeta distante, de lenta revolução. Como também tinha correspondência no chumbo, aqueles que nasciam sob seu signo eram lentos, pesados. Ou seja: um astro pouco auspicioso. No corpo humano, Saturno governava o baço, sede da bile negra. A associação entre Saturno e melancolia era inevitável. Até hoje o qualitativo ‘soturno’, corruptela de Saturno, é sinônimo de melancólico (SCLIAR, 2003, p. 74).
A influência de Saturno no temperamento melancólico é aprofundada nos
estudos de Panofsky e Saxl. Segundo eles, Saturno lança uma influência ambígua.
Essa influência só é exercida sobre pessoas extraordinárias, “divinos ou bestiais”,
95 Ficou conhecido principalmente pelas traduções de Hipócrates e Galeno, do árabe para o latim, como também de outros grandes médicos e pensadores mulçumanos e judeus. Introduziu no ocidente a obra do médico de Bagdá Ishaq ibn Imran, intitulada De melancolia [Sobre Melancolia] (SCLIAR, 2003, p. 73).
87
A morte: um encontro com o desamparo
mas nunca comuns ou vulgares. O mito de Cronos96 retrata a manifestação de
Saturno como representação de deus dos extremos. Essa concepção prolonga-se
até a renascença (PERES, 1996, p. 21). Da dialética do quente e frio, seco e úmido
reinantes, na era medieval, uma nova dualidade é acrescida pela influência de
Saturno.
No Renascentismo a dualidade em torno do entendimento da melancolia
prossegue, através de uma analogia entre vulgar e sublime, corpo e alma. A obra de
Marsilius Ficinus, Da vita Triplice, tem importância marcada neste período. Traz
como tema central o engrandecimento da alma do melancólico, e reúne em sua obra
o pensamento das tradições anteriores, (hipocrática, platônica, astrológica),
culminando no reaparecimento da tese aristotélica da relação entre o gênio e a
loucura (PERES, 1996, p. 23). O nome do médico suíço Paracelso97 também é
marcante entre os teóricos dessa época. “Suas concepções médicas originais, e,
não raro, fantasiosas, eram uma mistura de magia, cabala cristã e filosofia
neoplatônica” (SCLIAR, 2003, p. 76). Essas práticas estão associadas às relações
hierárquicas na cadeia universal dos seres inanimados (metais, pedras e os quatro
elementos), os animados, (vegetais, animais, humanos) e os espirituais (anjos e
Deus).
Ao conceito da cadeia universal dos seres acrescentava-se a doutrina das correspondências. Os renascentistas viam o ser humano como um microcosmo que refletia a estrutura do macrocosmo e com esse tinha relação: os quatro humores correspondiam aos quatro elementos, os planetas influenciariam órgãos específicos. Paracelso acreditava que a doença era o resultado da falência do Archeus, uma força vital que tinha como função manter unidos os elementos constituintes do organismo, elementos esses provindos da cadeia universal dos seres (SCLIAR, 2003, p. 78).
96 Cronos (Khrónos), “Tempo personificado”, é o mais jovem filho de Úrano e Geia na linhagem dos Titãs. Pertence a primeira geração divina, anterior a Zeus e aos restantes deuses do Olimpo. Úrano tinha por hábito, ao nascerem os filhos, devolvê-los ao ventre materno (para não ser destronado por nenhum deles) Geia, então, resolveu libertá-los e pediu ajuda aos próprios filhos, somente Cronos aceitou. E em vingança corta os testículos do pai. O esperma de Úrano derramado ao mar, originou uma outra linhagem de genealogia e deuses. Cronos substitui o pai, casa com Réia e passa a devorar todos os filhos, para não ser também destronado. É enganado por Réia, que poupa a vida do filho caçula (Zeus) substituindo-o por uma pedra. Ao crescer, Zeus destrona o pai e passa a instaurar uma nova Era (BRANDÃO, 2000, p. 252). 97Autodenominação de Philippus Aureolus Theopharastus Bombastus Von Hohenheim, comparando-se a Celso, grande médico romano da Antiguidade.
88
A morte: um encontro com o desamparo
A melancolia, na visão do médico francês Jacques Ferrand, comunga com a
vertente de um outro pensamento médico-filosófico dessa época. O amor
compreendido na dupla vertente entre pudico e impudico ou espiritual e carnal. E
ainda resultando da queima dos humores, o amor carnal, gerador da luxúria,
culminava na doença da erotomania. O saber médico preocupava-se com as
manifestações das doenças, especulando “sobre suas causas mais remotas,
incluindo nessa discussão tópicos como astrologia e quiromancia, filtros do amor,
afrodisíacos, feitiços e bruxaria” (SCLIAR, 2003, p. 80). Em sentido oposto ao de
reclusão e de isolamento, a melancolia também pode, num ímpeto de furor, revelar
um comportamento frenético e maníaco.
A época Renascentista foi mais tolerante com a maneira de perceber a idéia
de pecado e oferecer uma possibilidade de expiação. A acédia dos monges
modificou seu nome, transformando-se em tristeza mundana ou na tristeza virtuosa,
essa última marcando o caminho do arrependimento e conseqüente salvação. A
queda do domínio do papel da igreja no pensamento do contexto dessa época deixa
o estudo da melancolia mais à vontade no meio médico e no dos pensadores
seculares. Inclusive, “o conceito de melancolia era mais filosófico do que médico –
aliás, à época eram tênues as fronteiras entre medicina e filosofia” (SCLIAR, 2003,
p. 78).
O movimento de Reforma98 da igreja opera profundas mudanças entre o
conceito de fé e a forma de externá-la, entre a fé e a prática da caridade. As idéias
de Martin Lutero (1483-1546) são rígidas e estabelece novos valores morais, dos
quais se estabelecem novas condutas e o despertar de culpas entre o idealizar e o
efetivar. Este impasse criou um ambiente favorável para o cultivo da tristeza, para a
proliferação da melancolia.
A Contra-Reforma99 tenta corrigir esse impasse, mas o movimento luterano se
opõe mais incisivamente. Esta falta de vinculação entre a fé (sentimento) e as obras
(prática social), entre a vida terrena e o almejado paraíso estabelece um grande
vazio; estabelece uma distância entre o homem e seu próprio ser. Como afirma
98 A Reforma foi um movimento iniciado com a publicação de 95 teses de Matinho Lutero em 1517 (inicialmente na porta da igreja do Castelo de Wittenberg). Nelas ele condenava os abusos do sistema de indulgências e desafiava a igreja par a um debate sobre o assunto. Entre 1518 e 1521, ele foi forçado a renegar as teses ou admitir a separação do romanismo. Ao escolher pela separação fundou o movimento conhecido e sobrevivente até os dias atuais como Protestantismo (CAIRNS, 1990, p. 232). 99 Reação da Igreja Católica Romana ao movimento Protestante iniciado com Martinho Lutero.
89
A morte: um encontro com o desamparo
Peres, “O barroco será herdeiro deste estado d’alma melancólico: a melancolia
domina o espírito do tempo, tempo de auto-absorção, ensimesmamento, penetração
em um abismo sem fundo” (PERES, 1996, p. 24). O excesso de memória
armazenada pelo temperamento melancólico era também responsável pelo querer
voltar-se para si mesmo e o retirar-se do convívio exterior; um isolamento pelo
excesso de elevação intelectual.
A Contra-Reforma não foi capaz de desmobilizar o movimento revolucionário
no âmbito da fé, criado pela Reforma Luterana. As duas grandes vertentes da
religião cristã dividem espaço na já conturbada herança, do medo do inferno,
deixada pelo medievalismo. A melancolia ganha farto campo para desenvolver-se na
concepção pessimista de mundo pregada pelo Puritanismo100 marcado pelo pecado
e necessidade de expiação. Scliar acrescenta que
Pessoas simples podiam se agarrar à moralidade do cotidiano, á honestidade das pequenas coisas – mas, para o intelectual, isto não neutralizava o absurdo da existência. A idéia da morte enchia o intelecto de profundo terror, de luto por um mundo esvaziado e transformado em máscara – máscara que a dramaturgia recupera. Diante desse mundo queda-se o intelectual pensativo – e enlutado. Como o cristianismo medieval, o barroco exalta o tormento da carne, a idéia da Morte, ainda que em parte neutralizada pelo luxo e pela pompa (SCLIAR, 2003, p. 92).
A melancolia foi “suportada” como condição do desenvolvimento intelectual e
o conhecimento buscado com afinco. Também foi aceita para quem podia patrocinar
a própria clausura como sinônimo de absorção de aprendizagem. O acesso a esse
saber não atinge todas as classes. Em contrapartida ocorre também uma
supervalorização da atividade produtiva; o trabalho como possibilidade de acúmulo e
enriquecimento pessoal. A ética protestante dita um perfil de homem produtivo como
o ideal do comportamento cristão. E esse, favorece o advento de uma nova classe
social. “Os horizontes, tanto científicos e culturais como geográficos se alargam.
Essa atividade não raro se torna frenética, maníaca – caracterizando uma
bipolaridade social que depois se configurará como regra (SCLIAR, 2003, p. 97).
100 O Puritanismo é uma das vertentes de denominação protestante advindas da Reforma. (CARNS,1990, p. 266).
90
A morte: um encontro com o desamparo
A bipolaridade presente nesse novo contexto social não tolerou a bipolaridade
presente também (em alguns casos) na manifestação melancólica. A Antiguidade
lidou bem com essas manifestações maníacas, inserindo-as nos cultos pagãos. A
nova ética cristã tenta incluí-la até o limite possível da alegria pelo êxtase da fé. É
tempo de preocupações com a criação de festas religiosas que se situem nesse
duplo, um contraponto às tristezas do cotidiano.
O crescente mercantilismo desse novo contexto social estremece os limites
do suporte para acolher as manifestações maníacas da melancolia. As nuanças
bipolares tendem a uma definição patológica. As idéias delirantes são isoladas e os
sintomas configuram uma tendência a exclusão. “Antes de a loucura ser
denominada, por volta da metade do século VXII, antes que se ressuscitem, em seu
favor, velhos ritos, ela tinha estado ligada, obstinadamente, a todas as experiências
maiores da Renascença” (FOUCAULT, 2002, p. 08).
A ascensão da loucura ao horizonte da Renascença é percebida, de início, através da ruína do simbolismo gótico: como se este mundo, onde a rede de significações espirituais era tão apertada, começasse a se embaralhar, deixando aparecer figuras cujo sentido só se deixa apreender sob as espécies do insano. As formas góticas subsistem ainda durante algum tempo, mas, aos poucos, tornam-se silenciosas, deixam de falar, de lembrar, de ensinar, e nada manifestam (fora de toda linguagem possível, mas, no entanto na familiaridade do olhar) além de sua presença fantástica. Liberada da sabedoria e da lição que a ordenavam, a imagem começa a gravitar ao redor de sua própria loucura (FOUCAULT, 2002, p. 18).
A grande contribuição de Foucault com a História da loucura resume os
pensamentos dos séculos XVI, XVII e XVIII. Identifica a intolerância com a figura do
melancólico ou do louco, advinda das transformações que colocam o ser humano
frente ao seu desamparo diante da morte. A loucura é a forma irônica de se rir diante
do horror da morte. Pois “o que existe no riso do louco é que ele ri antes do riso da
morte; e pressagiando o macabro, o insano o desarma” (FOUCAULT, 2002, p. 16).
Associa assim, a questão do tratamento dado para a loucura, com as modificações
individuais internas de não aceitação da morte. “O desatino da loucura substitui a
morte e a seriedade que a acompanha” [...] “a loucura é o já-está-aí da morte”
(FOUCAULT, 2002, p. 16).
91
A morte: um encontro com o desamparo
A substituição do tema da morte pelo da loucura não marca uma ruptura, mas sim uma virada no interior da mesma inquietude. Trata-se ainda do vazio da existência, mas esse vazio não é mais reconhecido como termo exterior e final, simultaneamente ameaça e conclusão; ele é sentido do interior, como forma contínua e constante da existência. E enquanto outrora a loucura dos homens consistia apenas em ver que o termo da morte se aproximava, enquanto era necessário trazê-los de volta à consciência através do espetáculo da morte, agora a sabedoria consistirá em denunciar a loucura por toda parte, em ensinar aos homens que eles não são mais que mortos, e que se o fim está próximo, é na medida em que a loucura universalizada formará uma só e mesma entidade com a própria morte (FOUCAULT, 2002, p. 16).
Até o século XVII o tema da melancolia esteve ainda compreendido sob o
prisma da teoria dos quatro humores e suas qualidades essenciais. A discussão vai
acontecer na dualidade da transmissão das qualidades do corpo para a alma e na
análise deste conflito. O pensamento Clássico, com Descartes, problematiza a
dúvida buscando encontrar a Razão. É o predomínio da Racionalidade que será a
vertente de pensamento dominador nesse período. Motivo suficiente e aceitável para
a loucura passar a ser exilada e sair do convívio cotidiano.
A dúvida de Descartes desfaz os encantos dos sentidos, atravessa as paisagens dos sonhos, sempre guiada pela luz das coisas verdadeiras; mas ele bane a loucura em nome daquele que duvida, e que não pode desatinar mais do que pode pensar ou ser (FOUCAULT, 2002, p. 47).
Assim como o mundo Medieval isolou os leprosos, o mundo Clássico internou
os loucos. No entanto, “o gesto que aprisiona não é mais simples: também ele tem
significações políticas, sociais, religiosas, econômicas, morais. E que dizem respeito
provavelmente a certas estruturas essenciais do mundo clássico em seu conjunto”
(FOUCAULT, 2002, p. 53). A relação humana com a loucura não comporta mais a
subjetividade do contexto familiar e comunitário mais próximo. É também uma
questão de dimensão (principalmente) econômica que reflete no contexto social;
resvala nesse misto entre a subjetividade e a objetividade racional. Assim sendo,
carece de respostas precisas que não ponham em “Dúvida” a “Razão” reinante.
92
A morte: um encontro com o desamparo
A Não-Razão do século VXI constituía uma espécie de ameaça aberta cujos perigos podiam sempre, pelo menos de direito, comprometer as relações da subjetividade e da verdade. O percurso da dúvida cartesiana parece testemunhar que no século VXII esse perigo está conjurado e que a loucura foi colocada fora do domínio no qual o sujeito detém seus direitos à verdade: domínio este, para o pensamento clássico, é a própria razão. Doravante a loucura será exilada. [...] Traça-se uma linha divisória que logo tornará impossível a experiência, tão familiar à Renascença, de uma Razão irrazoável, de um razoável desatino (FOUCAULT, 2002, p. 48, grifo nosso).
O século XVII marca o traço do destino da loucura, antes e depois do exílio.
Todo o estudo elaborado desse traço em diante está referido novamente ao campo
patológico. O sujeito melancólico é o louco estigmatizado por um diagnóstico médico
que (quase) não lhe deixa saída fora do campo da exclusão social. Com a
publicação De Anima Brutorum [1672], Thomas Willis101 (1621-1675) destaca o ciclo
mania-melancolia; defende que há uma relação íntima entre os dois ciclos, um
existindo em alternância com o outro como parte de um mesmo distúrbio. “É a Willis,
a seu espírito de observação, à pureza de sua percepção médica, que se atribui à
honra da ‘descoberta’ do ciclo maníaco-depressivo” (FOUCAULT, 2002, p. 273).
Um outro nome também de destaque nesse século é o de Anne Charles
Lorry. É quando pela primeira vez vai ser posta em dúvida a teoria dos humores, até
então, apenas sofrendo sutis modificações, não plenamente questionada. A nova
proposta inspira-se na teoria da irritabilidade de Albrecht Von Haller, e essa entende
a melancolia como uma doença nervosa. A explicação estaria associada ao
funcionamento das fibras nervosas no movimento interno de freqüência de
contração e relaxamento; o descompasso desse ritmo sendo também responsável
pela alternância do humor excitado ou apático da melancolia (LAMBOTTE, 1977, p.
28).
O século XVIII, herdeiro do asilo para doentes mentais, vai oportunizar o
crescimento das casas de internamento. Tanto quanto a tentativa de isolar os dados
dos sintomas esmiuçando e subdividindo por ordem classificatória cada
manifestação. As análises da doença dirigem-se também e cada vez mais para os
dados qualitativos expressos nos sentimentos de tristeza, solidão, amargura,
inibição. A dupla vertente bipolar da melancolia é reconhecida pela grande maioria
101 Willis considera que na fase melancólica o cérebro e o espírito ficam obscurecidos por alguma fumaça ou algum vapor espesso e na fase da mania daria um começo de incêndio (WILLIS, Opera II, apud FOUCAULT, 2002, p. 273).
93
A morte: um encontro com o desamparo
dos médicos, “no entanto, vários recusam-se a reconhecer numa e noutra duas
manifestações de uma única e mesma doença” (Apud. FOUCAULT, 2002, p. 274).
No século XIX, o estudo da melancolia se amplifica em meio à nosografia
médica, e ganha mais terminologias vinculadas à doença mental e caracterizadas
entre a divisão da psicose e da neurose. Com Jean-Étienne Esquirol (1772-1840)
recebeu o nome de Lipemania. Na contribuição de Jean-Pierre Farret, (1794-1870),
transformou-se em Loucura circular, dada a aproximação com a mania. Na
Alemanha, Emil Kraepelin é um nome de destaque. Seus estudos visam à
possibilidade de separar a melancolia da loucura maníaco-depressiva. Muitos outros
nomes podem ser destacados entre a ciência médica, principalmente, na Alemanha
e na França102 nesse século, porém, todos esses trabalhos estão em referência à
investigação que ampliem a nosografia médica.
Um grande número de autores, físicos ou médicos, sempre sublinhou a relação inversamente proporcional que une ou desune a alma e o corpo, segundo a problemática tradicional. Fazer trabalhar um às expensas do outro provoca na maioria das vezes um tipo de esgotamento nervoso para o que interessa a alma, próximo ao mesmo tempo da racionalização intelectual e da idéia fixa, e um tipo de esgotamento físico, para o que diz respeito ao corpo, próximo do estupor imbecil e do estado de inércia. Da teoria humoral dos antigos, a acedia dos místicos da Idade Média, considerada, sob a forma da preguiça, como um dos sete pecados capitais, até a explicação psicofísica dos alienistas do século XIX, é sempre do mesmo deslizamento que se trata, o humor ao órgão e à sua função quando ele se põe a trabalhar excessivamente, independentemente do resto do organismo (LAMBOTTE, 1997, p. 37).
No final desse século, conta-se ainda com uma nova contribuição com os
estudos psicanalíticos de Freud. Apesar de reconhecer as limitações e dificuldades
em conceituar-se satisfatoriamente a melancolia, a psicanálise, desde Freud, abrem-
se caminhos para uma nova visão da expressão desse estado afetivo. Pôde-se, a
partir de então, pensar-se a melancolia como uma possibilidade de resposta
estrutural da psique humana, frente a um objeto que falta.
102 Nomes de destaque citados na ciência médica desse período: G. Ballet; G. Gilles; Tourette; E. Mendel; A. Boettinger; F. Boissier; P. Maurice; P. Dubois; J. Jolly; M. Foster. Em todos os autores a melancolia está relativa a uma doença mental orgânica (LAMBOTTE, 1997, p. 36).
94
A morte: um encontro com o desamparo
2.2.2 A melancolia como objeto perdido: um encontro com a morte.
Bolero de Ravel
A alma cativa e obcecada enrola-se indefinidamente numa espiral de desejo e melancolia. Infinita, infinitamente... As mãos não tocam jamais o aéreo objeto, esquiva ondulação evanescente. Os olhos, magnetizados, escutam E no círculo ardente nossa vida para sempre está
[presa, está presa... Os tambores abafam a morte do Imperador. (Carlos Drummond)
Desde a antiguidade e até os dias atuais, as reações humanas diante de suas
perdas constituem-se objeto de estudo na medicina, motivo de reflexão para os
filósofos, inspiração para os poetas e escritores. A psicanálise se faz presente a
essas formulações e, a partir das teorias de Sigmund Freud, novas contribuições
vieram corroborar com as já existentes, abrindo mais possibilidades de leituras sobre
as manifestações e representações do afeto humano diante de suas perdas e os
mecanismos utilizados na tentativa de acalmar o “mal-estar”.
Na referência dos trabalhos que Freud denominou de publicações pré-
psicanalíticas encontramos as primeiras teorizações sobre a melancolia. A primeira
está referida ao que ele chamou de Um caso de cura pelo hipnotismo [1892-93]. Ao
narrar esse caso e isolar o diagnóstico, buscando o “mecanismo psíquico do
distúrbio”, Freud conclui que, além da histeria, haveria sinais de melancolia. Ele cita
em seu relato: “temos que supor a presença primária de uma tendência à depressão
e à diminuição da autoconfiança, tal como as encontramos muito desenvolvidas e
individualizadas na melancolia” (FREUD, [1892] 1990, p. 182). Destaca ainda as
idéias “antitéticas” preponderantes nesse caso, como referentes à possibilidade de
neurose depressiva.
95
A morte: um encontro com o desamparo
As demais referências sobre a melancolia, desse período, encontram-se nos
Extratos dos Documentos dirigidos a Wilhelm Fliess103 (1858-1928). Além dos
assuntos pessoais constantes na correspondência, Freud costumava fazer
acompanhar rascunhos de sua formalização teórica e dialogar seus
questionamentos acerca dessas com o dileto amigo. Desde o Rascunho ‘A’ [1892],
ele já se questiona sobre a etiologia da depressão e aponta algumas considerações,
dentre as quais a relação desta com a angústia. Sucessivamente nos Rascunhos ‘B’
[1893] ele destaca o aspecto das “idéias antitéticas” e o conflito gerado por essas;
no Rascunho ‘E’ [1894], a investigação da causa da angústia é associada a
questões da sexualidade.
No Rascunho ‘G’ [1895], documento dedicado à investigação específica da
melancolia, Freud esquematiza vários fatores para o desenvolvimento desta, quais
sejam:
(A) Existem notáveis correlações entre a melancolia e a anestesia [sexual]. (B) A melancolia se desenvolve como intensificação da neurastenia, através
da masturbação. (C) A melancolia surge numa combinação típica com a angústia intensa. (D) A forma típica e extrema da melancolia parece ser a forma hereditária
periódica ou cíclica (FREUD [1985] 1990, p. 282).
Ressalta a relação da melancolia com a sexualidade, a partir da “anestesia”
apresentada por esses pacientes, destacando as pacientes femininas. Apresenta
detalhadamente em um quadro gráfico o esquema do percurso pulsional e as
conclusões, a partir deste, do investimento da libido. E propõe, já nesse trabalho,
aspectos sobre a melancolia que serão mais bem discutidos em 1915 num texto
específico ao estudo da melancolia. Desde esse documento já considera a
correspondência de afeto entre a melancolia e o luto e a relação desses com o
desejo de recuperar algo que foi perdido. Associa essa perda a algo da ordem da
vida pulsional. Já rastreia “a idéia de que a melancolia consiste em luto por perda da
libido” (FREUD, [1895] 1990, p. 283). 103A correspondência completa de Freud para seu amigo mais íntimo, Fliess, data de 1887 a 1904. Corresponde a dezessete anos que coincidem com o nascimento da psicanálise e com a publicação de textos importantes que vão desde os Estudos sobre a histeria até O caso Dora. A própria correspondência constitui um importante documento para a psicanálise, haja vista que dela constam os sentimentos de Freud na intimidade no ato inaugural da teoria, tanto quanto ela é a própria teoria no passo a passo de sua primeira formulação (RIBEIRO, 1986, p. 01). Nota da tradutora in: Correspondência Completa de Freud a Fliess.
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A morte: um encontro com o desamparo
Ainda em documentos anexos à correspondência com Fliess, Freud continua
a dar mostras de sua constante inquietação em seqüência à investigação das
causas da melancolia. No Rascunho ‘N’ [1897], destaca a relação de ambigüidade
afetiva entre filhos e pais (sentimentos hostis versus compaixão) gerando culpa,
ficando a punição por conta dos sintomas de melancolia ou histeria. “[...] constitui
manifestação de luto uma pessoa acusar-se da morte deles (o que se conhece como
melancolia) ou punir-se numa forma histérica (por intermédio da idéia de retribuição)
com os mesmos estados (de doença) que eles tiveram” (FREUD, [1897] 1990, p.
352). Relaciona ainda a manifestação desses sintomas com idéias obsessivas.
Como é peculiar ao método freudiano de construção teórica, é da clínica que
surge o material para essa elaboração. Na seqüência dos estudos da histeria, a
melancolia aparece como uma referência à neurose de angústia, ou ainda vinculada
a algum dos casos da clínica da histeria como uma depressão melancólica. O tema
é retomado em 1910, em Breves escritos104, apresentados à Sociedade Psicanalítica
de Viena, falando acerca do suicídio entre estudantes secundaristas. Nas
observações finais do trabalho, Freud retoma a relação da melancolia ao trabalho de
luto e papel da libido em meio a essa elaboração, já referidas nos Rascunhos ‘G’ e
‘N’. Nessa ocasião, é assim que se refere à questão:
Podemos, eu acredito, apenas tomar como nosso ponto de partida a condição de melancolia, que nos é tão familiar clinicamente, e uma comparação entre ela e o afeto do luto. Os processos afetivos na melancolia, entretanto, e as vicissitudes experimentadas pela libido nessa condição nos são totalmente desconhecidos. Nem chegamos a uma compreensão psicanalítica do afeto crônico do luto. Deixamos em suspenso nosso julgamento até que a experiência tenha solucionado o problema (FREUD, [1910] 1990, p. 218).
Desde essas formulações iniciais sobre a melancolia, Freud já aponta a
diversidade clínica dentro da nosografia psiquiátrica e a dificuldade conceitual sobre
essa temática. Continua sua investigação considerando esses primeiros pontos
destacados, quais sejam: Primeiro, a estreita relação da melancolia com a angústia;
segundo, a questão ambivalente de amor e hostilidade parental e a resultante dessa
ambivalência, como motivadora de culpas, propiciando assim a aproximação da
104O título do “breve escrito” aqui referido é Contribuições para uma discussão acerca do suicídio. [1910].
97
A morte: um encontro com o desamparo
melancolia com sintomas obsessivos; terceiro, e principalmente, a reação do ego em
como lidar com a libido diante de uma perda.
O olhar de Freud para a dualidade humana é marcante em todo o percurso de
sua obra. Assim, tornou-se um modo característico de seu trabalho estudar sintomas
psíquicos, buscando um paralelo desses sintomas, dentro de um quadro patológico,
tanto quanto quando encontrados em situações consideradas normais. É dentro
dessa dinâmica que apresenta em 1915 um novo trabalho sobre a melancolia. Em
suas palavras: “Tendo os sonhos nos servido de protótipo das perturbações mentais
narcisistas na vida normal, tentaremos agora lançar alguma luz sobre a natureza da
melancolia, comparando-a com o afeto normal do luto” (FREUD, [1915] 1990, p.
275).
Nesse trabalho, Luto e Melancolia, Freud estuda a natureza da melancolia,
traçando o seu percurso em relação à natureza do luto, buscando as semelhanças e
as diferenças nelas existentes. Define o luto como um processo de afeto normal
marcado por reações específicas provocadas pela perda de um objeto, tomado
enquanto objeto de amor. Embora a melancolia também seja um processo reativo,
sofrido em função de uma perda objetal amorosa, este objeto não está claramente
delineado. O melancólico não sabe exatamente o que perdeu com o objeto, ou no
objeto, mesmo quando este é passível de identificação. A partir dessa premissa
freudiana pôde-se pensar a elaboração do luto em contraposição com sua não
elaboração, identificando-se esse processo105 como melancolia.
Até certo ponto, o conjunto de sinais e sintomas no luto e na melancolia é
semelhante: o desânimo profundo e penoso, a falta de interesse pelo mundo externo
e a perda da capacidade de amar. Entretanto, no luto, essas reações são
temporárias frente a uma perda permanente, assim como também é temporária a
perda da capacidade de adotar um novo objeto de desejo. Em contrapartida, na
melancolia, essas reações têm caráter praticamente permanente. A perda em
questão é de ordem narcísica, ficando comprometida a auto-estima. “No quadro
clínico da melancolia, a insatisfação com o ego constitui por motivos de ordem
moral, a característica mais marcante” (FREUD, [1915] 1990, p. 280).
A perda do objeto adquire caráter de perda do próprio eu, tamanha é a
identificação do eu com o objeto. O melancólico culpa-se por haver perdido seu
105 Esse “processo” está aqui referido como um traço de estrutura da formação psíquica (dentro da neurose ou da psicose) que diante de uma perda objetal resulte num quadro de melancolia.
98
A morte: um encontro com o desamparo
objeto de amor. Pela identificação, denigre a própria imagem com o objetivo de
atingir o outro. A ambivalência presente no melancólico o faz gravitar em torno da
culpa e auto-recriminação. Do ponto de vista do desejo, ele se sente culpado por ter,
paradoxalmente, desejado perder o objeto do seu amor.
Na perspectiva do luto é o mundo que se torna pobre e vazio; na melancolia,
é o próprio ego que se empobrece e esvazia-se. O melancólico se auto-recrimina
esperando punição. A libido esvaziada do seu ego não consegue se deslocar para
outro objeto, pois está identificada com o objeto perdido. “Assim a sombra do objeto
caiu sobre o ego, e este pôde, daí por diante, ser julgado por um agente especial,
como se fosse um objeto, o objeto abandonado” (FREUD, [1915] 1990, p. 281). Na
busca de reencontrar-se o melancólico encontra o vazio, encontra a morte no existir.
Freud compara a autotortura da melancolia e o gozo encontrado neste
sofrimento ao que acontece na neurose obsessiva. A tendência ao sadismo e o ódio
relacionado ao objeto retornam ao próprio eu do sujeito. Neste retorno da catexia
objetal, o sujeito pode tratar a si mesmo como um objeto, sendo capaz de direcionar
a si mesmo o ódio relacionado ao objeto. Essa regressão se faz presente, desde
uma escolha objetal narcísica. Para livrar-se do objeto, o sujeito pode até matar-se.
O objeto revela-se então mais potente que o ego, e o domina. “Dessa forma, uma
perda objetal se transformou numa perda do ego, e o conflito entre o ego e a pessoa
amada, numa separação entre a atividade crítica do ego e o ego enquanto alterado
pela identificação” (FREUD, [1915] 1990, p. 82).
O trabalho de luto é um trabalho normal na direção de elaborar a falta do que
foi perdido. As reações presentes fazem parte do processo de elaboração que o
teste de realidade vai expondo a cada momento. À medida que esse processo vai
sendo elaborado, a energia libidinal investida no objeto perdido vai ficando livre,
podendo ser reinvestida num novo objeto. Neste caso, o ego venceu o objeto, usou
os dispositivos do eu para eliminar as conseqüências de suas perdas objetais.
A melancolia, embora possa em alguns momentos confundir-se com o
trabalho do luto, por alguns traços característicos, contém algo a mais do que o luto
normal: a relação com o objeto no conflito da ambivalência amor-ódio ao objeto
perdido. O teste de realidade não é suficiente para impor a elaboração da perda de
maneira salutar, dada também a dificuldade de o sujeito identificar qual é a perda.
Nesta medida, a melancolia pode, em alguns casos, tal como no luto, compelir o ego
a desistir do objeto, aceitá-lo morto, e oferecer incentivo a reinvestir a libido. Como
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A morte: um encontro com o desamparo
também pode, diferentemente do luto, permanecer presa ao objeto, contínua e
paulatinamente, ao longo do tempo, assumindo o caráter patológico de experimentar
uma perda objetal.
A melancolia pode, ainda, alternar-se com o estado de mania. Nesse caso, o
que ocorre é uma alternância do lugar do ego, frente ao mesmo complexo. Na fase
melancólica, o ego sucumbe; na fase maníaca, ele domina, a energia psíquica torna-
se disponível para outros usos, mais ainda assim permanece oculto aquilo sobre o
que o ego triunfa e sua sustentação é breve, ocorrendo uma alternância
melancolia/mania/melancolia... ad infinitun.
Freud, na medida em que clarifica a compreensão do estado afetivo da
melancolia, ao compará-lo com o do luto, também lança incógnitas: o melancólico
pode até saber quem perdeu como objeto amado, mas não sabe o que perdeu
nesse objeto. A perda é de ordem mais ideal (inconsciente), é da ordem de um saber
que não se especifica. O vazio sentido na melancolia liga-se à perda da “Coisa” (Das
Ding).
Em seqüência ao estudo sobre a melancolia, em paralelo comparativo ao
trabalho de luto, Freud retoma especificamente a questão do luto em meio ao
contexto da primeira guerra mundial. Em Reflexões para o tempo de guerra e
morte106, a preocupação está voltada para a atitude humana frente ao radical da
perda por morte. Volta a abordar como o encontro com situação de uma perda
radical, como a morte de um ente querido, “exerce poderoso efeito sobre nossas
vidas. A vida empobrece, perde em interesse, quando a mais alta aposta no jogo da
vida, a própria vida, não pode ser arriscada” (FREUD, [1915] 1990, p. 329). E no
caso específico em análise, a situação de guerra, o abrupto da presença da morte
em massa, altera as relações internas com essa questão, entre a ambigüidade da
dor, pela perda, e a necessidade emergente de refazer-se e voltar a viver, o trabalho
de luto é quem triunfa.
Ainda concernente a esse impasse diante de perdas, no texto Sobre a
transitoriedade107, [1915] Freud aborda também os contrapontos de elaboração
entre o luto e a melancolia. Destaca as reações da psique humana diante da
efemeridade, marca peculiar a todo organismo vivo, no reino animal ou vegetal. Ou,
ainda, no traço da fragilidade de tudo que circunda o meio ambiente e revela
106 Esse texto é estudado com detalhe na seção 2.1 deste trabalho. 107
Este texto também está estudado com detalhe na seção 2.1 deste trabalho.
100
A morte: um encontro com o desamparo
transitoriedade. Seja de que ordem for uma perda, o que se revela é a fragilidade do
ego em relação a abrir mão com facilidade do investimento libidinal já feito num dado
objeto e reinvestir em um outro. Para Freud,
Possuímos, segundo parece, certa dose de capacidade para o amor – que denominamos libido – que nas etapas iniciais do desenvolvimento é dirigido no sentido de nosso próprio ego. Depois, embora ainda numa época muito inicial, essa libido é desviada do ego para objetos, que são assim, num certo sentido, levados para nosso ego. Se os objetos forem destruídos ou se ficarem perdidos para nós, nossa capacidade para o amor (nossa libido) será mais uma vez liberada e poderá então ou substituí-los por outros objetos ou retornar temporariamente ao ego. Mas permanece um mistério para nós o motivo pelo qual esse desligamento da libido de seus objetos deve constituir um processo tão penoso, e até agora não fomos capazes de formular qualquer hipótese para explicá-lo. Vemos apenas que a libido se apega a seus objetos e não renuncia aqueles que se perderam, mesmo quando um substituto se acha bem a mão. Assim é o luto (FREUD, [1915] 1990, p. 347).
A referência à melancolia é retomada no capítulo VII, no qual trata da
identificação, em Psicologia de grupo e análise do ego [1921]. Em função da análise
do trabalho do ego no processo de identificação, Freud destaca a ambivalência que
é peculiar a esse processo. Aponta alguns exemplos, considerados não
imediatamente compreensíveis nesse processo. Entre esses, que “a identificação
com um objeto que é renunciado ou perdido, como um sucedâneo para esse objeto
– introjeção dele no ego – não constitui verdadeiramente mais novidade para nós”
(FREUD, [1921] 1990, p. 137). O modo repetitivo do ego se manifestar nesses casos
é de extrema autodepreciação, revela a submissão do ego ao objeto. Os
mecanismos elucidados pela melancolia apontam para a divisão do ego. Nas
palavras de Freud,
Essas melancolias, porém, também nos mostram mais alguma coisa, que pode ser importante para nossos estudos posteriores. Mostram-nos o ego dividido, separado em duas partes, uma das quais vocifera contra a segunda. Esta segunda parte é aquela que foi alterada pela introjeção e contém o objeto perdido (FREUD, [1921] 1990, p. 138).
No texto O ego e o id [1923], na parte III O ego e o superego (ideal do ego)
Freud faz referência ao estudo da melancolia, elaborado em 1915, e reafirma suas
101
A morte: um encontro com o desamparo
conclusões naquele trabalho como sendo bem sucedidas. Entretanto, lamenta que,
àquela época, não tenha centrado maior importância no processo da identificação,
como um mecanismo de crucial destaque. Resume assim essa questão:
Alcançamos sucesso em explicar o penoso distúrbio da melancolia, supondo [naqueles que dele sofrem] que um objeto que fora perdido foi instalado novamente dentro do ego, isto é, que uma catexia do objeto foi substituída por uma identificação. Nessa ocasião, contudo, não apreciamos a significação plena desse processo e não sabíamos quão comum e típico ele é. Desde então, viemos a saber, que esse tipo de substituição tem grande parte na determinação da forma tomada pelo ego, e efetua uma contribuição essencial no sentido da construção do que é chamado de seu caráter (FREUD, [1921] 1990, p. 42-43).
Nesse texto, a identificação é entendida como um mecanismo constitutivo do
ego, à medida que, a partir desse processo, o objeto é introjetado no ego, a ponto de
fundir-se, processo revelado no quadro doloroso da melancolia, haja vista que uma
das facetas do humor melancólico é a autocomensuração, autopunição,
autodestruição, com vistas a destruir o outro, aquele que ainda está investido
libidinalmente, porém perdido. Os possíveis rumos que o ego dá à libido referente as
suas escolhas objetais pode também culminar, mesmo no caso da melancolia, em
um processo de sublimação. “A transformação da libido do objeto em libido
narcísica, que assim se efetua, obviamente implica um abandono de objetivos
sexuais, uma dessexualização – uma espécie de sublimação” (FREUD, [1921] 1990,
p. 44).
Além dessa aproximação da melancolia podendo resultar na sublimação,
Freud questiona outros caminhos como uma possibilidade de escolhas do ego.
Interroga-se sobre a possibilidade de ocorrer uma desfusão das pulsões fundidas
nesse processo. Analisa o processo primário das escolhas objetais e as primitivas
identificações, concernentes ao ideal do ego e conseqüentemente à identificação
primária de todo sujeito, sendo essa questão primária reeditada no atravessamento
do período edipiano. “O ideal do ego, portanto, é o herdeiro do complexo de Édipo,
e, assim, constitui também a expressão dos mais poderosos impulsos das mais
importantes vicissitudes libidinais do id” (FREUD, [1921] 1990, p. 51).
Os destinos das escolhas objetais conduzem Freud a dar continuidade à
proposta de aproximação da melancolia e da neurose obsessiva. Destaca pontos
102
A morte: um encontro com o desamparo
importantes entre as duas afecções. Em comum, situa o sentimento de culpa
motivado pela tensão da correlação de forças entre o ego e o ideal do ego. A carga
de severidade da instância crítica está presente nos dois casos. A diferença situa-se
na maneira do ego lidar com essa imputação de culpa. Vejamos:
Na melancolia, a impressão de que o superego obteve um ponto de apoio na consciência (consciousness) é ainda mais forte. Mas aqui o ego não se arrisca a fazer objeção; admite a sua culpa e submete-se ao castigo. Entendemos a diferença. Na neurose obsessiva, o que estava em questão eram impulsos censuráveis que permaneciam fora do ego, enquanto que na melancolia o objeto a que a ira do superego se aplica foi incluído no ego mediante identificação (FREUD, [1921] 1990, p. 67).
Como resultante das escolhas entre forças atuantes no ego, na neurose
obsessiva e na melancolia, diferencia-se ainda a expressão da pulsão de morte. “É
digno de nota que o neurótico obsessivo, em contraste com o melancólico, nunca
realmente dá o passo para a autodestruição; é como se ele tivesse imune ao perigo
de suicídio” (FREUD, [1921] 1990, p. 70). Essa marcante diferença, diz respeito ao
poder da identificação com o objeto em cada um dos dois casos específicos. Do lado
da neurose obsessiva, à parte dos impulsos censuráveis que permanecem fora do
ego, favorece possibilidades de manejo por outras vias; enquanto na melancolia, por
identificação, o ego funde-se ao objeto, assimilando a punição, indo ao extremo da
autodestruição.
Freud retoma nesse contexto a questão do medo humano diante da morte e a
problemática que esse instaura, analisando-o novamente em referência ao não
haver nenhum registro da morte para o inconsciente.
A morte é um conceito abstrato com um conteúdo negativo para o qual nenhum correlativo inconsciente pode ser encontrado. Pareceria que o mecanismo do medo da morte só pode ser o fato do ego abandonar em grande parte sua catexia libidinal narcísica – isto é, de ele se abandonar em alguns casos em que sente ansiedade. Creio que o medo da morte é algo que ocorre entre o ego e o superego. O medo da morte na melancolia só admite uma explicação: que o próprio ego se abandona porque se sente odiado e perseguido pelo superego, ao invés de amado. Para o ego, portanto, viver significa o mesmo que ser amado – ser amado pelo superego, que aqui, mais uma vez, parece como representante do id. O superego preenche a mesma função de proteger e salvar que, em
103
A morte: um encontro com o desamparo
épocas anteriores, foi preenchida pelo pai e, posteriormente pela Providência ou Destino. (FREUD, [1921] 1990, p. 75).
Ainda em continuidade a essa função da proteção do superego como uma
reedição da função paterna, no texto Uma neurose demoníaca do século VXII,108 a
análise do caso traz a função paterna em destaque. Essa falta como marcante no
desencadeamento do sofrimento melancólico. Na parte III do texto, “O demônio
como substituto paterno”, Freud ressalta a importância da ambivalência afetiva,
dirigida a esse pai, como motivadora da impossibilidade de elaboração do luto,
favorecendo o advento da melancolia. Para Freud:
Não é algo fora do comum para um homem adquirir uma depressão melancólica e uma inibição em seu trabalho, em resultado da morte do seu pai. Quando isso acontece, concluímos que o homem fora ligado ao pai por um amor especialmente intenso e recordamos com quanta freqüência uma melancolia grave surge como uma forma neurótica de luto. [...] Ao contrário, seu luto pela perda do pai tem mais probabilidade de se transformar em melancolia, quanto mais sua atitude para com ele portar a marca da ambivalência. Essa ênfase na ambivalência, contudo prepara-nos para a possibilidade de o pai ser submetido a um aviltamento, como vemos acontecer na neurose demoníaca do pintor (FREUD, [1922] 1990, p. 112).
As últimas referências de Freud à questão da melancolia estão nos textos
Neurose e Psicose [1924] e A perda da realidade na neurose e na psicose, esse
segundo, escrito em acréscimo ao primeiro artigo, e ainda nesse mesmo ano. Os
dois textos continuam a proposta afirmada no Ego e o id. O primeiro artigo apresenta
a etiologia da neurose e da psicose assim referidas.
A etiologia comum ao início de uma psiconeurose e de uma psicose sempre permanece a mesma. Ela consiste em uma frustração, em uma não realização, de um daqueles desejos de infância que nunca são vencidos e que estão tão profundamente enraizados em nossa organização filogeneticamente determinada. Essa frustração é, em última análise, sempre uma frustração externa, mas, no caso individual, ela pode proceder do agente interno (no superego) que assumiu a representação das exigências da realidade (FREUD, [1924] 1990, p. 192).
108 Neste texto Freud escreve sobre um manuscrito no qual relata o ingresso do pintor Christoph Haizmann na Abadia de Mariazell. O pintor solicita ajuda dos religiosos por se encontrar em aflição em função de haver vendido a alma ao diabo em troca do retorno da capacidade de pintar, perdida por ocasião da morte do pai.
104
A morte: um encontro com o desamparo
Freud coloca todo o efeito patológico da decorrência dessa frustração da
tensão conflitual do ego. É da negociação do ego com o id e o superego e as
elaborações possíveis nesse confronto que o campo patogênico irá se definir. Ele
afirma que a melancolia eclode do conflito, não bem solucionado, entre o ego e o
superego. “A análise nos dá o direito de supor que a melancolia é um exemplo típico
desse grupo, e reservaríamos o nome de ‘psiconeuroses narcísicas’” (FREUD,
[1923] 1990, p. 192). Afirma ainda que não há motivo de espanto o fato de a clínica
vir ainda demonstrar que a melancolia é um estado que pode ser separado de outras
psicoses. “As neuroses de transferência correspondem a um conflito entre o ego e o
id; as neuroses narcísicas, a um conflito entre o ego e o superego, e as psicoses, a
um conflito entre o ego e o mundo externo” (FREUD, [1923] 1990, p. 192).
Freud coloca o estado da melancolia nesse campo de um sofrimento do ego
diante de sua insatisfação perante uma perda. Ou seja, deixa este estado na
vertente da escolha narcísica de objeto, e na não elaboração com a perda desse
objeto. Do conflito do ego em não superar as exigências do superego. Deixa, no
entanto, como questão aberta, o que ele chamou necessidade de suplementar mais
um ponto. “Seria desejável saber em que circunstâncias e por que meios o ego pode
ter êxito em emergir de tais conflitos, que certamente estão sempre presentes, sem
cair enfermo” (FREUD, [1923] 1990, p. 193). Nesse sentido, aponta duas saídas,
sem tomar nenhuma como certa. Uma é apontada do lado da economia psíquica,
“das magnitudes relativas das tendências que estão lutando entre si”, e a outra é
concernente à possibilidade de o “ego evitar uma ruptura em qualquer direção
deformando-se, submetendo-se a usurpações em sua própria unidade e até mesmo,
talvez, efetuando uma clivagem ou divisão de si próprio109” (FREUD, [1923] 1990, p.
193).
Não seguimos adiante a trajetória freudiana nessa questão. Apenas
destacamos a contribuição trazida por ele. A relevância de sua prudência em
reconhecer a dificuldade encontrada na construção de um conceito, dentro da
109 Não seguiremos em Freud o percurso dessa questão. Ele a retomou nos textos A divisão do ego no processo de defesa [1938] e no Capítulo VIII do Esboço [1938]. Neste trabalho, o objetivo foi destacar o percurso freudiano com o tema da melancolia especificamente.
105
A morte: um encontro com o desamparo
própria nosografia médica, para o afeto da melancolia. Marie-Claude Lambotte
resume com muita propriedade a contribuição freudiana que queremos destacar.
A novidade trazida por Freud é a de ter ousado deslocar a origem da doença para o seio do domínio psíquico, mesmo que fosse ainda por uma questão de método, e de ter colocado entre parênteses a preocupação de localização orgânica que subtendia sempre os estudos precedentes. Isto não quer dizer, é claro, que Freud negasse ao orgânico toda e qualquer incidência quanto à etiologia e à evolução da doença; sua obra está pra testemunhar isso, e para nos lembrar que os primórdios do tratamento analítico se apoiaram principalmente nas neuroses de transferência e, dentre estas, nas histerias de conversão. O que quer dizer que se tornou possível, com Freud, escutar o discurso ou o sintoma como a tradução, não mais, neste caso, do desfalecimento orgânico ou das sensações cenestésicas, [sic] mas certamente dos determinantes deste automatismo mental tão bem exumado por seus predecessores, isto é o inconsciente (LAMBOTTE, 1997, p. 87, grifo da autora).
A concepção freudiana de inconsciente faz uma ruptura radical no modo de
pensar o indivíduo. Inaugura uma perspectiva singular na forma de compreender o
sofrimento mental. A melancolia, como uma dessas vertentes de sofrimento, também
é repensada dentro desse novo prisma. Embora não seja possível elucidar a
“escolha melancólica” do ego diante de uma perda, é possível entendê-la como
referida à estruturação psíquica110 do sujeito em questão. No percurso proposto por
Freud de aproximar a melancolia a outras formas de sofrimento, abriu-se caminho à
continuidade dos estudos posteriores. Marcou a possibilidade de acolher no
discurso, as veredas de acesso que o inconsciente elege, seja para se revelar seja
para velar a dor da perda.
