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1 Considerações iniciais UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS DOUTORADO JAILMA SOUTO OLIVEIRA DA SILVA O ENIGMA O ENIGMA O ENIGMA O ENIGMA DA DA DA DA MORTE MORTE MORTE MORTE EM MACHADO DE ASSIS EM MACHADO DE ASSIS EM MACHADO DE ASSIS EM MACHADO DE ASSIS João Pessoa 2006

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Considerações iniciais

UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

DEPARTAMENTO DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

DOUTORADO

JAILMA SOUTO OLIVEIRA DA SILVA

O ENIGMA O ENIGMA O ENIGMA O ENIGMA DA DA DA DA MORTE MORTE MORTE MORTE

EM MACHADO DE ASSISEM MACHADO DE ASSISEM MACHADO DE ASSISEM MACHADO DE ASSIS

João Pessoa

2006

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Considerações iniciais

JAILMA SOUTO OLIVEIRA DA SILVA

O ENIGMA DA MORTE

EM MACHADO DE ASSIS

Tese de Doutorado apresentada ao Curso de Pós-graduação em Letras, como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor em Letras, área de concentração em Literatura Brasileira, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal da Paraíba. Orientador: Prof. Dr. Francisco José Gomes Correia.

João Pessoa 2006

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Considerações iniciais

JAILMA SOUTO OLIVEIRA DA SILVA

O ENIGMA DA MORTE

EM MACHADO DE ASSIS

Tese de Doutorado aprovada (com distinção) em 09 de Outubro de 2006, como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor em Letras, área de concentração em Literatura e Cultura, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal da Paraíba, pela seguinte banca examinadora.

Prof. Dr. Francisco José Gomes Correia. Orientador

Universidade Federal da Paraíba.

Profª. Dra. Elisalva de Fátima Madruga Dantas. Examinadora

Universidade Federal da Paraíba.

Prof. Dr. Arturo Gouveia de Araújo. Examinador

Universidade Federal da Paraíba.

Profª. Dra. Cynthia Pereira de Medeiros. Examinadora

Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Profª. Dra. Ilza Matias de Souza. Examinadora

Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

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Considerações iniciais

A meu pai - Manoel Souto – in memorian

Por ter me ensinado, com o exemplo vivo, que a leitura estrutura um Saber que perpassa a formação acadêmica, além de ser um agradável prazer que sublima a solidão da vida; pelo tempo dedicado a ler, na minha infância, principalmente as histórias da mitologia grega.

A minha avó materna – Maria Emília – in memorian Contadora de estórias, nascida na época em que à mulher não era dado o Saber das letras. Fez dessa falta um eterno lamento, apontando-me sempre o privilégio do acesso à leitura.

A minha mãe – Raimunda da Conceição Pelos cuidados incontáveis, pelo exemplo de vida e obstinada disciplina; por sua atividade de trabalho no ambiente escolar ter me oportunizando precocemente o espaço da biblioteca como agradável recreação, antecipando assim o meu acesso à leitura.

A Liu Oliveira Pela adoção afetiva, presença de carinho sempre marcante. Por me encantar com o seu jovial modo de pensar e agir sobre a vida, na plenitude de seus 81 anos; pelos ensinamentos que sua companhia favorece, transmitidos em sábia discrição.

Para Moacir Oliveira, palavras poéticas:

Põe-me como selo sobre o teu coração, como selo sobre o teu braço. Porque o amor é forte como a morte... (Cantares, 8:6).

[...] E assim, quando mais tarde me procure Quem sabe a morte, angústia de quem vive

Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor que tive: Que não seja imortal, posto que é chama Mas que seja infinito enquanto dure.

(Vinicius de Morais).

Para Ana Liz e Alvaro Ramon, na companhia de vocês, renasço a cada dia, e me encanto sempre com o milagre da vida. Cada um de vocês, em seu singular modo de agir, me ensina e me desafia, cotidianamente, na impossível missão materna de educar. Fica para vocês o registro do meu desejo de educar com o coração; ser suporte sempre, apontar o caminho, sem determiná-lo; acolher as demandas, sendo tardia para falar e apta a ouvir; descobrir, juntos, a melhor trilha a seguir nos labirintos da vida. Com vocês quero crescer e partilhar intensamente tudo o que nos for dado a conhecer. Vocês são, cada um a seu próprio modo, o encontro mais ímpar, um presente surpresa, revelando-se, a cada dia, a minha melhor escolha na vida; a personificação simbólica da chama viva e imortal do amor.

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Considerações iniciais

AGRADECIAGRADECIAGRADECIAGRADECIMENTOSMENTOSMENTOSMENTOS

[...] Grandes coisas fez o Senhor por nós e por isso estamos alegres (Salmos 126:3b).

O momento de agradecer é aprazível, ainda que paradoxal. É o momento de

reconhecermos que as palavras não conseguem carregar a intensidade de afeto que desejamos transmitir. Desejo, então, registrar o meu esforço carinhoso de reconhecimento à presença de todos vocês que, durante este percurso acadêmico, estiveram envolvidos comigo em todas as nuanças que este trabalho exigiu.

Ao meu orientador, Prof. Dr. Chico Viana, por te me recebido em sua base de pesquisa, vinda de outra formação acadêmica, e ter apostado na viabilidade desta proposta interdisciplinar; pelo acolhimento ao meu incipiente Saber no campo das Letras e pela generosa e sempre competente orientação que favoreceu o processo de aprendizagem, resultando na produção da presente tese.

Aos professores Dra. Elisalva Madruga, Dr. Arturo Gouveia, Dra. Cynthia Pereira, Dra. Ilza Matias, Dra. Mônica Nóbrega, Dr. Sérgio Castro, por disponibilizarem tempo para ler e contribuir com sugestões que certamente ampliarão a perspectiva e visão deste trabalho.

A Suely Alencar, por acolher sempre minha demanda de orientação no aprendizado da psicanálise; pelas pertinentes pontuações teóricas desde o primeiro momento (pré-projeto), pelo empréstimo de livros e pelo bom ouvido de amiga e de psicanalista as minhas angústias nesse percurso.

A Ruth Dantas, pela amizade, pelo pronto acolhimento às minhas demandas teóricas, pela disponibilidade em empréstimos de livros, pelo exemplo de psicanalista.

A Ana Lúcia Carvalho, pelo feliz encontro de verdadeira amizade nesse percurso de pós-graduação; pela receptividade em disponibilizar sua casa para me hospedar; por compartilhar minhas dúvidas e angústias com sábias e pertinentes pontuações de amiga e de psicanalista; pelo desprendimento e solidariedade em repartir comigo todo o material bibliográfico advindo de sua pesquisa na França.

A Graça Morais, amiga-irmã, presença solidária em todos os intercursos deste processo; a primeira a acreditar comigo na viabilidade deste projeto e a incentivar sua execução.

A Sevy Campos, pela afetuosa adoção; por dividir comigo os cuidados hospitalares durante o período da enfermidade de minha mãe, oportunizando-me tempo para estudos; pelo carinho, apoio e solidariedade freqüentes.

A Jailma Maria, minha amiga-xará, pelo acolhimento em João Pessoa; pela disponibilidade em acatar as demandas que esse trabalho ocasionou.

A Jairo Osias, pela disponibilidade em ler e contribuir com afetuosa competência profissional as correções que se fizeram necessárias à redação deste trabalho.

A Nostradamos Lins, pela amizade, pelo amável humor “irônico” e pela atenta leitura provocadora de pertinentes pontuações ao texto.

A Campos (Dião), pela amizade que lhe motivou a peregrinação aos sebos do Rio de Janeiro à cata de livros; pela hospitalidade com que me recebeu por ocasião de minha pesquisa na Academia Brasileira de Letras e na Biblioteca Nacional; pelo carinho das constantes ligações telefônicas em solidário apoio.

A Justiniano Cipriano, representando toda a família Oliveira, pelo acolhimento, incentivo, apoio e carinho presentes em todo tempo de nosso convívio e em especial durante este percurso.

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Considerações iniciais

A Andrey Oliveira, pela amizade; pelo empréstimo de livros e pelo partilhar teórico durante nosso percurso de cumprimento de créditos disciplinares. A Maria Aparecida (Cida), pela amizade; pelo agradável acolhimento em João Pessoa; por nossas trocas de idéias teóricas no decorrer das disciplinas cursadas.

A Sandra Erikson, pelo companheirismo durante o curso; por disponibilizar seus livros em empréstimos e por sua competente contribuição na troca de idéias. A Rosilda Alves, pela bem humorada companhia nas viagens a João Pessoa e a congressos; por disponibilizar em empréstimos seus livros; pelo partilhar teórico.

A Simone Melo, pela amizade e parceria nesse percurso; pela companhia em viagens a João Pessoa; por nossas “bem humoradas” discussões melancólicas.

A Jaira Nunes, pela amizade; pela companhia em viagens a João Pessoa; pela cumplicidade; pela troca de idéias; pelo incentivo e apoio sempre presentes.

A Vivianne Leite, pela amizade e pelos velhos tempos de parceria a caminho de João Pessoa; pela sempre atual solidariedade.

A Luisa de Marillac, por nossa cúmplice e fraterna amizade que sobrevive a todos os impasses do tempo e da distância e nos torna solidárias sempre; pelo bom humor sempre presente em nossas “filosóficas” conversas sobre a vida.

A Temy e a Ulisses, eternos amigos, pela constante presença, apesar do tempo e da distância, pelo incentivo e carinho que conto sempre.

A Rita, Magda, Neide, Fátima, Dalila, Ilda, Socorro, Salete, Amarylis (amigas do “finado” Centro Clínico), pelo incentivo e solidariedade sempre atuais.

A Glenda, a Grabriella e a Ariosvaldo pelo incentivo; pela disponibilidade de negociação da carga horária, favorecendo o término desta etapa estudantil. A Kátia, Joelma, Jerusa, Ana Lúcia, Alzenir e Régia, pelo companheirismo e cumplicidade com que têm me incentivado, compreendendo minha necessidade de ausência em alguns momentos no ambiente de trabalho. A Jorge Henrique, pela elaboração da arte gráfica; pela paciência em fazer as constantes modificações adequando as imagens ao tema deste trabalho. À bibliotecária Cirlene, pelo cordial acolhimento e por disponibilizar tempo em apontar os ajustes bibliográficos demandados por este trabalho. Deixo ainda, a vocês, a palavra poética de Vinicius de Morais.

A Morte

A morte vem de longe

Do fundo dos céus Vem para os meus olhos

Virá pra os teus Desce das estrelas As loucas estrelas

Trânsfugas de Deus Chega impressentida Nunca inesperada Ela que é na vida

A grande esperada! A desesperada

Do amor fratricida Dos homens, ai! dos homens

Que matam a morte Por medo da vida.

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Considerações iniciais

Pupilo de Zeus, filho de Laertes, industrioso Ulisses, por que, em tua ousadia, concebeste em teu espírito empresa mais arriscada que as precedentes? Como ousaste baixar à morada de Hades, onde habitam os mortos insensíveis, fantasmas de homens que tanto penaram? Assim falou; e eu lhe respondi: Aquiles, filho de Peleu, o mais valente dos Aqueus, vim consultar Tirésias, solicitar-lhe um conselho, para chegar à rochosa Ítaca. Ainda não consegui aproximar-me da Acaia, nem pus os pés em minha terra; só tenho sofrido infortúnios. Mas, Aquiles, ninguém até hoje foi mais feliz do que tu, nem o será no porvir. Outrora enquanto vivias, nós os Argivos, te honrávamos como a um deus; agora que estás aqui, reinas sobre os mortos; por isso, não deves afligir-te por haver morrido. Assim falei; ele com vivacidade me retrucou: Ilustre Ulisses, não tentes consolar-me a respeito da morte; preferiria trabalhar, como servo da gleba, às ordens de outrem, de um homem sem patrimônio e de parcos recursos, do que reinar sobre os mortos, que já nada são! (Odisséia, Canto XI ).

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Considerações iniciais

R E S U M O

Este trabalho utiliza a articulação entre a literatura e a psicanálise para fazer uma

leitura das imagens e representações da morte presentes nos textos romanescos da

segunda fase de Machado de Assis, quais sejam: Memórias Póstumas de Brás

Cubas, Quincas Borba, Dom Casmurro, Esaú e Jacó e Memorial de Aires. Considera

a compreensão da psicanálise de que o ser humano, constituído a partir de uma

perda original irrecuperável, é marcado pela hiância inerente a essa constituição.

Associa tais representações à insatisfação humana ante a transitoriedade da vida.

Tendo isso em vista, procura ressaltar como a escrita machadiana maneja com

maestria a linguagem da melancolia e da ironia como via de possibilidade para falar

do irremediável mal que avassala o saber humano: a incógnita da morte. Apresenta

considerações gerais sobre o tema da morte, da melancolia e da ironia, na

perspectiva da psicanálise. Investiga, em breve percurso, o lugar da morte nos

principais contextos destacados na história da humanidade. Aborda a relação

interdisciplinar entre a literatura e a psicanálise. Procede à análise dos textos acima

citados, priorizando o texto de Memórias póstumas de Brás Cubas.

Palavras-chave: morte. Melancolia. Ironia. Literatura. Psicanálise. Machado de Assis.

Sigmund Freud.

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Considerações iniciais

ABSTRACT

This work use of articulation between makes literature and psychoanalysis, so that it

can scan some images and representation of death. They have, already, been seen

in romantic texts in the second stage of Machado de Assis, they are: Memórias

póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba, Dom Casmurro, Esaú e Jacó and

Memorial de Aires. Considering the psychoanalysis understanding that human being

is made from an irretrievable original loss, marked out through a gap inherent to that

constitution. It is bound together such representation to the human insatisfaction,

before the transition of live. Before this contingency, it stands out like Machado de

Assis’s writing it handles with mastery the melancholy language and irony as a way

of possibility for speaking of the incurable evil that hits human being knowledge: the

death’s incognita. It shows general considerations about the theme death,

melancholy and irony, according to the psychoanalysis prospect. It shows a short

path of the death’s place along the history. It is approached the interdisciplinary

relationship between the literature and the psychoanalysis. It becomes effective the

texts analysis above mentioned, becoming as a priority the texts Memórias póstumas

de Brás Cubas.

Keywords: death. Melancholy. Irony. Literature. Psychoanalysis. Machado de Assis.

Sigmund Freud.

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Considerações iniciais

SUMÁRIO 1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS................................................................................. 12

2 A MORTE: UM ENCONTRO COM O DESAMPARO............................................ 21

2.1 Anotações da psicanálise e considerações gerais. ...................................... 22

2.1.1 Considerações psicanalíticas sobre o real da morte. ...................................... 23

2.1.2 Posições do homem primitivo diante da morte................................................. 32

2.1.3 O medo da morte: a incógnita humana............................................................ 44

2.1.4 Breve percurso: contextualizando a morte....................................................... 57

2.2 Melancolia: uma face da morte........................................................................ 79

2.2.1 Considerações históricas sobre o tema da melancolia.................................... 80

2.2.2 A melancolia como objeto perdido: um encontro com a morte........................ 94

2.3 Ironia: possibilidades de dizer o não-dizível. .............................................. 106

2.3.1 Considerações gerais: rastreando um conceito............................................. 107

2.3.2 Ironia: labirinto do discurso............................................................................. 121

3 LITERATURA E PSICANÁLISE: POSSIBILIDADES DE DIÁLOGO.................. 131

3.1 Diálogo entre mestres: Machado de Assis - Sigmund Freud. ................... 132

3.1.1 Pontos de convergência: literatura e psicanálise........................................... 133

3.1.2 Machado de Assis - Sigmund Freud: intertextualidades............................... .145

4 A MORTE NA SEGUNDA FASE ROMANESCA DE MACHADO DE ASSIS..... 154

4.1 Entre o melancólico e o lúdico: travessias. ................................................. 155

4.1.1 Rememorando as Memórias póstumas: contextualização............................. 156

4.1.2 Revelando a morte: velada entre a ironia e a melancolia.............................. 167

4.1.3 Humanitismo: neologismo entre a loucura e a morte. ................................... 196

4.2 Casmurrice: uma presença da morte............................................................ 206

4.2.1 O que há entre o amor e a morte? Memórias – luto ou melancolia. ............. 207

4.3 A morte - In memorian ao amor..................................................................... 220

4.3.1 Inexplicável feminino: semblante do amor e da morte. ................................. 221

4.3.2 Memorial: melancolias, “Saudades de si mesmo”.......................................... 232

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................. 240

REFERÊNCIAS....................................................................................................... 248

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Considerações iniciais

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A morte é um verme, de duas espécies, conforme se introduz no corpo ou na alma. Mata em ambos os casos. Em mim não penetrou no corpo; o corpo geme porque a doença reflete nele; mas o verme está na alma. Nela é que eu o sinto roer todos os dias (Machado de Assis).

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Considerações iniciais

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS.

[...] Templo de glória ou região do medo, Morte, quem te arrancara o teu segredo? (Machado de Assis).

Joaquim Maria Machado de Assis1 (1839–1908) obteve amplo

reconhecimento de sua produção escrita pela crítica literária. Seu talento

desenvolveu-se ao longo de 50 anos, aperfeiçoando-se gradativamente. Escreveu

poesia e prosa, atingindo nesta última o apogeu. “Para qualquer rumo que se

orientasse, como romancista, como contista, como cronista, como crítico, Machado

de Assis encontraria a fulguração de seu gênio, visto ser ele um escritor completo”

(MONTELLO, 1998, p. 12). Sua escrita é marcante até os dias atuais, sua obra

transcende o tempo, “não fica apenas como documento de uma sociedade e de um

momento, mas se agiganta e cresce como monumento literário” (COUTINHO, 1997,

p. 24).

Ao relermos os textos desse autor, com um olhar marcado pela relação

interdisciplinar da literatura e da psicanálise, captura-nos, no traço da escrita

machadiana, a maneira de narrar, deixando sempre em aberto um semidizer,

detalhe provocador de questionamentos e convidativo à elaboração de

interpretações. Afrânio Coutinho afirma que a linguagem de Machado de Assis

destaca-se pelo uso da metáfora e do simbolismo. É uma linguagem que não esgota

o seu dizer, deixa espaço aberto ao dizer do leitor.

A arte machadiana do estilo tem sua suprema regra na estrita economia de meios. Não diz tudo. Não apenas no que tange ao estilo. Mas a tudo o mais ela exige a colaboração do leitor para completá-la. É a arte da sugestão. Nisso está a sua riqueza (COUTINHO, 1997, p. 52).

1Daqui em diante Machado de Assis. Participou da fundação da Academia Brasileira de Letras, sendo eleito 1º presidente (1897 – 1908), cargo que ocupou até a sua morte, presidindo a sua última sessão em 1º de Agosto de 1908 e falecendo em 29 de setembro do mesmo ano.

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Considerações iniciais

Na esteira da afirmação de Coutinho, refletimos sobre a genialidade da

narrativa machadiana, no fascínio que a mesma exerce sobre o leitor, suscitando

inúmeros questionamentos. Observamos no inusitado narrador de Memórias

Póstumas de Brás Cubas o espaço aberto para falar, além de tudo quanto já foi dito

acerca de sua viagem “à roda da vida”, também da sua excursão “à roda” da morte.

É ponto pacífico entre os críticos que a obra machadiana tem duas fases: um

primeiro momento, inspirado ainda pelo clima do Romantismo e por seus padrões

narrativos; um segundo, “realista”, em que fixa um cânone definitivo e particular.

Atravessa as escolas estéticas de sua época, escapando aos rigores e aos excessos

de todas elas, sabendo utilizar-se das contribuições que julgou válidas,

sedimentando seu próprio estilo (COUTINHO, 1997, p. 26). “Naturalmente, é realista

a arte machadiana. Mas de um realismo mitigado, antes um realismo impressionista.

[...] Sua arte é antes a transfiguração e interpretação da realidade do que a

reprodução fotográfica” (COUTINHO, 1997, p. 51).

Acerca dessas fases, Massaud Moisés afirma: “Duas fases têm sido

apontadas, convencionalmente, na carreira de Machado de Assis: a romântica,

desde Ressurreição até Iaiá Gárcia, e a realista, após Memórias Póstumas de Brás

Cubas” (MOISÉS, 1984, p. 392). Para este autor, a segunda fase é de maior

aprofundamento, revelando os sinais da maturidade de Machado. Já na primeira

haveria traços do que se fixaria na segunda, conferindo um estilo próprio ao escritor.

Coutinho, analisando o mesmo tema, acrescenta:

Não há ruptura brusca entre as duas fases. É mais justo afirmar que uma pressupõe a outra, e por ela foi preparada. Há antes uma continuidade. E, se existe diferença, não há uma oposição, mas sim desabrochamento, amadurecimento. Isto sim: maturação. [...] Há diferenças e semelhanças entre as duas fases. Em ambas, o gosto psicológico e a propensão à análise de costumes. O humorismo aparece nas duas, embora na primeira não associado ao pessimismo, sem o travo amargo e mórbido, sem a melancolia de finado, sem o desencanto que a descoberta da maldade humana e o sofrimento físico e moral lhe dariam depois (COUTINHO, 1997, p. 26).

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Considerações iniciais

As referências à evolução na estética da escrita de Machado de Assis têm,

consensualmente, na publicação de Memórias Póstumas de Brás Cubas2 [1881] um

marco. Muitas são as análises feitas sobre este inusitado livro. A maioria delas

encontra neste texto um fértil espaço para caracterizar a preocupação de Machado

de Assis com a análise psicológica e a especulação filosófica acerca da condição

humana. Destaca também a utilização do humor como recurso crítico, observando

que o livro retrata o contexto social do Brasil na época. Concordamos com todas

essas análises, mas nosso olhar segue outro ângulo, aparentemente o mais óbvio,

porém o apenas mencionado e não focalmente explorado, ou seja, a morte como

questão.

O protagonista-narrador Brás Cubas, que se intitula “um defunto autor”, diz

escrever suas memórias com “a pena da galhofa e a tinta da melancolia” (Assis,

1977, p. 97), paradoxo mobilizador da narrativa em que se destaca e sobressai o

teor melancólico, quase bizarro, da condição humana. Nas palavras do próprio Brás

Cubas, sua escrita é “obra de finado”. A esta junção, “galhofa” e “melancolia”, atrela-

se a ironia, manifestando-se através de fino escárnio; uma maneira possível de falar

do irremediável mal humano: o encontro com a morte, o encontro com o inominável.

Uma das personagens apresentadas por Brás Cubas, o amigo Quincas

Borba, é um filósofo, criador de um sistema chamado Humanitismo. Será esta

personagem quem dará título ao próximo livro de Machado de Assis, publicado dez

anos depois das Memórias Póstumas. No texto que leva seu nome, Borba dá

continuidade às explicações sobre o Humanitismo (com destaque, o sentido da

morte) apresentadas anteriormente a Brás Cubas, em cuja companhia irá falecer.

Deixa toda a sua herança ao professor Rubião, e estabelece, como condição para a

posse desta, que o seu cachorro, chamado também de Quincas Borba, seja adotado

e bem cuidado até a morte. O cachorro é assim nomeado como uma marca da

amizade e como busca de (breve) imortalidade, que o faria ser constantemente

lembrado, na continuidade de vida do animal. A narrativa segue, tendo como foco

Rubião, seus encontros e desencontros, e culminará com sua loucura, ruína e morte.

2 Daqui adiante usaremos apenas Memórias póstumas.Todas as citações dos textos de Machado de Assis abordados neste trabalho são das edições críticas 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, o ano está referido por volume, 1975 e 1977. Também consultamos os mesmos textos na Obra Completa organizada por Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguillar S. A., 1997. Optamos por citar os textos das edições críticas.

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Considerações iniciais

Segundo a crítica, o apogeu da escrita de Machado de Assis aconteceu com

a publicação de Dom Casmurro [1899], nove anos após Quincas Borba [1891]. Foi

aclamado como sua obra-prima e uma das mais completas criações da ficção

brasileira. A dúvida e o enigma são explorados na figura de Capitu. Com “olhos de

ressaca e ar dissimulado”, ela encarna o que há de sedutor, melancólico e mortífero

na representação do feminino. A melancolia é o fio condutor de Dom Casmurro: é de

reminiscências que se alimenta a narrativa, sustentação do semblante da morte em

sua versão real e simbólica.

Esaú e Jacó [1904], penúltimo livro de Machado, e Memorial de Aires [1908],

o último, estão entrelaçados; o Conselheiro Aires é narrador-personagem de ambos.

Diplomata, aposentado e de volta à terra natal, passa seu tempo a observar e a

escrever sobre si mesmo e sobre os que o cercam. Intermedeia suas reflexões

pessoais (filosóficas) ao contexto social vigente, tanto quanto à condição da solidão

humana. Em ambos os textos existe a relação entre o novo e o velho, entre a vida e

a morte, sustentadas pelo recurso recorrente da melancolia, dissimulada ante uma

aparente aceitação com a estagnação da vida e a proximidade da morte.

Assim, fecha-se o ciclo dos romances da segunda fase machadiana com um

narrador organizado e sistemático, formando um contraste marcante com o narrador

que a inicia. Nessa fase considerada realista, observamos que a questão da morte é

recorrente e que, para representá-la, são utilizadas diferentes abordagens. Em

alguns momentos a morte é apresentada de forma direta e objetiva: a morte do

corpo físico. Em outros, é expressa de maneira velada, simbolizada; para isso

concorrem também as representações da melancolia e da ironia. O aparecimento

recorrente do tema da morte, tanto quanto as elaborações filosóficas em torno de

seu enigmático sentido, apontam, no realismo machadiano, para uma constante

reflexão sobre o homem diante da morte – e esta não apenas no sentido orgânico,

mas no sentido simbólico, ou seja, a morte como “a dor de existir”3.

Ressaltamos ainda o modo de organização dos cinco romances dessa

segunda fase4. Começando com Memórias Póstumas5 e terminando com o Memorial

3 “Dor de existir” é um termo usado por Jacques Lacan, em referência à filosofia do Budismo, para caracterizar uma dor que é peculiar à condição do existir. Portanto, pertinente a todo humano. (“Kant com Sade”. In: Escritos (LACAN, 1998, p. 777). 4 Os cinco romances apresentam uma curiosa divisão em três blocos. O protagonista Brás Cubas e Quincas Borba têm uma interlocução nos dois primeiros textos. Dom Casmurro está isolado, como que marcando um antes e um depois na postura narrativa. Nos dois últimos livros, o Conselheiro Aires é narrador-personagem dos dois e sua narrativa é bem sistematizada.

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Considerações iniciais

de Aires, Machado de Assis escolhe narradores que proporcionam uma escrita

progressiva de lembranças marcadas pela recorrência dos temas “melancolia, ironia

e morte”. Essa progressão se efetiva também na forma de apresentar o tema da

morte: nos dois primeiros romances, os protagonistas apresentam certa irreverência

e pitadas de ironia ante a presença da morte e das atrocidades da vida.

Em destaque, o narrador de Dom Casmurro apresenta uma nuança cruel da

melancolia. A consolidação da morte, antecipada na condição de “casmurro”,

acontece a princípio imaginarizada e simbólica, antes de tornar-se efetivamente

realidade. Em Esaú e Jacó, a vertente melancólica é marcada no impasse das

indecisões e culmina com a morte física. E por último, em Memorial de Aires, a

resignação se presentifica na melancolia disfarçada em luto, como se finalmente

houvesse a aceitação da morte como destino natural e imutável da condição

humana.

É nosso objetivo neste trabalho, utilizando os cinco textos já mencionados –

prioritariamente Memórias Póstumas – (pelo fato de o narrador ser um defunto autor,

e a morte dividir igual espaço com a temática social), interpretar as imagens que

dizem respeito às representações da morte em sua vertente real ou simbólica. Para

isso procedemos a uma articulação entre literatura e psicanálise, esta última

comparecendo aqui como instrumento teórico de análise do texto e não como saber

clínico. A literatura é nosso ponto de ancoragem, motivadora do objeto de estudo em

questão. A psicanálise comparece como uma das possíveis ferramentas teóricas

que se prestam à análise dos textos. Tal enlace é plenamente viável, uma vez que

literatura e psicanálise comungam interesses e estão ambas fundamentadas na

subjetividade da linguagem.

É nosso objetivo ainda produzir um trabalho que possa ampliar o

entendimento das análises existentes sobre os textos já mencionados, como

também suprir a lacuna da falta de análises na direção que estamos abordando,

contribuindo assim para uma melhor compreensão da obra de Machado de Assis em

sua riqueza literária. Dessa feita, consideramos as interpretações já conhecidas

sobre os textos mencionados. O que aqui se elabora não é uma contestação e sim

uma constatação de que o texto literário se oferece a inúmeras óticas de leitura.

5É interessante ressaltar que memórias e memorial significam a mesma coisa: lembrança.

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Considerações iniciais

Nessa perspectiva, nosso trabalho utiliza-se do saber psicanalítico para fazer

a leitura das imagens e representações da morte existentes nos já mencionados

textos de Machado de Assis, seja em sua vertente real, seja simbólica. Para

proceder à leitura dos textos escolhidos como corpus deste trabalho, utilizamos as

edições críticas de obras de Machado de Assis e a obra completa organizada por

Afrânio Coutinho. Recorremos à contribuição de críticos, intérpretes literários e

biógrafos, quais sejam, Afrânio Coutinho, Roberto Schwarz, Lúcia Miguel Pereira,

John Gledson, Raimundo Magalhães Júnior, Massaud Moisés, Alfredo Bosi, Luis

Costa Lima, Sílvio Romero e Josué Montello.

Na inter-relação literatura e psicanálise, buscamos a produção de trabalhos

literários nessas mesmas vertentes, o que nos serviu de suporte para referendar a

viabilidade dessa relação interdisciplinar. Destacamos Luis Alberto Pinheiro de

Freitas, Francisco José Gomes Correia, Leila Perrone-Moisés, Giovana Bartucci,

Rafael Andrés Villari, Adélia Bezerra de Meneses, Jean Bellemin-Noël. Como

referência da psicanálise, examinamos, na obra de Sigmund Freud (1856–1939)

tanto os textos que tratam da análise literária, quanto os que abordam o tema da

morte, melancolia e ironia. Eventualmente pesquisamos também as contribuições de

Jacques Lacan (1901-1981), e outros freudianos nessas mesmas vertentes.

Visando a um melhor recurso didático, adotamos a sistematização deste

trabalho em cinco seções primárias, subdividindo-o em sete seções secundárias e

dentro dessas as terciárias, o que resultou na seguinte organização: seção primária

1 Considerações iniciais. Seção primária 2 - a morte: um encontro com o desamparo

- está subdividida em três seções secundárias. 2.1, Anotações da psicanálise e

considerações gerais, apresentamos quatro seções terciárias. 2.1.1, Considerações

psicanalíticas sobre o real da morte, trabalhamos, a partir do percurso de Freud6, a

condição do desamparo humano diante da questão da morte. Está anunciada em

todas as situações de perdas, seja afetiva ou objetais, seja reais ou simbólicas,

marcadas pelo traço da transitoriedade que há em todas as coisas.

6 O percurso freudiano aqui utilizado não é o cronológico, mas de acordo com a melhor aplicação do texto para o objetivo a ser fundamentado. Indicaremos sempre o ano de origem da elaboração do texto entre colchetes, [ ], seguido da página da edição que estamos utilizando. Todas as citações são das Obras completas, edição Standard brasileira – Rio de Janeiro: Imago, 1990. Reconhecemos os erros de tradução da edição brasileira (não feita direta do alemão) e consultamos o mesmo texto na edição da Amorrortu (traduzida direto do alemão para o espanhol). Porém, no corpo do trabalho, optamos por utilizar o texto em português.

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Considerações iniciais

No percalço dessas questões, abordamos, a seção terciária 2.1.2, Posições

do homem primitivo diante da morte. Utilizamos, como texto-base, Totem e tabu

[1913] pelo fato de haver uma preocupação recorrente de Freud nesse texto com a

herança psíquica do homem moderno, a partir dos modos de organização de vida do

homem primitivo, haja vista que, no inconsciente, não há registro para a

representação da morte (FREUD, [1913] 1990, p. 99), ([1915] 1990, p. 327, p. 335,

p. 338). ([1919] 1990, p. 302). ([1923] 1990, p. 75).

Na terciária 2.1.3, O medo da morte: a incógnita humana, usamos

inicialmente o texto de Ernest Becker (A negação da morte, 1973) e o diálogo deste

com o texto freudiano sobre o medo humano referente ao encontro com a morte. Em

continuidade, retomamos em Freud os primeiros textos que instauram o conceito de

pulsão7, para melhor compreendermos o conceito de pulsão de morte, desenvolvido

em 1920, que se torna, a partir de então, determinante e fundamental na psicanálise.

Na terciária 2.1.4, Breve percurso: contextualizando a morte, percorremos

brevemente os principais recortes de períodos históricos, situando o lugar da morte

em cada momento. A marca do ritual funerário em todos os períodos de vida da

humanidade infere que há um caráter universal nessa prática, portanto marcante em

revelar um modo de pensar e representar a incógnita da morte. Usamos, como

textos-base, os trabalhos de Edgan Morin8 e Philippe Ariès9.

Na seção secundária 2.2, Melancolia: uma face da morte, estudamos a

melancolia, situando-a como um tipo de morte em vida, a morte do desejo de

reinvestir a libido no novo objeto. Na terciária 2.2.1, Considerações históricas sobre

o tema da melancolia, abordamos breves considerações sobre a trajetória do afeto

da melancolia ao longo dos principais momentos da história humana, em função de

ser, a expressão desse afeto, tão antiga quanto a construção histórica da

humanidade. Na terciária 2.2.2, A melancolia como objeto perdido: um encontro com

a morte, apresentamos a posição da psicanálise, referendada no ensino freudiano.

Completamos, quando se fez necessário, com as leituras de Jacques Lacan e outros

freudianos, como Marie-Claude Lambotte e Urania Tourinho Peres.

7 O conceito de pulsão é destaque entre os conceitos fundamentais da psicanálise. Desse modo, entendemos ser relevante acompanhar desde sua primeira formulação [1905] até o desaguar no conceito de pulsão de morte [1920], ainda mais por ser essa última vertente motivadora de águas divisoras no campo da psicanálise. 8 O homem e a morte. 9 O homem diante da morte e A história da morte no ocidente.

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Considerações iniciais

Na seção secundária 2.3, Ironia: possibilidades de dizer o não-dizível, na

terciária 2.3.1, Considerações gerais: rastreando um conceito, na apresentação da

figura de linguagem “ironia”, rastreamos a plasticidade e a evolução de seu conceito,

para melhor entendermos a manifestação de suas inúmeras facetas. Utilizamos o

trabalho de Douglas Mueckle, Ironia e o irônico, e o de Novais Paiva, Contribuições

para uma estilística da ironia. Consultamos também o estudo de Beth Brait, Ironia

em perspectiva polifônica. Na terciária 2.3.2, Ironia: labirinto do discurso,

apresentamos a manifestação dessa figura como uma possibilidade de cindir a

ilusão de linearidade do discurso corrente. Recorremos a Freud e ao trabalho de

Marco Antônio Coutinho Jorge, nessa vertente.

Na seção primária 3 - Literatura e Psicanálise: possibilidades de diálogos -

desenvolvemos seção secundária única 3.1, intitulada Diálogo entre mestres:

Machado de Assis - Sigmund Freud, subdividido em duas terciárias. Na 3.1.1,

dedicamos a ratificar a intersubjetividade já bem referenda em inúmeros trabalhos

existentes nesse campo interdisciplinar. Na 3.1.2, Machado de Assis - Sigmund

Freud: intertextualidades, referendamos a proximidade entre a obra dos dois

mestres, apontando a base de aprendizagem nas grandes obras clássicas e nos

mestres da literatura, havendo em comum a fonte literária e filosófica, tanto quanto a

genial sensibilidade que os tornou ímpares e imortais.

Na seção primária 4 – A Morte na segunda fase romanesca de Machado de

Assis – analisamos os textos desse período, divididos em três seções secundárias,

obedecendo à ordem cronológica de publicação bem como à seqüência de método

narrativo estabelecida pelo autor. Na seção secundária 4.1, Entre o melancólico e o

lúdico: travessias, trabalhamos três seções terciárias assim distribuídos: O 4.1.1,

Rememorando as Memórias póstumas: contextualização, procedemos a uma

retomada das análises mais destacadas do já referido texto, com vistas a situar a

originalidade da narrativa, quanto à temática e à trama desenvolvida.

Na terciária 4.1.2, Revelando a morte: velada entre a ironia e o lúdico,

abordamos a representação da morte física e afetiva, a morte do desejo,

escamoteada pelo discurso lúdico da ironia, tanto quanto pelo da melancolia.

Recorremos ao suporte teórico da psicanálise para apontar a linguagem do delírio

como uma via de acesso de dizer o não possível por outro meio; dizer ludicamente

de nossa “melancólica humanidade”. Na terciária 4.1.3, Humanitismo: neologismo

entre a loucura e a morte, recortamos através da personagem Quincas Borba, o

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Considerações iniciais

discurso do Humanitismo, atravessado nos dois textos (Memórias póstumas de Brás

Cubas e Quincas Borba) as pontuações filosóficas em torno do tema da morte e dos

seus significantes.

Na seção secundária 4.2, Casmurrice: uma presença de morte,

desenvolvemos uma única seção terciária 4.2.1, O que há entre o amor e a morte?

Memórias – luto ou melancolia. Referimos, no texto de Dom Casmurro, a tessitura

sutil do luto em que se estrutura o narrador e sua “fiel” casmurrice vinculada ao signo

da memória; o gozo mórbido alimentado nas reminiscências; a marca cruel da

melancolia. A presença da morte aparece com a força simbólica, bem antes de

efetivar-se na morte real.