110 No Seminário da Angústia, Lacan retorna a Freud em Luto e melancolia e faz uma distinção relacionando ao luto “a manutenção dos vínculos por onde o desejo está suspenso, não do objeto ‘a’ mas de i (a) por onde todo o amor em tanto que este termo implica a dimensão idealizada é estruturada narcisicamente”. Na melancolia, a questão são os vínculos relacionados ao objeto ‘a’, o objeto causa de desejo (LACAN, 2005, p. 364).
106
A morte: um encontro com o desamparo
IRONIA: POSSIBILIDADES DE DIZER O NÃO-DIZÍVEL
• Considerações gerais: rastreando um conceito.
• Ironia: labirinto do discurso.
Tudo é vaidade - Uma ilusão de óptica criada por C. Allan Gilbert
107
A morte: um encontro com o desamparo
2.3.1 Considerações gerais: rastreando um conceito.
A situação básica metafisicamente irônica do homem é que ele é um ser finito que luta para compreender uma realidade infinita, portanto incompreensível (Friedrich Schlegel).
O tema da ironia é utilizado como parte deste trabalho, em função de sua
vinculação ao tema da melancolia no texto machadiano. A linguagem irônica é
apresentada com extrema e refinada sutileza, provocadora de reflexão crítica.
Explicando melhor, é utilizada também como um recurso lúdico ou sarcástico, para
falar da crueza da morte, como o inevitável e enigmático encontro da verdade
humana. Comumente identificada como cética e irônica, ou pessimista e satírica, a
escrita machadiana, utiliza-se dos mais diversos recursos de linguagem, com
aguçada mestria, e revela os desencantos dos labirintos da estrutura humana.
De acordo com trabalhos pesquisados sobre esse tema, definir
satisfatoriamente a ironia não é uma tarefa fácil, provavelmente nem possível
enquanto uma definição precisa e fechada. Nesta busca tentaremos compreendê-la
relacionando sua expressão quase que usual no discurso literário111. Observamos
ainda as contribuições da psicanálise a essa vertente da expressão humana. O uso
da ironia é presença marcante, em variáveis vertentes de discursos, como parte da
existência humana.
O vocábulo “ironia” tem sua origem na língua grega eironeia112, e o seu uso
referido ao ato de dissimular. O primeiro destaque registrado a esse termo está na
Republica de Platão, no livro I. Refere-se à forma como Sócrates praticava o ensino 111 Utilizamos como texto base o estudo de Maria Helena de Novais Paiva, Contribuição para uma estilística da ironia (Universidade de Lisboa:1961). E o estudo de Douglas Muecke, Ironia e o irônico. (São Paulo. Perspectiva: 1995). Consultamos também o estudo de Beth Brait, Ironia em perspectiva polifônica, UNICAMP, 1996. 112 Na comédia clássica grega, as duas facções em confronto se representavam por eiron, personagem que se fazia de ignorante para desmascarar o alazon, tipo de fanfarrão, ligeiro em afirmar e proferir juízos definitivos (MOISÉS, 1974, p. 294). Na tragédia grega, a ironia manifestava-se quando o desejo do protagonista era frustrado pelos deuses ou pelos desígnios insondáveis do alto: correspondia, no caso, à ironia do destino. Modernamente, o termo assumiu o indeciso contorno de figura de pensamento e de palavra. De modo genérico, a ironia consiste em dizer o contrário do que se pensa, mas dando-se a entender. Estabelece um contraste entre o modo de enunciar o pensamento e seu conteúdo (MOISÉS, 1974, p. 295).
108
A morte: um encontro com o desamparo
aos seus discípulos. Ficou assim conhecida como a ironia socrática, que consistia
em propor questões dissimuladamente simples e ingênuas ao interlocutor
dogmático, a fim de confundi-lo e mostrar-lhe a fraqueza das opiniões ou dos
raciocínios. Como o processo acabava irritando e ridicularizando o arrogante
adversário, a palavra entrou a adquirir conotação satírica. Entretanto utilizado pelo
filósofo no contato com seus discípulos moços, sensatos e amantes da verdade, não
tinha especificamente essa conotação. Era uma arte na forma de interrogar com o
sentido de provocar a maiêutica ou o surgimento das idéias; resultava no
alargamento progressivo das consciências (MUECKE, 1995, p. 31).
Na busca por uma definição para a ironia, Muecke propõe a construção do
percurso do termo através de diversos contextos, haja vista a dificuldade encontrada
num conceito preciso. Para Brait os estudos nesse campo sempre vão divergir, pois
“configuram diferentes abordagens de teor filosófico, psicanalítico, sociológico,
retórico, literário, estilístico e mesmo lingüístico – pragmático, inserindo a reflexão
sobre a ironia em universos nem sempre compatíveis” (BRAIT, 1996, p. 19). O
estudo de Paiva concilia essa dificuldade observando que, “a ironia é
simultaneamente uma atitude de espírito e um processo característico de
expressão”. Assim sendo, corresponde a dois sentidos, um amplo e outro restrito.
Considera então que só é possível definir esse segundo sentido, o especializado, de
ironia. “É o processo de expressão ‘per contrarium’, a figura de retórica que consiste
em atribuir às palavras sentido oposto ao que normalmente exprimem” (PAIVA,
1961, p. 06). Para o sentido mais amplo que a palavra ironia comporta, Paiva
acrescenta:
Definir com precisão essa atitude interior é particularmente difícil, dado que ela resulta da combinação de constantes psicológicas que se graduam diferentemente e a diversificam em conceitos distintos, que a traduzem parcialmente. Se nela predomina uma afeição de alegria amigável, individualizar-se em humor; se traduz uma amargura ácida, chama-se então sarcasmo; se joga agudamente com conceitos, recebe o nome de espírito; se se alia ao burlesco, toma a forma de facécia; se recorre a imitação, diferencia-se em sátira. A verdade é que nenhuma destas palavras é sinônima de ironia, mas há nas esferas semânticas respectivas um setor comum, que corresponde ao que, no sentido mais lato, se entende vulgarmente por ironia (PAIVA, 1961, p. 06).
109
A morte: um encontro com o desamparo
Dentro dessa vertente de pensamento, Mueckle defende que um conceito
para ironia “é vago, instável e multiforme” (MUECKE, 1995, p. 22). Na visão deste
autor, a dificuldade em elaborar um conceito satisfatório para o termo é relativa à
multifacidade em que é possível expressá-la. O entendimento usual da palavra é
variável, dependendo da relação temporal, local e contextual em que seja utilizado.
“O conceito de ironia a qualquer tempo é comparável a um barco ancorado que o
vento e a corrente, forças variáveis e constantes, arrastam lentamente para longe de
seu ancoradouro” (MUECKE, 1995, p. 22); é preciso contextualizar e acompanhar
sua evolução. Com vistas a esse fim, é necessário retomar o termo ironia em alguns
recortes históricos, tanto quanto apresentar alguns pensamentos filosóficos na
construção dessa teoria.
Tomando o termo como evolução de um sentido, Mueckle sustenta que a
ironia é um fenômeno bem antigo, que se reagia a ele, bem antes de ser nomeado.
Sugere o exemplo de uma ironia situacional. Considera uma primeira referência à
situação de ironia, apresentada no texto da Odisséia, Canto XXI. O fato de Ulisses,
retornando a Ítaca, sentar-se disfarçado de mendigo em seu próprio palácio e ouvir
os pretendentes à mão de sua mulher, Penélope, comentar da impossibilidade dele,
o rei (Ulisses) regressar e reaver seu trono, por estar morto (MUECKE, 1995, p. 30).
Como a ironia é parte de interesse da especulação filosófica, talvez por ser
um traço marcante no comportamento humano, abordaremos, embora que
brevemente, alguns principais pensamentos nesse campo. E já considerando a
afirmação de Kierkegaard (1813-1855) que: “assim como os filósofos afirmam que
não é possível uma verdadeira filosofia sem a dúvida, assim também pela mesma
razão pode-se afirmar que não é possível a vida humana autêntica sem a ironia”
(apud MUCKLE 1995, p. 19).
Apesar da veracidade da afirmação do filósofo, há que se considerar que o
uso da ironia insere-se numa certa plasticidade. Destacaremos que, primeiro, em
relação ao contexto histórico; a concepção do termo sofreu evoluções; segundo, no
que diz respeito ao modo de aplicação, usual, como atitudes de senso comum e em
situações formais no contexto de representações das artes e do texto literário;
terceiro, em relação à multiplicidade de situações a que se oferece o termo, entre o
sentido “amplo” e o “restrito” de seu uso. Essa última observação destaca o caráter
dual que existe na ironia.
110
A morte: um encontro com o desamparo
A forma apresentada por Platão, em referência ao uso que Sócrates provocou
a eironeia (uma ignorância pretensamente simulada), assumindo assim a posição de
um eiron, é a mesma a que Aristóteles dá continuidade. A eironeia como uma
“dissimulação autodepreciativa, superior ao seu oposto, a alozoneia, ou
dissimulação jactanciosa; a modéstia, ainda que apenas simulada” (MUECKE, 1995,
p. 31). Na peripeteia (peripécia) aristotélica, a ironia também assume o sentido de
súbita inversão das circunstâncias (MUECKE, 1995, p. 30). Aplicada à lógica dos
aforismos113 de Aristóteles, em que, no cerne dos enunciados das premissas, a
seqüência das sentenças é alternada, conseqüentemente, a ironia assim aplicada,
quebra o princípio da lógica tradicional. A palavra ironia, nesse período, também foi
utilizada como um modo enganoso da linguagem.
De acordo com os estudos de Muecke, o termo “ironia” não aparece no
idioma inglês antes de 1502, como também não entrou pra o uso literário geral ate o
começo do século XVII. Observa ainda que, dada a riqueza da língua inglesa em
termos coloquiais e verbais, outros vocábulos114 foram usados e podem ser
considerados como precursores à palavra ironia. Destaca ainda que no final do
século XVII e no século XVIII, o amplo uso das palavras derison (derrisão), droll
(chocarreiro), rally (zombaria), banter (gracejo), smoke (fumaça), roast (chacota),
quis (mofa) foram responsáveis por manter a palavra ironia como termo literário
(MUECKE, 1995, p. 32).
O desenvolvimento do conceito de ironia na Europa aconteceu
paulatinamente. Em dois séculos a ironia foi definida prioritariamente como uma
figura de linguagem, no sentido mais estrito do termo em que diz uma coisa
querendo dizer outra, principalmente em sentido oposto ao que foi dito. E ainda no
claro objetivo de dissimulação. A mobilização do conceito, desdobrando-se em
outros sentidos, está referida ao final do século XVIII e começo do século XIX.
Apesar de que os significados antigos persistiram e somaram-se aos novos
sentidos115.
113
Um aforismo é a síntese do conteúdo de uma sentença maior, acrescida de uma menor, em que a segunda premissa retorna ao conteúdo da primeira. 114
Vocábulos alencados do idioma inglês, como sendo precursores do termo ironia (fleer, flout, gibe, jeer, mock, scoff, scorn, taunt), correspondem ao sentido de mofa, escárnio, zombaria, motejo, chasco, sarcasmo, etc. 115 Mueckle ressalta a tendência a se depreciar a ironia satírica como vulgar e barata e a ironia cética como cruel, corrosiva ou diabólica (MUECKLE, 1995, p. 34).
111
A morte: um encontro com o desamparo
Um enfoque novo no conceito de ironia está referido em contraponto com o
seu uso anterior. Antes, encarada como essencialmente intencional e instrumental,
ou seja, realizada com um propósito específico, pôde evoluir para ser considerada
como não-intencional, portanto observável e conseqüentemente representável na
arte (MUECKE, 1995, p. 35). Há um destaque para o caráter duplo da ironia,
podendo ser ora instrumental (revela-se comumente na inversão semântica do
verbo), ora observável (a ironia dos eventos, a dramática, a geral e as situacionais).
O conceito ganha um status generalizado. “A ironia pode ser encarada como
obrigatória, dinâmica e dialética” (MUECKE, 1995, p. 35). Nas palavras de Mueckle:
Desses novos significados que a palavra ‘ironia’ assumiu, os mais importantes emergiram do fermento da especulação filosófica e estética que transformou a Alemanha durante muitos anos na líder intelectual da Europa. [...] O primeiro estágio, logicamente senão cronologicamente, deste novo desenvolvimento foi considerar a ironia em termos não de alguém ser irônico, mas de alguém ser vítima de ironia, mudando assim a atenção do ativo para o passivo (MUECKE, 1995, p. 35).
A “ironia” nessa nova visão apresenta infinitas variáveis de expressão. O
vocábulo “irônico” aparece como apontando a ambigüidade que o termo comporta,
indicando assim o lugar de agente e passivo de uma mesma ação. A ironia não
apenas referida a quem a praticou, mas também a quem sofreu a ação. “A vítima
poderia ser ou o alvo de uma observação irônica, feita em sua ausência ou não, ou
uma pessoa que deixou de observar a ironia, seja ela ou não o seu alvo” (MUECKE,
1995, p. 35).
Como exemplo de Ironia Observável da Natureza, Mueckle destaca as
observações de Friedrich Schlegel (1772-1829), considerado o maior “inorólogo”
desse período, o qual afirma que, “A situação básica metafisicamente irônica do
homem é que ele é um ser finito que luta para compreender uma realidade infinita,
portanto incompreensível” (MUECKE, 1995, p. 39). Um paradoxo se estabelece
entre a relação homem e natureza, haja vista que
A natureza não é um ser, mas um tornar-se, um ‘caos infinitamente fervilhante’, um processo dialético de contínua criação e des-criação. O homem, sendo quase a única destas formas criadas, que logo serão des-
112
A morte: um encontro com o desamparo
criadas, deve reconhecer que não pode adquirir qualquer poder intelectual ou experimental sobre o todo. Não obstante, ele é ‘programado’ para compreender o mundo, para reduzi-lo à ordem e coerência, mas também porque pensamento e linguagem são inerentemente sistemáticos e ‘fixativos’, enquanto que a natureza é inerentemente elusiva e protéica (MUECKE, 1995, p. 39).
A situação de vítima do próprio destino, visto que a finitude é peculiar à
condição de ser do humano, coloca todos os homens num mesmo irônico patamar
de desamparo. Aponta a efêmera condição de ser, reeditada a todo momento, frente
à dimensão da oferta externa de estímulos, não passíveis de toda apropriação.
Tanto quanto que, a cada passo dado, o homem avança em sua aquisição ao saber,
mas, paradoxal e inevitavelmente, se aproxima do fim da própria existência.
Mesmo apresentando esse exemplo cruel, da realidade efêmera do destino
humano, identificável como ironia observável da natureza, Schlegel destaca o ponto
do processo dialético. O que torna o comportamento humano estritamente humano é
esse dualismo dinâmico e aberto sempre a novas elaborações. A ironia “é a própria
força do paradoxo; e o paradoxo é a conditio sine qua non da ironia, sua alma, sua
fonte, e seu princípio”. (MUECKE, 1995, p. 41). E é nesse paradoxo que é possível
alguma construção se efetivar. O conceito de ironia como objetividade é creditado ao
Romantismo alemão.
A psique humana comporta esse sistema paradoxal da condição de
existência. A partir da condição de transitoriedade da vida, algo pode atuar na
vertente do desejo; opera um movimento mobilizador em direção a resignificar a
irônica condição de efemeridade. A arte encontra, nesse paradoxo, sua expressão.
Revela a dissimulação involuntária e mesmo assim deliberada; o antagonismo entre
o absoluto e o relativo. Nos argumentos de Schlegel, a arte usa esse paradoxo.
A criação artística tem duas fases contraditórias, mas complementares. Na fase expansiva, o artista é ingênuo, entusiasta, inspirado, imaginativo; mas seu ardor descuidado é cego e, assim, sem liberdade. Na fase contrativa, ele é reflexivo, consciente, crítico, irônico; mas a ironia sem entusiasmo é estúpida ou afetada. Ambas as fases são, portanto, necessárias se o artista deve ser amavelmente entusiasta e imaginativamente crítico. O artista que consegue esse equilíbrio, esta ‘alternação admiravelmente perene de entusiasmo e ironia’, produz uma obra que é em si mesma seu próprio vir-a-ser (MUECKE, 1995 p. 41).
113
A morte: um encontro com o desamparo
Nesse sentido, na ironia Romântica, o artista revela “uma superação criativa
da criatividade”. Ele revela em sua arte a dimensão divina e humana. Desperta em
seu espectador “a consciência de sua presença transcendente enquanto atitude
irônica frente a sua própria criação” (MUECKE, 1995, p. 41). A expressão artística,
nessa via, comporta a capacidade de transitar na dinâmica entre o velado e o
revelado; explicitamente arte é também “imitação” da vida. Esse efeito dual torna a
obra de arte mais natural.
O conceito de ironia expandiu-se e a ironia Romântica é amplamente
representada. Kierkegaard comenta os principais destaques dessa época - além do
já citado e importante trabalho de Schlegel, a contribuição de Karl Solger (1780-
1819) é marcante, ainda assim, de difícil assimilação. Na visão de Kierkegaard, a
ironia na perspectiva de Solger é situada no cerne da vida. É um conceito universal
só possível de manifestar-se em situações particulares e relativas. Para ele, a ironia
reside no duplo movimento oposto, no qual cada um se sacrifica ao outro. Isto é, é
necessário haver uma autonegação ou aniquilamento; esse movimento revela o
universal, o infinito e o absoluto. A ironia está em referência ao duplo movimento
antagônico de sacrifício individual (apud MUECKE, 1995, p. 42).
A idéia de duplo é persistente em torno do conceito de ironia. Para A. W.
Shlegel é entendido “como aquilo que restaura ou aquilo que mantém um equilíbrio”
(apud MUECKE, 1995, p. 42). Na visão de I. A. Richards, a idéia do duplo é
conservada, e a ironia é definida como “a produção dos impulsos opostos, dos
complementares a fim de realizar um peso equilibrado” (MUECKE, 1995, p. 42).
Reforçando essa idéia de pares de opostos, Hegel “considera a ironia o progresso
dialético da história” (MUECKE, 1995, p. 42). Nessa perspectiva, porta em si dois
pólos antagônicos entre o positivo o negativo aplicável a tua situação da realidade.
Somando aos conceitos já mencionados, destaca-se o nome do inglês
Connop Thirlwall e seu diálogo teórico com os conceitos de ironia dos filósofos
germânicos. A contribuição nova de Thirlwall é a idéia de Ironia Dramática, também
na vertente do duplo, pois se revela na fala de uma personagem que porta no
discurso, inconscientemente, uma dupla referência: a situação tal qual parece ser, e
a própria situação em si, tal como realmente é (apud MUECKE, 1995, p. 45).
Em referência à ironia do destino, Thirlwall afirma, no artigo “Da ironia de
Sófocles”, “que o contraste entre o homem com suas esperanças, medos, desejos e
114
A morte: um encontro com o desamparo
empreendimentos, e um destino obscuro, inflexível, propicia abundantes condições
para a exibição de ironia trágica” (apud MUECKE, 1995, p. 38). E, como bem se
sabe, é o lugar da arte. Ao representar o sentimento humano, o espetáculo trágico
oferece a possibilidade de observar, suportar e elaborar a própria tragédia do
destino humano. São as multifacetas da ironia se expressar que revelam os seus
sentidos significantes na elaboração existencial do homem.
O conceito de ironia é objeto de estudo na tese de Kierkegaard [1841], e é
explicado por ele, entre o estágio ético e o estágio estético do desenvolvimento
espiritual. A ironia é indispensável e quem a utiliza, o ironista, o faz integralmente,
em sua essência intensa, num sentido de totalidade (p. MUECKE, 1995, p. 46). Para
ele, a gênese da atitude irônica está na especulação filosófica metafísica,
sinalizando o aspecto da negatividade.
As várias possibilidades de expressão da ironia ganham corpo no campo
literário. Mueckle ressalta a constante expressão da ironia nas artes e em particular
na literatura, como sendo de grande importância. Enumera116 os grandes nomes da
literatura em que ironia é expressão significativa, e questiona a esse respeito. “Que
lista comparável se poderia fazer dos escritores cuja obra não é irônica de modo
algum ou o é apenas ocasionalmente, minimamente ou ambiguamente?” (MUECKE,
1995, p. 18).
Seja qual for a vertente dominante do pensamento do autor, a ironia em seu
texto vai se revelar transmitindo essa escolha conceitual ou estrutural; repassa sua
visão subjetiva que retrata a leitura da objetividade. O fato é que conforme o
conceito pôde evoluir, fez vacilar o significado literal. “A velha definição de ironia –
dizer uma coisa e dar a entender o seu contrário – é substituída; a ironia é dizer
alguma coisa, de uma forma que ative não uma, mas uma série infindável de
interpretações subversivas” (MUECKE, 1995, p. 48). E ainda assim, porta a dupla
vertente dialética conforme proposto por Hegel.
116 Mueckle destaca os principais escritores cujas obras estão permeadas significativamente de ironia: Homero, Ésquilo, Sófocles, Eurípides, Aristófanes, Tucídides, Platão, Cícero, Horácio, Catulo, Juvenal, Tácito, Luciano, Boccaccio, Chaucer, Villon, Ariosto, Shakespeare, Cervantes, Pascal, Molière, Racine, Swift, Pope, Voltaire, Johnson, Gibbon, Diderot, Goethe, Stendhal, Jane Austen, Byron, Heine, Baudelaire, Gogol, Dostoievski, Flaubert, Ibsen, Tostoi, Mark Twain, Henry James, Tchekhov, Shaw, Pirandello, Proust, Thomas Mann, Fafka, Musil e Brecht.
115
A morte: um encontro com o desamparo
Da diversidade em que o conceito de ironia se insere e na evolução em que
tem se transformado, demanda uma ordenação classificatória que favoreça uma
maior compreensão para o uso do termo. No trabalho de Paiva, de um modo
extremamente didático, ela destaca cinco tipos de ironia organizados com a seguinte
classificação: a ironia pura, a satírica, a disfemística, a restritiva e a contornante.
Além dessa ordenação ela também classifica a ironia por características de acordo
com o tom da frase (o som da voz) ou o que denominou de “o clima” em que se
efetiva o uso da ironia. Esses podem ser: ingênuo, retórico, sagrado, científico e
familiar.
A começar pelo que chamou de ironia pura, Paiva a define na essência
restrita do termo. A ironia pura é falada para expressar o sentido oposto do que se
quer dizer. É um pensamento dissimulado provocador de dissociação. O grau
máximo da dissociação é quando a palavra perde o seu sentido natural de
expressão do pensamento e opera uma inversão de sentidos. Para atingir esse
êxito, é necessário que o ouvinte deixe a posição passiva e participe ativamente da
interpretação, suplementando o que falta. É preciso entender, a partir do que foi dito,
o que falta como conexão à dupla situação de opostos: o contraste entre o modo de
expressão do pensamento e a atitude real expressa na fala. Ou seja, é preciso julgar
e traduzir no cerne do discurso a intenção de revelar um outro sentido contrário.
Uma das seqüelas da resultante dessa operação, a desadaptação no
discurso, dizer uma coisa querendo informar o seu oposto, é o surgimento do
cômico. “A expressão antitética e cômica que daí provêm – contribuem para a
criação de um terceiro aspecto: a realidade sentida como um teatro, o autor
desempenhando o papel de ator” (PAIVA, 1961, p. 10). Esse processo, peculiar à
ironia de expressar uma atitude através de palavras que exprimem o sentimento
oposto, recebeu também a classificação de asteísmo. E nas palavras da autora: “o
uso carinhoso de termos ofensivos integra-se numa tendência disfemística; o
caminho inverso, igualmente vulgar, recorre a palavras afetuosas através das quais
transparece um pensamento reservado” (PAIVA, 1961, p. 11).
A ironia nessa vertente de transmissão por antítese faz emergir um aspecto
lúdico no que comunica. O enunciado é transmitido numa via contrária à expressão
linear do pensamento e mistifica o que de fato tenciona dizer. Nessa perspectiva,
tende ao exagero no conteúdo que repassa. Via de regra, esse tipo de manifestação
da ironia se faz acompanhar pela figura da hipérbole. Essa última se presta a dar um
116
A morte: um encontro com o desamparo
significado figurado elevado aos extremos, num sentido de muito maior ou muito
menor do que o significado próprio que ela enuncia.
A hipérbole117, quando atrelada à ironia, forma com ela o par ideal de
expressão. Pode-se até pensar a hipérbole como portando ela mesma uma certa
dose de ironia, haja vista que é uma figura de linguagem que visa à ênfase no
exagero deliberado. Já é intencional da hipérbole enaltecer pelo extremo, seja no
sentido negativo seja no positivo; o que a expressão dita quer fazer crer com uma
dose de elevação do sentido maior ao que a própria realidade de fato consegue
exprimir. No entanto, o uso da hipérbole, mesmo sendo efetivamente uma forma
deliberada de exagero da verdade, não perde de vista o respeito à beleza estética,
seja quando usada, por amplificação, seja por atenuação dos termos. É utilizada
tanto na linguagem oral quanto escrita; pode acontecer em estado puro ou
associada a outras figuras de pensamento.
A sátira transmite uma forma de ironia que focaliza e expõe ao ridículo os
defeitos ou vícios de uma pessoa ou de um contexto social. Pode revelar-se por dois
aspectos: primeiro como resultado de uma deformação, como é peculiar à paródia;
nesta, as modificações provocadas têm maior efeito do que a mera repetição ou
imitação; “nessa projeção burlesca da imagem em espelhos côncavos, qualidades
passam a ser vistas como defeitos, e os defeitos encaram-se segundo uma
perspectiva que os torna ridículos” (PAIVA, 1961 p. 13). Essa vertente da sátira
configura-se bem na caricatura, que é, em si, uma deformação intencional.
No segundo aspecto, a sátira se apresenta como cópia fiel de um quadro e já
no modelo consta o efeito cômico. Nesse aspecto, para a ironia se revelar é preciso
que haja uma observação aguçada; um sutil raciocínio para revelar o cômico
embutido no invólucro apresentado. Nas palavras de Paiva:
Na sátira o essencial não é intuito de morigerar os costumes, que dela está quase sempre ausente. O que parece ser essencial na sátira é o aspecto de oposição ao meio. O ironista é um desintegrado, um isolado; lingüisticamente é alguém que individualiza os aspectos sociais da linguagem. A atividade crítica impele-o a descobrir efeitos perdidos pelo esquecimento ou inéditos, e a tirar partido deles, transmitindo aos outros esse sentimento de criação individual que está também na base da criação artística. Desse isolamento, que torna o ironista semelhante a um surdo que assistisse a um bailado, para
117 Hipérbole é originário do grego (hyperbolê), e significa transporte por cima, excesso. (MOISÉS, 1974, p. 276).
117
A morte: um encontro com o desamparo
quem todos os gestos e passos se tornariam grotescos, nasce a sátira (PAIVA, 1961, p. 14).
Na visão de Paiva, a linguagem das escolas literárias ofereceu fartos
elementos para a sátira se revelar. A escola romântica foi a que mais forneceu
campo a essa atuação da sátira. Os dois tipos de sátiras destacados podem
interpenetrar-se. O esforço de interpretação pode gerar o efeito do cômico latente
implícito na realidade e amplificar o aspecto de deformação caricatural.
Para falar da ironia disfemística, Paiva recorre ao pensamento de Hobbes e
esse, trazido da fonte de Aristóteles. Explica que o riso é um sentimento que aponta
o triunfo, como resultado de algum êxito, e assim entendido é usado como meio de
demonstrar superioridade, de quem o domina sobre os que escutam. “Embora o
sentimento da própria superioridade não possa explicar todas as formas de riso”,
haja vista que, independente do tipo de estímulo, quando uma situação surpresa se
instaura, o riso acontece, via de regra, como uma reação natural. Ou seja,
transforma-se numa “forma espontânea de vencer um sentimento de insegurança”
(PAIVA, 1961, p. 17).
No caso do ironista, o riso provocado, nos seus ouvintes, aponta seu poder
de superioridade diante daquele tema, e daquele grupo, atua como via de sinalizar
quem tem o domínio do discurso. Na ambigüidade que gera o sentimento de
superioridade “há igualmente uma desconfiança de si próprio, de que
inconscientemente se procura a libertação pelo riso” (PAIVA, 1961, p. 17).
Nesse sentido, o ironista, ao dominar o discurso, o riso provocado no outro, garante
o retorno da palavra proferida, tanto quanto uma dose de cumplicidade entre o
orador ironista e os ouvintes.
A ironia disfemística atinge o cerne da estruturação humana, nega a
singularidade, a marca individual que diferencia cada sujeito, mesmo quando
contado num grupo. Nega também qualquer caráter extraordinário que possa
diferenciar um humano do outro. É forma de expressão que banaliza a
individualidade, que atua de maneira desagradável e objetiva. Sua atuação aponta
para a degradação humana, tem caráter negativo. Sem nenhum tipo de
encantamento, banaliza qualquer manifestação lírica e reduz o discurso poético ao
fisiológico; particulariza de tal modo dados cotidianos que os torna vulgares; “insiste
nas necessidades orgânicas, que sendo comuns a todos os homens, corroem a
118
A morte: um encontro com o desamparo
idéia de imortalidade”. Ou seja, atua como um forte golpe no narcisismo (PAIVA,
1961, p. 18, grifo nosso).
Em continuidade, Paiva apresenta a ironia restritiva. Conforme se anuncia,
essa ironia se revela na redução dos termos, no afunilamento das amplitudes para
uma particularidade específica. Numa perspectiva negativa ao contexto “tende a ver
como pluralidade o que à perspectiva normal se apresenta como unidade”. Alimenta-
se por decomposição, destaca um elemento menor de uma realidade mais ampla e
assim simplifica a importância desse elemento na multiplicidade de seus aspectos.
Seu caráter prioritário é a fragmentação, altera a realidade diminuindo-a por
parcelamento.
Quando a realidade visada encerra um sentido positivo, dignificante, a transformação realizada representa uma diminuição, um apoucamento. Os temas preferidos pela ironia restritiva são o bom, o grande, ou o intenso. Cria-se um compromisso entre a negação de determinada realidade e sua afirmação; a ironia resulta exatamente da indecisão entre as duas formas (PAIVA, 1961, p. 23).
Esse tipo de ironia tem certa proximidade com a ironia pura, especialmente
quando atua com a inversão de sentidos; embora os objetivos sejam distintos em
cada caso. Na restritiva o objetivo é negativo, a inversão é por pura economia dos
termos e visa a decompor e dissociar o todo a uma parte, e/ou, entre o mínimo e o
máximo.
A última, na classificação de Paiva, é a ironia contornante. Também Indicativa
no nome, essa ironia tende a escapar ao percurso linear do discurso, e o contorna,
para suavemente o deformar. É essencialmente antitética e alegórica. Em seu
movimento de contorno provoca certa tortuosidade num campo de grande
condensação. O ironista, ao utilizar esse estilo, usa indiferença associada ao
sentimento de superioridade, em tom frívolo e superficial. Apresenta indiferença ao
essencial e privilegiando o acessório em detrimento do original. Dessa relação
superficial e frívola, advém que: “em vez de se designar um objeto, rodeia-se,
contorna-se uma noção. Em lugar de se nomear uma coisa, declara-se o epíteto que
a substitui muitas vezes; em vez de se indicar claramente uma pessoa, mantém
quase um anonimato, no plano formal” (PAIVA, 1961, p. 26).
119
A morte: um encontro com o desamparo
Todo o tipo de ironia, independente da classificação, para atingir seu efeito,
utiliza-se também de um recurso estilístico no tom de expressar-se, é também
entendido como “clima”, modo sutil de expressar a idéia, no qual a entonação
envolve o significado e lhe reveste melhor o sentido. Nas palavras de Paiva:
Do mesmo modo que aquilo que se diz depende do ar com que se diz, a ironia depende muitas vezes do tom em que se fala. O clima de ironia é dado geralmente por um deslizar de atitude que seria natural, para outra; o grau ou a matiz do efeito produzido dependem da distância existente entre a atitude real que se deixa adivinhar e a atitude de opção que se enverga. Essa transposição realiza-se uma vez no plano puramente psicológico, outras vezes dá-se através da linguagem característica de um ambiente ou de uma atividade, evolutiva de aspectos morais que se assumem (PAIVA, 1961, p. 30).
Sobre o tom ingênuo, Paiva o relaciona à ironia pura, sendo essa bem
pertinente a esse modo de expressão. A manifestação desse tom se revela na
inversão, dizendo-se uma coisa aparentando o tom de voz em sentido oposto, o que
é bem peculiar à ironia pura, quando se diz dizer uma coisa cruel em tom amável. “O
ingênuo forçado admite gamas muito variadas, desde a insinuação aparentemente
despreocupada, até a ignorância ou a dúvida, fingidas também e misturadas com
certa dose de pseudo-humildade” (PAIVA, 1961, p. 30). As pessoas que assim se
utilizam desse tom, são comumente identificadas como “cínicas” e já se revelam
irônicas no desmentido da própria expressão do clima da fala em sentido oposto ao
enunciado.
O tom retórico acontece por uma alteração deliberada no discurso, em que o
aumento das proporções deixa de ser um meio e torna-se um fim, fazendo emergir a
ironia por excesso ou por defeito. O tom enfático e rebuscado nos termos, peculiar à
hipérbole do espírito, ao ser utilizado em afirmações banais, demonstra o tom
humorístico da sentença. A dissonância que expõe o clima de ironia fica por conta
do tom das exclamações e invocações clássicas aplicadas no discurso de maneiras
solenes e ao mesmo tempo estereotipadas. Esse é um dos meios mais usais desse
clima de ironia se revelar. Há uma procura por efeitos empolados, longos períodos,
palavras complicadas e raras. Termos e construções de orações que dêem margem
ao ridículo.
120
A morte: um encontro com o desamparo
Paiva ressalta algumas especificidades da linguagem religiosa, para nesse
contexto destacar o tom sagrado como um clima da ironia. A linguagem sacra porta
traços especiais pela questão dos sentimentos que envolvem as relações com a fé.
É uma linguagem de características próprias, mesmo assim, com os diferenciais das
diversidades de cada credo religioso. O vocabulário religioso transferiu-se para a
rotina diária e alguns vocábulos desse contexto sacro passaram a ser pronunciados
com espontaneidade. O uso corrente desses faz parceria com a linguagem do senso
comum e favorece a harmonia com o pitoresco. É da dissonância que surge esse
par de expressões, advinda de contextos distintos, que o clima da ironia encontra um
campo fértil a se revelar. Como exemplo, Paiva cita termos usais como: “a profissão
é um sacerdócio, consagra-se aos filhos, santuário da família. Nessas expressões,
realizou-se uma extensão de sentido que lhes deu valor simbólico” (PAIVA, 1961, p.
43). Elevando a um grau de superioridade em função do que porta o referente
“sacro”.
Em outros casos, o resultado pode não gerar esse sentido de transposição
que torne o efeito “superlativante”. A relação estabelecida ao ser evocado o termo
religioso pode dificultar a passagem ao sentido próprio figurado e assim produzir um
efeito pitoresco. Como também indicar o pitoresco sem produzir o efeito do risonho e
fútil, apenas a dissonância com a natureza religiosa, como condensação de opostos
numa mesma expressão. Como exemplo o termo “batismo do ar significando a
iniciação na navegação aérea, ‘deitar água benta’, com o sentido de usar de
benevolência” (PAIVA, 1961, p. 43).
Numa outra prespectiva, a linguagem religiosa pode evocar o tom de retórica,
o que Paiva denomina de natureza hipersémica. No contexto dessa linguagem, “o
tom retórico é uma ampla hipérbole interior, no tom sagrado, até porque a linguagem
genuinamente religiosa é de difícil imitação, a ironia atua, sobretudo pelo poder de
evocação das palavras relacionadas com o sentimento religioso” (PAIVA, 1961, p.
43). A ironia tem no universo do sagrado outras possibilidades de manifestação,
além do efeito principal da “superlativação”. Nas observações de Paiva, destaca-se:
A possibilidade de se usar um concretismo, rico de virtualidades dentro do realismo e da ironia, que se baseia num metaforismo religioso. Cerimônias religiosas, partes da missa, orações, tudo pode servir de elemento de transposição: essa transposição não se dá, no entanto, sem que essas realidades se tenham reduzido a um aspecto puramente exterior ou formal, o
121
A morte: um encontro com o desamparo
que implicitamente pressupõe uma redução de valor, uma depreciação. Nesse caso a ironia atua triplamente: sobre a noção substituída, que engrandece hiperbolicamente pela participação da dignidade religiosa; sobre o termo religioso, que degrada irreverentemente pela correspondência estabelecida; e sobre a palavra através da qual realiza a fusão dos dois aspectos, que vale como um elemento de dissonância, um encontro de contrários” (PAIVA, 1961, p. 44).
No clima do universo sacro a ironia atua pelo poder da evocação das
palavras, assim como pelo poder da evocação do sentimento religioso que a palavra
faz emergir. Esse sentimento relaciona-se “ao sentimento de temor, e este com a
ansiedade e o tenebroso, que envolvem o sentimento de mistério. Por isso incluímos
dentro do tom religioso a alusão a algo misterioso, de que a ironia tira tão
freqüentemente partido” (PAIVA, 1961, p. 47). Nessas inúmeras referências consiste
a extensão de alcance da ironia dentro desse “clima” do sagrado.
No tom científico, a ironia encontra seu aporte no contraste entre o rigor
atribuído pelo método científico a um objeto e a importância real desse objeto. O
excesso de objetividade do discurso científico prima pela exatidão e pela
comprovação e nega a expressão da subjetividade. A impessoalidade é o ponto de
atuação da ironia nesse tom. A ironia pode atuar por justaposição (entre a
perspectiva comum e a perspectiva científica dissonante); por insinceridade (adota a
fantasia no lugar da realidade); por contraste (entre a objetividade e a subjetividade).
Em todos os casos visa ao contraponto entre coisas insignificantes ou subjetivas e à
participação dessas dentro do contexto da impessoalidade e racionalidade do
discurso científico.
O último tom apresentado por Paiva é o familiar. O traço marcante desse tom
de ironia é a oralidade, desse modo, carregada de emoção e espontaneidade, dada
à proximidade afetiva e íntima marcante num grupo familiar. “A única linguagem
escrita naturalmente próxima da linguagem familiar é a que se desenvolve em
correspondência” (PAIVA, 1961, p. 51). Os outros tipos de escrita dados à
especificidade a que se destina em cada construção de estilo, não têm como atingir
essa naturalidade e ausência completa de constrangimento, peculiar ao familiar.
A exceção fica por conta da habilidade do escritor em querer
conscientemente assimilar a linguagem oral a seu estilo. Ou seja, deliberadamente
abrir mão da seriedade; convidar o leitor a participar da ínfima construção interna da
trama e opinar em diálogo como se fosse um confidente que constrói junto o enredo.
122
A morte: um encontro com o desamparo
Nesse caso, a linguagem adquire a informalidade oral, reproduz a naturalidade e a
emotividade do contexto familiar e o clima de humor aparece.
2.3.2 Ironia: Labirinto do discurso.
Era uma vez uma choupana que ardia na estrada; a dona, - um triste molambo de mulher, - chorava o seu desastre, a poucos passos sentada no chão. Senão quando, indo a passar um homem ébrio, viu o incêndio, viu a mulher, perguntou-lhe se a casa era dela. - É minha, sim, senhor; é tudo que possuo nesse mundo. - Dá-me licença que eu acenda ali o meu charuto? (Machado de Assis).
Refletir sobre a amplitude da manifestação da ironia remete ao primeiro traço
básico de sua ação: revelar um contraste entre uma realidade e uma aparência.
Como também é estar atento ao caráter duplo que a ironia faz cindir, na enunciação
do texto. Ou seja, aponta a escansão possível de ser escamoteada na linearidade
do discurso. A presença de dualidades na linguagem e na constituição humana
sempre se colocou como um ponto de interesse peculiar à psicanálise. Desse modo,
o tema da ironia, em parceria com o chiste, está presente no estudo freudiano.
A ironia ilustra de maneira exemplar a força da palavra apreendida na divisão
de par antitético, ou ainda no deslizamento possível nas várias expressões a que se
apresenta. Os pares de opostos em alguma medida são complementares e
necessários; o “não” resignifica o “sim” tanto quanto a “morte” resignifica a “vida”. Há
um par dialético na base da existência humana, ressaltada com mais evidência após
a descoberta freudiana do inconsciente. No texto A instância da letra no inconsciente
ou a razão depois de Freud, Lacan ressalta o interesse de Freud “daquilo que
chamamos a letra do discurso, em sua textura, seus empregos e sua imanência na
matéria em causa” (LACAN, 1998, p. 513). E acrescenta:
123
A morte: um encontro com o desamparo
A obra de Freud nos apresenta uma página de referências filológicas a cada três páginas, uma página de inferências lógicas a cada duas páginas e, por toda parte, uma apreensão dialética da experiência, vindo a analítica linguageira reforçar ainda mais suas proporções à medida que o inconsciente vai sendo mais diretamente aplicado (LACAN, 1998, 513).
A partir da aceitação deste cogito, percebeu-se o que Freud chamou de
terceira grande ferida narcísica da humanidade: o “Eu” não é dono do seu ser; a
incompletude estava formalizada. Em Freud, essa ironia, inerente à constituição
humana, atinge mais profundamente, pois além de não dominar o universo ao seu
redor, o ser humano não domina a si próprio, seu universo interior é cindido. O
inconsciente, ao se manifestar nas brechas do sonho, do lapso, dos chistes, dos
atos falhos, ou nos menores deslizes da linguagem cotidiana, comprova a dialética
do existir118.
A idéia do duplo é recorrente na teoria freudiana, seja “nas posições libidinais
sucessivas do indivíduo (ativo-passivo, fálico-castrado, masculino-feminino), na
noção de ambivalência, no par prazer-desprazer e nos dois dualismos pulsionais
(amor e fome, vida e morte)” (JORGE, 2000, p.104). Seja em que campo de ação
for, é marcante o reflexo de uma cisão que está base da formação da psique
humana. A dualidade119 em Freud pode ser entendida, segundo Garcia Roza:
Freud não é um dualista, no sentido filosófico do termo, o que ele faz é pensar em termos de dualidades, de categorias que se opõem dialeticamente, e cujos termos implicados nessa oposição não existem fora dessa relação de oposição. Nada que possa ser identificado à distinção ontológica entre a res cogintans e a res extensa cartesiana. A diferença que estou fazendo entre ‘dualismo’ e ‘dualidade’ pode ser resumida no seguinte: no dualismo, as entidades implicadas preexistem e são exteriores às relações que estabelecem, enquanto que numa dualidade, os elementos que se formam só existem na e pela relação estabelecida. Nesse sentido, os ‘dualismos’ freudianos são muito mais dualidades do que dualismos propriamente ditos (GARCIA-ROZA, 2002, p. 276).
118 “Qualquer que seja o encaminhamento do enfoque discursivo da ironia, ele não poderá escamotear a idéia de que tanto a filosofia quanto a psicanálise tocaram em questões essenciais ao tratamento do discurso, como é o caso da dimensão enunciativa envolvendo os conceitos de sujeito e de inconsciente” (BRAIT, 1996, p. 47). 119 Achamos pertinente citar essa distinção entre dualidade e dualismo, uma vez que utilizamos os dois termos, porém sempre no sentido freudiano de dualidade.
124
A morte: um encontro com o desamparo
Desde as primeiras formulações teóricas, Freud já aponta esse
desconhecimento do sujeito, que se faz representar nas falhas do recalque, espaço
de construção da linguagem. É no artigo sobre A Significação Antitética das Palavras
Primitivas120 [1910] que Freud traz a dualidade para o campo da palavra. Chama a
atenção para a composição dos contrastes, peculiar à linguagem dos sonhos, assim
como a estrutura de palavras primitivas na língua egípcia. Nos sonhos os contrários
são tratados sem rigor; “os sonhos mostram uma preferência particular para
combinar os contrários numa unidade ou para representá-los como uma e mesma
coisa” (FREUD, [1910] 1990, p. 141).
Os sonhos, como uma das vias de fala do inconsciente, revelam-se a seu
próprio modo. Essa singularidade confere ao trabalho dos sonhos a inusitada
possibilidade de fazer uso de “qualquer elemento, por seu contrário de desejo; não
há, assim, maneira de decidir, num primeiro relance, se determinado elemento que
se apresenta por seu contrário está presente nos pensamentos do sonho como
positivo ou negativo” (FREUD, [1910] 1990, p. 141). Em relação à língua arcaica,
Freud resgata no trabalho do filólogo a capacidade peculiar a essa língua arcaica
destacando o fato:
De todas as excentricidades do vocabulário egípcio, talvez a característica mais extraordinária seja que, excetuando inteiramente as palavras que aliam significações antitéticas, ele possui outras palavras compostas em que dois vocábulos de significações antitéticas se unem de modo a formar um composto que tem a significação de um apenas de seus dois componentes (FREUD, [1910] 1990, p. 143).
Coutinho Jorge observa que Freud rastreia, a partir do artigo de Karl Abel,
“nessa estrutura das palavras primitivas uma espécie de paradigma que permite dar
conta de uma série de fenômenos inconscientes” (JORGE, 2000, p. 106). Freud
aponta na excentricidade dessa língua arcaica um fundamento de estrutura da
linguagem que será retomada por Lacan na articulação com a Lingüística. Freud
acrescenta ainda, em nota de rodapé, que “é plausível supor, também, que a
significação antitética original de palavras revele o mecanismo pré-formado que se 120 De acordo com Ernest Jones, esse texto foi escrito por Freud após ler um artigo de Karl Abel [1884] de Ensaios filológicos. O texto de Freud trata da relação dos contrários e contradições comuns ao trabalho do sonho e também da língua egípcia primitiva. Faz uma analogia desse mecanismo com o funcionamento do inconsciente, e seus escapes pelos lapsos de linguagem.
125
A morte: um encontro com o desamparo
explora com finalidades várias nos lapsos de linguagem de que resulta dizer-se o
oposto (do que o inconsciente se tencionava)” (FREUD, [1910] 1990, p. 146).
É na palavra que o sujeito se estrutura e é por ela que se guia para apropriar-
se de seu ser, até onde isso lhe é possível. Freud conclui esse artigo com uma
importante observação:
Na correspondência entre a peculiaridade do trabalho do sonho mencionado no início do artigo e a prática descoberta pela filologia nas línguas mais antigas, devemos ver uma confirmação do ponto de vista que formamos acerca do caráter regressivo, arcaico da expressão de pensamentos em sonhos. E nós psiquiatras não podemos escapar à suspeita de que melhor entenderíamos e traduziríamos a língua dos sonhos se soubéssemos mais sobre o desenvolvimento da linguagem (FREUD, [1910] 1990, p. 146).
Uma outra referência de Freud, neste mesmo sentido da ambivalência da
palavra, está no texto O estranho121 (heimlich-unheimlich). Freud demonstra o
desdobramento desse adjetivo alemão para o sentido oposto, ou seja, contendo ele
mesmo a duplicidade. Do rastreamento que Freud desenvolve nesse estudo, O
estranho conduz ao seu oposto. Ao que é familiar, porém perpassando o oculto, o
lúgubre, o obscuro, o sinistro, o inquietante, o macabro; “somos tentados a concluir
que aquilo que é ‘estranho’ é assustador precisamente porque não é conhecido e
familiar” (FREUD, [1919] 1990, p. 277). Coutinho Jorge destaca que há um ponto de
torção nos deslizamentos dos sentidos e que “formam uma seqüência que começa
com o mais ‘conhecido’ e chega ao mais ‘estranho’ justamente por contigüidade que
pode percorrer gradações que se iniciam no familiar, passam pelo íntimo-secreto-
furtivo e conduzem ao estranho” (JORGE, 2000, p. 109). Essa nuança da palavra é
bem representada, principalmente no texto literário, em especial, na literatura
fantástica.