Na seção secundária 4.3, A morte - in memorian ao amor, trabalhamos os

dois últimos textos machadianos. Na terciária 4.3.1, Inexplicável feminino: semblante

do amor e da morte, no texto Esaú e Jacó, fazemos o recorte da presença da morte

na impossível escolha de amor, da personagem Flora. Aproximamos aqui a morte e

o feminino, ambos inexplicáveis e sem representação no inconsciente. Na terciária

4.3.2, Memorial: melancolias, “saudades de si mesmo”, damos continuidade, no

Memorial de Aires, à análise da representação da morte, através da trajetória do

narrador-personagem, o Conselheiro Aires. Este, através do diário de notas, se faz

porta-voz das demais personagens, tanto quanto porta-voz de sutil melancolia e

refinada ironia, dissimulada no inevitável encontro com as “saudades de si mesmo”,

peculiar ao destino humano. Na seção primária 5, apresentamos as Considerações

finais.

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A morte: um encontro com o desamparo

SEÇÃO II

A MORTE: UM ENCONTRO COM O DESAMPARO

O Dia da Morte - 1859 - William-Adolphe Bouguereau (1825-1905)

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A morte: um encontro com o desamparo

ANOTAÇÕES DA PSICANÁLISE E CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE A MORTE

• Considerações psicanalíticas sobre o real da morte.

• Posições do homem primitivo diante da morte.

• O medo da morte: a incógnita humana.

• Breve percurso: contextualizando a morte.

O Triunfo da Morte ou Os 3 Destinos - Tapiz Flamenco – 1510-1520

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A morte: um encontro com o desamparo

2.1.1 Considerações psicanalíticas sobre o real da morte.

Não seria melhor dar à morte o lugar na realidade e em nossos pensamentos que lhe é devido, e dar um pouco mais de proeminência à atitude inconsciente para com a morte, que, até agora, tão cuidadosamente suprimimos? (Sigmund Freud).

Ao escolhermos falar do tema da morte, deparamo-nos com questões que

exigem o anteparo de diversas referências de saber. É uma argumentação que só

consegue ser construída a partir de certo ponto de vista - filosófico, religioso,

científico, sociocultural, psicanalítico, ou criativo e diverso campo das artes e suas

representações. Ou, melhor dizendo, o enigma da morte coloca-nos diante de uma

questão só possível de ser falada ou representada, para melhor sustentar a

imprecisão de uma resposta que não atende à dimensão da demanda a ela

formulada.

Uma vez produzidas tais respostas, jamais esgotam o tema, dando lugar a

novas indagações que fazem circular, entre os mais diversos campos do saber,

inúmeras e novas formulações. O esforço de apreensão do tema, e toda produção

alinhada nesse sentido, só atingem uma construção imaginária10. Dessa feita, só

aponta para o que é peculiar à estrutura humana, a tentativa freqüente de respostas

que apazigúem seu desamparo frente à efemeridade da existência. O caráter

inequívoco de parcialidade de toda produção ao tema referido não satisfaz a

inquietação humana, expõe sua marca de incompletude na vida e mobiliza a

sedução de novas construções para acalmar esse “mal estar”.

Aprendemos no exemplo de Sigmund Freud o quão produtivo é sustentar

uma questão e fazer circular, sobre esta, diversas referências do saber instituído,

fazendo vacilar a certeza e a precisão, para construir uma verdade com caráter de

subjetividade. Ao abrir mão de uma resposta que acalmasse a inquietação da

medicina de sua época, sobre a causa da histeria, Freud pôde criar os pilares da

10 O termo imaginário está referido ao lugar da ilusão; do engodo do sujeito. Lacan definiu o Imaginário atrelado ao Simbólico e ao Real (nó borromeano) como três ordens que estruturam o inconsciente.

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A morte: um encontro com o desamparo

psicanálise e descobrir mais um dos desamparos humanos, a constatação de que “o

eu não é senhor nem mesmo em sua própria casa, devendo, porém, contentar-se

com escassas informações acerca do que acontece inconscientemente em sua

mente” (FREUD, [1916] 1990, p. 336). A esse desamparo, Freud nomeou como o

“terceiro grande golpe” sofrido pelo saber do “ingênuo amor-próprio dos homens”,

um golpe no narcisismo. O primeiro foi descobrir que a criatura humana não vive no

centro do universo; o segundo, que sua ascendência é evolutiva do reino animal,

portanto, não é a imagem e nem a semelhança do Criador, de acordo,

respectivamente, com as teses de Copérnico (1453-1543) e Darwin (1809-1882).

(FREUD, [1916] 1990, p. 336).

Com a descoberta do inconsciente, a psicanálise inaugura uma nova relação

com o saber e um novo modo de pensar o ser humano, que vai de encontro à

concepção centrada na razão e na consciência. Introduz-se operando uma ruptura

com a vertente de saber do ponto de vista da lógica cartesiana11, produzindo assim

um saber próprio, “um saber em posição de verdade” (QUINET, 1991, p. 10), saber

afetado pela subjetividade e uma verdade sem caráter de exatidão, mas a verdade

do sujeito. “A verdade é, finalmente, o encontro sempre faltoso com um real que não

consegue designar, no discurso, senão como ponto de umbigo, lacuna,

representação faltosa” (ANDRÉ, 1994, p. 09).

“A descoberta freudiana do inconsciente é a de que ele tem leis e comporta

desejo, sobre o qual nem sempre o sujeito quer saber” (QUINET, 2003, p. 21).

Pensar o ser humano a partir da perspectiva do inconsciente é retirá-lo da posição

de indivíduo, do plano do “penso, logo sou”, para o plano do “penso onde não sou,

logo sou onde não me penso”. (LACAN, 1998, p. 521 e 1988, p. 3912). É implicá-lo

em sua cisão de agente e, ao mesmo tempo, de (a)sujeitado, afetado em seu

discurso por lacunas e manifestações conscientes que necessitam buscar respostas

no Outro13, no sujeito do inconsciente. “Essas lacunas vão trazer para o primeiro

11 René Descartes (1596–1650) é reconhecido como o fundador da filosofia moderna. Suas teorias baseadas na física e na matemática inauguram o “Racionalismo Continental”, que se contrapôs ao empirismo reinante em sua época. Sua máxima de maior destaque “je pense, donc je suis” (Penso, logo existo) foi publicada pela primeira vez no Discurso sobre o método [1637], expressão que fundamenta a racionalidade e pela qual se tornou conhecido. 12“É aqui que se revela a dessimetria entre Freud e Descartes. Ela não está de modo algum no encaminhamento inicial da certeza fundada do sujeito. Ela se prende a que, nesse campo do inconsciente, o sujeito está em casa. E é porque Freud lhe afirma a certeza, que se faz o progresso pelo qual ele muda o mundo para nós” (LACAN, 1988, p. 39). 13 O termo “Outro” grafado com letra maiúscula tem sentido de grande Outro (pode ser usado também com a grafia A). Designa um lugar simbólico (Tesouro dos significantes; o lugar onde o significante

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A morte: um encontro com o desamparo

plano da investigação psicanalítica aquilo que Lacan, seguindo Freud, chamou de

formações do inconsciente: o sonho, o lapso, a ato falho, os chistes e os sintomas”

(GARCIA-ROZA, 1994, p. 171).

Seguindo o rastro da invenção freudiana, acatamos sua posição sobre o

estado de desamparo original do ser humano. Biologicamente o animal humano

deixa a vida intra-uterina com o processo de maturação inacabado. Nessa medida a

inscrição humana no mundo se faz a partir de perdas. Nascer é sair de um local

imaginariamente ideal e encontrar um estranho mundo simbolicamente já

constituído, ficando o recém-nascido na dependência de um outro primordial que

responda por este despreparo; que o tome enquanto objeto de desejo, possibilitando

assim que ele se estruture psiquicamente como sujeito. A eficácia dessa

estruturação é ainda marcada por uma queda necessária desse lugar de objeto

desejado, para que o pequeno humano advenha como desejante, inscrevendo-se

como sujeito. Nessa perspectiva, a tentativa de elaboração em torno de uma perda é

uma questão, desde a origem, cotidiana do enfrentamento humano, dividindo-o entre

elaborar ou não o luto dessas perdas.

Defensor da idéia do desamparo humano, Freud se manteve irredutível nesse

ponto de vista do começo ao fim dos seus estudos e escritos. No texto O futuro de

uma ilusão [1927], analisando os caminhos da civilização e a relação humana nessa

trajetória, aponta os extremos dessa fragilidade, peculiar à cultura primitiva tanto

quanto à civilizada. Destaca ele:

Há os elementos que parecem escarnecer de qualquer controle humano: a terra, que treme, se escancara e sepulta toda a vida humana e suas obras; a água, que inunda e afoga tudo num torvelinho; as tempestades, que arrastam tudo o que se lhes antepõe; as doenças, que só recentemente identificamos como sendo ataques oriundos de outros organismos, e, finalmente, o penoso enigma da morte, contra o qual remédio algum foi encontrado e provavelmente nunca será. É com essas forças que a natureza se ergue contra nós, majestosa, cruel e inexorável; uma vez mais nos traz à mente nossa fraqueza e desamparo, de que pensávamos ter fugido através do trabalho de civilização (FREUD, [1927] 1990, p. 27 grifo nosso).

Na essência de cada um desses elementos citados, percebe-se a correlação

de forças desiguais na relação do homem com o seu meio, seja o primitivo seja o

advém), a lei, a linguagem, o inconsciente. Lacan assim o designou estabelecendo diferença ao outro (com minúscula) que se refere ao semelhante, à relação especular imaginária.

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A morte: um encontro com o desamparo

dito civilizado. A manifestação exacerbada de todos esses elementos culmina no

inevitável confronto de ordem singular, que diz respeito ao encontro com a morte,

que reedita freqüentemente a necessidade subjetiva de cada ser, desamparado

mortal, construir sua verdade e buscar respaldos que a referendem no cabedal de

saberes disponíveis.

A morte, como traço último de tudo que vive, se antecede, na marca

transitória que há em todos os elementos marcados por vida, seja vegetal seja

animal. Ou mesmo em objetos cuja materialidade apresente fragilidade em sua

consistência. No texto intitulado Sobre a transitoriedade [1915], Freud narra um

passeio através dos campos, na companhia “de um amigo taciturno e um poeta.”14

Fala do estado de espírito melancólico do referido poeta, em como a beleza da

paisagem não conseguia fazê-lo contentar-se para que dela pudesse usufruir.

“Perturbava-o o pensamento de que toda aquela beleza estava fadada à extinção,

de que desapareceria quando sobreviesse o inverno, como toda a beleza humana e

toda a beleza e esplendor que os homens criaram ou poderão criar” (FREUD, [1915]

1990, p. 345). Refletir sobre a transitoriedade de todas essas coisas é em certa

medida deparar-se com o desamparo da limitação humana. É reconhecer a

incapacidade de controlar a evanescência peculiar à vida. É confrontar-se com um

encontro prévio da crueza da morte.

Freud discute nesse texto as reações que a constatação da transitoriedade

pode causar na mente humana e destaca dois impulsos diferentes: um de desalento,

a exemplo do seu amigo poeta, e outro de revolta e negação contra um fato provado

na realidade. Em sua exacerbada rejeição, o “taciturno” expressa: “Não! É

impossível que toda essa beleza da natureza e da arte, do mundo de nossas

sensações e do mundo externo, realmente venha a se desfazer em nada” (FREUD,

[1915] 1990, p. 345). Freud confessa sua dificuldade em argumentar com seu amigo,

mas apresenta um terceiro impulso da mente frente a essa questão. Nos diz ele:

Mas essa exigência de imortalidade, por ser tão obviamente um produto dos nossos desejos, não pode reivindicar seu direito à realidade; o que é penoso pode, não obstante, ser verdadeiro. Não vi como discutir a transitoriedade de todas as coisas, nem pude insistir numa exceção em favor do que é belo e perfeito. Não deixei, porém, de discutir o ponto de vista pessimista do poeta do que a transitoriedade do que é belo implica uma perda de seu valor.

14 As identidades do amigo e do poeta não foram reveladas por Freud.

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A morte: um encontro com o desamparo

Pelo contrário, implica um aumento! O valor da transitoriedade é o valor da escassez do tempo. A limitação da possibilidade de uma fruição eleva o valor dessa fruição. Era incompreensível, declarei, que o pensamento sobre a transitoriedade da beleza interferisse na alegria que dela derivamos (FREUD, [1915] 1990, p. 345).

A necessidade humana de assegurar-se imortal, ou seja, de superar sua

transitoriedade, remete às mais diversas reações psíquicas, entre as quais reagir

negando o que a realidade impõe como verdade, reagir negando-se a usufruir o

belo, para escapar a sua efemeridade, ou ainda elaborar esse luto e aceitar que tudo

é transitório, sendo a própria condição humana parte dessa verdade que pode ser

constatada cotidianamente. “A beleza da forma da face humana desaparece para

sempre no decorrer de nossas próprias vidas; sua evanescência, porém, apenas

lhes empresta renovado encanto. Uma flor que dura apenas uma noite nem por isso

nos parece menos bela” (FREUD, [1915] 1990, p. 346). A busca por imortalidade

pode ainda se fazer presente na produção artística, na criação humana que

sobrevive como registro de história de vidas e constitui uma insígnia de existência,

em determinada fração de tempo, marcando épocas.

Ainda nesse texto Sobre a Transitoriedade, Freud faz uma analogia entre

essa reação pessimista de seus amigos frente ao transitório e o que desse conteúdo

apontava para o luto. “A idéia de que toda essa beleza era transitória comunicou a

esses dois espíritos sensíveis uma antecipação de luto pela morte dessa mesma

beleza...” (FREUD, [1915] 1990, p. 346). O que se abre como evidência é uma

reação frente à constatação do desamparo humano diante de perdas, estas como

sinalizadoras da morte. Se para o leigo essas reações podem ser percebidas como

algo natural, “para os psicólogos, porém, o luto constitui um grande enigma, um

daqueles fenômenos que por si só não podem ser explicados, mas a partir dos quais

podem ser rastreadas outras obscuridades” (FREUD, [1915] 1990, p. 346).

Rastreando obscuridades, Freud se debruça nas situações que se

apresentaram em sua época e na emergência das questões por elas suscitadas.

Defrontando-se com a situação avassaladora da primeira guerra (1914-1919) e a

alarmante realidade da morte, escreve sobre essa “desilusão”. Elaborou, em 1915, o

texto Reflexões para os tempos de guerra e morte, dividindo-o em duas partes: a

primeira, dedicada a falar da “Desilusão da guerra”, momento em que analisa a

posição humana na cultura civilizada e a situação desumana da guerra. Na segunda

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28

A morte: um encontro com o desamparo

parte, fala sobre “Nossa atitude para com a morte”. É essa parte que detalhamos

com maior interesse, a partir do que é ressaltado de posição subjetiva frente à

situação de morte15.

A experiência de guerra16, ou de qualquer calamidade coletiva, ao colocar a

morte de forma emergente e em massa, exige elaborações urgentes e pautadas em

princípios externos de bem ou mal comuns a um determinado grupo. Divide a

percepção subjetiva que se tem da morte como fato fortuito, ocorrido ocasionalmente

em algum momento estanque da vida de alguém, para uma catástrofe de dor

generalizada que a realidade impõe como verdade concreta. “As pessoas realmente

morrem, e não mais uma a uma, porém muitas, freqüentemente dezenas de

milhares, num único dia. E a morte não é mais um acontecimento fortuito” (FREUD,

[1915] 1990, p. 329). Fora das experiências de calamidade coletiva, a atitude

humana à situação de morte é de não enfrentamento. Embora reconhecida como fim

último, destino natural de todo vivente, pensar a possibilidade de morte é

sobremaneira um pensamento adiado ou falado indiretamente. Essa divisão de

sentimentos é bem trabalhada por Freud nesse contexto de guerra e apresentada na

seguinte versão:

Revelávamos uma tendência inegável para pôr a morte de lado, para eliminá-la da vida. Tentávamos silenciá-la; na realidade, dispomos até mesmo de um provérbio [em alemão]: ‘pensar em alguma coisa como se fosse à morte’. Isto é como se fosse nossa própria morte, naturalmente. De fato, é impossível imaginar nossa própria morte e, sempre que tentamos fazê-lo, podemos perceber que ainda estamos presentes como espectadores. Por isso a escola psicanalítica pôde aventurar-se a afirmar que no fundo ninguém crê em sua própria morte, ou dizendo a mesma coisa de outra maneira, que no inconsciente cada um de nós está convencido de sua própria imortalidade17 (FREUD, [1915] 1990, p. 327).

15 Para Edgar Morin, é nos períodos de guerra que as sociedades se coagulam, se endurecem para resistir e vencer. Resumindo, é nos períodos de morte que a morte se apaga, que as preocupações com a morte desaparecem. A paz e a vida tranqüila, quando se distendem os laços sociais, vêem reaparecer o medo e o estremecimento individual. Então a idéia da morte corrói o indivíduo que voltou a encontrar seus contornos (MORIN, 1997, p. 43). 16 O estado de guerra é o exemplo universal (e contemporâneo) da dissolução da presença da morte devido à predominância da afirmação da sociedade sobre a afirmação da individualidade. O estado de guerra provoca uma mutação geral da consciência da morte. Pouco sensível quando a sociedade está fixada historicamente num tipo militar, como a Esparta dos séculos V e IV a.C., o Dahomey antes da conquista, o império Inca, ou quando o perigo a determina por um período mais ou menos longo num tipo obsidional, esta mutação é tanto mais considerável quando as estruturas liberais de paz se transformam em estrutura de guerra (MORIN, 1997, p. 41). 17 Edgar Morin comenta essa afirmação de Freud da seguinte maneira: “A ‘imortalidade’ à qual Freud faz alusão não é a mesma imortalidade das crenças na vida futura, que, cabe repetir, implicam o reconhecimento da morte. É uma ‘amortalidade’ anterior a este reconhecimento, anterior ao indivíduo,

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A morte: um encontro com o desamparo

A situação de morte, ou do enigma em torno de sua verdade, traz uma

freqüente convocação à busca de explicações à evidência dessa realidade. É

comum a necessidade de fatos justificáveis para a causa mortis, como se, dessa

feita, acalentasse sua emergência ou negasse a veracidade dessa ocorrência como

encontro marcado, ainda que, em algum tempo não determinado, mas inevitável a

todo vivente. “Nosso hábito é dar ênfase à causação fortuita da morte - acidente,

doença, infecção, idade avançada; dessa forma, traímos um esforço para reduzir a

morte de uma necessidade para um fato fortuito” (FREUD, [1915] 1990, p. 328).

Essa situação é ainda mais avassaladora quando a morte em questão diz

respeito a alguém que é amado, seja do ponto de vista parental seja em caso de

amizade com similar valor de investimento afetivo. Entramos num estado de luto que

leva a um lamento pelo ente que foi perdido, tanto quanto uma certa precaução com

os riscos que podemos vir a correr com nossa integridade física. “Assim, a tendência

de excluir a morte de nossos projetos de vida traz em seu rastro muitas outras

renúncias e exclusões” (FREUD, [1915] 1990, p. 329). Os questionamentos impostos

ao “Eu” nas ocasiões de calamidade, onde a realidade impõe sua verdade numa

crueldade sem medidas, conduzem à procura de soluções para escapar da invasão

brutal feita pelo estado de luto. Uma das soluções apresentadas por Freud diz

respeito à busca de suporte no mundo ficcional.

Constitui resultado inevitável de tudo isso que passemos a procurar no mundo da ficção, na literatura e no teatro a compreensão pelo que se perdeu na vida. Ali encontramos pessoas que sabem morrer – que conseguem inclusive matar alguém. Também só ali pode ser preenchida a condição que possibilita nossa reconciliação com a morte: a saber, que por detrás de todas as vicissitudes da vida devemos ainda ser capazes de preservar intacta uma vida, pois é realmente muito triste que tudo na vida deva ser como num jogo de xadrez, onde um movimento em falso pode forçar-nos a desistir dele, com a diferença, porém, de que não podemos começar uma segunda partida, uma revanche (FREUD, [1915] 1990, p. 329).

acrescentaríamos. O inconsciente é um conteúdo: neste conteúdo se misturam a cegueira animal à morte e o desejo humano de imortalidade” (MORIN, 1997, p. 62, grifo do autor).

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A morte: um encontro com o desamparo

Certamente o campo da representação das artes, como expressão do fazer e

sentir humanos, promove uma forte identificação entre o mundo ficcional e a

realidade do contexto em vigor. De igual modo, em diferentes proporções, atua

subjetivamente, “sob forma de ideais e criações artísticas, isto é, as satisfações que

podem ser derivadas dessas fontes” (FREUD, [1927] 1990, p. 24). Oferece farto

campo de análise e laboratório preciso de revelações de inúmeras questões

singulares ao ser humano. Freud revelou-se um fiel apreciador do campo das artes,

destacando especial ênfase à literatura. Utilizou amplamente o conhecimento da

literatura como base na elaboração de conceitos fundamentais à teoria psicanalítica.

No texto O Estranho [1919], propondo-se a investigar o tema da estética, e

essa não apenas associada à “teoria da beleza, mas à teoria das qualidades do

sentir” (FREUD, [1919] 1990, p. 275), Freud conduz a investigação para o campo da

ambivalência provocada pelo que é “estranho”; motivador de sentimentos “atraentes

e sublimes”, tanto quanto de repulsa e aflição. Encontra no estudo lingüístico e

conceitual da palavra “estranho” o duplo que a palavra condensa, entendendo que “o

estranho é aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho

e a muito familiar” (FREUD, [1919] 1990, p. 277). E, mesmo assim, não passível de

explicação imediata. Na aplicação desse estudo ao texto literário, encontra fértil

campo nas narrativas fantásticas, destacando detalhada análise em textos de E.T.A.

Hoffmann18 e citando exemplos na escrita de William Shakespeare.

Freud destaca nos textos de Hoffmann os temas que apontam para o

fenômeno do “duplo”. Refere-se a um estudo de Otto Rank19 sobre esse tema, para

exemplificar, nos traços estruturais das personagens dos contos, algo que é peculiar

à estrutura humana. Ressalta o “duplo” como uma repetição; uma incessante busca

humana por assegurar a imortalidade. “Essa invenção de duplicar como defesa

contra a extinção tem sua contraparte na linguagem dos sonhos... [...] o mesmo

desejo levou os antigos egípcios a desenvolverem a arte de fazer imagens do morto

em materiais duradouros” (FREUD, [1919] 1990, p. 293).

18 A narrativa citada e analisada nesse texto é “O homem da areia”; o conto “Elixir do diabo” é apenas citado como exemplo para o tema do “estranho”. No decorrer desse trabalho Freud faz referências a outros escritores e recortes de poemas, principalmente em Goethe. 19 “O tema do ‘duplo’ foi abordado de forma muito completa por Otto Rank (1914). Ele penetrou nas ligações que o ‘duplo’ tem com reflexos, com sombras, com os espíritos guardiões, com a crença na alma e com o medo da morte; mas lança também um raio de luz sobre a surpreendente evolução da idéia. Originalmente , o duplo era uma segurança contra a destruição do ego, uma ‘enérgica negação do poder da morte’, como afirma Rank; e, provavelmente, a alma ‘imortal’ foi o primeiro duplo do corpo (FREUD, [1919] 1990, p. 293 grifo nosso).

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A morte: um encontro com o desamparo

Essa tentativa de imortalidade pelo poder do ‘duplo’, Freud relaciona ao

aspecto infantil do narcisismo primário, também comum ao modo de pensar do

homem primitivo. Com essa fase mental superada20, a idéia do ‘duplo’ atua

realmente em segmento dual e insurge em caráter inverso. “Depois de haver sido

uma garantia de imortalidade, transforma-se em estranho anunciador da morte”

(FREUD, [1919] 1990, p. 294). Essa relação dual presente no processo da

repetição21 (marcante no duplo) pode evocar a sensação de estranheza, também

comum na sensação de desamparo.

“O estranho”22, nessa vertente do que é familiar e de igual modo

desconhecido, permeia o campo de aspectos não explicáveis por si mesmos. Na

série de eventos motivadores de efeitos “estranhos”, o pensamento “animista”23

ganha destaque. “Muitas pessoas experimentam a sensação, em seu mais alto grau,

em relação à morte e aos cadáveres, ao retorno dos mortos e a espíritos e

fantasmas” (FREUD, [1919] 1990, p. 301). Nesse aspecto, a relação entre o homem

e a morte resgata resíduos do pensamento do homem primitivo. Nas palavras de

Freud,

Dificilmente existe outra questão, no entanto, em que as nossas idéias e sentimentos tenham mudado tão pouco desde os primórdios dos tempos, e na qual formas rejeitadas tenham sido tão completamente preservadas sob escasso disfarce, como a nossa relação com a morte. Duas coisas contam para o nosso conservadorismo: a força da nossa reação emocional original à morte e a insuficiência do nosso conhecimento científico a respeito dela (FREUD, [1919] 1990, p. 301).

20 “A idéia do ‘duplo’ não desaparece necessariamente ao passar o narcisismo primário, pois pode receber novo significado dos estádios posteriores do desenvolvimento do ego” (FREUD, [1919] 1990, p. 294). 21 Sobre o estranho e o processo de repetição, Freud cita um exemplo retirado do poema de Schiller baseado em Heródoto. A história do “O anel de Polícrates” (FREUD, [1919] 1990, p. 298). 22 Freud destaca duas considerações para explicar a sensação do “estranho”. “Em primeiro lugar, se a teoria psicanalítica está certa ao sustentar que todo afeto pertencente a um impulso emocional, qualquer que seja a sua espécie, transforma-se, se recalcado, em ansiedade, então entre os exemplos de coisas assustadoras, deve haver uma categoria em que o elemento que amedronta pode ser algo recalcado que retorna. Essa categoria de coisas assustadoras construiria então o estranho; e deve ser indiferente a questão de saber se o que é estranho era, em si, originalmente assustador ou se trazia algum outro afeto. Em segundo lugar, se é essa, na verdade, a natureza secreta do estranho, pode-se compreender por que o uso lingüístico estendeu das heimliche [‘homely’ (‘doméstico, familiar’)] para o seu oposto, das unheimliche; pois esse estranho não é nada novo ou alheio, porém algo que é familiar e há muito estabelecido na mente, e que somente se alienou desta através do processo de recalque” (FREUD, [1919] 1990, p. 300). 23É um sistema de pensamento que permite apreender todo o universo como uma unidade isolada, de um ponto de vista único (FREUD, [1913] 1990, p. 99). E de modo específico: crença do homem primitivo na presença dos espíritos habitando o mundo dos vivos; no poder da magia e na onipotência dos pensamentos. (FREUD, [1919] 1990, p. 300).

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A morte: um encontro com o desamparo

Nesse impasse da complexidade de eventos não explicáveis de maneira

precisa e exata, o enigma da morte e os efeitos desse (des)conhecimento têm

destaque na psique humana. A cultura, pela criatividade da arte, proporciona meios

alternativos, que funcionam como possibilidades de elaborar e expressar esses

conteúdos provocadores de “estranhas” sensações. Do arcabouço rudimentar dos

primeiros registros rupestres à evolução do mundo “civilizado”, a criação artística

tem uma escrita fundamental na revelação do sentimento humano e suas

interrogações. A literatura, como uma vertente dessa manifestação escrita, para a

expressão de sentimentos pelo campo do imaginário, comparece como uma ampla e

profícua representação.

2.1.2 Posições do homem primitivo frente à morte.

O homem primevo assumia uma atitude notável em relação à morte. Longe de ser coerente, era, na realidade altamente contraditória. Por um lado, encarava a morte seriamente, reconhecia-a como o término da vida, utilizando-a nesse sentido; por outro, também negava a morte e a reduzia a nada (Sigmund Freud).

Buscando formulações a tantas indagações postas pela realidade fronteiriça

de vida e morte, subjacentes à calamidade da guerra, Freud retoma pontos de sua

investigação da posição do homem primitivo24 diante da morte, trabalhadas, no texto

Totem e tabu 25 [1913]. Nesse texto, revisando pesquisa antropológica26, ele explora

24 Entenda-se por primitivo o modo de organização tribal ou ainda referente à primeira formação grupal de vida coletiva. 25 Totem e tabu é um texto de destaque na obra freudiana, tanto quanto polêmico à época de seu lançamento. Publicado inicialmente na revista Imago, depois em livro sem sofrer alterações [1913]. Dividindo-se em quatro partes (O horror ao incesto; Tabu e ambivalência; Animismo, magia e a onipotência de pensamentos e O retorno do totemismo na infância), Freud explica, através da criação do mito da horda primeva e do assassinato do pai, o totemismo, a exogamia e a proibição do incesto como modelos comuns à origem social e às religiões monoteístas. 26 Entre as obras pesquisadas, Freud destaca os trabalhos de Herbert Spencer, J.G. Frazer, Andrew Lang, E.B. Tylor e Wilhelm Wundt e ainda a referência de outros trabalhos citados por eles. Não fomos a esses trabalhos nos originais, por dois motivos: primeiro, a dificuldade prática de acesso e

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A morte: um encontro com o desamparo

o perfil de organização das sociedades primitivas, privilegiando suas crenças e

retomando os pontos convergentes no psiquismo humano que remonta há épocas.

Para Freud, o homem primevo continua a contar sua história nas marcas deixadas

nos monumentos, nos vestígios da arte, mitos e contos que a tradição preserva, “e

através das relíquias de seu modo de pensar que sobrevivem em nossas maneiras e

costumes. A partir disso, porém, num certo sentido, ele ainda é nosso

contemporâneo” (FREUD, [1913] 1990, p. 20). Ou, a estrutura da psique humana

não se afetou tanto em sua essência pela evolução civilizadora27, e essa não tem

sido suficiente para demarcar diferença tão significativa diante do enigma da morte.

Os costumes dos povos primitivos que Freud privilegiou para análise estão

inseridos numa sociedade de modelo totêmico de organização, distribuído em clãs

que convivem independentes da localidade territorial. O totem28 é a marca do clã

reconhecida e assumida por cada um de seus membros que vivem em torno desse

elo afetivo determinante de suas ações. Fazem, a partir dele, as leis29 vigentes, as

responsabilidades sociais, as crenças e as restrições, tanto quanto suas punições,

situação que coloca as primeiras comunidades frente a duas questões antigas e

bem contemporâneas: a culpa e a necessidade de expiação. A morte era a forma

punitiva mais aplicada, tanto a inimigos, quanto como expiação por infração da

norma vigente entre os integrantes do clã. O rigor da lei podia se fazer cumprir pelo

grupo social, assim como podia se efetivar (in)diretamente no fato do próprio culpado

se deixar consumir pelo efeito mágico da palavra punitiva, que culminava em sua

própria morte30.

manuseio dessas obras e, segundo, porque o nosso interesse é no pensamento de Freud sobre o tema e não na pesquisa original. 27 Entenda-se essa diferença entre sociedade primitiva e sociedade civilizada referente ao conjunto de sistemas simbólicos inerentes a cada período (sem julgamento de valor), mas em como cada um desses sistemas, evidentemente, afeta não apenas o modo de vida, como também a estrutura da formação psíquica humana. 28 O totem é um antepassado comum do clã; ao mesmo tempo, é o seu espírito guardião e auxiliar, que lhe envia oráculos, e, embora perigoso para os outros, reconhece e poupa os seus próprios filhos. Em compensação, os integrantes do clã estão na obrigação sagrada (sujeita a sanções automáticas) de não matar nem destruir o seu totem e evitar comer sua carne (ou tirar proveito dele de outras maneiras). (FREUD, [1913] 1990, p. 21) 29 As duas principais leis da religião totêmica dizem respeito à proibição da morte do totem e ao incesto. Freud faz a analogia dessa interdição ao crime do mito de Édipo e reforça sua tese do “complexo de Édipo” na origem da formação social. 30Nos casos flagrantes, em que o sujeito não está doente, em que ‘ele apenas se crê, por razões precisas, em estado próximo da morte’ por ter violado o tabu ou cometido um ato sacrílego, o corpo obedece por si mesmo à ordem mágica, e morre sem resistência, sem revolta. A afirmação da ‘consciência coletiva’ está tão presente na consciência individual, que o sacrílego, mesmo involuntário, realiza por si mesmo o decreto de morte implicado na violação do tabu (MORIN, 1997, p. 40).

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A morte: um encontro com o desamparo

As interpretações freudianas, seguindo o rastro das pesquisas etnológicas31,

conduzem a noções de que a posição do homem primitivo, diante da morte,

revelava-se ambígua. As atitudes exteriorizadas eram contraditórias dependendo da

relação do morto e de seu status afetivo com os sujeitos envolvidos na causa da

morte. As reações dos sentimentos diferenciavam-se dependendo de quem fosse o

morto: se inimigo, amigo, familiar ou, ainda, na maneira de como enfrentar a

realidade factual da morte do próprio sujeito. Diante do inimigo assassinado havia

júbilo; em se tratando da perda de pessoas queridas, o sentimento era de

estranheza (culpa, dor e luto). A injunção de sentimentos ambivalentes, diante de um

mesmo fato, demandou meios para o enfrentamento da realidade conflitante do

enigma da morte. Segundo Freud,

O homem já não podia manter a morte à distância, pois a havia provado em sua dor pelos mortos; não obstante, não estava disposto a reconhecê-la, porquanto não podia conceber-se a si próprio como morto. Assim idealizou um meio termo: admitiu também o fato de sua própria morte, negando-lhe, porém, o significado de aniquilamento – significado que ele não tivera motivo para negar no que dizia respeito à morte de seu inimigo. Foi ao lado do cadáver de alguém amado por ele que inventou os espíritos, e seu sentimento de culpa pela satisfação, mesclado à sua tristeza, transformou esses espíritos recém-nascidos em demônios maus que tinham que ser temidos. As modificações [físicas] acarretadas pela morte lhe sugeriram a divisão do indivíduo em corpo e alma. Dessa maneira, seu encadeamento de pensamento corria paralelo ao processo de desintegração que sobrevém com a morte (FREUD, [1915] 1990, p. 332).

O reconhecimento da morte acontecia, então, simultâneo a uma negação. Na

impossibilidade de lidar com a noção do aniquilamento do próprio “eu”, foi

necessário preservar a imortalidade do outro e conservá-lo vivo de algum modo.

Mantinha-se a memória do morto, aceitando-se a divisão entre um corpo e uma

alma, como fórmula para negar o estado real de decomposição do corpo e

assegurar-lhe assim uma continuidade de vida. A dificuldade humana (primitiva) em

lidar com a ambigüidade de sentimentos provocada pela ausência corporal deixada

pelos entes queridos motivou a gênese de uma vida para além da matéria. “Sua

persistente lembrança dos mortos tornou-se a base para a suposição de outras

31 A etnologia é o ramo da antropologia que estuda os aspectos culturais dos povos (a divisão em raças, as origens e distribuição geográfica) do ponto de vista comparativo e analítico.

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A morte: um encontro com o desamparo

formas de existência, fornecendo-lhe a concepção de uma vida que continua após a

morte aparente” (FREUD, [1915] 1990, p. 332).

Essas concepções foram se estruturando gradativamente e ganhando forma

no arsenal de crenças que a necessidade humana utiliza (historicamente) para

suportar a dor das perdas. O aperfeiçoamento dessa convicção firmou-se e

desenvolveu-se ao longo dos tempos nos diversos credos religiosos, em nome da

promessa de uma vida pós-morte mais aprazível. A transitoriedade da vida

fisiológica fica compreendida como preparação a essa outra vida futura. Essas

elaborações corroboram “com a finalidade de despojar a morte de seu significado de

término da vida. Assim, a origem da negação da morte como uma ‘atitude

convencional e cultural’ remonta aos tempos mais antigos” (FREUD, [1915] 1990, p.

334). A dor pela perda de pessoas amadas motivou a crença na divisão humana em

uma vida dupla que sobrevive para além do corpo físico; uma porção etérea que

extrapola a decomposição biológica, aguçando o imaginário do ideal humano por

imortalidade.

Analisando a necessidade humana em assimilar os fenômenos percebidos

como inexplicáveis para assim poder situar-se em relação aos mesmos, Freud cita

Wilhelm Wundt. Ele declara que as especulações demandadas pelo não

compreensível ao saber do homem primitivo reverberaram num incessante pedido

de resposta e atuaram como “produto psicológico necessário de uma consciência

mitocriadora”. Ou, dito de outro modo, a inquietação humana para compreender o

que se constitui como inexplicável motivou a criação de um mito que responda pelo

fenômeno. Freud acrescenta; “a raça humana, se seguirmos as autoridades no

assunto, desenvolveu, no decurso das eras, três grandes representações do

universo: a animista (ou mitológica), religiosa e científica” (FREUD, [1913] 1990, p.

99).

A incógnita apresentada pela realidade da morte é apontada como uma das

principais hipóteses ao desenvolvimento da primeira grande representação humana

pela “consciência mitocriadora”32. O desenvolvimento dessa “consciência” aprimorou

um “sistema de pensamento”, conhecido como animista ou mitológico, que responde

por uma compreensão do mundo a partir de um único ponto de vista (FREUD, [1913]

1990, p. 99). “O animismo, em seu sentido mais estrito, é a doutrina de almas e, no

32( WUNDT, apud FREUD, [1913] 1990, p. 99).

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A morte: um encontro com o desamparo

mais amplo, a doutrina de seres espirituais em geral” (FREUD, [1913] 1990, p. 97).

Efetivamente, o sistema animista atribui aos seres espirituais, bons ou maus, a

responsabilidade pelos fenômenos da natureza. Para Freud,

O principal ponto de partida desta teorização deve ter sido o problema da morte. O que o homem primitivo encarava como coisa natural era o prolongamento indefinido da vida – a imortalidade. Somente depois a idéia da morte foi aceita, e com hesitação. Mesmo para nós, ela é falha de conteúdo e não tem conotações claras (FREUD, [1913] 1990, p. 98).

Certamente que diante de todos os fenômenos inexplicáveis, a realidade da

decomposição biológica, pós-morte, é de singular estranheza. Os efeitos físicos

visíveis na morte do semelhante despertam a evidência da devastação do destino

humano, fato que justifica a necessidade de uma crença que minimize a extensão do

desamparo. E como é peculiar a todo sistema para existir e se reproduzir, faz-se

necessário uma estrutura que respalde sua manutenção. “Assim, não ficamos

surpresos em descobrir que, de mãos dadas com o sistema animista, existia um

conjunto de instruções a respeito de como obter domínio sobre os homens, os

animais e as coisas – ou melhor, sobre os seus espíritos” (FREUD, [1913] 1990, p.

100). Dessa maneira, o sistema animista utiliza, como recurso de atuação, a

feitiçaria e a magia. Freud considera esses dois recursos como a técnica desse

sistema.

A feitiçaria seria, então, a arte de influenciar espíritos tratando-os da mesma maneira como se tratariam seres humanos em circunstâncias semelhantes: apaziguando-os, corrigindo-os, tornando-os propícios, intimidando-os, roubando-lhes o poder, submetendo-os à nossa vontade – através dos mesmos métodos que se têm mostrado eficazes com os homens vivos. A magia, por outro lado, é algo diferente: fundamentalmente, ela despreza os espíritos e faz uso de procedimentos e não dos métodos psicológicos do dia-a-dia (FREUD, [1913] 1990, p. 100).

A magia é apontada como um método anterior ao da feitiçaria e reconhecida

como mais importante dentro do sistema animista. Seus recursos são variados,

oferecendo proteção a quem dela se utiliza e podendo ser usada a serviço do bem

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A morte: um encontro com o desamparo

ou do mal, dependendo do desejo de quem a manipula. O pensamento guiado pela

magia opera motivado pelo desejo do praticante. A magia pode ser praticada por si

própria (magia imitativa) ou dependendo de um outro (magia contagiosa) e, em

ambos os casos, sua eficácia depende do significado da ação e da realidade

esperada, ou seja, se sua ação for confirmada com o efeito registrado na evidência

do fato, sua eficácia fica confirmada, alimentando a “onipotência de pensamentos”

(FREUD, [1913] 1990, p. 108).

É interessante observar como, desde o mundo primitivo, o sistema de

pensamento faz uso de uma técnica com um modo de estratégia de ação dualista.

Essa dualidade é ainda explorada por Freud ao analisar os dois princípios de

associação usados pela magia como “semelhança e contigüidade – estão incluídos

no conceito mais amplo de ‘contato’. A associação por contigüidade é contato no

sentido literal; a associação por semelhança o é no sentido metafórico” (FREUD,

[1913] 1990, p. 108). O tipo duplo de operação de associação, conforme atribuído

por Freud, se processa idêntico ao tipo de atuação das figuras e linguagem da

metonímia e da metáfora.

Uma outra semelhança destacada por Freud é sobre o modo de evolução da

visão humana de universo, as grandes formas de representação, (a animista ou

mitológica, a religiosa e a científica). Essas podem ser comparadas às fases do

desenvolvimento libidinal humano em sua individualidade. A primeira fase é

correspondente ao narcisismo do indivíduo, ou seja, opera a partir de um único

ponto de vista, o próprio, determinado pelo eu do indivíduo; a onipotência é dirigida

para o “si mesmo”. A segunda corresponderia à fase de escolhas de objeto, e já

admite a entrada de um outro, os deuses, os pais; o foco sai da visão isolada, ainda

que, à influência dos desejos, seja partilhada entre o eu e o outro. “A fase científica

encontraria uma contrapartida exata na fase em que o indivíduo alcança a

maturidade, renuncia ao princípio de prazer, ajusta-se à realidade e volta-se para o

mundo externo em busca do objeto de seus desejos” (FREUD, [1913] 1990, p. 113).

Na fase científica, ocorre uma inversão em relação ao lugar reservado ao

campo da onipotência. Para Freud,

A visão científica do universo já não dá lugar à onipotência humana; os homens reconheceram a sua pequenez e submeteram-se resignadamente à morte e às outras necessidades na natureza. Não obstante, um pouco da

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A morte: um encontro com o desamparo

crença primitiva na onipotência ainda sobrevive na fé dos homens no poder da mente humana, que entra em luta com as leis da realidade (FREUD, [1913] 1990, p. 111 grifo nosso).

Apesar da correspondência ser pertinente, é importante destacar que, para a

psicanálise freudiana, as etapas de desenvolvimento humano não são estanques, ou

seja, elas não acontecem num dado momento do desenvolvimento e se extinguem.

Desse modo, as fases do desenvolvimento libidinal são parte do ser do sujeito,

intrínsecas à estrutura de sua personalidade, podendo manifestar-se em menor ou

maior proporção em todas as fases de sua vida. De igual modo encontramos em

todos os sistemas humanos, acerca do universo, a mescla do modo de visão que,

em determinadas circunstâncias, podem ressuscitar padrões anteriores, tidos como

já superados, haja vista que, resíduos do modo de pensar e do agir da fase animista

sobrevivem até os dias atuais.

Em relação à crença na “onipotência de pensamentos”, entendida como

desejos realizados pelo poder da mente, Freud destaca um único meio de

possibilidade para que ela continue atuando livremente na “civilização”, sendo

legitimada e amplamente reconhecida em seu efeito de sedução mágica33.

Apenas em um único campo de nossa civilização foi mantida a onipotência de pensamentos e esse é o campo da arte. Somente na arte acontece, ainda que um homem consumido por desejos efetue algo que se assemelhe à realização desses desejos e o que faça com um sentido lúdico produza efeitos emocionais – graças à ilusão artística – como se fosse algo real. As pessoas falam com justiça da ‘magia da arte’ e comparam os artistas aos mágicos. Mas a comparação talvez seja mais significativa do que pretende ser. Não pode haver dúvida de que a arte não começou como arte por amor à arte. Ela funcionou originalmente a serviço de impulsos que estão hoje, em sua maior parte, extintos. E entre eles podemos suspeitar da presença de muitos intuitos mágicos (FREUD, [1913] 1990, p. 113).

O desconhecimento de certos fenômenos colocou o homem primitivo diante

de interrogações que o impeliram a abrir mão de sua “onipotência” e criar sua

primeira formulação teórica, a criação dos espíritos. Atrelada a essa elaboração,

33 Com referência a esse tema, Freud cita Reinach, in: ‘L’art et la magie’.(1905-12, 1, 125-36). Na opinião de Reinach, os artistas primitivos que deixaram as gravuras e pinturas nas cavernas francesas não desejavam ‘agradar’, mas sim ‘evocar’ ou conjurar. Explica assim porque essas pinturas estão situadas nas partes mais escuras e inacessíveis das cavernas e porque perigosos animais de presa não aparecem entre elas (FREUD, [1913] 1990, p. 114).

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A morte: um encontro com o desamparo

vieram as restrições e sanções morais requerendo cuidados pertinentes à

convivência com o novo sistema. Intrínsecos a essa rede de elaboração surgem,

também, os tabus, cuja observância assegura a manutenção de uma resposta que

apazigua uma incerteza. “O homem primitivo estaria assim submetendo-se à

supremacia da morte pelo mesmo gesto com que parecia estar negando-a” (FREUD,

[1913] 1990, p. 116).

Discorrendo sobre “Tabu34 e ambivalência emocional”, Freud destaca o “Tabu

em relação aos mortos” e a importância dedicada a esse tabu pelos povos primitivos

na estruturação da vida do clã. “Os tabus podem ser permanentes ou temporários.

Entre os primeiros estão os ligados a sacerdotes e chefes, bem como a pessoas

mortas e a qualquer coisa que lhes pertença” (FREUD, [1913] 1990, p. 40). Uma vez

que os arcaicos acreditavam na autonomia dos espíritos no período subseqüente à

morte, preocupavam-se em elaborar um ritual a ser realizado nas situações pós-

fúnebres, variável de acordo com a condição motivadora da morte. O status e o grau

de afinidade da inserção do falecido no contexto da comunidade também

determinavam as circunstâncias subjacentes ao funeral. Os chefes e líderes

considerados grandes e divinos tinham o tempo de impureza imposto pelo tabu

diferenciado dos demais mortais.

O medo do espírito do morto exigia um ritual preventivo, pós-morte, para não

haver confronto com a ira do demônio em que o finado transformara-se. Esse medo

era generalizado a todos os mortos, fossem amigos, familiares ou inimigos. Era

preciso ainda alguns cuidados especiais a serem cumpridos pelo sobrevivente mais

achegado ao morto, em como ele deveria se comportar no período de luto. Reservas

especiais eram exigidas com os que mantivessem contatos de manuseio corporais

direto com o cadáver, e, principalmente ao cônjuge deste, pois pela crença primitiva

“o espírito do morto não abandona os seus parentes e não deixa de ‘pairar’ sobre

estes durante o tempo do luto” (FREUD, [1913] 1990, p. 74). Nesse sentido,

34 Tabu é um termo polinésio e seu significado diverge em dois sentidos contrários. Significa ‘sagrado’, ‘consagrado’, e por outro, ‘misterioso’, ‘perigoso’, ‘proibido’, ‘impuro’. O inverso de ‘tabu’ em polinésio é ‘noa’, que significa ‘comum’ ou ‘geralmente acessível’. Assim ‘tabu’ traz em si um sentido de algo inabordável, sendo principalmente expresso em proibições e restrições (FREUD, [1913] 1990, p. 38). Wilhelm Wundt descreve o tabu como o código de leis não escrito mais antigo do homem. É suposição geral que o tabu é mais antigo que os deuses e remonta a um período anterior à existência de qualquer espécie de religião (WUNDT, apud FREUD, [1913] 1990, p. 38).

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A morte: um encontro com o desamparo

A morte é em geral encarada como o mais grave de todos os infortúnios; daí acredita-se que os mortos estejam extraordinariamente insatisfeitos com a sua sorte. De acordo com a as idéias primitivas, uma pessoa só morre se for morta – pela magia, quando não pela força e – uma morte assim tende naturalmente a tornar a alma vingativa e mal-humorada. Tem inveja dos vivos e anseia pela companhia dos velhos amigos; não é de admirar, portanto que envie doenças para causar a morte deles [...] Mas a noção de que a alma desencarnada é em geral um ser maldoso [...] tem também indubitavelmente, uma estreita relação com o medo instintivo dos mortos, o qual, por sua vez, é resultado do medo da morte (WESTERMARCK, 1906-8, p. 2, p. 534 apud FREUD, [1913] 1990, p. 81).

O lugar de destaque reservado para a morte nas sociedades primitivas

desloca-se nos diversos âmbitos de formação da vida social e particular de cada

sujeito, no contexto do seu clã. O tabu sobre os mortos exigia várias modificações no

cotidiano, alterando a rotina dos familiares do morto, principalmente os que

prestaram os últimos cuidados a esse e que participaram do cortejo fúnebre. Os

demais, não participantes da cena fúnebre, necessitavam ter a atenção voltada para

não se contaminarem no contato com os envolvidos diretamente, que eram

considerados impuros durante o período de luto.

A crença no alto grau de impureza portada pelos enlutados exigia um

afastamento desses do convívio social. O motivo das precauções relacionava-se ao

poder de transmissão infecciosa que seria repassada a qualquer pessoa ou objeto

tocados pelo infectado (por haver estado em contato com o morto). Dessa feita, o

principal cuidado era com os alimentos. Essas pessoas, transformadas em tabus

para o seu clã, não podiam nem tocar no próprio alimento. Comiam o que lhes era

depositado ao chão, diretamente com a boca, ou eram alimentadas, a distância de

um braço, por algum degrado social, que passava também a ser tabu, em grau

menos acentuado de contaminação. Passado o período de luto, todos os objetos

usados pelo ‘conspurcado’ eram destruídos, para que o mesmo pudesse retornar ao

meio social.

Cuidados mais severos eram reservados aos viúvos(as). Além do isolamento

imposto e as demais restrições que já eram de praxe, também ficava proibido de

tocar no próprio corpo. A cama devia ser cercada por espinheiros e as viúvas

vestiam um tipo de tanga feita de capim seco no sentido de impedir o espírito do

falecido de tentar contato sexual. O estado de viuvez durante o período de luto era

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A morte: um encontro com o desamparo

considerado de mau agouro, o que levava a comunidade a manter-se afastada como

medida preventiva. As especificidades das restrições são variáveis no grau de

intensidade entre as diversas comunidades35, porém todas elas dão um tratamento

diferenciado ao luto por viuvez. Freud associa “a origem do caráter perigoso dos

viúvos e viúvas ao perigo da tentação” (FREUD, [1913] 1990, p.75). O desejo de

substituir o morto e a tentação em abreviar o luto colocaria os viúvos nesse perigo

tentador de desejarem e despertarem desejos em outros homens e mulheres

(candidatos a novas núpcias), podendo provocar a ira no espírito do finado. “Porque,

afinal de contas, não há necessidade de se proibir algo que ninguém deseja fazer e

uma coisa que é proibida com a maior ênfase deve ser algo que é desejado”

(FREUD, [1913] 1990, p. 91).

Um outro tabu comum entre os arcaicos está relacionado ao nome do morto.

“A evitação do nome de uma pessoa morta é uma regra que se faz respeitar com

extrema severidade” (FREUD, [1913] 1990, p.76). Para Freud, diversos motivos são

apontados para a manutenção desse tabu. Um deles é a extrema importância que

tem o nome de uma pessoa seguido da crença de que se torna parte da

personalidade dela. Portanto continuar a mencionar o nome de um morto é uma

forma de permanecer em contato com esse. Um outro motivo é a dor pela perda do

morto; a tristeza por sua ausência, seguida ainda do horror causado pela realidade

da decomposição cadavérica. E ainda, e de especial destaque, o medo que a

pronúncia do nome do falecido seja uma invocação ao seu espírito, com a

possibilidade de que esse volte a se presentificar. Inúmeras medidas são tomadas

no sentido de prevenir a repetição do nome indesejado. Desde mudar o nome de

outras pessoas de mesmo nome (assim como dos objetos) até mudar o nome de

toda a família do finado e enganar o seu espírito de possíveis aparições.

Os tabus dirigidos aos mortos têm conexão com a falta de explicações

plausíveis para a aceitação da morte como parte do processo (evolutivo) do

aniquilamento da vida e com a elaboração desse luto. A culpa relativa à hostilidade

envolvida com a vida pregressa junto ao morto reedita as relações ambíguas de

amor e ódio, não mais possíveis de serem retomadas e resolvidas. Assim “ao lado

do corpo sem vida do ente amado, passou a existir não só a doutrina da alma, a

35 Os grupos que Freud destacou para citar são os aborígines da Austrália, Colúmbia Britânica, diversas ilhas das Filipinas, tribos sul Americanas, tribos Africanas, entre outros grupos sociais com o mesmo modelo de organização.

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A morte: um encontro com o desamparo

crença na imortalidade e uma poderosa fonte de sentimento de culpa do homem,

mas também os primeiros mandamentos éticos” (FREUD, [1915] 1990, p. 334). Foi

preciso crer na possibilidade de continuidade na vida pós-morte, para apaziguar os

pensamentos hostis (ambíguos) existentes em relação ao morto. E, para harmonizar

o sentimento de culpa, incorporou-se a proibição “Não matarás”, dogmatizado como

preceito ético no convívio social.

O embate entre grupos inimigos demarcava a “pena de morte”36 como uma

ação prioritária no seio dos primeiros povos. A estruturação social reconhecia na

guerra um meio legítimo do vencedor punir com a morte os vencidos. Esse ato

guardava estreita relação com o legado de crenças espirituais reconhecidas nos

saberes do contexto da época. O ato de canibalismo era muitas vezes praticado no

sentido de absorver a coragem do inimigo. A ameaça de morte como meio de força

coercitiva fazia sentido dentro da ordem existente. Revelava-se como um traço

marcante na estruturação humana. Tais resquícios ainda resvalam nos dias atuais.

Atendendo ao apelo civilizado, “nosso inconsciente não executa o ato de matar; ele

simplesmente o pensa e o deseja” (FREUD, [1915] 1990, p 336). Ação e intenção

são os diferenciais no transcorrer do tempo. Nas palavras de Freud,

Em suma: nosso inconsciente é tão inacessível à idéia de nossa própria morte, tão inclinado ao assassinato em relação a estranhos, tão dividido (isto é ambivalente) para com aqueles que amamos, como era o homem primevo. Contudo, como nos distanciamos desse estado primevo em nossa atitude convencional e cultural para com a morte! (FREUD, [1915] 1990, p. 338).

A cultura criou convenções para a humanidade continuar a expor seus

sentimentos hostis. A guerra continua a ser um evento “aceito” entre o povo

civilizado como meio legítimo de resolver atritos. “Ela nos despoja dos acréscimos

ulteriores da civilização e põe a nu o homem primevo que existe em cada um de

nós” (FREUD, [1913] 1990, p. 338). A legitimidade coletiva de expressão hostil,

adquirida na situação de guerra, não anula que uma outra face, em conflito, se

manifeste em culpa e demande expiação. Os primitivos recorreram à criação dos

36 Entenda-se por “pena de morte” o fato de a guerra dar ao vencedor o direito sobre a vida do vencido. Ou ainda que os combates iam até ao extremo da resolução ser definida com a morte de um dos oponentes.

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A morte: um encontro com o desamparo

espíritos e a civilização posterior instituiu a lei de talião37. O homem civilizado recorre

ao heroísmo patriótico do dever cívico, lançando mão também das leis no sentido de

“civilizar” os efeitos devastadores da situação.

Freud retoma, na literatura mitológica, exemplos da estrutura humana frente à

morte. A relação humana com a morte é tão ímpar quanto o ato inaugural de seu

nascimento; um estrutura-se como condição ao outro38. Essa relação não se conecta

apenas do ponto de vista fisiológico de como a morte é o destino último do corpo

biológico, mas de como essa certeza (denegada) atua na formação psíquica,

definindo posições do homem consigo, com seu meio e com os seus semelhantes.

Comparando-se o posicionamento do homem primitivo (articulado ao seu meio) com

o contexto social “moderno”, encontra-se o mesmo impasse: o homem (tanto o

primevo quanto o contemporâneo) se pensa imortal e vive a constante negação

dessa premissa imposta pela realidade que comprova a efemeridade da vida. Freud

dialoga com essa questão fundamentando a tese de que não há um reconhecimento

da situação da morte no inconsciente. Diz ele:

Qual, perguntamos, é a atitude do nosso inconsciente para com o problema da morte? A resposta deve ser: quase exatamente a mesma que a do homem primevo. Nesse ponto como em muitos outros, o homem das épocas pré-históricas sobrevive inalterado em nosso inconsciente. Nosso inconsciente, portanto, não crê em sua própria morte; comporta-se como se fosse imortal. O que chamamos de nosso “inconsciente” – as camadas mais profundas de nossas mentes, compostas de impulsos pulsionais – desconhece tudo o que é negativo e toda e qualquer negação; nele as contradições coincidem. Por esse motivo, não conhece sua própria morte, pois a isso só podemos dar um conteúdo negativo. Assim, não existe nada de pulsional em nós que reaja a uma crença na morte (FREUD, [1915] 1990, p. 335).

37 Os primeiros indícios da lei de Talião foram encontrados no código de Hamurabi no reino da Babilônia. A lei consiste na justa reciprocidade do crime e da pena. Essa lei permite evitar que as pessoas façam justiça elas mesmas, introduzindo assim o início de ordem na sociedade, com relação ao tratamento de crimes e delitos. 38 No texto A negativa [1925], quando Freud trata o caráter de antítese, de uma afirmação presente em uma negativa, destaca os pares de dualidade na formação psíquica de um sujeito (princípio de prazer e princípio de realidade; externo e interno; subjetivo e objetivo; sujeito e objeto) e revela a pulsão de morte em par com a pulsão de vida como fundadora do psiquismo humano. “Julgar é uma continuidade, por toda a extensão das linhas da conveniência, do processo original através do qual o ego integra coisas a si ou as expele de si, de acordo com o princípio de prazer. A polaridade de julgamento parece corresponder à oposição dos dois grupos de pulsões que supusemos existir. A afirmativa – como substituto da união – pertence a Eros; a negativa – o sucessor da expulsão – pertence à pulsão de destruição” (FREUD, [1925] 1990, p. 299-300).

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A morte: um encontro com o desamparo

No paralelo traçado acerca das diferenças e semelhanças das posturas

primitivas e atuais, são surpreendentes os inúmeros pontos comuns frente à

situação de morte. As reações ambíguas merecem especial destaque; os

sentimentos conflituosos de amor e ódio dirigidos aos mortos (mesmo os amados)

continuam a atuar, tanto quanto a conseqüência desse conflito quantificado pela

culpa e a necessidade de expiação. “Para o homem primevo, sua própria morte era

certamente tão inimaginável e irreal quanto o é para qualquer um de nós hoje em

dia” (FREUD, [1913] 1990, p. 331). Essas relações de ambivalência persistem tanto

no que diz respeito à própria morte de cada sujeito (a dos entes queridos e a dos

inimigos) quanto em relação a acatar a morte como uma realidade, e a negá-la,

reduzindo-a a um tema postergado que faz suplência por outros meios.

2.1.3 O medo da morte: a incógnita humana.

Entre os homens surgiu, com a razão, por uma conexão necessária, a certeza terrível da morte. Mas, como sempre na natureza a todo mal é dado remédio, ou pelo menos uma compensação, então essa mesma reflexão, que nasce da idéia da morte, também nos leva às concepções metafísicas consoladoras, das quais a necessidade e possibilidade são igualmente desconhecidas ao animal. É, em especial, em torno desse fim que se dirigem todo os sistemas religiosos e filosóficos, que são, portanto, como que o antídoto que a razão, por força de suas reflexões, fornece contra a certeza da morte (Arthur Schopenhauer).

A morte como condição natural de fim da existência não é comumente bem

vista, menos ainda aceita com naturalidade; é um assunto tabu. Embora bastante

mencionado, é pouco analisado como um desdobramento próprio do viver. É falado

como sendo referência a algo que não envolva nada de pessoal, que o “eu” esteja

resguardado, que se fale sempre em direção a outrem. Como um paradoxo, é um

tema que não cessa em sua convocação a desafiar que algo seja dito a seu

respeito. Ernest Becker no livro A negação da morte, defende a idéia de que a

atenção da mente humana está voltada para a morte, e grande parte dessa

destinada para negar a facticidade de sua existência. Em suas palavras:

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A morte: um encontro com o desamparo

A idéia da morte, o medo que ela inspira, persegue o animal humano como nenhuma outra coisa; é uma das molas mestras da atividade humana – atividade destinada, em sua maior parte, a evitar a fatalidade da morte, a vencê-la mediante a negação, de alguma maneira, de que ela seja o destino final do homem (BECKER, 1973, p. 07).

Becker dedica parte de seu livro à análise da trajetória das idéias freudianas e

de seus herdeiros39. Usa a teoria psicanalítica como parte da sustentação teórica à

formulação de que “o medo da morte é, na verdade, uma proposição universal na

condição humana” (BECKER, 1973, p. 09). Apesar disso, abre uma discussão

crítica ao fato de Freud não ter apontado “o terror da morte” como a pulsão motora

da vida humana. Acusa Freud de haver centrado sua teoria no “dogma” do sexual e

ter deixado de perceber que a “consciência da morte”, e não a sexualidade, é a

repressão primária da estruturação psíquica. Defendendo essa idéia, Becker busca

respaldos na biografia de Freud40 escrita por Ernest Jones. Utiliza-se do biografismo

para sustentar seu ponto de vista e justificar nos hábitos pessoais do homem Freud

seu próprio “terror da morte”. Dessa feita Becker diz que só tardiamente Freud

contorna essa “falha” com o texto Além do princípio de prazer [1920]41 e coloca a

pulsão de morte como tese central da psicanálise. Segundo Becker:

Freud viu a maldição e dedicou a vida a revelá-la com todas as forças de que dispunha. Ironicamente, porém, não percebeu a precisa razão científica para a maldição. Esta é uma das razões pelas quais sua vida foi, até o fim, um diálogo consigo mesmo sobre as molas mestras dos motivos humanos. Freud se esforçava em seu trabalho, tentava fazer com que a verdade surgisse mais clara e inteiramente, e, no entanto, ela sempre parecia tornar-se mais sombria, mais complexa, mais fugidia. Admiramos Freud por sua dedicação séria, sua disposição por retratar-se, pela natureza de tentativa estilística de algumas de suas afirmações, pela revisão a vida toda, de suas idéias prediletas. [...] Mas isso é admirá-lo pelo motivo errado. Uma causa básica de seus percursos sinuosos durante a vida toda era que ele nunca abandonou

39 Becker cita a maioria dos dissidentes (discípulos de Freud) e destaca as contribuições de Otto Rank para a psicanálise. 40 Não é o objetivo desse trabalho discutir pontos da biografia de Freud. Só a usaremos quando se constituir como ponto esclarecedor para o cerne teórico que traz respaldo ao tema em questão. E isso, por reconhecermos o quanto o próprio Freud construiu a teoria psicanalítica expondo sua vida pessoal, publicando inclusive a análise de seus sonhos. 41 Em 1913, no texto Totem e tabu, Freud aponta a falta de representação no inconsciente para a questão da morte. De igual modo, sustenta essa tese em 1915 no texto Reflexões para os tempos de guerra e morte; em 1919, no texto O estranho; em 1923, no texto O ego e o id.

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A morte: um encontro com o desamparo

de todo o dogma sexual, nunca viu ou admitiu claramente que o terror da morte era a repressão básica (BECKER, 1973, p. 104).

Acatamos a discussão aberta por Becker a respeito da negação da morte,

como conseqüência do medo que a mesma impõe. Entretanto, discordamos de que

Freud não tenha se preocupado com o tema da morte, anteriormente ao texto de

1920, no qual apresenta a pulsão de morte em contraponto à pulsão de vida, uma

vez que o desamparo humano sempre foi uma questão apontada e desenvolvida em

todo o percurso freudiano. Talvez o “nome” esperado por Becker “terror da morte”

não tenha claramente aparecido delineado. Freud teria se recusado a nomear aquilo

que não tem nome, sustentável em si mesmo; ou ainda, (re)nomeou com vários

outros significantes que deslizam para o mesmo ponto.

A sexualidade humana sempre foi teorizada por Freud nessa mesma vertente

de algo não possível de esgotar; postulada na mesma ordem de questões que

abrem caminhos para o que não é possível de definição precisa, como algo que

sempre ficara como uma hiância, “ponto de umbigo”; desenhada no destino das

pulsões. Lacan, seguindo Freud, diz que “a pulsão representa parcialmente a curva

da sexualidade no ser vivo. Como espantar-se que seu último termo seja a morte?

Pois que a presença do sexo está ligada à morte” (LACAN, 1988, p. 168). Nas

palavras da psicanalista Betty Fuks:

Se na primeira tópica Freud enfatiza a não representação da morte no inconsciente, na segunda, embora não abandone sua primeira formulação, sustenta que a dimensão visível da pulsão de morte aparece através dos efeitos da pulsão de destruição, inscrita na barbárie de nossa cultura superegóica. 42

É na esteira desses significantes que percorremos o rastro, nomeável, daquilo

que se constitui, e permanece, como o inominável, haja vista a dificuldade humana

em enfrentar e aceitar a própria morte, dada a falta de representação no

inconsciente para tal elaboração (FREUD, [1913] 1990, p. 99), ([1915] 1990, p. 327,

p. 335, p. 338). ([1919] 1990, p. 302). ([1923] 1990, p. 75)43. Este fato não impede

42 Na apresentação da tradução brasileira de Mannoni, Maud. O nomeável e o inominável: a última palavra da vida. 1991, p. 10. 43Referências já anteriormente mencionadas, no entanto, achamos pertinente repeti-las.

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A morte: um encontro com o desamparo

que o “medo da morte” se inscreva, insistentemente demandando que algo seja dito

a respeito desse (des)conhecimento. Há uma constante expectativa de que um

sentido possa ser construído e possibilite o convívio com o impensável que é a

experiência da própria morte, visto que só é possível conhecer a experiência de

morte em relação ao outro. E esse, ainda que sendo um semelhante, nada pode

compartilhar, apenas se oferece à visão de horror, da inerte transformação do corpo.

No percurso do balizamento das relações entre a morte e a sexualidade,

retomemos em Freud a gênese do conceito de pulsão que redundará na dualidade

do par antagônico representado por Eros44 e Tánatos45. Freud ressaltou que o

animal e o humano diferenciam-se pela força regente em seu ser. O primeiro tem

como força motora o instinto (geneticamente dado), e o segundo a pulsão, a ser

construída psiquicamente e mapeada no corpo. Lacan vai fundamentar com grande

propriedade esse movimento da pulsão, na via de inscrição do sujeito mediada pela

linguagem.

O sujeito nasce no que, no campo do Outro, surge o significante. Mas por este fato mesmo, isto – que antes não era nada senão sujeito por vir-se coagula em significante. A relação ao Outro é justamente o que, para nós, faz surgir o que representa a lâmina – não a polaridade sexuada, a relação do masculino com o feminino, mas a relação do sujeito vivo com aquilo que ele perde por ter que passar, para sua reprodução, pelo ciclo sexual. Explico assim a afinidade essencial de toda pulsão com a zona da morte, e concilio as duas faces da pulsão – que, ao mesmo tempo, presentifica a

44 Eros (no Grego, ‘’Epws) o deus do amor, é considerado o mais belo dos deuses imortais. (Hesíodo) Dotado de natureza vária e mutável é um dos mitos que mais evoluíram desde as mais antigas teogonias. Na teogonia de Hesíodo, Eros nasceu do Caos, ao mesmo tempo em que Geia e Tártaro. Numa variante da cosmogonia órfica, o Caos e Nix (a noite) estão na origem do mundo. Nix põe um ovo, do qual nasce Eros, enquanto Urano e Geia se formam das duas metades partidas. O tema da genealogia de Eros é fator de inúmeras especulações entre poetas, filósofos e mitólogos. Platão, no Banquete, cita Eros como um demônio, intermediário entre os deuses e os homens, preenchendo o vazio de cada um. Tomando o discurso da sacerdotisa Diotimia, Platão o define como concebido pela união de Poros (Expediente) e de Pénia (pobreza). Desse parentesco díspar, Eros tem características também díspares, sempre em busca de atingir um objetivo. Ele é uma força, uma energia, perpetuamente insatisfeito e inquieto em busca de satisfação, é uma “carência” sempre em busca de “plenitude” e usa de todo expediente para atingir seu objeto. Eros é ainda apresentado como filho de Hermes e Afrodite, ou Ares e Afrodite, (representando opostos). Personifica-se na versão infantil ou adulta e representa a libido, que impele toda existência a se realizar na ação (BRANDÃO, 2001, p. 356). 45 Na teogonia de Hesíodo, Nix (a noite), por partenogêse, gerou entre outros filhos Tânatos (a Morte) irmã gêmea de Hipno (o sono), e o seu significado está relacionado a dissipar-se, extinguir-se, tornar-se sombra, escuridão. Tânatos é uma cessação, uma descontinuidade, uma inversão da vida. É o aspecto perecível e destruidor da vida. Ambivalente, representa um rito de passagem, é a divindade que introduz as almas às trevas do inferno ou às luzes do paraíso. (BRANDÃO, 1991, p. 398).

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48

A morte: um encontro com o desamparo

sexualidade no inconsciente e representa, em sua essência, a morte (LACAN, 1998, p. 187-188).

O termo “pulsão”46 é utilizado pela primeira vez por Freud em Três ensaios

sobre a teoria da sexualidade [1905]. Neste texto, o termo é compreendido “como

representante psíquico de uma fonte endossomática de estimulação que flui

continuamente; é um dos conceitos da delimitação entre o anímico e o físico”

(FREUD, [1905] 1990, p. 157). Ao analisar as maneiras de expressão da pulsão na

vida sexual do humano, Freud aponta que, se o objetivo sexual “esperado” é

concebido pela união dos órgãos genitais, existe uma série de desvios para esse fim

ser atingido. Na origem humana, o registro biológico do corpo, homem ou mulher,

não porta a garantia de uma escolha de gratificação sexual compatível com o sexo

biológico definido no corpo, ou seja, há uma operação a ser mediada entre a psique

e o corpo.

Essa construção é referendada pelo fato de a criatura humana nascer em

condições prematuras; sua inscrição na cultura é sempre pela via do desejo de um

Outro (é desejo de desejo). A linguagem incide sobre o corpo instaurando o circuito

pulsional. “Ocorre que o indivíduo da espécie humana é um deficiente instintivo.

Com efeito, nada em seu sistema genético-neurológico lhe define o objeto capaz de

acalmar seu mal estar” (JERUSALINSKY, 1989, p. 23). A priori, é um feixe de

tensões fragmentado e é uma ação psíquica de fora, de um outro ser humano

tutelar, que age sobre o pequeno infans na tentativa de responder a suas

insatisfações.

A sexualidade infantil é então postulada por Freud [1905], como tendo caráter

anárquico. Declaração causadora de celeuma para o meio conservador da época,

inclusive na sociedade científica. Ele afirma que a sexualidade está presente na

criança desde a mais tenra infância e que sua busca por gratificação no corpo é

polimorfa e errante. Essa afirmativa se contrapõe a toda noção de ingenuidade

infantil reservada à criança até então. O cerne da questão está do lado da inserção

do entendimento de pulsão como atuante na sexualidade e de sua possibilidade de

46 A palavra pulsão é derivada do latim pulsio, designa o ato de impulsionar (ROUDINESCO, 1998, p. 628). Na língua alemã trieb, traduzida para o inglês como instinto. Como a tradução da Standard brasileira (Imago) foi derivada da língua inglesa, permaneceu com essa escolha errônea, divergente da palavra utilizada por Freud. “A pulsão freudiana nada tem a ver com o instinto (nenhuma das expressões de Freud permite essa confusão)” (LACAN, 1998, p. 865).

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A morte: um encontro com o desamparo

satisfação ser metonímica. Implica dizer que a atividade pulsional de satisfação é

sempre parcial e é ela quem constitui propriamente a sexualidade humana. A partir

dessa primeira referência, Freud vai desenvolvendo sucessivamente o conceito de

pulsão, transformando-o em um dos pilares fundamentais da teoria psicanalítica.

No primeiro dualismo proposto para teoria da pulsão, no texto A concepção

psicanalítica da perturbação psicogênica da visão [1910], Freud afirma que “Todas

as pulsões orgânicas atuantes em nossa alma podem ser classificadas, seguindo as

palavras do poeta, como fome e amor” (FREUD, [1910] 1990, p. 200). A pulsão é

assim apresentada em par, como “pulsões sexuais” e “pulsões de

autoconservação47”. Uma garantindo a repetição do organismo, e a outra atuando

para que o organismo só chegue até a morte por vias naturais. Um ano depois, no

artigo Formulações sobre os dois princípios do funcionamento psíquico, as duas

classes de pulsões são associadas a dois modos de funcionamento do aparelho

psíquico; as pulsões sexuais ficam regidas pelo princípio de prazer, e as de

autoconservação sob o domínio do princípio de realidade.

Em 1914, no trabalho sobre o narcisismo: uma introdução, Freud

problematiza a distribuição metódica dos dois grupos pulsionais entre sexuais e

autopreservativos e já aponta a possibilidade de reformulação, pondo em

interrogação a dualidade na seguinte afirmação: “A diferenciação da libido, numa

espécie que é adequada ao ego e numa outra que está ligada a objetos é o colorário

inevitável de uma hipótese original que estabelecia distinção entre as pulsões

sexuais e as pulsões do ego” (FREUD, [1914] 1990, p. 94). Dessa forma, a partir da

Introdução ao narcisismo, a libido passa a ser o subsídio energético do campo da

pulsão, portanto de cunho sexual, ficando em questão o aspecto da

autoconservação. Ou seja, a dualidade tende a se diluir numa visão de mão única.

Conforme apresentado por Freud [1905] e aprofundado no texto As pulsões e

seus destinos48 [1915], o conceito de pulsão faz fronteira entre o anímico e o

47 As pulsões de autoconservação também podem ser denominadas de pulsões do eu. 48 Freud subdivide o movimento da pulsão em quatro termos. Primeiro, em relação a sua pressão, [drang] o fator motor, a quantidade de força ou a medida da exigência de trabalho que ela representa, sua parcela de atividade. Segundo, a finalidade [Ziel] é sempre a satisfação, que só pode ser obtida eliminando-se o estado de estimulação na fonte da pulsão. A finalidade última permanece imutável, mas poderá ainda haver diferentes caminhos conducentes à mesma finalidade última, de modo que uma pulsão pode apresentar várias finalidades próximas, ou intermediárias, que são combinadas ou intercambiadas umas com as outras. Terceiro, o objeto [objekt] é a coisa em relação à qual a pulsão é capaz de atingir sua finalidade, é o que há de mais variável numa pulsão. E por último, a fonte [Quelle] é o processo somático que ocorre num órgão ou parte do corpo, e cujo estímulo é representado na vida mental por uma pulsão (FREUD, [1915] 1990, p. 142-143).

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A morte: um encontro com o desamparo

somático; a pulsão é assim entendida “como representante psíquico dos estímulos

que se originam no corpo e alcançam a mente como uma medida de exigência de

trabalho que é imposta ao psíquico em conseqüência de sua ligação com o corpo”

(FREUD, [1915] 1990, p. 142). Essa forma de escrita freudiana, com referência a

uma intercessão entre o psíquico e o corporal, gerou margens às interpretações

biologizantes da pulsão. É válido salientar que, “ao mesmo tempo em que a pulsão

representa o corpo no psiquismo, ela só se faz presente neste último através de

seus representantes psíquicos: a idéia (Vorstellung) e o afeto (Affekt)” (GARCIA-

ROZA, 1987, p. 16).