No texto O interesse científico da psicanálise [1913], na segunda parte (A) O
interesse filológico da psicanálise, Freud ressalta o ponto comum entre esses dois
campos de saber.
121 Grande parte desse texto já está mencionada no primeiro capítulo deste trabalho.
126
A morte: um encontro com o desamparo
A expressão ‘fala’ deve ser entendida não apenas como significando a expressão do pensamento por palavras, mas incluindo a linguagem dos gestos e todos os outros métodos, como, por exemplo, a escrita, através da qual a atividade mental pode ser expressa (FREUD, [1913] 1990, p. 211).
Freud retoma a comparação anterior entre os sonhos e a estrutura da
linguagem. O sonho como uma expressão onírica em que conteúdos contrários
podem se representar uns aos outros. Essa linguagem traduz os pensamentos
oníricos latentes, peculiaridade desse tipo de “sistema altamente arcaico de
expressão”. É a via régia de revelação do inconsciente. “Na linguagem onírica, os
conceitos são ainda ambivalentes e unem dentro de si significados contrários” em
comum analogia “com as hipóteses dos filólogos, das mais antigas raízes das
línguas históricas” (FREUD, [1910] 1990, p. 211). Esclarecendo melhor a questão
Freud afirma:
Se pensarmos que os meios de representação nos sonhos são principalmente imagens visuais e não palavras, veremos que é ainda mais apropriado comparar os sonhos a um sistema de escrita do que a uma linguagem. Na realidade, a interpretação dos sonhos é totalmente análoga ao deciframento de uma antiga pictográfica, como os hieróglifos egípcios. Em ambos os casos há certos elementos que não se destinam a serem interpretados (ou lidos, segundo for o caso), mas têm por intenção servir de ‘determinativos’, ou seja, estabelecer o significado de algum elemento. A ambigüidade dos diversos elementos dos sonhos encontra paralelo nesses antigos sistemas de escrita, bem como a omissão de várias relações, que em ambos os casos têm de ser suprimida pelo contexto (FREUD, [1910] 1990, p. 212).
No rastro das estratégias de expressão da linguagem do inconsciente, Freud
sempre esteve atento aos labirintos de construção da fala e da escrita. Investiga no
cerne da manifestação da fala o outro texto (contorno) que se inscreve na
linearidade do texto expresso. Dessa feita o tema da ironia vem também fazer parte
das inserções do interesse da psicanálise no campo da linguagem. Freud trata do
conceito de ironia no texto Os chistes e sua relação com o inconsciente122 [1905].
122 Este livro de Freud, à época do lançamento, não obteve todo o reconhecimento que conseguiu posteriormente. Depois, veio a ser considerado um dos textos base da psicanálise, formando trilogia com A interpretação dos sonhos e a psicopatologia da vida cotidiana.
127
A morte: um encontro com o desamparo
Neste, ele a situa muito próxima ao chiste. Abordaremos o chiste, para melhor
entendermos essa relação.
Freud investiga, no texto acima citado, a presença do chiste, na literatura
estética e na psicologia, ressalta a importância desses dois campos para a
compreensão da natureza dos chistes e o quanto essa atenção está sendo
negligenciada por ambos. “A primeira impressão derivada da literatura é que é bem
impraticável tratar os chistes, a não ser em conexão com o cômico”. Freud destaca
que o chiste é uma produção subjetiva e bem sucedida, do sujeito, a partir da
observação de dada realidade objetiva; revela-se no cômico ou na comicidade, que
ao ser emitida demanda interpretação; demanda a participação do outro.
O chiste, para se revelar no cômico ou na comicidade, usa mão de recursos e
a caricatura é uma via de abordagem. Ao exibir a comicidade presente no estético
quando colocado fora do padrão (dos determinantes estéticos contextuais, entre o
belo e o feio) o chiste torna esse cômico accessível sem o abordar diretamente. Ele
lança luz sobre o detalhe, que quer destacar, atribuindo um juízo que ilumine o que
quer denunciar ou abordar. “Um chiste é um juízo que produz contraste cômico;
participa já, tacitamente, da caricatura, mas apenas no juízo assume sua forma
peculiar e a livre esfera de seu desdobramento” (apud FREUD, [1905] 1990, p. 22).
Freud concorda com a característica “distintiva do chiste na classe do cômico”
destacada por Lipps sobre “a ação, o comportamento ativo do sujeito” que pratica o
chiste e o que esse ato demanda de um outro. O ponto crucial de destaque, além
desse trabalho subjetivo, é relativo também ao contraste da situação real (a peça
chave contrastante) que é focada e ampliada. O descompasso, iluminado pelo chiste
só tem êxito se produzir o efeito no outro.
Ainda entre as características123 do chiste, Freud destaca o processo de
condensação, também presente no trabalho elaborado pelos sonhos. O resumo, ou
o recorte bem sucedido elaborado pelo chiste, retirado de um contexto maior,
revelado num breve reflexo, contraste da realidade e que revela o todo.
123 Freud destaca a condensação e enumera didaticamente os seus desdobramentos, referindo esse mecanismo de ato da linguagem como a característica mais importante do chiste. O deslocamento também é apontado em outros exemplos, ficando assim, a manifestação dos chistes, similar aos sonhos como vias de expressão do inconsciente.
128
A morte: um encontro com o desamparo
A brevidade dos chistes é freqüentemente o resultado de um processo particular que deixa um segundo vestígio na verbalização do chiste – a formação de um substituto. Pela redução do procedimento de redução, que procura desfazer esse peculiar processo de condensação, verificamos também que o chiste depende inteiramente de sua expressão verbal tal como estabelecida pelo processo de condensação (FREUD, [1905] 1990, p. 42).
O processo de condensação é destacado como sendo a característica mais
comum, e também marcante, na elaboração dos chistes. Com raras exceções a
alguns tipos de chistes determinados pela própria estrutura de alguma língua
(chistes fônicos) em que o som da língua atua como participante do efeito. É o caso
de duas palavras distintas serem pronunciadas com o mesmo som e poderem ser
(usadas de duas maneiras) pronunciadas num determinado contexto que faça surgir
o efeito chistoso. Os chistes têm um vasto campo de atuação, tais quais as
possibilidades se façam emergir nas palavras, no jogo de combinações124, às quais
as mesmas se oferecem. “As palavras são um material plástico, que se presta a todo
tipo de coisas. Há palavras que, usadas em certas conexões, perdem todo o seu
sentido original, mas o recuperam em outras conexões” (FREUD, [1905] 1990, p.
49).
É em continuidade à análise da técnica dos chistes que Freud pontua um
espaço para a ironia. Coutinho Jorge observa que a ironia não tem sido uma figura
de destaque nos estudos clínicos da psicanálise, tanto em Freud quanto nos demais
pós-freudianos. Mesmo Lacan, que seguiu passos na base da teoria em Freud,
dando-lhe especial enfoque, não privilegiou estudo destacado a essa figura. Jorge
atribui essa omissão teórica, em relação à figura da ironia, dada a dificuldade
apresentada pela própria figura em se deixar apreender. “Certamente é a ela que
podemos atribuir, em grande parte, a dificuldade de sua leitura, pois na fala a ironia
é detectável pela enunciação, ao passo que na escrita ela impõe uma decifração”
(FREUD, [1905] 1990, p. 111).
Desse modo, é na décima parte da análise das características dos chistes
que Freud vai pontuar a ironia, especificamente em seu campo mais restrito e
especializado; o da representação pelo oposto. Freud ressalta muita importância a
124 Freud destaca um exemplo de chiste citado por Lichtenberg em que as palavras esvaziadas são levadas a recuperar seu sentido pleno: “Como você anda? – perguntou um cego a um coxo. Como você vê – respondeu o coxo ao cego” (LICHTENBERG, apud FREUD, [1905], 1990, p. 49). Freud destaca outros inúmeros exemplos de tipos distintos de chistes em textos literários, incluindo principalmente Shakespeare.
129
A morte: um encontro com o desamparo
essa representação pelo oposto, usada na técnica dos chistes e também na ironia
seja por meio da evocação de termos com duplo sentido, seja na demasiada
valorização de detalhes pouco importantes usados em sentidos comparativos. Nesse
ponto ele aproxima o trabalho do chiste ao da ironia, como também destaca o fato
de os dois atuarem juntos, originando os “chistes irônicos”.
Refiro-me à ironia, muito próxima do chiste e contada entre as subespécies do cômico. Sua essência consiste em dizer o contrário do que se pretende comunicar a outra pessoa, mas poupando a esta uma réplica contraditória fazendo-lhe entender – pelo tom de voz, por algum gesto simultâneo, ou (onde a escrita está envolvida) por algumas pequenas indicações estilísticas – que se quer dizer o contrário do que diz (FREUD, [1905] 1990, p. 199).
Após apontar esse campo de atuação comum e até de atuação conjunta do
chiste e da ironia, o da representação pelo oposto, além do prazer cômico que
ambos propiciam; Freud destaca uma crucial distinção no tipo de leitura que ambos
evocam e favorecem. A ironia só tem o efeito assegurado quando a outra pessoa
está em condições de compreender, ser provocada em apontar sua contradição.
“Isso produz prazer cômico no ouvinte, provavelmente porque excita nele uma
contraditória despesa de energia” (FREUD, [1905] 1990, p. 199). Freud coloca essa
observação em referência à construção dos chistes serem evocadas a partir de uma
relação com o inconsciente. Coutinho Jorge destaca o fato de a ironia “ilustrar de
modo excelente o caráter antitético do significante” (JORGE, 2000, p. 109).
Uma comparação como essa, entre os chistes e um tipo de comicidade, que lhes é intimamente relacionada, pode confirmar nossa pressuposição de que a característica peculiar dos chistes é sua relação com o inconsciente, o que permite talvez distingui-los também do cômico (FREUD, [1905] 1990, p. 199).
Freud pontua como peculiar da ironia e não do chiste o jogo da enunciação de
termos opostos, quando a inversão de um sim por um não é muitas vezes no sentido
de intensificar o dito oposto, intensificar o sim. Freud evoca o discurso em Hamlet:
‘há mais coisas no céu e na terra do que sonha vossa filosofia’, e o coloca em
oposição à resposta irônica de Lichtenberg acrescentando a ironia do príncipe, ‘Mas
130
A morte: um encontro com o desamparo
há também na filosofia muita coisa que não é encontrada no céu ou na terra’
(FREUD, [1905] 1990, p. 90). Freud vê nesse jogo de sentenças um caráter de
inversão intensificado, só possível de alcançar o extremo êxito pela linguagem da
ironia.
Para Coutinho Jorge, o interesse da psicanálise pela ironia é referente a sua
forma discursiva, que revela, como nenhuma outra, a questão da enunciação e do
sujeito. Essa atuação acentuada com extrema eficácia, nas palavras de Jorge
comprova que
A ironia manifesta a possibilidade, inerente a todo significante, de produção da significação antitética, na medida em que esta revela a função sujeito em seu caráter radicalmente cindindo. A ironia é exemplar para evidenciar o sujeito do inconsciente, na medida em que nela, não se produzindo nenhuma alteração no enunciado, mas apenas na enunciação, o sujeito fica como que reduzido ao seu verdadeiro lugar – entre significantes (JORGE, 2000, p.109, grifo do autor).
Além de poder ser representada em várias modalidades de expressões e na
diversidade de tipos que já foi referida, a ironia circula muito à vontade na linguagem
popular. Nesse vasto campo de manifestação, seja pela mais evidente antífrase, em
que exprime a idéia no extremo de sentido oposto com palavras de significação
contrárias, seja por Parêmia: repete um discurso ridicularizando pensamentos
estereotipados e já conhecidos, realçando seu sentido de galhofa; seja por
sarcasmo, seja por mioterismo, no qual infere com intensa agressividade inflexões
injuriosas; e/ou, ainda, por eufemismo ou asteísmo, a forma de representação
irônica mais diplomática, sutil ou delicada de dizer uma coisa, satiricamente
querendo dizer o seu oposto, mas atenuando a intensidade agressiva das palavras.
O notório, na figura da ironia, é que cotidianamente, no texto oral ou escrito, ela se
revela, e simboliza a força do caráter antitético do significante.
131
Literatura e psicanálise: possibilidades de diálogo
Gradiva
SEÇÃO III
LITERATURA E PSICANÁLISE: POSSIBILIDADES DE DIÁLOGO
132
Literatura e psicanálise: possibilidades de diálogo
DIÁLOGO ENTRE MESTRES: MACHADO DE ASSIS E SIGMUND FREUD
• Pontos de convergência: literatura e psicanálise.
• Machado de Assis - Sigmund Freud: intertextualidades.
Machado de Assis Sigmund Freud
133
Literatura e psicanálise: possibilidades de diálogo
3.1.1 Pontos de convergência: literatura e psicanálise
Seja qual for o caminho que eu escolher, um poeta já passou por ele antes de mim (Sigmund Freud).
Aproximar a literatura e a psicanálise é uma agradável – ainda que desafiante
– tarefa. A tentativa é fazer emergir a singularidade do texto sem moldá-lo ao
enquadre de leitura clínica, atentos para acolher as inúmeras possíveis leituras
advindas de outras referências teóricas, como também observar a impossibilidade
de esgotar uma leitura interpretativa. Um outro cuidado igualmente importante é
respeitar a construção ficcional, não caindo no engodo de mesclar a análise do
protagonista ao autor. Nesse sentido, Leila Perrone-Moisés destaca a contribuição
de Lacan e seus discípulos ao trabalho iniciado por Freud.
Ao colocar, como ponto de partida de sua teoria, que ‘o inconsciente é estruturado como uma linguagem’, e ao propor um trabalho de tipo sintático, que busca captar a cadeia de significantes e não o significado último (vazio), essa corrente psicanalítica nos permite: (1) lembrar que o texto literário é, antes de mais nada, obra de linguagem; (2) abandonar a miragem de uma interpretação última e definitiva; (3) privilegiar a produção do sentido e não a troca enganosa de sentidos plenos prévios; (4) dispensar o biografismo, que confunde indivíduo falante com enunciador (PERRONE-MOISÉS, 1990, p. 112).
Na análise freudiana de textos literários, encontramos ainda a vinculação da
obra à pessoa do autor, ainda que ele mesmo reconheça a limitação desse trabalho
ao afirmar que: “diante do problema do artista criador, a análise, ai de nós, tem que
depor suas armas” (FREUD, [1927] 1990, p. 205). Esse fato por ele percebido é bem
justificado no discurso do prêmio Goethe125. Reconhece essa necessidade, no misto
de ambivalências despertadas nos receptores da obra. Ocorre a tentativa de uma
125O ‘prêmio Goethe’ foi criado pela cidade de Frankfurt em 1927. Era concedido a ‘uma personalidade de realizações já firmadas cuja obra criadora fosse digna de uma honra dedicada à memória de Goethe’. O prêmio foi concedido a Freud em 1930. Por motivos de saúde ele não pôde comparecer, sendo representado por Anna Freud, que procedeu a leitura do discurso enviado pelo pai (PAQUET, apud FREUD, [1930] 1990, p. 238).
134
Literatura e psicanálise: possibilidades de diálogo
identificação com o homem criador em seus êxitos tanto quanto em sua “frágil”
parcela de humanidade.
Mas como podemos justificar uma necessidade desse tipo, a de obter conhecimento das circunstâncias da vida de um homem, quando suas obras se tornaram tão plenas de importância para nós? As pessoas geralmente dizem que se trata de nosso desejo de nos aproximarmos de tal homem também de maneira humana. Aceitemos isso; trata-se então da necessidade de adquirir relações afetivas com esses homens, acrescentá-los aos pais, aos professores, aos exemplos que conhecemos ou cuja influência já experimentamos, na expectativa de que suas personalidades sejam tão belas e admiráveis quanto as obras deles que possuímos. [...] Mesmo assim, podemos admitir que existe ainda outra força motivadora em ação. A justificação do biógrafo também contém uma confissão. [...] E é inevitável que se aprendermos mais a respeito da vida de um grande homem, ouviremos também falar de ocasiões em que ele, de fato, não se saiu melhor do que nós, em que, na realidade, se aproximou de nós como ser humano (FREUD, [1930] 1990, p. 245).
Apesar desse reconhecimento, Freud defende a legitimidade do estudo
biográfico, inclusive, também, por revelar esse caráter ambivalente de aproximação
humana à obra do criador. Defende que o aproveitamento de aprendizagem final
possível a um estudo dessa natureza justifica suas limitações. Essa ressalva fica
resguardada no detalhe de “ser uma das principais funções de nosso pensamento
dominar psiquicamente o material do mundo externo” (FREUD, [1930] 1990, p. 245).
Nesse sentido, mesmo com as possíveis lacunas, ele destaca “que agradecimentos
são devidos à psicanálise se, quando aplicada a um grande homem, ela contribui
para a compreensão de sua grande realização” (FREUD, [1930] 1990, p. 246).
Para falar da condição da existência humana, entendemos que a Psicanálise
situa-se muito mais próxima dos campos de saber onde a produção é
caracteristicamente singular (com especial destaque, a Arte, a Literatura, a Filosofia,
a História), do que o campo da ciência, embora se situe também no âmbito científico,
por ter um método. Ainda assim, a Psicanálise não pode ser generalizada, seu
método se renova em cada encontro. É absolutamente original a cada sujeito que a
experimenta.
Lacan nos ensina que o ser humano estrutura-se no campo da linguagem de
um simbólico já constituído, marcado pelo ato de quem particularmente o recebe,
portanto, marcado pelo desejo (palavra) de um outro; pelo imprevisto de
135
Literatura e psicanálise: possibilidades de diálogo
experiências singulares. A verdade visada pela psicanálise é singular, própria de
cada sujeito; é uma verdade a ser construída no campo da palavra e da ética, a ética
do desejo. “O saber psicanalítico não funciona, assim, em posição de verdade, a não
ser na medida em que opera como saber furado, afetado por uma falha central – o
que determina o estatuto da verdade enquanto semidizer” (ANDRÉ, 1994, p. 10).
É pela palavra que o ser falante tenta construir sua verdade ou pelo menos
fazê-la representar. “Para além dessa fala, é toda a estrutura da linguagem que a
experiência psicanalítica descobre no inconsciente” (LACAN, 1996, p. 498). É pela
palavra que se faz a tentativa de assimilação do mundo exterior e a elaboração de
respostas frente ao enigma do existir. “O próprio das palavras é desviar-nos do
caminho reto do sentido” (PERRONE-MOISÉS, 1990, p. 14). O próprio das palavras
é transfigurar-se em seus múltiplos sentidos e jogar o sujeito no engodo de sua
enunciação.
Lacan, dando seguimento à descoberta freudiana, lança luz sobre a teoria da
psicanálise com o conceito do inconsciente estruturado como uma linguagem, o que
implica na compreensão da linguagem como condição do inconsciente. Examinou o
campo da linguagem e de seus elementos constitutivos. Tomou como referência a
teoria lingüística de Ferdinand de Saussure. Para este, o signo lingüístico é uma
entidade psíquica de duas faces, não une uma coisa a um nome, mas um conceito a
uma imagem acústica. Saussure substitui conceito por significado e imagem acústica
por significante. O signo passa a ser a relação de um significado com um
significante. Lacan inverte essa relação e dá primazia ao significante.
O significante ganha sentido quando remetido a um outro significante, seu
deslocamento se dá por cadeias. Roland Chemama diz a respeito desta primazia: ”Se o significante for concebido como autônomo em relação à significação, ele irá,
portanto, assumir uma função completamente diferente da de significar: a de
representar o sujeito e também determiná-lo” (CHEMAMA, 1995, p. 198). A forma de
utilizar o termo significante vai ser fundamental para a Psicanálise. Essa
consideração ganha maior clareza nas palavras de Chemama:
O significante não é apenas um efeito de sentido. Ele comanda ou pacifica, adormece ou desperta. Talvez fosse ainda mais importante do que a referência à lingüística, a referência que podemos fazer à poética. Como o poeta, o analista está atento às diversas conotações do significante, que ampliam as possibilidades da interpretação (CHEMAMA, 1995, p. 199).
136
Literatura e psicanálise: possibilidades de diálogo
No ensino de Lacan, o ser humano é um ser de pura linguagem, sua verdade
joga-se de uma palavra para outra numa incessante construção subjetiva em busca
de seu desejo. É característica do desejo ser metonímia da falta; deslizar de
significante a significante numa constante insatisfação que assegura novos
investimentos. O desejo é aquilo que escapa sempre, pois é na falta que se
constitui. Freud evidenciou que a Psicanálise é uma experiência da palavra em
transferência de amor; suporte para o sujeito responder frente ao enigma de seu
desejo.
A linguagem da arte, a palavra literária, foi ricamente usada por Freud além
da aparência de sentido. Como grande leitor apaixonado pelo texto, ampliou seu
estudo ao campo da investigação. Reconstruiu a partir do texto literário
desdobramentos, vislumbrando a possibilidade de aprendizagem. Da referência
estética inicial (escapando aos riscos do reducionismo), para o estudo do texto
privilegiando o conteúdo, transferiu para a psicanálise um saber advindo da
literatura.
A literatura, não importando a verossimilhança de sua informação, fala-nos da
estrutura humana. É um tipo de discurso que atua na constituição do sujeito,
gerando efeitos na psique. Segundo Jean Bellemin-Noël, a importância da literatura
na formação humana se sobrepõe ao ato de ler, impregna-se em seus efeitos
cotidianos na parcela não-consciente que o texto transmite. É pela literatura “que
tomamos consciência de nossa humanidade, que pensa, que fala. [sic] [...] é por ela
que o homem se interroga sobre si mesmo, sobre seu destino cósmico, sua história,
seu funcionamento social e mental” (BELLEMIN-NOËL,1978, p.12).
Da mesma maneira que o psíquico não constituía uma espécie de bloco unitário com suas simples superposições e repartições de competências. A escritura das grandes obras não poderia ser assimilada à transmissão de uma mensagem dotada de um único sentido evidente. As palavras de todos os dias reunidas de uma certa maneira adquirem o poder de sugerir o imprevisível, o desconhecido; e os escritores são homens que, escrevendo, falam, sem o saberem, de coisas que literalmente ‘eles não sabem’. O poema sabe mais que o poeta (BELLEMIN-NOËL,1978, p.13).
137
Literatura e psicanálise: possibilidades de diálogo
Freud teve a genial sensibilidade de perceber essa íntima relação. Recorre à
referência do discurso mítico como modelo de construção da estrutura humana.
Constrói a base para algumas formulações fundamentais à psicanálise da relação
partilhada entre literatura e psicanálise. Reconhece nas grandes obras literárias a
mestria que orienta sua construção teórica associada à clínica. “Se Freud optou por
ler O mercador de Veneza e Rei Lear como meditações sobre o amor e a morte,
nem por isso Shakespeare tornou-se um assunto de interesse puramente clínico
para ele” (GAY, 1995, p. 301).
Quer dizer, por um lado, parece estabelecer-se entre a Literatura e a Psicanálise uma relação aditiva em que se tenta acrescentar sentidos ao texto literário a partir da interpretação psicanalítica e por outro, vislumbra-se uma atitude que poderíamos chamar de extrativa, interessada em tentar resgatar do texto literário a particularidade que pudesse nutrir a Psicanálise (VILLARI, 2002, p. 21).
A linguagem é o ponto de partida para pensar esses dois campos como
comuns. “A linguagem não é só meio de sedução. Nela, o processo de sedução tem
seu começo, meio e fim. As línguas estão carregadas de amavios, de filtros
amatórios, que não dependem nem mesmo de uma intenção sedutora do emissor”
(PERRONE-MOISÉS, 1990, p. 14). A linguagem porta uma fonte de sentidos que
não se revela no simples enunciar. Camufla-se no labirinto de infindos
deslizamentos, demandando acirradas interpretações, sem nenhuma garantia prévia
de acesso à fonte do desvio. “O extremo desse desvio (ou sedução) chama-se
poesia” (PERRONE-MOISÉS, 1990, p. 14). Perrone-Moisés destaca que:
Os poetas são sedutores porque foram vítimas de uma sedução primeira, exercida pela própria linguagem. Corrompidos por essa capacidade sedutora da língua materna, os poetas se tornam seus cúmplices para seduzir terceiros. O que é sedutor nas palavras é tudo que está ao lado do sentido primeiro – o que em lingüística se chama conotação. Mas haverá mesmo um sentido primeiro, a denotação? O afinco dos semânticos em buscar esse grau zero das palavras é de puritanismo obsessivo; eles não querem ver que esse sentido primeiro é uma simulação da linguagem, e que as palavras sempre viveram em total promiscuidade (PERRONE-MOISÉS, 1990, p. 14).
138
Literatura e psicanálise: possibilidades de diálogo
Freud trabalhou com mestria a comunhão literatura e psicanálise, utilizando o
caráter aditivo e extrativo em via dupla de acesso aos dois campos de saberes de
tão íntimas relações e de similar “sedução”. Desenvolveu com destreza os prováveis
deslizamentos peculiares aos riscos dessa junção. “Absolutamente impávido Freud
entrou com coragem nesse pântano, com seu fascinante estudo da Gradiva126 de
Jesen. Ele o redigiu, disse a Jung, ‘em dias ensolarados’, e o texto deu-lhe ‘muito
prazer’” (GAY, 1995, p. 298).
A primeira sedução interpretativa que o romance Gradiva oferece a Freud
está em referência ao estudo dos sonhos. Conforme já havia publicado A
interpretação dos sonhos127 [1900] e, nesse texto, afirmado serem os sonhos
realizações de desejos, deparou-se com a dúvida da ciência e da maioria das
pessoas cultas. Admite que só as pessoas simples e supersticiosas e que se
apegam às convicções da Antiguidade, acreditam serem os sonhos passíveis de
interpretações. Afirma, então, comungar com esse pensamento das pessoas simples
e “ousou, apesar das reprovações da ciência estrita, colocar-se ao lado da
superstição e da Antiguidade” (FREUD, [1906] 1990, p. 17).
A questão que o texto Gradiva desafia, em primeira análise, é se a “classe de
sonhos que nunca foram sonhados – sonhos criados por escritores imaginativos e
por estes atribuídos ao personagem de uma história” (FREUD, [1906] 1990, p. 17)
ganham validade, se submetidos ao mesmo esquema de análises dos
verdadeiramente sonhados. Ainda pesquisando respostas às controvérsias da
recepção científica dos sonhos (como produção subjetiva do sonhador, e não
apenas mero estímulo fisiológico), Freud encontra nos escritores criativos mais
respaldos como aliados à comprovação de sua tese.
No prólogo da primeira tradução de Gradiva em língua portuguesa, Coutinho
Jorge faz uma interressante observação: “qual o passo que Freud dá com esse
texto?” (JORGE, 1997, p. 05). A partir da indicação da nota do editor inglês James
Strachey, ressalta o fascínio de Freud pela arqueologia em geral e em particular por
Pompéia. Esse fascínio é exercido “Pela analogia existente entre o destino histórico 126
Gradiva – uma fantasia pompeiana [1903] do escritor Wilhelm Jesen (1837-1911), foi a primeira análise de uma obra literária feita por Freud a ser publicada. Anterior a essa publicação havia os comentários sobre Édipo Rei e Hamlet em A interpretação dos sonhos [1900] e uma curta análise da obra de Conrad Ferdinand Meyer ‘Die Richterin’ [‘A juíza’], que enviara a Fliess, junto com a carta 91 de 20 de Junho de 1898. 127
Á época do lançamento A interpretação dos sonhos mostrou-se de pouco interesse geral e, em seis anos, foram vendidos apenas 351 exemplares. Somente em 1909 foi lançada uma segunda edição.
139
Literatura e psicanálise: possibilidades de diálogo
de Pompéia (o soterramento e posterior escavação) e os eventos mentais que lhe
eram tão familiares: o soterramento pelo recalque e a escavação pela análise”
(STRACHEY, apud FREUD, [1906] 1990, p. 14).
Dentro desta observação, Coutinho Jorge destaca o percurso de Freud no
texto de Gradiva, como traçando um verdadeiro paralelismo da associação do
método de trabalho no procedimento arqueológico e do método psicanalítico. Única
diferença apontada entre os dois, diz respeito ao material do arqueólogo já estar
destruído e o da psicanálise ainda estar vivo, apenas soterrado. Freud expõe esse
pensamento com extrema clareza no texto Construções em análise [1937],
detalhando o processo de trabalho do psicanalista.
Seu trabalho de construção, ou, se preferir, de reconstrução, assemelha-se muito à escavação, feita por um arqueólogo, de alguma morada que foi destruída e soterrada em algum edifício. Os dois processos são de fato idênticos, exceto pelo fato de que o analista trabalha com melhores condições e tem mais material a sua disposição para ajudá-lo, já que aquilo que está tratando não é algo destruído, mas algo que ainda está vivo – e talvez por outra razão também. Mas assim como o arqueólogo ergue as paredes do prédio a partir dos alicerces que permanecem de pé, determina o número e a posição das colunas pelas depressões no chão e reconstrói as decorações e as pinturas murais a partir dos restos encontrados nos escombros, assim também o analista procede quando extrai suas inferências a partir dos fragmentos de lembranças, as associações e do comportamento do sujeito da análise. Ambos possuem direito indiscutido a reconstruir por meio da suplementação e da combinação dos restos que sobreviveram. Ambos, ademais, estão sujeitos a muitas das mesmas dificuldades e fontes de erros (FREUD, [1937] 1990, p. 293).
Freud explora o texto de Gradiva tal qual o faria um arqueólogo, pelo modo
como aprofunda a exegese. Ele mesmo confessa que só pretendia analisar dois ou
três sonhos, mas que não resistiu a “dissecar toda a história e a examinar os
processos mentais dos personagens principais” (FREUD, [1906] 1990, p. 48). A
primeira justificativa para a acirrada análise foi a necessidade de favorecer uma
melhor compreensão no trabalho dos sonhos. Uma outra, foi o reconhecimento de
que o escritor criativo descreve bem os estados mentais. “A descrição da mente
humana é, na realidade, seu campo mais legítimo; desde tempos imemoriais ele tem
sido um precursor da ciência e, portanto, também da psicologia científica” (FREUD,
[1906] 1990, p. 50).
140
Literatura e psicanálise: possibilidades de diálogo
Esse interesse pelo material do escritor criativo é bem explorado no texto,
Escritores criativos e devaneios [1907]. Nesse, Freud interroga acerca do material
utilizado pelo escritor, de onde ele o retira e como consegue impressionar e provocar
emoções. Argumenta que esse interesse fica ainda mais intensificado, ao observar a
resposta dos escritores em referência a essa indagação. Eles não oferecem
respostas que satisfaçam a tal curiosidade. Antes, devolvem a questão, expondo
que o trabalho criativo é extensivo a todos, diminuindo assim a distância entre a
categoria de escritor e a do homem comum, não escritor. Asseguram “com muita
freqüência de que todos, no íntimo, somos poetas, e de que só com o último homem
morrerá o último poeta” (FREUD, [1907] 1990, p.149).
No percalço dessa construção Freud levanta mais outra questão: “Será que
deveríamos procurar já na infância os primeiros traços de atividade imaginativa?”
(FREUD, [1907] 1990, p.149). A partir dessa indagação faz uma comparação entre o
ato do brincar infantil e a produção do escritor criativo. Toma por base o fato de
ambas as atividades criarem um mundo próprio, de acordo com os devaneios
peculiares a cada particularidade. “Acaso não poderíamos dizer que ao brincar toda
criança se comporta como um escritor criativo, pois cria um mundo próprio, ou
melhor, reajusta os elementos de seu mundo de uma nova forma que lhe agrade?”
(FREUD, [1906] 1990, p. 149).
Mesmo tomando como séria a atividade de brincar e a emoção que envolve
esse ato, a criança distingue o mundo do brincar e o mundo da realidade. Faz uma
conexão ligando seus objetos e as coisas da realidade, promovendo assim uma
separação entre o brincar e o fantasiar. “O brincar da criança é determinado por
desejos: de fato, por um único desejo – que auxilia o seu desenvolvimento -, o
desejo de ser grande e adulto” (FREUD, [1907] 1990, p. 151).
Nessa perspectiva, nos jogos e brinquedos infantis ocorre a imitação do
modelo de vida dos adultos. Porém, ao crescer, a “antiga” criança pára de brincar,
abrindo mão do prazer que essa atividade proporciona. Todavia, torna-se difícil ao
ser humano renunciar a um prazer outrora conhecido e, nesse caso, o que ocorre é
uma troca: quando pára de brincar, a criatura humana fantasia, construindo, a partir
dessa, seus devaneios.
As fantasias, no adulto, não são fáceis de serem observadas, são guardadas
com a maior discrição possível. A exceção é quando o sofrimento de alguma
patologia impõe a necessidade de revelação em sigilo médico. A necessidade de
141
Literatura e psicanálise: possibilidades de diálogo
ocultá-las aponta que a essência destas fantasias causa vergonha. As fantasias
surgem em suplência às insatisfações com a realidade, é uma forma de restituir o
prazer de brincar no enfrentamento árido da verdade cotidiana. O caráter das
fantasias sinaliza, então, para os desejos e a busca por essa realização.
Freud compara, por esse argumento, o trabalho do escritor criativo à atividade
do brincar infantil. O escritor investe emoções num mundo de fantasia que leva muito
a sério, embora mantenha a nítida distinção entre esse e a realidade. “A linguagem
preservou essa relação entre o brincar infantil e a criação poética”128 (FREUD, [1907]
1990, p. 150). A não preocupação com a veracidade dos fatos aponta para a
liberdade de proporcionar pelo devaneio da criação emoções não possíveis de
suportar num encontro real com tais sentimentos. O escritor joga com as palavras e
envolve seu público no prazer lúdico. “Mas a literatura é um jogo elaborado: a
seriedade que preside a sua criação exige mais labor, suas construções são mais
complexas” (BELLEMIN-NOËL, 1978, p. 33).
O escritor produz, em geral, numa língua conforme aos usos da gramática, um discurso de quase-racionalidade e de quase mimetismo em face das condições da realidade; se ele se permite ‘licenças’ de expressão, se tem direito a uma visão ‘fantasista’ das coisas, etc., sabemos bem que são exigências da ‘arte’. Sem o engajamento de todo o homem, sem a aplicação de sua inteligência, de sua cultura, mas também sem os ‘grãos de loucura’ que, aos olhos do público, fazem do artista uma espécie de criança grande ou de perverso inofensivo, não há mais encanto possível (BELLEMIN-NOËL, 1978, p. 33).
O brincar infantil é também comparado à gratificação do espectador
participante da apresentação de uma peça teatral dramática. No texto Personagens
psicopáticos no palco [1905], Freud aborda, pela primeira vez, que uma das funções
da arte (da ficção), seja a literatura, seja o teatro ou a dança, é produzir uma
‘purgação dos afetos’ pela identificação do espectador ao herói protagonista. É a
estratégia pela qual o espectador pode, junto ao herói, desabafar sentimentos que
128 Freud destaca que a língua alemã dá o nome Spiel [‘peça’] às formas literárias que são necessariamente ligadas a objetos tangíveis e que podem ser representadas. Fala em ‘Lustspiel’ ou ‘Trauerspiel’ [‘comédia’ e ‘tragédia’: literalmente, ‘brincadeira prazerosa’ e brincadeira lutuosa], chamando os que realizam a representação de ‘Schauspieler’ [‘atores’, literalmente, ‘jogadores de espetáculo’] (FREUD, [1905] 1990, p. 150).
142
Literatura e psicanálise: possibilidades de diálogo
lhe são inacessíveis. Pelo tempo fugaz do espetáculo o espectador mergulha nas
sensações que lhe proporciona a identificação àquele herói.
[...] O espectador sabe que essa promoção de sua pessoa ao heroísmo seria impossível sem dores, sofrimentos e graves tribulações, que quase anulariam o gozo. Ele sabe perfeitamente que tem apenas uma vida, e que poderia perdê-la num único desses combates contra a adversidade. Por conseguinte, seu gozo tem por premissa a ilusão, ou seja, seu sofrimento é mitigado pela certeza de que, em primeiro lugar é um outro que está ali atuando e sofrendo no palco, e em segundo, trata-se apenas de um jogo teatral, que não ameaça sua segurança pessoal com nenhum perigo. Nessas circunstâncias, ele pode deleitar-se como um ‘grande homem’, entregar-se sem temor a seus impulsos sufocados, como a ânsia de liberdade nos âmbitos religioso, político, social, e sexual, e desabafar em todos os sentidos em cada uma das cenas grandiosas da vida representada no palco (FREUD, [1905] 1990, p. 289-290).
Para Freud, na especificidade de cada tipo de produção criativa (poesia lírica,
épica, dança, etc...) e principalmente no gênero “drama”, surge a possibilidade de
escape ao espectador para deixar fluir as emoções. O destaque à grandeza do herói
desfiando algum tipo de perigo ou alguma divindade gera prazer, mesmo quando
esse sofre a punição por essa ousadia. “Eis aí, portanto, o prometeísmo humano, só
que apequenado pela disposição de se deixar acalmar temporariamente por uma
satisfação momentânea” (FREUD, [1905] 1990, p. 290).
Nessa perspectiva, defende que o espectador, ou leitor, faz uma analogia
entre o herói e o próprio Ego. Que o sentimento com que se acompanha um herói na
ficção é o mesmo com que se acompanha um herói na realidade ou, ainda, que a
coragem do herói é a que gostaríamos de ter numa evidência real que exigisse
intrepidez, tanto quanto, que permitisse a entrega de fantasias sem a preocupação
com as censuras que a realidade impõe. Ressalta então a observação de que “na
maioria dos chamados ‘romances psicológicos’, só uma pessoa – o herói – é
descrita interiormente, como se o autor se colocasse em sua mente e observasse as
outras personagens de fora” (FREUD, [1907], 1990, p. 156).
Na análise das fantasias e devaneios constantes na “mágica” da escrita
literária, Freud destaca a importância da relação atemporal dos fatos. “É como se ela
flutuasse em três tempos – os três momentos abrangidos pela nossa ideação”
(FREUD, [1907], 1990, p. 153). Detalhe que justifica ainda mais a associação que
ele faz das fantasias ao trabalho dos sonhos. “A linguagem, com sua inigualável
143
Literatura e psicanálise: possibilidades de diálogo
sabedoria, há muito lançou luz sobre a natureza básica dos sonhos, denominando
de ‘devaneios’ as etéreas criações da fantasia” (FREUD, [1907] 1990, p. 154). Dessa
feita, conclui que as fantasias são também “sonhos” devaneados na vida – de vigília
– e, tal qual, os da formação do inconsciente, apontam para a realização de desejos.
Sendo os sonhos também atemporais, explica a relação desse fio condutor ao traço
do desejo.
O trabalho mental vincula-se a uma impressão atual, a alguma ocasião motivadora no presente que foi capaz de despertar um dos desejos principais do sujeito. Dali retrocede à lembrança de uma experiência anterior (geralmente da infância) na qual esse desejo foi realizado, criando uma situação referente ao futuro que representa a realização do desejo. O que seria então um devaneio ou fantasia, que encerra traços de sua origem a partir da ocasião que o provocou e a partir da lembrança. Dessa forma o passado, o presente e o futuro são entrelaçados pelo fio do desejo que os une (FREUD, [1907] 1990, p. 153).
Dentre as argumentações levantadas por Freud acerca de como o material do
escritor toca tão profundamente as emoções do leitor, embora não podendo
responder com precisão, atribui a principal causa desse êxito à arte do autor em
possibilitar o leitor de devanear através do herói as suas próprias fantasias, “A
verdadeira arts poética está na técnica de superar esse nosso sentimento de
repulsa, sem dúvida ligado às barreiras que separam cada ego dos demais”
(FREUD, [1907] 1990, p.158). Ou seja, possibilita abrir mão da censura e “viajar” no
prazer com que a formulação estética da fantasia e do devaneio é revestida na arte
do escritor. “Talvez até grande parte desse efeito seja devida à possibilidade que o
escritor nos oferece de, dali em diante, nos deleitarmos com nossos próprios
devaneios, sem auto-acusações ou vergonha (FREUD, [1907] 1990, p. 158).
Desde Freud, essa dupla vertente de cruzamento entre a literatura e a
psicanálise comunga afinidades, constituindo amplo recurso de aprendizagem. No
entanto, algumas questões se abrem como limites a esse circuito de igual usufruto
de proveito mútuo. O principal cuidado refere-se ao trânsito de mão única, onde a
psicanálise se beneficie sem oferecer igual retorno. Esse risco funda-se
principalmente em olhar o texto como um “inconsciente literário” a ser esgotado.
Outro grande equívoco seria buscar no texto as pistas inconscientes do autor e não
fazer distinção entre a fala do narrador e do escritor.
144
Literatura e psicanálise: possibilidades de diálogo
Os impasses apontados nesta questão ganham possibilidades de mediação
quando buscados na própria escritura do texto como autônimo, uma vez que, escrito,
ele fala por si só. “Na verdade o texto diz na medida em que é lido. Convocamos
então a figura do leitor. É este quem possibilita que o texto diga através dele,
introduzindo-se nas possibilidades de análise” (VILLARI, 2002, p. 23). Nesse
sentido, o sujeito, posicionado como leitor está “no lugar do não sabido, atravessado
pela falta perante o texto” (VILLARI, 2002, p. 26).
Com isso, podemos dizer que aquilo que nos parece poder ser questionado não é o texto literário a partir da Psicanálise, mas seu inverso, a Psicanálise a partir da Literatura. Esse posicionamento acarreta, através do texto literário, um questionamento do saber da Psicanálise, buscando nas palavras dos escritores, aquilo que não alcançamos dizer (VILLARI, 2202, p. 26).
Recorrentemente, encontramos possibilidades de aproximação entre a
Psicanálise e a Literatura. Não é possível dizer tudo, mas a palavra poética, a
palavra literária, sabe utilizar-se bem de um “semidizer” que em alguma medida
mediatiza, faz frente à impossibilidade do todo dizer. Um texto literário pode ser lido
muitas vezes sob vários aspectos, sem ser esgotado. O nível polissêmico da palavra
desliza para novos questionamentos independentemente da ótica de quem se
dispõe a analisá-lo e das ferramentas para isso utilizadas.
A Literatura é uma das formas de expressão do saber mais reiteradamente
próxima da Psicanálise. É uma produção particular, mas que toca a singularidade
de um outro. Nessa medida, tanto quanto a Psicanálise, a Literatura utiliza-se da
linguagem. A Psicanálise, indo além do esquema de comunicação, vai ao ato da
fala. Esta fala, apropriada por um sujeito, produz efeitos. Em contrapartida, a
Literatura, no ato da escrita, também produz seus efeitos, atingindo subjetivamente
quem dela se apropria. Por todos os laços comuns que unem esses dois campos do
saber e da produção humanas, procedemos à leitura do texto literário com suporte
em conceitos psicanalíticos sem pretender esgotá-lo nem reduzi-lo. Ao contrário,
oferecendo contribuição à riqueza de elementos nele contidos.
145
Literatura e psicanálise: possibilidades de diálogo
3.1.2 Machado de Assis - Sigmund Freud: intertextualidades.
Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro... [...] A alma exterior pode ser um espírito, um fluído, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. Há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é uma alma exterior de uma pessoa; - e assim também a polca, o voltarete, um livro, uma máquina, um par de botas, uma cavatina, um tambor, etc. Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é metafisicamente falando uma laranja. Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência; e casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira (Machado de Assis).
É incontestável a afinidade entre a literatura e a psicanálise e, para bem
referendar essa comunhão, aproximamos a escritura de similar mestria de Machado
de Assis e Sigmund Freud. Embora os textos biográficos de ambos não relatem
vestígios de uma aproximação na realidade, o resultado da produção escrita por eles
o faz. A visão de mundo, a visão do caráter do ser humano e, advindo disso, a
perspectiva do futuro da humanidade é de semelhante constatação cética. Fruto de
semelhante inquietação interior, revela-se no interesse por desvendar os mistérios
da alma humana, com especial destaque para o “inexplicável” do ser feminino.
Tantas identificações, em autores que não se consultaram, apontam para a fonte
onde ambos beberam.
O criador da psicanálise sempre se rendeu ao fascínio das grandes obras
literárias e declarou por diversas vezes que a fonte de seu aprendizado advinha dos
grandes mestres da literatura. Observou na representação da tragédia grega de
Sófocles o destino de Édipo e o transferiu, como um paradigma do destino humano
na relação de amor com o par parental. Sua obra é permeada de citações literárias
dos grandes clássicos, incluindo textos da Bíblia. Peter Gay afirma, na biografia de
Freud, que ele era
146
Literatura e psicanálise: possibilidades de diálogo
o jovem médico pobre que comprava mais livros do que podia e lia obras clássicas noite adentro, profundamente comovido e não menos profundamente divertido. Freud procurava mestres em vários séculos: os gregos, Rabelais, Shakespeare, Cervantes, Molière, Lessing, Goethe, Schiller, além daquele espirituoso alemão, amante da natureza humana, do século XVIII, Georg Chistoph Lichtenberg, médico viajante e autor de imemoráveis aforismos (GAY, 1995, p. 58).
Freud confessou em carta a Marta Bernays, na ocasião ainda sua noiva, que
um de seus poetas favoritos era Friedrich Schiller. Destaca desse poeta a dualidade
“fome e amor”, acrescentado que “esta, afinal, é a verdadeira filosofia, como disse o
nosso Schiller” (GAY, 1995, p. 58). Essa dualidade retorna na obra de Freud como
forma de ilustração à teoria das pulsões. “A fome representava as ‘pulsões do ego’
que servem à sobrevivência do indivíduo, ao passo que o amor, evidentemente, era
um nome polido para as pulsões sexuais que servem à sobrevivência da espécie”
(GAY, 1995, p. 58).
É interessante destacar que Machado de Assis no Memorial de Aires coloca
na fala do narrador versos de um poeta (Shelley) para demarcar a relação do
Conselheiro Aires com a questão do amor. Pelas inúmeras citações em ambas as
obras evidencia-se que Freud e Machado de Assis comungavam a mesma simpatia
também por Goethe e por Shakespeare. Em um comentário na folha de A Semana,
de 1896, Machado de Assis declara poeticamente uma defesa ao dramaturgo inglês:
“Um dia, quando já não houver império britânico nem república norte-americana,
haverá Shakespeare; quando se não falar inglês, falar-se-á Shakespeare” (ASSIS,
1997, p. 703).
As constantes referências intertextuais nas obras de ambos os mestres são
de peculiar sapiência e de extrema destreza às aplicações citadas. Desde os
grandes clássicos até os escritores contemporâneos, revelam a escolha do percurso
dedicado a desfrutar o prazer de ler e a apreender a vida a partir do campo das
Letras e da Filosofia. Massaud Moisés defende que o texto literário alimenta o leitor
como prazer estético, mas também é fator de aprendizagem, é formador de
consciências. “Campo dos possíveis como ensinava Aristóteles na sua Poética, não
dos acontecimentos históricos” (MOISÉS, 2201, p. 60).
Compõem a temática abordada por ambos a inquietação humana e o destino
de fugaz existência; a incompletude e a impossibilidade de encontro com a
147
Literatura e psicanálise: possibilidades de diálogo
satisfação plena, o que motiva o “mal-estar” humano. O ceticismo machadiano, mais
visível a partir da segunda fase, é bem representado nas personagens de Brás
Cubas e de Quincas Borba. Embora os textos freudianos tragam desde o início esse
aspecto cético, ele vai estar bem identificado nos textos sobretudo a partir de 1920,
quando introduz o conceito de pulsão de morte em contraponto com as pulsões de
vida. Porém, o ápice do desamparo humano é referido nos textos O futuro de uma
ilusão e o Mal estar na Civilização.