A partir de Freud, pode-se inferir essa concepção de ser humano e sua

relação com o objeto imaginário de satisfação. Trata-se de uma desnaturalização do

corpo, esse não marcado pelo instinto, como no animal, que tem o objeto próprio de

satisfação, como traço hereditariamente fixado. No humano, o registro se faz pela

pulsão (trieb), que não possui objeto definido em como alcançar a plena realização e

sim destinos alternativos parciais e que deslizam sempre (GARCIA-ROZA, 1990, p.

68). A psicanálise respalda, assim, que o corpo biológico não porta geneticamente o

objeto apaziguador da falta humana. É no corpo que a pulsão se constrói, porém, a

partir da incidência da linguagem.

A suposição de Freud é de que a pulsão procura uma satisfação que já foi obtida um dia, na nossa pré-história individual, antes do interdito que nos tornou humanos. A partir de então, foi inibida quanto ao seu objetivo e obrigada a um caminho de aventuras que Freud chamou de triebschicksale – as vicissitudes da pulsão. Pela ameaça que trazia consigo, foi proibida de se apresentar diretamente aos olhos assustados do humano. Portadora do gozo e da morte, viu-se forçada a fazer-se representar pelos seus representantes para poder ter acesso ao mundo da subjetividade. (GARCIA-ROZA, 1987, p. 17 grifo nosso).

O não saber especificar qual seja o objeto de plena satisfação inscreve a

criatura humana numa constante errância na busca deste objeto obturador da falta.

“Essa falha não é da ordem de uma imperfeição que os progressos da pesquisa

permitiriam preencher, mas sim ela constitui a chave para a própria estrutura do

saber” (ANDRÉ, 1994, p. 10). Qualquer objeto pode ser tomado como um objeto

para a pulsão, e nenhum deles vai ser o objeto da pulsão. O estatuto de um objeto

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A morte: um encontro com o desamparo

para a pulsão é intermediado sempre pelo desejo e pela fantasia.49 Citando Garcia-

Roza:

A perda do objeto absoluto é a perda de algo que nunca foi tido, já que a psicanálise se situa desde o começo no lugar da linguagem. Da mesma forma que a pulsão, ele resulta da incidência da palavra sobre o corpo, e não há um ‘antes’ relativo a essa incidência. Assim, tanto a pulsão como o desejo e seus objetos são efeitos da linguagem (GARCIA-ROZA, 1990, p. 67).

Nos desdobramentos feitos por Freud desde a instauração do conceito de

pulsão, passando por um primeiro dualismo que foi posto em dúvida, ele acrescenta,

em 1920, no texto Além do princípio de prazer, um novo dualismo pulsional. A

pulsão de morte é inserida em par antagônico com a pulsão de vida50. Para Freud,

“da ação concorrente e antagônica desses dois procedem os fenômenos de vida que

chegam ao seu fim com a morte” (FREUD, [1920] 1990, p. 134). “É ao introduzir a

pulsão de morte que Freud destaca o estatuto conceitual da pulsão em sua

radicalidade” (JORGE, 2000, p. 61). E esse se torna um dos conceitos mais

discutidos, assim como promotor de águas divisoras no campo da Psicanálise.

A aceitação da ação desse novo dualismo pulsional opera uma abertura no

sentido de que, por essa via, seja possível uma aproximação ao esclarecimento do

paradoxo (inconsciente) do sintoma como uma forma de satisfação da pulsão, ainda

que gerando desprazer. “Esse paradoxo só se esclarece a partir da concepção de

que toda pulsão é pulsão de morte (devido ao intrincamento de Eros e Tánatos)

situando-se a satisfação do sintoma para além do princípio de prazer” (QUINET,

2003, p. 49).

O âmbito pulsional é o campo de Eros em que brotam as flores do mal, onde a pulsação da vida é mordida pela morte. Nos anos 20, Freud encontra o que considera seu verdadeiro dualismo pulsional: Eros tende à união, à aspiração

49 Partindo de Freud e da Filosofia, Lacan teoriza sobre o objeto “a”. As pulsões, tal qual o objeto, são efeitos da linguagem, são resultados da incidência da palavra sobre o corpo. O objeto “a”, resíduo e índice da “coisa” não possível de nomear, institui-se quando se institui o corpo pulsional. Não é um objeto em particular, é um furo em torno do qual giram os significantes. Nenhum objeto pode ocupar o seu lugar, mas todos os objetos se pretendem a esse lugar. Ele vai ser o que sobra como resto indizível na interseção do real, simbólico e imaginário, ordens que estruturam o inconsciente (GARCIA-ROZA, 1999, p. 64). 50A pulsão de vida encampa as pulsões sexuais e as pulsões de autoconservação; ambas são regidas por Eros em oposição à pulsão de morte, regida por Tánatos.

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A morte: um encontro com o desamparo

ao Um, à vida, a reprodução, e a pulsão de morte é destrutividade e desunião, o impulso que na vida só quer morrer. A pulsão de morte é o que vem fazer objeção ao Um da relação sexual de complementariedade prometida por Eros (QUINET, 2003, p. 47).

A inserção da vertente da pulsão de morte, em contraposição às pulsões de

vida, traz, em sua essência, a questão da compulsão a repetição. Embora já falado

em textos anteriores, é só no Além do princípio de prazer [1920] que o tema é

tratado com prioridade. Um ano antes é destacado no texto O Estranho [Unheimlich],

como algo que se repete e, mesmo assim, apresenta-se diferente e não como uma

reprodução do mesmo. Freud destaca esse efeito de repetição do inconsciente

apresentado, como ato, no texto Recordar, repetir e elaborar [1914]. Ele destaca que

“podemos dizer que o paciente não recorda coisa alguma do que esqueceu e

recalcou, mas expressa-o pela atuação ou atua (acts it out). Ele o reproduz não

como lembrança, mas como ação; repete-o, sem naturalmente saber o que está

repetindo51” (FREUD, [1914] 1990, p. 196).

Freud apresenta num caminho gradativo à construção de sua hipótese da

pulsão de morte nos sete capítulos do já referido texto de 1920. Esquadrinha a

questão da compulsão à repetição. Primeiro, em relação aos sonhos traumáticos, e

em como esses conduzem a uma repetição da cena causadora do trauma. Segundo,

em referência ao impulso repetitivo do brincar de uma criança52, que representa num

jogo de carretel a cena simbólica da presença e ausência de sua mãe. Terceiro,

problematiza a compulsão à repetição e essa manifestação na situação de

transferência entre analista e analisando, caracterizando a “neurose de

transferência53”. E nesse sentido, ele afirma:

51 No Posfácio do caso Dora, Freud analisa o manejo da transferência e observa que os conteúdos referidos pela paciente não foram recordados, foram repetidos e expostos como ato (FREUD, [1905] 1990, p. 114). 52 Freud cita o repetitivo jogo de uma criança de um ano e meio com um carretel na ausência da mãe, repetindo os sons ‘o-o-o-ó’ ao jogar o carretel e ‘dá’, ao resgatá-lo. Freud os identificou como os advérbios alemães (fort e da) representando respectivamente “ir embora” e “ali”, e que essa era a forma da criança transportar para um plano simbólico o mal estar provocado pela saída de sua mãe (FREUD, [1920] 1990, p. 26). 53 A compulsão à repetição, nesse caso, impele o paciente a reviver uma cena traumática não como uma recordação passada, mas como ligada a algo presente na sua relação com o analista. Pode se manifestar como condição para que a análise aconteça, tanto quanto como impedimento a essa, dependendo do manejo operado pelo analista.

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A morte: um encontro com o desamparo

Chegamos agora a um fato novo e digno de nota, a saber, que a compulsão à repetição também rememora, do passado, experiências que não incluem possibilidade alguma de prazer e que nunca, mesmo há longo tempo, trouxeram satisfação, mesmo para os impulsos pulsionais que desde então foram recalcados (FREUD, [1920] 1990, p. 34).

Nesse processo gradual, Freud chega à hipótese (considerada por ele mesmo

como especulativa) “de que todas as pulsões tendem à restauração de um estado

anterior de coisas” (FREUD, [1920] 1990, p. 55), ou seja, ele destaca agora um

caráter paradoxal da pulsão, o caráter conservador.

Se tomarmos como verdade que não conhece exceção o fato de tudo o que vive morre por razões internas, tornar-se mais uma vez inorgânico, seremos então compelidos a dizer que o ‘objetivo de toda vida é a morte’, e, voltando o olhar para traz, que as coisas inanimadas existiram antes das vivas (FREUD, [1920] 1990, p. 56).

Freud dá seguimento à sua hipótese, defendendo que a matéria inanimada

sofreu a ação de uma força, da qual não se tem explicação precisa, e a tensão

provocada por essa agressão resultou em um esforço da matéria para se libertar da

tensão, e esse modo de defesa operado provocou o surgimento da primeira pulsão,

“a pulsão de retornar ao estado inanimado”. Dessa feita, o circuito entre viver e

morrer se dava num percurso de certa brevidade, dada a estrutura simples dessa

substância viva. A constância prolongada da repetição desse circuito entre nascer,

morrer, recria-se com facilidade. Foi quebrada por novas influências externas que

obrigaram a substância a criar um novo percurso, um pouco mais complexo, para

atingir o seu objetivo de morte. Esse segundo modo de atuação, para atingir seu

objetivo de morte à sua própria maneira, resultou na pulsão de conservação.

O paradoxo entre a posição, ou função, dos dois grupos de pulsões,

demanda maiores esclarecimentos. A pulsão de morte traz em sua especificidade a

tendência compulsiva de movimento regressivo de retorno a um estado inorgânico e

as pulsões de vida de evitar que a morte ocorra de uma forma não natural. Dito de

outro modo,

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A morte: um encontro com o desamparo

Trata-se de pulsões componentes cuja função é garantir que o organismo seguirá seu próprio caminho para a morte e afastar todos os modos possíveis de retornar à existência inorgânica que não sejam os imanentes ao próprio organismo. Não temos mais de levar em conta a enigmática determinação do organismo (tão difícil de encaixar em qualquer contexto) de manter sua própria existência frente a qualquer obstáculo. O que nos resta é o fato de que o organismo deseja morrer apenas de seu próprio modo. Assim, originalmente, esses guardiões da vida eram também os lacaios da morte. Daí surgir à situação paradoxal de que o organismo vivo luta com toda sua energia contra os fatos (perigos, na verdade) que poderiam auxiliá-lo a atingir mais rapidamente seu objetivo de vida, por uma espécie de curto-circuito. Tal comportamento, entretanto, é precisamente o que caracteriza os esforços puramente pulsionais, contrastados com os esforços inteligentes (FREUD, [1920] 1990, p. 57).

Freud retoma na VI parte do Mal-estar na civilização [1929] o caráter duplo

das pulsões formulado em 1920. Reitera a compulsão à repetição como norteadora

da hipótese da origem da vida no crescente esforço ambíguo de destruição e

reconstrução. “Isso equivalia dizer que, assim como Eros, existia também uma

pulsão de morte. Os fenômenos da vida podiam ser explicados pela ação

concorrente, ou mutuamente oposta, dessas duas pulsões” (FREUD, [1929] 1990, p.

141). O que se põe em causa é como vislumbrar a atuação da pulsão de morte, haja

vista que as manifestações de Eros são facilmente identificadas. Até então, a pulsão

de morte aparentava ser silenciosa no percurso de destruição do organismo em sua

busca pelo estado de repouso inorgânico. O que Freud acrescenta é a quebra desse

silêncio da pulsão no contexto da civilização.

Uma idéia mais fecunda era a de que uma parte da pulsão é desviada no sentido do mundo externo e vem à luz como uma pulsão de agressividade e destrutividade. Dessa maneira, a própria pulsão podia ser compelida para o Serviço de Eros, no caso de o organismo destruir alguma outra coisa, inanimada ou animada, ao invés de destruir o seu próprio eu (self). Inversamente, qualquer restrição dessa agressividade dirigida para fora estaria fadada a aumentar a autodestruição, a qual, em todo e qualquer caso, prossegue. Ao mesmo tempo, pode-se suspeitar, a partir desse exemplo, que os dois tipos de pulsão raramente – talvez nunca – aparecem isolados um do outro (FREUD, [1929] 1990, p. 141).

A repetição, como modo de manifestação da pulsão de morte, não implica

reprodução, mas criação de um novo. “A repetição não representa uma coisa, ela

significa algo, ela é em sua essência de natureza simbólica” (GARCIA-ROZA,1987,

p. 44). A compulsão à repetição está referida a conteúdos recalcados, e o prenúncio

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A morte: um encontro com o desamparo

de seu retorno exige um movimento de trabalho psíquico para proteger-se dessa

ameaça. A relação dos dois campos pulsionais acontece de maneira bastante

imbricada. Por seu lado, a pulsão de vida traz em si uma busca por renovação em

sua vertente de pulsão sexual, pois atua como garantia da reprodução da vida,

enquanto que a pulsão de autoconservação atua na perspectiva de que a morte só

seja atingida por vias naturais ao organismo. A pulsão de morte é entendida como

desejo de retorno ao inorgânico, diretamente imbricada em sua relação com as

pulsões de vida em um paradoxo. Nas palavras de Lacan,

A pulsão, como tal, e uma vez que é então pulsão de destruição, deve estar para além da tendência ao retorno ao inanimado. O que ela poderia ser? – senão uma vontade de destruição direta. [...] Vontade de destruição. Vontade de recomeçar com novos custos. Vontade de Outra-coisa, na medida em que tudo pode ser posto em causa a partir da função do significante. Se tudo o que é imanente ou implícito na cadeia dos acontecimentos naturais pode ser considerado como submetido a uma pulsão dita de morte, é somente na medida em que há a cadeia significante. Efetivamente, é exigível que, nesse ponto do pensamento de Freud, o que está em questão seja articulado como pulsão de destruição, uma vez que ela põe em causa tudo o que existe. Mas ela é igualmente vontade de criação a partir de nada, vontade de recomeçar (LACAN, 1991, p. 259).

A pulsão de morte é apontada como anticultural por Freud e como antinatural

por Lacan (1991, p. 260) “Não no sentido dela ter como alvo a destruição da

natureza e da cultura, mas no sentido de colocar em causa tanto uma como outra,

de recusar a permanência do ‘mesmo’, de provocar na natureza e na cultura a

emergência de novas formas” (GARCIA-ROZA, 1999, p. 135). Nesse ponto o oposto

se revela, a pulsão de vida representada por Eros busca a unidade, a constituição

da união, enquanto que a pulsão de morte54, fiel em sua descontinuidade, precipita a

diferença.

No Seminário sobre A ética da psicanálise, Lacan destaca a complexidade do

entendimento da pulsão e a coloca além da dimensão do sentido energético,

abrangendo também uma dimensão histórica (LACAN, 1991, p. 256).

54 Desde que Freud apresentou em 1920 o par antagônico de pulsões de vida e de morte, que ele o retoma e também volta a referendá-lo, sempre com maior convicção, da importância desse, como fundamento para a psicanálise. Dessa feita, esse par está também na base de discussões dos textos O ego e o id [1923] e em Análise terminável e interminável [1937].

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A morte: um encontro com o desamparo

Essa dimensão se marca pela insistência com que ela se apresenta, uma vez que ela se refere a algo memorável porque memorizado. A rememoração, a historização, é coextensiva ao funcionamento da pulsão no que se chama de psiquismo humano. É igualmente lá que se grava, que entra no registro da experiência, a destruição (LACAN, 1991, p. 256).

Lacan retoma em Freud a concepção sobre o objeto de satisfação, sempre

posto como falta, - aquilo que Freud chamou de “a coisa” Das Ding, ou para que

ainda usou o termo Das Sache, como representação da “coisa” que passa pela

palavra estando submetida à ordem simbólica. A “coisa” (Das Ding) é aquilo que não

se nomina, a não ser por representação, por uma construção que sirva de borda

para revestir o vazio de um furo interminável. E é em torno desse furo que se mira

no vazio da “coisa” que uma emergência se faz para que algo seja construído em

suplência ao insuportável dessa hiância. Nas palavras de Lacan,

Essa coisa, da qual todas as formas criadas pelo homem são do registro da sublimação, será sempre representada por um vazio, precisamente pelo fato dela não poder ser representada por outra coisa – ou, mais exatamente, de ela não poder ser representada senão por outra coisa. Mas em toda forma de sublimação o vazio será determinante (LACAN, 1991, p. 162).

E, nesse sentido, Lacan aponta três modos de sublimação, dentre as

incontáveis possibilidades da psique humana, que, por diferentes caminhos, busca

dar um sentido ao inapreensível que se faz emergente nesse lugar vazio, qual seja,

a arte, a religião e o discurso da ciência. “Toda arte se caracteriza em torno desse

vazio” (LACAN, 1991, p. 163) é uma presença – ausência em referência ao furo do

vazio. “A religião consiste em todos os modos de evitar esse vazio” (LACAN, 1991,

p. 163, grifo nosso), e através de diversos e refinados cerimoniais “obsessivos55”,

escamoteia deparar-se com oco, próprio do vazio. Temos, ainda, o discurso da

ciência, “na medida em que, para a nossa tradição, ele é originado no discurso da

55 Freud destaca em O futuro de uma ilusão [1927] a estreita relação entre os ritos religiosos e os ritos do comportamento obsessivo.

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A morte: um encontro com o desamparo

sabedoria, no discurso da filosofia” (LACAN, 1991, p. 163), e também opera como

uma recusa ao lugar do vazio.

Assim como na arte em que há uma Verdrängung, um recalque da coisa – como na religião talvez haja uma Verschiebung – é propriamente falando, de Verwerfung, que se trata no discurso da ciência. O discurso da ciência rejeita a presença, uma vez que em sua perspectiva se delineia o ideal do saber absoluto, isto é, de algo que estabelece, no entanto, a Coisa, não a levando ao mesmo tempo em conta (LACAN, 1991, p. 164).

A arte como essa possibilidade de construir alguma coisa em torno do vazio

proporciona uma representação da “Coisa”. Estrutura-se como uma vertente de

estabelecer um diálogo, um contorno na imprecisão da forma. Recobre o que se

constitui, desde sempre, como sem possibilidade e nomeação, apenas em reflexo,

pela construção da produção artística. Ou no semblante da elaboração de fé ou,

ainda, na racionalização conceitual, que facilita limitar e nomear, atividade própria às

conquistas da cultura civilizada.

2.1.4 Breve percurso: contextualizando a morte.

Todo saber tem seu além, ou melhor, cada saber constrói o seu além. Assim como a religião nos fala de um além, a física e a psicanálise também nos remetem a um além, isto é, nos remetem para aquilo que está fora do seu universo discursivo, mas que ao mesmo tempo é condição essencial para esse universo. Não há um universo sem um além. Isto, na medida que cada universo define seus próprios limites e esse além é o lugar de cada universo discursivo. Nada nos impede de pensar esse além como a morte, na medida em que a morte é nomeável, mas aquilo sobre o qual nada temos a dizer. Esse além ou essa morte não são, portanto, o lugar do nada, do vazio do ser, mas do silêncio do discurso. O que aí se nadifica não é o ser, mas a palavra (Garcia-Roza).

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58

A morte: um encontro com o desamparo

O medo, natural no homem, de se deparar com a fatalidade da morte inquieta;

conduz a uma busca incessante de explicações e construções seja espirituais,

sociais seja científicas e racionais para lidar com esta verdade factual e ambígua,

individual como experiência única para cada ser e, ao mesmo tempo, coletiva, por

ser um fim comum à condição dos organismos vivos, independentemente da forma

como o evento ocorra e da causa que o provoque. Negar essa fatalidade não é

apenas um meio de adiar seu enfrentamento, mas também um modo de reconhecer

a proporção avassaladora de sua presença.

Ao longo da peregrinação humana, independente do contexto cultural, a

história se repete. O enfrentamento e a aceitação do fim da existência do corpo

biológico envolvem diversos posicionamentos, revestindo-se de diferentes rituais. O

medo da extinção demanda emergente uma suplência que faça frente a essa

devastação, campo fértil a criações de mitos. A idéia de um paraíso outrora existente

e um dia perdido aguça a imaginação humana, e realidades idílicas minimizam ou

adiam o enfrentamento da crua realidade avassaladora da morte. Nas palavras de

Françoise Dastur,

Com efeito, não há cultura a não ser quando um certo domínio do escoamento irreversível do tempo é assegurado, o que implica o emprego de um sem-número de técnicas destinadas a, progressivamente, amenizar a ausência; e a ausência por excelência é a do morto, que não desaparece momentaneamente, mas absolutamente e de maneira insubstituível. É porque não é ilegítimo ver no luto, tomado no vasto sentido da aceitação da ausência, a origem da própria cultura. Se toda cultura é então, num amplo sentido, cultura de morte, o que os ritos funerários manifestam tão bem quanto à conservação das palavras vivas na escrita, o culto dos ancestrais, os relatos mitológicos e a literatura em geral, é precisamente porque esse corte radical que é a morte deve ser assumido – o que significa dizer ao mesmo tempo aceito e negado (DASTUR, 2002, p. 17).

Dessa feita, percorremos a gênese de algumas dessas construções, inseridas

na diversidade peculiar das especificidades de cada conjuntura ao longo da

história56, considerando a obstinação criativa da raça humana em apreender o

56 O nosso objetivo é ter uma breve visão geral do lugar reservado à morte nos principais períodos da história humana (considerando a especificidade do mundo ocidental) levando em conta que essa, via de regra, está associada a uma construção “mística” de sustentação. Consideramos ainda que o mundo ocidental se rege por um mesmo texto base (a Bíblia) como regra prática de fé, muito embora, a partir desse texto, não haja um saber unificado e sim blocos institucionais que orientem seus credos de formas divergentes entre si.

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59

A morte: um encontro com o desamparo

entendimento da morte, visando a desmistificar esse enigma ou, pelo menos, a

suportar a sua existência.

A aquisição da escrita tem um lugar preponderante nos fundamentos

estruturais do arcabouço das crenças que sustentam a angústia humana ante a

efemeridade da existência. Desde que o homem domina essa ferramenta, um texto

“mestre” sempre norteia as regras de fé e práticas assegurando a base desse saber.

“O Bhagavad Gita, Os Upanishads, o Livro Tibetano dos mortos, a Bíblia e o Corão57

abordam a extinção da existência humana como questão essencial do entendimento

da vida” (GOLDBERG, 1992, p. 03). A base fundamental dos legados de fé é

assegurar que a vida terrena encontre referência numa outra vida, ou seja,

intermedeiam a oferta, a certeza da imortalidade e o preço a ser pago por essa, haja

vista que todos os credos operaram gerenciando as correlações de forças de uma

renúncia a prazeres terrenos, com vistas a um lucro a ser resgatado na posteridade,

na vida eterna.

O primeiro épico apontado como sendo destinado a uma meditação sobre a

transitoriedade da vida é a epopéia mesopotâmica de Gilgamesh.58 Narra a saga do

rei sumério, o quinto da primeira dinastia pós-diluviana da cidade de Uruk.

Gilgamesh (2750 – 2600 a.C.), lendário rei, semideus, que tinha status intermediário

de um homem-animal e ainda assim a condição de mortal, fato evidenciado com

angústia, por ocasião da morte de seu melhor amigo, Enkidu, também semideus. A

57Entres outros, esses são exemplos de textos norteadores de fé, de Oriente a Ocidente, destacáveis e importantes na história da humanidade. O Bhagavad Gita é uma escritura sagrada do hinduísmo, também chamada de Canção do divino mestre e contém as palavras de krishna. Esse texto faz parte da epopéia de Mahäbhärata e foi compilada na forma atual nos séculos V e I a.C. Os Upanishads (literalmente “assentado abaixo”) são a redação das lições dos mestres hindu. Não se sabe quantos Upanishads já existiram, mas cento e oito foram preservados, alguns em prosa, outros em versos – desses, dezesseis foram reconhecidos por Shankara como autênticos oficiais. O Livro Tibetano dos mortos, criado pela civilização pré-budista Bön do Tibete, para indicar como tratar a força psíquica deixada para trás por uma pessoa morta. Destina-se aos mitos – as tradições e aos rituais a respeito de uma pessoa morta. A Bíblia, legado do povo hebreu, único povo monoteísta da antiguidade, ao mundo cristão, foi escrita por quarenta e quatro escritores, sessenta e seis livros que formam um só. Dividem-se a princípio em dois grandes grupos (antigo e novo testamento) e subdividem-se em blocos por cinco grandes temas, e cada livro, individualmente, é completo em si mesmo, com tema próprio de análise. O Corão ou Alcorão é o livro sagrado do Islamismo, significa recitação. É a palavra literal de Alá, revelada ao profeta Muhammad (Maomé) ao longo do período de vinte e dois anos. Foi redigido na linguagem árabe por seus seguidores no século VII d. C. 58 A epopoéia de Gilgamesh é apresentada como sendo o primeiro texto conhecido sobre o tema da morte, como também a mais antiga obra literária da história da humanidade. Seu registro provém de uma tábua de argila em escrita cuneiforme do século VII a C. É parte dos achados da antiga biblioteca de Nínive, referente ao império assírio de Assurbanipal (668-627 a C.) A primeira tradução moderna foi realizada na década de 1860, pelo estudioso inglês George Smith. Gilgamesh, Documentos acerca da Bíblia. Apresentação, tradução e notas de F. Malbran-Labat, Éd. du cef, 1992, p. 59.

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A morte: um encontro com o desamparo

dor da perda remeteu o rei a refletir sobre a transitoriedade de sua existência e o

mobilizou a procurar uma solução para reverter esse mal. Inconsolável, empreende

então uma perigosa viagem em busca de um remédio capaz de evitar a realidade da

morte.

Recorrendo aos registros dos grandes momentos históricos da construção

humana, já na primeira etapa mais rudimentar, a Pré-história59, (o Paleolítico, ou

Antiga Idade da Pedra) (500 a 30 mil a C), quando surge o grupo família, o domínio

do fogo, e os rudimentos de linguagem, aparecem também os primeiros indícios dos

rituais funerários. Alguns autores dividem esse período inicial em dois momentos e

apresentam o Paleolítico superior (30 a 18 mil a C.) e, referido a esse, o surgimento

da arte, com a magia, esculturas e pinturas rupestres, descobertas que evidenciam a

necessidade do sentimento humano de se fazer representar, em alguma via de

expressão que materialize o seu pensamento interior, um registro subjetivo dirigido a

um outro; uma marca, símbolo de uma presença num recorte de tempo.

Para Edgar Morin, “o passaporte de humanidade em ordem, científico,

racional, evidente, é a ferramenta: homo faber. As determinações e as idades da

humanidade são as de suas ferramentas” (MORIN, 1997, p. 23). Associado a essas,

existe uma ferramenta “sentimental” que registra, para além do campo da ciência,

algo que escapa, à primeira vista, ao sentido da explicação racional, “mas que

contém uma revelação comovente: a sepultura, ou seja, a preocupação com os

mortos, ou seja, a preocupação com a morte” (MORIN, 1997, p. 23). Embora em

campos opostos, ainda que, ao mesmo tempo, simultâneos, ferramenta e sepultura

cumprem sua função em desvendar e também em velar o estranho enigma que é a

humanidade. Para Morin, se quisermos compreender a morte, é preciso começar a

trilhar o labirinto do saber sobre o que é ser humano, haja vista que “o dado

primordial, fundamental, universal da morte humana é a sepultura” (MORIN, 1997, p.

24). E essa é tão antiga quanto as demais aquisições criativas que surgiram com o

59 Não se faz necessário detalharmos no corpo do texto as três fases de desenvolvimento da pré-história (alguns autores a subdividem em três e outros em duas), apenas fazer referência ao lugar de destaque reservado à morte desde a organização humana mais primitiva. A segunda etapa da Pré-história é o Neolítico ou Nova Idade da Pedra (18 a 5 mil a. C.). Ocorre a domesticação dos animais, o advento da agricultura, do tear e os esboços de concepções religiosas. A terceira etapa, a Idade dos Metais (5 a 4 mil a C.) foi quando se desenvolveu o emprego do cobre, bronze, ferro e outros metais, a agricultura, o transporte, o início das instituições como o Estado e as organizações religiosas com poderes estabelecidos e principalmente de domínio e punição. Em seguida, vieram o Egito, os sumérios, acádios, assírios e persas, as cidades-estados gregas, o Império Romano e, nesse, o início da era cristã e seus efeitos até os dias atuais.

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A morte: um encontro com o desamparo

advento da ferramenta e que deram rumo ao percurso cognitivo das grandes

descobertas.

Os estudos etnológicos referendam que “não existe nenhum grupo arcaico,

por mais primitivo que seja, que abandone seus mortos ou que os abandone sem

ritos” (MORIN, 1997, p. 25). Independente do conceito apreendido da morte, ela é

parte da vida e demanda um sentido, motivador da construção de um rito. Via de

regra, o rito está associado a uma forma de elaborar a ausência do falecido, como

também associado à idéia de continuidade do morto em uma outra morada. Pode

ser entendido como um sono, a espera de uma viagem de acesso a um lugar

melhor; de um passe de morada à casa dos ancestrais. Todos esses lugares são

como referência a um prolongamento da vida terrena (MORIN, 1997, p. 26) A

questão da imortalidade vela e desnuda a realidade concreta da morte. Para Morin,

Todos reconhecem que o morto não é mais um vivente comum, pois é transportado, tratado de acordo com ritos especiais, enterrado ou queimado. Existe, portanto, uma consciência realista da morte incluída na noção pré-histórica e etnológica de imortalidade: não a consciência da ‘essência’ da morte, esta jamais foi conhecida e jamais o será, pois a morte não tem ‘ser’; e sim da realidade da morte; se a morte não tem ‘ser’, no entanto é real, acontece; depois esta realidade vai encontrar seu nome exato: a morte, e mais tarde ainda será reconhecida como lei inelutável: ao mesmo tempo em que se pretender imortal, o homem se chamará de mortal. Assim, a mesma consciência nega a morte: ela nega como aniquilamento, mas a reconhece como fato (MORIN, 1997, p. 26, grifo nosso).

Intermediando a realidade da morte e a crença da aquisição da imortalidade,

se ergue o ritual funerário. É o preparo do corpo do morto para o sepultamento,

como também o primeiro momento que os vivos têm para começar o processo de

elaborar o luto e o preparo para a ausência definitiva. É o ritual funerário que

mistifica, em alguma medida, o horror da decomposição cadavérica que está por vir,

independente do método de rito e do destino final do corpo na forma de

sepultamento60. “A etnologia nos mostra que em toda parte os mortos foram ou são

60 Os registros etnológicos revelam diversos tipos de sepultamentos entre os primitivos. “Os mortos mustersenses são enterrados; pedras são amontoadas sobre os seus despojos, cobrindo especialmente o rosto e a cabeça. O esqueleto é pintado com uma substância cor de sangue”. [...] “Os Koriaks do leste siberiano lançam seus mortos ao mar, estes são confiados ao oceano e não abandonados.” [...] “Nas ilhas Andaman, após a morte de alguém, os nativos desertam da aldeia por vários meses, e colocam guirlandas de folhas para advertir o estrangeiro do perigo” [...] “Nos elevados planaltos de Madagascar, durante a vida inteira, os Kiboris constroem a casa de alvenaria de sua morte”. (MORIN, 1997, p. 26). Há também as tribos que queimam seus mortos.

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A morte: um encontro com o desamparo

objetos de práticas que correspondem, todas elas, a crenças referentes a sua

sobrevivência (na forma de espectro corporal, sombra fantasma, etc) ou a seu

renascimento” (MORIN, 1997, p. 25).

A expressão criativa, revelada na arte pelo fazer humano, associa-se também

como uma outra forma de escrita, revelando o campo dos sentimentos na vertente

do enfrentamento com a morte. A arte funerária dos egípcios é a revelação mais

antiga de vidas destinadas a cultuar a espera da morte e a dominar a presença do

medo. É ainda a revelação de um modo de viver em função da morte; de vidas

dedicadas a se especializarem na “arte” de como encontrar a morte; de como fazer

da transitoriedade mortal uma ponte à imortalidade. O corpo embalsamado aguarda

a evidência dessa crença. Espera em um aparente sono, adornado por seus

pertences pessoais, nas faraônicas moradas, casa dos mortos, similitude da vida

recém-abandonada.

A idéia da imortalidade mobilizou o mundo arcaico a criar um ritual61 de

convivência entre o mundo dos mortos e o mundo dos espíritos. Os mortos, em

forma de espectro espiritual, continuam a atuar como participantes dos bens, da

guerra, da caça, da colheita e como norteadores de bons ou maus fluídos. Alguns

rituais também se constituem para apaziguar esse convívio entre os dois mundos

paralelos. Constrói-se um arsenal de formas de relacionamentos que incluem

oferendas de alimentos e de objetos. Esses simbolizam aparente meio de trânsito do

universo dos mortos ao mundo dos vivos; rituais que, embora modificados ao longo

da história, permanecem nos dias atuais e cumprem a função de guardiãs da

memória do morto; garantias dessa ambígua relação afetiva desencadeada com a

realidade da morte. Segundo Morin,

[...] é este complexo dialético que revelam os funerais e os lutos. O luto exprime socialmente a inadaptação individual à morte, mas, ao mesmo tempo, ele é este processo social de adaptação que tende a fechar a ferida dos indivíduos sobreviventes. Após os ritos da imortalidade e o fim do luto, após um ‘penoso trabalho de desagregação e de síntese mental’, só então a sociedade, ‘tendo voltado à paz, pode triunfar da morte’. A ‘sociedade’, por certo, mas não oposta ao indivíduo, trata-se aqui da realidade humana total. E do mesmo modo, no que concerne à crença na imortalidade, a religião vai

61 Para Brandão, “através do rito, o homem se incorpora ao mito, beneficiando-se de todas as forças e energias que jorraram nas origens. A ação ritual realiza no imediato uma transcendência vivida. O rito é a práxis do mito. É o mito em ação. O mito rememora, o rito comemora” (BRANDÃO, 2002, p. 39).

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A morte: um encontro com o desamparo

se encontrar no nó complexo de inadaptação e de adaptação (MORIN, 1997, p. 80).

A angústia que a morte demanda na individualidade de cada ser é, em

alguma medida, amenizada na inserção com um outro, um semelhante, igualmente

portador do mesmo destino. Os grupos arcaicos são o modelo mais consistente da

vida individual existindo, submetida à estrutura do grupo. “Viver é justamente

pertencer intimamente a seu grupo, vivos ou mortos, os membros do clã pertencem

intimamente ao grupo, ao clã” (LÉVY-BRUHL. Apud MORIN, 1997, p. 38). Nos

grupos primitivos a existência individual está absorvida ao sentimento de existência

atrelado à relação simbiótica do grupo. Nesse contexto, “a participação do indivíduo

no corpo social é um dado imediato contido no sentimento que ele possui de sua

própria existência” (LEVY- BRUHL, apud MORIN, 1997, p. 40). Em função disso,

para esse autor, o medo da morte tem menor relevância entre os grupos primitivos

que nos grupos sociais posteriores.

Esses primeiros modelos de vida social instituída são a primeira referência da

vida individualizada pedindo guarida no aparato de sustentação do grupo social. O

contato com a morte, no plano individual, encontra suporte nos ritos de passagem

elaborados em grupo e na idéia de imortalidade, garantia de continuidade e

reencontro coletivo. Mesmo assim, destaca-se a evidência de “que nenhuma

sociedade, inclusive a nossa, conheceu ainda a vitória absoluta, seja da

imortalidade, seja da consciência desmistificadora da morte, seja do horror da morte,

seja da vitória contra o horror da morte” (MORIN, 1997, p. 38).

Nos trâmites “naturais” de evolução histórica, mesmo considerando-se as

nuanças de conjuntura62, pode-se evidenciar o lugar de destaque mitificado por cada

cultura em relação à questão da morte, tanto quanto sobre o destino, reservado aos

mortos e aos mais próximos, envolvidos nesse contexto da extinção da existência.

Morin destaca um “tríplice dado da consciência humana da morte (consciência

realista, consciência traumática, afirmação de um além-morte)”, como também o

62 Não nos deteremos nessa questão, mas é importante ressaltá-la. “A diferenciação social desde o grupo arcaico, depois quando esta diferenciação chegou às relações de classes, a luta de classes, faz pesar suas determinações sobre a consciência do horror da morte” (MORIN, 1997, p. 50). Assim as figuras religiosas de destaque; dominadoras da magia, ou dominadoras de um saber clerical místico, tanto quanto a figura política de relevância no contexto; o rei divinizado modifica o lugar da morte e oferece um outro tipo de sentido, como se um certo domínio a esse respeito pudesse ser encontrado no saber supremo, dessas, igualmente míticas figuras.

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A morte: um encontro com o desamparo

detalhe importante da “coexistência originária e dialética” (MORIN, 1997, p. 38). Dito

de outro modo, o humano se contradiz na sedução e na repulsa presente na

situação da morte. “O que chamamos de ‘consciência humana de morte’ é apenas

uma parte, um dos dois pólos das realidades antropológicas da morte. Pois, nós o

veremos claramente, junto ao horror da morte, existe o seu contrário, o risco da

morte” (MORIN, 1997, p. 38).

Em relação ao “terror da morte” que persegue o humano em sua efemeridade

encontra-se uma fenda que se manifesta em duas vertentes: o canibalismo e o

assassinato. “O canibalismo é coisa originalmente humana. Praticado desde a pré-

história, ele existe ainda em muitas tribos arcaicas, quer seja o endocanibalismo

(canibalismo dos funerais) quer o exocanibalismo (devoração dos inimigos) (MORIN,

1997, p. 65). Num outro pólo dessa mesma lacuna, aparentemente contraditória, e

igualmente reveladora da essência da estrutura humana, nos deparamos com o

assassinato. Segundo Morin,

O assassinato, que aparentemente contradiz de modo tão violento ‘o horror da morte’, é um dado humano tão universal quanto este horror. Humano porque o homem é o único animal a matar seu semelhante sem necessidade vital: se o vestígio do primeiro ‘crime’ pré-histórico conhecido é muito mais recente que o primeiro túmulo, este miserável crânio despedaçado pelo sílex testemunha a seu modo sobre o humano. Universal porque se manifesta desde a pré-história, porque se perpetra durante toda a história, exprimindo lei (talião, castigo), encorajado pela lei (guerra), ou o inimigo da lei (crime). Quantos crânios despedaçados desde o primeiro ‘assassinato’. Poderíamos agora repetir o que já dissemos a respeito da sepultura. Nas fronteiras do no man’s land, o assassinato aparece, passaporte manchado de sangue, como um fenômeno tão humano que a Bíblia, com o crime de Caim, faz dele a primeira notícia da crônica da família terrestre, e que Freud o considera como o ato originário da humanidade (assassinato do pai pelos filhos, na horda primeva) (MORIN, 1997, p. 66).

A trajetória de construção da história humana está atrelada a sua relação com

a morte e às situações de riscos em direção a esse encontro. “O risco de morte vai

além da guerra, vai além da barbárie do homicídio, envolve todos os setores da

atividade humana” (MORIN, 1997, p. 72). A busca, “compulsiva de repetição”, em

direção ao risco de morte, intermedeia o contraponto entre se saber mortal e se

desejar imortal. Está no âmago das correlações de forças entre as pulsões de vida e

de morte que se mesclam no fazer cotidiano, quase que imperceptíveis, de tão

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A morte: um encontro com o desamparo

intrínsecas à estrutura humana. “O risco de morte é o paradoxo supremo do homem

diante da morte, pois contradiz total e radicalmente o horror da morte. E, no entanto,

não menos que este horror, o risco de morte é um dado fundamental” (MORIN,

1997, p. 70).

A assimilação dos conceitos e preceitos culturais tem, na criação dos mitos,

uma ferramenta de linguagem preponderante. A disseminação e sustentação de

saberes construídos por via mítica respaldam o repasse de conteúdos de aceitação

questionáveis, via “fábula”63 facilitam a compreensão e a elaboração de sentimentos

difíceis de suportar e coincidentes, na personagem e na realidade da vida. Os mitos

interpretam “o mundo como produto de uma criação de dramas e aventuras quase

humanos”, facilitando a identificação (como em espelho) da realidade e da fantasia.

“O mito, neste sentido, é a irrupção do cosmo no homem, é o cosmomorfismo64.

Com suas metamorfoses, as lendas supõem a analogia do homem e do mundo65

(MORIN, 1997, p. 96). E, atrelado a esses, a construção do conjunto de tabus, que

são sutilmente assimilados e incorporados como parte do viver sem demandar

maiores questionamentos.

A aquisição da linguagem, marca decisiva no ato de fundação humana, abriu

o processo mito-criador66 a seu interminável circuito67. Segundo Morin,

[...] Foi o ponto de partida de uma prodigiosa dialética mão-cérebro e cérebro-palavra, mãe de todas as técnicas e de todas as idéias. Tudo está ligado: o maxilar, libertado pela mão da maior parte de seu antigo trabalho, ela própria libertada pela ferramenta, ferramenta esta produzida pela mão inteligente... O focinho se transformou em rosto, o sílex, em ferramenta, a mão se tornou inventiva, e o espírito se viu tomado pela morte... (MORIN, 1997, p. 89, grifo nosso).

63 O termo “fábula” aqui utilizado não se propõe a questionar a veracidade do mito. Apenas queremos destacar a narrativa como representação de fatos, que facilita sua assimilação com a realidade da vida. 64 O mito traz a dupla vertente entre o cosmomorfismo e o antropomorfismo, visto que animais, plantas e coisas têm sentimentos humanos, se comportam como humanos e exprimem desejos humanos (MORIN, 1997, p. 96). 65 Já comentamos o lugar do totem, mito por excelência, nas comunidades arcaicas e em nome dele, as leis e os tabus erguidos, sustentando a estrutura de toda vida tribal. 66 A função do mito é similar à construção criativa da arte. Favorece a criação do duplo que possibilita viver situações sem correr o risco de se consumir nelas. Viver na atividade criativa o mais além da elaboração de desejos protegidos no campo irreal da fantasia. 67“Através da linguagem, do símbolo, do mito, do totem”, o sentimento humano; pura pulsão, se libera a participar a liberar sua realidade nessa fantasia. “No encontro deste ‘cósmico’, se realiza a apropriação do mundo e do homem e pelo homem” (MORIN, 1997, p. 97).

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A morte: um encontro com o desamparo

O mito é porta-voz da linguagem humana em todas as culturas, e situa-se

entre o duplo paradoxo do campo da razão e da fé. Seu sentido nas culturas

primitivas “é o relato de um acontecimento ocorrido no tempo primordial, mediante a

intervenção de entes sobrenaturais” (BRANDÃO, 2002, p. 35). As principais origens

míticas68 referem-se à Teogonia: o nascimento dos deuses; à Cosmogonia: que

conta a criação do mundo; e à Escatologia: mitos que explicam o destino do homem

após a morte. Encarnando fenômenos cuja gênese são fundamentais à vida, “o mito

é sempre uma representação coletiva, transmitida através de várias gerações e que

relata uma explicação do mundo. Mito é, por conseguinte, a parole, a palavra

‘revelada’, o dito (BRANDÃO, 1997, p. 36). Mesmo nas culturas não pagãs ou

politeístas, o mito veste o caráter aceitável ao contexto, e cumpre sua função de

apaziguar o espaço entre o mundo das incertezas e a necessidade de uma palavra

que preencha essa lacuna.

A travessia humana da Pré-história (última etapa da Idade dos Metais) para a

história se faz pela aquisição da escrita, marca ímpar nos desdobramentos que essa

ferramenta inscreve na raça humana. A cultura grega terá destaque no mundo

antigo69 por todo o legado deixado à história da humanidade. A construção

mitológica grega oferece um aprendizado bem peculiar, no relacionamento entre os

deuses do Olimpo e os terrestres mortais. A Ilíada70, como herança de narrativa

épica, seguida da Odisséia71 são, ambas, parte da constituição formadora da criação

literária até nossos dias. O legado grego protegido pelo processo da cultura

helenística assegurou a imortalidade dessa herança cultural para a posteridade.

Os gregos tinham um sistema religioso marcado por múltiplas cerimônias aos

deuses com oferendas ritualísticas de armas, jóias, esculturas, vasos sagrados e

mesas de libação para o sacrifício animal. A relação entre deuses e humanos

acontecia com maior proximidade e as intervenções divinas mais visíveis. Cavernas

68 Os mitos portam a verdade segundo a ótica de um contexto cultural e é nesse recorte que sua força é melhor exercida. 69 Não estamos desconsiderando a contribuição das civilizações anteriores como, por exemplo, a egípcia e mesopotâmica (principalmente no que diz respeito ao culto à morte). Apenas damos maior enfâse ao mundo grego pelo excedente de intertextualidade com essa mitologia até os dias atuais. 70A Ilíada é considerada o primeiro texto escrito do mundo ocidental. A autoria, embora questionada, é atribuída a Homero. Narra a história da guerra entre gregos e troianos e, em meio a essa, todas as nuanças da estrutura humana entre amores, escolhas, dores, perdas, mortes e funerais, na relação desigual entre os deuses do Olimpo (imortais) e os pobres mortais, à mercê dessa intervenção. 71Pelo prisma histórico, a Ilíada é considerado um poema bem mais antigo. A Odisséia reflete um estágio muito posterior da história da cultura. (JAEGER, 1995, p. 37).

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67

A morte: um encontro com o desamparo

e grutas integram a parte primitiva dos templos como locais de adoração e sepultura.

Os jogos eram parte intrínseca do culto (BRANDÃO, 2000, p. 53). A morte tinha

lugar privilegiado entre os rituais e a sepultura era um direito que não podia ser

negado para que o espírito do morto não ficasse a vagar sem destino. Segundo

Brandão,

Ao culto em favor dos vivos estava indissoluvelmente ligado o culto em benefício dos mortos. Estes eram inumados e não cremados. Os cadáveres eram introduzidos pelo alto em salas mortuárias profundas, providas de oferendas e de objetos da vida comum: indumentárias, armas, talismãs, vasos e até archotes, o que mostra que para os minóicos a vida no além continuava muito semelhante àquela que tiveram neste mundo. As oferendas eram renovadas, e até mesmo sacrifícios eram oferecidos aos mortos, sem que se possa afirmar com certeza se estes foram divinizados (BRANDÃO, 2000, p. 57).

A partir da Era Cristã inauguram-se novas concepções do homem frente as

suas questões diante da morte. O mito se reveste de fé, ganha caráter de

veracidade, e o cristianismo recobre com maior propriedade os mitos pagãos. A

morte jaz adormecida e seu temor fica adiado e mistificado na esperança de um

recomeço no paraíso resgatado. Ariès afirma que, “desde que o Cristo ressuscitado

triunfou sobre a morte, a morte neste mundo tornou-se a verdadeira morte, e a morte

física, acesso à vida eterna” (ARIÈS, 1981, p.14). Sem dúvida que a religião72, cristã

ou não, oferece explicações paliativamente aceitáveis sobre o entendimento da

morte73, variando conforme a especificidade de cada credo. O fato é que a criatura

humana necessita de alguma palavra que apazigúe o “mal-estar” causado pelo

enfrentamento dessa questão.

“Num mundo submetido a mudanças, a atitude tradicional diante da morte

aparece como um dique de inércia e continuidade” (ÁRIES, 1981, p. 31). Uma

atitude global frente à morte, uma posição acrônica, resistiu às pressões evolutivas

durante cerca de dois milênios, mas paulatinamente cedeu às mudanças e pôde-se

observar esse movimento evolutivo e quase em posição oposta ao enfrentamento 72 “Religião” é aqui usado no sentido do termo de culto prestado a uma divindade, mas, também, e principalmente, no sentido de mais além, ou seja, na elaboração psíquica que a fé em um determinado credo, estrutura de regras e práticas, de interditos morais no contexto social e o fio tênue entre o profano e o sagrado, motivadores de medos, culpas e rituais expiatórios. 73 A idéia do duplo (morte-renascimento) já presente nas crenças primitivas, ganha melhor respaldo no arcabouço de fé cristã.

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A morte: um encontro com o desamparo

atual (ARIÈS, 1981, p. 31). Na sociedade contemporânea a morte perde seu lugar

no seio da família como parte de acontecimento natural, sua presença se revela

como uma erupção dolorosa. “A atitude antiga em que a morte está ao mesmo

tempo próxima, familiar, diminuída, e insensibilizada, opõe-se demais à nossa, e nos

causa tanto medo que nem ousamos dizer-lhe o nome” (ARIÈS, 1981, p. 31).

Ariès toma de empréstimo da lingüística as noções de sincronia e diacronia

para analisar as atitudes humanas diante da morte, dividindo-as nessas duas

vertentes. Num primeiro recorte histórico ele considera que há um momento de

sincronia e vai chamá-lo de morte domada. É o primeiro período da Idade Média;

período da morte anunciada. “Sua característica estava no fato de que ela dava

tempo pra ser percebida74” (ARIÈS, 1981, p. 07). A literatura dessa época

exemplifica ricamente a relação do homem com a morte. É a morte honrosa e

esperada dos cavaleiros; a morte dos soberanos, ou ainda a morte dos monges

piedosos. O enfermo admite sua verdade e toma as atitudes necessárias à ocasião.

A morte anunciava-se e era bem vinda. “As mesmas palavras passaram assim de

época em época, imóveis como um provérbio” (ARIÈS, 1981, p. 29). Segundo Ariès,

Sabendo de seu fim próximo, o moribundo tomava suas providências. E tudo vai ser feito muito simplesmente, como no caso dos Pouget ou dos mujiques de Tolstoi. Em um mundo de tal forma impregnado do maravilhoso como o dos Romans de la table ronde [Romances da Távola Redonda], a morte era algo muito simples (ARIÈS, 1981, p. 31).

A crença em avisos de premonição aguça esse universo de existência

sobrenatural permeando a realidade de uma maneira aparentemente simples e

natural. “Essa crença de que a morte avisa, que atravessou os séculos, sobreviveu

por muito tempo nas mentalidades populares. Tolstoi teve o gênio de reencontrá-la,

perseguido como era pela morte e ao mesmo tempo pelo mito do povo” (ARIÈS,

1981, p. 11). A morte no contexto dessa época era parte, um fascículo da história de

cada sujeito. Ainda que “nem todo mundo possuía tanta clarividência, mas todos

74 A exceção se dava para as mortes terríveis, como é o caso de pestes ou mortes súbitas, ditas como excepcionais, não sendo, portanto, levadas em conta e não havendo necessidades de serem mencionadas. Ser acometido de morte repentina era como receber um castigo da cólera divina. O suicídio também não era bem visto e os que assim procediam perdiam o direito de serem enterrados em solo santo, ou junto aos demais cristãos, ou seja, não tinham direito ao ritual cerimonioso do funeral.

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69

A morte: um encontro com o desamparo

sabiam que iam morrer, e sem dúvida a previsão tomou formas proverbiais que

passaram de época para época” (ARIÈS, 1981, p.10). O fato é que ela não era

temida, era recebida como sendo chegada a hora de sua vinda. “Furtar-se ao aviso

da morte era expor-se ao ridículo” (ARIÈS, 1981, p. 11).

Naturalmente que o moribundo se enternecia com a sua vida, com os bens possuídos e com os seres amados. Mas o seu pesar nunca passava de uma intensidade muito fraca em relação ao patético desse tempo. O mesmo acontecerá ainda em outras épocas, que também tinham facilidade de declamação como a era barroca. O desgosto por deixar a vida ficava, portanto, associado à simples aceitação da morte próxima. Estava ligado à familiaridade com a morte, numa relação que permanecerá constante através dos tempos (ARIÈS, 1981, p. 17).

A aceitação da morte, inserida nas providências a serem tomadas, envolve

algumas etapas de ritual. A primeira diz respeito à retrospectiva da vida num ato de

lamento, “uma evocação, triste, mas muito discreta, dos seres e das coisas amadas,

uma súmula reduzida de algumas imagens” (ARIÈS, 1981, p. 32). Após esse

lamento nostálgico, segue-se o recebimento do perdão, por parte dos que

acompanham o moribundo em seu leito de morte e esse perdão porta as bênçãos de

Deus. Para o moribundo, agora é tempo de contrição; esquecer o mundo e voltar-se

a Deus. As orações dividem-se em dois momentos: um pedido de perdão dirigido a

Deus e uma absorção sacerdotal. Esse ato eclesiástico era administrado pelo

sacerdote com a leitura dos salmos e no ato de aspergir o corpo com água benta75.

Ao fim das preces, cumpre-se apenas esperar a morte com resignado silêncio

(ARIÈS, 1981, p. 33).

Todo esse cerimonial da morte, organizado e presidido pelo próprio

agonizante (auxiliado pelo médico ou o padre), era cumprido com simplicidade, sem

excessos emocionais e nem dramáticos. Contava com a presença dos familiares,

amigos, incluindo as crianças. Era uma cerimônia pública, embora no quarto do

enfermo, em que todos os envolvidos transitavam livremente pelo recinto. E

igualmente acompanhavam o cortejo ao último jazigo (ARIÈS, 1981, p. 34).

75 Era dado ao moribundo o Corpus Christi. A extrema–unção era reservada aos clérigos e dada solenemente aos monges na igreja (ARIÈS, 1981, p. 34).

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70

A morte: um encontro com o desamparo

Para manter o mundo dos vivos numa certa reserva ao mundo dos mortos, os

cemitérios eram situados fora das cidades, à margem das estradas. Existia ainda a

herança do mundo primitivo, o cuidado com o destino dos mortos e a possibilidade

de retorno ao convívio cotidiano dos que tinha deixado ao morrer. “Apesar de sua

familiaridade com a morte, os antigos temiam a proximidade dos mortos e os

mantinham a distância. Veneravam as sepulturas, em parte porque temiam a volta

dos mortos” (ARIÈS, 1981, p. 36). Depositavam nas sepulturas inúmeras oferendas,

porém as localizavam a certa distância da comunidade. O retorno dos mortos,

através das sepulturas, para dentro da cidade, começou com o culto aos mártires, de

origem africana, em necrópoles extra-urbanas (a princípio). A veneração desses

atraía adeptos a essas sepulturas, vindo depois o enterro cristão acontecer dentro

do pátio das igrejas76. Era uma forma de o morto absorver a proteção dos santos.

Essa repugnância à proximidade dos mortos logo cedeu entre os cristãos antigos, primeiro na África e em seguida em Roma. Tal mudança é notável: traduz uma grande diferença entre a atitude pagã e a nova atitude cristã em relação aos mortos, apesar do reconhecimento comum da morte domada. Daí por diante e durante muito tempo, até o século XVIII, os mortos deixaram de fazer medo aos vivos, e uns e outros coabitaram nos mesmos lugares, por trás dos mesmos muros (ARIÈS, 1981, p. 11).

“Ainda se pode reconhecer a estreita relação entre o cemitério77 e a igreja nas

palavras que os designam e na ambigüidade do seu emprego. Para estabelecer um

cemitério, construía-se uma igreja” (ARIÈS, 1981, p. 56). Com a mudança da

mentalidade cristã do temor no convívio com os mortos, ou pelo menos, com a

habitação dos mortos, os cemitérios perderam a posição sacra.78. Passaram a ser

parte das localidades pobres e os enterros acontecendo em valas comuns, sem

ataúde, apenas com o envolvimento do sudário79. É comum nesse período a

exposição de ossos em covas rasas e até com a possibilidade de brotarem da terra

76 A mudança dos cemitérios ao convívio da cidade começou com o enterro do clero dentro das igrejas (perto do santíssimo) 77 Aitre et charnier (Adro e carneiro) são os termos mais antigos para designar o cemitério na língua falada. A palavra cemitério pertenceu de preferência, por muito tempo, à língua erudita dos clérigos: uma palavra grega latinizada. (ARIÈS, 1981, p. 56). 78 O cemitério na igreja ou em campo privado ficava reservado ao clero e aos que podiam pagar por direitos a essas sepulturas. 79 É a época de extrema pobreza em que assolam grandes surtos de epidemias. Há um grande número de mortes com enterros coletivos.

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A morte: um encontro com o desamparo

em valas úmidas e fétidas. O pórtico das igrejas também era usado para enterros. “A

função cemiterial começava no interior da igreja, aquém dos seus muros e

continuava além deles...” (ARIÈS, 1981, p. 56).

Houve uma grande ruptura entre as atitudes mentais diante dos mortos da Antiguidade e as da Idade Média. Na Idade Média, os mortos eram confiados, ou antes, abandonados à igreja, e pouco importava o lugar exato de sua sepultura que, na maior parte das vezes, não era indicada nem por um monumento nem mesmo por uma simples inscrição. Por certo, desde o século XIV e, sobretudo, desde o século XVII, observa-se uma preocupação mais forte e mais freqüente em localizar a sepultura, e esta tendência testemunha um sentimento novo que se exprime cada vez mais, sem que se possa impor inteiramente. A visita devota ou melancólica ao túmulo de um ente querido era um ato desconhecido (ARIÈS, 2003, p. 74).

A segunda metade da Idade Média80 trouxe sutis modificações. Começa uma

fase em “que, pouco a pouco, darão um sentido dramático e pessoal à familiaridade

tradicional do homem com a morte” (ARIÈS, 2003, p. 46). A velha tradição de

sincronia estava associada a um destino socializado pela natureza humana como

condição natural da espécie, era o destino coletivo. Dentre as lentas mudanças

sociais, destaca-se o poder da Igreja. O cristianismo opera nessas modificações

destacando a individualidade de cada sujeito e a responsabilidade deste perante o

juízo final. Ocorre uma exaltação dos temas do Apocalipse81; temas macabros

envolvendo a decomposição cadavérica e a epígrafe funerária como uma marca

individualizada, personificada de cada sepultura.

A escatologia passa então a ter seu suporte de sustentação nos

ensinamentos e nas revelações apocalípticas. Essas falam da ressurreição dos

mortos, do grande juízo final e da separação entre justos e injustos. É ressaltada a

prestação de contas individual, segundo o merecimento de cada um; juízo inscrito no

livro da vida. Ariès denomina esse momento do homem frente à morte como a morte

de si mesmo. O isolamento pessoal com esse momento. Apesar de acompanhado,

morre-se sozinho e com o destino final ignorado. Michel Foucault retrata assim esse

período: 80 Começando a partir do século XI e XII. 81 A palavra “Apocalipse”, usada como título do último livro da Bíblia, vem do grego apokalupsis, significa ‘revelação daquilo que estava anteriormente escondido ou que era desconhecido’. Desvenda os grandes acontecimentos do encerramento da história, inclusive a revelação de Jesus Cristo em seu segundo advento (Bíblia anotada de Dr. C. I. SCOLFELD. 1983, p.1282).

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72

A morte: um encontro com o desamparo

Até a segunda metade do século XV, ou mesmo um pouco depois, o tema da morte impera sozinho. O fim do homem e o fim dos tempos assumem o rosto das pestes e das guerras. O que domina a existência humana é este fim e esta ordem à qual ninguém escapa. A presença que é uma ameaça no interior mesmo do mundo é uma presença descarnada. E eis que nos últimos anos do século esta grande inquietude gira sobre si mesma: o desatino da loucura substitui a morte e a seriedade que a acompanha. Da descoberta desta necessidade, que fatalmente reduzia o homem a nada, passou-se à contemplação desdenhosa deste nada que é a própria existência (FOUCAULT, 2002, p. 16).

Nessa perspectiva da morte, como sendo a morte de si mesmo, inaugura-se

uma posição irreversível em relação à posição anterior com a resignação ao destino

coletivo, a morte domada. No código cristão “o salário do pecado é a morte e o dom

gratuito de Deus é a vida eterna” (Romanos, 6:23)82. Resta saber como estar dentro

da abrangência desta “graça”. A morte se transfere para uma posição temível.

Passa a ser um momento de enfrentamento e de ajustes de contas com o poder

divino. Do lugar de sono anterior, “os mortos dormem”83; na passagem do lugar de

descanso à espera da ressurreição, para o lugar do silêncio e da incerteza sobre a

punição ou absorção no julgamento cristão.

A morte gradativamente ganha novos sentidos, da exaltação dramática e

arrebatadora ao esvaziamento individual. O homem “já se ocupa menos da própria

morte e, assim, a morte romântica, retórica, é antes de tudo a morte do outro - o

outro cuja saudade e lembrança inspiram, nos séculos XIX e XX, o novo culto dos

túmulos e cemitérios” (ARIÈS, 2003, p. 64). Para Ariès, o luto exacerbado dessa

época está relacionado à dificuldade de aceitar a morte do outro. “Esse sentimento é

a origem do culto moderno dos túmulos e dos cemitérios” (ARIÈS, 2003, p. 72).

Essas mudanças já se fazem notar a partir do século XVI. Um novo prisma abrange

o tema da morte que passa a ser associada a um sentido erótico. Ariès observa que,

Do século XVI ao XVIII, cenas ou motivos inumeráveis, na arte e na literatura, associam a morte ao amor, Tanatos a Eros – temas erótico-macabros ou temas simplesmente mórbidos, que testemunham uma extrema complacência

82

Epístola de São Paulo aos Romanos (Bíblia Sagrada anotada por SCOFIELD, p. 1151). 83 Durante o primeiro milênio não se concebia a morte como a separação entre a alma e o corpo, mas um misterioso sono do ser indivisível. Repousava-se para esperar o dia da ressurreição. (ARIÈS, 2003, p. 190).

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73

A morte: um encontro com o desamparo

para com os espetáculos da morte, do sofrimento, dos suplícios (ARÈIS, 2003, p. 65).

Esses temas se estendem de sua representação na literatura e na arte,

abrangendo também o cerne de figurações de aspecto religioso. Imagens místicas

de santos são representadas numa forte aproximação do êxtase sacro ao transe

amoroso84. Para Ariès,

Como o ato sexual, a morte é, a partir de então, cada vez mais acentuadamente considerada uma transgressão que arrebata o homem de sua vida cotidiana, de sua sociedade racional, de seu trabalho monótono, para submetê-lo a um paroxismo e lançá-lo, então, em um mundo irracional, violento e cruel. Como o ato sexual para o Marquês de Sade, a morte é uma ruptura (ARIÈS, 2003, p. 65).

O período de transição da Idade Média à Idade Moderna, logo após o ápice de

um mundo marcado pelas pestes, traz a marca macabra da presença da morte. Os

sentimentos mistos (a “mania” e o torpor melancólico) revelavam-se em danças

frenéticas e paradoxalmente macabras. A exemplo da conexão criada nesse período

entre a morte e o erotismo, encontra-se “a dança da morte (Dance macabre,

totentanz), que evoca o duplo terror da peste e do frenesi da dança” (SCLIAR, 2003,

p. 98). A morte, assim, associada ao erótico, ganha conotação obscena, um tipo de

transgressão que atinge impiedosamente a humanidade.

É essa ruptura que vai marcar acentuadamente a maneira de lidar com a

morte a partir de então. “Essa noção de ruptura nasceu e se desenvolveu no mundo

das fantasias eróticas. Passará ao mundo dos fatos reais e ocorridos” (ARIÈS, 2003,

p. 66). Dessa feita, houve uma sublimação e os conteúdos eróticos ficaram

subjugados à beleza. “A morte não será desejável, como nos romances macabros,

mas sim admirável por sua beleza: é a morte que chamaremos de romântica”

(ARIÈS, 2003, p. 66). Essa posição devolve à morte o cerimonial ritualístico de

passagem acompanhado pelos parentes e amigos. A diferença é que ela não é mais

84 É um forte exemplo dessa representação a imagem das duas santas romanas, Santa Tereza e Santa Ludovica Albertoni, feitas por Bernini. Estas são representadas no momento em que são enlevadas pela união mística com Deus, mas seu êxtase mortal tem toda a aparência deleitada e cruel da excitação amorosa (ARIÈS, 2003, p. 147).

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74

A morte: um encontro com o desamparo

banalizada. Há muita comoção, choro, sofrimento e súplicas. A dor dos

acompanhantes revela a insatisfação com a separação do morto.

Em direção oposta ao horror, surge nessa época uma veneração romanceada

ao tema da morte. Um anelo ao paraíso perdido e reencontrado apenas com a

morte. Ela será inspiração ao diário de jovens sonhadores e de poetas. A tristeza

passa a ser cultuada e a literatura repleta de narrativas que idealizam relações de

amor impossíveis, culminando com a morte dos enamorados, e essa, como uma

promessa de continuidade juntos num outro mundo além, para sempre, imortalmente

juntos. É um momento de complacência para com a idéia da morte, pano de fundo

para o Romantismo. Segundo Ariès,

Seremos tentados a explicar esse transbordamento de afetividade macabra pela religião, a religião emotiva do catolicismo romântico e do pietismo, do metodismo protestante. Evidentemente, a religião não é estranha ao caso, mas o fascínio mórbido da morte exprime, sob uma forma religiosa, a sublimação das fantasias erótico-macabras do período precedente (ARIÈS, 2003, p. 68).

Paralelo a essa postura romântica, coabita uma evocação de morte realista e

verdadeira referente à presença do próprio cadáver. Ocorre um culto ao

“despojamento” e ao “esvaziamento” do corpo e da vida que se reflete em uma visão

de mundo permeada por um imaginário fantasioso, repleto de “ilusões romanescas”.

“A morte tornou-se nesse período – e somente nesse período – um objeto de

fascínio”. Convivem lado a lado duas vertentes, “relacionadas uma com a outra – a

do erotismo macabro e a do mórbido. Do século XVI ao XVIII, operou-se uma nova

aproximação, em nossa cultura ocidental, entre Tanatos e Eros” (ARIÈS, 2003, p.

147).

O contato com cadáveres e práticas de exumação, inclusive, fora do campo

da investigação da medicina, permearam o contraditório plano do sublime e do

profano na postura humana diante da morte. “A literatura erótica do século XVIII

aproximou duas transgressões da vida regular e ordenada da sociedade: o orgasmo

e a morte” (ARIÈS, 2003, p. 151). O Marquês de Sade é o extremo da representação

do “encadeamento de fatos erótico-macabros e mórbidos” (ARIÈS, 2003, p. 151).

Áries, citando o historiador Mario Praz, afirma que

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75

A morte: um encontro com o desamparo

A nova sensibilidade erótica do século XVIIII e do começo do século XIX retirou a morte da vida habitual e lhe reconheceu um novo papel no domínio do imaginário, papel esse que persistirá através da literatura romântica até o surrealismo. Este deslocamento para o imaginário introduziu nas mentalidades uma distância que anteriormente não existia entre a morte e a vida cotidiana (PRAZ, apud ARIÈS, 2003, p.151).

Morin destaca que a segunda metade do século XIX vive uma crise de morte

que é também a crise da existência humana atrelada ao individualismo. A idéia da

morte desencadeia, em meio ao contexto social, o pano de fundo que revela a

inadaptação do homem às emergentes mudanças sociais. Os intelectuais

nostálgicos do romântico “mal do século”, “voltados para o tempo já findo das

cavalgadas, das catedrais, das paixões e da magia, obcecados pela morte e pela

vida efêmera, passam bruscamente ao otimismo revolucionário” (MORIN, 1997, p.

283). A crise desse período, mola mestra da ambivalência entre o passado próximo

e a inadaptação ao presente, remete um olhar profético ao futuro; um certo escape à

realidade momentânea, revelando-se principalmente nas produções da literatura e

filosofia. Para Morin,

Esta crise, nós a consideramos aqui essencialmente segundo suas incidências na literatura, na poesia, na filosofia, isto é, no setor da civilização não especializado, ou antes, especializado no geral. Por isso, a filosofia e a literatura são os barômetros do grau de angústia difusa, das rupturas subterrâneas de uma sociedade: elas refletem uma crise que é, ao mesmo tempo, a da humanidade burguesa e a de uma nova fase da ‘condição humana’. É sobre este último ponto que a literatura e filosofia conhecem a maior ilusão (MORIN, 1997, p. 282).

O Século XIX valorizou o apego aos jazigos de família, prática que se herda

até os dias atuais. Os cemitérios passam a ser lugares que exalam sentimento de

serenidade, última morada, espaço de paz eterna. O dia dos mortos, instituído como

o dia seguinte ao dia de todos os santos85, fica reservado como uma homenagem

póstuma, a ser anualmente praticada em memória dos entes queridos, separados,

perdidos para a morte. Essa prática de culto aos mortos modificou-se deste o

período pós-guerra, moderando os excessos de comoção. Tornou-se mais formal e

85 No dia de todos os santos as rezas não exigiam a presença de visita aos túmulos e o dia de finados ficava reservado a esse comparecimento festivo e igualmente nostálgico.

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76

A morte: um encontro com o desamparo

metódico. A postura moderna frente à morte é sem preservação de dogmas e nem

crenças em intermediações sobrenaturais. É com distanciamento impregnado de

certa dose de materialismo. “O culto dos mortos tornou-se hoje a única manifestação

religiosa comum aos crentes e aos descrentes de todas as confissões”86 (MORIN,

1997, p. 217).

Desde o final do romantismo o tema da morte entra em um tempo de certo

silêncio. Distancia-se da cena familiar e adentra o espaço coletivo dos hospitais e

casas de repouso. Uma mudança nesses cuidados finais ao moribundo, é que

médicos e familiares tentam dissimular a verdade da gravidade ao enfermo. “O novo

costume exige que ele morra na ignorância de sua morte. Já não é apenas um

hábito ingenuamente introduzido nos costumes. Tornou-se uma regra moral”

(ARIÈS, 2003, p. 235). A morte volta a confrontar o humano com sua verdade

individualizada. A angústia se faz presente a esse encontro e denuncia a solidão

existencial da breve efemeridade da vida.

A intolerância à perda e a dificuldade em elaborar esse luto, entre outras, são

as principais causas dessa fase de negação da morte. O avanço da ciência médica

contribuiu, pois prolonga a vida, e o enfermo, necessariamente, não é mais um

moribundo à espera da hora funesta. E, ainda que seja assim, esse momento pode

ser prolongado pelos efeitos terapêuticos e medicamentosos; acendendo as

esperanças de uma provável cura e “engodo” da morte. Cria-se um novo modelo e

estilo de morte. Ela deixa de ser pública e passa a ser discreta como uma forma de

dignidade. Com menos romance e maior racionalidade.

A equipe médica poupa aos doentes o aviso da proximidade da morte, pelas

dificuldades pessoais em se perceberem envolvidos na cadeia de reações

emocionais desencadeada pela família, ou pelo próprio doente87. “Ousar falar da

morte, admiti-la nas relações sociais, já não é como antigamente; permanecer no

quotidiano é provocar uma situação excepcional, exorbitante e sempre dramática”

(ARIÈS, 2003, p. 241). A Era Moderna priva-se diante da morte, desumaniza essa

realidade. Espera-se, da parte do doente, que haja resignação e, do lado dos

sobreviventes, um consolo rápido e sem exasperação. Inclusive é considerado um

privilégio morrer sem se dar conta da emergência da morte.

86 Essa vertente de contato com a morte tem origem no Iluminismo e desenvolveu-se em meio às técnicas da sociedade industrial, que não favoreceu as expressões religiosas (ARIÈS. 2003, p. 217). 87 O esperado é que o doente seja resignado, discreto e não tente fazer trocas emocionais com sua condição de “quase morte”. Que possa falar sem expressar e nem demandar reações emotivas.

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A morte: um encontro com o desamparo

A vivência com a morte se veste de outras roupagens, para mascarar sua

funesta realidade. A toalete fúnebre reveste-se do sentido literal de maquiar os

traços mórbidos impregnados no corpo inerte. Herança da época romântica, só que

em outra vertente, ali se admirava “a beleza original que a morte impõe ao rosto

humano, e os últimos cuidados tinham por objetivo libertar essa beleza das

impurezas da agonia” (ARIÈS, 2003, p. 254). Na sociedade contemporânea é para

“mascarar as aparências da morte e conservar no corpo os ares familiares e alegres

da vida” (ARIÈS, 2003, p. 255).

O rito funerário exclui ainda a presença das crianças. A cerimônia passa a ser

considerada como causadora de traumas, pela dura realidade que expõe. No mundo

contemporâneo as crianças são cedo colocadas à cena sobre o amor e o

nascimento, cenas da vida, mas são deslocadas da verdade da morte. Quando

sentem a falta dos enfermos da família, ausentes do convívio por haverem sido

tragados pela morte, a informação dada não condiz com a veracidade dos fatos. A

ausência é justificada como uma viagem, referida a um bom lugar de descanso. É a

recusa de reconhecer a verdade necessária à perda, primeiro passo à elaboração do

luto.

O avanço do mundo contemporâneo, dadas as especificidades culturais,

talvez não permita se ter uma posição unificada da posição do homem diante da

morte, principalmente no que diz respeito às nuanças dos ritos funerários. No

entanto, quando se fala de estrutura humana, em sua relação com a efemeridade da

existência, algo de subjetivo, nesse sentido, universaliza e unifica o animal humano

em sua psique frente a essa questão: o enigma que vela o destino comum da

escatologia da morte.

Em nome desse enigma se erguem todos os ritos de passagem necessários a

esse ponto de ruptura. O mundo contemporâneo remete a morte ao campo supremo

do individualismo. “O conceito de morte não é a morte: ele é vazio como uma voz

oca” (MORIN, 1997, p. 281). É o ponto extremo que a angústia humana não

consegue nomear. “A morte, que corrói seu próprio conceito, vai então corroer os

outros conceitos, sapar os pontos de apoio de intelecto, demolir as verdades... Ela

vai corroer a própria vida” (MORIN, 1997, p. 281). Para Ariès,

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A morte: um encontro com o desamparo

Existem duas maneiras de não pensar na morte: a nossa, a da nossa civilização tecnicista que recusa a morte e a interdita; e as das civilizações tradicionais, que não é uma recusa, mas impossibilidade de pensar intensamente na morte, porque ela está muito próxima e faz parte excessiva da vida cotidiana (ARIÈS, 1981, p. 24).

No mundo contemporâneo movido pelo espírito científico da racionalidade, o

não saber especificar sobre a morte impulsiona o humano a criar possibilidades de

saídas que sustentem seu desamparo frente a essa incógnita. Estimula a criar sua

própria escatologia e guiar-se por um credo que lhe responda por esse mal-estar.

Igualmente motiva a encontrar outras suplências, nas representações que a

criatividade favorece nas inúmeras vertentes de expressão da arte.

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A morte: um encontro com o desamparo

MELANCOLIA: UMA FACE DA MORTE

• Considerações históricas sobre o tema da melancolia.

• A melancolia como objeto perdido: um encontro com a morte.

Morte na Alcova - 1895 - Edvard Munch – (1863-1944)

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A morte: um encontro com o desamparo

2.2.1 Considerações históricas sobre o tema da melancolia.

Muitas são as melancolias deste mundo. A de Saul não é de Hamlet, a de Lamartine não é a de Musset. Talvez as nossas, leitor amigo, sejam diferentes uma da outra, e nesta variedade se pode dizer que está a graça do sentimento (Machado de Assis).

O tema da melancolia88 surge como parte de estudo no corpus desse trabalho

motivado pela recorrência de seu aparecimento nos textos machadianos.

Essencialmente por ser um recurso de linguagem para expressar o vazio

apresentado pelo ego diante de uma perda, seja essa real ou simbólica, seja

definitiva ou parcial. Ou seja, é um recurso de linguagem para expressar um

semblante da morte quando o ego se recusa a investir a libido em um novo objeto e

fica preso ao que foi perdido, morto junto a esse. Encontramos, assim, a melancolia

como uma representação constante nas mais diversas formas de expressões do

fazer humano e notoriamente no campo das artes, como um tema que não cessa em

se manifestar e, ao mesmo tempo, não se esgota ao se revelar.