Discorrendo sobre Machado de Assis, Afrânio Coutinho destaca que ele dava
mostras concretas de sua filosofia de vida e do extremo cuidado com o processo
estético. Desenvolvia um mesmo tema em diversas modalidades da escrita (crônica,
conto e por fim romance) como se o colocasse em processo de maturação gradativa,
em uma “persistente repetição temática” (COUTINHO, 1997, p. 52), fato identificado
entre os vários estudiosos de sua obra. Coutinho referenda essa característica
machadiana com um primoroso recorte da fala de Barreto Filho.
Machado é useiro em tomar um tema, ou uma idéia, esboçá-los em uma crônica, desenvolvê-los num conto, em tentativas frustras, até se revestirem da forma amadurecida e definitiva que a sua pertinácia acabava por lhe conferir. Era um trabalhador que sabia esperar. Não cedia à precipitação e ensaiava sempre, em certos casos mais de uma vez, a mesma idéia, até encontrar variante excelente. Só então se desembaraçava dela’ (BARRETO FILHO, apud COUTINHO, 1997, p. 53).
Montello aborda esse detalhe da temática machadiana como o constante
privilégio que era dado ao referencial da memória, vista como uma forma de
aprendizado acumulativo e como um prazer revelado no aperfeiçoamento de uma
idéia. “A memória teria de ser para ele, ao longo de toda a vida, a fiel companheira,
com a singularidade de que, das experiências acumuladas, Machado de Assis
saberia recolher os subsídios para sua obra” (MONTELLO, 1997, p. 14). Em
referência a uma mesma cena (sobre a utilidade das catástrofes129) citada numa das
129 A citação na crônica foi em alusão à ressonância internacional da morte de Victor Hugo, ocorrida em Paris. Na crônica, Machado de Assis escreveu: ‘Eu em criança, ouvi contar a anedota de uma casa que ardia na estrada. Passa um homem, vê perto da casa uma pobre velhinha chorando, e pergunta-lhe se a casa era dela. Respondeu-lhe a velha que sim. – Então permita-me que acenda ali o meu charuto.’ A conclusão da crônica refere ‘Imitemos este homem polido e econômico. Vamos acender os charutos no castelo de Hugo, enquanto ele arde’ (MONTELLO, 1997, p. 15).
148
Literatura e psicanálise: possibilidades de diálogo
crônicas de Balas de Estalo de 28 de Maio de 1885 e repetida no capítulo CXVII de
Quincas Borba, Montello comenta:
Em machado de Assis, como se vê, a reminiscência factual serviria assim ao cronista e ao romancista, num testemunho objetivo de que a memória vivida lhe entraria naturalmente na composição do texto literário, e daí nosso reconhecimento de que, no mestre do Dom Casmurro, o memorialista sabia abastecer no momento próprio a imaginação do criador literário, chegando mesmo a ir além, quando a ressonância da lição alheia assumia a feição ilusória da criação pessoal (FREUD, 1997, p. 15).
Por igual modo, encontra-se na obra de Freud uma relação progressiva na
construção dos conceitos. Há um crescente aperfeiçoamento, sem a preocupação
de caráter definitivo, e um repetitivo retorno aos conceitos básicos da psicanálise.
Desde as primeiras publicações [1886] e no Projeto para uma psicologia científica
[1895] já se encontram os fundamentos da teoria e esses perpassam toda a
construção teórica no paulatino despontar, como abrindo em leque a grandeza dos
anos dedicados a rigoroso estudo. Genialmente, em um de seus últimos textos,
Esboço da psicanálise [1938], resgatou o desenvolvimento de todo o seu trabalho ao
longo dos anos, e apresentou em ampla visão, bem sintetizada, toda a teoria
psicanalítica.
Em relação à temática da escrita machadiana há extrema abrangência,
porém, em qualquer direção, ela aborda o enigmático cerne da alma humana em sua
mais profunda forma de revelação dos sentimentos, seja no plano do indivíduo, seja
no da inserção no meio social. Traduz a visão da crua contingência do desamparo
humano em sua parca trajetória na condição, comum aos mortais, de efêmera
transição. Aponta, ainda, o descrédito nas potencialidades do caráter humano.
Coutinho nomeia essa exposição do pensamento de Machado de Assis como uma
visão pessimista e trágica da existência, e acrescenta que em Machado existe
“inquietação metafísica: o pensamento da morte e sua dura contingência, a lei do
perecível, a transitoriedade de tudo, e existência maciça do mal, a contradição
essencial do homem, o caráter absurdo e inseguro da vida...” (COUTINHO, 1997, p.
53, grifo nosso).
Como um prolongamento dessas questões, está a referência recorrente à
temática do tempo, numa intrínseca associação à efemeridade da existência
149
Literatura e psicanálise: possibilidades de diálogo
humana. Nessa perspectiva, a irreversibilidade, a transitoriedade de tudo, “o aspecto
destruidor do tempo conduzindo à decadência física e à morte, [...] a perecibilidade
do ser humano contrastando com o ideal da vida perpétua, a descontinuidade
humana, o nada como fim de todas as coisas e seres” (COUTINHO, 1997, p. 53) são
pontos notoriamente destacados.
Para Coutinho a representação social na obra machadiana também não
escapa ao prisma do referencial pessimista. “A ociosidade é a norma entre os
personagens de Machado, pois a vida não vale a pena de nenhum esforço. Que
fazer então? De que se vive?” (COUTINHO, 1997, p. 54). Machado de Assis
capturava em tudo que a sua “pena modelou” a marca ímpar da imprevisilibilidade
humana, o “hábito” representa a “alma exterior” do “monge”, mas não deixa
transparecer sua “alma interior”. Nessa medida, configurou em suas personagens a
divisão intrínseca ao sujeito humano, pactuando com a descoberta freudiana da
existência do inconsciente. Esse outro, não visível nem ao próprio sujeito, mas que
se revela nos escapes provocados pelo trabalho oculto dos sonhos, dos chistes, dos
lapsos cotidianos, mesmo à revelia do praticante.
O lugar do papel da mulher no romance machadiano questiona também o seu
ser feminino, mesclado na dúvida e no imprevisível, em especial destaque na
segunda fase. Sobre essa questão, Freitas aponta que a mulher tinha um lugar
privilegiado “em todos os romances: Lívia em Ressurreição; Guiomar em A mão e
Luva; Helena; Iaiá Garcia; Virgília e Marcela em Brás Cubas; Sofia em Quincas
Borba; Capitolina em Dom casmurro; Flora em Esaú e Jacó e finalmente Fidélia e
Carmo em Aires” (FREITAS, 2001, p. 21). Machado de Assis veste suas
personagens femininas como agentes dos questionamentos que são fundamentais
ao desenvolvimento da trama. Mesmo em “papel” secundário, elas guiam o
protagonista e são anunciadoras das insatisfações humanas, tanto quanto em
apontar o âmago das questões do desejo feminino.
O perfil da mulher, inovador à época, na escrita machadiana, revela com
maior clareza a captura do enigma da alma feminina como “inexplicável”, apenas
representável em suas multifaces. E ao seu modo, todas elas velam a
impossibilidade de dizer a essência do ser feminino, aspecto que demonstra
antecipada verdade, combinada à indicação freudiana na conferência sobre a
Feminilidade [1932] na qual Freud conclui afirmando: “se desejarem saber mais a
150
Literatura e psicanálise: possibilidades de diálogo
respeito da feminilidade, indaguem da própria experiência de vida dos senhores ou
consultem os poetas...” (FREUD, [1932] 1990, p. 165).
É curioso notar o caminho percorrido por Machado para tratar as relações entre os homens e as mulheres. Virgília trai abertamente, Sofia promete, apenas promete, fantasias, apenas fantasias de infidelidade. Capitolina nada diz, Bento, sim, considera-se traído. Apesar da dúvida existir, ele a nega. Flora paga com a morte o crime de amar, ‘não se sabe a quem, mas amar’. Trai a si mesma, porque seduz e não escolhe – se não entra na aposta do amor, não vive, morre. Fidélia de nome sugestivo é fiel ao ex-marido, entretanto, ‘a idéia é saber se Fidélia terá voltado ao cemitério depois de casada’. As suposições de infidelidade são idéias do Conselheiro, apenas idéias, contraponto à moralidade absoluta de Carmo (FREITAS, 2001, p. 21).
Atrelado às inovações do lugar do feminino na escrita de Machado de Assis
segue a visão de amor que rompe com a “romântica” ânsia de completude e do “par
ideal”. As possibilidades do amor estão atravessadas pelas circunstâncias
cotidianas. Nessa via, o amor, é apenas uma miragem de um encontro possível
dentro de determinada contingência e, como tal, fadado à transitoriedade. Ou ainda
representado em sua “real” impossibilidade que conduz à morte como escolha que
resta na devastação da demanda de amor visando à completude. Machado de
Assis, sabiamente, captou o âmago do discurso do desejo, escamoteado no não
querer saber do sujeito, e o representou em personagens.
A impossibilidade da completude humana trai o ideal imaginário de amor
eterno. Freud afirma em O mal-estar na civilização que o amor é a forma privilegiada
do homem buscar a felicidade, mas também a certeza de só atingir a parcialidade da
satisfação. O caminho da felicidade está posto como sempre parcial, pois a
demanda que a ele se faça é maior que sua possibilidade de resposta. “Nunca nos
achamos tão indefesos contra o sofrimento como quando amamos, nunca tão
desamparadamente infelizes como quando perdermos o nosso objeto amado ou o
seu amor” (FREUD, [1929] 1990, p. 101), fato que não anula a existência do amor.
Apenas é preciso reconhecer seu caráter transitório e parcial. Reconhecer sua mítica
origem; “Eros e Ananke [Amor e Necessidade] se tornaram os pais também da
civilização humana” (FREUD, [1929] 1990, p. 11).
O desejo de amor, construído por uma necessidade da vivência coletiva,
perpassa o âmbito do par (homem-mulher) na busca por gratificação genital e
151
Literatura e psicanálise: possibilidades de diálogo
abrange as relações do grupo presentes no contexto da civilização. Para melhor
“domar” a agressividade do animal humano, a instituição religiosa, mais antiga que o
Cristianismo, cunhou o pacto de “amar o próximo como a si mesmo”, pacto de difícil
viabilidade. Freud considera que isso se deve ao fato de que “os homens não são
criaturas gentis que desejam ser amadas e que, no máximo, podem defender-se
quando atacadas; pelo contrário, são criaturas entre cujos dotes pulsionais deve-se
levar em conta uma poderosa cota de agressividade” (FREUD, [1929] 1990, p. 133).
Machado de Assis bem referenda essa teoria nos exemplos construídos pela
personagem de Quincas Borba e o cerne de sua teoria do Humanitismo, em que
defende a guerra como necessária condição de subsistência da espécie e como
forma de evasão à agressividade. Na teoria do Humanitismo, composta em quatro
volumes, o último dedica-se ao tratado político com rigor de lógica. “Reorganizada a
sociedade pelo método dele, nem por isso ficavam eliminadas a guerra, a
insurreição, o simples murro, a facada anônima, a miséria, a fome, as doenças”
(ASSIS, 1997, p. 262), uma vez que esses “supostos flagelos” são equívocos de
interpretação e em nada impedem a felicidade humana.
O contexto do mundo civilizado também criou um referencial ao amor advindo
da beleza estética e isso influi por demais no julgamento de escolha de objeto. A
preocupação com a beleza da forma ultrapassa todos os campos de fruição, seja de
objetos, de paisagens, de criações artísticas, entre outras. “A atitude estética em
relação ao objetivo da vida oferece pouca proteção contra a ameaça de sofrimento,
embora possa compensá-lo bastante. A fruição da beleza dispõe de uma qualidade
peculiar de sentimento, tenuemente intoxicante” (FREUD, [1929] 1990, p. 102). E
mais uma vez abre espaço às sensações de desamparo frente ao encanto do desejo
e à demanda não possível de realizá-lo em toda a sua dimensão. “O amor da beleza
parece um exemplo perfeito de um impulso inibido em sua finalidade” (FREUD,
[1929] 1990, p. 102).
A obra machadiana advém de extremado rigor estético, e não escapou a seu
alto teor crítico. “Para ele, a crítica tinha por função não somente a regulação da
produção literária geral, mas também a normalização da própria atividade criadora
do escritor” (COUTINHO, 1997, p. 55). Caberia ao escritor conhecer os preceitos de
sua produção e “autopoliciar-se”. Sua autocrítica permitiu a genialidade de um
“estilo” maduro e original. “E todos admitem que essa autocrítica exerceu vigilante e
152
Literatura e psicanálise: possibilidades de diálogo
decisiva função na criação literária de Machado nos diversos gêneros imaginativos”
(COUTNHO, 1997, p. 55).
Coutinho define essa preocupação machadiana como zelo apurado da
tradição dos antigos. Seu guia de apuro estético vinha da Antiguidade e dos
clássicos. A esse respeito, cita o trabalho de Maritain em Art e Scholastique
Modernamente só se conhecem a primitividade e originalidade naturais, de um lado, e a senilidade das regras acadêmicas do outro. Os antigos pensavam que a verdade é difícil, que a beleza é difícil, e que o caminho é estreito; e que para vencer a dificuldade e a altura do objetivo, é absolutamente necessário que uma força e uma elevação intrínsecas – isto é, um habitus – se desenvolvam no indivíduo. [...] forma intelectual dominadora da matéria, que não se opõe aos dotes naturais, à disposição inata, necessária, indispensável, mas apenas condição prévia, que jamais passará a arte, sem uma cultura e uma disciplina que os antigos queriam fosse longa, paciente e honesta (MARITAIN, apud COUTINHO, 1997, p. 56).
Em Machado de Assis o refinado apuro na busca de aperfeiçoamento é sua
marca registrada. “Sua norma é apoiar a criatividade no estudo das técnicas da arte
literária através da observação dos modelos e das leis da poética” (COUTNHO,
1997, p. 56). A forma de concretização desse êxito deve-se exatamente ao preço de
grande dedicação ao trabalho da escrita. “Como princípio geral, esse código é
centralizado pela desvinculação da arte e da moral, pela autonomia da arte”
(COUTNHO, 1997, p. 56).
Essa busca de saber no conhecimento do mundo Antigo é marca bem
presente na obra freudiana. A poesia de Homero, seja a Ilíada, seja a Odisséia, são
citações privilegiadas em seus textos, tanto quanto a tragédia grega, os poetas
clássicos e contemporâneos. Essas mesmas referências encontram-se amplamente
bem utilizadas ao longo de toda a escrita machadiana, fato que justifica tanta
afinidade de visões, nos mais diversos temas abordados pelas duas obras de
semelhante rigor técnico.
Outra extrema coincidência de comunhão de pensamentos diz respeito ao
amplo conhecimento da Bíblia e de quanto os textos dessa escritura são também
citados em ambos os trabalhos. Porém o uso da Bíblia por ambos os mestres,
encapa a essência das citações, apontando o texto sagrado como um texto literário
e não como conteúdo de crença religiosa. Freud, em O futuro de uma ilusão, deixa
153
Literatura e psicanálise: possibilidades de diálogo
clara sua posição a respeito do uso ilusório feito pela religião no contexto da
civilização. Machado de Assis também se refere na sua visão da religião, em que se
destaca o enfoque crítico, à exploração da ingênua carência humana nesse sentido.
Pode-se dizer ainda que os dois eram “homens de seu tempo” e que
escreviam também com o olhar à volta, capturando com sensível criatividade o
contexto que os cercava. Como cronista, Machado de Assis esteve atento ao
registro das inquietações de sua época. Em A Semana, ficou registrada a
contemporaneidade de suas percepções.
Machado de Assis e Freud estiveram atentos aos acontecimentos de sua
época e escreveram envolvidos com a conjuntura que os cercava, mas também
movidos pelo outro, o “desconhecido inconsciente”. Contaminados pelo saber dos
grandes clássicos e por amplo aparato filosófico, criaram, a partir desses, um outro
saber, um novo arcabouço teórico. Deixaram marcas indeléveis em seus textos pela
aguçada percepção da realidade, e notadamente pela inovação que a escrita de
ambos provocou, na sensibilidade poética que lhes foi peculiar.
Mesmo não tendo como desvincular um homem de sua obra, não há aqui
interesse biográfico por puro biografismo. Sempre que esse conteúdo não escapou e
se inscreveu, foi nas entrelinhas em que ambos estiveram assim tão fortemente
imbricados por uma vida dedicada às “Letras”. O que aqui se comprova é que os
escritores, como bem referendou Freud, usando as palavras de Shakespeare, “são
aliados muito valiosos, cujo testemunho deve ser levado em alta conta, pois
costumam conhecer toda uma vasta gama de coisas entre o céu e a terra com as
quais a nossa filosofia ainda não nos deixou sonhar” (FREUD, [1907] 1990, p. 18).
Nessa medida, o texto fala além do homem que o escreveu. A obra
representa a esse outro, sobre o qual não sabe, nem mesmo o seu autor, o texto
fala no “Mais além”, torna-se maior que o homem, pois ameaça sempre ultrapassar a
condição estritamente humana, a transitoriedade. “Resta lembrar que a vida dos
livros é vária como a dos homens. [...] Muitos há que, passado o século, caem nas
bibliotecas, [...] e onde podem sair ou para a história, em parte para os florilégios. [...]
A imortalidade é que é de poucos” (ASSIS, 1997, p. 724, grifo nosso).
154
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
SEÇÃO IV
A MORTE NA SEGUNDA FASE ROMANESCA DE MACHADO DE ASSIS
A Barca de Caronte - Óleo sobre linho, doada ao museu em 1932 por José Benlliure Gil
155
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
ENTRE O MELANCÓLICO E O LÚDICO: TRAVESSIAS
• Rememorando as Memórias póstumas: contextualização.
• Revelando a morte: velada entre a ironia e a melancolia.
• Humanitismo: neologismo entre a loucura e a morte.
Jovem Defendendo-se de Eros -1880 - William-Adolphe Bouguereau (1825-1905)
156
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
4.1.1 Rememorando as Memórias póstumas: contextualização.
Cada estação da vida é uma edição que corrige a anterior, e que será corrigida também, até a edição definitiva, que o editor dá de graça aos vermes (Machado de Assis).
Falar da escrita de Machado de Assis, focando o romancista, remete-nos,
inevitavelmente, à observação mais geral que é comum na crítica literária: ocorre um
processo de amadurecimento em sua escrita, bem definido a partir da publicação de
Memórias Póstumas de Brás Cubas. Nas palavras de Alfredo Bosi: “todos
reconhecem nas Memórias Póstumas o divisor de águas da obra machadiana”
(BOSI, 2000, p. 83). Nesse texto, “no estilo, na filosofia da vida, no enfoque das
personagens, processa-se uma transformação tão grande, que seria mais do que
uma evolução; uma mudança de rumo, com o mestre a alcançar no romance a
plenitude da maturidade” (MONTELLO, 1997, p. 10).
Outro ponto marcante que se observa desse romance em diante é a marca do
conteúdo mnêmico como fator desencadeador da narrativa. As modificações que se
processam e, gradativamente, se aprimoraram “têm na reminiscência o seu apoio
evidente, podemos reconhecer que a evocação da vida vivida, quer como
experiência, quer como testemunho, estará no centro mesmo da produção
machadiana” (MONTELLO, 1997, p. 10). E Ainda, referendando essa evidência,
Montello destaca na indicação do próprio autor a escolha dos títulos, que, de
Memórias a Memorial, já demarcam nitidamente o seu propósito do começo ao fim
desse ciclo:
Atentemos agora para a circunstância de que a segunda fase machadiana, no plano da construção romanesca, principia com as Memórias póstumas de Brás Cubas e termina com o Memorial de Aires. Basta essa indicação de seus pontos extremos para que de pronto se perceba que a memória é o fio condutor do mundo romanesco de Machado de Assis (MONTELLO, 1997, p. 11).
É a marca dos cinco últimos romances, construídos “sob o signo da memória”,
o que queremos destacar, e seguir como o fio de Ariadne, que nos conduz não à
157
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
saída, mas ao interior do labirinto romanesco desse ciclo machadiano. O traço
recorrente do uso das reminiscências, fio condutor dessa fase, pode ser considerado
como similar a um tipo de recurso do discurso melancólico. Essa vertente do
discurso melancólico marca a libido presa ao objeto perdido e, por identificação,
revivido. Os registros desses traços mnêmicos se intercalam entre a ironia e o
pessimismo, e expressam a descrença no potencial humano e na própria vida. Esse
recurso de linguagem, no contexto dos cinco romances, é usado como estratégia de
acesso para falar do enigma da morte e da perplexidade humana frente a essa
questão.
Em Memórias Póstumas, ele está explícito com maior evidência, pelo fato de
o narrador autodenominar-se um “defunto autor” e dizer a que veio: entregar ao leitor
uma “obra de finado”, com propósito definido. “Escrevi-a com a pena da galhofa e a
tinta da melancolia”; tecidas num outro mundo, em meio a um contra-senso
deliberado. “O melhor prólogo é o que contém menos coisas, ou o que diz de um
jeito obscuro e truncado” (ASSIS, 1977, p. 97). Com irreverência, anuncia um falso
mistério: “Evito contar o processo extraordinário que empreguei na composição
destas Memórias trabalhadas cá no outro mundo. [...] A obra em si mesma é tudo”
(ASSIS, 1977, p. 98).
É seguindo a indicação do próprio narrador, “a obra em si mesma é tudo”, que
percorremos sua irônica e melancólica trajetória nas reminiscências que privilegiou
para viajar “à roda da vida” (ASSIS, 1977, p. 95), mesmo anunciando notícias de um
“outro mundo”. Luis Costa Lima, em Dispersa demanda, rastreando as alusões da
música no referido texto, conclui: “cabe-nos por ora dizer que a tematização da
música, nas Memórias, é sufocada pela tematização aqui principal: a da morte”
(LIMA, 1981, p. 65, grifo nosso).
É redundância reafirmar a importância desse livro no contexto da obra
machadiana e do cenário literário nacional, porém necessário. Destacamos então
alguns pontos-chave que marcam seu confronto com o estilo em voga por ocasião
de seu lançamento. A narrativa é extremamente original, já se constituindo como
ponto de ruptura com o tipo de escrita convencional à época. A partir desse texto,
Machado direciona sua narrativa para a análise da condição da existência humana.
Com perspicácia genial, conduz o leitor pelo cotidiano de suas personagens,
inserindo especulações filosóficas e psicológicas. Não é possível prever o destino
158
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
da narrativa. O leitor é conduzido pelo desejo do narrador e capturado nas redes de
sua sedução; tanto quanto convocado à participação.
Machado de Assis inaugura técnicas estruturais na composição da narrativa:
usa capítulos curtos, intencionalmente ligeiros; e a ordem não-cronológica na
disposição dos fatos. Constrói capítulos inesperados e absolutamente originais, a
exemplo O velho diálogo de Adão e Eva (cap. LV), no qual, para ler-se o diálogo, é
mister recorrer ao idioma dos amantes, ou seja, da poesia, haja vista que expresso
literariamente, há apenas a alternância entre os nomes de Brás Cubas e Virgília,
intercalados por pontos de interrogação, exclamação e reticências. “O diálogo de
Adão e Eva é o exemplo acabado de como os momentos decisivos não necessitam
ser narrados para ganhar identidade, ou escapam de o ser, justamente porque se
mantêm inacessíveis ao olhar e à língua humana” (MOISÉS, 2001, p. 52).
Essa lógica segue-se em outros capítulos. O capítulo Inutilidade (CXXXVI)
consta de uma única frase para explicar a inutilidade do capítulo anterior, quando o
próprio é uma “inutilidade”. Apresenta um capítulo (LIII), cujo título é feito por
reticências. O capítulo (CXXXIX) De como não fui ministro, o texto é feito apenas por
reticências, para expressar no capítulo (CXL), Que explica o anterior: “Há coisas que
melhor se dizem calando; tal é a matéria do capítulo anterior” (ASSIS, 1977, p. 281).
Essa relação de um capítulo explicando outro é um recurso recorrente na
estruturação do texto. Os títulos130 dos capítulos são geralmente irônicos e
provocadores; alguns, um desacato desnecessário, a exemplo do capítulo (CII), De
repouso, e do capítulo (CXXXII), Que não é sério. A supressão dos mesmos não
alteraria o rumo da narrativa, mas eles cumprem a promessa do “defunto autor”.
Importa dizer que este livro é escrito com pachorra, com a pachorra de um homem já desafrontado da brevidade do século, obra supinamente filosófica, de uma filosofia desigual, agora austera, logo brincalhona, coisa que não edifica nem destrói, não inflama nem regala, e é todavia mais do que passatempo e menos do que apostolado (ASSIS, 1977, p. 104).
O texto é extremamente singular e inusitado na forma de condução da trama.
Há um enorme distanciamento entre a trama e o enredo, demarcando maior
130Há o uso de muita intertextualidade nos títulos dos capítulos. Fato que “obriga” o leitor (caso desconheça) ir à fonte para melhor assimilar se a relação é condizente à realidade, ou se está assim empregado como referência irônica.
159
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
“singularização” e “desautomatização131”, evidenciados desde a posição do narrador,
o encadeamento dos fatos, a constante interloculação com o leitor, dentre outras
inovações. As modificações introduzidas por Machado de Assis, a partir desse texto,
são reconhecidas e bem pontuadas pela crítica literária.
Alfredo Bosi, no texto Machado de Assis: O enigma do olhar, chama nossa
atenção para a extrema liberdade usada por Machado para desenvolver sua
temática, inovando no desenvolvimento da trama.
As Memórias Póstumas de Brás Cubas começam pelo fim dos fins: são póstumas, vêm depois da vida e da morte; e o narrador, apartado dos homens que continuam os seus embates cá na terra, começa contando sua morte para, só depois, com vagar e muita liberdade, reconstituir a sua vida. Póstumo, superlativo de post, é o que vem depois de tudo: da vida e da morte. É o mais do que posterior, é o depois absoluto (BOSI, 2000, p. 129).
Discorrendo sobre a escolha do tema, B. Tomachevski afirma: “A obra literária
é dotada de uma unidade quando construída a partir de um tema único que se
desenvolve no decorrer da obra. Por conseguinte, o processo literário organiza-se
em torno de dois momentos importantes: a escolha do tema e sua elaboração”
(TOMACHEVSKI, 1971, p. 169). Sobre a escolha do tema, Tomachevski vai suscitar
uma polêmica discussão, haja vista que coloca a aceitação do tema como uma
preocupação do escritor para com o leitor; embora não haja como prever a recepção
do leitor. Ele mesmo levanta a questão de que “a palavra ‘leitor’ designa em geral
um círculo bastante mal definido de pessoas, do qual, muitas vezes, o próprio
escritor não tem um conhecimento preciso” (TOMACHEVSKI, 1971, p. 170).
No que diz respeito a Machado essa preocupação não existe. Ele inova e a
resultante fica por conta do próprio leitor. O narrador machadiano, desde Brás
Cubas, tem ampla liberdade e desafia o leitor a tecer suposições sobre a trama,
partindo do fio fornecido. Temos em Dom Casmurro o maior exemplo dessa 131 Uma das categorias de análise levantadas pelo “Formalismo russo” para caracterizar um texto literário, é que o texto seja singular e que possa “desautomatizar” a realidade. O Formalismo russo foi fundado pelo grupo de estudantes da Universidade de Moscou (1914-1915) com o objetivo de promover estudos de poética e de lingüística. Para esse grupo, o essencial não é o problema do método nos estudos literários, mas o da literatura enquanto objeto de estudo. (SCHNAIDERMAN, 1971, p. 03). Apontaram à necessidade de desautomatização da obra literária, reclamaram um estatuto próprio de análise peculiar à ciência literária, portanto presente no escopo do texto (SCHNAIDERMAN, 1971, p. 05).
160
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
artimanha da narrativa. Machado de Assis provoca o leitor com tanta mestria que o
envolve num paradoxo como parte do contexto. Convoca o leitor de modo tão
surpreendente que o implica, mesmo à revelia de sua vontade. Ora falando ao
universo feminino, quando trata a especificidade de assuntos do coração; ora sem
especificar o gênero, quando o tema é geral, principalmente ao indagar a validade
ou não do texto que está a escrever. Brás Cubas falando da monotonia da vida além
morte, desacata o leitor na seguinte afirmação:
Começo a arrepender-me deste livro. Não que ele me canse; eu não tenho o que fazer; e, realmente, expedir alguns magros capítulos para esse mundo sempre é tarefa que distrai um pouco da eternidade. Mas o livro é enfadonho, cheira a sepulcro, traz certa contração cadavérica; vício grave, e, aliás, ínfimo, porque o maior defeito deste livro és tu, leitor. Tu tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar; tu amas a narração direta e nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e o meu estilo são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem... E caem! (ASSIS, 1977, p. 208).
Em continuidade à questão do tema, Tomachevski sugere que a obra precisa
ser interessante e girar em torno de temas abrangentes que capturem o interesse do
leitor. Citando como temas que prendem a atenção do leitor os que são referentes a:
“passatempo” (recreativo); de interesse contemporâneo ou universal, destacando
“(os problemas do amor, da morte) que, no fundo, permanecem os mesmos ao longo
de toda a história humana” (TOMACHEVSKI, 1971, p. 171). Associados a esses
temas, ele destaca ainda as condições históricas e as questões emocionais. Atribui
grande importância à captura do leitor pelo âmbito da emoção.
Dentre os termos mencionados sobre o interesse temático, podemos
enumerar um pouco de cada um desses elementos no texto machadiano. No
entanto, não os percebemos como preocupação prioritária do narrador. Destacamos
sobre a questão do tema um aspecto o qual consideramos um tanto questionável, de
acordo com as idéias destacadas por Tomachevski:
O tema apresenta uma certa unidade. É constituído de pequenos elementos temáticos dispostos numa certa ordem. A disposição destes elementos temáticos faz-se de acordo com dois tipos principais: obedecendo ao princípio de causalidade e inscrevendo-se numa certa cronologia, ou expondo-se sem consideração temporal numa sucessão que não obedece a nenhuma
161
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
causalidade interna. No primeiro caso temos obras ‘com trama’ (novela, romance, poema épico), no segundo as obras sem trama, descritivas (poesia descritiva e didática lírica, escritos de viagem...etc.) (TOMACHEVSKI, 1971, p. 172).
Podemos situar o narrador Brás Cubas infringindo parte dessa unidade
enumerada nos elementos temáticos e, ainda assim, situá-lo no primeiro caso (de
obra com trama). Brás Cubas é um narrador que rompe com o estabelecido e o
esperado. O seu tema geral é a morte, porém o apresenta escamoteado na
representação social. E ainda assim, sobre a morte, ele só a consegue tratar como
escape das agruras de uma vida desmotivada e sempre recomeçada em algum novo
projeto que não tem sustentação que gere conclusões, culminado em constantes
interrupções.
Brás Cubas semeia fértil campo de análise em temas de diversas vertentes
de interesse para o leitor. A singularidade é marcante. O narrador circula do cômico
(lúdico) ao irônico (melancólico e amargo). Faz uso da irreverência, do tom de abuso
deliberado a partir do contra-senso com que inicia o texto. Ao começar por narrar
sua morte, o faz numa forma de afrontar o leitor. A dedicatória ao “verme” é marcada
por uma amargura que convida o leitor a ironizar132 junto ou desviar-se da crueza de
seu anúncio, escapando da frieza da descrição, marcada no real da carne.
Observemos a dedicatória:
Ao verme que
primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver
dedico como saudosa lembrança
estas MEMÓRIAS PÓSTUMAS (ASSIS, 1997, p. 94).
Ao falar da morte (destino natural dos viventes) com tamanha franqueza e
uma carga de ironia, o narrador trata de um tema de interesse universal. Oferece um
revestimento lúdico, um aparato imaginário que “desautomatiza” a maneira 132 Esse tipo de ironia é caracterizado como sendo Disfemística. “A ironia que busca a produção do cômico é agente dessa degradação. O ironista acentua a sua superioridade, utilizando como trampolins os temas que foca, rebaixando a realidade para fazer sobressair a sua altura, promovendo insatisfação que o caracteriza a índice de um nível mental acima do comum” (PAIVA, 1961, p. 18).
162
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
convencional de como tal tema é recorrentemente tratado, via de regra, num aparato
filosófico, político ou religioso. Ou seja, pela via do imaginário, que escapa à crueza
do real. E o paradoxo primordial é que por mais que Brás Cubas seja lúdico, suas
palavras portam uma ironia escarnecedora que pauta sobre o desamparo humano.
Analisando as Memórias Póstumas em Um Mestre na periferia do
Capitalismo, Roberto Schwarz diz que o texto se transcreve como uma música no
movimento de um ritmo binário, marcado por alternâncias, paralelismos, antíteses,
simetria, disparidades. O narrador usa de constante dualidade. Os temas são
apresentados sempre em forma de paradoxos, começo e fim; nascimento e morte;
campa e berço, entre outros. E mesmo os temas que aparecem isolados possuem
um par implícito que os implica numa ordem dual (SCHWARZ, 1990, p. 56).
Schwarz aponta como princípio formal do texto a “volubilidade” do narrador
num constante desrespeito de alguma norma. O narrador usa a todo momento a
cadência ritmada do contraste, que lhe garante êxito. Desliza por modalidades
literárias, trocando estilos, técnicas, gêneros, recursos gráficos etc. Todos os
recursos utilizados perpassam a esfera do contraste, cujo alvo é a satisfação de sua
constante “volubilidade” (SCHWARZ, 1990, p. 31). “O escândalo das Memórias está
em sujeitar a civilização moderna à volubilidade. Os assuntos podem ser os mais
diversos, mas o efeito da prosa é este” (SCHWARZ, 1990, p. 54).
Esse traço demarcado ao narrador é associado como sendo uma
representação de uma dada classe na conjuntura social em vigor. É configurado no
retrato da sociedade brasileira, considerando-se que Schwarz privilegia a análise
sociológica para os textos machadianos. Segundo ele:
A fórmula narrativa de Machado consiste em certa alternância sistemática de perspectivas, em que está apurado um jogo de pontos de vista produzido pelo funcionamento mesmo da sociedade brasileira. O dispositivo literário capta e dramatiza a estrutura do país, transformada em regra da escrita (SCHWARZ, 1990, p. 11).
Essa mesma questão já havia sido apontada por Schwarz no texto “Duas
notas sobre Machado de Assis”. Analisando a composição da escrita machadiana e
a polêmica entre os críticos, quanto à realidade nacional ser ou não, representada
163
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
nos textos machadianos, ele nos remete à fala do próprio Machado, em Instinto de
nacionalidade.
Não há dúvida que a literatura, sobretudo uma literatura nascente, deve principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua região; mas não estabeleçamos doutrinas tão absolutas que a empobreçam. O que se deve exigir do escritor, antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e de seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço. Um notável crítico da França, analisando há tempos um escritor escocês, Mason, com muito acerto dizia que do mesmo modo que se podia ser bretão sem falar sempre de tojo, assim Mason era bem escocês, sem dizer palavra do cardo, e explicava o dito acrescentando que havia nele um scotticismo interior, diverso e melhor do que se fora apenas superficial (ASSIS, 1997, p. 804).
Tomachevski ressalta também que tema atual é “aquele que trata dos
problemas culturais do momento...” (TOMACHEVSKI, 1971, p. 171), e acrescenta:
“A forma elementar da atualidade nos é dada pela conjuntura quotidiana”
(TOMACHEVSKI, 1971, p. 171). A esse respeito Schwarz destaca os resíduos do
contexto histórico social, apontando os inúmeros artifícios utilizados pelo narrador. A
maneira incomum de Brás Cubas introduzir o texto declarando-se um “defunto
autor”, fazendo uma comparação arrojada entre suas memórias e o Pentateuco133, e
as constantes intromissões as quais infringem sempre a regra da narrativa, são
pontos apresentados por Schwarz. Esses, considerados enquanto forma, dando ao
termo dois sentidos: como regra da composição da narrativa, e como a estilização
de uma conduta própria à classe dominante brasileira.
Segundo Schwarz, a “volubilidade” de Brás Cubas reproduz implicações
estruturais do quadro histórico da sociedade da época. Reproduz a ambivalência
ideológica sustentada pela classe dominante, que convive com as idéias
progressistas do liberalismo (resultante do crescente capitalismo nos países
desenvolvidos), em contraste com o atraso da relação (desumana e cotidiana) da
escravidão negra e do branco pobre (espoliado pela relação de favor), transformado
em um tipo peculiar de escravo na dependência e fidelidade ao seu protetor.
133 O Pentateuco é o conjunto que compõe os cinco primeiros livros da Bíblia, (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio). A escrita desses livros é atribuída ao patriarca Moisés, relata a origem da terra e da humanidade e a origem de Israel, sua formação como nação e a posse da terra prometida aos judeus. Em hebraico é chamado de Tora.
164
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
Brás Cubas conduz sua narrativa num sistema objetivo versus subjetividade.
Sabe tudo, mas faz o leitor conviver com seu discurso de ambigüidades. Utiliza-se
de contrastes, sátiras, vestindo-se e desvestindo-se de verdades incertas. Imprime
aspectos originais em sua maneira expositiva. Sua maneira alógica de tratar o real
consegue abranger num só movimento a marca do contraste e da oposição. Em se
tratando do tema da motivação, concordamos que o narrador aqui citado inaugura
um gênero (visto que marca uma ruptura), gerando inovação, e essa se sustentando
ao longo de sua narrativa. Porém, o motivo pelo qual cativa o leitor consideramos
uma incógnita. Se seguirmos o fio condutor de uma análise sociológica com a
conjuntura brasileira da época, encontramos amplo respaldo, conforme apresenta
bem Schwarz.
Ao contar suas memórias, Brás Cubas apresenta, além de sua biografia, o
percurso de um brasileiro inserido na classe dominante de sua época. O tipo de vida
peculiar à parcela da população portadora da terra, detentora dos meios de
produção que lhe asseguravam um estilo de vida especificamente privilegiado. Uma
infância entre “mimos”, imprimido-lhe uma relação diferenciada entre as classes,
explícita no seu trato com os escravos domésticos.
Estudos no exterior, marcados por libertinagem e divagações; encontro frontal
com os contrastes ideológicos da civilização crescente do primeiro mundo, face aos
atrasos de um país colonial agrário. Os relacionamentos afetivos estão imbricados
por questões econômicas e sociais. Sua relação com o trabalho não existe, nem
como projeto de investimento pessoal, nem como re-investimento acumulativo de
manutenção e reprodução de capital. Os movimentos dos fatos e eventos no
percurso de sua vida acontecem pelo tédio que o conduzem a um novo episódio.
Se tomarmos outra condução de análise, percebemos que há também outras,
e inúmeras possibilidades de leituras, e todas a partir do próprio texto. Mesmo a
ficção refletindo questões do contexto histórico, econômico e social, o que ficará em
questão (e sempre em aberto) é a “singularidade” de recepção pertinente à estrutura
humana. Afinal, humanos engendrados e inseridos num mesmo contexto social
(ainda que vivenciando oportunidades similares) não se pautam pelo mesmo padrão
de escolhas na vida.
Podemos inferir que Brás Cubas, por ser “um defunto autor”, pelo tema que
se propõe a tratar e pela forma como se apresenta para tal, imprime certa
“curiosidade” pertinente ao “não saber” humano sobre a morte, a qual o coloca
165
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
nesse lugar de “herói” atípico, conhecedor do “outro lado do mistério”, o que lhe
confere tanta liberdade de interlocução com o leitor. Em suma, o texto é de extrema
singularidade e o processo de “desautomatização” perpassa toda a estrutura da
narrativa, seja no tema, na articulação da trama, seja ainda na representação do
próprio narrador.
Coutinho, tratando dessa mesma questão, concorda que Machado de Assis
retrata muito bem a imagem social do Brasil de sua época, mas discorda de que
esse tenha sido seu objetivo. Ressalta na escrita machadiana a capacidade criativa
que a torna ímpar. “Sua mestria técnica, sua consciência artesanal levaram-no a
buscar o novo, e a criar por sua vez uma tradição, uma forma diferente”. E
acrescenta:
Sua obra é dominada pelo senso estético, pelos valores estéticos. O que nela predomina não é a preocupação social, sem embargo de estar presente a imagem social, a sociedade de seu tempo, por ele observada com olhar agudo, sensível e registrador, o que a tornou um seguro retrato de sua época. Mas a realidade, o meio, para ele, constituíam apenas a base, a matéria-prima que, à imagem de todos os grandes artistas, ele transfigurava e transformava em arte. Para ele a verdade histórica existia para ser transmutada em verdade estética. Por essa razão, a sua obra transcende o tempo e as escolas (COUTINHO, 1997, p. 24).
Coutinho afirma ainda que a obra de Machado de Assis é fundada sobre três
grandes motivos: o humorismo, a tragicidade e a simbologia. Destaca o aspecto do
humorismo, associando-o à melancolia. “Em Machado, o humorismo é aliado ao
pessimismo, à amargura, ao ódio do gênero humano, à irritação que lhe causava o
espetáculo da vida” (COUTINHO, 1997, p. 43). A narrativa da segunda fase de sua
escrita, além de expor, exacerba o cerne da alma humana, sem censura e com
tamanha sinceridade que lança o destino humano num grande desamparo,
apontando a “nossa melancólica humanidade”. “Para compreendê-lo, pois, é preciso
aliar o humorismo à melancolia e ao tédio, ao ódio da vida e ao pessimismo”
(COUTINHO, 1997, p. 32, p. 43).
O pessimismo machadiano revela-se nas criações artísticas, através de um ódio radical da vida e da humanidade, uma ausência total de simpatia para os
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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
homens e de confiança neles, uma indiferença completa para os seus sofrimentos, amarguras e desesperos. É essa a tonalidade geral da sua obra, a nota permanente de sua interpretação do mundo, essa falta de generosidade no julgar os homens e a vida (COUTINHO, 1997, p. 40).
Lima assinala o duplo eixo temático encontrado nas Memórias póstumas. “Se
pensarmos nos elementos mais freqüentes nas Memórias, a representação social e
a morte, constataremos seu oposto tratamento. Se aquela é minudentemente
trabalhada – esta é descarnada” (LIMA, 1981, p. 71). Para esse autor, o pano de
fundo criado pela estrutura social escamoteia o ruído da morte. É como se o tema da
morte só suportasse entrar em cena protegido na sonoridade dos eventos sociais. “A
morte marca sim a pontuação do livro, cujos intervalos são preenchidos pela
representação social” (LIMA, 1981, p. 72).
Acatamos nas palavras do próprio Machado de Assis que o escritor é homem
do seu tempo, mesclado por sentimentos internos. Portanto, aberto ao jogo das
temáticas e da liberdade que o mundo ficcional propicia. “Pensar sobre o mundo que
o envolvia não é por certo especificidade machadiana. Criar ficcionalmente, contudo,
a partir desta reflexão, parece-nos sua singularidade” (LIMA, 1981, p. 57). Dessa
feita, mesmo considerando o duplo eixo temático presente nas Memórias póstumas,
tomaremos, oportunamente, a afirmação de Lima: “A morte pontua a narrativa e
representação social cobre seus intervalos” (LIMA, 1981, p. 72). E nos deteremos
nesse primeiro ponto, deixando à representação social as ricas análises já
existentes.
Nossa pesquisa na Fortuna Crítica nos tem conduzido para trabalhos
direcionados para as vertentes analíticas que já mencionamos, e outros que
apontam à questão do humor, da ironia e da melancolia, porém todas fazendo uma
relação dessas categorias de análise com o pessimismo e o descrédito machadiano
na natureza humana; algumas até fazem um entrelaçamento entre essas questões e
a vida pessoal do autor. Consideramos, sim, a representação social no contexto das
Memórias Póstumas (é evidente que nenhum elemento de eixo temático é inserido
ao acaso); ela tem seu lugar e está imbricada à temática da morte, que se ancora na
temática social. Porém não cabe na perspectiva desse trabalho acomodar mais essa
análise, haja vista que já é tão bem apreciada pelos estudiosos machadianos.
167
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
4.1.2 Revelando a morte: velada entre a ironia e a melancolia.
Que tens tu com essa sucessão de ruína a ruína ou de flor em flor? Trata de saborear a vida: e fica sabendo que a pior filosofia é do choramingas que se deita à margem do rio para o fim de lastimar o curso incessante das águas. O ofício delas é não parar nunca; acomoda-te com a lei, e trata de aproveitá-la (Machado de Assis).
No texto: Machado de Assis: Ficção e Utopia, Massaud Moisés também
referenda a análise de que Machado construiu as Memórias Póstumas sobre a idéia
de dualidade e paralelismo, e que essas “organizam-se dialeticamente, entre o sim e
o não, a cara e a coroa, o falso e o verdadeiro, o visível e o ignoto, etc., numa
permanente mutação, e não apenas porque se tratasse de um texto literário, por
natureza metafórico, polissêmico” (MOISÉS, 2001, p. 62). Considera que, a partir
das Memórias póstumas, a atenção de Machado de Assis está voltada para o que
há de mais interior em suas personagens: problematizar os conflitos da alma. Nas
palavras de Moisés,
[...] o narrador faz o close-up das personagens, visando a analisá-las de perto. Penetrar-lhe a alma e os pensamentos, em busca, no mais recôndito da sua vida interior, da fonte dos dramas e do seu posterior desenvolvimento, eis o seu objetivo maior. A sondagem interior não se detém nas primeiras camadas, como de hábito no romance romântico, segue em busca das regiões profundas, para além da consciência, onde se escondem os conflitos mais densos. Numa palavra: sondagem no inconsciente, como se a convite da Psicanálise. Visão de interioridade, mergulho no recesso do indivíduo guiado por imponderáveis, em atrito com personagens igualmente orientadas pelas pulsões abissais. No contexto social, assim como no interior de cada um dos seus membros, reinam ‘forças ocultas’. E as pessoas se identificam mais por essas zonas de sombras do que por aquilo que deixam conhecer aos outros no convívio em sociedade (MOISÉS, 2001, p. 46, grifo nosso).
Aceitando o convite da psicanálise, começamos a percorrer o curso da
narrativa, observando o discurso do irreverente narrador de Memórias Póstumas.
Acompanhando o percurso de suas reminiscências, divididas entre a ironia e o travo
de amargura. Comparamos esse tipo de fala ao que caracteriza a estrutura do
168
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
pensamento melancólico. Passamos a refletir sobre os elementos estruturais do
discurso, interrogando-nos: que elementos são relativos ao discurso melancólico,
e/ou equivalentes à elaboração do luto?
O texto é narrado em primeira pessoa, por meio de reminiscências, um dos
recursos do discurso melancólico, que está sempre voltado para o passado e sem
perspectiva futura, visto que a libido está presa ao que foi perdido. Sua morte
acontece, velada no lamento de não conseguir o êxito pelo invento do “emplasto”,
que seria libertador da condição do desamparo humano. A morte impede a
descoberta da cura da melancolia, tanto quanto, de que consiga o reconhecimento
público por tão brilhante feito. A morte liberta-o da condição humana, mas não o
liberta do lamento melancólico.
Brás Cubas afirma que sua escrita “trata-se, na verdade, de uma obra difusa”.
Propositadamente escrita com a aliança da “galhofa e da melancolia”, temperada
com possíveis pitadas de “rabugens e pessimismo” (ASSIS, 1977, p. 97). A
melancolia atrelada à ironia é transformada em fino escárnio; sugere que essa é a
maneira possível de falar do irremediável mal que avassala o saber humano: o
encontro com a morte; o encontro com o inominável, posto que é impossível ser
representada no inconsciente (FREUD, [1913] 1990, p. 99), ([1915] 1990, p. 327, p.
335, p. 338). ([1919] 1990, p. 302). ([1923] 1990, p. 75). Nessa medida, o que existe
é a resposta que é possível a cada ser humano elaborar diante deste impasse/passe
certo e definitivo.
Serge André afirma que “a primeira constatação efetuada pela psicanálise é a
de que o humano não pára de querer falar daquilo que não pode dizer (a mulher, a
morte, o pai, etc)” (ANDRÉ, 1994, p. 10). Em referência “àquilo” que não se pode
falar, mas que também não pára de se inscrever; insistindo para que algo possa ser
dito a seu respeito, foi preciso criar formas alternativas de expressões que
possibilitem a fala. A criação, o mito, a Arte, a escrita (entre outras) são meios de
suplência a essa hiância, que, ainda assim, não preenche totalmente a demanda.
Freud destaca o mundo da ficção como uma maneira de acesso a conteúdos
difíceis de lidar. Em relação ao tema da morte, a ficção propicia a viagem imaginária
de que necessita o humano para se defrontar com essa questão. É no campo do
domínio ilusório do mundo ficcional que “encontramos a pluralidade de vidas de que
necessitamos. Morremos com o herói com o qual nos identificamos, contudo
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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
sobreviveremos a ele, e estamos prontos a morrer novamente, desde que com a
mesma segurança, com outro herói” (FREUD, [1915] 1990, p. 329).
Na ficção, Machado de Assis, através de seu personagem-narrador, oferece
vias de possibilidades para falar, ou para suportar a melancolia existencial da
transitória condição humana. Brás Cubas, ainda que se autodenominando um
“defunto autor”, parece estar recorrentemente tentando elaborar o luto da própria
morte. O acesso do narrador para falar da morte é através do domínio pelo paradoxo
dos jogos de pares antitéticos. Só é possível falar num jogo lúdico entre o transitório
e o eterno. Para aceitar a realidade factual da própria morte, os males da vida são
narrados em maior evidência, fazendo um contraposto imaginário com as vantagens
favorecidas pela nova condição de morto. É o que se percebe nas passagens
abaixo:
[...] a solidão pesava-me, e a vida era para mim a pior das fadigas, que é a fadiga sem trabalho (ASSIS, 1977, p. 298). [...] Se o leitor ainda se lembra do capítulo XXIII, observará que é agora a segunda vez que comparo a vida a um enxurro; mas também há de reparar que desta vez acrescento-lhe um adjetivo – perpétuo (ASSIS, 1977, p. 228). [...] Senhores vivos, não há nada tão incomensurável como o desdém dos finados (ASSIS, 1977, p. 147).
A narrativa é conduzida por um discurso que privilegia uma lógica própria e
atemporal. Uma lógica que se sustenta na ambigüidade divisória dos pares
antitéticos: começo-fim; nascimento-morte; campa-berço; vida–morte; sandice–
razão; entre outros, intercalados pela figura recorrente da ironia. A ironia dá um
revestimento enganoso ao tema da morte, que por esse viés aparece numa vertente
menos avassaladora. “A utilização da ironia, ao evitar para seu autor a dificuldade
inerente à utilização da expressão direta, produz prazer cômico no ouvinte” (JORGE,
2000, p. 11).
Brás Cubas introduz seu texto de modo bastante incomum, narra o próprio
óbito, no tempo verbal presente, fazendo uma comparação arrojada entre seu texto
e o Pentateuco. Muda de fisionomia recorrentemente. Apresenta-se a princípio
como um narrador com contornos visíveis numa narração figurativa. Pausa
momentânea e retoma a ironia ao narrar o número dos participantes no cortejo
fúnebre: “[...] fui acompanhado ao cemitério por onze amigos. Onze amigos! Verdade
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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
é que não houve cartas nem anúncios. Acresce que chovia – peneirava – uma
chuvinha miúda, triste e constante...” (ASSIS, 1977, p. 99).
Brás Cubas ressalta com sarcasmo o discurso de um amigo na ocasião da
cerimônia. O referido senhor tomou de empréstimo o acaso da natureza, a chuva
que caia, e “engenhosamente” acrescentou ao texto, de última hora que, “a natureza
parece estar chorando a perda irreparável de um dos mais belos caracteres que tem
honrado a humanidade” (ASSIS, 1977, p. 99). Ele interpretou os sinais exteriores do
ambiente chuvoso como uma reação da natureza inconformada com a partida do
ilustre finado. O excesso que há nessa interpretação, ainda que se considerem “as
boas intenções do orador”, quando comparado ao que foi a vida do morto, já
configura discreta ironia situacional.
Ao contar esse episódio, Brás Cubas acrescenta com um tom tão lacônico,
que já intensifica e denúncia o seu propósito, “Bom e fiel amigo! Não me arrependo
das vinte apólices que lhe deixei” (ASSIS, 1977, p. 99). A forma exclamativa da
frase, recheada por dois adjetivos que pontuam a dedicação do amigo, fica atenuada
no segundo tempo da fala, que faz emergir o tipo de ironia pura, intensificada no
falso tom ingênuo. Comentando esse detalhe, Lima observa:
Mesmo que o defunto não comentasse seu não arrependimento pelas apólices que lhe deixou, o leitor não se enganaria quanto ao propósito irônico com que o discurso é exposto. A retórica empolada do orador é idêntica à enxurrada de outros que oferece a obra machadiana. A altissonância verbal compensa a ausência de idéias e disfarça o feito das apólices e dos favores (LIMA, 1981, p. 68).
O texto é rico em expressões antitéticas, seja pelo uso da ironia, em que se
diz uma coisa querendo-se dizer outra, seja pelo jogo retórico da própria antítese,
em que as oposições são colocadas no contraste das palavras ou das idéias,
quando ambas se contrapõem com a mesma força de intensidade e uma coexiste
pela outra: “razão e sandice; princípio e fim; vida e morte; mãe e inimiga; campa e
berço”, entre outras.
Ao descrever a paixão pela dama espanhola Marcela, Brás Cubas brinca
deslizando pelos mais diversos tipos de ironia, e usando o tom principalmente
retórico. Ao resumir o relato de sua paixão, declara:
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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
Teve duas fases a nossa paixão, ou ligação, ou qualquer outro nome, que eu de nome não curo; teve a fase consular e a fase imperial. Na primeira, que foi curta, regemos o Xavier e eu, sem que ele jamais acreditasse dividir comigo o governo de Roma; mas quando a credulidade não pôde resistir à evidência, o Xavier depôs as insígnias, e eu concentrei todos os poderes na minha mão; foi à fase cesariana. Era o meu universo; mas, ai triste! Não é de graça. Foi-me preciso coligir dinheiro, multiplicá-lo inventá-lo (ASSIS, 1977, p. 129).
A expressão da ironia se encaixa bem ao discurso melancólico, reflete uma
amargura dissimulada. É tentar dizer ludicamente algo que faz sofrer, é uma forma
de negar a realidade. Além da preferência do uso das antífrases, o eufemismo
também é constantemente utilizado. Mencionando a relação de amor vivenciada
com Marcela (tipo de relação afetuosa, desde a origem, esclarecida na função social
bem definida) Brás Cubas comenta, usando um tipo de ironia contornante, de forma
antitética e alegórica:
Ocorre-me uma reflexão imoral, que é ao mesmo tempo uma correção de estilo. Cuido haver dito, no capítulo XIV, que Marcela morria de amores pelo Xavier. Não morria, vivia. Viver não é a mesma coisa que morrer, assim o afirmam todos os joalheiros desse mundo, gente muita vista na gramática. Bons joalheiros, que seria do amor se não fossem os vossos dixes e fiados? Um terço ou um quinto do universal comércio dos corações. [...] Marcela amou-me... Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis; nada menos (ASSIS, 1977, p. 132).
E relatando o seu envolvimento e a tentativa de convencer Marcela a
acompanhá-lo à Europa, (onde cumpriria estudos, obrigado pelo pai, fato que
precipita o fim do “romance”) diz ter recorrido ao método mais eficiente de
convencimento. “Era fasciná-la, fasciná-la muito, deslumbrá-la, arrastá-la; lembrou-
me pedir-lhe por um meio mais concreto do que súplica” (ASSIS, 1977, p. 134). O
meio mais eficaz, a compra de uma jóia, advinda de mais empréstimo sem
consentimento do avalista. Resultando na seguinte cena:
- Vens comigo? Marcela refletiu um instante. Não gostei da expressão com que passeava os olhos de mim para a parede, e da parede para a jóia; mas toda má impressão se desvaneceu, quando ela respondeu resolutamente: - Vou. Quando embarcas? - Daqui a dois ou três dias.
172
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
- Vou (ASSIS, 1997, p. 135). [...] Achava-me feliz. Certo é que os diamantes corrompiam-me um pouco a felicidade; mas não é menos certo que uma dama bonita pode muito bem amar os gregos e os seus presentes. E depois eu confiava na minha boa Marcela; podia ter defeitos, mas amava-me... (ASSIS, 1977, p. 136).
As idéias contrárias são recorrentes no texto machadiano. O ponto de
encontro destas idéias parece brincar em alguma medida com a crueza do fato que
anunciam. Provocam um efeito de retardamento no impacto da verdade que é
anunciada. Lançam um meio-termo que dá tempo ao leitor de se acomodar com a
temeridade do inevitável. Seria esta a função da ironia no discurso melancólico? “Na
linguagem plena e viva, é o que há de mais surpreendente, mas também de mais
problemático – como pode ser que a linguagem tenha seu ponto máximo de eficácia
quando ela consegue dizer alguma coisa dizendo outra?” (LACAN, 1997, p. 255).
A narrativa atemporal confere ao “defunto autor” um poder lúdico, um saber
imaginário sobre o destino. Confere um domínio sobre a situação da morte, sobre as
demais personagens e sobre o leitor. A citação dos sentimentos de Virgília diante da
cena da morte de Brás Cubas evidencia bem esse jogo com o uso do tempo não
cronológico. Diz o narrador:
De pé, à cabeceira da cama, com os olhos estúpidos, a boca entreaberta, a triste senhora mal podia crer na minha extinção. - Morto! Morto! Dizia consigo. E a imaginação dela, como as cegonhas que um ilustre viajante viu desferirem o vôo desde o Ilisso134 às ribas africanas, sem embargo das ruínas e dos tempos, a imaginação dessa senhora também voou por sobre os destroços presentes até as ribas de uma África juvenil... Deixá-la ir; lá iremos mais tarde; lá iremos quando eu me restituir aos primeiros anos (ASSIS, 1977, p. 100).
Ao anunciar a comprovação de sua morte e o sofrimento da senhora (até
então anônima), Brás Cubas faz a insinuação de que tem algo a revelar e uma
revelação antagônica àquele momento de luto. O mistério aponta um retorno à
juventude. Antecipa uma trama, cujo segredo momentâneo aguça a curiosidade do
134 Ilisso – ribeirão da África – região Grécia antiga – que brotava no Monte Himeto. Alusão à literatura de viagem do escritor francês Chateaubriand (1768-1848), que no Itinerário de Paris a Jerusalém, diz: “Eu tinha visto, quando nós estávamos sobre a colina do Museu, as cegonhas formaram alas e voaram rumo à África.
173
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
leitor e alivia o torpor fúnebre da narrativa que se segue, qual seja a descrição da
morte orgânica.
O par antitético “vida-morte” é o tema privilegiado no texto. Dentre as
reminiscências da vida, a temática da morte é destacada, tanto como fato real, em
referência à morte do corpo e seus funerais, quanto como representação simbólica
em referência a perdas, desencanto, solidão e fim. A primeira morte real narrada é a
do próprio “defunto autor”, que, desde a dedicatória do livro oferecida ao verme, já
oferece um impacto. Convida o leitor a prosseguir ou desistir da leitura. Desafia o
leitor a seguir no sarcástico jogo lúdico, ou recusar-se a entrar em contato com a
nudez da carne que será digerida pelo verme.
O termo morte, ou palavras que tenham o mesmo sentido, ou a mesma
implicação como morrer, morto(a), morreu, morrido, mortal, morro, morresse, morre,
morrem, morria, mortuária, moribundo, matar, matava, matamos, matando, cadáver,
cemitério, caveira, expirar, enterro, epitáfios, fatal, féretro, funéreo, jazigo, sepulcro,
sepultura, pêsames, entre outros, aparecem do começo ao fim do texto. Lima pontua
com precisão a cadência de marcação da “aparição” da morte do começo ao fim das
Memórias póstumas.
A morte em Machado não precisa senão de uma dezena de linhas para mostrar o que gerara. Em inversão do topos clássico sobre as relações entre a obra e a morte, aquela não é o que dura além da morte, mas o que dela nasce. Entre a morte inaugural do narrador e a final do autor de Humanitas, desfilam nas Memórias as de parentes e conhecidos (LIMA, 1981, p. 71).
Partindo dessa indicação e do percurso de leitura do próprio texto, vemos um
desfile funéreo de mortes físicas135 e simbólicas que transcorrem em todo o texto.
No prólogo da 4ª edição, Machado de Assis faz uma advertência:
135. Começando por fazer uma homenagem póstuma ao seu professor da infância, o mestre Ludgero, seguindo-se pela viagem marítima para a Europa, cujo primeiro objetivo é “matar” em Brás Cubas o seu desmedido e inconseqüente amor por Marcela; que começa a seqüência de mortes físicas narradas: morre a mulher do Capitão (cap. 19). O retorno de Brás marca a morte de sua mãe (cap. 23); depois a menção da morte de seu sobrinho (cap. 25); a morte do pai (cap. 45); a morte do avarento Viegas (84); a morte do filho de Virgília e Brás (cap. 95); a da noiva de Brás (cap. 125); a de Lobo Neves (cap. 125); a de Marcela (cap. 143); a morte de D. Plácida (cap. 158); a morte de Quincas Borba (cap.159 ).
174
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
Há na alma deste livro, por mais risonho que pareça, um sentimento amargo e áspero, que está longe de vir dos seus modelos. É a taça que pode ter lavores de igual escola, mas leva outro vinho. Não digo mais para não entrar na crítica de um defunto, que se pintou a si e aos outros, conforme lhe pareceu melhor e mais certo (ASSIS, 1977, p. 96).
Na “alma” do livro, além do sentimento amargo e áspero, há a “galhofa”, ou o
que sobra do par melancolia-ironia – uma tristeza permeada de gozo. Em maior
destaque percebe-se a morte física, e nas entrelinhas a morte simbólica perpassa a
orgânica, revela-se na amargura renitente de desencanto com a vida e a
humanidade. Ao relatar sua morte, o narrador circula num discurso indeciso,
alternado pela melancolia, ironia, tristeza, negação... Diz-nos ele:
Agora, quero morrer tranqüilamente, metodicamente, ouvindo os soluços das damas... [...] Juro-lhe que essa orquestra da morte foi muito menos triste do que podia parecer. De certo ponto em diante chegou a ser deliciosa. A vida estrebuchava-me no peito, com uns ímpetos de vaga marinha, esvaía-se-me a consciência, eu descia à imobilidade física e moral, e o corpo fazía-se-me planta, e pedra, e lodo, e coisa nenhuma... (ASSIS, 1977, p. 100).
Se fizermos ponto na declaração “Agora quero morrer”, encontraremos
expresso um desejo articulado ao puro gozo, pois “no inferno de gozo de tristeza
desvelado pelo melancólico, o desejo é mal-dito; banido” (QUINET, 1999, p. 11). O
desejo anulado na entrega da morte, revelado nos sarcásticos mínimos detalhes de
sensações físicas, escancara a nudez da carne desprovida do élan que mistifica seu
vazio. “A essência do ser humano é o desejo e que desejamos tanto quando somos
passivos como quando somos ativos. Que desejo nos resta na melancolia quando
não nos resta nenhuma força interna? O desejo de morte” (ESPINOSA apud
QUINET, 1999, p. 11).
Esse “querer” do narrador é afirmado e negado num mesmo parágrafo, numa
substituição que alterna uma afirmativa e uma negativa, recurso que dá à afirmação
um valor irônico, intensificado136. Ao dizer que a experiência da morte “de certo
136 Freud destaca no livro dos Chistes e sua relação com o inconsciente (já apresentado na seção 3.2) esse traço próprio da figura da ironia. Utilizar alternadamente a negativa e a afirmativa, num jogo de opostos que intensifica o que se quer ironicamente destacar.
175
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
ponto em diante chegou a ser deliciosa”, afirma uma contraposição com a
experiência da realidade, que ao mesmo tempo o reduzia a um esvaziamento,
“imobilidade física e moral”, “a pedra, e lodo, e coisa nenhuma” (ASSIS, 1977, p.100,
grifo nosso).
O termo “coisa” já é da ordem do inominável e acompanhado de “nenhuma” é
a redução extrema ao nada (ou à falta de possibilidade de nomear o sentimento
experimentado). ”A tristeza é o afeto correlato à “dor de existir” em suas diferentes
gradações, que vão do luto à melancolia” (QUINET, 1999 p. 07). Mesmo nas
palavras de um narrador que afirma ter chegado “ao outro lado do mistério” (ASSIS,
1977, p. 301), nenhuma palavra exata foi possível dizer sobre o mistério. Nem
relatando seus próprios sentimentos na experiência com a morte, nem observado a
morte de um outro.
Por ocasião da morte de sua mãe, questiona pela primeira vez o enigma da
morte. E ainda assim fazendo analogias à situação da morte, em “tom” retórico, na
referência da morte de vultos famosos na história. Aborda a morte, de forma
impessoal, elege assim, um aparato que o distancia, e o protege da intimidade da
morte, como um lamento por perder um ente tão próximo e querido, como é peculiar
à dor de um filho ante a perda de uma mãe. Apesar de sofrer o impacto, reconhece
sua falta de habilidade em lidar com a situação e confessa: “jamais o problema da
vida e da morte me oprimira o cérebro; nunca até esse dia me debruçara sobre o
abismo do Inexplicável; faltava-me o essencial, que é o estímulo, a vertigem...”
(ASSIS, 1977, p. 146). Vejamos suas palavras diante da cena da morte de sua mãe:
Longa foi a agonia, longa e cruel, de uma crueldade minuciosa, fria, repisada, que me encheu de dor e estupefação. Era a primeira vez que via morrer alguém. Conhecia a morte de oitava; quando muito, tinha-a visto já petrificada no rosto de algum cadáver, que acompanhei ao cemitério, ou trazia-lhe a idéia embrulhada nas amplificações de retórica dos professores de coisas antigas, - a morte aleivosa de César137, a austera de Sócrates138, a orgulhosa de Catão139. Mas esse duelo do ser e não ser, a morte em ação dolorida, contraída, convulsa, sem aparelho político ou filosófico, a morte de uma pessoa amada, essa foi a primeira vez que a pude encarar. Não chorei; tinha
137 Caio Júlio César (100-44 a.C.) estadista, general e escritor romano que, tendo arruinado o poder do senado e tentado instaurar uma monarquia militar, acabou sendo assassinado por um grupo de conspiradores. 138Sócrates, (470-339 a.C.), filósofo grego, que, julgado por ter ‘desrespeitado os deuses e corrompido a juventude’, foi condenado a beber cicuta. 139 Catão. Marcos Póncio Catão (96-46 a.C.), político romano, típico sábio estóico, que se suicidou em Utica, para não assistir à tirania de César e à destruição do regime republicano.
176
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
os olhos estúpidos, a garganta presa, a consciência boquiaberta. [...] Confesso que tudo aquilo me pareceu obscuro, incongruente, insano... (ASSIS, 1977, p. 145).
“Fiquei prostrado. E, contudo, era eu, nesse tempo, um fiel compêndio de
trivialidade e presunção” (ASSIS, 1977, p. 146). Nessas reflexões, percebe-se a
angústia provocada em função de um não saber dizer com precisão o que se passa
na morte, e para além dela. A morte, quando se manifesta ausente do aparato
“político ou filosófico” ou ainda religioso, invalida todo revestimento imaginário
dogmatizado a seu respeito. Apresenta-se na crueza da carne; desnuda a precária
relação humana com a temporalidade de sua existência, deixa a “garganta presa”,
sem palavras que a possam definir.
“[...] o temor da morte a priori é justamente o reverso da vontade de vida,
fundo comum de nosso ser” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 25). A morte como
condição da existência humana é estruturante, e justo porque a morte é certa, que o
viver é significado e resignificado muitas vezes. Seguindo o pensamento de
Espinosa, Freud e Lacan, Quinet conclui que a questão se coloca intransponível
para o melancólico porque diante de uma perda ocorre um extravio do desejo,
impedindo a libido de circular e investir em novos objetos, porque o melancólico não
quer saber do seu desejo e nem agir em direção a ele. Nas palavras de Quinet,
enquanto o desejo, por ser ativo, leva à ação e se reporta ao espírito, a tristeza é algo passivo e indica uma perda de potência no agir. Assim se o poeta, melancolicamente, diz que a tristeza não tem fim, a clínica psicanalítica mostra, a partir de Freud, que a tristeza tem uma história: esta se inicia com uma perda, se constitui como covardia moral e rejeição do saber e termina a partir de sua transmutação em gaio saber e desejo de existir (QUINET, 1999, p. 09).
O discurso melancólico é representado na imagem da morte enquanto perda
de uma “coisa” não possível de identificar e nomear. Na fase de moribundo, o
narrador vive a angústia do prenúncio da morte, marcado em referência a algo
perdido que o tempo não devolve. No capítulo VI, recebendo a visita de Virgília140, o
narrador rememora:
140 Nome da misteriosa senhora referida na cena do enterro.
177
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
Havia já dois anos que nos não víamos, e eu via-a agora não quem era, mas qual fora, quais fôramos ambos, porque um Ezequias141 misterioso fizera recuar o sol até os dias juvenis. Recuou o sol, sacudi todas as misérias, e este punhado de pó, que a morte ia espalhar na eternidade do nada, pôde mais que o tempo, que é o ministro da morte. Nenhuma água de juventa142 igualaria ali a simples saudade (ASSIS, 1977, p. 105, grifo nosso). [...] Quem diria? De dois grandes namorados, de duas paixões sem freio, nada mais havia ali, vinte anos depois: havia apenas dois corações murchos, devastados pela vida e saciados dela, não sei se em igual dose, mas enfim saciados (ASSIS, 1977, p. 106).
Moisés comenta que essa intemporalidade tem seu fundamento no gradativo
aperfeiçoamento da escrita machadiana, como também numa forma de repetição
que produz no personagem efeito de reencontro com o sentimento da experiência
destacada. “Brás Cubas não esconde o travo de amargura de uma existência
frustrada, como se condenado a recordar-se dela à maneira de Tântalo, num perene
círculo vicioso” (MOISÉS, 2001, p. 53). E acrescenta:
Essa intemporalidade, além de resultar do processo em que a memória se desvenda ao reconquistar o tempo perdido, decorre dos ventos míticos que atravessam brandamente os últimos romances machadianos, marcados pela transformação das personagens em símbolo. A sondagem no tempo, o regresso até a mais remota sensação, não se realiza impunemente: recordar o passado é não raro sinônimo de sofrimento (ASSIS, 1977, p. 53).
Aparentemente, há um luto elaborado de um amor vivido e saciado, esgotado
no desejo. No entanto, o tempo é evocado como tendo o domínio sobre todas as
coisas, é evocado como guardião do desejo trancado no passado. As reminiscências
são típicas do pensamento melancólico, que não suporta a realidade presente e fica
amargamente envolto nas lembranças passadas. “Os corações murchos,
devastados pela vida e saciados dela” (ASSIS, 1977, p. 106), não parecem ter
elaborado essa perda, haja vista que há um lamento instaurado que melhor se
configura no descrédito pela vida.
141 Ezequias, um dos reis mais marcantes de Judá. Sucessor do perverso Acaz. No livro bíblico de Isaías, conta-se como Ezequias, tendo orado para livrar-se de uma enfermidade mortal, foi atendido, e Deus, como sinal de sua proteção, fez o sol recuar dez graus no relógio de Acaz. 142 Água de Juventa, locução que designa uma fonte mitológica, cujas águas tinham o poder de rejuvenescer os que a bebiam.
178
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
Vigírlia deu-me longas notícias de fora, narrando-as com graça, com um certo travo de má língua, que era o sal da palestra; eu, prestes a deixar o mundo, sentia um prazer satânico em mofar dele, em persuadir-me que não deixava nada (ASSIS, 1977, p.106, grifo nosso).
A amargura dissimulada pela ironia faz da tristeza algo cômico, suaviza a
gravidade da enfermidade presente. “Os contrastes irônicos assumem muitas
formas, a disparidade pode ser entre a inevitabilidade de um resultado ou a certeza
de um fato e uma aparência de indeterminação, causalidades ou possibilidades
abertas” (MUECKE, 1995, p. 74). A aparente calma, na narração amena, escamoteia
a dificuldade inerente à certeza prenunciada da morte, pela evidência da doença
manifestada na carne.
A angústia frente à morte se expressa em maior evidência no capítulo VII,
intitulado “O delírio”. Esse é o maior capítulo do livro, e o que melhor resume a
fragilidade, a incerteza e a melancolia frente ao desamparo da efêmera condição
humana. Usando a linguagem do delírio, o narrador viaja até a origem dos séculos,
montado num hipopótamo, guiado por uma imagem transfigurada em mulher, sendo
ela própria a encarnação da face da morte. Freud aponta que o desejo de conhecer
a origem é o desejo que conduz o destino humano; é o desejo infantil por
excelência. É um desejo dividido em três fontes de saber – De onde venho? O que
sou? Para onde vou?
O processo de civilização não conseguiu recobrir medos e crenças (infantis)
primitivas. No mundo Antigo, as relações humanas com os avatares da natureza e
com os seus deuses eram mais próximas à realidade que vivenciavam. Aceitava-se
a incontestável ação do destino, esse já designado e revelado na voz do Oráculo.
Mesmo que não pudesse ser retirado poderia ser modificado ou amenizado pela
intervenção de algum deus. No entanto, apesar do avanço da civilização, o mito não
perdeu sua força no imaginário. Segundo Freud, esse pode ser outro recurso para
recobrir o desamparo.
O desamparo do homem, porém, permanece e, junto com ele, seu anseio pelo pai e pelos deuses. Estes mantêm sua tríplice missão: exorcizar os temores da natureza, reconciliar os homens com a crueldade do Destino, particularmente a que é demonstrada na morte, e compensá-los pelos sofrimentos e privações que uma vida civilizada em comum lhes impõe (FREUD, [1927] 1990, p. 29, grifo nosso).
179
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
O mito tem um papel preponderante na estruturação humana. “Foi assim que
se criou um cabedal de idéias, nascido da necessidade que tem o homem de tornar
tolerável seu desamparo, e construído com material da própria infância e da infância
da raça humana” (FREUD, [1927] 1990, p. 30). Essas idéias têm um sentido de
proteção contra os perigos da natureza e do destino, de entrar em contato
cruamente com o que há de mais contingente no destino individual e coletivo.
“Quando se chega, e em muitos outros campos além daquele do amor, há um certo
termo que não pode ser obtido no plano da èpistèmè, do saber, para ir mais além é
necessário o mito” (LACAN, 1981, p. 123).
O encontro com a misteriosa aparição acontece como uma confrontação
frente à vida e à morte. O poder sobrenatural do vulto personificado na mulher
conduz o narrador numa viagem igualmente sobrenatural, viagem no túnel do tempo;
um passado sem datas através dos séculos; através de uma existência indefinida. O
anúncio desse capítulo já se faz conduzido pela ironia. Afirma-nos o narrador que
narrar o próprio delírio é um fato inusitado, portanto, devedor da gratidão da ciência.
“Se o leitor não é dado à contemplação destes fenômenos mentais, pode saltar o
capítulo; vá direto à narração. Mas, por menos curioso que seja, sempre lhe digo
que é interessante saber o que se passou na minha cabeça...” (ASSIS, 1977, p.
108). Mais uma vez o leitor é convocado a um jogo lúdico de contrastes que provoca
a curiosidade.
A imagem da mulher é representada por Pandora143 (mitológica figura grega
guardiã da caixa que porta todos os males e também a esperança). Sua aparição é
relatada numa dimensão que avassala. É narrada em atitudes que a tornam
incompreensível como figura humana, com atributos de caráter sobrenatural. O
primeiro momento do encontro é marcado pelo espanto e pelo silêncio. O diálogo
que se segue referente à apresentação de Pandora, se autodenominando de
mulher-mãe-inimiga, forma a tríade simbólica apresentada por Freud no texto O
143 Pandora, no mito grego, é a primeira mulher da humanidade, ‘o belo mal’, modelada em argila, encomendada por Zeus a Hefesto (com ajuda de Afrodite) para que fosse ideal, fascinante e semelhante às deusas imortais. Foi dada de presente a Epimeteu, (que se esquecera do conselho de Prometeu de que não aceitasse presente de Zeus). Pandora trazia consigo uma caixa, (contendo o bem e o mal) cujo conteúdo desconhecia e a recomendação de não abri-la. Desconsiderando as ordens de Zeus, ela retirou a tampa e da caixa saíram todas as desgraças e calamidades que atormentavam a vida dos homens, só ficando a esperança presa entre as bordas, porque Pandora apressadamente fechou a caixa (HESÍODO, 1996, p. 25).
180
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
Tema dos três Escrínios [1913]144, onde alegoricamente o feminino encarna a
representação da morte. Palavras de Freud:
Poderíamos argumentar que o que se acha representado aqui são as três inevitáveis relações que um homem tem com uma mulher – a mulher que o dá à luz, a mulher que é a sua companheira e a mulher que o destrói; ou que elas são as três formas assumidas pela figura da mãe no decorrer da vida de um homem – a própria mãe, a amada que é escolhida segundo o modelo daquela, e, por fim, a Terra Mãe, que mais uma vez o recebe (FREUD, [1913] 1990, p. 379)
Na narrativa machadiana, a figura da mulher encarna essas vertentes
apontadas por Freud: a mulher–mãe, santa; a mulher–companheira e a mulher–
amante, pecadora, a que conduz à morte, à perdição. Brás Cubas vive todas essas
nuanças de mistérios possíveis de encarnar-se numa mulher.145 Refletindo diante da
cena da morte de sua mãe, ele expressa: “Que? Uma criatura tão dócil, tão meiga,
tão santa, que nunca jamais fizera verter uma lágrima de desgosto, mãe carinhosa,
esposa imaculada, era força que morresse assim...” (ASSIS, 1977, p.145).
Relembrando seu primeiro contato com uma mulher, o seu encontro com “a dama
espanhola, Marcela”, ele afirma: “a verdade é que Marcela não possuía a inocência
rústica, e mal chegava a entender a moral do código. “Era boa moça, lépida, sem
escrúpulos, luxuosa, impaciente, amiga do dinheiro e dos rapazes” (ASSIS, 1977, p.
127).
144
No Tema dos três escrínios, Freud desenvolve análise a partir de duas cenas de Shakespeare (uma de comédia e outra de tragédia) reportadas ao mito grego do Destino, o detalhe de uma escolha entre três elementos simbólicos. Relaciona essa escolha aos possíveis lugares que uma mulher ocupa na vida de um homem. Traz para a cena do texto o mito das Moiras (Parca; Normas) Cloto, Láquesis, e Átropos (FREUD, [1913], 1990, p. 317). As Moiras são a personificação do destino individual. Originalmente, cada ser humano tinha a sua Moira individual. Depois ela passou a ser uma divindade universal, senhora inconteste do destino de todos os homens. Essa Moira, após as epopéias homéricas, se projetou em três Moiras, e predeterminam o destino. Fiam o tempo de vida que já foi prefixado e Tânatos (a morte) comparece, não como agente, mas como executor. Cloto (fiar) segura o fuso e vai puxando o fio; Láquesis (sortear) é a que enrola o fio da vida e sorteia o nome de quem deve perecer; Átropos (alfa primitivo; inflexível) é a que não volta atrás. Sua função é cortar o fio da vida (BRANDÃO, 2000, p. 140). Na formação da tríade, as Moiras tem uma estreita relação com as Queres (Graças) e as Horas (Estações) As Horas tem relação com o tempo, e com as águas; a distribuição de chuvas. Determinam as Estações e a passagem do tempo. As Normas, da mitologia germânica, são aparentadas com as Horas e as Moiras e apresentam essa significação de tempo em seus nomes (Que podem ser traduzidos por ‘O que foi; O que é; e o que será’) O mito da Natureza transformou-se num mito humano: as deusas do tempo tornaram-se as deusas do Destino (FREUD, [1913] 1990, p. 374). 145 As três mulheres mais marcantes na vida de Brás Cubas e que podem ser compreendidas dentro dessa interpretação freudiana estão representadas na figuras de sua mãe, de Marcela e de Virgília.
181
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
No que diz respeito a Virgília, a mulher eleita como sua amada, Brás Cubas a
recorda e a define em dois momentos: na adolescência ele a percebe como “bonita,
fresca, saía das mãos da natureza, cheia daquele feitiço, precário e eterno, que o
indivíduo passa a outro indivíduo, para os fins secretos da criação. Era isto Virgília...”
(ASSIS, 1977, p. 152). No reencontro com ela, depois de transcorridos alguns anos,
já casada e mãe, Brás re-elabora sua definição e diz: “vi assomar a distância, uma
mulher esplêndida. Era ela; só a reconheci a poucos passos, tão outra estava, a tal
ponto a natureza e a arte lhe haviam dado o último apuro” (ASSIS, 1977, p. 179).
Na vivência do delírio, Pandora é a imagem que vem representar e cumprir o
papel da “Terra Mãe”146, a última mulher a recebê-lo nos braços. Ou ainda, a própria
imagem de Átropos transfigurada, a “senhora do destino”, a “Deusa da Morte”, a
inflexível, aquela a quem nem o poderoso Zeus147 contesta. Os termos “vulto”,
“imagem” e “figura” reforçam o aspecto mitológico da aparição: na gargalhada, há a
força que produz efeitos fenomenais; no diálogo e na face, a dualidade que
aterroriza e fascina. A própria encarnação de Pandora se dá em forma dual como
vida e morte; mãe e inimiga; fugaz e eterna; portadora do mal e da esperança.
Caiu do ar? Destacou-se da terra? Não sei; sei que um vulto imenso, uma figura de mulher me apareceu então, fitado-me uns olhos rutilantes como o sol. Tudo nessa figura tinha a vastidão das formas selváticas, e tudo escapava à compreensão do olhar humano, porque os contornos perdiam-se no ambiente, e o que parecia espesso era muita vez diáfano. Estupefato, não disse nada, não cheguei sequer a soltar um grito; mas, ao cabo e algum
146 Geia ou Gaia (Terra) não tem etiologia convincente. É concebida como mito primordial e deusa cósmica, surgiu após o Caos e antes de Eros. Por partenogênese Geia deu à luz Urano (o céu), Montes e Pontos, personificação do mar. Uniu-se a Urano e gerou filhos. Urano, porém temendo ser destronado pelos inúmeros filhos, de certo ponto adiante passou a devolvê-los ao ventre de Géia. A “Terra mãe” pesada e cansada (com o ventre cheio) pediu ajuda aos filhos para libertar-los. Encontrou só o apoio de Cronos (filho caçula), que cortou os testículos do pai. Desse corte do Céu, o sangue espalhado caiu sobre a Terra, concebendo esta, no devido tempo as Erínias, os Gigantes e as Ninfas. E dos testículos lançados ao mar, formaram uma espumarada de que nasceu Afrodite. Como origem e matriz da vida, Géia recebeu o epíteto de Magna Mater, a Grande Mãe. Guardiã da semente e da vida, em todas as culturas sempre houve ‘enterros’ simbólicos, análogos às imersões batismais, seja com a finalidade de fortalecer as energias seja de curar ou como rito de iniciação. De toda forma, esse regressus ad uterum, essa descida ao útero da terra, tem sempre a mesma conotação religiosa: a regeneração pelo contato com as energias telúricas; morrer para uma forma de vida, a fim de renascer para uma vida nova e fecunda (BRANDÃO, 2000, p. 460). 147 Zeus, deus todo poderoso do Olimpo. Os epítetos que o descrevem são inúmeros. Após o governo de Urano e de Cronos, Zeus simboliza o reino do espírito. Embora não seja um deus criador, ele é o organizador do mundo exterior e interior. Dele dependem a regularidade das leis físicas, sociais e morais. Suas muitas relações extraconjugais o tornam responsável pela maior parte da descendência do Olimpo e de alguns mortais também. Ele é o senhor do raio, da punição e do castigo e é temido por todos. Zeus simboliza o término de um ciclo de trevas e o início de uma era de luz. Partindo do Caos, da desordem primordial para a justiça. No entanto o seu poder não interfere sobre o poder do Destino e da deusa Átropos (BRANDÃO, 2000, p. 501).
182
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
tempo, que foi breve, perguntei quem era e como se chamava: curiosidade de delírio (ASSIS, 1977, p. 110).
Em meio ao desamparo da realidade de moribundo, Brás Cubas busca no
delírio uma possibilidade de elaboração. Através desse recurso, uma forma de
escape, entra em contato com o cerne de sua aflição. Ao apresentar-se, a mulher
diz: “[...] - chama-me Natureza ou Pandora; sou tua mãe e tua inimiga” (ASSIS,
1977, p. 110). “[...] eu não sou somente a vida; sou também a morte” (ASSIS, 1977,
p. 111). A ambigüidade configura-se como o fio condutor do delírio, assim como em
toda a narrativa. O conteúdo do delírio circula por temas que demandam profundas
reflexões. Esses indicam que o objetivo do narrador é elaborar o luto da própria
morte para escapar à melancolia da vida. O capítulo é repleto de figuras e
expressões que representam simbolicamente a morte. A mística visão encarna um
antagonismo que a inscreve fora do âmbito de humanidade, deixando-a na esfera de
divindade.
A visão estendeu o braço, segurou-me pelos cabelos e levantou-me ao ar, como se fora uma pluma. Só então pude ver-lhe de perto o rosto, que era enorme. Nada mais quieto; nenhuma contorção violenta, nenhuma expressão de ódio ou ferocidade; a feição única, geral, completa, era a da imparcialidade egoísta, a da eterna surdez, a da vontade imóvel. Raivas, se as tinha, ficavam encerradas no coração. Ao mesmo tempo, nesse rosto de expressão glacial, havia um ar de juventude, mescla de força e viço, diante do qual me sentia eu o mais débil e decrépito dos seres (ASSIS, 1977, p. 110).
A primeira evocação à morte sofrida pelo narrador aparece na flexibilidade em
que o corpo muda de forma, apontando a liberdade de tomar várias formas, ao
mesmo tempo em que, quando transformado na “Summa Theológica”148 de S.
Tomás, perde a flexibilidade, passando a sentir o oposto, a “mais completa
imobilidade; e ainda agora me lembra que, sendo as minhas mãos os fechos do
livro, e cruzando-as eu sobre o ventre, alguém as descruzava (Virgília decerto),
porque a atitude lhe dava a imagem de um defunto” (ASSIS, 1977, p. 108). Essa
atitude, que é referida a Virgília, é pertinente com uma afirmação de Freud de que
148
Suma teológica, principal escrito de Tomás de Aquino (1223-1275), propondo uma nova sistematização à ‘doutrina sagrada’, que se tornará o texto de ensino da teologia na maioria das escolas católicas a partir do século XVI.
183
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
“Quando se trata da morte de outrem, o homem civilizado cuidadosamente evita falar
de tal possibilidade no campo auditivo da pessoa condenada” (FREUD, [1915] p.
321).
Na percepção do delírio, Brás Cubas refere conhecer a região dos gelos
eternos. “O silêncio daquela região era igual ao do sepulcro: dissera-se que a vida
das coisas ficara estúpida diante do homem” (ASSIS, 1977, p. 109). Um ambiente
marcado pelo silêncio, convoca à reflexão, é uma pausa ante o “burburinho” fugaz
da vida. Uma situação que resulta em texto mudo, sem a necessidade de palavras,
uma vez que o impacto provoca a mudez. A mudez pode ser entendida como
representando a deusa da Morte, aquela diante de quem nada se tem a dizer. Freud
afirma na Interpretação dos sonhos e repete no Tema dos três escrínios que “nos
sonhos, o silêncio e a mudez são uma representação comum à morte” (FREUD,
[1913] 1990, p. 371). Inúmeros vocábulos são usados (frio, branco, eterno, séculos,
tempo, viagem, nevoeiro) também como significantes que nomeiam a morte.
O encontro com a misteriosa aparição é também um confronto entre a vida e
a morte. O efeito retrospectivo dos séculos (viagem no tempo) vislumbrado através
de um nevoeiro é apenas um entre os inúmeros significantes que representam a
morte e que são parte da visão sobrenatural conferida ao delirante. É uma
antecipação da morte como condição material de existir, porém relacionando a morte
física com a morte do sentido de viver. “Não é raro ver os melancólicos delirarem,
terem perdido sua própria personalidade e terem sofrido uma metamorfose”
(QUINET, 1999, p. 41).
O delírio é uma possibilidade apontada por Freud, no texto Luto e Melancolia.
Quando o trabalho de luto exige que o teste de realidade seja reconhecido pelo ego,
ou seja, que o objeto amado não mais exista, essa exigência provoca uma oposição
reconhecida como compreensível, porque não se abandona de bom grado uma
posição libidinal. “Essa oposição pode ser tão intensa, que dá lugar a um desvio da
realidade e a um apego do objeto por intermédio de uma psicose alucinatória
carregada de desejo” (FREUD, [1915] 1990, p. 278). Através do delírio, é possível a
Brás Cubas conhecer a origem de todas as coisas e observar a fragilidade da
estrutura humana. Nas palavras do delirante:
184
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
[...] Aí vinham à cobiça que devora, a cólera que inflama, a inveja que baba, e a enxada e a pena, úmidas de suor, e a ambição, a fome, a vaidade, a melancolia, a riqueza, o amor, e todos agitavam o homem, como um chocalho, até destruí-lo, como um farrapo. Eram as formas várias de um mal, que ora mordia a víscera, ora mordia o pensamento, e passeava eternamente as suas vestes de arlequim, em derredor da espécie humana. A dor cedia alguma vez, mas cedia à indiferença, que era um sono sem sonhos, ou ao prazer, que era uma dor bastarda. Então o homem flagelado e rebelde, corria diante da fatalidade das coisas, atrás de uma figura nebulosa e esquiva, feita de retalhos, um retalho de impalpável, outro de improvável, outro de invisível, cosidos todos a ponto precário, com a agulha da imaginação; e essa figura, nada menos que a quimera da felicidade, - ou lhe fugia perpetuamente, ou deixava-se apanhar pela fralda, e o homem a cingia ao peito, e então ela ria, como um escárnio, e sumia-se, como uma ilusão (ASSIS, 1977, p. 112).
A vida é apresentada frente a um real devastador. A disputa acirrada entre
pólos opostos perpassa marcadamente a história. Não há qualquer possibilidade de
sustentação satisfatória no transcorrer dos séculos. O homem é mostrado frente às
misérias, flagelos e destruições, completamente entregue à fatalidade de males e de
um acaso sem perspectivas. A narrativa toma um rumo de extremo pessimismo e se
conduz por uma vertente que leva o delirante ao convencimento de entregar-se à
morte, pois o destino e perspectiva humanos são pura calamidade. “Cada século
trazia a sua porção de sombra e de luz, de apatia e de combate, de verdade e de
erro, e o seu cortejo de sistemas, de idéias novas, de novas ilusões...” (ASSIS, 1977,
p. 113). Como um fuso circular a tecer com o mesmo fio de ambigüidades, a vida se
repete num enigmático circuito de lamento interminável.
A vida tinha assim uma regularidade de calendário, fazia-se a história e a civilização, e o homem, nu e desarmado, armava-se e vestia-se, construía o tugúrio e o palácio, a rude aldeia e Tebas149 de cem portas, criava a ciência, que perscruta, e a arte que enleva, fazia-se orador, mecânico, filósofo, corria a face do globo, descia ao ventre da terra, subia à esfera das nuvens, colaborando assim na obra misteriosa, com que entretinha a necessidade da vida e a melancolia do desamparo (ASSIS, 1977, p. 113).
O desamparo humano parece ser o fio condutor da vida. Seja qual for a
circunstância em que esse fato se apresente na linguagem do delírio, apenas
149 Tebas, cidade egípcia, capital do alto Egito no segundo milênio a.C. Segundo a Ilíada de Homero, era cidade de cem portas, onde, através de cada uma, podiam passar duzentos homens com carros e cavalos.
185
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
comprova uma realidade dura de aceitar, portanto bem escamoteada em toda a
tessitura do aparato social. A possibilidade que resta é aceitar e elaborar que a
morte é o melhor saldo da vida. A retrospectiva é pertinente à reação melancólica,
que busca no passado a ancoragem que está perdida no momento presente. O
delírio possibilita ao moribundo a experiência do inexplicável e a tentativa de
aceitação do que não é possível de aceitar na plenitude da racionalidade.
“Que há entre a vida e a morte? Uma curta ponte” (ASSIS, 1977, p. 269).
Com essa sentença Brás Cubas atenua o pesar do anúncio da morte precoce de
sua noiva aos dezenove anos de idade (provocada por uma epidemia). Mesmo a
“curta ponte” não oferecendo a extensão verdadeira e mensurável para o que existe
“entre a vida e a morte,” é uma tentativa de responder à hiância que se coloca diante
de tal questão. Retomamos na narrativa a presença funesta, nas inúmeras situações
pontuais das citações da morte, com as quais Brás Cubas privilegiou marcar suas
Memórias.
Ao falar da escola relembrando a infância, também marcada por “matar” aulas
e divertir-se fora do contexto de estudos, Brás Cubas relembra ironicamente seu
velho mestre das primeiras letras. Caracteriza sua passagem pela vida de maneira
medíocre. Desrespeitado pelos alunos, repetindo uma rotina de trabalho de enfados,
no ranço da obrigação. Caracteriza a marca de uma vida melancólica; de uma morte
simbólica que antecipa a morte orgânica.
E fizeste isto por vinte e três anos, calado, obscuro, pontual, metido numa casinha da rua do piolho, sem enfadar o mundo com a tua mediocridade, até que um dia deste o grande mergulho nas trevas, ninguém te chorou, salvo um preto velho, - ninguém, nem eu, que te devo os rudimentos da escrita. Chamava-se Ludgero o mestre; quero escrever-lhe o nome todo nesta página: Ludgero Barata, - um nome funesto, que servia aos meninos de eterno mote e chufas (ASSIS, 1977, p. 125).
A homenagem póstuma fica apenas na intenção, haja vista o propositado uso
de ironia até na metáfora escolhida no sobrenome do mestre. É uma citação que soa
como mais um descaso à memória do falecido que mais uma vez é rebaixado em
sua função e mestria. A ironia disfemística é usada pra degradar a imagem do
professor e reduzi-lo ao aspecto de “coisa”, resto humano. Amargura personificada.
186
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
A bordo do navio, rumo à Europa, Brás expressa a “idéia fixa” de mergulhar
no oceano, repetindo o nome de Marcela. Desiste de seu “fúnebre projeto”, ou,
melhor dizendo, o projeto é interceptado pelo confronto da morte real da mulher do
capitão. “Fiquei só; mas a musa do capitão varrera-me do espírito os pensamentos
maus; preferi dormir, que é um modo interino de morrer. [...] Eu que meditava ir ter
com a morte, não ousei fitá-la quando ela veio ter comigo” (ASSIS, 1977, p. 138).