A melancolia é expressão de um afeto antigo, muito amplo e complexo. É

parte do existir humano desde remotas épocas. Seu registro é encontrado desde os

primórdios dos escritos da Antigüidade. Homero descreve o sofrimento melancólico

de Belerofonte, que, injustiçado pela ira dos deuses, é condenado a vagar solitário

na planície de Aleão. (Canto VI da Ilíada, versos 200-203). Jean Starobinski

acrescenta que Homero é o primeiro a revelar miticamente o sofrimento melancólico

humano advindo da ira da divindade, mas é, também, o primeiro a registrar a busca

de um alívio proveniente do poder do medicamento (du pharmakon) pela criação da

técnica humana (STAROBINSKI, 2005, p. 39)89.

88 O termo melancolia deriva do grego melas (negro) e kholé (bile). É objeto de interesse da filosofia, literatura, medicina, psiquiatria, psicanálise (ROUDINESCO, 1998, p. 504). No campo da psicanálise o termo foi utilizado por Freud também no plural (melancolias). Recebeu, a partir dos estudos do psiquiatra suíço Adolf Meyer, a denominação de depressão. Melancolia e depressão podem coexistir como sinônimos, mas podem também receber tratamento diferenciado. A melancolia está vinculada a uma manifestação psicótica e a depressão, a uma afecção de natureza neurótica. A melancolia estaria aplicada às formas de maior gravidade (PERES, 1996, p. 12). 89

Magazine Littéraire, Out-Nov 2005.

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A morte: um encontro com o desamparo

Na mesma vertente, o texto bíblico, no Antigo Testamento90, narra, entre a

história dos Reis, a história de Saul, primeiro rei de Israel (10º século a.C.). Destaca

seu constante conflito entre o papel político e os preceitos exigentes da religião,

ocasionando freqüentes crises de angústias; explicadas como possessão de “um

mau espírito”, enviado por Deus para puni-lo das desobediências. O rei Saul era

libertado temporariamente dessas crises, pelo som da cítara do então pastor de

ovelhas Davi. O rei se torna dependente desse recorrente resultado terapeutizante

da música, ficando esses acessos de possessões conhecidos como a melancolia do

rei (I Samuel 16:14 e 23, p. 314).

Dando continuidade à monarquia de Israel, Davi será o sucessor do trono de

Saul. Ao rei Davi é atribuída a autoria do livro dos Salmos91 bíblicos. Em grande

parte, esses descrevem a dor do salmista que compõe versos, toca cítara e canta

salmos na tentativa de aplacar a angústia de sua tristeza sem definição; questiona-

se sem encontrar a solução: “Por que estás abatida, ó minha alma? Por que te

perturbas dentro em mim? [...] Sinto abatida dentro em mim a minha alma...”

(Salmos 42:5; 42:11; 43:5, p. 580-581).

Independentemente do contexto e da época, encontram-se inúmeras

referências ao sofrimento humano, expresso através do afeto da melancolia, tanto

quanto a dificuldade em definir-se este estado de sentimento de maneira satisfatória.

Muitas são as linhas de pensamento elaboradas na tentativa de encontrar a resposta

adequada que possa desmistificar esse “mal-estar” do devir humano, quais sejam,

explicá-lo pelo viés da ciência, ou representá-lo no campo das artes. Do lado da

ciência, ocorre a tentativa de sanar “o mal” com medidas terapêuticas curativas,

obturando possibilidades criativas de expressões subjetivas. Em um sentido oposto,

a arte expõe o afeto melancólico e constrói um discurso singular, originando belas e

profundas produções. “Dizer o indizível foi sempre a luta dos poetas, por isso mesmo

não há como falar de melancolia sem presentificar aquele que, confrontando a

radicalidade da perda, encontra um caminho no ato criador” (PERES, 1996, p. 12).

Representando o saber científico, o médico grego Hipócrates (460-377 a. C.)

foi o primeiro a preocupar-se em formalizar uma definição para o termo. Ele 90 Já referimos antes o valor da Bíblia como legado do povo hebreu para o mundo cristão. O Antigo Testamento (anterior ao nascimento de Jesus de Cristo) é uma coletânea de relatos da história do povo hebreu, contando em cinco grandes blocos de temas (Lei, História, Poesia, Sabedoria, Profecias) contendo preceitos éticos para a vida. 91 Salmos é um título derivado do grego e indica um poema cantado com acompanhamento de instrumentos musicais.

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A morte: um encontro com o desamparo

considerou melancolia “quando um estado de tristeza e medo persiste por longa

duração” (Aforismos, apud STAROBINSK, 2005, p. 40). Enquadrou o estado da

melancolia como estado patológico, conferindo-lhe um lugar na nosografia médica. A

origem desta tinha relação com a bile negra, ou melhor, com o excesso de bile negra

(Melaina kole) circulante no organismo. A teoria de Hipócrates refere-se aos quatro

líquidos, presentes no organismo, para ele determinantes dos humores, (o sangue, a

bile amarela, a bile negra e a fleuma) e dos respectivos temperamentos (Sangüíneo,

Colérico, Melancólico e Fleumático)92. O equilíbrio entre tais componentes

determinava a vida saudável, assim como o seu desequilíbrio o estado patológico.

Quando esse desequilíbrio ocorria com a bile negra, a conseqüência era o

surgimento do estado melancólico (STAROBINSK, 2005, p. 40).

Dos temperamentos, o melancólico era o mais patológico, aquele mais obviamente associado à doença. Hipocrates diferenciava a melancolia endógena, em que, sem razão aparente, a pessoa torna-se taciturna e busca a solidão, da melancolia exógena, resultante de um trauma externo. A melancolia, sintetizou o ‘Pai da Medicina’, é a perda do amor pela vida, uma situação na qual a pessoa aspira à morte como se fosse uma benção (SCLIAR, 2003, p. 70, grifo nosso)

A teoria de Hipócrates teve boa sustentação e seguidores que a

aprofundaram. Essa teoria foi dominante na Antiguidade e seus resquícios persistem

ao longo da história. O médico Galeno de Pérgamo (a.C. 129-200) dá seguimento ao

pensamento de Hipócrates acrescendo a essa teoria uma localização da melancolia

na organicidade do corpo e, dependendo desta localização, estabelecendo sua

forma de manifestação (SCLIAR, 2003, p. 43). Galeno “acreditava que o cérebro

regulava as faculdades racionais, tais como o julgamento, a imaginação, a memória,

mas as emoções seriam controladas pelo coração e pelo fígado” (SCLIAR, 2003, p.

71).

92‘O sangue imita o ar, aumenta na primavera e impera na infância. A bile amarela imita o fogo, aumenta no verão e impera na adolescência. A melancolia ou bile negra imita a terra, aumenta no outono e impera na maturidade, A fleuma imita a água, aumenta no inverno e reina na velhice’ (apud. ROUDINESCO, 1998, p. 506). Doença da maturidade, do outono e da terra, a melancolia também pode diluir-se nos outros humores e caminhar de mãos dadas com a alegria e o riso (o sangue), a inércia (a fleuma) e o furor (a bile amarela): através dessas misturas, ela afirmaria sua presença em todas as formas de expressão humana, sendo essa a origem da alternância.

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A morte: um encontro com o desamparo

As respostas oferecidas pelo saber da medicina antiga93 mobilizaram a

reflexão sobre o estatuto patológico da melancolia. A filosofia trouxe grandes

contribuições sobre a maneira de se ver e interpretar esta “doença” principalmente

por questionar esse estatuto. “Platão distinguia duas formas de loucura: uma

resultante de doença, outra de influências divinas; não ocorreria o mesmo com a

melancolia?” (SCLIAR, 2003, p. 70). Uma grande contribuição mobilizada por essa

questão é marcadamente a de Aristóteles (384-322 a.C.). Considerando a

manifestação da bile negra e comparando-a à natureza do vinho como “modeladores

do caráter” (PIGEAUD, 1998, p. 13), Aristóteles formula o Problema XXX, “Por que

razão todos os que foram homens de exceção, no que concerne à filosofia, à ciência

do estado, à poesia ou às artes, são manifestadamente melancólicos?”

(ARISTÓTELES, 1998, p. 81)94. Scliar faz as seguintes observações da pergunta do

problema XXX,

Nessa pergunta está implícita uma importante diferenciação: seres humanos normais podem adoecer de melancolia, mas há uma melancolia natural que torna o seu portador genial ‘normalmente anormal’. O gênio surgiria pela ação da própria bile negra, que, como vinho, teria poderosa ação sobre a mente. O temperamento melancólico é um temperamento metafórico, propenso, pois, à criação – na filosofia, na poesia, nas artes. Mas os melancólicos pagam um preço: esse talento os arrebata, os conduz pela vida como um ‘barco sem lastro’, na expressão de Sócrates (SCLIAR, 2003, p. 70).

Piageaud ressalta na mesma questão formulada por Aristóteles que,

O problema é saber se existe uma norma nessa substância composta e instável. A questão é capital, pois se trata de estabelecer que o melancólico não é necessariamente um doente, e que existe, como explicitaremos, uma saúde do melancólico. É isso que explica, na segunda metade do texto, a reflexão sobre o homalon, ou seja, a constância, e o anômalon, a inconstância. A questão é mostrar que existe uma constância da inconstância (PIAGEAUD, 1998, p. 20).

93 Os tratamentos propostos na medicina da Antigüidade para a melancolia eram feitos por sangrias, purga, dietas, banhos gelados e até cirurgias cranianas. Dependia da avaliação do caso e das tentativas anteriores não apresentarem êxito. 94 Aristóteles – O homem e gênio e a melancolia O Problema XXX, I. Tradução do Grego, apresentação e notas Jackie Piageaud. Tradução: Alexei Bueno.

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A morte: um encontro com o desamparo

A Antiguidade deixa, como herança do confronto entre médicos e filósofos, a

investigação de questões que permeiam o campo do somático e do psíquico, a

busca por localizar onde se situa, no corpo, o incômodo revelado pelas “doenças da

alma”. A mola propulsora levantada por essa questão é para situar os limites entre

normalidade e anormalidade. Para Kristeva,

Os dualismos triunfam desde a Antiguidade, uns pensados como dinâmicas de fluxo complementares, outros como antinomias problemáticas. Para além dos avanços científicos que buscam reabsorvê-la no soma, a psique, cuja localização se procura (no coração? nos humores? no cérebro?), permanece como um enigma irredutível. Estrutura de sentido, representa as ligações do ser falante com o outro. Por isso obtém um valor simultaneamente terapêutico e moral. Ao garantir a responsabilidade do indivíduo animado em relação a seu corpo, ela o subtrai à fatalidade biológica e o considera como corpo falante (KRISTEVA, 2002, p. 10).

O pensamento de Aristóteles associa o saber médico e o conhecimento

mitológico a suas novas formulações. Acrescentando que o melancólico não o é, por

ser acometido pela doença, mas é por sua natureza melancólica. As proposições

aristotélicas modificaram a visão patológica da melancolia. Conferiram a essa um

outro estatuto, um lugar de dualidade entre a contemplação e a inquietação,

inclusive, como fator mobilizador à criação. Kristeva faz as seguintes formulações

sobre as contribuições de Aristóteles,

Aristóteles inova, extraindo a melancolia da patologia e situando-a na natureza, mas também e, sobretudo, fazendo-a decorrer do calor, considerado como princípio regulador do organismo, e da mesotes, interação controlada de energias opostas. [...] Aristóteles associa exposição científica e referências míticas, ligando a melancolia à espuma espermática e ao erotismo, e referindo-se explicitamente a Dionísio e a Afrodite. A melancolia que ele evoca não é uma doença do filósofo, mas sim sua própria natureza, o seu éthos. [...] Com Aristóteles, a melancolia, equilibrada pelo gênio, é co-extensiva à inquietação do homem no Ser (KRISTEVA, 1989, p. 14).

Aristóteles considerou a melancolia como condição necessária à inspiração,

como excedente de sensibilidade; condição de ser do artista e do filósofo. A visão

aristotélica oferece uma certa sacralização para o estado de melancolia. “O

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A morte: um encontro com o desamparo

melancólico é essencialmente polimorfo”. Considerando essa afirmação

fundamental, Piageaud conclui que “Isto quer dizer que o melancólico tem em si,

como possíveis, todos os caracteres de todos os homens. O que esclarece

prodigiosamente, a idéia mesma da criatividade melancólica” (PIAGEAUD, 1998, p.

13).

Contribuindo com acréscimos às teorias de Hipócrates e Aristóteles, são

citados os nomes de Aulus Cornelius Celsius (25 a.C.), médico romano, e Rufus de

Éfeso (98-117). O primeiro propõe um tratamento à base de exposição à luz e o

segundo focaliza “dois tipos de melancolias – uma ‘congênita’, ou natural, outra

adquirida, sobretudo pela dieta” (SCLIAR, 2003, p. 71). Esse tipo de melancolia

conferia ao portador poderes proféticos. Mas, associados a esse poder, a marcante

e forte tristeza, além da incapacidade de acompanhar a velocidade da formulação

dos pensamentos (SCLIAR, 2003, p. 71).

Robert Burton (1577-1640) publica, em 1621, A anatomia da melancolia (the

Anatomy of Melancholy). Contextualiza o percurso histórico da melancolia na

Antigüidade clássica e propõe dois tipos de melancolia, que denominou de:

melancolia amorosa e a melancolia religiosa, essa última como sendo uma doença

mais moderna. Seguindo esta lógica de Burton, a divisão da “doença” abre espaço a

duas possibilidades de reflexão: a melancolia pode ser entendida afetando o corpo,

sendo preocupação da ciência médica, ou afetando a alma, sendo caso para

consolo e reflexão filosófica (VIANA, 1994, p. 32). O saber médico, desde sua

primeira formulação com Hipócrates e seus seguidores, até os dias atuais, tem

reservado um espaço à enigmática “doença” da melancolia. Peres considera que,

Depressão e melancolia encontram-se, portanto, no cerne da questão da doença mental questionando os limites da loucura. As diferentes maneiras de nominar, de definir limites, as tentativas de compreensão dos mecanismos, dos fatores etiológicos e programas de tratamento e cura nos dizem da dificuldade de poder responder às fortes questões com as quais a melancolia nos interroga (PERES, 1996, p. 13).

A Idade Média é marcadamente caracterizada pelo domínio do saber religioso

e por grande misticismo. A doutrina cristã entra num choque de dualidade: condena

a melancolia e a reduz à condição de pecado e afastamento de Deus, ao mesmo

tempo em que os monges medievais a cultivavam. Na sua primeira fase surge o

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A morte: um encontro com o desamparo

termo “acedia ou acídia” como sinônimo de melancolia. O termo está relacionado à

possessão por espírito maligno. “O chamado demônio do meio-dia. O demônio está

associado a tentação, a pecado: acedia era atribuída à solidão, mas também às

tentações da carne” (SCLIAR, 2003, p. 74). Essa vertente da melancolia está

associada à doença que acometia os monges em sua clausura e profunda solidão.

A escola médica de Salerno, destaque na Idade Média, tem como seu

principal representante Constatinus Africanus95. Sua teoria prioriza a doutrina dos

temperamentos, fundamentada ainda na teoria dos humores. A melancolia é vista

como resultado das relações excedentes entre o elemento seco e frio dentro do

organismo. O melancólico era identificado como alguém avarento, medroso, desleal

e de cor terrosa (PERES, 1996, p. 19). Constatinus também associa a melancolia ao

“mal de amor”, pela impossibilidade de se ter a correspondência do amor almejado,

ou pelo amor ser idealizado acima da realidade possível de atingir.

Esse período medieval faz um retorno ao pensamento cosmológico da

Antiguidade e associa a melancolia à influência de Saturno, planeta do espírito e do

pensamento. A influência astral de Saturno governa o humor melancólico. A teoria

dos humores associa-se à astrologia através da ciência árabe e seu principal

representante é Abû Ma Sar (KRISTEVA, 1989, p. 15).

Os autores do século IX estabeleceram também a correlação astrológica entre humores e planetas. O humor sangüíneo corresponderia a Júpiter, o colérico a Marte, deus da guerra, o fleumático a Vênus ou à Lua. A melancolia estaria sob o signo de Saturno, planeta distante, de lenta revolução. Como também tinha correspondência no chumbo, aqueles que nasciam sob seu signo eram lentos, pesados. Ou seja: um astro pouco auspicioso. No corpo humano, Saturno governava o baço, sede da bile negra. A associação entre Saturno e melancolia era inevitável. Até hoje o qualitativo ‘soturno’, corruptela de Saturno, é sinônimo de melancólico (SCLIAR, 2003, p. 74).

A influência de Saturno no temperamento melancólico é aprofundada nos

estudos de Panofsky e Saxl. Segundo eles, Saturno lança uma influência ambígua.

Essa influência só é exercida sobre pessoas extraordinárias, “divinos ou bestiais”,

95 Ficou conhecido principalmente pelas traduções de Hipócrates e Galeno, do árabe para o latim, como também de outros grandes médicos e pensadores mulçumanos e judeus. Introduziu no ocidente a obra do médico de Bagdá Ishaq ibn Imran, intitulada De melancolia [Sobre Melancolia] (SCLIAR, 2003, p. 73).

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A morte: um encontro com o desamparo

mas nunca comuns ou vulgares. O mito de Cronos96 retrata a manifestação de

Saturno como representação de deus dos extremos. Essa concepção prolonga-se

até a renascença (PERES, 1996, p. 21). Da dialética do quente e frio, seco e úmido

reinantes, na era medieval, uma nova dualidade é acrescida pela influência de

Saturno.

No Renascentismo a dualidade em torno do entendimento da melancolia

prossegue, através de uma analogia entre vulgar e sublime, corpo e alma. A obra de

Marsilius Ficinus, Da vita Triplice, tem importância marcada neste período. Traz

como tema central o engrandecimento da alma do melancólico, e reúne em sua obra

o pensamento das tradições anteriores, (hipocrática, platônica, astrológica),

culminando no reaparecimento da tese aristotélica da relação entre o gênio e a

loucura (PERES, 1996, p. 23). O nome do médico suíço Paracelso97 também é

marcante entre os teóricos dessa época. “Suas concepções médicas originais, e,

não raro, fantasiosas, eram uma mistura de magia, cabala cristã e filosofia

neoplatônica” (SCLIAR, 2003, p. 76). Essas práticas estão associadas às relações

hierárquicas na cadeia universal dos seres inanimados (metais, pedras e os quatro

elementos), os animados, (vegetais, animais, humanos) e os espirituais (anjos e

Deus).

Ao conceito da cadeia universal dos seres acrescentava-se a doutrina das correspondências. Os renascentistas viam o ser humano como um microcosmo que refletia a estrutura do macrocosmo e com esse tinha relação: os quatro humores correspondiam aos quatro elementos, os planetas influenciariam órgãos específicos. Paracelso acreditava que a doença era o resultado da falência do Archeus, uma força vital que tinha como função manter unidos os elementos constituintes do organismo, elementos esses provindos da cadeia universal dos seres (SCLIAR, 2003, p. 78).

96 Cronos (Khrónos), “Tempo personificado”, é o mais jovem filho de Úrano e Geia na linhagem dos Titãs. Pertence a primeira geração divina, anterior a Zeus e aos restantes deuses do Olimpo. Úrano tinha por hábito, ao nascerem os filhos, devolvê-los ao ventre materno (para não ser destronado por nenhum deles) Geia, então, resolveu libertá-los e pediu ajuda aos próprios filhos, somente Cronos aceitou. E em vingança corta os testículos do pai. O esperma de Úrano derramado ao mar, originou uma outra linhagem de genealogia e deuses. Cronos substitui o pai, casa com Réia e passa a devorar todos os filhos, para não ser também destronado. É enganado por Réia, que poupa a vida do filho caçula (Zeus) substituindo-o por uma pedra. Ao crescer, Zeus destrona o pai e passa a instaurar uma nova Era (BRANDÃO, 2000, p. 252). 97Autodenominação de Philippus Aureolus Theopharastus Bombastus Von Hohenheim, comparando-se a Celso, grande médico romano da Antiguidade.

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A morte: um encontro com o desamparo

A melancolia, na visão do médico francês Jacques Ferrand, comunga com a

vertente de um outro pensamento médico-filosófico dessa época. O amor

compreendido na dupla vertente entre pudico e impudico ou espiritual e carnal. E

ainda resultando da queima dos humores, o amor carnal, gerador da luxúria,

culminava na doença da erotomania. O saber médico preocupava-se com as

manifestações das doenças, especulando “sobre suas causas mais remotas,

incluindo nessa discussão tópicos como astrologia e quiromancia, filtros do amor,

afrodisíacos, feitiços e bruxaria” (SCLIAR, 2003, p. 80). Em sentido oposto ao de

reclusão e de isolamento, a melancolia também pode, num ímpeto de furor, revelar

um comportamento frenético e maníaco.

A época Renascentista foi mais tolerante com a maneira de perceber a idéia

de pecado e oferecer uma possibilidade de expiação. A acédia dos monges

modificou seu nome, transformando-se em tristeza mundana ou na tristeza virtuosa,

essa última marcando o caminho do arrependimento e conseqüente salvação. A

queda do domínio do papel da igreja no pensamento do contexto dessa época deixa

o estudo da melancolia mais à vontade no meio médico e no dos pensadores

seculares. Inclusive, “o conceito de melancolia era mais filosófico do que médico –

aliás, à época eram tênues as fronteiras entre medicina e filosofia” (SCLIAR, 2003,

p. 78).

O movimento de Reforma98 da igreja opera profundas mudanças entre o

conceito de fé e a forma de externá-la, entre a fé e a prática da caridade. As idéias

de Martin Lutero (1483-1546) são rígidas e estabelece novos valores morais, dos

quais se estabelecem novas condutas e o despertar de culpas entre o idealizar e o

efetivar. Este impasse criou um ambiente favorável para o cultivo da tristeza, para a

proliferação da melancolia.

A Contra-Reforma99 tenta corrigir esse impasse, mas o movimento luterano se

opõe mais incisivamente. Esta falta de vinculação entre a fé (sentimento) e as obras

(prática social), entre a vida terrena e o almejado paraíso estabelece um grande

vazio; estabelece uma distância entre o homem e seu próprio ser. Como afirma

98 A Reforma foi um movimento iniciado com a publicação de 95 teses de Matinho Lutero em 1517 (inicialmente na porta da igreja do Castelo de Wittenberg). Nelas ele condenava os abusos do sistema de indulgências e desafiava a igreja par a um debate sobre o assunto. Entre 1518 e 1521, ele foi forçado a renegar as teses ou admitir a separação do romanismo. Ao escolher pela separação fundou o movimento conhecido e sobrevivente até os dias atuais como Protestantismo (CAIRNS, 1990, p. 232). 99 Reação da Igreja Católica Romana ao movimento Protestante iniciado com Martinho Lutero.

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A morte: um encontro com o desamparo

Peres, “O barroco será herdeiro deste estado d’alma melancólico: a melancolia

domina o espírito do tempo, tempo de auto-absorção, ensimesmamento, penetração

em um abismo sem fundo” (PERES, 1996, p. 24). O excesso de memória

armazenada pelo temperamento melancólico era também responsável pelo querer

voltar-se para si mesmo e o retirar-se do convívio exterior; um isolamento pelo

excesso de elevação intelectual.

A Contra-Reforma não foi capaz de desmobilizar o movimento revolucionário

no âmbito da fé, criado pela Reforma Luterana. As duas grandes vertentes da

religião cristã dividem espaço na já conturbada herança, do medo do inferno,

deixada pelo medievalismo. A melancolia ganha farto campo para desenvolver-se na

concepção pessimista de mundo pregada pelo Puritanismo100 marcado pelo pecado

e necessidade de expiação. Scliar acrescenta que

Pessoas simples podiam se agarrar à moralidade do cotidiano, á honestidade das pequenas coisas – mas, para o intelectual, isto não neutralizava o absurdo da existência. A idéia da morte enchia o intelecto de profundo terror, de luto por um mundo esvaziado e transformado em máscara – máscara que a dramaturgia recupera. Diante desse mundo queda-se o intelectual pensativo – e enlutado. Como o cristianismo medieval, o barroco exalta o tormento da carne, a idéia da Morte, ainda que em parte neutralizada pelo luxo e pela pompa (SCLIAR, 2003, p. 92).

A melancolia foi “suportada” como condição do desenvolvimento intelectual e

o conhecimento buscado com afinco. Também foi aceita para quem podia patrocinar

a própria clausura como sinônimo de absorção de aprendizagem. O acesso a esse

saber não atinge todas as classes. Em contrapartida ocorre também uma

supervalorização da atividade produtiva; o trabalho como possibilidade de acúmulo e

enriquecimento pessoal. A ética protestante dita um perfil de homem produtivo como

o ideal do comportamento cristão. E esse, favorece o advento de uma nova classe

social. “Os horizontes, tanto científicos e culturais como geográficos se alargam.

Essa atividade não raro se torna frenética, maníaca – caracterizando uma

bipolaridade social que depois se configurará como regra (SCLIAR, 2003, p. 97).

100 O Puritanismo é uma das vertentes de denominação protestante advindas da Reforma. (CARNS,1990, p. 266).

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A morte: um encontro com o desamparo

A bipolaridade presente nesse novo contexto social não tolerou a bipolaridade

presente também (em alguns casos) na manifestação melancólica. A Antiguidade

lidou bem com essas manifestações maníacas, inserindo-as nos cultos pagãos. A

nova ética cristã tenta incluí-la até o limite possível da alegria pelo êxtase da fé. É

tempo de preocupações com a criação de festas religiosas que se situem nesse

duplo, um contraponto às tristezas do cotidiano.

O crescente mercantilismo desse novo contexto social estremece os limites

do suporte para acolher as manifestações maníacas da melancolia. As nuanças

bipolares tendem a uma definição patológica. As idéias delirantes são isoladas e os

sintomas configuram uma tendência a exclusão. “Antes de a loucura ser

denominada, por volta da metade do século VXII, antes que se ressuscitem, em seu

favor, velhos ritos, ela tinha estado ligada, obstinadamente, a todas as experiências

maiores da Renascença” (FOUCAULT, 2002, p. 08).

A ascensão da loucura ao horizonte da Renascença é percebida, de início, através da ruína do simbolismo gótico: como se este mundo, onde a rede de significações espirituais era tão apertada, começasse a se embaralhar, deixando aparecer figuras cujo sentido só se deixa apreender sob as espécies do insano. As formas góticas subsistem ainda durante algum tempo, mas, aos poucos, tornam-se silenciosas, deixam de falar, de lembrar, de ensinar, e nada manifestam (fora de toda linguagem possível, mas, no entanto na familiaridade do olhar) além de sua presença fantástica. Liberada da sabedoria e da lição que a ordenavam, a imagem começa a gravitar ao redor de sua própria loucura (FOUCAULT, 2002, p. 18).

A grande contribuição de Foucault com a História da loucura resume os

pensamentos dos séculos XVI, XVII e XVIII. Identifica a intolerância com a figura do

melancólico ou do louco, advinda das transformações que colocam o ser humano

frente ao seu desamparo diante da morte. A loucura é a forma irônica de se rir diante

do horror da morte. Pois “o que existe no riso do louco é que ele ri antes do riso da

morte; e pressagiando o macabro, o insano o desarma” (FOUCAULT, 2002, p. 16).

Associa assim, a questão do tratamento dado para a loucura, com as modificações

individuais internas de não aceitação da morte. “O desatino da loucura substitui a

morte e a seriedade que a acompanha” [...] “a loucura é o já-está-aí da morte”

(FOUCAULT, 2002, p. 16).

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A morte: um encontro com o desamparo

A substituição do tema da morte pelo da loucura não marca uma ruptura, mas sim uma virada no interior da mesma inquietude. Trata-se ainda do vazio da existência, mas esse vazio não é mais reconhecido como termo exterior e final, simultaneamente ameaça e conclusão; ele é sentido do interior, como forma contínua e constante da existência. E enquanto outrora a loucura dos homens consistia apenas em ver que o termo da morte se aproximava, enquanto era necessário trazê-los de volta à consciência através do espetáculo da morte, agora a sabedoria consistirá em denunciar a loucura por toda parte, em ensinar aos homens que eles não são mais que mortos, e que se o fim está próximo, é na medida em que a loucura universalizada formará uma só e mesma entidade com a própria morte (FOUCAULT, 2002, p. 16).

Até o século XVII o tema da melancolia esteve ainda compreendido sob o

prisma da teoria dos quatro humores e suas qualidades essenciais. A discussão vai

acontecer na dualidade da transmissão das qualidades do corpo para a alma e na

análise deste conflito. O pensamento Clássico, com Descartes, problematiza a

dúvida buscando encontrar a Razão. É o predomínio da Racionalidade que será a

vertente de pensamento dominador nesse período. Motivo suficiente e aceitável para

a loucura passar a ser exilada e sair do convívio cotidiano.

A dúvida de Descartes desfaz os encantos dos sentidos, atravessa as paisagens dos sonhos, sempre guiada pela luz das coisas verdadeiras; mas ele bane a loucura em nome daquele que duvida, e que não pode desatinar mais do que pode pensar ou ser (FOUCAULT, 2002, p. 47).

Assim como o mundo Medieval isolou os leprosos, o mundo Clássico internou

os loucos. No entanto, “o gesto que aprisiona não é mais simples: também ele tem

significações políticas, sociais, religiosas, econômicas, morais. E que dizem respeito

provavelmente a certas estruturas essenciais do mundo clássico em seu conjunto”

(FOUCAULT, 2002, p. 53). A relação humana com a loucura não comporta mais a

subjetividade do contexto familiar e comunitário mais próximo. É também uma

questão de dimensão (principalmente) econômica que reflete no contexto social;

resvala nesse misto entre a subjetividade e a objetividade racional. Assim sendo,

carece de respostas precisas que não ponham em “Dúvida” a “Razão” reinante.

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A morte: um encontro com o desamparo

A Não-Razão do século VXI constituía uma espécie de ameaça aberta cujos perigos podiam sempre, pelo menos de direito, comprometer as relações da subjetividade e da verdade. O percurso da dúvida cartesiana parece testemunhar que no século VXII esse perigo está conjurado e que a loucura foi colocada fora do domínio no qual o sujeito detém seus direitos à verdade: domínio este, para o pensamento clássico, é a própria razão. Doravante a loucura será exilada. [...] Traça-se uma linha divisória que logo tornará impossível a experiência, tão familiar à Renascença, de uma Razão irrazoável, de um razoável desatino (FOUCAULT, 2002, p. 48, grifo nosso).

O século XVII marca o traço do destino da loucura, antes e depois do exílio.

Todo o estudo elaborado desse traço em diante está referido novamente ao campo

patológico. O sujeito melancólico é o louco estigmatizado por um diagnóstico médico

que (quase) não lhe deixa saída fora do campo da exclusão social. Com a

publicação De Anima Brutorum [1672], Thomas Willis101 (1621-1675) destaca o ciclo

mania-melancolia; defende que há uma relação íntima entre os dois ciclos, um

existindo em alternância com o outro como parte de um mesmo distúrbio. “É a Willis,

a seu espírito de observação, à pureza de sua percepção médica, que se atribui à

honra da ‘descoberta’ do ciclo maníaco-depressivo” (FOUCAULT, 2002, p. 273).

Um outro nome também de destaque nesse século é o de Anne Charles

Lorry. É quando pela primeira vez vai ser posta em dúvida a teoria dos humores, até

então, apenas sofrendo sutis modificações, não plenamente questionada. A nova

proposta inspira-se na teoria da irritabilidade de Albrecht Von Haller, e essa entende

a melancolia como uma doença nervosa. A explicação estaria associada ao

funcionamento das fibras nervosas no movimento interno de freqüência de

contração e relaxamento; o descompasso desse ritmo sendo também responsável

pela alternância do humor excitado ou apático da melancolia (LAMBOTTE, 1977, p.

28).

O século XVIII, herdeiro do asilo para doentes mentais, vai oportunizar o

crescimento das casas de internamento. Tanto quanto a tentativa de isolar os dados

dos sintomas esmiuçando e subdividindo por ordem classificatória cada

manifestação. As análises da doença dirigem-se também e cada vez mais para os

dados qualitativos expressos nos sentimentos de tristeza, solidão, amargura,

inibição. A dupla vertente bipolar da melancolia é reconhecida pela grande maioria

101 Willis considera que na fase melancólica o cérebro e o espírito ficam obscurecidos por alguma fumaça ou algum vapor espesso e na fase da mania daria um começo de incêndio (WILLIS, Opera II, apud FOUCAULT, 2002, p. 273).

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A morte: um encontro com o desamparo

dos médicos, “no entanto, vários recusam-se a reconhecer numa e noutra duas

manifestações de uma única e mesma doença” (Apud. FOUCAULT, 2002, p. 274).

No século XIX, o estudo da melancolia se amplifica em meio à nosografia

médica, e ganha mais terminologias vinculadas à doença mental e caracterizadas

entre a divisão da psicose e da neurose. Com Jean-Étienne Esquirol (1772-1840)

recebeu o nome de Lipemania. Na contribuição de Jean-Pierre Farret, (1794-1870),

transformou-se em Loucura circular, dada a aproximação com a mania. Na

Alemanha, Emil Kraepelin é um nome de destaque. Seus estudos visam à

possibilidade de separar a melancolia da loucura maníaco-depressiva. Muitos outros

nomes podem ser destacados entre a ciência médica, principalmente, na Alemanha

e na França102 nesse século, porém, todos esses trabalhos estão em referência à

investigação que ampliem a nosografia médica.

Um grande número de autores, físicos ou médicos, sempre sublinhou a relação inversamente proporcional que une ou desune a alma e o corpo, segundo a problemática tradicional. Fazer trabalhar um às expensas do outro provoca na maioria das vezes um tipo de esgotamento nervoso para o que interessa a alma, próximo ao mesmo tempo da racionalização intelectual e da idéia fixa, e um tipo de esgotamento físico, para o que diz respeito ao corpo, próximo do estupor imbecil e do estado de inércia. Da teoria humoral dos antigos, a acedia dos místicos da Idade Média, considerada, sob a forma da preguiça, como um dos sete pecados capitais, até a explicação psicofísica dos alienistas do século XIX, é sempre do mesmo deslizamento que se trata, o humor ao órgão e à sua função quando ele se põe a trabalhar excessivamente, independentemente do resto do organismo (LAMBOTTE, 1997, p. 37).

No final desse século, conta-se ainda com uma nova contribuição com os

estudos psicanalíticos de Freud. Apesar de reconhecer as limitações e dificuldades

em conceituar-se satisfatoriamente a melancolia, a psicanálise, desde Freud, abrem-

se caminhos para uma nova visão da expressão desse estado afetivo. Pôde-se, a

partir de então, pensar-se a melancolia como uma possibilidade de resposta

estrutural da psique humana, frente a um objeto que falta.

102 Nomes de destaque citados na ciência médica desse período: G. Ballet; G. Gilles; Tourette; E. Mendel; A. Boettinger; F. Boissier; P. Maurice; P. Dubois; J. Jolly; M. Foster. Em todos os autores a melancolia está relativa a uma doença mental orgânica (LAMBOTTE, 1997, p. 36).

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A morte: um encontro com o desamparo

2.2.2 A melancolia como objeto perdido: um encontro com a morte.

Bolero de Ravel

A alma cativa e obcecada enrola-se indefinidamente numa espiral de desejo e melancolia. Infinita, infinitamente... As mãos não tocam jamais o aéreo objeto, esquiva ondulação evanescente. Os olhos, magnetizados, escutam E no círculo ardente nossa vida para sempre está

[presa, está presa... Os tambores abafam a morte do Imperador. (Carlos Drummond)

Desde a antiguidade e até os dias atuais, as reações humanas diante de suas

perdas constituem-se objeto de estudo na medicina, motivo de reflexão para os

filósofos, inspiração para os poetas e escritores. A psicanálise se faz presente a

essas formulações e, a partir das teorias de Sigmund Freud, novas contribuições

vieram corroborar com as já existentes, abrindo mais possibilidades de leituras sobre

as manifestações e representações do afeto humano diante de suas perdas e os

mecanismos utilizados na tentativa de acalmar o “mal-estar”.

Na referência dos trabalhos que Freud denominou de publicações pré-

psicanalíticas encontramos as primeiras teorizações sobre a melancolia. A primeira

está referida ao que ele chamou de Um caso de cura pelo hipnotismo [1892-93]. Ao

narrar esse caso e isolar o diagnóstico, buscando o “mecanismo psíquico do

distúrbio”, Freud conclui que, além da histeria, haveria sinais de melancolia. Ele cita

em seu relato: “temos que supor a presença primária de uma tendência à depressão

e à diminuição da autoconfiança, tal como as encontramos muito desenvolvidas e

individualizadas na melancolia” (FREUD, [1892] 1990, p. 182). Destaca ainda as

idéias “antitéticas” preponderantes nesse caso, como referentes à possibilidade de

neurose depressiva.

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A morte: um encontro com o desamparo

As demais referências sobre a melancolia, desse período, encontram-se nos

Extratos dos Documentos dirigidos a Wilhelm Fliess103 (1858-1928). Além dos

assuntos pessoais constantes na correspondência, Freud costumava fazer

acompanhar rascunhos de sua formalização teórica e dialogar seus

questionamentos acerca dessas com o dileto amigo. Desde o Rascunho ‘A’ [1892],

ele já se questiona sobre a etiologia da depressão e aponta algumas considerações,

dentre as quais a relação desta com a angústia. Sucessivamente nos Rascunhos ‘B’

[1893] ele destaca o aspecto das “idéias antitéticas” e o conflito gerado por essas;

no Rascunho ‘E’ [1894], a investigação da causa da angústia é associada a

questões da sexualidade.

No Rascunho ‘G’ [1895], documento dedicado à investigação específica da

melancolia, Freud esquematiza vários fatores para o desenvolvimento desta, quais

sejam:

(A) Existem notáveis correlações entre a melancolia e a anestesia [sexual]. (B) A melancolia se desenvolve como intensificação da neurastenia, através

da masturbação. (C) A melancolia surge numa combinação típica com a angústia intensa. (D) A forma típica e extrema da melancolia parece ser a forma hereditária

periódica ou cíclica (FREUD [1985] 1990, p. 282).

Ressalta a relação da melancolia com a sexualidade, a partir da “anestesia”

apresentada por esses pacientes, destacando as pacientes femininas. Apresenta

detalhadamente em um quadro gráfico o esquema do percurso pulsional e as

conclusões, a partir deste, do investimento da libido. E propõe, já nesse trabalho,

aspectos sobre a melancolia que serão mais bem discutidos em 1915 num texto

específico ao estudo da melancolia. Desde esse documento já considera a

correspondência de afeto entre a melancolia e o luto e a relação desses com o

desejo de recuperar algo que foi perdido. Associa essa perda a algo da ordem da

vida pulsional. Já rastreia “a idéia de que a melancolia consiste em luto por perda da

libido” (FREUD, [1895] 1990, p. 283). 103A correspondência completa de Freud para seu amigo mais íntimo, Fliess, data de 1887 a 1904. Corresponde a dezessete anos que coincidem com o nascimento da psicanálise e com a publicação de textos importantes que vão desde os Estudos sobre a histeria até O caso Dora. A própria correspondência constitui um importante documento para a psicanálise, haja vista que dela constam os sentimentos de Freud na intimidade no ato inaugural da teoria, tanto quanto ela é a própria teoria no passo a passo de sua primeira formulação (RIBEIRO, 1986, p. 01). Nota da tradutora in: Correspondência Completa de Freud a Fliess.

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A morte: um encontro com o desamparo

Ainda em documentos anexos à correspondência com Fliess, Freud continua

a dar mostras de sua constante inquietação em seqüência à investigação das

causas da melancolia. No Rascunho ‘N’ [1897], destaca a relação de ambigüidade

afetiva entre filhos e pais (sentimentos hostis versus compaixão) gerando culpa,

ficando a punição por conta dos sintomas de melancolia ou histeria. “[...] constitui

manifestação de luto uma pessoa acusar-se da morte deles (o que se conhece como

melancolia) ou punir-se numa forma histérica (por intermédio da idéia de retribuição)

com os mesmos estados (de doença) que eles tiveram” (FREUD, [1897] 1990, p.

352). Relaciona ainda a manifestação desses sintomas com idéias obsessivas.

Como é peculiar ao método freudiano de construção teórica, é da clínica que

surge o material para essa elaboração. Na seqüência dos estudos da histeria, a

melancolia aparece como uma referência à neurose de angústia, ou ainda vinculada

a algum dos casos da clínica da histeria como uma depressão melancólica. O tema

é retomado em 1910, em Breves escritos104, apresentados à Sociedade Psicanalítica

de Viena, falando acerca do suicídio entre estudantes secundaristas. Nas

observações finais do trabalho, Freud retoma a relação da melancolia ao trabalho de

luto e papel da libido em meio a essa elaboração, já referidas nos Rascunhos ‘G’ e

‘N’. Nessa ocasião, é assim que se refere à questão:

Podemos, eu acredito, apenas tomar como nosso ponto de partida a condição de melancolia, que nos é tão familiar clinicamente, e uma comparação entre ela e o afeto do luto. Os processos afetivos na melancolia, entretanto, e as vicissitudes experimentadas pela libido nessa condição nos são totalmente desconhecidos. Nem chegamos a uma compreensão psicanalítica do afeto crônico do luto. Deixamos em suspenso nosso julgamento até que a experiência tenha solucionado o problema (FREUD, [1910] 1990, p. 218).

Desde essas formulações iniciais sobre a melancolia, Freud já aponta a

diversidade clínica dentro da nosografia psiquiátrica e a dificuldade conceitual sobre

essa temática. Continua sua investigação considerando esses primeiros pontos

destacados, quais sejam: Primeiro, a estreita relação da melancolia com a angústia;

segundo, a questão ambivalente de amor e hostilidade parental e a resultante dessa

ambivalência, como motivadora de culpas, propiciando assim a aproximação da

104O título do “breve escrito” aqui referido é Contribuições para uma discussão acerca do suicídio. [1910].

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A morte: um encontro com o desamparo

melancolia com sintomas obsessivos; terceiro, e principalmente, a reação do ego em

como lidar com a libido diante de uma perda.

O olhar de Freud para a dualidade humana é marcante em todo o percurso de

sua obra. Assim, tornou-se um modo característico de seu trabalho estudar sintomas

psíquicos, buscando um paralelo desses sintomas, dentro de um quadro patológico,

tanto quanto quando encontrados em situações consideradas normais. É dentro

dessa dinâmica que apresenta em 1915 um novo trabalho sobre a melancolia. Em

suas palavras: “Tendo os sonhos nos servido de protótipo das perturbações mentais

narcisistas na vida normal, tentaremos agora lançar alguma luz sobre a natureza da

melancolia, comparando-a com o afeto normal do luto” (FREUD, [1915] 1990, p.

275).

Nesse trabalho, Luto e Melancolia, Freud estuda a natureza da melancolia,

traçando o seu percurso em relação à natureza do luto, buscando as semelhanças e

as diferenças nelas existentes. Define o luto como um processo de afeto normal

marcado por reações específicas provocadas pela perda de um objeto, tomado

enquanto objeto de amor. Embora a melancolia também seja um processo reativo,

sofrido em função de uma perda objetal amorosa, este objeto não está claramente

delineado. O melancólico não sabe exatamente o que perdeu com o objeto, ou no

objeto, mesmo quando este é passível de identificação. A partir dessa premissa

freudiana pôde-se pensar a elaboração do luto em contraposição com sua não

elaboração, identificando-se esse processo105 como melancolia.

Até certo ponto, o conjunto de sinais e sintomas no luto e na melancolia é

semelhante: o desânimo profundo e penoso, a falta de interesse pelo mundo externo

e a perda da capacidade de amar. Entretanto, no luto, essas reações são

temporárias frente a uma perda permanente, assim como também é temporária a

perda da capacidade de adotar um novo objeto de desejo. Em contrapartida, na

melancolia, essas reações têm caráter praticamente permanente. A perda em

questão é de ordem narcísica, ficando comprometida a auto-estima. “No quadro

clínico da melancolia, a insatisfação com o ego constitui por motivos de ordem

moral, a característica mais marcante” (FREUD, [1915] 1990, p. 280).

A perda do objeto adquire caráter de perda do próprio eu, tamanha é a

identificação do eu com o objeto. O melancólico culpa-se por haver perdido seu

105 Esse “processo” está aqui referido como um traço de estrutura da formação psíquica (dentro da neurose ou da psicose) que diante de uma perda objetal resulte num quadro de melancolia.

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A morte: um encontro com o desamparo

objeto de amor. Pela identificação, denigre a própria imagem com o objetivo de

atingir o outro. A ambivalência presente no melancólico o faz gravitar em torno da

culpa e auto-recriminação. Do ponto de vista do desejo, ele se sente culpado por ter,

paradoxalmente, desejado perder o objeto do seu amor.

Na perspectiva do luto é o mundo que se torna pobre e vazio; na melancolia,

é o próprio ego que se empobrece e esvazia-se. O melancólico se auto-recrimina

esperando punição. A libido esvaziada do seu ego não consegue se deslocar para

outro objeto, pois está identificada com o objeto perdido. “Assim a sombra do objeto

caiu sobre o ego, e este pôde, daí por diante, ser julgado por um agente especial,

como se fosse um objeto, o objeto abandonado” (FREUD, [1915] 1990, p. 281). Na

busca de reencontrar-se o melancólico encontra o vazio, encontra a morte no existir.

Freud compara a autotortura da melancolia e o gozo encontrado neste

sofrimento ao que acontece na neurose obsessiva. A tendência ao sadismo e o ódio

relacionado ao objeto retornam ao próprio eu do sujeito. Neste retorno da catexia

objetal, o sujeito pode tratar a si mesmo como um objeto, sendo capaz de direcionar

a si mesmo o ódio relacionado ao objeto. Essa regressão se faz presente, desde

uma escolha objetal narcísica. Para livrar-se do objeto, o sujeito pode até matar-se.

O objeto revela-se então mais potente que o ego, e o domina. “Dessa forma, uma

perda objetal se transformou numa perda do ego, e o conflito entre o ego e a pessoa

amada, numa separação entre a atividade crítica do ego e o ego enquanto alterado

pela identificação” (FREUD, [1915] 1990, p. 82).

O trabalho de luto é um trabalho normal na direção de elaborar a falta do que

foi perdido. As reações presentes fazem parte do processo de elaboração que o

teste de realidade vai expondo a cada momento. À medida que esse processo vai

sendo elaborado, a energia libidinal investida no objeto perdido vai ficando livre,

podendo ser reinvestida num novo objeto. Neste caso, o ego venceu o objeto, usou

os dispositivos do eu para eliminar as conseqüências de suas perdas objetais.

A melancolia, embora possa em alguns momentos confundir-se com o

trabalho do luto, por alguns traços característicos, contém algo a mais do que o luto

normal: a relação com o objeto no conflito da ambivalência amor-ódio ao objeto

perdido. O teste de realidade não é suficiente para impor a elaboração da perda de

maneira salutar, dada também a dificuldade de o sujeito identificar qual é a perda.

Nesta medida, a melancolia pode, em alguns casos, tal como no luto, compelir o ego

a desistir do objeto, aceitá-lo morto, e oferecer incentivo a reinvestir a libido. Como

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A morte: um encontro com o desamparo

também pode, diferentemente do luto, permanecer presa ao objeto, contínua e

paulatinamente, ao longo do tempo, assumindo o caráter patológico de experimentar

uma perda objetal.

A melancolia pode, ainda, alternar-se com o estado de mania. Nesse caso, o

que ocorre é uma alternância do lugar do ego, frente ao mesmo complexo. Na fase

melancólica, o ego sucumbe; na fase maníaca, ele domina, a energia psíquica torna-

se disponível para outros usos, mais ainda assim permanece oculto aquilo sobre o

que o ego triunfa e sua sustentação é breve, ocorrendo uma alternância

melancolia/mania/melancolia... ad infinitun.

Freud, na medida em que clarifica a compreensão do estado afetivo da

melancolia, ao compará-lo com o do luto, também lança incógnitas: o melancólico

pode até saber quem perdeu como objeto amado, mas não sabe o que perdeu

nesse objeto. A perda é de ordem mais ideal (inconsciente), é da ordem de um saber

que não se especifica. O vazio sentido na melancolia liga-se à perda da “Coisa” (Das

Ding).

Em seqüência ao estudo sobre a melancolia, em paralelo comparativo ao

trabalho de luto, Freud retoma especificamente a questão do luto em meio ao

contexto da primeira guerra mundial. Em Reflexões para o tempo de guerra e

morte106, a preocupação está voltada para a atitude humana frente ao radical da

perda por morte. Volta a abordar como o encontro com situação de uma perda

radical, como a morte de um ente querido, “exerce poderoso efeito sobre nossas

vidas. A vida empobrece, perde em interesse, quando a mais alta aposta no jogo da

vida, a própria vida, não pode ser arriscada” (FREUD, [1915] 1990, p. 329). E no

caso específico em análise, a situação de guerra, o abrupto da presença da morte

em massa, altera as relações internas com essa questão, entre a ambigüidade da

dor, pela perda, e a necessidade emergente de refazer-se e voltar a viver, o trabalho

de luto é quem triunfa.

Ainda concernente a esse impasse diante de perdas, no texto Sobre a

transitoriedade107, [1915] Freud aborda também os contrapontos de elaboração

entre o luto e a melancolia. Destaca as reações da psique humana diante da

efemeridade, marca peculiar a todo organismo vivo, no reino animal ou vegetal. Ou,

ainda, no traço da fragilidade de tudo que circunda o meio ambiente e revela

106 Esse texto é estudado com detalhe na seção 2.1 deste trabalho. 107

Este texto também está estudado com detalhe na seção 2.1 deste trabalho.

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A morte: um encontro com o desamparo

transitoriedade. Seja de que ordem for uma perda, o que se revela é a fragilidade do

ego em relação a abrir mão com facilidade do investimento libidinal já feito num dado

objeto e reinvestir em um outro. Para Freud,

Possuímos, segundo parece, certa dose de capacidade para o amor – que denominamos libido – que nas etapas iniciais do desenvolvimento é dirigido no sentido de nosso próprio ego. Depois, embora ainda numa época muito inicial, essa libido é desviada do ego para objetos, que são assim, num certo sentido, levados para nosso ego. Se os objetos forem destruídos ou se ficarem perdidos para nós, nossa capacidade para o amor (nossa libido) será mais uma vez liberada e poderá então ou substituí-los por outros objetos ou retornar temporariamente ao ego. Mas permanece um mistério para nós o motivo pelo qual esse desligamento da libido de seus objetos deve constituir um processo tão penoso, e até agora não fomos capazes de formular qualquer hipótese para explicá-lo. Vemos apenas que a libido se apega a seus objetos e não renuncia aqueles que se perderam, mesmo quando um substituto se acha bem a mão. Assim é o luto (FREUD, [1915] 1990, p. 347).

A referência à melancolia é retomada no capítulo VII, no qual trata da

identificação, em Psicologia de grupo e análise do ego [1921]. Em função da análise

do trabalho do ego no processo de identificação, Freud destaca a ambivalência que

é peculiar a esse processo. Aponta alguns exemplos, considerados não

imediatamente compreensíveis nesse processo. Entre esses, que “a identificação

com um objeto que é renunciado ou perdido, como um sucedâneo para esse objeto

– introjeção dele no ego – não constitui verdadeiramente mais novidade para nós”

(FREUD, [1921] 1990, p. 137). O modo repetitivo do ego se manifestar nesses casos

é de extrema autodepreciação, revela a submissão do ego ao objeto. Os

mecanismos elucidados pela melancolia apontam para a divisão do ego. Nas

palavras de Freud,

Essas melancolias, porém, também nos mostram mais alguma coisa, que pode ser importante para nossos estudos posteriores. Mostram-nos o ego dividido, separado em duas partes, uma das quais vocifera contra a segunda. Esta segunda parte é aquela que foi alterada pela introjeção e contém o objeto perdido (FREUD, [1921] 1990, p. 138).

No texto O ego e o id [1923], na parte III O ego e o superego (ideal do ego)

Freud faz referência ao estudo da melancolia, elaborado em 1915, e reafirma suas

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A morte: um encontro com o desamparo

conclusões naquele trabalho como sendo bem sucedidas. Entretanto, lamenta que,

àquela época, não tenha centrado maior importância no processo da identificação,

como um mecanismo de crucial destaque. Resume assim essa questão:

Alcançamos sucesso em explicar o penoso distúrbio da melancolia, supondo [naqueles que dele sofrem] que um objeto que fora perdido foi instalado novamente dentro do ego, isto é, que uma catexia do objeto foi substituída por uma identificação. Nessa ocasião, contudo, não apreciamos a significação plena desse processo e não sabíamos quão comum e típico ele é. Desde então, viemos a saber, que esse tipo de substituição tem grande parte na determinação da forma tomada pelo ego, e efetua uma contribuição essencial no sentido da construção do que é chamado de seu caráter (FREUD, [1921] 1990, p. 42-43).

Nesse texto, a identificação é entendida como um mecanismo constitutivo do

ego, à medida que, a partir desse processo, o objeto é introjetado no ego, a ponto de

fundir-se, processo revelado no quadro doloroso da melancolia, haja vista que uma

das facetas do humor melancólico é a autocomensuração, autopunição,

autodestruição, com vistas a destruir o outro, aquele que ainda está investido

libidinalmente, porém perdido. Os possíveis rumos que o ego dá à libido referente as

suas escolhas objetais pode também culminar, mesmo no caso da melancolia, em

um processo de sublimação. “A transformação da libido do objeto em libido

narcísica, que assim se efetua, obviamente implica um abandono de objetivos

sexuais, uma dessexualização – uma espécie de sublimação” (FREUD, [1921] 1990,

p. 44).

Além dessa aproximação da melancolia podendo resultar na sublimação,

Freud questiona outros caminhos como uma possibilidade de escolhas do ego.

Interroga-se sobre a possibilidade de ocorrer uma desfusão das pulsões fundidas

nesse processo. Analisa o processo primário das escolhas objetais e as primitivas

identificações, concernentes ao ideal do ego e conseqüentemente à identificação

primária de todo sujeito, sendo essa questão primária reeditada no atravessamento

do período edipiano. “O ideal do ego, portanto, é o herdeiro do complexo de Édipo,

e, assim, constitui também a expressão dos mais poderosos impulsos das mais

importantes vicissitudes libidinais do id” (FREUD, [1921] 1990, p. 51).

Os destinos das escolhas objetais conduzem Freud a dar continuidade à

proposta de aproximação da melancolia e da neurose obsessiva. Destaca pontos

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A morte: um encontro com o desamparo

importantes entre as duas afecções. Em comum, situa o sentimento de culpa

motivado pela tensão da correlação de forças entre o ego e o ideal do ego. A carga

de severidade da instância crítica está presente nos dois casos. A diferença situa-se

na maneira do ego lidar com essa imputação de culpa. Vejamos:

Na melancolia, a impressão de que o superego obteve um ponto de apoio na consciência (consciousness) é ainda mais forte. Mas aqui o ego não se arrisca a fazer objeção; admite a sua culpa e submete-se ao castigo. Entendemos a diferença. Na neurose obsessiva, o que estava em questão eram impulsos censuráveis que permaneciam fora do ego, enquanto que na melancolia o objeto a que a ira do superego se aplica foi incluído no ego mediante identificação (FREUD, [1921] 1990, p. 67).

Como resultante das escolhas entre forças atuantes no ego, na neurose

obsessiva e na melancolia, diferencia-se ainda a expressão da pulsão de morte. “É

digno de nota que o neurótico obsessivo, em contraste com o melancólico, nunca

realmente dá o passo para a autodestruição; é como se ele tivesse imune ao perigo

de suicídio” (FREUD, [1921] 1990, p. 70). Essa marcante diferença, diz respeito ao

poder da identificação com o objeto em cada um dos dois casos específicos. Do lado

da neurose obsessiva, à parte dos impulsos censuráveis que permanecem fora do

ego, favorece possibilidades de manejo por outras vias; enquanto na melancolia, por

identificação, o ego funde-se ao objeto, assimilando a punição, indo ao extremo da

autodestruição.

Freud retoma nesse contexto a questão do medo humano diante da morte e a

problemática que esse instaura, analisando-o novamente em referência ao não

haver nenhum registro da morte para o inconsciente.

A morte é um conceito abstrato com um conteúdo negativo para o qual nenhum correlativo inconsciente pode ser encontrado. Pareceria que o mecanismo do medo da morte só pode ser o fato do ego abandonar em grande parte sua catexia libidinal narcísica – isto é, de ele se abandonar em alguns casos em que sente ansiedade. Creio que o medo da morte é algo que ocorre entre o ego e o superego. O medo da morte na melancolia só admite uma explicação: que o próprio ego se abandona porque se sente odiado e perseguido pelo superego, ao invés de amado. Para o ego, portanto, viver significa o mesmo que ser amado – ser amado pelo superego, que aqui, mais uma vez, parece como representante do id. O superego preenche a mesma função de proteger e salvar que, em

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A morte: um encontro com o desamparo

épocas anteriores, foi preenchida pelo pai e, posteriormente pela Providência ou Destino. (FREUD, [1921] 1990, p. 75).

Ainda em continuidade a essa função da proteção do superego como uma

reedição da função paterna, no texto Uma neurose demoníaca do século VXII,108 a

análise do caso traz a função paterna em destaque. Essa falta como marcante no

desencadeamento do sofrimento melancólico. Na parte III do texto, “O demônio

como substituto paterno”, Freud ressalta a importância da ambivalência afetiva,

dirigida a esse pai, como motivadora da impossibilidade de elaboração do luto,

favorecendo o advento da melancolia. Para Freud:

Não é algo fora do comum para um homem adquirir uma depressão melancólica e uma inibição em seu trabalho, em resultado da morte do seu pai. Quando isso acontece, concluímos que o homem fora ligado ao pai por um amor especialmente intenso e recordamos com quanta freqüência uma melancolia grave surge como uma forma neurótica de luto. [...] Ao contrário, seu luto pela perda do pai tem mais probabilidade de se transformar em melancolia, quanto mais sua atitude para com ele portar a marca da ambivalência. Essa ênfase na ambivalência, contudo prepara-nos para a possibilidade de o pai ser submetido a um aviltamento, como vemos acontecer na neurose demoníaca do pintor (FREUD, [1922] 1990, p. 112).

As últimas referências de Freud à questão da melancolia estão nos textos

Neurose e Psicose [1924] e A perda da realidade na neurose e na psicose, esse

segundo, escrito em acréscimo ao primeiro artigo, e ainda nesse mesmo ano. Os

dois textos continuam a proposta afirmada no Ego e o id. O primeiro artigo apresenta

a etiologia da neurose e da psicose assim referidas.

A etiologia comum ao início de uma psiconeurose e de uma psicose sempre permanece a mesma. Ela consiste em uma frustração, em uma não realização, de um daqueles desejos de infância que nunca são vencidos e que estão tão profundamente enraizados em nossa organização filogeneticamente determinada. Essa frustração é, em última análise, sempre uma frustração externa, mas, no caso individual, ela pode proceder do agente interno (no superego) que assumiu a representação das exigências da realidade (FREUD, [1924] 1990, p. 192).

108 Neste texto Freud escreve sobre um manuscrito no qual relata o ingresso do pintor Christoph Haizmann na Abadia de Mariazell. O pintor solicita ajuda dos religiosos por se encontrar em aflição em função de haver vendido a alma ao diabo em troca do retorno da capacidade de pintar, perdida por ocasião da morte do pai.

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A morte: um encontro com o desamparo

Freud coloca todo o efeito patológico da decorrência dessa frustração da

tensão conflitual do ego. É da negociação do ego com o id e o superego e as

elaborações possíveis nesse confronto que o campo patogênico irá se definir. Ele

afirma que a melancolia eclode do conflito, não bem solucionado, entre o ego e o

superego. “A análise nos dá o direito de supor que a melancolia é um exemplo típico

desse grupo, e reservaríamos o nome de ‘psiconeuroses narcísicas’” (FREUD,

[1923] 1990, p. 192). Afirma ainda que não há motivo de espanto o fato de a clínica

vir ainda demonstrar que a melancolia é um estado que pode ser separado de outras

psicoses. “As neuroses de transferência correspondem a um conflito entre o ego e o

id; as neuroses narcísicas, a um conflito entre o ego e o superego, e as psicoses, a

um conflito entre o ego e o mundo externo” (FREUD, [1923] 1990, p. 192).

Freud coloca o estado da melancolia nesse campo de um sofrimento do ego

diante de sua insatisfação perante uma perda. Ou seja, deixa este estado na

vertente da escolha narcísica de objeto, e na não elaboração com a perda desse

objeto. Do conflito do ego em não superar as exigências do superego. Deixa, no

entanto, como questão aberta, o que ele chamou necessidade de suplementar mais

um ponto. “Seria desejável saber em que circunstâncias e por que meios o ego pode

ter êxito em emergir de tais conflitos, que certamente estão sempre presentes, sem

cair enfermo” (FREUD, [1923] 1990, p. 193). Nesse sentido, aponta duas saídas,

sem tomar nenhuma como certa. Uma é apontada do lado da economia psíquica,

“das magnitudes relativas das tendências que estão lutando entre si”, e a outra é

concernente à possibilidade de o “ego evitar uma ruptura em qualquer direção

deformando-se, submetendo-se a usurpações em sua própria unidade e até mesmo,

talvez, efetuando uma clivagem ou divisão de si próprio109” (FREUD, [1923] 1990, p.

193).

Não seguimos adiante a trajetória freudiana nessa questão. Apenas

destacamos a contribuição trazida por ele. A relevância de sua prudência em

reconhecer a dificuldade encontrada na construção de um conceito, dentro da

109 Não seguiremos em Freud o percurso dessa questão. Ele a retomou nos textos A divisão do ego no processo de defesa [1938] e no Capítulo VIII do Esboço [1938]. Neste trabalho, o objetivo foi destacar o percurso freudiano com o tema da melancolia especificamente.

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A morte: um encontro com o desamparo

própria nosografia médica, para o afeto da melancolia. Marie-Claude Lambotte

resume com muita propriedade a contribuição freudiana que queremos destacar.

A novidade trazida por Freud é a de ter ousado deslocar a origem da doença para o seio do domínio psíquico, mesmo que fosse ainda por uma questão de método, e de ter colocado entre parênteses a preocupação de localização orgânica que subtendia sempre os estudos precedentes. Isto não quer dizer, é claro, que Freud negasse ao orgânico toda e qualquer incidência quanto à etiologia e à evolução da doença; sua obra está pra testemunhar isso, e para nos lembrar que os primórdios do tratamento analítico se apoiaram principalmente nas neuroses de transferência e, dentre estas, nas histerias de conversão. O que quer dizer que se tornou possível, com Freud, escutar o discurso ou o sintoma como a tradução, não mais, neste caso, do desfalecimento orgânico ou das sensações cenestésicas, [sic] mas certamente dos determinantes deste automatismo mental tão bem exumado por seus predecessores, isto é o inconsciente (LAMBOTTE, 1997, p. 87, grifo da autora).

A concepção freudiana de inconsciente faz uma ruptura radical no modo de

pensar o indivíduo. Inaugura uma perspectiva singular na forma de compreender o

sofrimento mental. A melancolia, como uma dessas vertentes de sofrimento, também

é repensada dentro desse novo prisma. Embora não seja possível elucidar a

“escolha melancólica” do ego diante de uma perda, é possível entendê-la como

referida à estruturação psíquica110 do sujeito em questão. No percurso proposto por

Freud de aproximar a melancolia a outras formas de sofrimento, abriu-se caminho à

continuidade dos estudos posteriores. Marcou a possibilidade de acolher no

discurso, as veredas de acesso que o inconsciente elege, seja para se revelar seja

para velar a dor da perda.

110 No Seminário da Angústia, Lacan retorna a Freud em Luto e melancolia e faz uma distinção relacionando ao luto “a manutenção dos vínculos por onde o desejo está suspenso, não do objeto ‘a’ mas de i (a) por onde todo o amor em tanto que este termo implica a dimensão idealizada é estruturada narcisicamente”. Na melancolia, a questão são os vínculos relacionados ao objeto ‘a’, o objeto causa de desejo (LACAN, 2005, p. 364).

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A morte: um encontro com o desamparo

IRONIA: POSSIBILIDADES DE DIZER O NÃO-DIZÍVEL

• Considerações gerais: rastreando um conceito.

• Ironia: labirinto do discurso.

Tudo é vaidade - Uma ilusão de óptica criada por C. Allan Gilbert

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107

A morte: um encontro com o desamparo

2.3.1 Considerações gerais: rastreando um conceito.

A situação básica metafisicamente irônica do homem é que ele é um ser finito que luta para compreender uma realidade infinita, portanto incompreensível (Friedrich Schlegel).

O tema da ironia é utilizado como parte deste trabalho, em função de sua

vinculação ao tema da melancolia no texto machadiano. A linguagem irônica é

apresentada com extrema e refinada sutileza, provocadora de reflexão crítica.

Explicando melhor, é utilizada também como um recurso lúdico ou sarcástico, para

falar da crueza da morte, como o inevitável e enigmático encontro da verdade

humana. Comumente identificada como cética e irônica, ou pessimista e satírica, a

escrita machadiana, utiliza-se dos mais diversos recursos de linguagem, com

aguçada mestria, e revela os desencantos dos labirintos da estrutura humana.

De acordo com trabalhos pesquisados sobre esse tema, definir

satisfatoriamente a ironia não é uma tarefa fácil, provavelmente nem possível

enquanto uma definição precisa e fechada. Nesta busca tentaremos compreendê-la

relacionando sua expressão quase que usual no discurso literário111. Observamos

ainda as contribuições da psicanálise a essa vertente da expressão humana. O uso

da ironia é presença marcante, em variáveis vertentes de discursos, como parte da

existência humana.

O vocábulo “ironia” tem sua origem na língua grega eironeia112, e o seu uso

referido ao ato de dissimular. O primeiro destaque registrado a esse termo está na

Republica de Platão, no livro I. Refere-se à forma como Sócrates praticava o ensino 111 Utilizamos como texto base o estudo de Maria Helena de Novais Paiva, Contribuição para uma estilística da ironia (Universidade de Lisboa:1961). E o estudo de Douglas Muecke, Ironia e o irônico. (São Paulo. Perspectiva: 1995). Consultamos também o estudo de Beth Brait, Ironia em perspectiva polifônica, UNICAMP, 1996. 112 Na comédia clássica grega, as duas facções em confronto se representavam por eiron, personagem que se fazia de ignorante para desmascarar o alazon, tipo de fanfarrão, ligeiro em afirmar e proferir juízos definitivos (MOISÉS, 1974, p. 294). Na tragédia grega, a ironia manifestava-se quando o desejo do protagonista era frustrado pelos deuses ou pelos desígnios insondáveis do alto: correspondia, no caso, à ironia do destino. Modernamente, o termo assumiu o indeciso contorno de figura de pensamento e de palavra. De modo genérico, a ironia consiste em dizer o contrário do que se pensa, mas dando-se a entender. Estabelece um contraste entre o modo de enunciar o pensamento e seu conteúdo (MOISÉS, 1974, p. 295).

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A morte: um encontro com o desamparo

aos seus discípulos. Ficou assim conhecida como a ironia socrática, que consistia

em propor questões dissimuladamente simples e ingênuas ao interlocutor

dogmático, a fim de confundi-lo e mostrar-lhe a fraqueza das opiniões ou dos

raciocínios. Como o processo acabava irritando e ridicularizando o arrogante

adversário, a palavra entrou a adquirir conotação satírica. Entretanto utilizado pelo

filósofo no contato com seus discípulos moços, sensatos e amantes da verdade, não

tinha especificamente essa conotação. Era uma arte na forma de interrogar com o

sentido de provocar a maiêutica ou o surgimento das idéias; resultava no

alargamento progressivo das consciências (MUECKE, 1995, p. 31).

Na busca por uma definição para a ironia, Muecke propõe a construção do

percurso do termo através de diversos contextos, haja vista a dificuldade encontrada

num conceito preciso. Para Brait os estudos nesse campo sempre vão divergir, pois

“configuram diferentes abordagens de teor filosófico, psicanalítico, sociológico,

retórico, literário, estilístico e mesmo lingüístico – pragmático, inserindo a reflexão

sobre a ironia em universos nem sempre compatíveis” (BRAIT, 1996, p. 19). O

estudo de Paiva concilia essa dificuldade observando que, “a ironia é

simultaneamente uma atitude de espírito e um processo característico de

expressão”. Assim sendo, corresponde a dois sentidos, um amplo e outro restrito.

Considera então que só é possível definir esse segundo sentido, o especializado, de

ironia. “É o processo de expressão ‘per contrarium’, a figura de retórica que consiste

em atribuir às palavras sentido oposto ao que normalmente exprimem” (PAIVA,

1961, p. 06). Para o sentido mais amplo que a palavra ironia comporta, Paiva

acrescenta:

Definir com precisão essa atitude interior é particularmente difícil, dado que ela resulta da combinação de constantes psicológicas que se graduam diferentemente e a diversificam em conceitos distintos, que a traduzem parcialmente. Se nela predomina uma afeição de alegria amigável, individualizar-se em humor; se traduz uma amargura ácida, chama-se então sarcasmo; se joga agudamente com conceitos, recebe o nome de espírito; se se alia ao burlesco, toma a forma de facécia; se recorre a imitação, diferencia-se em sátira. A verdade é que nenhuma destas palavras é sinônima de ironia, mas há nas esferas semânticas respectivas um setor comum, que corresponde ao que, no sentido mais lato, se entende vulgarmente por ironia (PAIVA, 1961, p. 06).

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109

A morte: um encontro com o desamparo

Dentro dessa vertente de pensamento, Mueckle defende que um conceito

para ironia “é vago, instável e multiforme” (MUECKE, 1995, p. 22). Na visão deste

autor, a dificuldade em elaborar um conceito satisfatório para o termo é relativa à

multifacidade em que é possível expressá-la. O entendimento usual da palavra é

variável, dependendo da relação temporal, local e contextual em que seja utilizado.

“O conceito de ironia a qualquer tempo é comparável a um barco ancorado que o

vento e a corrente, forças variáveis e constantes, arrastam lentamente para longe de

seu ancoradouro” (MUECKE, 1995, p. 22); é preciso contextualizar e acompanhar

sua evolução. Com vistas a esse fim, é necessário retomar o termo ironia em alguns

recortes históricos, tanto quanto apresentar alguns pensamentos filosóficos na

construção dessa teoria.

Tomando o termo como evolução de um sentido, Mueckle sustenta que a

ironia é um fenômeno bem antigo, que se reagia a ele, bem antes de ser nomeado.

Sugere o exemplo de uma ironia situacional. Considera uma primeira referência à

situação de ironia, apresentada no texto da Odisséia, Canto XXI. O fato de Ulisses,

retornando a Ítaca, sentar-se disfarçado de mendigo em seu próprio palácio e ouvir

os pretendentes à mão de sua mulher, Penélope, comentar da impossibilidade dele,

o rei (Ulisses) regressar e reaver seu trono, por estar morto (MUECKE, 1995, p. 30).

Como a ironia é parte de interesse da especulação filosófica, talvez por ser

um traço marcante no comportamento humano, abordaremos, embora que

brevemente, alguns principais pensamentos nesse campo. E já considerando a

afirmação de Kierkegaard (1813-1855) que: “assim como os filósofos afirmam que

não é possível uma verdadeira filosofia sem a dúvida, assim também pela mesma

razão pode-se afirmar que não é possível a vida humana autêntica sem a ironia”

(apud MUCKLE 1995, p. 19).

Apesar da veracidade da afirmação do filósofo, há que se considerar que o

uso da ironia insere-se numa certa plasticidade. Destacaremos que, primeiro, em

relação ao contexto histórico; a concepção do termo sofreu evoluções; segundo, no

que diz respeito ao modo de aplicação, usual, como atitudes de senso comum e em

situações formais no contexto de representações das artes e do texto literário;

terceiro, em relação à multiplicidade de situações a que se oferece o termo, entre o

sentido “amplo” e o “restrito” de seu uso. Essa última observação destaca o caráter

dual que existe na ironia.

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110

A morte: um encontro com o desamparo

A forma apresentada por Platão, em referência ao uso que Sócrates provocou

a eironeia (uma ignorância pretensamente simulada), assumindo assim a posição de

um eiron, é a mesma a que Aristóteles dá continuidade. A eironeia como uma

“dissimulação autodepreciativa, superior ao seu oposto, a alozoneia, ou

dissimulação jactanciosa; a modéstia, ainda que apenas simulada” (MUECKE, 1995,

p. 31). Na peripeteia (peripécia) aristotélica, a ironia também assume o sentido de

súbita inversão das circunstâncias (MUECKE, 1995, p. 30). Aplicada à lógica dos

aforismos113 de Aristóteles, em que, no cerne dos enunciados das premissas, a

seqüência das sentenças é alternada, conseqüentemente, a ironia assim aplicada,

quebra o princípio da lógica tradicional. A palavra ironia, nesse período, também foi

utilizada como um modo enganoso da linguagem.

De acordo com os estudos de Muecke, o termo “ironia” não aparece no

idioma inglês antes de 1502, como também não entrou pra o uso literário geral ate o

começo do século XVII. Observa ainda que, dada a riqueza da língua inglesa em

termos coloquiais e verbais, outros vocábulos114 foram usados e podem ser

considerados como precursores à palavra ironia. Destaca ainda que no final do

século XVII e no século XVIII, o amplo uso das palavras derison (derrisão), droll

(chocarreiro), rally (zombaria), banter (gracejo), smoke (fumaça), roast (chacota),

quis (mofa) foram responsáveis por manter a palavra ironia como termo literário

(MUECKE, 1995, p. 32).

O desenvolvimento do conceito de ironia na Europa aconteceu

paulatinamente. Em dois séculos a ironia foi definida prioritariamente como uma

figura de linguagem, no sentido mais estrito do termo em que diz uma coisa

querendo dizer outra, principalmente em sentido oposto ao que foi dito. E ainda no

claro objetivo de dissimulação. A mobilização do conceito, desdobrando-se em

outros sentidos, está referida ao final do século XVIII e começo do século XIX.

Apesar de que os significados antigos persistiram e somaram-se aos novos

sentidos115.

113

Um aforismo é a síntese do conteúdo de uma sentença maior, acrescida de uma menor, em que a segunda premissa retorna ao conteúdo da primeira. 114

Vocábulos alencados do idioma inglês, como sendo precursores do termo ironia (fleer, flout, gibe, jeer, mock, scoff, scorn, taunt), correspondem ao sentido de mofa, escárnio, zombaria, motejo, chasco, sarcasmo, etc. 115 Mueckle ressalta a tendência a se depreciar a ironia satírica como vulgar e barata e a ironia cética como cruel, corrosiva ou diabólica (MUECKLE, 1995, p. 34).

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111

A morte: um encontro com o desamparo

Um enfoque novo no conceito de ironia está referido em contraponto com o

seu uso anterior. Antes, encarada como essencialmente intencional e instrumental,

ou seja, realizada com um propósito específico, pôde evoluir para ser considerada

como não-intencional, portanto observável e conseqüentemente representável na

arte (MUECKE, 1995, p. 35). Há um destaque para o caráter duplo da ironia,

podendo ser ora instrumental (revela-se comumente na inversão semântica do

verbo), ora observável (a ironia dos eventos, a dramática, a geral e as situacionais).