Lima destaca a forma seca e irônica de como o óbito é descrito e o oportunismo
descabido do capitão, que por ocasião do enterro, feito à moda marítima, se
aproveita para divulgar sua má poesia (LIMA, 1981, p. 70).
De volta da Europa, Brás Cubas enfrenta a morte da mãe, faz um período de
recolhimento na Tijuca para o luto; breve tempo que culmina no encontro com
Eugênia (“a flor da moita”) marcada em vida por uma insígnia no corpo, como o real
da morte encarnado. O defeito físico da moça reflete também como uma morte
social. Schwarz observa sobre “a flor da moita” (título do capítulo XXX), em que é
narrado o encontro de Brás Cubas e Eugênia, que o encanto do signo “flor”, ali
empregado, não tem essa função, já é uma ironia, haja vista que, nesse caso, faz
referência a sua origem. “Designa com desprezo a moça nascida fora do casamento,
concebida atrás do arbusto, por assim dizer no matinho” (SCHWARZ, 1990, p. 81).
Seguindo o viés da ironia, a deficiência física é acentuada em maior escala e
determinante do fim do breve idílio campestre entre Brás Cubas e a moça. Em sua
reflexão Brás Cubas pontua: “O pior é que era coxa. Uns olhos tão lúcidos, uma
boca tão fresca, uma compostura tão senhoril; e coxa! Esse contraste faria suspeitar
que a natureza é às vezes um imerso escárnio. Por que bonita, se coxa? Por que
coxa, se bonita” (ASSIS, 1977, p. 160). Dessa reflexão, o narrador antecipa a morte
simbólica de Eugênia, o que se concretiza na petição de miséria em que se
transforma sua vida; indo, tempos depois, ser encontrada num cortiço da periferia.
[...] Em verdade vos digo que toda filosofia humana não vale um bar de botas curtas. Tu, minha Eugênia, é que não as descalçastes nunca; fostes aí pela estrada da vida, manquejando da perna e do amor, triste como os enterros dos pobres, solitária, calada, laboriosa, até que vieste também para esta outra margem... O que eu não sei é se a tua existência era muito necessária ao século. Quem sabe? Talvez um comparsa de menos fizesse patear à tragédia humana (ASSIS, 1977, p. 163, grifo nosso).
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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
Uma outra morte simbólica que antecipa a do corpo físico é a da “bela
Marcela”. O reencontro de Brás com Marcela, depois da longa estadia na Europa, foi
marcado pelo acaso. Ao entrar numa loja para consertar o vidro do relógio que caíra,
é com espanto e profundo mal-estar que ele a reconhece. A descrição é digna de
nota, inclusive por ter sido designada pelo narrador como um curioso espetáculo.
Não podia ter sido feia; ao contrário, via-se que fora bonita, e não pouco bonita; mas a doença e a velhice precoce destruíram-lhe a flor das graças. As bexigas tinham sido terríveis; os sinais, grandes e muitos, faziam saliências e encarnas, declives e aclives, e davam uma sensação de lixa grossa, enormemente grossa. Eram os olhos a melhor parte do vulto, e aliás tinham uma expressão singular e repugnante, que mudou, entretanto, logo que comecei a falar. Quanto ao cabelo, estava ruço e quase tão poento como os portais da loja. Num dos dedos da mão esquerda fulgia-lhe um diamante. Crê-lo-eis, pósteros? Essa mulher era Marcela (ASSIS, 1977, p. 165).
A assombrosa descrição da mulher, assolada pela decrepitude da doença e
da sorte, fez Brás Cubas refletir sobre os desatinos do passado e analisar
brevemente a validade deles. “Eu deixei-me ir ao passado, e, no meio das
recordações e saudades, perguntei a mim mesmo por que motivo fizera tanto
desatino. Não era certamente a Marcela de 1822...” (ASSIS, 1977, p. 165). A marca
da deficiência encarnada na pele mais uma vez fez Brás Cubas antecipar a morte
simbólica, antes da real, manifesta na sensação interna de repugnância. “A verdade
é que eu me sentia pungido e aborrecido” (ASSIS, 1977, p. 166). E o efeito do
encontro, foi de certa forma, tão avassalador que saindo dali para a casa da noiva
(Virgília), faz uma alucinação visual, condensando o rosto de Marcela e o de Virgília.
“De repente morre-me a voz nos lábios, fico tolhido de assombro. Virgília... Seria
Virgília aquela moça? [...] As bexigas tinham-lhe comido o rosto; [...] aparecia-me
agora amarela, estigmada pelo mesmo flagelo, que devastara rosto da espanhola”
(ASSIS, 1977, p. 169). A segunda morte de Marcela (a morte física) acontece
testemunhada por Brás Cubas.
[...] Vi morrer no hospital da ordem, adivinhem quem?... A linda Marcela; e via-a morrer no mesmo dia em que, visitando um cortiço, para distribuir esmolas, achei... Agora é que não são capazes de adivinhar... Achei a flor da
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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
moita, Eugênia, a filha da Dona Eusébia e do Vilaça, tão coxa como a deixara, e ainda triste. [...] Sei que continuava coxa e triste. Foi com esta impressão profunda que cheguei ao hospital, onde Marcela entrara na véspera, e onde a vi expirar meia hora depois, feia, magra, decrépita... (ASSIS, 1977, p. 299).
Eugênia nasce com uma marca na carne, que lhe marca também um lugar
simbólico na realidade, o lugar de morta no contexto social; marca essa que o seu
desejo não consegue ultrapassar. Toda a “graça” física e espiritual esculpidas na
“flor” se apaga no “espinho” encravado na carne. Brás Cubas, embora seduzido,
deixa-se dominar, é capturado no significante, naquilo que evidentemente falta como
presença na carne. O idílio transcorre sob o signo de quatro borboletas (SCHWARZ,
1990, p. 86). (como as fases da sedução) as duas primeiras coloridas, anúncio de
esperança, indo culminar na borboleta preta, cuja morte o narrador descreve
demonstrando crueldade, fato evidente da comparação simbólica entre a última
borboleta preta e a flor da moita.
A morte física do pai de Brás também vai acontecer em referência preliminar à
morte simbólica. Foi por ocasião do rompimento do noivado de Brás Cubas com
Virgília. Fato bem demarcado, e sentido com decepção, na incompetência de Brás
Cubas, ter dado oportunidade à moça de preferir um outro noivo que lhe prometesse
títulos advindos de uma promissora carreira política.
Meu pai ficou atônito com o desenlace, e quer-me parecer que não morreu de outra coisa. Eram tatos os castelos que engendrara, tantos e tantíssimos os sonhos, que não podia vê-los assim esboroados, sem padecer um forte abalo no organismo. A princípio não quis crê-lo. Um Cubas! Um galho da árvore ilustre dos Cubas! E dizia isso com tal convicção, que eu, já então informado da nossa tanoaria, esqueci um instante a volúvel dama, para só contemplar aquele fenômeno, não raro, mas curioso: uma imaginação graduada em consciência. - Um Cubas! Repetia-me ele na seguinte manhã, ao almoço. [...] Mas eu era moço, tinha o remédio em mim mesmo. Meu pai é que não pôde suportar facilmente a pancada. Pensando bem, pode ser que não morresse precisamente do desastre; mas que o desastre complicou as últimas dores, é positivo. Morreu daí a quatro meses – acabrunhado, triste, com uma preocupação intensa e contínua, à semelhança de remorso, um desencanto mortal, que lhe substituiu o reumatismo e tosses (ASSIS, 1977, p. 172).
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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
As notas em referência ao velório são minuciosa e paulatinamente
detalhadas, sugerindo a dor sentida no passo a passo de um rito, sofrido,
compungido e necessário, à elaboração do luto. O capítulo inteiro é descrito em um
longo período descrevendo o ritual funéreo, e conclui ao fim da comovida descrição,
num outro período, breve, com efeito irônico o seguinte contra-senso: “Isto que
parece um simples inventário, eram notas que eu havia tomado para um capítulo
triste e vulgar que não escrevo” (ASSIS, 1977, p. 173, grifo nosso).
Soluços, lágrimas, casa armada, veludo preto nos portais, um homem que veio vestir o cadáver, outro que tomou a medida do caixão, caixão, essa, tocheiros, convites, convidados que entravam, lentamente, a passo surdo, e apertavam a mão à família, alguns tristes, todos sérios e calados, padre, sacristão, rezas, aspersões d’água benta, o fechar do caixão a prego e martelo, seis pessoas que tomam da essa, e o levantam, e o descem a custo pela escada, não obstante os gritos, soluços e novas lágrimas da família, e vão até o coche fúnebre, e o colocam em cima e transpassam e apertam as correias, o rodar do coche, o rodar dos carros, um a um ... (ASSIS, 1977, p. 173).
Ainda referindo “luto pesado e profundo silêncio”, detalha os trâmites da
partilha que resulta em briga com a irmã e o cunhado. Lamenta o episódio como
sendo comparável à doença que marcou a face de Marcela e lhe trouxe uma
sentença precoce da morte. “Fizeram-se finalmente as partilhas, mas nós estávamos
brigados. [...] Como bons irmãos que éramos. Mas estávamos brigados. Tal qual a
beleza de Marcela, que se esvaziou com as bexigas (ASSIS, 1977, p. 176). Como
resultante da divisão dos bens, segue-se o rompimento com a família, marcando
uma fase de afastamento. “Vivi meio recluso, indo de longe em longe a algum baile,
ou teatro, ou palestra, mas a maior parte do tempo passei-a comigo mesmo. Vivia;
deixava-me ir ao curso e recurso dos sucessos e dos dias, ora buliçoso, ora apático,
entre a ambição e o desânimo” (ASSIS, 1977, p. 173).
É em meio a esse estado de ambígua apatia, que acontece o reencontro com
Virgília. O reencontro vai selar a saga de um amor proibido, intenso e marcado
também pela insígnia da ironia e da morte. Construído à revelia da situação, haja
vista Virgília estar casada, tornando instigante a conquista do fruto proibido. “Sim
senhor, amávamos. Agora que todas as leis sociais no-lo impediam, agora é que nos
amávamos deveras. Achávamo-nos jungidos uma ao outro, como duas almas que o
poeta achou no purgatório” (ASSIS, 1977, p. 188). O adultério passa a ser um
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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
detalhe atribuído ao destino. “Pobre destino! Onde andarás agora, grande
procurador dos negócios humanos?” (ASSIS, 1977, p. 188).
Esse enlace “fora da lei” é vivenciado na cômoda ironia oportunista do acesso
de Brás Cubas à casa da amante, pelo fato de desfrutar da amizade do marido
traído, e até consolá-lo nas melancolias da vida. Compartilha com ele da opinião de
que Virgília “era a perfeição mesma, um conjunto de qualidades sólidas e finas,
amorável, elegante, austera, um modelo. E a confiança não parava aí. De fresta que
era, chegou à porta escancarada” (ASSIS, 1977, p. 190). Caracterizando uma ironia
situacional. O “romance” todo é vivenciado em meio a uma situação dúbia e em
“semi presença” do marido. Compartilham também o mesmo projeto de filho, que
morre ainda feto.
Eu só pensava naquele embrião anônimo, de obscura paternidade, e uma voz secreta me dizia: é teu filho. Meu filho! E repetia estas duas palavras, com certa voluptuosidade indefinível, e não sei que assomos de orgulho (p. 233). [...] Uma tarde, após algumas semanas de gestação, esboroou-se todo o edifício das minhas quimeras paternais. Foi-se um embrião... [...] Tive a notícia por boca do Lobo Neves, que me deixou na sala, e acompanhou o médico à alcova da frustrada mãe (ASSIS, 1977, p. 238).
Antecedendo a morte do feto, futuro filho de Virgília e Brás (ou de Lobo
Neves), aconteceu a morte do avarento Viegas, parente de Virgília. “Viegas passou
aí de relance, com os seus setenta anos, abafados de asma, desconjuntados de
reumatismo, e uma lesão de coração por quebra” (ASSIS, 1977, p. 228). Virgília
cuidou do enfermo com esperanças de ver o filho incluído no testamento do mesmo,
sem obter êxito. Essa morte é narrada num extremo clima de ironia. O moribundo
negocia um imóvel com um comprador, num diálogo de leilão, até a última hora, e
morre repetindo (como uma gagueira) as primeiras sílabas do valor pleiteado e
ardorosamente defendido. “- Não... não... quar... quaren... quar... quar... Teve um
acesso de tosse, e foi o último; daí a pouco expirava ele... (ASSIS, 1977, p. 233).
O amor adúltero de Brás e Virgília conheceu o mesmo ciclo peculiar à vida.
Circula no desejo ardente aguçado no clima do subterfúgio proibido, “insaciável
como a morte” (ASSIS, 1977, p. 196); clandestinamente dividido no mesmo teto com
o matrimônio; e no sossego do “recanto da Gamboa”, metodicamente preparado e
temperado com “mistério e solidão” (ASSIS, 1977, p. 204). Só sobrevive exatamente
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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
na indecisão da escolha entre o amor e a conveniência. “Vi que era impossível
separar duas coisas que no espírito dela estavam inteiramente ligadas: o nosso
amor e a consideração pública” (ASSIS, 1977, p. 204). Decidir entre o marido e o
amante e abdicar de um dos dois não parece representar para ela nenhum conflito.
“Virgília era capaz de iguais e grandes sacrifícios para conservar ambas as
vantagens, e a fuga só lhe deixava uma” (ASSIS, 1977, p. 204).
No Mal estar na Civilização, Freud aponta as restrições culturais como uma
das três fontes de sofrimento humano. “[...] a inadequação das regras que procuram
ajustar os relacionamentos mútuos dos seres humanos na família, no Estado e na
sociedade” (FREUD, [1929] 1990, p. 105). Argumenta que não de bom grado que a
criatura humana abre mão de um prazer já experimentado, mas a troco de uma
negociação entre as instâncias do ego e as vantagens provenientes da civilização.
“Enfim, de que nos vale uma vida longa se ela se revela difícil e estéril em alegrias, e
tão cheia de desgraças que só a morte é por nós recebida como uma libertação?”
(FREUD, [1929] 1990, p.108, grifo nosso).
Virgília é descrita por Brás Cubas como “o grão pecado de sua juventude”,
Embora comprometidos em um casamento agendado pelas famílias e com vistas a
uma carreira política, romperam sem dor, só vindo a descobrir o amor quando
Virgília é socialmente impedida, por estar casada, mediante própria escolha, com o
promissor político Lobo Neves. O reencontro que culmina numa explosão de amor
clandestino é justificado por Brás Cubas em função da oportunidade, “[...] Por que se
nenhum de nós estávamos verde para o amor, ambos estávamos para o nosso
amor: distinção fundamental. Não há amor possível sem a oportunidade dos
sujeitos” (ASSIS, 1977, p. 187).
Mesmo rompendo as limitações sociais e vivenciando a explosão do amor,
em vias alternativas e camufladas, não houve como escapar à impossibilidade do
amor. Lacan argumenta no Seminário Mais, ainda [1972-73] que o inconsciente
demarca “que, o desejo do homem é o desejo do outro, e que o amor, se aí está
uma paixão que pode ser ignorada do desejo, não menos lhe deixa seu alcance.
Quando se olha para lá mais de perto, vêem-se as devastações” (LACAN, 1996, p.
12). Brás Cubas sintetiza sua aventura amorosa, sinalizando essa demanda do amor
que não pára de demandar, bem definido em sua contemplação dos olhos e boca da
amada: “Eu deixei-me estar a vê-los, a namorar-lhe a boca, fresca como a
madrugada, e insaciável como a morte” (ASSIS, 1977, p. 196).
192
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
Sem encontrar uma explicação plausível para o desencanto do amor, Brás
Cubas, recorre ao mítico exemplo do amor das Mil e uma noites, em que a sentença
prévia de morte, faz a esposa-amante Sheherazade buscar uma estratégica saída, a
sedução ao desejo de saber do outro. Usando propositadamente no não
(des)velamento da palavra, a jovem porta-se como aquela que “causa” o desejo e
não como a que o satisfaz, possibilitando deslizar um enigma pelos revezes da
palavra, invólucro do amor. “Todos sabem que Xerazade [sic] foi uma extraordinária
sedutora porque mantinha o prazer do sultão suspenso a sua fala. Xerazade [sic]
usava com maestria uma das mil armas sedutoras da linguagem: sua capacidade de
narrar” (Perrone-Moisés, 1990, p. 14). Estratégia que Virgília não soube manejar
totalmente, deixando escapar o declínio do amor, segundo a constatação de Brás
Cubas.
E assim reatamos o fio da aventura, como a sultana Sheherazade150 o dos seus contos. Esse foi, cuido eu, o ponto máximo do nosso amor, o cimo da montanha, donde por algum tempo divisamos os vales de leste e de oeste, e por cima de nós o céu tranqüilo e azul. Repousado esse tempo, começamos a descer a encosta com as mãos presas ou soltas, mas a descer, a descer... (ASSIS, 1977, p. 227). [...] Veja bem o quadro: numa casinha da Gamboa, duas pessoas que se amam há muito tempo, uma inclinada para a outra, a dar-lhe um beijo na testa, e a outra a recuar, como se sentisse o contato de uma boca de cadáver. Há aí, no breve intervalo, entre a boca e a testa, antes do beijo e depois do beijo, há aí largo espaço pra muita coisa, - a contração de um ressentimento, - a ruga de desconfiança, - ou enfim o nariz pálido e sonolento da saciedade... (ASSIS, 1977, p. 240).
Uma nova viagem de Virgília em função da carreira política do marido serve
de pretexto ao rompimento e fim do amor, as despedidas acontecem aparentemente
sem grandes padecimentos, chegam quase à formalidade. Mas na franqueza da
meditação interior, o narrador é traído por sua solidão. Brás Cubas deixa escapar na
sua dor a melancolia que marca a impossibilidade da viva permanência do amor.
150 Sheherazade, personagem principal das Mil e uma noites. Para escapar da morte, a narradora conta todas as noites uma estória ao sultão (seu marido) usando a estratégia de não concluí-la, mas deixar o fio de condução narrativa para que a estória possa continuar numa outra, na noite seguinte, adiando assim sua sentença de morte, determinada desde a noite de núpcias.
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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
Ai dor! Era preciso enterrar magnificamente os meus amores. Eles lá iam, mar em fora, no espaço e no tempo, e eu ficava-me ali numa ponta de mesa, com meus quarenta e tantos anos, tão vadios e tão vazios; ficava-me para os não ver nunca mais, porque ela poderia tornar e tornou, mas o eflúvio da manhã quem é que o pediu ao crepúsculo da tarde? (ASSIS, 1977, p. 258).
É nesse espírito que haverá novo reencontro, em um baile, em que a dança e
a proximidade física confirmam a morte do amor. O encontro convoca as
reminiscências do antigo amor. Para expressar seus sentimentos após o baile, o
narrador empresta voz a um morcego e esse lhe adverte. “Senhor Brás Cubas, a
rejuvenescência estava na sala, nos cristais, nas luzes, nas sedas, enfim, nos
outros” (ASSIS, 1977, p. 277). O retorno físico de Virgília, em nada modifica o
desencanto do amor, antes vibrante, mesmo na impossibilidade da legalidade social.
Atendendo a um pedido de Virgília, Brás Cubas presta assistência à velha
senhora D. Plácida, que chega ao fim da vida em situação de miséria. Outrora
apadrinhada por Virgília e Brás Cubas e guardiã deste adúltero amor na casinha da
Gamboa. Ficara viúva aos quinze anos de um alfaiate que morreu tísico e lhe deixou
uma filha, D. Plácida narra sua história de vida, pontuando os detalhes de eventos
marcados por muitas agruras. Uma vida de miséria, em meio a muito trabalho e
pouca remuneração, morando em guetos, e em condições insalubres; até conseguir
a proteção que goza no momento. Brás Cubas destaca o fato de que ter
presenteado a velha Plácida com uma “pratinha”, o fez merecedor de suas
confidências, sobre as quais faz algumas irônicas reflexões:
É de crer que D. Plácida não falasse ainda quando nasceu, mas se falasse podia dizer aos autores de seus dias: - Aqui estou. Para que me chamastes? - Chamamos-te para queimar os dedos nos tachos, os olhos na costura, comer mal, ou não comer, andar de um lado pro outro, na faina, adoecendo e sarando, com o fim de tornar a adoecer e sarar outra vez, triste agora, logo desesperada, amanhã resignada, mas sempre com as mãos no tacho e os olhos na costura, até acabar na lama ou no hospital; foi para isso que te chamamos, num momento de simpatia (ASSIS, 1977, p. 213).
Profecia cumprida. Apesar do dinheiro ganho como indenização pelos
préstimos ao casal adúltero da Gamboa, D. Plácida deixou-se iludir por um
casamento que lhe custou todos os recursos, levada à casa de Misericórdia, já no
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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
preâmbulo da morte. Brás Cubas comenta: “achei um molho de ossos, envolto em
molambos, estendida sobre um catre velho e nauseabundo; fi-la transportar para a
Misericórdia, onde lá ela morreu uma semana depois. Minto: amanheceu morta: saiu
da vida às escondidas, tal qual entrara” (ASSIS, 1977, p. 287).
A morte de Lobo Neves é anunciada como em continuidade da rotina de
trabalhos e da carreira política. “Morria com o pé na escada ministerial” (ASSIS,
1977, p. 293). Ou entre o movimento de “rotação e translação” (ASSIS, 1977, p.
293). As reflexões diante dessa morte geram uma reação de remorso, sem, no
entanto, arrependimentos. As reações sinceras de Virgília ao chorar a morte do
marido provocam certa reação ambígua em Brás Cubas, dividida entre angústia e
ciúmes. “Digo-vos que as lágrimas eram verdadeiras. Eu fui ao cemitério: e, para
dizer tudo, não tinha muita vontade de falar, levava uma pedra na garganta ou na
consciência” (ASSIS, 1977, p. 293). A cena desse enterro gera as reflexões que
suscita numa filosofia própria à ocasião. A “filosofia dos epitáfios” (capítulo CLI) que
vale destacar.
Saí, afastando-me dos grupos, e fingindo ler os epitáfios. E, aliás, gosto de epitáfios; eles são, entre a gente civilizada, uma expressão daquele pio e secreto egoísmo, que induz o homem a arrancar à morte um farrapo ao menos da sobra que passou. Daí vem, talvez, a tristeza inconsolável dos que sabem os seus mortos na vala comum; parece-lhes que a podridão anônima os alcança a eles mesmos (ASSIS, 1977, p. 293).
A última morte (física) referida por Brás Cubas é a do amigo de infância,
Quincas Borba, o filósofo, autor da teoria do Humanitismo. Voltaremos a falar de
Quincas Borba no livro que leva seu nome. Aqui só cabe referir sua proximidade de
Brás Cubas, sendo confidente de suas melancolias. Desde o convívio da infância, a
morte social, enquanto esteve mendigo e a morte simbólica marcada na
semidemência. “Morreu pouco tempo depois em minha casa, jurando e repetindo
sempre que a dor era uma ilusão...” (ASSIS, 1977, p. 300).
Brás Cubas escolhe fechar sua narrativa com “negativas”, última descarga da
amargura, e desprezo pela vida dirigida ao leitor. Todo ressentimento de sua saga
resumida com muita força na soma de ilusões que comporta a estrutura humana.
“De modo que, se eu disser que a vida humana nutre de si mesma outras vidas,
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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
mais ou menos efêmeras, como o corpo alimenta os seus parasitas, creio não dizer
uma coisa inteiramente absurda” (ASSIS, 1977, p. 292).
Apesar de começar o texto pela narrativa da própria morte, privilegiando a
descrição fúnebre da morte orgânica, não é a morte nessa vertente de realidade que
revela traços de melancolia no discurso de Brás Cubas, mas a morte na sua vertente
simbólica; a morte do desejo de viver; o desencanto diante do desnudamento
humano. O discurso é atravessado pelo pensamento caótico, fragmentado, marcado
por elementos inconstantes, disfarçados e sustentados pela figura recorrente da
ironia.
Brás Cubas encarna com muita propriedade a fragilidade constante do advir
humano. Seu desejo circula com muita rapidez, não tendo sustentação prolongada
em nenhuma causa ou objeto específico. Seu modo de vida reflete uma constante
insatisfação que o conduz sempre a um eterno recomeço, expresso num discurso
irônico e amargo. Narrando seus préstimos numa instituição de caridade, o mesmo
afirma: “Os quadros eram tristes; tinham a monotonia da desgraça, que é tão
aborrecida como a do gozo, e talvez pior” (ASSIS, 1977, p. 298). Urania Peres,
afirma no texto Dúvida melancólica, dívida melancólica, vida melancólica, que “o
melancólico caminha guiado pela perda. Sentindo-se ele próprio um objeto perdido,
o seu vínculo com objetos é frágil e a sustentação de seu desejo vacilante” (PERES,
1996, p. 66).
A dor de Brás Cubas revela-se na descrença pelo potencial humano e pelo
mundo que o cerca. A melancolia evocada em seu discurso, ao mesclar-se com a
ironia, dá um revestimento ilusório, aparece como se aquela fosse a condição
natural dos viventes. Tal fatalidade o leva a concluir a vida, dizendo ter como saldo o
não ter transmitido a nenhuma criatura o legado da miséria humana (ASSIS, 1977, p.
301). Seu sonho era produzir “um emplasto anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a
nossa melancólica humanidade” (ASSIS, 1977, p. 101), ironicamente foi sua causa
mortis. Impedido pela morte de realizar tão grande feito, segundo ele: “[...] ai vos
ficais eternamente hipocondríacos” (ASSIS, 1977, p. 301).
Nessa relação escapa um saber: que a condição da melancolia encarnada
por Brás Cubas é inerente à condição da criatura humana, marcada em sua perda
original, marcada na “dor de existir em suas diferentes gradações, que vão do luto à
melancolia” (QUINET, 1999, p. 07). Nas palavras do próprio Brás cubas: “Cada
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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
estação da vida é uma edição, que corrige a anterior, e que será corrigida também,
até a edição definitiva, que o editor dá de graça aos vermes” (ASSIS, 1977, p. 152).
Na perspectiva de Brás Cubas há uma errância generalizada nas relações
humanas e seja qual for o esforço humano feito em direção à correção dessa
precariedade, será sempre ineficaz. Brás Cubas vive a representação de que não há
um significante possível de designar o desejo humano em sua totalidade, apenas em
sua parcialidade; em semblante. Chegar à “edição definitiva” é encontrar-se com a
morte. Seu descrédito ante a vida varia como um pêndulo entre elaborar o luto das
perdas e a impossibilidade de assimilar a falta como condição estrutural da
existência humana, ficando, então, aprisionado em sua “melancólica humanidade”.
4.1.3 Humanitismo: neologismo entre a loucura e a morte.
{...] O essencial é que lutes. Vida é luta. Vida sem luta é um mar morto no centro do organismo universal. Como a vida é o maior benefício do universo, e não há mendigo que não prefira a miséria à morte (o que é um delicioso influxo de Humanitas), segue-se que a transmissão da vida, longe de ser uma ocasião de galanteios, é a hora suprema da missa espiritual. Porquanto, verdadeiramente há só uma desgraça: é não nascer (Machado de Assis).
Machado de Assis permanece inovando ao criar a personagem de Quincas
Borba151. Continua a tecer esse segundo livro ainda privilegiando o fio da memória;
mesmo que narrado em terceira pessoa, as reminiscências o compõem. Lima
destaca o fato de que “Quincas Borba é um romance mais complexo que as
Memórias póstumas” (LIMA, 1981, p. 77), detalhe com que concordamos, dado que
o defunto autor diz claramente a que veio, mostra sua performance, enquanto que
Quincas Borba esbarra na aprendizagem vivida por Rubião, na linguagem culta
151 Quincas Borba escrito em duas versões. Primeiro publicado (quinzenalmente) em A estação, revista de modas, de 15 de Junho de 1886 a 15 de Setembro de 1891. Para a publicação do livro em 1891, o autor fez algumas alterações na ordem de apresentação dos capítulos iniciais. No capítulo VI, Machado deixa clara sua intenção de prolongar os efeitos das Memórias Póstumas, relacionado com a filosofia de Humanitas, que cunhou o lema ”Ao vencedor as batatas”.
197
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
entre os infortúnios do convívio com o casal Palha, na doutrina do Humanitismo,152 e
no reempobrecimento que põe à prova os limites entre a razão e a sandice. São bem
pertinentes as observções feitas por Lima, de que:
Nas Memórias póstumas, Quincas Borba tivera uma presença meteórica. No livro que leva seu nome, a presença ainda é mais rápida. Sua ação, contudo, é incisiva. No primeiro confirmava sua teoria e afirmava por seu destino a existência da loucura. Sua importância se dava por contigüidade: Brás Cubas o conhecera garoto, o reencontrara mendigo, depois enobrecido, freqüentador de sua casa e enunciador do Humanistismo. No segundo livro é o agente dos transtornos de Rubião. Da lucidez de um louco. Quincas Borba afasta-se, pois, do seu romance, para que este trate de seu legado, exposto em dois patamares: o patamar da riqueza a ostentar o patamar da demência que fermenta (LIMA, 1981, p. 77).
Seguindo o fio de condução deixado por Machado de Assis, abordarmos
Quincas Borba em companhia de Brás Cubas, dado o fato da maior parte da teoria
de Humanitas estar a ele vinculada. Considere-se ainda que Brás Cubas demonstra
simpatia e interesse pelos ensinamentos do filósofo, chegando inclusive a consultá-
lo antes de algumas decisões de cunho político, tanto quanto sobre assuntos do
coração e da alma. Diríamos que Brás Cubas é o primeiro discípulo de Quincas
Borba, ainda que não venha a exercer o sacerdócio; ele é o receptáculo das
explanações hipotéticas que referendam a construção teórica de seu autor. Nas
palavras de Brás Cubas: “Íamos a pé, filosofando as coisas. Nunca me há de
esquecer o benefício desse passeio. A palavra daquele grande homem era o cordel
de sabedoria” (ASSIS, 1977, p. 283).
Não acompanharemos a análise das representações sociais, nitidamente
colocadas no texto de Quincas Borba. O nosso interesse segue apenas o viés da
filosofia Humanitista, de suas reflexões filosóficas sobre a morte em contraponto à
vida, ou, melhor dizendo, significando a vida. Para o seu criador, o Humanitismo é
um sistema que define
o princípio de todas as coisas, não é outro senão o mesmo homem repartido por todos os homens. Conta três fases Humanitas: a estática, anterior a toda
152Lima pontua que o sistema do Humanitismo é uma sátira feita por Machado de Assis ao naturalismo evolucionista e mais acentuadamente ao positivismo.
198
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
criação; a expansiva, começo das coisas; a dispersiva, o aparecimento do homem; e contará mais uma, a contrativa, absorção do homem e das coisas. A expansão, iniciando o universo, sugeriu a Humanitas o desejo de gozar, e daí a dispersão, que não é mais do que a multiplicação personificada da substância original (ASSIS, 1977, p. 260).
A essa primeira153 explicação, feita a Brás Cubas, gradativamente será dada
continuidade e aprofundamento à teoria de Humanitas, visto que o sistema é
explanado como uma “grande obra. Eram quatro volumes manuscritos, de cem
páginas cada um, com letra miúda e citações latinas” (ASSIS, 1977, p. 260).
Metodicamente o autor aproveita as situações da realidade e vai aplicando sua
doutrina como possibilidade prática. Principalmente nas questões de melancolias
pessoais vividas por Brás Cubas, pertinentes às decepções no amor e na carreira
política.
Quincas Borba é apresentado no texto das Memórias póstumas, nas
reminiscências de infância de Brás Cubas. Este define seu companheiro de escola e
de travessuras com certo tom de ironia. Os detalhes enfatizados na apresentação,
intencionalmente, pontuam o travesso menino, maquinando astúcias e dissimulando
as atitudes. No tocante ao velho mestre Ludgero Barata, alvo de eterno mote de
“chufas” pelos alunos, há destaque para Quincas Borba:
Um de nós, o Quincas Borba, esse então era cruel com o pobre homem. Duas ou três vezes por semana, havia de lhe deixar na algibeira das calças – umas largas calças de enfiar, - ou na gaveta da mesa, ou ao pé do tinteiro, uma barata morta. Se ele a encontrava ainda nas horas da aula, dava um pulo, circulava os olhos chamejantes, dizia-nos os últimos nomes: éramos sevandijas, capadócios, malcriados, moleques. – Uns tremiam, outros rosnavam; o Quincas, porém, deixava-se estar quieto, com os olhos espetados no ar. Uma flor, o Quincas Borba. Nunca em minha vida, achei menino mais gracioso, inventivo e travesso. Era a flor, e não era já da escola, senão de toda a cidade (ASSIS, 1977, p. 126, grifo nosso).
Dessa imagem pueril, e desse traço de “inventivo” já aí destacado, o próximo
encontro dos dois amigos será de maneira bastante adversa e em certa medida
153 Na verdade a primeira referência feita ao Humanitismo é na carta em que Quincas Borba devolve o relógio de Brás Cubas e se desculpa pelo triste episódio do Passeio Público, ocasião em que lhe afanou o relógio durante um abraço.
199
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
irônica, em função do estado oposto de reapresentação. No segundo encontro, já na
vida adulta, Brás Cubas é interceptado no Passeio público por um mendigo, que se
apresenta como sendo o Quincas Borba. A reação de Brás Cubas é de extremo
incômodo, fornece ajuda e, ao se afastar, conclui: “não pude deixar de comparar
outra vez o homem de agora com o de outrora, entristecer-me e encarar o abismo
que separa as esperanças de um tempo da realidade de outro tempo...” (ASSIS,
1977, p. 194). Para completar a decepção, no abraço de despedida solicitado pelo
amigo mendigo, acontece o furto do relógio.
A devolução do relógio e o pedido de desculpas vão dar o tema de uma carta
que marca um novo reencontro entre Brás Cubas e Quincas Borba. Nessa carta já
são antecipadas as primeiras noções da teoria do Humanitismo. O novo sistema
filosófico é já apresentado como fruto de longo estudo, um novo sentido do gênesis.
Nas palavras do criador: “É singularmente espantoso este meu sistema; retifica o
espírito humano, suprime a dor, assegura a felicidade, e enche de imensa glória o
nosso país. Chamo-lhe de Humanitismo, de Humanitas, princípio das coisas”
(ASSIS, 1977, p. 235).
Lima destaca a artimanha machadiana ao abordar a alusão à loucura diluída
no contexto das Memórias Póstumas, quando a atenção do leitor está presa ao
adultério de Virgília com o narrador. “Se, ao invés, compreende o veio paralelo
aberto pelo filósofo Quincas Borba, terá depois condições de verificar como a deriva
explícita, formada por amor e morte, converge para deriva apagada, que formam a
loucura e o Humanitismo” (LIMA, 1981, p. 65). Podemos inferir dessa observação
que a loucura está também inserida na narrativa em referência à morte. O
Humanitismo é uma possibilidade de expressão, por meio de certa idealização, do
enigma da morte, assim como o delírio elaborado por Brás Cubas foi recurso de
linguagem para falar de sua “viagem à roda da morte”.
Machado de Assis escolheu atrelar esse caminho circular, de certa ironia
lúdica, ao juntar essas duas personagens e tratar ficcionalmente temas tabus, tanto
quanto avassaladores: a loucura e a morte. Ao reapresentar Quincas Borba no livro
que leva seu nome, já o faz mencionando a morte dos planos de casamento,
conseqüente motivo de descendência perdida, levados à tumba, junto à noiva agora
finada.
200
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
Este Quincas Borba, se acaso me fizeste o favor de ler as Memórias póstumas de Brás Cubas, é aquele mesmo náufrago de existência que ali aparece, mendigo, herdeiro inopinado, e inventor de uma filosofia. Aqui o tens em Barcelona. Logo que chegou, enamorou-se de uma viúva, senhora de condição mediana e parcos meios de vida; mas tão acanhada, que os suspiros do namorado ficavam sem eco. Chamava-se Maria da Piedade. Um irmão dela que é o presente Rubião, fez todo o possível para casá-los. Piedade resistiu, um pleuris a levou (ASSIS, 1975, p. 109).
A caracterização da apresentação demonstra a intenção machadiana de
continuar sob o mesmo signo da memória, tanto quanto da ironia. Uma morte é
anunciada seca e polidamente, incluindo causa mortis. Já se infere também, em
seqüência a essa informação, o grão de sandice, precocemente diagnosticado por
um alienista, ironicamente convocado por Quincas Borba para tratar a provável
insanidade do amigo Brás Cubas, que naquela ocasião demonstrava insatisfação
melancólica diante de suas perdas objetais.
Para Lúcia Miguel Pereira “o Humanitismo é ponto de contato entre as
Memórias póstumas de Brás Cubas e o Quincas Borba. O seu nome, que faz pensar
numa troça com o positivismo, é mais um ‘piparote no leitor’” (PEREIRA, 1988, p.
200). Recorrentemente encontramos na crítica machadiana essa referência ao
Humanitismo como sátira dirigida ao positivismo, porém não deixa também de ser
essa convocação ao leitor, no levante de pontos reflexivos da existência humana
frente às adversidades. Como bem sinaliza o delírio de Brás Cubas, “só isso resta ao
homem, e mais um último bem, vingança suprema: a capacidade de rir dos seus
tormentos” (ASSIS, 1977, p. 200). Fica no Humanitismo o caminho aberto a
construções singulares, como é bem peculiar à escrita machadiana.
Quincas Borba só tinha em mente o sistema do Humanitismo, dar
prosseguimento às suas formulações. Acrescenta que o sistema, mesmo
reorganizando a sociedade, não lhe assegura a ausência de sofrimento, haja vista
que esse é parte mesmo do processo de transformação necessário à manutenção
da vida. “A dor, segundo Humanitas, é uma pura ilusão” (ASSIS, 1977, p. 262). Não
ficam “eliminadas as guerras, a insurreição, o simples murro, a facada anônima, a
miséria, a fome, as doenças” (ASSIS, 1977, p. 262). E todos esses infortúnios não
impediriam a felicidade humana, posto que são “esses supostos flagelos equívocos
do entendimento, porque não passariam de movimentos externos da substância
201
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
interior, destinados a não influir sobre o homem, senão como simples quebra da
monotonia universal” (ASSIS, 1977, p. 262).
Segundo seu criador, o Humanitismo aceita a violência e a dor, seja física ou
moral, como partes da própria condição humana. A guerra é reconhecida como um
processo fundamental para a sobrevivência do homem. “Há nas coisas todas certa
substância recôndita e idêntica, um princípio único, universal, eterno, comum,
indivisível e indestrutível... [...] pois essa substância ou verdade, esse princípio
indestrutível é que é Humanitas.” (ASSIS, 1975, p. 113). Montello destaca que “O
Quincas Borba, na linha de sua singularidade, é, sobretudo o romance da loucura
que gradativamente evolui...” (MONTELLO, 1997, p. 264).
Ao destacar a singularidade de Quincas Borba, escamoteada nas
representações socais que perpassam como centro das atenções, Montello está em
acordo com a observção de Lima. O anúncio do sistema, vindo de um cérebro que
prenuncia o limite da saúde mental, é uma estratégia de mestre de Machado de
Assis, é uma sátira à antropomorfização da ciência. “Controlada pela reflexão, a
fantasia se transforma em ficção – um pensar sobre o tempo histórico sem a procura
de dominá-lo conceitualmente“ (LIMA, 1981, p. 58). Diante do desamparo da
demanda de representação social, não possível de atender, há no delírio uma saída.
”A relevância da loucura se faz por deslocamento: pela teoria do Humanitismo,
exposta antes que Quincas Borba desse plenas mostras de seu estado mental”
(LIMA, 1981, p. 65).
A teoria de Quincas Borba não responde por si só, convoca uma implicação
de seus adeptos “Uma vez que o homem se compenetre bem de que ele próprio é
Humanitas, não tem mais do que remontar o pensamento à substância original para
obstar qualquer sensação dolorosa” (ASSIS, 1977, p. 262). É essa a herança da
doutrina que é transmitida a Rubião: antes de lhe haver deixado a fortuna monetária,
Quincas Borba lhe deixou o conhecimento da doutrina e o desafio. “A evolução,
porém é tão profunda, que mal se lhe podem assinar alguns milhares de anos”
(ASSIS, 1977, p. 262).
Nem Brás Cubas, nem Rubião desconfiavam do “grão de sandice” que
portava Quincas Borba, e embora o achassem esquisito, o adjetivo ficava por conta
da estranheza do espírito filosófico. Isso apesar da advertência do alienista de que a
“loucura entra em todas as casas” (ASSIS, 1977, p. 295), o que sugere “a loucura”
202
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
depender ou não do ângulo de quem a vê, ficando como questão diluída no contexto
cotidiano.
Há um paradoxo na filosofia humanitista: o seu louvor à vida e em igual
proporção à violência (a guerra e a morte), como necessárias à continuidade da
espécie, dão-lhe um caráter interrogatório sobre sua validade como princípio de
sanidade. “A extensão da crueldade declarada pelo Humanitismo é menos o elogio
da loucura do que a acusação aos ‘saudáveis’: sua saúde não lhes permite pensar o
que aos loucos fica reservado” (LIMA, 1981, p. 67).
Tal qual como Brás Cubas, Rubião tem o privilégio de conhecer do próprio
filósofo a teoria do Humanitismo. Como único amigo (em Barbacena) e exercendo a
função de enfermeiro, é convidado para ser discípulo dessa doutrina. Rubião aceita
de pronto e começa a receber os ensinamentos do mestre filósofo. Um desses
ensinamentos vem refletido ao nome do cachorro, que assim como o dono também
se chama Quincas Borba e por dois motivos: “um doutrinário, outro particular”; assim
explicados:
- Desde que Humanitas, segundo a minha doutrina, é o princípio da vida e reside em toda parte, existe também no cão, e este pode assim receber o nome de gente, seja cristão ou mulçumano... - Esse agora é o motivo particular. Se eu morrer antes, como presumo, sobreviverei no nome do meu cachorro. Ris-te não? Rubião fez um gesto negativo. - Pois deverias rir, meu querido. Porque a imortalidade é o meu lote ou o meu dote, ou como melhor nome haja. Viverei perpetuamente no meu grande livro. Os que, porém, não souberem ler, chamarão Quincas Borba ao cachorro, e... (ASSIS, 1975, p. 110).
A declaração do filósofo em preservar a imortalidade contraria em alguma
medida sua própria teoria. Se a morte não existe, como entender e justificar sua
ânsia de preservar a imortalidade? O foco do Humanitismo está na continuidade ad
infinitum da renovação da matéria gerada ao fim de um combate, quando uma parte
morre (sucumbe) para que a outra sobreviva e dê continuidade ao ciclo vital. Nas
palavras do criador:
- Não há morte. O encontro de duas expansões, ou a expansão de duas formas, pode determinar a supressão de uma delas; mas rigorosamente não
203
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
há morte, há vida, porque a supressão de uma é a condição da sobrevivência da outra, e a destruição não atinge o princípio universal comum. Daí o caráter conservador e benéfico da guerra (ASSIS, 1975, p. 114).
Para melhor exemplificar seu pensamento, dada a densidade da teoria de
Humanitas, Quincas Borba procura recursos didáticos que favoreçam uma aplicação
prática de sua filosofia. Um desses exemplos, o mais famoso deles, do qual vai
surgir o lema que designa sua doutrina, imortalizando-a, é: “ao vencedor, as
batatas”. Segue a aplicação prática:
supõe tu um campo de batatas e duas tribos famintas. As batatas apenas chegam para alimentar uma das tribos, que assim adquire forças para transpor a montanha e ir à outra vertente, onde há batatas em abundância; mas, se as duas tribos dividirem em paz as batatas do campo, não chegam a nutrir-se suficientemente e morrem de inanição. A paz, nesse caso, é a destruição; a guerra é a conservação. Uma das tribos extermina a outra e recolhe os despojos. Daí a alegria da vitória, os hinos, as aclamações, recompensas públicas e todos os demais efeitos das ações bélicas. Se a guerra não fosse isso, tais demonstrações não chegariam a dar-se, pelo motivo real de que o homem só comemora e ama o que lhe é aprazível ou vantajoso, e pelo motivo racional de que nenhuma pessoa canoniza uma ação que virtualmente a destrói. Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas.
- Mas a opinião do exterminado? - Não há exterminado. Desaparece o fenômeno; a substância é a
mesma. Nunca viste ferver água? Hás de lembrar-te que as bolhas fazem-se e desfazem-se de contínuo, e tudo fica na mesma água. Os indivíduos são essas bolhas transitórias.
- Bem; a opinião da bolha... - Bolha não tem opinião (ASSIS, 1975, p. 114).
Rubião, que já ouvira do médico de Quincas Borba a sentença de que esse
tinha poucos dias de vida, ficou sem entender e “perguntava a si mesmo como um
homem, que ia morrer dali a dias podia tratar tão galantemente aqueles negócios”
(ASSIS, 1975, p. 115). Rubião se mostra interessado na doutrina, embora se
espante e não a compreenda.
Lima destaca que, em Quincas Borba, a temática fica entre a representação
social e a loucura, embora haja ainda espaço para se tratar da morte. Mesmo não
sendo falado explicitamente, como nas Memórias póstumas, “há a morte de
Quincas, da tia de Sofia, do Freitas, do noivo de Tonica, além das de Rubião e do
204
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
cachorro. Para este leitor, pois, se não cogitamos da morte seria porque se tornara
secundária. Mas não é este o meu ponto de vista” (LIMA, 1981, p. 84).
Acrescemos à citação das mortes descritas o fato de a saga de Rubião, através
da herança, só ser possível a partir da morte de Maria da Piedade, fato destacado
friamente pelo próprio Rubião na primeira reflexão que faz de sua nova condição de
capitalista. “Se mana Piedade tem casado com Quincas Borba, apenas me daria
uma esperança colateral. Não casou; ambos morreram, e aqui está tudo comigo; de
modo que o que parecia uma desgraça...” (ASSIS, 1975, p. 107).
A representação social está presente e é marcante, porém a loucura e a morte
marcam seu lugar, inclusive, não apenas em referência à morte física, mas
principalmente à morte simbólica. O Humanitismo gira em torno da fórmula ideal de
sobrevivência, e embora apresentado como uma apologia à vida, é da morte que
trata. No entusiasmo do Humanitismo, seu criador faz uma comparação entre esse e
a religião indiana (Bramanismo) e mostra onde o sistema novo é comparável a essa
e onde a ultrapassa. Assim ele a refere:
Nesta igreja nova não há aventuras fáceis, nem quedas, nem tristezas, nem alegrias pueris. O amor, por exemplo, é um sacerdócio, a reprodução um ritual. Como a vida é o maior benefício do universo, e não há mendigo que não prefira a miséria à morte (o que é um delicioso influxo de Humanitas), segue-se que a transmissão da vida, longe de ser uma ocasião de galanteio, é a hora suprema da missa espiritual. Porquanto, verdadeiramente há uma só desgraça: é não nascer (ASSIS, 1977, p. 260).
Esse efusivo culto de louvor à vida perde-se na essência prática já
exemplificada na luta, na guerra, na inconstância dos fatos. O paradoxo presente em
Humanitas o inscreve no impasse de um limite impossível de transpor. Um ponto
nodal só possível de existir como enigma delirante. Tal qual é o cerne de seu
conteúdo, só obedece à lógica da mente que sob delírio o criou. Apesar de
filosoficamente assegurar a inexistência da morte, Quincas Borba reconhece-a como
realidade e revela o seu desejo de sobrepor-se a ela, inclusive sendo este um dos
motivos de ter criado o novo sistema filosófico e ter batizado o cachorro com seu
próprio nome, além de impor em testamento que o herdeiro só lhe tomaria a posse
da herança caso cuidasse do cachorro, Quincas Borba, até a morte do mesmo.
205
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
“Rubião era discípulo, sem idéias, do filósofo Quincas Borba, e a herança que
recebeu, aliada aos amores prometidos de Sofia, foi paulatinamente levando-o aos
delírios de grandeza e à psicose” (FREITAS, 2001, p. 109). Os amores por Sofia só
mostram que o desejo é o desejo do outro, ou seja, é na interdição que visualiza o
semblante do seu desejo. “Machado conhecia bem esses meandros da loucura,
soube fazê-la aparecer aos poucos, ia preparando o leitor para a eclosão final do
delírio – a glória através da loucura, Rubião transmutado em Luís Napoleão”
(FEITAS, 2001, p. 109).
Sofia se oferece ao jogo da cena histérica de se fazer semblante como o
objeto ideal para Rubião em perverso par, de consentimento do marido. O que foi
permitido a Virgília e Brás Cubas ficou velado em Sofia e Rubião, mas, nem por isso,
menos avassalador, denunciador da inexistência do amor. Rubião encontra no
sonho do abundante “capital” herdado a impossibilidade de identificar e recobrir sua
demanda. Junto à herança, herdou a falta, o vazio, só possível de recobrir no delírio
ou na morte.
206
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
CASMURRICE: UMA PRESENÇA DA MORTE
• O que há entre o amor e a morte? Memórias – luto ou melancolia.
Melancolia -1894-95 – Edvard Munch – (1863 – 1944)
207
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
4.2.1 Que há entre o amor e a morte?154 Memórias – luto ou melancolia.
Acolhemos as ilusões porque nos poupam sentimentos desagradáveis, permitindo-nos em troca gozar de satisfações. Portanto, não devemos reclamar se, repetidas vezes, essas ilusões entrarem em choque com alguma parcela da realidade e se despedaçarem contra ela (Sigmund Freud).
Apresentado consensualmente como a obra-prima machadiana, Dom
Casmurro revela o apogeu de sua escrita. O enigma de Capitu imortalizado na
dúvida indecifrável de um “pecado” que não se desvela, apenas revela o inominável
do ser feminino, demanda constantes elaborações. Porém, não procederemos ao
estudo nessa vertente. “Embora Capitu seja a personagem central do romance e a
máxima razão das reminiscências que deram corpo à narrativa, o título refere-se a
seu narrador” (MOISÉS, 2001, p. 88). E é ao caminho tecido pelo fio melancólico do
discurso do narrador, o seu entrelaçamento às imagens da morte, que privilegiamos
o percurso a seguir.
A memória é que preside o espetáculo, tecendo o fio condutor da narrativa; o tempo é o pretérito, ainda quando nos dá a impressão de fluir no presente da leitura. O tempo é o da memória, com todas as distorções que esse mecanismo implica, de tal modo que rememorar corresponde a recuperar o tempo perdido e vice-versa. A paixão, vida e morte de Capitu, assim como o purgatório a que foi condenado Bentinho, são artes e partes da memória, ou do passado, que se negam a desaparecer (MOISÉS, 2001, p. 53).
Recortamos nas palavras do narrador a construção ou a reconstrução de sua
história minada por elementos melancólicos e fúnebres, porém em discurso
descontínuo, podendo até passar nas entrelinhas da “representação social”155 sem
154 Parodiando a sentença de Brás Cubas: Que há entre a vida e a morte? Uma curta ponte. No capítulo CXXIV “Vá de intermédio”, frase usada para explicar a morte precoce de sua noiva (morta pela febre amarela) D. Eulália Damasceno de Brito. 155A observação que Luiz Costa Lima aponta em Dispersa demanda a respeito das Memórias póstumas de Brás Cubas, pode também ser aplicado a Dom Casmurro (dada às devidas proporções, haja vista que nas Memórias póstumas o narrador é um morto). Segundo esse autor, “a morte marca
208
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
ser completamente lido. Como bem é típico na escrita machadiana a temática
recobre vários pontos e dá margem a muitas vertentes de análise. Além do que já
pontuamos, a célebre versão da culpa ou inocência de Capitu, John Gledson revela
ainda em Machado de Assis impostura e realismo, “Dom Casmurro como um
romance realista na concepção e no detalhe, cujo objetivo é nos proporcionar um
panorama da sociedade brasileira do século XIX” (GLEDSON, 1999, p. 07). Gledson
amplia sua observação e destaca também a densidade do conteúdo que está para
além da leitura realista do contexto social.
Dom Casmurro não é um romance realista no sentido de que nos apresenta abertamente os fatos, sob forma facilmente assimilável. Apresenta-se com eles, mas temos de ler contra narrativa para descobrir-los e conectá-los por nós mesmos. À medida que assim procedermos, descobriremos mais não só acerca dos personagens e dos acontecimentos descritos na história, mas também sobre o protagonista de Machado, Bento, o próprio narrador. Forma e conteúdo são absolutamente inseparáveis. É altamente perigoso subestimar a perícia manipuladora de Bento ou atribuir a Machado opiniões que o narrador proclama (GLEDSON, 1999, p. 14).
Roberto Schwarz, em Duas meninas, destaca que “O livro tem algo de
armadilha, com lição crítica incisiva – isso se a cilada for percebida como tal. Desde
o início há incongruências, passos obscuros, ênfases desconcertantes, que vão
formando um enigma” (SCHWARZ, 1997, p. 09). Concorda ainda com Gledson, para
quem o texto revela um tipo de elite da ideologia brasileira da época. Schwarz
aponta três caminhos que favorecem penetrar no enigma do texto.
O livro assim, solicita três leituras sucessivas: uma romanesca, onde acompanhamos a formação e a decomposição de um amor; outra de ânimo patriarcal e policial, à cata de prenúncios e evidências do adultério, dado como indubitável; e a terceira, efetuada a contracorrente, cujo suspeito é logo réu é o próprio Bento Santiago, na ânsia de convencer a si e ao leitor da culpa da mulher (SCHWARZ, 1997, p. 10).
Mesmo sem o objetivo de enquadrar nossa leitura nessa terceira possibilidade
apontada por Schwarz, uma vez não se tratar (para esse estudo) de culpados ou
a pontuação do livro, cujos intervalos são preenchidos pela representação social ou ainda, a morte pontua a narrativa e a representação social cobre seus intervalos” (LIMA, 1981, p. 72).
209
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
inocentes, reconhecemos que privilegiamos o foco da perspectiva do narrador, traído
em seu próprio discurso, marcado no traço melancólico. Bento Santiago (Bentinho)
protagonista-narrador, na velhice, que resolve escrever suas memórias, contar sua
história segundo a fidelidade de suas lembranças, afirma: “[...] vou deitar ao papel as
reminiscências que me vierem vindo. Deste modo viverei o que vivi...” (ASSIS, 1977,
p. 68). Sustentado por reminiscências, o mesmo defende seu ponto de vista como
verdade absoluta.
O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência. Pois, senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo (ASSIS, 1977, p. 68).
Mesmo fazendo essa constatação, admitindo o vazio de sua existência,
Bentinho busca nos objetos e no espaço externo o que não encontra internamente.
Ao narrar o texto em primeira pessoa, através de reminiscências, seu discurso
reintegra o passado. “A certos respeitos, aquela vida antiga apareceu-me despida de
muitos encantos que lhe achei; mas é também exato que perdeu muito espinho que
a fez molesta, e, de memória, conservo alguma recordação doce e feiticeira” (ASSIS,
1977, p. 69).
Aparentemente, Bentinho traz um luto elaborado, ao contar os anos felizes da
adolescência e a história de amor infantil (invejável). Entretanto a sua escrita vai
paulatinamente revelando os traços de melancolia revestidos em alguns recursos de
ironia, concluída em grande freqüência, em imagens de morte. Já inicia sua escrita
acatando a sugestão, imaginária, de mortos; dos retratos e esculturas de
personalidades históricas a sua volta. “Fiquei tão alegre com esta idéia, que ainda
agora me treme a pena na mão. Sim, Nero, Augusto, Massinissa, e tu, grande
César, que me incitas a fazer os meus comentários, agradeço-vos o conselho...”
(ASSIS, 1977, p. 69).
Após explicar a “alcunha de casmurro”, que cabe tão bem como título do que
se propõe a escrever, por ser “o vulgo de homem calado e metido consigo” (ASSIS,
1977, p. 67), explica também os motivos que estimulam a escrita. Motivos os quais
só confirmam sua vida presa às referências de um passado no narcisismo infantil.
210
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
“Talvez a narração me desse à ilusão. E as sombras viessem perpassar ligeiras,
como o poeta, não o do trem, mas o do Fausto: Aí vindes outra vez, inquietas
sombras...?” (ASSIS, 1977, p. 69). A reclusão de sua vida retrata sua verdade
interna e revela seu afeto preso, paralisado nas cenas do passado.
Vivo só, com um criado. A casa em que moro é própria; fi-la construir de propósito, levado de um desejo particular que me vexa imprimi-lo, mas vá lá. Um dia, há bastantes anos, lembrou-me reproduzir no engenho novo a casa em que me criei na antiga rua de Mata-cavalos, dando-lhe o mesmo aspecto e economia daquela outra que desapareceu. (ASSIS, 1977, p. 68) [...] os amigos que me restam são de data recente; todos os antigos foram estudar a geologia dos campos santos (ASSIS, 1977, p. 68). [...] ora, como tudo na vida cansa, esta monotonia acabou por exaurir-me também. Quis variar, e lembrou-me escrever um livro (ASSIS, 1977, p. 69). [...] Foi então que os bustos pintados nas paredes entraram a falar-me e a dizer-me que, uma vez que eles não alcançavam reconstituir-me os tempos idos, pegasse da pena e contasse alguns. Talvez a narração me desse à ilusão, e as sombras viessem perpassar ligeiras... (ASSIS, 1977, p. 69).
A inspiração de Bentinho se origina da solidão, do tédio e da saudade, da
ilusão de preencher o tempo reconstituindo na memória a possibilidade de reviver a
felicidade do passado, tanto quanto uma reedição de sua vingança. O objetivo da
escrita é convocar “sombras”, e reencontrar nessas as companhias perdidas, já
levadas pela morte. Ao recontar os fatos justifica seus atos, provavelmente uma
tentativa de lidar melhor com o inelutável passado.
Relembrando Freud, Bentinho até sabe quem perdeu, só não sabe o que
perdeu em todas essas perdas e vai buscar na reconstrução material o “objeto
perdido”. Só sendo passível de encontrar a “sombra”, e essa apenas “paira sobre”
sua demanda, dada a impossibilidade do reencontro. Na direção desse reencontro o
que se encontra é a “Coisa” (das Ding). “É como um paradoxo ético que o campo de
das Ding é reencontrado no final, que Freud aí nos designa o que na vida pode
preferir a morte” (LACAN, 1988, p. 131).
Bentinho entrega-se à casmurrice e reproduz seu ambiente enlutado da
época de criança. Encomenda a reconstrução de uma réplica da antiga casa da
infância, reproduzindo o espaço físico da vivência passada. Sua moradia é um tipo
de museu particular que o ajuda a conservar consigo os fantasmas pessoais e os da
família Santiago. Os retratos dos mortos e seus pertences são cultuados no
211
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
ambiente. Reedita “a casa dos três viúvos”, agora a casa do “casmurro”, um tipo
especial de cárcere emocional. “Tio Cosme vivia com minha mãe, desde que ela
enviuvou. Já então era viúvo, como prima Justina; era a casa dos três viúvos”
(ASSIS, 1977, p. 74). A sombra da morte é o signo que nomeia a casa. Françoise
Dastur chama a atenção para um detalhe que destacamos,
Que a vida do homem seja uma vida ‘com’ os mortos, eis ai talvez, o que distingue verdadeiramente a existência humana da vida puramente animal, como sugere um fragmento de Heráclito, freqüentemente citado, o qual diz que ‘o caráter do homem é seu demônio’, a crença grega em um daimon pessoal que acompanha cada homem ao longo de sua vida não fazendo senão expressar essa comunidade de vida com o espírito dos ancestrais que é o fundamento unitário de todas as culturas (DASTUR, 2002, p. 16).
Por ter perdido o primeiro filho, a mãe de Bentinho (Dona Maria da Glória),
por medo de perdê-lo também, oferece-lhe como promessa à vida sacerdotal em
troca da sua sobrevivência. Bentinho já nasce assim, sob o signo da morte.
Morrendo-lhe o pai, sua infância é cercada por viúvos que cultuam seus mortos e
entregam-se ao recato e à reclusão numa velhice precocemente consentida, ou
melhor, evocada. A mãe de Bentinho, ficando viúva aos trinta e um anos, entrega-se
a esse estado com certo prazer na morbidez do luto.
Minha Mãe era boa criatura. Quando lhe morreu o marido, Pedro de Albuquerque Santiago, contava trinta e um aos de idade, e podia voltar para Itaguaí. Não quis; preferiu ficar perto da igreja em que meu pai fora sepultado (ASSIS, 1977, p. 75, grifo nosso). [...] Era ainda bonita e moça, mas teimava em esconder os saldos da juventude, por mais que a natureza quisesse preservá-la da ação do tempo. Vivia metida em um eterno vestido escuro, sem adornos, com um xale preto, dobrado em triângulo e abrochado ao peito por um camafeu (ASSIS, 1977, p. 76).
Destacamos as letras iniciais de “Minha Mãe”, grafadas em maiúsculas.
Coberta pelo véu, que vela a sexualidade adormecida na viuvez, é no filho que a
mãe vai investir libidinalmente e na falta do interdito paterno da realidade, substitui-
se pelo interdito sublimatório da fé (um Pai todo poderoso), ficando perto do cadáver
do pai, enterrado na igreja. Esse primeiro lugar designado pela mãe a Bentinho,
212
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
substituto do irmão morto e, por escape, oferecido ao altar, impregna-se como uma
marca que ele não consegue ultrapassar. A situação de dependência de Bentinho
começa na simbiose (sem corte) com a mãe, e completa-se na transferência a
Capitu.
Contemplando seu mausoléu particular de lembranças, relíquias da “casa dos
mortos” (eternizadas na casa do “casmurro”), Bentinho expõe suas idealizações
acerca do enlace matrimonial de seus pais. “Se padeceram moléstias, não sei, como
não sei se tiveram desgostos: era criança e comecei por não ter nascido. Depois da
morte dele, lembra-me que ela chorou muito...” (ASSIS, 1977, p. 77, grifo nosso).
Pulando dessa reminiscência “Comecei por não ter nascido”, recorre à outra, como
se a segunda viesse em suplência da primeira, para ressignificá-la. Bentinho
relembra a feliz tarde de novembro e declara que ali “verdadeiramente foi o princípio
de minha vida; tudo o que sucedera antes foi como o pintar e vestir de pessoas que
tinham que entrar em cena, o acender de luzes, o preparo das rabecas, a sinfonia...
Agora é que eu ia começar a minha ópera” (ASSIS, 1977, p. 77, grifo nosso).
A esse respeito, Gledson faz uma importante observação, somando a esse
comentário a declaração anterior de que quando reproduziu a casa tal qual era em
Mata-cavalos, Bentinho não conseguiu encontrar a si mesmo. [...] “mas falto eu
mesmo e essa lacuna é tudo”. [...] “como se diz nas autópsias” (ASSIS, 1977, p. 68).
Para Gledson, Bentinho está buscando uma identificação com o seu “eu”, o que lhe
falta; faz então uma comparação dessa procura de Bento e o narrador Brás Cubas.
Em certo sentido, esta lacuna, branco, ou vazio descende da morte... [...] algo sugerido pela própria metáfora de Bento a respeito da autópsia, e pela qual ele implicitamente se compara a um cadáver (curiosamente, autópsia significa, etimologicamente, auto-análise): embora talvez tenha menos consciência de suas faltas do que Brás Cubas, Bento escreve com um senso semelhante a seu próprio vazio. [...] Podemos notar a segurança com que Bento anuncia que a “célebre tarde de Novembro”, com a qual abre sua história, é o “princípio da minha vida”. Talvez o seja, no sentido de que a consciência da sua situação e de seus desejos fica então subitamente focalizada; mas não devemos nos esquecer de que o parágrafo anterior, ele acabara de dizer: “comecei por não ter nascido”, expressão que no mínimo é igualmente verdadeira, considerando-se a promessa pré-natal de sua mãe de fazê-lo padre (GLEDSON, 1999, p. 37).
213
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
A referida tarde de novembro traz à luz o débito a ser quitado, sendo a vida
de Bentinho a moeda, mas também revela o seu desejo por Capitu. Revelação
trazida pela palavra do outro (José Dias), reconhecida por Bento, porém só
confirmada pela própria Capitu. Ou seja, há em Bentinho esse pedido constante de
que o outro referente dê sustentação a seu desejo. É a Capitu que ele pede ajuda
para escapar à promessa da mãe. Tendo ouvido a sentença da clausura
eclesiástica, Bentinho corre a procurar a amiga e a recompor para si o enredo da
promessa.
Os projetos vinham do tempo em que foi concebido. Tendo-lhe nascido morto o primeiro filho, minha mãe pegou-se com Deus para que o segundo vingasse, prometendo, se fosse varão, metê-lo a igreja. Talvez esperasse uma menina. Não disse nada a meu pai, nem antes, nem depois de dar à luz; contava fazê-lo quando eu entrasse para a escola, mas enviuvou antes disso. Viúva sentiu o terror de separar-se de mim; mas era devota, tão temente a Deus, que buscou testemunhas da obrigação, confinando a promessa a parentes e familiares. Unicamente, para que nos separássemos o mais tarde possível... (ASSIS, 1977, p. 80).
Lima destaca a dependência de Bentinho em relação à vontade de sua mãe e
os medos infantis socorridos sempre por essa. Aponta também a indisponibilidade
de Bentinho em contrariá-la. “Bentinho não tem vontade própria e mesmo quando
procura uma desculpa, recai na verdade, na verdade da dependência” (LIMA, 1981,
p. 94). A dependência o leva ao Seminário. É em Capitu que consegue o socorro de
um plano alternativo. “O estrangulamento da vontade própria o entrega a uma
espécie de paralisia: Bento é incapaz de representar, flagrado, ora pela mãe, ora
pelo pai de Capitu, Bentinho permanece estático, incapaz sequer de cooperar...”
(LIMA, 1981, p. 94).
O perfil da infância e adolescência de Brás o revela paralisado frente à
demanda desse primeiro outro, a mãe. Os desdobramentos feitos por ele, a esse
lugar a ela referido, são transferidos a uma segunda escolha objetal, “o amor”,
encarnado em Capitu. Lima aponta que a temática escamoteada na representação
social é “derrota de Bentinho no mundo” (LIMA, 1981, p. 96). E analisa essa derrota
em função do medo de Bentinho o conduzir a buscar saídas no viés da fantasia.
Ainda adolescente, conversando com Capitu sobre medos, fica paralisado quando
ela o coloca frente à possibilidade de escolha entre ela a mãe dele, ou à de ruptura
214
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
por morte. A artimanha do discurso de Capitu, ainda adolescente, demonstra a
peculiaridade do desejo feminino, ser o objeto único causador de sedução.
- Diga-me uma coisa, mas fale verdade, não quero disfarce; há de responder com coração na mão. - Que é? Diga. - Se você tivesse que escolher entre mim e sua mãe, a quem é que escolhia? - Eu?
Fez-me sinal que sim. - Eu escolhia... Mas para que escolher? Mamãe não é capaz de me perguntar isso. - Pois, sim, mas eu pergunto. Suponha você que esta no Seminário e recebe a notícia de que eu vou morrer... - Não diga isso. - ... Ou me mato de saudades, se você não vier logo, e sua mãe não quiser,
que você venha, diga-me, você vem? - Venho. - Contra a ordem de sua mãe? - Contra a ordem de mamãe. - Você deixa seminário, deixa sua mãe, deixa tudo, para me ver morrer? - Não fale em morrer, Capitu! Capitu teve um risinho descorado e incrédulo, e com a taquara escreveu uma palavra no chão; inclinei-me e li: mentiroso (ASSIS, 1977, p. 133, grifo do autor).
Gledson destaca a falta do pai para Bentinho e sua referência apenas pela
herança e pelo retrato (GLEDSON, 1977, p. 58). Um pai morto, que o deixa entre
mulheres, à mercê, dividido entre a demanda da mãe e da amada. Serge André
retoma em Freud a famosa questão: o que quer uma mulher?
Quanto ao que ela pode querer, como afirma a sabedoria ancestral, jamais se está seguro. De onde a incontornável oscilação ente o culto da mulher como mistério – enigma - e ódio à mulher como mistificação – mentira. Mas essas duas posições só servem para alimentar o desconhecimento do que constitui a verdadeira questão da feminilidade, pois postulam, todas as duas, que a mulher é como o esconderijo que dissimularia alguma coisa (ANDRÉ, 1994, p. 11).
No imaginário cultural a morte encarna a vertente do feminino pela linguagem
mítica. No mito grego das deusas do destino as (Moiras, Parcas, ou Normas) são
três irmãs: Cloto (fiandeira; segura o fuso e vai puxando a vida) Láquesis (sortear;
enrola o fio da vida) e Átropos (inflexível; corta o fio da vida) (BRANDÃO, 2000, p.
215
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
140). Na psicanálise o feminino também encarna a morte; estão na mesma posição
daquilo que não se pode nomear, pelo fato de não haver um significante que as
represente no inconsciente156. São ambos da ordem do inexplicável. Freud afirma no
artigo Algumas conseqüências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos
[1925], que sexualidade feminina é o “continente obscuro” (FREUD, 1990, p. 304).
No decorrer da narrativa, nas entrelinhas dos acontecimentos, vamos
percebendo uma tessitura sutil de convocação à morte como solução a diversas
questões ou ainda a sua aparição como conseqüência natural da vida, secamente
descrita ou ironizada. Quando Pádua, pai de Capitu, perde o cargo e sente-se
envergonhado, considera a morte como solução, sendo dissuadido do intento por D.
Glória (ASSIS, 1977, p. 89).
Bentinho se adapta à vida dupla entre os estudos do seminário e as
esperadas visitas em casa para encontrar a amiga-namorada. Já nesse percurso lhe
atormentam as saudades atravessadas por ciúmes. Imaginava a “bela na janela” a
despertar olhares e galanteios dos rapazolas157. Ao narrar esse fato, Bentinho repete
o seu propósito na escrita de suas memórias: curar a melancolia da vida. Volta a
justificar seu objetivo em reconstruir a réplica da casa Mata-cavalos, “o meu fim em
imitar a outra foi as duas pontas da vida, o que, aliás, não alcancei”. Refere esse fato
como análogo à tentativa de retomar um sonho depois de acordado e não obter
êxito. “Donde concluo que um dos ofícios do homem é fechar e apertar muito os
olhos, e ver se continua pela noite velha o sonho truncado na noite moça” (ASSIS,
1977, p. 160).
A rotina do seminário intercalada nas visitas de descanso é abruptamente
quebrada pela alteração do estado de saúde de D. Glória. O agravamento da
enfermidade coloca Bentinho face a face com a verdade da morte.
Era a primeira vez que a morte me aparecia assim perto, me envolvia, me encarava com os olhos furados e escuros. [...] mais me aterrava a idéia de chegar a casa, de entrar, de ouvir os prantos, de ver um corpo defunto.... Oh! Eu não poderia nunca expor aqui tudo o que senti naqueles terríveis minutos. A rua por mais que José Dias andasse superlativamente devagar, parecia fugir-me dos pés, as casas
156 No Seminário 20 Mais, ainda Lacan avança discutindo a posição do sujeito frente ao gozo (um todo fálico, outro não todo) e não na divisão entre os sexos. 157 No título do capítulo que faz referência a esse episódio (“Uma ponta de Iago”) Machado infere a intertextualidade com Otelo, que será bem trabalhada por Helen Cadlwell, The Brazilian Othelo of Machado de Assis, Berkeley, University of California Press, 1960 ( apud SCHWARZ, 1997, p. 11).
216
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
voavam de um e outro lado, e uma corneta que nessa ocasião tocava no quartel dos Municipais permanentes ressoava aos meus ouvidos como a trombeta do juízo final. (ASSIS, 1977, p. 164).
Nesse primeiro encontro, tratava-se da possibilidade da morte de sua mãe,
possibilidade essa que o confronta com desejo e culpa. “Três ou quatro vezes,
quisera interrogar o meu companheiro, sem ousar abrir a boca; já nem tinha tal
desejo” (ASSIS, 1977, p. 164). Segue então a seguinte reflexão:
Ia só andando, aceitando o pior, como um gesto do destino, como uma necessidade da obra humana, e foi então que a Esperança para combater o Terror, me segredou ao coração, não estas palavras, pois nada articulou parecido com palavras, mas uma idéia que poderia ser traduzidas por elas: mamãe defunta, acaba o seminário (ASSIS, 1977, p. 164).
A morte de sua mãe seria a solução para libertá-lo de uma dívida contraída
por ela, para ser paga por ele, a dedicação à vida sacerdotal. A verdade da reflexão
foi de tal intensidade que lhe devolveu a submissão filial. O efeito da educação
religiosa fez-se evidente em suas palavras de arrependimento e na impregnação do
remorso. Pensou até em autopunição e se esvaiu em reflexões paliativas. Deparou-
se pela primeira vez com a angústia da morte.
Leitor foi um relâmpago. Tão depressa alumiou a noite, como se esvaiu, e a escuridão fez-se mais cerrada, pelo efeito do remorso que me ficou. Foi uma sugestão da luxúria e do egoísmo. A piedade filial desmaiou um instante, com a perspectiva da liberdade certa pelo desaparecimento da dívida e do devedor; foi um instante, menos que um instante, o centésimo de um instante, ainda assim o suficiente para complicar a minha aflição com um remorso (ASSIS, 1977, p. 165).
Um novo encontro com a morte surge e ganha até nome de capítulo, “O
defunto” (LXXXV). Contando a morte de Manduca (colega de infância), Bentinho
chega a suspender a narrativa, dado o tamanho do incômodo da lembrança descrita
na morte daquele. A descrição o revela em morte mesmo quando ainda vivo. O
217
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
horror diante da morte do outro, aponta para o próprio desamparo, a constatação da
fragilidade na carne em prévia decomposição, provocando abalos no narcisismo.
Vá, diga-se tudo; é morto, os seus são parentes são mortos, se existe algum não é em tal evidência que se vexe e doa. Diga-se tudo. Manduca padecia de uma cruel enfermidade, nada menos que a lepra. Vivo era feio; morto pareceu-me horrível. Quando o vi estendido na cama, o triste corpo daquele vizinho, fiquei apavorado e desviei os olhos. Não sei que mão oculta me compeliu a olhar outra vez, ainda que fugida; cedi, olhei, tornei a olhar, até que recuei de todo e saí do quarto (ASSIS, 1977, p. 185).
Apesar do pavor, tenta aproveitar-se da ocasião do enterro para faltar ao
seminário e ficar mais um dia em companhia de Capitu. Havendo recusa por parte
de D. Glória, Bentinho argumenta em nome da amizade que o outro lhe tinha e não
sendo esta suficiente, depois de vencida a recusa, confessa a si mesmo: “Não
éramos amigos, nem nos conhecíamos de muito. Intimidade, que intimidade podia
haver entre a doença dele e a minha saúde?” (ASSIS, 1977, p. 18). Ironia expressa
na situação oposta, entre a saúde e a morte, tanto quanto no oportunismo do enterro
para fins egoístas e festivos.
Com o estranho título de “Um amigo por um defunto” (cap. XCIII) Bentinho
comenta a visita de seu amigo de seminário Escobar. Compartilham o almoço de
domingo e a intimidade da casa. Bentinho compartilha também as intimidades do
coração, inclusive contando sobre o plano de saída do seminário. “Um amigo por um
defunto”, poderia ser lido no desfecho final da amizade como “um defunto por um
amigo”?
Tempos idos, já adulto, é pela ocasião da morte de seu melhor amigo
Escobar, desde a companhia do seminário (também casado com Sacha, a melhor
amiga de Capitu), portanto amigo do casal. É precisamente na cena do enterro, que
o ciúme de Bentinho chega ao ápice e modifica radicalmente a felicidade conjugal.
Só Capitu amparando a viúva, parecia vencer-se a si mesma. Consolava a outra, queria arrancá-la dali. A confusão era geral. No meio dela, Capitu olhou alguns instantes para o cadáver tão fixa, tão apaixonadamente fixa, que não admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas... [...] As minhas cessaram logo. Fiquei a ver as dela; Capitu enxugou-as depressa, olhando a furto para gente que estava na sala. Redobrou as carícias para a amiga, quis levá-la; mas o cadáver parece que retinha
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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
também. Momento houve em que os olhos de Capitu fitaram o defunto, quais os da viúva, sem o pranto nem palavras desta... (ASSIS, 1977, p. 324).
A face da morte comparece nessa cena cumprindo outra função: a dor
presente nas comoções pelo cadáver ali velado fica escandida. Bentinho
desconsidera o momento de dor, o lamento da viúva por perder seu ente querido,
tanto quanto a perda de seu melhor amigo. A cena funesta abre-lhe uma outra dor; a
morte de seu ideal conjugal. Mais uma vez uma cena de morte serve aos seus
próprios objetivos. É uma cena de morte (real) que vai definir outra morte
(simbólica), afetando, como um luto não elaborado, o rumo de sua vida.
Pela intensidade do grau de amizade entre os dois casais, e em se tratando
de seu melhor amigo, Bentinho é “constrangido” a discursar no enterro, e como é de
praxe, “o louvor dos mortos é um modo de orar por eles” (ASSIS, 1977, p. 163). Sai
do cemitério comparando-se ao rei Príamo158, pela ironia da situação, humilhado em
presença do oponente. A crise advinda dessa cena engendra a dúvida sobre a
fidelidade de Capitu. Segue-se uma melancolia curtida na morte paulatinamente que
se instala à vida do casal. Bentinho ressuscita no próprio filho Ezequiel as
encarnações do finado e refere, “Escobar vinha assim surgindo da sepultura, do
seminário e do Flamengo para se sentar comigo a mesa, receber-me na escada,
beijar-me no gabinete de manhã, ou pedir-me à noite a benção do costume” (ASSIS,
1977, p. 241).
Bentinho encontra na morte nova possibilidade de libertação. Planeja suicídio,
vai à farmácia e compra “uma substância”. Diz-nos ele, “quando me achei com a
morte no bolso senti tamanha alegria como se acabasse de tirar a sorte grande, ou
ainda maior, porque o prêmio da loteria gasta-se, e a morte não se gasta” (ASSIS,
1977, p. 244). Apesar da firmeza dessa declaração, Bentinho vacila diante de sua
decisão e repensa o seu propósito, chegando à seguinte conclusão: “a morte era
uma solução; eu acabava de achar outra, tanto melhor quanto que não era definitiva,
e deixava a porta aberta à reparação se devesse havê-la” (ASSIS, 1977, p. 938).
A solução encontrada foi outro tipo de morte, dessa feita, não para ele, porém
para sua amada. Sentindo-se traído segundo seus próprios princípios, acusa, julga e
158 Na Ilíada Homero versa no canto XXI a humilhação do rei Príamo diante de Aquiles suplicando a devolução do cadáver de seu filho Heitor, morto por este em batalha e, exposto ao relento sem sepultura como sinal de vingança.
219
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
condena Capitu a uma morte prévia ao excluí-la de sua vida física e afetiva.
Exilando-a na Europa, condena-a a uma morte simbólica antes da morte real,
condenando-se ele mesmo à solidão e à “casmurrice”. A decisão de Bentinho atinge
também Ezequiel, filho da dúvida e presença provocadora da constante suspeita, ou
evidência desta, caso queiram. Esse é afastado do convívio do pai e condenado
também a conviver com essa ausência.
Ao receber de volta o filho já adulto, Bentinho faz o leitor tomar conhecimento
da morte de Capitu com certo desprezo e desdém, fato já consumado e ainda não
mencionado, como por esquecimento ou por mais um tipo de afronta e castigo.
Deseja livrar-se da presença do filho, incômodo que reedita a cada encontro a teoria
do adultério. Esse desejo é atendido quase que como um passe de mágica, pois ao
financiar-lhe uma excursão científica (desejando-lhe que contraia lepra), o mesmo é
acometido por febre tifóide que culmina em morte, fatalidade comentada por
Bentinho com a maior naturalidade, com o adendo de que “pagaria o triplo para não
tornar a vê-lo” (ASSIS, 1977, p. 258).
Ao concluir suas reminiscências, Bentinho pergunta-se sobre o resto. “E Bem,
e o resto?” Se a Capitu menina era a mesma adulta ou se algum fato a mudou e
conclui que sim, “que uma estava dentro da outra, como fruta dentro da casca”
(ASSIS, 1977, 259). Seguindo sua lógica, podemos também perguntar se o
“Casmurro” em Bento Santiago já habitava o Bentinho menino, submisso;
formalmente estruturado sob o signo da morte, velado no luto dos três viúvos. A
melancolia encarnada no narrador Bentinho comumente é lida como sinônimo de
pessimismo. Entendemos a representação desta melancolia associada ao
significante “casmurro” como uma forma de expressão da face da morte, visto ser a
melancolia em si um tipo de morte, morte simbólica do ser.
220
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
A MORTE – IN MEMORIAN AO AMOR
• Inexplicável feminino: semblante do amor e da morte.
• Memorial: melancolias, “Saudades de si mesmo”.
Cupido e Psique -Óleo sobre tela -1638 - Anthony van Dick – (1599-1641)
221
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
4.3.1 Inexplicável feminino: semblante do amor e da morte.
Puro sonho, a minha morte, pura morte, o meu amor (Cecília Meirelles).
Esaú e Jacó [1904] é um romance considerado pela crítica como complexo e
aberto a múltiplas interpretações. É também analisado como um dos textos de
Machado de Assis que melhor documentam a época em que se passa a ação,
narrando, inclusive, detalhes cotidianos do período da Proclamação da República,
fato este que o leva a ser considerado por alguns como um romance histórico. Outro
fator freqüentemente apontado sobre este livro diz respeito à narrativa. O
conselheiro Aires o escreve e participa, mas não o narra em primeira pessoa,
apresenta-se no texto referindo-se a si mesmo como um “ele”. É ainda, interpretado
por muitos159 como uma representação do próprio escritor, o qual, já avançado em
idade, toma corpo no narrador.
Conforme indicado no título, o texto Esaú e Jacó tem como fonte a analogia
ao texto bíblico do Gênesis160. Natividade, mãe dos gêmeos, (Pedro e Paulo161)
acompanhada da irmã, sobe ao morro do Castelo para consultar uma vidente. Temia
a sorte dos filhos e queria conhecê-la antecipadamente. Buscava já no ambiente
físico da consulta uma atmosfera de mistério, mas a sala da casa simples do morro
não comportava sua expectativa. “Era simples, as paredes nuas, nada que
lembrasse mistério ou incutisse pavor, nenhum pretecho simbólico, nenhum bicho
159 Josué Montello, Lúcia Miguel Pereira, Márcia Lígia Guidim, Luis Costa Lima, entre outros. Não tomaremos essa questão como causa, é um detalhe que não interfere no foco que queremos aqui destacar. E ainda que seja, o escritor corporificado no narrador, ao virar personagem ganha ficção, portanto, não se trata mais da pessoa do escritor. 160 Raquel, mulher de Isaac, engravida tardiamente por uma promessa feita por Deus a Isaque, que dele descenderia uma grande nação. “Os filhos lutavam no ventre dela; então disse: se é assim por que vivo eu? E consultou ao Senhor. Respondeu-lhe o Senhor: duas nações há no teu ventre, dois povos, nascidos de ti, se dividirão: um povo será mais forte que o outro, e o mais velho servirá ao mais moço (GÊNESIS, 25:22-3, p. 39). 161 Por analogia aos apóstolos Pedro e Paulo, ambos de grande destaque na história do cristianismo e da igreja.
222
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
empalhado... [...] Quando muito, um registro da Conceição colado à parede podia
lembrar um mistério...” (ASSIS, 1975, p. 64).
O mistério procurado pela mãe, na ânsia em trazer também à luz o destino
dos filhos, é respondido com uma pergunta e um enigma. A sacerdotisa traz “o
mistério nos olhos” (ASSIS, 1975, p. 65). A pergunta feita por ela remete à analogia
dos gêmeos do texto bíblico: os gêmeos brigaram no ventre materno? Resposta
duvidosa. A mãe vacila, não sabe se interpreta o incômodo pré-natal por brigas, de
qualquer modo... Segue-se a sentença: “a primeira palavra parece que lhe chegou à
boca, mas recolheu-se ao coração, virgem dos lábios dela e de alheios ouvidos.
Natividade instou pela resposta, que lhe dissesse tudo, sem falta...” (ASSIS, 1975, p.
67).
“Sem falta” é a reposta não possível de atender na demanda dessa mãe.
Imitando um oráculo, a vidente responde como um eco: “coisas futuras”. Insatisfeita
a mãe tenta incutir no parco texto seu desejo de que sejam “grandes”.
- Serão grandes? - Serão grandes, oh! Grandes! Deus há de dar-lhes muitos benefício. Eles hão de subir, subir... Brigaram no ventre de sua mãe, que tem? Cá fora também se briga. Seus filhos serão gloriosos. É só o que lhe digo. Quanto à qualidade da glória, coisas futuras! (ASSIS, 1975, p. 67).
Natividade sai da consulta satisfeita. Ouve da boca da cabocla o eco do seu
próprio desejo. “Todos os oráculos têm o falar dobrado, mas entendem-se.
Natividade acabou entendendo a cabocla, apesar de não lhe ouvir mais nada;
bastou saber que as coisas futuras seriam bonitas, e os filhos grandes e gloriosos...”
(ASSIS, 1975, p. 68). O que fica aqui apreendido é a procura dessa palavra a qual
preencha a falta, a qual responda por uma demanda que não se preenche, a não ser
no engodo, no engano da interpretação.
Tomaremos nesse pedido o percurso a seguir no texto, a construção de uma
interpretação. Não seguiremos para leitura o eixo temático das representações
sociais e históricas. Buscaremos a temática subliminar inscrita no pedido feminino
que subjaz no texto pela via do inexplicável, a qual acompanha a morte e o feminino.
“Machado insinua a via psicológica... [...] Dentro dessa armação, o texto de Machado
aparece como uma versão modernizada do relato bíblico. [...] Rebeca engravida por
223
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
intervenção divina...” (LIMA, 1981, p. 103). Natividade sem intenção. Lima infere a
diferença modernizadora do paralelismo bíblico ao texto machadiano marcado pela
transformação da mulher na sociedade burguesa (LIMA, 1981, p.103).
Em síntese, controlando o jogo de simetrias e diferenças com o texto bíblico e confiando sua apresentação a um narrador de malícia e artimanha, Machado encaminha o relato para o tipo de recepção que será assegurado pela interpretação de cunho ora filosofante, ora psicológico. Tornamos assim à imagem do estilo em palimpsesto, composição que oferece uma pista socialmente aceitável, para que, de seu avesso, entre as frases interrompidas, surjam outras linhas, que, no entanto, não deveriam ser claramente legíveis, porque são virulentas (LIMA, 1981, p. 104).
Seguindo a peculiaridade do texto machadiano, sua temática se desdobra,
abrindo bordas que se oferecem a novas interpretações, em modo paralelo à
temática central. Em seqüência à busca pela representação da morte, nesse
contexto da segunda fase machadiana, encontramos na indicação do narrador as
observações sobre o inexplicável do feminino, atrelado a essa representação.
Associamos as interrogações do conselheiro Aires às indicações freudianas, nessa
mesma vertente, e elaboramos as formulações que se seguem.
Na Apresentação das Novas conferências introdutórias sobre psicanálise
(1933 [1932]), Sigmund Freud conclui a conferência XXXIII intitulada “Feminilidade”
admitindo que tudo o que havia dito até então sobre a feminilidade estava
incompleto e fragmentário, e adverte: “Se desejarem saber mais a respeito da
feminilidade, indaguem da própria experiência de vida dos senhores, ou consultem
os poetas, ou aguardem até que a ciência possa dar-lhes informações mais
profundas e mais coerentes” (FREUD, [1925] 1990, p. 165).
Acatamos a indicação freudiana de consultar os poetas, mesmo sabendo
antecipadamente que estes não têm também uma resposta para tal questão. Porém,
têm a capacidade de expor esboços enigmáticos do caráter feminino, referendando
o pressuposto freudiano do quanto a feminilidade é “inexplicável”. Faremos um
recorte no texto Esaú e Jacó destacando a personagem Flora enquanto encarnação
feminina do inexplicável e como representação da imagem da morte nesse texto.
Na narrativa Esaú e Jacó os gêmeos Pedro e Paulo são divergentes em tudo.
Desde a mais tenra infância, suas escolhas se dão sempre em posições opostas e
224
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
competitivas. Pedro cursava Medicina no Rio de Janeiro e Paulo cursava Direito em
São Paulo. “Não tardaria muito que saíssem formados e prontos. Um para defender
o direito e o torto da gente, outro para ajudá-la a viver e a morrer. Todos os
contrastes estão no homem” (ASSIS, 1975, p.127).
O único ponto a uni-los é o amor por duas mulheres, e essas só vão
referendar ainda mais a rivalidade entre os dois. É o amor pela própria mãe
(Natividade) e pela mulher eleita como a amada de ambos, a personagem Flora.
Colocada ainda adolescente nesse mistério que envolve as escolhas de uma
mulher, Flora representa o enigmático da postura feminina. Segundo o narrador:
“Flora, aos quinze anos, dava-lhe para se meter consigo. Aires que a conheceu por
esse tempo, em casa de Natividade, acreditava que a moça viria a ser uma
inexplicável” (ASSIS, 1975, p. 121).
O que quer uma mulher? É uma pergunta feita por Freud desde seu primeiro
encontro com as histéricas, encontro este fundador da Psicanálise. Uma pergunta
que não quis calar. Nas notas de rodapé no artigo “Algumas conseqüências
psíquicas da distinção anatômica entre os sexos” [1925] é citado um comentário de
Freud feito a Marie Bonaparte, em que o mesmo afirma: “A grande questão que
jamais foi respondida e que ainda não fui capaz de responder, apesar de meus trinta
anos de pesquisa da alma feminina, é: o que quer uma mulher?” (FREUD, [1925]
1990, p. 304).
O que quer uma mulher? Tem sido da ordem do inexplicável, assim como tem
sido indecifrável o que é uma mulher. A Psicanálise não descreveu o que é uma
mulher, tarefa admitida por Freud como impossível, mas investigou como a menina
torna-se mulher.
O gênio de Freud é o de haver notado que as considerações anatômicas não são, nesse ponto, de ajuda alguma. As constatações possíveis de se fazer pela observação do exterior, bem como do interior do corpo humano, permanecem para nós sem valor, pois o que se trata de apreender não é uma diferença entre órgãos ou cromossomos que determinam nossa configuração, mas uma diferença de sexos – esse termo designando aqui, para além da materialidade da carne, o órgão enquanto aprisionado na dialética do desejo, e dessa forma ‘interpretado’ pelo significante (GUIRAUD, apud ANDRÉ. 1994, p. 11).
225
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
Flora, ao ser nomeada de “inexplicável” pelo Conselheiro Aires, inquietou-se a
querer uma explicação, tanto quanto sua mãe (D. Cláudia), ao que Aires reagiu
comparando as duas com a frase: “direi que esta moça resume as raras prendas de
sua mãe” (ASSIS, 1975, p. 121). “Em outros termos, é na medida em que ela quer
ter aquilo que falta a sua mãe que se torna mulher” (ANDRÉ, 1994, p. 25). Vejamos
o diálogo que desencadeia essa afirmação:
- Mas eu não sou inexplicável, replicou D. Cláudia sorrindo. - Ao contrário, minha senhora. Tudo está, porém, na definição que demos
a esta palavra. Talvez não haja nenhuma certa. Suponhamos uma criatura para quem não exista perfeição na terra, e julgue que a mais bela alma não passa de um ponto de vista; se tudo muda com o ponto de vista, a perfeição... (ASSIS, 1975, p. 121).
O conselheiro Aires é interrompido, antes de concluir sua reflexão. No
entanto, percebemos que ele faz uma comparação entre Flora e sua mãe,
aproximando a questão do inexplicável referido ao ser feminino, o qual é peculiar às
duas: mãe e filha, ou seja, o inexplicável está referido ao ser mulher. O efeito da
palavra de Aires reverbera em Flora, que não abre mão de uma explicação. O
narrador destaca este efeito alertando o leitor com esta afirmação:
Hás de lembrar-te que Flora não despregava os olhos dele, ansiosa de saber por que é que a achava inexplicável. A palavra rasgava-lhe o cérebro, ferindo sem penetrar. Inexplicável que era? Que não se explica, sabia; mas que não se explica porque? (FREUD, 1975, p. 126).
Flora não se conteve até ouvir uma explicação que justificasse a nominação
de “inexplicável” e aproveitou a primeira ocasião possível para pedir maiores
esclarecimentos ao Conselheiro Aires, obtendo esta resposta:
- Inexplicável é o nome que podemos dar aos artistas que pintam sem acabar de pintar. Botam tinta, mais tinta, outra tinta, muita tinta, pouca tinta, nova tinta, e nunca lhes parece que a árvore é árvore, nem a choupana, choupana. Se, se trata então de gente, adeus. Por mais que os olhos da figura falem, sempre esses pintores cuidam que eles não dizem nada. E retocam com
226
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
tanta paciência, que alguns morrem entre dois olhos, outros matam-se de desespero (FREUD, 1975, p. 126).
Percebe-se claramente que a explicação dada em nada explica o inexplicável.
É apenas uma tentativa de apreender algo que foge à representação por uma
palavra específica. Freud, desde o começo da prática clínica, ao depara-se com as
questões da feminilidade trazidas nos sintomas das histéricas, e até o fim de suas
elaborações teóricas pesquisando sobre este tema, considerou sempre o feminino
como algo da ordem de “continente obscuro” (FREUD, [1925] 1990, p. 304), do
“inexplicável”.
As primeiras tentativas de explicação partiram da intenção de entender como
se coloca a sexualidade infantil [1905]. Na explicação de Serge André, Freud
elaborou o desdobramento dessa construção teórica, considerando quatro
temáticas: a noção de bissexualidade, o conceito de libido, da diferença dos sexos à
divisão do sujeito, e o tornar-se mulher (ANDRÉ, 1994, p. 19). O cerne das
elaborações feitas sobre as questões do feminino é retomada e discutida por Freud
na já citada conferência XXXIII Feminilidade e mais uma vez ele admite: “Os
senhores, agora já estão preparados para saber que também a psicologia é incapaz
de solucionar o enigma da feminilidade” (FREUD, [1925] 1990, p. 144).
Freud, ao admitir esta verdade, reconhece também que o mistério que
envolve esta questão permeia outros campos de saber e diz que “através da história,
as pessoas têm quebrado a cabeça com o enigma da natureza da feminilidade”
(FREUD, 1990, p. 140). No texto O tema dos três escrínios [1913], este enigma foi
acrescido na envolvente análise de textos literários. Permeando outros campos do
saber, Freud utiliza a mitologia como referência, As Moiras162, o mito das deusas do
destino, recortando pontos de junção entre o feminino e a morte. Destaca como
representações da morte (nos referidos textos) o significante existente nas palavras
silêncio, mudez e ocultamento. Coloca-os, então, na mesma vertente de saber. O
encontro com o feminino e o encontro com a morte são da ordem do inominável,
posto que não são possíveis de serem representados no inconsciente.
162 Já expusemos duas vezes neste trabalho esse mito (As Moiras, as Parcas, ou Normas). Portanto não teceremos os comentários aqui.
227
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
Lacan, retomando esta questão no Seminário: livro 20 intitulado: Mais, ainda,
coloca a feminilidade no registro do Real163, ou seja, é algo da ordem do não todo
possível de nomear. Há algo que escapa ao alcance da palavra, mas que não pára
de não se inscrever. Assim como a morte, o feminino paira no campo do não todo
significável. É o mutismo, equivalentes no inconsciente, como o não reconhecível, o
que não se explica, silencia.
Na trama machadiana, Flora personifica a representação do feminino
formando um par com a morte, encarnando o mistério que evoca estas duas
questões. Cortejada por dois irmãos gêmeos, fisicamente idênticos (Pedro e Paulo)
encanta-se igual e sinceramente por ambos, comparando-os constantemente, mas
sem conseguir chegar a nenhuma decisão. “Flora ria com ambos sem rejeitar nem
aceitar especialmente nenhum; pode ser até que nem percebesse nada” (FREUD,
1975, p. 127).
Retomando o Tema dos três escrínios, observamos que os textos literários
analisados ali destacam a questão de uma escolha feita geralmente entre três (três
metais: ouro, prata e bronze; três astros: sol, lua e estrela; três irmãs, que Freud vai
associar às três Moiras ou às três Parcas da mitologia grego/romana: Cloto,
Láquesis e Átropos), destacando a última como a deusa da morte. Freud ressalta,
ainda em sua análise, o papel mitológico e dual de Afrodite, Perséfone e Ártemis “as
grandes deusas-Mãe dos povos orientais, contudo parecem todas terem sido tanto
criadoras quanto destruidoras – tanto deusas da vida e da fertilidade quanto deusas
da morte” (FREUD, [1913] 1990, p. 377).
Relembrando Flora, ela é colocada frente a uma escolha, a princípio, entre
dois (os gêmeos). Isso, antes de aperceber-se da necessidade de fazer essa
escolha, e posteriormente, entre “três”, quando frente ao não saber a quem escolher,
escolhe um terceiro, a morte, como solução. Antes de chegar ao ponto de necessitar
fazer uma escolha, Flora deleita-se com o sentimento que ambos lhe despertavam
sem perceber a intensidade do que se passava consigo. Diz o narrador:
Flora, incurável também, se não preferes a definição de inexplicável, que lhe deu Aires, a graciosa Flora teve naquela noite a sua insônia. Mas foi um tanto culpa sua. Em vez de se deitar quietinha e dormir com os anjos, achou
163 O real é uma das três ordens, juntamente com o simbólico e o imaginário, definidas por Lacan como estruturantes do inconsciente.
228
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
melhor velar com um ou dous [sic] deles, e gastar uma parte da noite, à janela ou sentada, a recordar e a pensar, e a cortejar e a contemplar... (ASSIS, 1975, p. 220).
Flora, enamorada, contemplava mentalmente os dois irmãos, juntos ou
separados. Eles despertavam nela a mesma gama de sentimentos. Ela relembrava-
os exercitando um jogo que já lhe era freqüente, transformar os dois numa só
pessoa, e ficar a confundi-los e separá-los, voltando a fundi-los num só. [...] “cismou
que os ouvia falar; primeira parte da alucinação. Segunda parte: as duas vozes
confundiam-se, de tão iguais que eram, e acabaram sendo uma só. Afinal, a
imaginação fez dos moços uma única pessoa” (ASSIS, 1975, p. 215).
Nessa ilusão de complementaridade, Flora permaneceu algum tempo. O
prazer lúdico dessa junção alimentava-lhe a ilusão da possibilidade de encontrar, em
cada um, as metades as quais formariam um todo. Enquanto esse devaneio não lhe
exigiu uma posição de escolha, enquanto não havia tomado conhecimento de que
sua indefinição tornara-se pública, Flora viveu usufruindo da situação extremo
êxtase. Cita o narrador:
Tudo se mistura, à meia claridade; tal seria a causa da fusão dos vultos que de dous [sic] que eram, ficaram sendo um só. Flora, não tendo visto sair nenhum dos gêmeos, mal podia crer que formassem agora uma só pessoa, mas acabou crendo, mormente depois que esta única pessoa solitária parecia completá-la interiormente, melhor que nenhuma das outras em separado. Era muito fazer e desfazer, mudar e transmudar. Pensou enganar-se, mas não; era uma só pessoa, feita das duas e de si mesma, que sentia bater nela o coração. Estava tão cansada de emoções que tentou erguer-se e ir fora, mas não pôde; as pernas pareciam de chumbo e coladas ao sol (ASSIS, 1975, p. 227).
Toda essa situação, a princípio, prazerosa para Flora, vai gradativamente
transformando-se em questões às quais ela não acha respostas. Pensando nos
dois e tentando eleger um deles, chega à seguinte reflexão:
No valor e no ímpeto podia comparar o coração ao gêmeo Paulo; o espírito, pela arte e sutileza, seria o gêmeo Pedro. Foi o que ela achou ao fim de algum tempo, e com isso explicou o inexplicável. Apesar de tudo, não
229
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
acabava de entender a situação, e resolveu acabar com ela ou consigo (ASSIS, 1975, p. 240).
Esta reflexão é o começo de uma mudança de atitude. Flora começa por se
implicar na situação e preocupar-se com uma resolução (ou acabava com a situação
ou consigo mesma). Esta resolução aponta o primeiro pensamento de Flora em
direção à morte, ou seja, na direção de algo que cale o seu “mal-estar”.
Desde o Projeto para uma Psicologia Científica, [1895], Freud coloca que há
na base do psiquismo humano a necessidade de reduzir as tensões ao mínimo
necessário possível para a sobrevivência. As tensões seriam provocadas na
configuração pulsional do psiquismo. As excitações viriam tanto do mundo externo
quanto do próprio organismo. O aumento da tensão causa desprazer e resulta numa
descarga em busca do prazer, ou seja, em busca do alívio da tensão. A partir desta
primeira formulação, Freud chegou à conclusão de que a base da atividade pulsional
humana estaria no princípio de prazer.
No texto Além do princípio de prazer [1920] ele trabalha o conceito de pulsão
de morte colocando o funcionamento mental numa posição dialética: por um lado o
psiquismo é impulsionado para a busca de paz, enquanto, por outro lado, a pulsão
de vida (libido) introduz no psiquismo uma dose de excitação e impulsiona na busca
de um objeto. Revendo estes conceitos, Freud introduz entre eles um terceiro
princípio: “o princípio de realidade”, um princípio regulador das duas forças.
Flora sente a necessidade de aliviar a tensão da dose de excitação pela qual
está tomada. Ao deparar-se com a exigência da realidade, fica a princípio paralisada
por um não saber, ou o não querer saber do que seja o seu desejo. É o não querer
saber do seu desejo que a precipita para uma escolha outra, a escolha de silenciar.
Retomando o silêncio e o ocultamento como representações da morte,
encontramos agora Flora esquivando-se da presença dos gêmeos e calando-se. Ela
vai sendo tomada, gradativamente, pelo crescimento mútuo dessa paixão
ambivalente e de mesma intensidade entre os dois irmãos, sem achar resolução,
“pensava nos dois, sem confessar a nenhum. Sentia a contradição, sem ousar
encará-la por muito tempo” (ASSIS, 1975, p. 246). A indecisão de Flora não era só
segredo dela, era sentida pelos gêmeos, observada por Aires e comentada por
todos. “Contra o sofrimento que pode advir dos relacionamentos humanos, a defesa
230
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
mais imediata é o isolamento voluntário, o manter-se a distância das outras pessoas”
(FREUD, [1929] 1990, p. 96).
Numa conversa de Aires com os gêmeos e tratando dessa questão, ele
comenta: “[...] é certo que vocês gostam dela, e igualmente certo que ela não
escolheu entre os dois. Provavelmente, não sabe o que faça” (ASSIS, p. 232). Entre
os gêmeos um acordo se fez, o rejeitado se conformaria, aceitaria a vitória do
escolhido e desistiria de continuar a conquista. Enquanto entre os gêmeos
formalizava-se um acordo, entre os de fora, comentava-se, e Flora, consigo mesma,
a nenhuma conclusão chegava. “Enquanto indagavam dela em Petrópolis, a
situação moral de Flora era a mesma, o mesmo conflito de afinidades, o mesmo
equilíbrio de preferências” (ASSIS, p. 239).
Mergulhada nesse não saber escolher, e perturbada frente a tantas questões,
Flora começa a aparentar uma inquietação sobre a qual não consegue falar. Diz o
narrador que: “um dia pareceu à mãe que a filha andava nervosa. Interrogou-a e
apenas descobriu que Flora padecia de vertigens e esquecimentos” (ASSIS, 1975,
p. 246). A mãe, que antes percebera o despertar da paixão, comparando-se à filha,
refletiu que “também ela foi menina e moça, também se dividiu a si sem se dar nada
a ninguém” (ASSIS, 1975 p. 128). Agora, porém, do estado atual de Flora, parecia
nada saber e nada poder compartilhar do ser mulher. Este mal- estar sentido por
Flora provoca entre ela e Aires um estranho diálogo. Diz ele:
- Por que não vai a Petrópolis? Concluiu. - Espero fazer outra viagem mais longa, muito longa... - Para o outro mundo, aposto? - Acertou. - Já tem bilhete de passagem? - Comprarei no dia do embarque. - Talvez não ache. Há grande concorrência para aquelas paragens; melhor
é comprar antes, e, se quer, eu me encarrego disso; comprarei outro para mim, e iremos juntos. A travessia, quando não há conhecidos, deve ser fastidiosa; às vezes, os próprios conhecidos aborrecem, como sucede neste mundo. As saudades da vida é que são agradáveis. A gente de bordo é vulgar, mas o comandante impõe confiança. Não abre a boca, dá as suas ordens por gestos, e não consta que haja naufragado.
- O senhor esta caçoando comigo; eu creio até que estou com febre. - Deixe ver. - Flora estendeu-lhe o pulso; ele, com ar profundo: - Está; febre de quarenta e sete graus, a mão está ardendo, mas isto
mesmo prova que não é nada, porque aquelas viagens fazem-nas com as mãos frias (ASSIS, 1975, p. 247).
231
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
Flora expressa para Aires sua ansiedade e a busca por um escape. Brincam
num jogo de palavras que metaforiza a morte. Aires lhe sugere uma mudança e se
propõe a ajudá-la. Poucos dias depois Aires convence sua irmã (dona Rita), a
receber Flora como sua hóspede. A partir desta decisão começa uma fase de
ocultamento, em que Flora ausenta-se fisicamente do convívio dos gêmeos. Ainda
assim, conserva a companhia deles em pensamentos, alimentando suas próprias
fantasias.
O que quer uma mulher? É uma pergunta que também para Flora não quer
calar, mas uma pergunta que ela não suporta sustentar. Ante a indecisão e a
necessidade de solucionar a questão pressionada pela realidade, Flora adoece de
uma enfermidade misteriosa e sem explicação. No decorrer da enfermidade entre
melhoras e agravos, as duas forças vitais entre viver ou morrer enfrentam-se.
A tristeza, sobre a qual nos fala o melancólico, é situada por Lacan como a dor de existir; no âmbito da ética, ela é considerada como covardia moral. A tristeza, como sentimento humano, demasiadamente humano, é a expressão da dor própria à existência e se refere a uma posição do sujeito que faz parte da estrutura psíquica. Se esta posição não deixa de ser estrutural, a ela o sujeito não deve ceder posto ser uma posição relativa ao gozo que se opõe ao desejo (QUINET, 1999, p. 88-9).
Segundo o narrador: “O mais que se passou valia a pena de um livro. Não foi
logo, logo, gastou longas horas e alguns dias. Houve tempo bastante para que entre
a vida e Flora se fizesse a reconciliação ou a despedida” (ASSIS, 1975, p. 260).
Nessa fase intercalar entre a “reconciliação” e/ou a “despedida” Flora ia vivendo
presa ao leito, demandando os cuidados de uma grave enferma, presa a suas
reflexões: “Se a morte a espiava da porta, tinha um calafrio é verdade, e fechava os
olhos. Ao abri-los fitava a triste figura, sem lhe fugir nem chamar por ela” (ASSIS,
1975, p. 261).
A “reconciliação” não veio. A enfermidade se manifesta aparentemente como
uma escolha frente à indecisão, e a “despedida” se concretiza, a morte aparece
como uma solução. “Flora acabou como uma dessas tardes rápidas...” (ASSIS,
1975, p. 263). O conselheiro Aires, meditando sobre a situação, conclui: “a morte,
não é outra coisa mais que uma cessação da liberdade de viver, cessação
232
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
perpétua... mas que crime teria cometido aquela moça, além do de viver, e por
ventura, o de amar, não se sabe a quem, mas amar?” (ASSIS, 1975, p. 263).
4.3.2 Memorial: melancolias: “saudades de si mesmo”.
O tempo é um tecido invisível em que se pode bordar tudo, uma flor, um pássaro, uma dama, um castelo, um túmulo. Também se pode bordar nada. Nada em cima de invisível é a mais sutil obra deste mundo, e acaso do outro (Machado de Assis).
O Memorial de Aires [1908] é o último livro de Machado de Assis e
confessamente escrito sob o signo da saudade. Motivo suficiente para que a crítica
literária associe a personagem central, o conselheiro José Marcondes da Costa
Aires, ao próprio escritor. Detalhe que, para o estudo da ficção, é indiferente, pois é
sobre a personagem que a verdade se constrói, não importando aqui a veracidade
da relação biográfica. “O Memorial de Aires será todo escrito a partir da viuvez e da
solidão – insistentes palavras, tomadas como sinônimas tanto no romance quanto
em cartas contemporâneas de Machado de Assis” (GUIDIN, 2000, p. 24). Guidin,
concordando com Lúcia Miguel Pereira, também confere ao Memorial de Aires o
referencial biográfico164.
Encerrando em Esaú e Jacó seu ciclo de produção romanesca, o escritor escreve uma obra última, quase testamentária, que se dobra sobre si mesma como auto-reflexão e que deseja, isto é novo, retornar à convenção – que é o lugar do ajuste, do pacto social relativamente seguro, em que recai, mais sereno, o olhar de Machado velho. O romance Memorial de Aires será, então, uma espécie de posfácio, um monumento petrificado de toda a obra machadiana anterior: gesto e estratégia de preparação para a morte (GUIDIN, 2000, p. 20).
164 Essa aproximação entre o Memorial de Aires como um retrato da velhice de Machado de Assis, é comum à crítica machadiana.
233
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
Percorremos este estudo na personagem do Conselheiro Aires destacando
sua solidão como uma velada melancolia, que aponta discretamente os resquícios
da morte. Conforme já mencionado, o conselheiro é apresentado primeiro em Esaú e
Jacó165, participando como narrador e personagem, porém curiosamente narrando
em terceira pessoa. Naquele, já menciona as notas de seu diário(s); agora
transformados no Memorial de Aires, compõem o corpo do texto narrado em primeira
pessoa. “Não chega a ser propriamente um romance, nem mesmo uma novela, pois
este não é o intuito do narrador” (MOISÉS, 2001, p. 54).
Diplomata, aposentando e de volta à terra natal, declara o propósito definido
da volta, “aqui estou, aqui vivo, aqui morrerei” (ASSIS, 1975, p. 67). Divide o tempo
entre a solidão, a companhia da irmã e de poucos amigos. O conselheiro adota
como companhia de cadernos de nota seu diário de vida, testemunha de seu
cotidiano. A sua vida se transmuta em letras. É no diário que tudo redige, como se
fosse um confidente; refere-se a ele de maneira personificada; escreve sobre si e
sobre todos ao seu redor, transforma-o em seu Memorial. Resolve, assim, também,
a dificuldade de não gostar de polemizar as opiniões alheias, “Tinha o coração
disposto a aceitar tudo, não por inclinação à harmonia, senão por tédio à
controvérsia” (ASSIS, 1975, p. 89). Deixa reservadas ao diário as próprias opiniões
como um tipo de auto-análise:
Não cuides que não era sincero, era-o. Quando não acertava de ter a mesma opinião, e valia a pena escrever a sua, escrevia-a. Usava também guardar por escrito as descobertas, observações, reflexões, críticas e anedotas, tendo para isso uma série de cadernos, a que dava o nome de Memorial (ASSIS, 1975, p. 90).
Lima destaca a marcante diferença da personagem Aires e os demais tipos
masculinos dessa segunda fase machadiana. Chama de “discrepante” seu estilo de
vida em referência aos demais. “Aires é o que faz da vida uma prática de renúncia e
conformismo” (LIMA, 1981, p. 106). Para esse autor, Aires tenta conduzir a vida com
o menor dispêndio de dor e energia. E sua primeira renuncia é a vida afetiva.
Declaração feita pelo próprio narrador em Esaú e Jacó.
165 Por esse motivo, a vida de Aires esta distribuída entre os dois textos; motivo que nos leva a fazer citações provindas dos dois.
234
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
Posto que, viúvo, Aires não foi propriamente casado. Não amava o casamento. Casou por necessidade do ofício; cuidou que era melhor ser diplomata casado que solteiro, e pediu a primeira moça que lhe pareceu adequada a seu destino. Enganou-se; a diferença de temperamento e de espírito era tal que ele, ainda vivendo com a mulher, era como se vivesse só. Não se afligiu com a perda; tinha o feitio do solteirão (ASSIS, 1975, p. 89).
Lima observa então que Aires é diplomata por ofício e por escolha de vida. “A
diplomacia tem esse efeito que separa o funcionário dos partidos e o deixa tão
alheio a eles, que fica impossível de opinar com a verdade, ou, quando menos com
certeza” (ASSIS, 1975, p. 169), fato que faz dele um homem ambíguo, sem ser
cínico ou disso tirar vantagens escusas nas situações propícias para tal. Lima
destaca nisso a exclusão que Aires fez a si mesmo da voz da paixão e do desejo.
Em vez de combater o combate do amor, de suportar suas ascensões e quedas, o conselheiro prefere manter-se a distância, seja para recordá-lo sem amargura, associando sua fugacidade à suave ironia com que pensa a instabilidade dos governos, seja para deixar-se à espera, na estratégica distância que lhe permita uma digna retirada. E na ambigüidade que aí desenvolvera – viúvo sem ter sido propriamente casado – ampliou-se no trato com os homens, mormente no trato com as palavras. Aires é o que em vez de optar, paira sobre os partidos (LIMA, 1981, p. 107, grifo nosso).
Do escasso convívio social à completa auto-reclusão, Aires parece não se
abalar. O narrador apresenta a reflexão e a serenidade peculiares à maturidade.
Aparenta estar acima das impulsividades eloqüentes da palavra. Usa os temas com
refinado apuro de quem já os tem estudado e analisado de longa data. Tem um
aparente luto, uma velada melancolia, flutua como observador se comprazendo nas
conquistas alheias. Quando evoca o passado é em velado lamento. Aires tem certa
dissimulação que dificulta atribuir-lhe um preciso perfil.
Quando muito, para levantar a porta do véu, seria preciso entrar na alma dele, ainda mais fundo que ele mesmo. Lá se descobriria acaso, entre as ruínas de meio celibato uma flor descorada e tardia de paternidade, ou, mais propriamente, de saudade dela... (ASSIS, 1975, p. 229).
235
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
Podemos inferir que Aires vive em um disfarçado luto, sem se compungir em
dor (o que é próprio das primeiras horas das perdas), mas sem o fluir de novos
investimentos afetivos. No convívio com Flora, exerce ares de conselheiro
sentimental, filosofando sobre a vida e o amor, porém sem se deixar contaminar por
isso. Tem extrema noção do peso dos anos e se esquiva, vive em estagnação
afetiva. Nos diálogos com Flora, escapa-lhe um breve lamento do passar dos anos,
mesmo que em troca haja um ganho de experiência e aprendizagem; afirma a ela:
“A senhora não saberá isto bem, porque é moça e ingênua, mas creia que a
vantagem é toda sua. A ingenuidade é o melhor livro e a mocidade a melhor escola”
(ASSIS, 1975, p. 228).
No convívio com a irmã (Rita) o clima de morbidez é preservado. A própria
Rita é também viúva e vive do culto ao falecido. Aires aceita o convite de Rita para
visitar o jazigo da família e, na ocasião, rezar em gratidão pelo primeiro aniversário
de seu regresso definitivo. Ressalta a motivação mórbida com que Rita preenche a
vida.
Fomos ao cemitério. Rita, apesar da alegria do motivo, não pôde reter algumas velhas lágrimas de saudade pelo marido que lá está no jazigo, com meu pai e minha mãe. Ela ainda agora o ama como no dia em que o perdeu, lá se vão tantos anos. No caixão do defunto mandou guardar um molho dos seus cabelos, então pretos, enquanto os mais deles ficaram a embranquecer cá fora (ASSIS, 1975, p. 68).
Aires tanto fala da própria morte, como também da morte de outros com
extrema naturalidade. Em sua voz a morte é abordada de maneira bem serena e
como conseqüência natural de viver. Referindo-se ao mausoléu da família
demonstra apreciação. “Não é feio nosso jazigo...” Essa observação é feita como se
Aires estivesse falando da própria casa, ou por assim dizer, do que aceita bem como
futura morada, e continua: “achei-o novo demais, isso sim. Rita fá-lo lavar todos os
meses, e isto, impede que envelheça. Ora, eu creio que um velho túmulo dá melhor
impressão do oficio, se tem as negruras do tempo, que tudo consome” (ASSIS,
1975, p. 68).
236
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
Aires conduz a solidão de sua vida com a mesma tranqüilidade com que fala
da morte. Cultiva a solidão e, em alguns momentos, quase a cultua, fecha-se em
casa como um devoto se recolhe em seu templo: “vou ficar em casa uns quatro ou
cinco dias, não para descansar, porque eu não faço nada, mas para não ver nem
ouvir ninguém” (ASSIS, 1975, p. 98). Seu isolamento não apresenta razões óbvias
(além de clausura narcísica), entretanto também não é natural, visto que necessita
ser mencionado e planejado.
Escrevendo uma carta a sua irmã, Rita, assegura-se de não lhe escrever
nada que aguce a curiosidade desta, evitando assim uma possível visita: “se lhe
digo isto, ela não me crê, ri, e vem cá logo. Justamente o que eu não desejo. Preciso
me lavar da companhia dos outros, ainda mesmo dela, apesar de gostar dela”
(ASSIS, 1975, p. 99). A esse enfado, Aires prontamente se justifica e assume sua
parcela de “casmurrice”, tomando para si as dificuldades de socialização. Já acho
mais quem me aborreça do que me agrade, e creio que esta proporção não é obra
dos outros, e só exclusivamente minha. Velhice esfalfa” (ASSIS, 1975, p. 98).
Aproveitando um pedido de informação de Rita sobre um leiloeiro, Aires
externa (com boa dose de ironia) como deseja que seja tratado postumamente.
“Quando eu morrer podem vender em particular o pouco que deixo, com abatimento
ou sem ele, e a minha pele com o resto; não é nova, não é bela, não é fina, mas
sempre dará para algum tambor ou pandeiro rústico” (ASSIS, 1975, p. 98). A ironia
aponta um empobrecimento do ego, um descrédito de si mesmo, revelado no
modelo de vida inóspita.
O breve vislumbre do conselheiro em um novo investimento libidinal é dirigido
à viúva Fidélia. Observa a moça, por ocasião de uma visita ao cemitério. Na cena,
ela visita o túmulo do marido, ele a vê de longe, “encoberto por um mausoléu”
(ASSIS, 1975, p. 69). Encanta-lhe o mistério do feminino, velado no luto. E indaga
sobre ela para Rita, descreve-lhe a moça numa moldura, própria à cena. “Era moça,
vestia preto, e parecia rezar também, com as mãos cruzadas e pendentes” (ASSIS,
1975, p. 69). Aires se deixa fascinar, ainda que por breve tempo, pelo “inexplicável”
do feminino. Mesmo revestida no obscuro do luto, a sedução feminina se anuncia.
Aires deleita-se ao conhecer a história de vida da viúva. Ela, depois de ter
encontrado um grande amor e enfrentado a ira mútua das famílias (os pais de
ambos eram inimigos políticos), fica precocemente viúva, vivendo, desde então,
dessa solidão, fiel à memória do marido. Aires a encontra dias depois, nas bodas de
237
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
prata do casal Aguiar (exemplo de casamento perfeito), situação em que tem
ocasião de observá-la melhor e tecer análises.
Ao vê-la agora, não achei menos saborosa que no cemitério, e há tempos em casa de mana Rita, nem menos vistosa também. Parece feita ao torno, sem que este vocábulo dê nenhuma idéia de rigidez; a contrário, é flexível. Quero aludir somente à correção das linhas, - falo das linhas vistas; as restantes advinham-se e juram-se. Tem a pele macia e clara, com uns tons rubros nas faces, que não lhe ficam mal à viuvez. Foi o que vi logo à chegada, e mais adiante, até que ela foi embora (ASSIS, 1975, p. 75).
A performance de mulher enlutada dá asas às fantasias do conselheiro. Entre
o misto da primeira formulação velada no luto (Tánatos) e essa última aguçada por
Eros, ele ocupa parte de seu monótono tempo a se deleitar nesse enlevo.
Observando a dama, afirma então que essa análise dela não foi composta a
princípio em prosa, mas em versos, ou melhor, adaptada e resumida em um verso
de Shelley. Repete para si o verso lido dias atrás, e lamenta: “I can give not what
men call love.. Eu não posso dar o que os homens chamam de amor... e é pena”
(ASSIS, 1975, p. 76).
Ainda pensando na jovem viúva, declara o conselheiro ao seu diário: “Escuta,
papel. O que naquela dama Fidélia me atrai é principalmente certa feição de espírito,
algo parecido com o sorriso fugitivo, que já lhe vi algumas vezes. Quero estudá-la se
tiver ocasião” (ASSIS, 1975, p. 93). A imagem da mulher jovem presa à morbidez do
luto, que oculta e vela suas formas esculturais, atrai Aires, levando-o até a fantasiar
novas núpcias. Tal fantasia é subjugada pelas reflexões de Aires, como se o tempo,
a idade, enfim, a realidade fosse mais forte que ele.
Conclusões lógicas, ato consciente que não convence o Sujeito Aires. No
sinalizar desse breve desejo, o conselheiro faz um sonho. A viúva o visita com o
propósito de pedir conselhos, demover as dúvidas sobre a continuidade do estado
de viuvez. O conselheiro aproveita a oportunidade e se oferece como marido ideal a
ela. Acorda no exato momento de consumar em ato o que está no campo da
palavra. O sonho, diz Freud, é a via régia para o inconsciente, uma das brechas por
onde o sujeito do inconsciente revela seu desejo. Lacan afirma nos Escritos, que o
Inconsciente é o “capítulo da história que é marcado por um branco ou ocupado por
uma mentira: é o capítulo censurado” (LACAN, 1996, p. 260).
238
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
A censura prevalece, sublima-se nas alternativas que o sujeito elabora. O
Conselheiro tem profunda dimensão de sua solidão ao tomar o diário como
confidente. O diário é uma possibilidade de falar sem censuras, sem ser
interpretado, questionado ou julgado; chega a mencionar a necessidade de destruí-
lo antes de morrer. O conselheiro toma o diário como o acompanhante de sua
solidão, conferindo a este uma função que vai mais além da de suportar o registro de
sua escrita e de seu desabafo. O diário serve como testemunha da análise de sua
vida e de sua crescente aceitação da morte.
Papel amigo papel, não recolhas tudo o que escrever esta pena vadia. Querendo servi-me acabarás desservindo-me, porque se acontecer que eu me vá desta vida, sem tempo de te reduzir as cinzas, os que me lerem depois da missa de sétimo dia, ou antes, ou ainda antes do enterro, podem cuidar de que te confio cuidados de amor. Não, papel. Quando sentires que insisto nessa nota, esquiva-te da minha mesa, e foge. A janela aberta te mostrará um pouco de telhado, entre a rua e o céu, e ali ou acolá acharás descanso. Comigo o mais que podes achar é esquecimento, que é muito, mas não é tudo; primeiro que ele chegue, virá a troça dos malévolos ou simplesmente vadios (ASSIS, 1975, p. 92-93).
O Memorial de Aires é apontado como “uma espécie de tratado acerca da
velhice” (MOISÉS, 2001, p. 55). Certamente o enredo se desenvolve entre
aposentados, viúvos, à exceção um jovem casal (Tristão e Fidélia), porém ela,
apesar de jovem, já é viúva. A melancolia ronda a narrativa, mas com equilibrada
serenidade. A morte é falada com aceitação e maturidade. Convocado por Rita para
transportar os restos mortais da esposa de Viena ao Rio de Janeiro, Aires conclui:
“os mortos ficam bem onde caem”. “[...] – Quando eu morrer, irei para onde ela
estiver, no outro mundo, e ela virá ao meu encontro, disse eu” (ASSIS, 1975, p. 71).
Aires consome bastante tempo introspectivo em reflexões filosóficas. A morte
transcorre no texto como um tema subliminar. Os significantes referentes ao tema
estão diluídos no tempo, na melancolia, na morbidez da viuvez, na aposentadoria,
na solidão, nos sepulcros visitados, porém apresentar conclusões conceituais. Aires
resume ao diário sua morte lenta e gradual, seu conformismo revelado no
isolamento e seu desejo silenciado no recolhimento interior.
239
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
Eu tenho mulher embaixo do chão de Viena e nenhum dos meus filhos saiu do berço do nada. Estou só, totalmente só. Os rumores de fora, carros, bestas, gentes, campainhas e assobios, nada disto vive para mim. Quando muito o meu relógio de parede, batendo as horas, parece falar alguma coisa, - mas fala tardo, pouco e fúnebre. Eu mesmo relendo estas últimas linhas, pareço-me um coveiro (ASSIS, 1975, p. 151).
Fecha-se a escrita romanesca machadiana no Memorial de Aires. O narrador
cumpre bem a função a ele designada. “O clima em que se passa o diário do
Conselheiro Aires é marcado pela transparência, a começar das descrições das
personagens, como se nenhum dos seus traços escapasse ao olhar experimentado
do narrador” (MOISÉS, 2001, p. 54). Trata-se de uma escrita bem-estruturada,
organizada e sistemática. Começando em Esaú e Jacó e concluindo no Memorial, o
narrador observa as demais personagens e participa da trama como uma visão
equilibrada. Anexando experiências, conclui as interrogações existenciais com a
sabedoria do Eclesiastes166 e em discreta resignação. Os jovens casam, repetindo o
ciclo da vida; os idosos cumprem o seu em estagnada melancolia, presos na
“saudade de si mesmos”.
166O livro de Eclesiastes é parte do Antigo Testamento da Bíblia, foi escrito no 10º século antes a. C., pelo rei Salomão. O título Eclesiastes foi retirado da tradução da Septuaginta do V. T. e é uma tradução da palavra hebraica Koheleth, que dá a entender que o autor é um professor ou pregador. O tema abordado é o raciocínio do homem. O homem ‘debaixo do sol’ que filosofa sobre a vida. Grande parte do livro é autobiográfica (Bíblia anotada de Dr. C. J. SCOFIELD. p. 662).
240
A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis
A morte, por exemplo, bem podia ser tão somente a aposentadoria da vida, com prazo certo. Ninguém iria por moléstia ou desastre, mas por natural invalidez; a velhice, tornando a pessoa incapaz, não a poria a cargo dos seus ou dos outros. Como isto andaria assim desde o princípio das coisas, ninguém sentiria dor nem temor, nem os que se fossem, nem os que ficassem. Podia ser uma cerimônia doméstica ou pública; entraria nos costumes uma refeição de despedida, frugal, não triste, em que os que iam morrer, dissessem as saudades que levavam, fizessem recomendações, dessem conselhos, e se fossem alegres, contassem anedotas alegres. Muitas flores, não perpétuas, nem dessas outras de cores carregadas, mas claras e vivas, como de núpcias. E melhor seria não haver nada, além das despedidas verbais e amigas... (Machado de Assis).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
241
Considerações finais
5 CONSIDERAÇÔES FINAIS
Resta lembrar que a vida dos livros é vária como a dos homens. Uns morrem de vinte, outros de cinqüenta, outros de cem ou de noventa e nove. [...] Muitos há que, passado o século, caem nas bibliotecas, onde a curiosidade os vai ver, e donde podem sair em parte para a história, em parte para os florilégios. Ora, esse prolongamento da vida, curto ou longo, é um pequeno retalho de glória. A imortalidade é de poucos (Machado de Assis).
O campo das artes, em sua riqueza de múltiplas possibilidades
representativas, constitui-se como um amplo espaço, aberto à sonhada imortalidade
humana. A obra machadiana é uma comprovação dessa verdade, inclusive pela
pertinência de os temas abordados atingirem a essência da alma humana e,
portanto, permanecerem sempre vivos e atuais. “Machado de Assis é daqueles
escritores que, como os bons vinhos, somente melhoram com o tempo” (MOISÉS,
2001, p. 09).
Dentre os temas abordados por Machado de Assis ao longo de toda a sua
escrita, o tempo tem especial destaque. A recorrência com que utiliza o tema tece
um fio de condução marcante, que fica bem demarcado na escolha dos nomes para
os romances da segunda fase, iniciando com as Memórias e concluindo com o
Memorial. “As narrativas fluem no passado, como longas retrospectivas, obrigando a
memória a extrair das entranhas a matéria da intriga” (MOISÉS, 2001, p. 52).
A memória é evocada como recurso de desenvolvimento da narrativa e
confere autonomia à manipulação de cada narrador, conforme seus próprios
interesses. Esse detalhe já conduz a um olhar que direciona o foco da análise.
Reminiscências são um tipo de trabalho mental já com indicativos de deformação,
cuja confiabilidade, expressa na palavra do narrador, pode sempre ser posta à
prova. É interessante observar como cada narrador faz uso do mesmo recurso,
porém, quando aplicado à realidade em questão, o enredo continua inovador. “Brás
Cubas, por exemplo, inicia-se com a morte do protagonista, ou seja, com a solução
da história, e o relato retorna ao começo de sua vida, após contar o delírio. É o
modelo homérico da narração em retrospectiva da Odisséia” (COUTINHO, 1997, p.
242
Considerações finais
49). Coutinho destaca a mestria de Machado de Assis em manejar bem essa
relação com o tempo e com o resgate da memória, de maneira que pode contar o
desfecho, tal qual o “defunto autor”, e ainda assim despertar o interesse do leitor,
bem como sustentar a imprevisibilidade do rumo da narrativa. A capacidade de atuar
sobre o leitor com o conteúdo da narrativa faz contraponto entre a emoção e a
razão, com uma análise que infere no conteúdo um convite à implicação do leitor no
tema. “Suas aventuras eram mentais, e o seu raro poder de evocar impressões
passadas, criando emoções presentes e duradouras, é o segredo da permanência e
perenidade de sua obra” (COUTINHO, 1997, p. 51).
A repetição ao resgate do tempo, pelo recurso da memória, está implícita no
tema de maior destaque a partir das Memórias póstumas: a perspectiva do homem
diante da morte. Percebe-se a progressiva construção de um referencial sobre o
enigma da morte desde Brás Cubas até o Conselheiro Aires. A forma lúdica de
apresentar um autor (narrador) que é um defunto já é um convite à reflexão quanto à
veracidade da experiência. O relato do delírio de Brás Cubas perpassa a
compreensão metafórica, “segundo pedia a linguagem alógica que lhe é própria, os
grandes eventos que compõem a história da humanidade. Era, como se sabe, o
auge da busca do impossível, a utopia do emplasto ou a filosofia do Humanitismo”
(MOISÉS, 2001, p. 48).
O livro começa com um delírio de Brás Cubas no momento da morte. Surge aí desde logo o motivo do tempo, numa alegoria confusa, em que o moribundo vê desfilarem os séculos em vertiginosa corrida, esperando encontrar no último ‘a decifração da eternidade’. A página é bizarra, tecida a gosto do humorismo excêntrico, mas é uma confissão de impotência, uma afirmação dolorida do absurdo da vida (COUTINHO, 1997, p. 103).
Através de Brás Cubas o destino da humanidade é apresentado no âmago
extremo de seu desamparo. Inclusive, apontado como sem solução por Pandora, a
“mulher” guia no delírio (representação da primeira mortal e da última mulher, deusa
do destino, a moira Átropos, a inflexível), por essa mensageira, ocorre a
aproximação entre o feminino e a morte. O destino humano é de trágica condição
existencial desde o princípio – assim indica a estranha viagem através do tempo,
viabilizada na linguagem do delirante. A morte é uma solução de escape ao
243
Considerações finais
desencanto diante do “espetáculo da vida”, ou é um engodo para a aceitação do
inevitável, a transitória realidade dos mortais.
Em consonância com essa questão, a personagem Quincas Borba apresenta,
na teoria do Humanitismo, um meio-termo entre o desamparo e a lúdica esperança
filosófica advinda da reorganização social diferenciada. A dor e a morte estão no
centro das preocupações do novo Sistema. Quincas atribui a Humanitas o atributo
da imortalidade, uma vez que a matéria orgânica vai sendo transferida
continuamente na “multiplicação personificada da substância original” (ASSIS, 1975,
p. 262), eliminando assim a morte. Continuando a usar o recurso da ironia,
amplamente explorado por Brás Cubas, o Humanitismo de Quincas Borba “é uma
sátira ao Naturalismo evolucionista e mais particularmente ao Positivismo que se
infiltrava no Brasil. Para o pensador bizarro e vagabundo só há uma substância –
Humanitas“ (COUTINHO, 1997, p. 104).
No perfil de louco, Quincas Borba reflete com maior profundidade do que Brás
Cubas a ansiedade da existência e a possibilidade de aceitação ou de escape aos
determinismos existenciais. Seu tempo de mendigo registra a contingência humana
frente à dependência material, confronto entre a representação social e o auto-
reconhecimento. Mesmo como mendigo recusa-se a reduzir-se à condição de
escória social; responde à esmola de Brás Cubas do lugar de sujeito e não colado
ao significante da “alma exterior”. Na herança que transfere a Rubião, Quincas
Borba lhe transfere também a ingênua crença na possibilidade de seu Sistema, fato
que não deixaria a Rubião outra escolha, em face de seus desencontros, senão a
loucura e a morte.
O resgate do tempo em Dom casmurro se faz na tentativa do narrador em
“atar as duas pontas da vida”, numa inválida viagem de retorno ao feliz idílio de seu
amor adolescente, retrato da não-elaboração de suas perdas, tanto quanto de sua
não-implicação na parcela de suas escolhas. “O solitário Dom casmurro consegue
invocar as imagens do passado, não a sua sensação, e por isso a tentativa fica
tocada por uma melancolia incurável e pungente” (COUTINHO, 1997, p.108). Em
Bentinho, lêem-se os efeitos amargos da melancolia na impossibilidade de elaborar
sua parcela de covardia moral sem desmistificar sua própria verdade.
A libido está presa em seu próprio narcisismo e não fica livre para novos
investimentos. A energia libidinal de Bentinho sempre atuou como um circuito em
torno de si mesmo. Envolto em ambiente de luto, fora da cena do amor juvenil, sua
244
Considerações finais
cena familiar é de culto aos mortos, junto aos três viúvos. É exatamente em uma
cena de morte, velada no olhar dedicado ao morto por Capitu, um olhar de ternura a
Escobar, que Bentinho descobre o desencontro de sua demanda de amor, que não
corresponde à ressonância por ele esperada. É a morte real do amigo que lhe
aponta essa outra morte simbólica. É na cena de morte que se “desfaz subitamente
o engano daquelas vidas. É um desnudamento das consciências, dando lugar à
aparição de coisas ocultas” (COUTINHO, 1997, p. 110). É também na morte que sua
vingança encontra aporte. “Infiel é a vida. Capitu é a imagem da vida” (COUTINHO,
1997, p. 111).
Em Esaú e Jacó, A morte continua pontual em marcar presença. O tempo
como tessitura do caminho da memória é bem representado no Conselheiro Aires. É
um narrador atípico, que comparece na trama com a voz em terceira pessoa e
dialogando com as personagens como sábio anunciador de refinada filosofia.
“Subsistem a ternura humana, a condescendência, a compreensão, e ao mesmo
tempo a maledicência, a pilhéria, o apurado bom gosto e uma sutil sentimentalidade”
(COUTINHO, 1997, p.112). É o Conselheiro quem aponta a proximidade entre a
problemática da morte e do “inexplicável” feminino, subjacente na temática principal.
No encontro com a personagem Flora, o Conselheiro interpreta como
“inexplicável” o saber sobre o ser do feminino e o que se passa nas “malhas” do
desejo de uma mulher. “A indagação metafísica da morte reponta, embora a alma
esteja apaziguada e se prepare para a grande quietude. Por que morre Flora, indaga
ele mais uma vez, por que a mocidade passa e o ser humano perece?” (COUTINHO,
1997, p. 112). Na jovem Flora, a morte comparece como reposta ao desejo que ela
não quis conhecer. Escolheu o encontro com a melancolia, metamorfoseada em
enfermidade; mudo semblante do amor, concretizado na imagem da morte.
Em continuidade à atmosfera nostálgica da vida, o Conselheiro continua sua
trajetória no Memorial de Aires, através de seu diário de notas, e escreve um registro
fiel de sua observação, assim como de sua “alma interior”. O Memorial, “é uma pura
música interior fluindo velada de sua saudade e de seu espírito e deixando que a
bondade e a simpatia da alma humana se desenvolvam francamente” (COUTINHO,
1997, p. 113). Uma melancólica nostalgia perpassa o ambiente do Memorial,
mulheres viúvas, vivendo à sombra do amor ao morto, velando sua memória. O
casal Aguiar ”fartos” da feliz vida a dois e cheios de “saudades de si mesmos”
(ASSIS, 1975, p. 219), velam os sonhos e ideais dos “filhos postiços”.
245
Considerações finais
O Conselheiro Aires rende-se diante da fisgada do amor e, assim como Flora,
também renuncia, porém sabe do que desiste, pára diante do enigma do feminino.
Observa ele que “a moça Fidélia foge de alguma coisa, se não foge a si mesma”
(ASSIS, 1975, p.173). Apesar da renúncia, admite que “não há como a paixão do
amor para fazer original o que é comum, e novo o que morre de velho” (ASSIS,
1975, p. 200), porém não se arrisca nessa aposta, e admite a sua morte para o
amor. Antecipa a morte do desejo antes da morte real.
O Memorial de Aires fecha o percurso de escrita da obra machadiana,
notoriamente com uma narrativa de percurso oposto ao iniciado pelo narrador Brás
Cubas. Ainda assim, percebe-se claramente que o fio condutor da temática continua
o mesmo. O que muda é o perfil maduro de desenvolver similar questão. O Memorial
de Aires continua a evocar o tempo, como guardião da memória e porta-voz da
melancolia. Como um reflexo do passado, sem possibilidades de reedição. Diz o
Conselheiro: “a música sempre foi uma das minhas inclinações, e, se não fosse
temer o poético e acaso o patético, diria que é hoje uma das saudades” (ASSIS,
1975, p. 132).
O diário do Conselheiro serve de suporte aos registros das rememorações de
fatos, “assim como as personagens parecem viver e sustentar-se das memórias dos
mortos e dos ausentes” (Moisés, 2001, p. 56). A melancolia, mesclada em disfarçado
luto, apresenta o desencanto da vida em resignada conformação, e em discreta
ironia remete à proximidade da morte. Ainda se indagando sobre as lágrimas de
Fidélia, o Conselheiro conclui: “Ah! Minha amiga (ou meu amigo), se eu fosse
indagar onde param os mortos, andaria o infinito e acabaria na eternidade” (ASSIS,
1975, p. 205).
É visível o percurso gradativo da posição humana frente às situações de
perda e dor, ao desfecho da morte e de sua avassaladora presença, seja concreta,
seja como anúncio velado. Nos dois primeiros textos dessa fase, com Brás Cubas e
Quincas Borba, a ironia e a melancolia dividem espaço no discurso para melhor
situarem a impossibilidade de definições que acalmem o encontro com a morte. Em
Dom Casmurro, Bentinho é de cética frieza, fazendo girar todas as atenções em
torno de sua queixa, para ele ímpar, resolvida também em velada morte.
Em Esaú e Jacó o tema a princípio está diluído na querela antagônica dos
gêmeos, até surpreender na indecisão de Flora, em sua escolha de pagar com a
vida o não saber de seu desejo. Fecha-se então a trajetória dos textos machadianos
246
Considerações finais
com a presença da serenidade, com resignada aceitação do frágil destino e da
certeza do encontro com a morte, mesclada na sabedoria do Conselheiro em similar
sintonia com a sabedoria do Eclesiastes.
Peres, comentando o estudo de Lacan em Hamlet, afirma “que Shakespeare
nos mostra a vida como um permanente estado de luto... vivemos em busca de uma
perda que nos constitui, e construímos a vida dentro de um incessante trabalho de
luto. Nascemos com a inscrição da morte...” (PERES, 1996, p. 53). Ao colocarmos
esse foco de visão sobre a escrita machadiana da segunda fase, percebemos que
Machado de Assis também nos mostra a vida frente a esse constante impasse.
No percurso desenvolvido na construção do texto machadiano está
paulatinamente demarcada a presença da questão da morte. É incontestável a
repetição temática e sua singular aplicação. Desde as Memórias póstumas de Brás
Cubas até o Memorial de Aires, existe um caminho traçado por memórias, tempo e
desamparo. Como um fio que tece acirradamente um conceito na perspectiva de
responder profundamente tais questões, a escrita machadiana, nessa fase, constitui-
se em progressiva reflexão humana diante da morte.
É evidente que as considerações aqui colocadas não têm caráter fechado.
Reconhecemos que a riqueza dos cinco textos escolhidos para esta análise
oferecem, ainda, amplo campo de leitura e de maior aprofundamento. Sem espaço
possível num único estudo, precisariam até, talvez, ser separadamente trabalhados.
Entretanto, para a proposta deste trabalho, julgamos que os traços já encontrados e
aqui demarcados são mais do que suficientes para demonstrar a preocupação da
escrita machadiana com essa questão.
Reafirmamos também que a escrita romanesca da segunda fase está
construída sob o signo da memória como uma representação da morte. Para melhor
explorar essa questão, Machado de Assis utiliza o recurso da melancolia e da ironia
como estratégias de discurso, possíveis de dizer e assim evocar o não possível de
assimilar, a não ser em representação. Como bem diz o Conselheiro Aires, “Os
mortos param no cemitério, e lá vão ter a afeição dos vivos, com as suas flores e
recordações” (ASSIS, 1975, p. 205). Sobre a morte, nada se pode dizer, a não ser
por uma via imaginária.
“E bem, e o resto?” Se a pulsão se caracteriza por não ter objeto próprio de
satisfação, o resto é da ordem do não possível de significar pela palavra. É o resíduo
do que sobra (objeto ‘a’) na busca do objeto perdido, e jamais reencontrado, já que é
247
Considerações finais
pela falta que se constitui. O resto só é possível como semblante e índice da “coisa
metonimicamente deslizando por objetos substitutos. O resto coloca o amor e a
morte presentificados na dimensão de perdas, entre o luto e a melancolia.
A psicanálise fundamenta a inquietação humana no desamparo. A condição
da existência estará sempre referida à trágica realidade estrutural de insatisfação.
Não há o objeto adequado obturador da falta, não há a possibilidade de responder
totalmente à demanda do desejo. O que há são objetos paliativos que se constituem
como imagens e recobrem parcialmente a demanda do desejo. Nessa medida a “dor
de existir” é uma constante realidade que pode ser elaborada no luto e reinvestida
em objetos substitutivos, ou pode permanecer aberta, em um tipo de morte, sutil e
cotidiana, melancolicamente pela vida afora, antecipando simbolicamente a morte
real.
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