O conceito ganha um status generalizado. “A ironia pode ser encarada como

obrigatória, dinâmica e dialética” (MUECKE, 1995, p. 35). Nas palavras de Mueckle:

Desses novos significados que a palavra ‘ironia’ assumiu, os mais importantes emergiram do fermento da especulação filosófica e estética que transformou a Alemanha durante muitos anos na líder intelectual da Europa. [...] O primeiro estágio, logicamente senão cronologicamente, deste novo desenvolvimento foi considerar a ironia em termos não de alguém ser irônico, mas de alguém ser vítima de ironia, mudando assim a atenção do ativo para o passivo (MUECKE, 1995, p. 35).

A “ironia” nessa nova visão apresenta infinitas variáveis de expressão. O

vocábulo “irônico” aparece como apontando a ambigüidade que o termo comporta,

indicando assim o lugar de agente e passivo de uma mesma ação. A ironia não

apenas referida a quem a praticou, mas também a quem sofreu a ação. “A vítima

poderia ser ou o alvo de uma observação irônica, feita em sua ausência ou não, ou

uma pessoa que deixou de observar a ironia, seja ela ou não o seu alvo” (MUECKE,

1995, p. 35).

Como exemplo de Ironia Observável da Natureza, Mueckle destaca as

observações de Friedrich Schlegel (1772-1829), considerado o maior “inorólogo”

desse período, o qual afirma que, “A situação básica metafisicamente irônica do

homem é que ele é um ser finito que luta para compreender uma realidade infinita,

portanto incompreensível” (MUECKE, 1995, p. 39). Um paradoxo se estabelece

entre a relação homem e natureza, haja vista que

A natureza não é um ser, mas um tornar-se, um ‘caos infinitamente fervilhante’, um processo dialético de contínua criação e des-criação. O homem, sendo quase a única destas formas criadas, que logo serão des-

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112

A morte: um encontro com o desamparo

criadas, deve reconhecer que não pode adquirir qualquer poder intelectual ou experimental sobre o todo. Não obstante, ele é ‘programado’ para compreender o mundo, para reduzi-lo à ordem e coerência, mas também porque pensamento e linguagem são inerentemente sistemáticos e ‘fixativos’, enquanto que a natureza é inerentemente elusiva e protéica (MUECKE, 1995, p. 39).

A situação de vítima do próprio destino, visto que a finitude é peculiar à

condição de ser do humano, coloca todos os homens num mesmo irônico patamar

de desamparo. Aponta a efêmera condição de ser, reeditada a todo momento, frente

à dimensão da oferta externa de estímulos, não passíveis de toda apropriação.

Tanto quanto que, a cada passo dado, o homem avança em sua aquisição ao saber,

mas, paradoxal e inevitavelmente, se aproxima do fim da própria existência.

Mesmo apresentando esse exemplo cruel, da realidade efêmera do destino

humano, identificável como ironia observável da natureza, Schlegel destaca o ponto

do processo dialético. O que torna o comportamento humano estritamente humano é

esse dualismo dinâmico e aberto sempre a novas elaborações. A ironia “é a própria

força do paradoxo; e o paradoxo é a conditio sine qua non da ironia, sua alma, sua

fonte, e seu princípio”. (MUECKE, 1995, p. 41). E é nesse paradoxo que é possível

alguma construção se efetivar. O conceito de ironia como objetividade é creditado ao

Romantismo alemão.

A psique humana comporta esse sistema paradoxal da condição de

existência. A partir da condição de transitoriedade da vida, algo pode atuar na

vertente do desejo; opera um movimento mobilizador em direção a resignificar a

irônica condição de efemeridade. A arte encontra, nesse paradoxo, sua expressão.

Revela a dissimulação involuntária e mesmo assim deliberada; o antagonismo entre

o absoluto e o relativo. Nos argumentos de Schlegel, a arte usa esse paradoxo.

A criação artística tem duas fases contraditórias, mas complementares. Na fase expansiva, o artista é ingênuo, entusiasta, inspirado, imaginativo; mas seu ardor descuidado é cego e, assim, sem liberdade. Na fase contrativa, ele é reflexivo, consciente, crítico, irônico; mas a ironia sem entusiasmo é estúpida ou afetada. Ambas as fases são, portanto, necessárias se o artista deve ser amavelmente entusiasta e imaginativamente crítico. O artista que consegue esse equilíbrio, esta ‘alternação admiravelmente perene de entusiasmo e ironia’, produz uma obra que é em si mesma seu próprio vir-a-ser (MUECKE, 1995 p. 41).

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A morte: um encontro com o desamparo

Nesse sentido, na ironia Romântica, o artista revela “uma superação criativa

da criatividade”. Ele revela em sua arte a dimensão divina e humana. Desperta em

seu espectador “a consciência de sua presença transcendente enquanto atitude

irônica frente a sua própria criação” (MUECKE, 1995, p. 41). A expressão artística,

nessa via, comporta a capacidade de transitar na dinâmica entre o velado e o

revelado; explicitamente arte é também “imitação” da vida. Esse efeito dual torna a

obra de arte mais natural.

O conceito de ironia expandiu-se e a ironia Romântica é amplamente

representada. Kierkegaard comenta os principais destaques dessa época - além do

já citado e importante trabalho de Schlegel, a contribuição de Karl Solger (1780-

1819) é marcante, ainda assim, de difícil assimilação. Na visão de Kierkegaard, a

ironia na perspectiva de Solger é situada no cerne da vida. É um conceito universal

só possível de manifestar-se em situações particulares e relativas. Para ele, a ironia

reside no duplo movimento oposto, no qual cada um se sacrifica ao outro. Isto é, é

necessário haver uma autonegação ou aniquilamento; esse movimento revela o

universal, o infinito e o absoluto. A ironia está em referência ao duplo movimento

antagônico de sacrifício individual (apud MUECKE, 1995, p. 42).

A idéia de duplo é persistente em torno do conceito de ironia. Para A. W.

Shlegel é entendido “como aquilo que restaura ou aquilo que mantém um equilíbrio”

(apud MUECKE, 1995, p. 42). Na visão de I. A. Richards, a idéia do duplo é

conservada, e a ironia é definida como “a produção dos impulsos opostos, dos

complementares a fim de realizar um peso equilibrado” (MUECKE, 1995, p. 42).

Reforçando essa idéia de pares de opostos, Hegel “considera a ironia o progresso

dialético da história” (MUECKE, 1995, p. 42). Nessa perspectiva, porta em si dois

pólos antagônicos entre o positivo o negativo aplicável a tua situação da realidade.

Somando aos conceitos já mencionados, destaca-se o nome do inglês

Connop Thirlwall e seu diálogo teórico com os conceitos de ironia dos filósofos

germânicos. A contribuição nova de Thirlwall é a idéia de Ironia Dramática, também

na vertente do duplo, pois se revela na fala de uma personagem que porta no

discurso, inconscientemente, uma dupla referência: a situação tal qual parece ser, e

a própria situação em si, tal como realmente é (apud MUECKE, 1995, p. 45).

Em referência à ironia do destino, Thirlwall afirma, no artigo “Da ironia de

Sófocles”, “que o contraste entre o homem com suas esperanças, medos, desejos e

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114

A morte: um encontro com o desamparo

empreendimentos, e um destino obscuro, inflexível, propicia abundantes condições

para a exibição de ironia trágica” (apud MUECKE, 1995, p. 38). E, como bem se

sabe, é o lugar da arte. Ao representar o sentimento humano, o espetáculo trágico

oferece a possibilidade de observar, suportar e elaborar a própria tragédia do

destino humano. São as multifacetas da ironia se expressar que revelam os seus

sentidos significantes na elaboração existencial do homem.

O conceito de ironia é objeto de estudo na tese de Kierkegaard [1841], e é

explicado por ele, entre o estágio ético e o estágio estético do desenvolvimento

espiritual. A ironia é indispensável e quem a utiliza, o ironista, o faz integralmente,

em sua essência intensa, num sentido de totalidade (p. MUECKE, 1995, p. 46). Para

ele, a gênese da atitude irônica está na especulação filosófica metafísica,

sinalizando o aspecto da negatividade.

As várias possibilidades de expressão da ironia ganham corpo no campo

literário. Mueckle ressalta a constante expressão da ironia nas artes e em particular

na literatura, como sendo de grande importância. Enumera116 os grandes nomes da

literatura em que ironia é expressão significativa, e questiona a esse respeito. “Que

lista comparável se poderia fazer dos escritores cuja obra não é irônica de modo

algum ou o é apenas ocasionalmente, minimamente ou ambiguamente?” (MUECKE,

1995, p. 18).

Seja qual for a vertente dominante do pensamento do autor, a ironia em seu

texto vai se revelar transmitindo essa escolha conceitual ou estrutural; repassa sua

visão subjetiva que retrata a leitura da objetividade. O fato é que conforme o

conceito pôde evoluir, fez vacilar o significado literal. “A velha definição de ironia –

dizer uma coisa e dar a entender o seu contrário – é substituída; a ironia é dizer

alguma coisa, de uma forma que ative não uma, mas uma série infindável de

interpretações subversivas” (MUECKE, 1995, p. 48). E ainda assim, porta a dupla

vertente dialética conforme proposto por Hegel.

116 Mueckle destaca os principais escritores cujas obras estão permeadas significativamente de ironia: Homero, Ésquilo, Sófocles, Eurípides, Aristófanes, Tucídides, Platão, Cícero, Horácio, Catulo, Juvenal, Tácito, Luciano, Boccaccio, Chaucer, Villon, Ariosto, Shakespeare, Cervantes, Pascal, Molière, Racine, Swift, Pope, Voltaire, Johnson, Gibbon, Diderot, Goethe, Stendhal, Jane Austen, Byron, Heine, Baudelaire, Gogol, Dostoievski, Flaubert, Ibsen, Tostoi, Mark Twain, Henry James, Tchekhov, Shaw, Pirandello, Proust, Thomas Mann, Fafka, Musil e Brecht.

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A morte: um encontro com o desamparo

Da diversidade em que o conceito de ironia se insere e na evolução em que

tem se transformado, demanda uma ordenação classificatória que favoreça uma

maior compreensão para o uso do termo. No trabalho de Paiva, de um modo

extremamente didático, ela destaca cinco tipos de ironia organizados com a seguinte

classificação: a ironia pura, a satírica, a disfemística, a restritiva e a contornante.

Além dessa ordenação ela também classifica a ironia por características de acordo

com o tom da frase (o som da voz) ou o que denominou de “o clima” em que se

efetiva o uso da ironia. Esses podem ser: ingênuo, retórico, sagrado, científico e

familiar.

A começar pelo que chamou de ironia pura, Paiva a define na essência

restrita do termo. A ironia pura é falada para expressar o sentido oposto do que se

quer dizer. É um pensamento dissimulado provocador de dissociação. O grau

máximo da dissociação é quando a palavra perde o seu sentido natural de

expressão do pensamento e opera uma inversão de sentidos. Para atingir esse

êxito, é necessário que o ouvinte deixe a posição passiva e participe ativamente da

interpretação, suplementando o que falta. É preciso entender, a partir do que foi dito,

o que falta como conexão à dupla situação de opostos: o contraste entre o modo de

expressão do pensamento e a atitude real expressa na fala. Ou seja, é preciso julgar

e traduzir no cerne do discurso a intenção de revelar um outro sentido contrário.

Uma das seqüelas da resultante dessa operação, a desadaptação no

discurso, dizer uma coisa querendo informar o seu oposto, é o surgimento do

cômico. “A expressão antitética e cômica que daí provêm – contribuem para a

criação de um terceiro aspecto: a realidade sentida como um teatro, o autor

desempenhando o papel de ator” (PAIVA, 1961, p. 10). Esse processo, peculiar à

ironia de expressar uma atitude através de palavras que exprimem o sentimento

oposto, recebeu também a classificação de asteísmo. E nas palavras da autora: “o

uso carinhoso de termos ofensivos integra-se numa tendência disfemística; o

caminho inverso, igualmente vulgar, recorre a palavras afetuosas através das quais

transparece um pensamento reservado” (PAIVA, 1961, p. 11).

A ironia nessa vertente de transmissão por antítese faz emergir um aspecto

lúdico no que comunica. O enunciado é transmitido numa via contrária à expressão

linear do pensamento e mistifica o que de fato tenciona dizer. Nessa perspectiva,

tende ao exagero no conteúdo que repassa. Via de regra, esse tipo de manifestação

da ironia se faz acompanhar pela figura da hipérbole. Essa última se presta a dar um

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A morte: um encontro com o desamparo

significado figurado elevado aos extremos, num sentido de muito maior ou muito

menor do que o significado próprio que ela enuncia.

A hipérbole117, quando atrelada à ironia, forma com ela o par ideal de

expressão. Pode-se até pensar a hipérbole como portando ela mesma uma certa

dose de ironia, haja vista que é uma figura de linguagem que visa à ênfase no

exagero deliberado. Já é intencional da hipérbole enaltecer pelo extremo, seja no

sentido negativo seja no positivo; o que a expressão dita quer fazer crer com uma

dose de elevação do sentido maior ao que a própria realidade de fato consegue

exprimir. No entanto, o uso da hipérbole, mesmo sendo efetivamente uma forma

deliberada de exagero da verdade, não perde de vista o respeito à beleza estética,

seja quando usada, por amplificação, seja por atenuação dos termos. É utilizada

tanto na linguagem oral quanto escrita; pode acontecer em estado puro ou

associada a outras figuras de pensamento.

A sátira transmite uma forma de ironia que focaliza e expõe ao ridículo os

defeitos ou vícios de uma pessoa ou de um contexto social. Pode revelar-se por dois

aspectos: primeiro como resultado de uma deformação, como é peculiar à paródia;

nesta, as modificações provocadas têm maior efeito do que a mera repetição ou

imitação; “nessa projeção burlesca da imagem em espelhos côncavos, qualidades

passam a ser vistas como defeitos, e os defeitos encaram-se segundo uma

perspectiva que os torna ridículos” (PAIVA, 1961 p. 13). Essa vertente da sátira

configura-se bem na caricatura, que é, em si, uma deformação intencional.

No segundo aspecto, a sátira se apresenta como cópia fiel de um quadro e já

no modelo consta o efeito cômico. Nesse aspecto, para a ironia se revelar é preciso

que haja uma observação aguçada; um sutil raciocínio para revelar o cômico

embutido no invólucro apresentado. Nas palavras de Paiva:

Na sátira o essencial não é intuito de morigerar os costumes, que dela está quase sempre ausente. O que parece ser essencial na sátira é o aspecto de oposição ao meio. O ironista é um desintegrado, um isolado; lingüisticamente é alguém que individualiza os aspectos sociais da linguagem. A atividade crítica impele-o a descobrir efeitos perdidos pelo esquecimento ou inéditos, e a tirar partido deles, transmitindo aos outros esse sentimento de criação individual que está também na base da criação artística. Desse isolamento, que torna o ironista semelhante a um surdo que assistisse a um bailado, para

117 Hipérbole é originário do grego (hyperbolê), e significa transporte por cima, excesso. (MOISÉS, 1974, p. 276).

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A morte: um encontro com o desamparo

quem todos os gestos e passos se tornariam grotescos, nasce a sátira (PAIVA, 1961, p. 14).

Na visão de Paiva, a linguagem das escolas literárias ofereceu fartos

elementos para a sátira se revelar. A escola romântica foi a que mais forneceu

campo a essa atuação da sátira. Os dois tipos de sátiras destacados podem

interpenetrar-se. O esforço de interpretação pode gerar o efeito do cômico latente

implícito na realidade e amplificar o aspecto de deformação caricatural.

Para falar da ironia disfemística, Paiva recorre ao pensamento de Hobbes e

esse, trazido da fonte de Aristóteles. Explica que o riso é um sentimento que aponta

o triunfo, como resultado de algum êxito, e assim entendido é usado como meio de

demonstrar superioridade, de quem o domina sobre os que escutam. “Embora o

sentimento da própria superioridade não possa explicar todas as formas de riso”,

haja vista que, independente do tipo de estímulo, quando uma situação surpresa se

instaura, o riso acontece, via de regra, como uma reação natural. Ou seja,

transforma-se numa “forma espontânea de vencer um sentimento de insegurança”

(PAIVA, 1961, p. 17).

No caso do ironista, o riso provocado, nos seus ouvintes, aponta seu poder

de superioridade diante daquele tema, e daquele grupo, atua como via de sinalizar

quem tem o domínio do discurso. Na ambigüidade que gera o sentimento de

superioridade “há igualmente uma desconfiança de si próprio, de que

inconscientemente se procura a libertação pelo riso” (PAIVA, 1961, p. 17).

Nesse sentido, o ironista, ao dominar o discurso, o riso provocado no outro, garante

o retorno da palavra proferida, tanto quanto uma dose de cumplicidade entre o

orador ironista e os ouvintes.

A ironia disfemística atinge o cerne da estruturação humana, nega a

singularidade, a marca individual que diferencia cada sujeito, mesmo quando

contado num grupo. Nega também qualquer caráter extraordinário que possa

diferenciar um humano do outro. É forma de expressão que banaliza a

individualidade, que atua de maneira desagradável e objetiva. Sua atuação aponta

para a degradação humana, tem caráter negativo. Sem nenhum tipo de

encantamento, banaliza qualquer manifestação lírica e reduz o discurso poético ao

fisiológico; particulariza de tal modo dados cotidianos que os torna vulgares; “insiste

nas necessidades orgânicas, que sendo comuns a todos os homens, corroem a

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A morte: um encontro com o desamparo

idéia de imortalidade”. Ou seja, atua como um forte golpe no narcisismo (PAIVA,

1961, p. 18, grifo nosso).

Em continuidade, Paiva apresenta a ironia restritiva. Conforme se anuncia,

essa ironia se revela na redução dos termos, no afunilamento das amplitudes para

uma particularidade específica. Numa perspectiva negativa ao contexto “tende a ver

como pluralidade o que à perspectiva normal se apresenta como unidade”. Alimenta-

se por decomposição, destaca um elemento menor de uma realidade mais ampla e

assim simplifica a importância desse elemento na multiplicidade de seus aspectos.

Seu caráter prioritário é a fragmentação, altera a realidade diminuindo-a por

parcelamento.

Quando a realidade visada encerra um sentido positivo, dignificante, a transformação realizada representa uma diminuição, um apoucamento. Os temas preferidos pela ironia restritiva são o bom, o grande, ou o intenso. Cria-se um compromisso entre a negação de determinada realidade e sua afirmação; a ironia resulta exatamente da indecisão entre as duas formas (PAIVA, 1961, p. 23).

Esse tipo de ironia tem certa proximidade com a ironia pura, especialmente

quando atua com a inversão de sentidos; embora os objetivos sejam distintos em

cada caso. Na restritiva o objetivo é negativo, a inversão é por pura economia dos

termos e visa a decompor e dissociar o todo a uma parte, e/ou, entre o mínimo e o

máximo.

A última, na classificação de Paiva, é a ironia contornante. Também Indicativa

no nome, essa ironia tende a escapar ao percurso linear do discurso, e o contorna,

para suavemente o deformar. É essencialmente antitética e alegórica. Em seu

movimento de contorno provoca certa tortuosidade num campo de grande

condensação. O ironista, ao utilizar esse estilo, usa indiferença associada ao

sentimento de superioridade, em tom frívolo e superficial. Apresenta indiferença ao

essencial e privilegiando o acessório em detrimento do original. Dessa relação

superficial e frívola, advém que: “em vez de se designar um objeto, rodeia-se,

contorna-se uma noção. Em lugar de se nomear uma coisa, declara-se o epíteto que

a substitui muitas vezes; em vez de se indicar claramente uma pessoa, mantém

quase um anonimato, no plano formal” (PAIVA, 1961, p. 26).

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A morte: um encontro com o desamparo

Todo o tipo de ironia, independente da classificação, para atingir seu efeito,

utiliza-se também de um recurso estilístico no tom de expressar-se, é também

entendido como “clima”, modo sutil de expressar a idéia, no qual a entonação

envolve o significado e lhe reveste melhor o sentido. Nas palavras de Paiva:

Do mesmo modo que aquilo que se diz depende do ar com que se diz, a ironia depende muitas vezes do tom em que se fala. O clima de ironia é dado geralmente por um deslizar de atitude que seria natural, para outra; o grau ou a matiz do efeito produzido dependem da distância existente entre a atitude real que se deixa adivinhar e a atitude de opção que se enverga. Essa transposição realiza-se uma vez no plano puramente psicológico, outras vezes dá-se através da linguagem característica de um ambiente ou de uma atividade, evolutiva de aspectos morais que se assumem (PAIVA, 1961, p. 30).

Sobre o tom ingênuo, Paiva o relaciona à ironia pura, sendo essa bem

pertinente a esse modo de expressão. A manifestação desse tom se revela na

inversão, dizendo-se uma coisa aparentando o tom de voz em sentido oposto, o que

é bem peculiar à ironia pura, quando se diz dizer uma coisa cruel em tom amável. “O

ingênuo forçado admite gamas muito variadas, desde a insinuação aparentemente

despreocupada, até a ignorância ou a dúvida, fingidas também e misturadas com

certa dose de pseudo-humildade” (PAIVA, 1961, p. 30). As pessoas que assim se

utilizam desse tom, são comumente identificadas como “cínicas” e já se revelam

irônicas no desmentido da própria expressão do clima da fala em sentido oposto ao

enunciado.

O tom retórico acontece por uma alteração deliberada no discurso, em que o

aumento das proporções deixa de ser um meio e torna-se um fim, fazendo emergir a

ironia por excesso ou por defeito. O tom enfático e rebuscado nos termos, peculiar à

hipérbole do espírito, ao ser utilizado em afirmações banais, demonstra o tom

humorístico da sentença. A dissonância que expõe o clima de ironia fica por conta

do tom das exclamações e invocações clássicas aplicadas no discurso de maneiras

solenes e ao mesmo tempo estereotipadas. Esse é um dos meios mais usais desse

clima de ironia se revelar. Há uma procura por efeitos empolados, longos períodos,

palavras complicadas e raras. Termos e construções de orações que dêem margem

ao ridículo.

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A morte: um encontro com o desamparo

Paiva ressalta algumas especificidades da linguagem religiosa, para nesse

contexto destacar o tom sagrado como um clima da ironia. A linguagem sacra porta

traços especiais pela questão dos sentimentos que envolvem as relações com a fé.

É uma linguagem de características próprias, mesmo assim, com os diferenciais das

diversidades de cada credo religioso. O vocabulário religioso transferiu-se para a

rotina diária e alguns vocábulos desse contexto sacro passaram a ser pronunciados

com espontaneidade. O uso corrente desses faz parceria com a linguagem do senso

comum e favorece a harmonia com o pitoresco. É da dissonância que surge esse

par de expressões, advinda de contextos distintos, que o clima da ironia encontra um

campo fértil a se revelar. Como exemplo, Paiva cita termos usais como: “a profissão

é um sacerdócio, consagra-se aos filhos, santuário da família. Nessas expressões,

realizou-se uma extensão de sentido que lhes deu valor simbólico” (PAIVA, 1961, p.

43). Elevando a um grau de superioridade em função do que porta o referente

“sacro”.

Em outros casos, o resultado pode não gerar esse sentido de transposição

que torne o efeito “superlativante”. A relação estabelecida ao ser evocado o termo

religioso pode dificultar a passagem ao sentido próprio figurado e assim produzir um

efeito pitoresco. Como também indicar o pitoresco sem produzir o efeito do risonho e

fútil, apenas a dissonância com a natureza religiosa, como condensação de opostos

numa mesma expressão. Como exemplo o termo “batismo do ar significando a

iniciação na navegação aérea, ‘deitar água benta’, com o sentido de usar de

benevolência” (PAIVA, 1961, p. 43).

Numa outra prespectiva, a linguagem religiosa pode evocar o tom de retórica,

o que Paiva denomina de natureza hipersémica. No contexto dessa linguagem, “o

tom retórico é uma ampla hipérbole interior, no tom sagrado, até porque a linguagem

genuinamente religiosa é de difícil imitação, a ironia atua, sobretudo pelo poder de

evocação das palavras relacionadas com o sentimento religioso” (PAIVA, 1961, p.

43). A ironia tem no universo do sagrado outras possibilidades de manifestação,

além do efeito principal da “superlativação”. Nas observações de Paiva, destaca-se:

A possibilidade de se usar um concretismo, rico de virtualidades dentro do realismo e da ironia, que se baseia num metaforismo religioso. Cerimônias religiosas, partes da missa, orações, tudo pode servir de elemento de transposição: essa transposição não se dá, no entanto, sem que essas realidades se tenham reduzido a um aspecto puramente exterior ou formal, o

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A morte: um encontro com o desamparo

que implicitamente pressupõe uma redução de valor, uma depreciação. Nesse caso a ironia atua triplamente: sobre a noção substituída, que engrandece hiperbolicamente pela participação da dignidade religiosa; sobre o termo religioso, que degrada irreverentemente pela correspondência estabelecida; e sobre a palavra através da qual realiza a fusão dos dois aspectos, que vale como um elemento de dissonância, um encontro de contrários” (PAIVA, 1961, p. 44).

No clima do universo sacro a ironia atua pelo poder da evocação das

palavras, assim como pelo poder da evocação do sentimento religioso que a palavra

faz emergir. Esse sentimento relaciona-se “ao sentimento de temor, e este com a

ansiedade e o tenebroso, que envolvem o sentimento de mistério. Por isso incluímos

dentro do tom religioso a alusão a algo misterioso, de que a ironia tira tão

freqüentemente partido” (PAIVA, 1961, p. 47). Nessas inúmeras referências consiste

a extensão de alcance da ironia dentro desse “clima” do sagrado.

No tom científico, a ironia encontra seu aporte no contraste entre o rigor

atribuído pelo método científico a um objeto e a importância real desse objeto. O

excesso de objetividade do discurso científico prima pela exatidão e pela

comprovação e nega a expressão da subjetividade. A impessoalidade é o ponto de

atuação da ironia nesse tom. A ironia pode atuar por justaposição (entre a

perspectiva comum e a perspectiva científica dissonante); por insinceridade (adota a

fantasia no lugar da realidade); por contraste (entre a objetividade e a subjetividade).

Em todos os casos visa ao contraponto entre coisas insignificantes ou subjetivas e à

participação dessas dentro do contexto da impessoalidade e racionalidade do

discurso científico.

O último tom apresentado por Paiva é o familiar. O traço marcante desse tom

de ironia é a oralidade, desse modo, carregada de emoção e espontaneidade, dada

à proximidade afetiva e íntima marcante num grupo familiar. “A única linguagem

escrita naturalmente próxima da linguagem familiar é a que se desenvolve em

correspondência” (PAIVA, 1961, p. 51). Os outros tipos de escrita dados à

especificidade a que se destina em cada construção de estilo, não têm como atingir

essa naturalidade e ausência completa de constrangimento, peculiar ao familiar.

A exceção fica por conta da habilidade do escritor em querer

conscientemente assimilar a linguagem oral a seu estilo. Ou seja, deliberadamente

abrir mão da seriedade; convidar o leitor a participar da ínfima construção interna da

trama e opinar em diálogo como se fosse um confidente que constrói junto o enredo.

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122

A morte: um encontro com o desamparo

Nesse caso, a linguagem adquire a informalidade oral, reproduz a naturalidade e a

emotividade do contexto familiar e o clima de humor aparece.

2.3.2 Ironia: Labirinto do discurso.

Era uma vez uma choupana que ardia na estrada; a dona, - um triste molambo de mulher, - chorava o seu desastre, a poucos passos sentada no chão. Senão quando, indo a passar um homem ébrio, viu o incêndio, viu a mulher, perguntou-lhe se a casa era dela. - É minha, sim, senhor; é tudo que possuo nesse mundo. - Dá-me licença que eu acenda ali o meu charuto? (Machado de Assis).

Refletir sobre a amplitude da manifestação da ironia remete ao primeiro traço

básico de sua ação: revelar um contraste entre uma realidade e uma aparência.

Como também é estar atento ao caráter duplo que a ironia faz cindir, na enunciação

do texto. Ou seja, aponta a escansão possível de ser escamoteada na linearidade

do discurso. A presença de dualidades na linguagem e na constituição humana

sempre se colocou como um ponto de interesse peculiar à psicanálise. Desse modo,

o tema da ironia, em parceria com o chiste, está presente no estudo freudiano.

A ironia ilustra de maneira exemplar a força da palavra apreendida na divisão

de par antitético, ou ainda no deslizamento possível nas várias expressões a que se

apresenta. Os pares de opostos em alguma medida são complementares e

necessários; o “não” resignifica o “sim” tanto quanto a “morte” resignifica a “vida”. Há

um par dialético na base da existência humana, ressaltada com mais evidência após

a descoberta freudiana do inconsciente. No texto A instância da letra no inconsciente

ou a razão depois de Freud, Lacan ressalta o interesse de Freud “daquilo que

chamamos a letra do discurso, em sua textura, seus empregos e sua imanência na

matéria em causa” (LACAN, 1998, p. 513). E acrescenta:

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123

A morte: um encontro com o desamparo

A obra de Freud nos apresenta uma página de referências filológicas a cada três páginas, uma página de inferências lógicas a cada duas páginas e, por toda parte, uma apreensão dialética da experiência, vindo a analítica linguageira reforçar ainda mais suas proporções à medida que o inconsciente vai sendo mais diretamente aplicado (LACAN, 1998, 513).

A partir da aceitação deste cogito, percebeu-se o que Freud chamou de

terceira grande ferida narcísica da humanidade: o “Eu” não é dono do seu ser; a

incompletude estava formalizada. Em Freud, essa ironia, inerente à constituição

humana, atinge mais profundamente, pois além de não dominar o universo ao seu

redor, o ser humano não domina a si próprio, seu universo interior é cindido. O

inconsciente, ao se manifestar nas brechas do sonho, do lapso, dos chistes, dos

atos falhos, ou nos menores deslizes da linguagem cotidiana, comprova a dialética

do existir118.

A idéia do duplo é recorrente na teoria freudiana, seja “nas posições libidinais

sucessivas do indivíduo (ativo-passivo, fálico-castrado, masculino-feminino), na

noção de ambivalência, no par prazer-desprazer e nos dois dualismos pulsionais

(amor e fome, vida e morte)” (JORGE, 2000, p.104). Seja em que campo de ação

for, é marcante o reflexo de uma cisão que está base da formação da psique

humana. A dualidade119 em Freud pode ser entendida, segundo Garcia Roza:

Freud não é um dualista, no sentido filosófico do termo, o que ele faz é pensar em termos de dualidades, de categorias que se opõem dialeticamente, e cujos termos implicados nessa oposição não existem fora dessa relação de oposição. Nada que possa ser identificado à distinção ontológica entre a res cogintans e a res extensa cartesiana. A diferença que estou fazendo entre ‘dualismo’ e ‘dualidade’ pode ser resumida no seguinte: no dualismo, as entidades implicadas preexistem e são exteriores às relações que estabelecem, enquanto que numa dualidade, os elementos que se formam só existem na e pela relação estabelecida. Nesse sentido, os ‘dualismos’ freudianos são muito mais dualidades do que dualismos propriamente ditos (GARCIA-ROZA, 2002, p. 276).

118 “Qualquer que seja o encaminhamento do enfoque discursivo da ironia, ele não poderá escamotear a idéia de que tanto a filosofia quanto a psicanálise tocaram em questões essenciais ao tratamento do discurso, como é o caso da dimensão enunciativa envolvendo os conceitos de sujeito e de inconsciente” (BRAIT, 1996, p. 47). 119 Achamos pertinente citar essa distinção entre dualidade e dualismo, uma vez que utilizamos os dois termos, porém sempre no sentido freudiano de dualidade.

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124

A morte: um encontro com o desamparo

Desde as primeiras formulações teóricas, Freud já aponta esse

desconhecimento do sujeito, que se faz representar nas falhas do recalque, espaço

de construção da linguagem. É no artigo sobre A Significação Antitética das Palavras

Primitivas120 [1910] que Freud traz a dualidade para o campo da palavra. Chama a

atenção para a composição dos contrastes, peculiar à linguagem dos sonhos, assim

como a estrutura de palavras primitivas na língua egípcia. Nos sonhos os contrários

são tratados sem rigor; “os sonhos mostram uma preferência particular para

combinar os contrários numa unidade ou para representá-los como uma e mesma

coisa” (FREUD, [1910] 1990, p. 141).

Os sonhos, como uma das vias de fala do inconsciente, revelam-se a seu

próprio modo. Essa singularidade confere ao trabalho dos sonhos a inusitada

possibilidade de fazer uso de “qualquer elemento, por seu contrário de desejo; não

há, assim, maneira de decidir, num primeiro relance, se determinado elemento que

se apresenta por seu contrário está presente nos pensamentos do sonho como

positivo ou negativo” (FREUD, [1910] 1990, p. 141). Em relação à língua arcaica,

Freud resgata no trabalho do filólogo a capacidade peculiar a essa língua arcaica

destacando o fato:

De todas as excentricidades do vocabulário egípcio, talvez a característica mais extraordinária seja que, excetuando inteiramente as palavras que aliam significações antitéticas, ele possui outras palavras compostas em que dois vocábulos de significações antitéticas se unem de modo a formar um composto que tem a significação de um apenas de seus dois componentes (FREUD, [1910] 1990, p. 143).

Coutinho Jorge observa que Freud rastreia, a partir do artigo de Karl Abel,

“nessa estrutura das palavras primitivas uma espécie de paradigma que permite dar

conta de uma série de fenômenos inconscientes” (JORGE, 2000, p. 106). Freud

aponta na excentricidade dessa língua arcaica um fundamento de estrutura da

linguagem que será retomada por Lacan na articulação com a Lingüística. Freud

acrescenta ainda, em nota de rodapé, que “é plausível supor, também, que a

significação antitética original de palavras revele o mecanismo pré-formado que se 120 De acordo com Ernest Jones, esse texto foi escrito por Freud após ler um artigo de Karl Abel [1884] de Ensaios filológicos. O texto de Freud trata da relação dos contrários e contradições comuns ao trabalho do sonho e também da língua egípcia primitiva. Faz uma analogia desse mecanismo com o funcionamento do inconsciente, e seus escapes pelos lapsos de linguagem.

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A morte: um encontro com o desamparo

explora com finalidades várias nos lapsos de linguagem de que resulta dizer-se o

oposto (do que o inconsciente se tencionava)” (FREUD, [1910] 1990, p. 146).

É na palavra que o sujeito se estrutura e é por ela que se guia para apropriar-

se de seu ser, até onde isso lhe é possível. Freud conclui esse artigo com uma

importante observação:

Na correspondência entre a peculiaridade do trabalho do sonho mencionado no início do artigo e a prática descoberta pela filologia nas línguas mais antigas, devemos ver uma confirmação do ponto de vista que formamos acerca do caráter regressivo, arcaico da expressão de pensamentos em sonhos. E nós psiquiatras não podemos escapar à suspeita de que melhor entenderíamos e traduziríamos a língua dos sonhos se soubéssemos mais sobre o desenvolvimento da linguagem (FREUD, [1910] 1990, p. 146).

Uma outra referência de Freud, neste mesmo sentido da ambivalência da

palavra, está no texto O estranho121 (heimlich-unheimlich). Freud demonstra o

desdobramento desse adjetivo alemão para o sentido oposto, ou seja, contendo ele

mesmo a duplicidade. Do rastreamento que Freud desenvolve nesse estudo, O

estranho conduz ao seu oposto. Ao que é familiar, porém perpassando o oculto, o

lúgubre, o obscuro, o sinistro, o inquietante, o macabro; “somos tentados a concluir

que aquilo que é ‘estranho’ é assustador precisamente porque não é conhecido e

familiar” (FREUD, [1919] 1990, p. 277). Coutinho Jorge destaca que há um ponto de

torção nos deslizamentos dos sentidos e que “formam uma seqüência que começa

com o mais ‘conhecido’ e chega ao mais ‘estranho’ justamente por contigüidade que

pode percorrer gradações que se iniciam no familiar, passam pelo íntimo-secreto-

furtivo e conduzem ao estranho” (JORGE, 2000, p. 109). Essa nuança da palavra é

bem representada, principalmente no texto literário, em especial, na literatura

fantástica.

No texto O interesse científico da psicanálise [1913], na segunda parte (A) O

interesse filológico da psicanálise, Freud ressalta o ponto comum entre esses dois

campos de saber.

121 Grande parte desse texto já está mencionada no primeiro capítulo deste trabalho.

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A morte: um encontro com o desamparo

A expressão ‘fala’ deve ser entendida não apenas como significando a expressão do pensamento por palavras, mas incluindo a linguagem dos gestos e todos os outros métodos, como, por exemplo, a escrita, através da qual a atividade mental pode ser expressa (FREUD, [1913] 1990, p. 211).

Freud retoma a comparação anterior entre os sonhos e a estrutura da

linguagem. O sonho como uma expressão onírica em que conteúdos contrários

podem se representar uns aos outros. Essa linguagem traduz os pensamentos

oníricos latentes, peculiaridade desse tipo de “sistema altamente arcaico de

expressão”. É a via régia de revelação do inconsciente. “Na linguagem onírica, os

conceitos são ainda ambivalentes e unem dentro de si significados contrários” em

comum analogia “com as hipóteses dos filólogos, das mais antigas raízes das

línguas históricas” (FREUD, [1910] 1990, p. 211). Esclarecendo melhor a questão

Freud afirma:

Se pensarmos que os meios de representação nos sonhos são principalmente imagens visuais e não palavras, veremos que é ainda mais apropriado comparar os sonhos a um sistema de escrita do que a uma linguagem. Na realidade, a interpretação dos sonhos é totalmente análoga ao deciframento de uma antiga pictográfica, como os hieróglifos egípcios. Em ambos os casos há certos elementos que não se destinam a serem interpretados (ou lidos, segundo for o caso), mas têm por intenção servir de ‘determinativos’, ou seja, estabelecer o significado de algum elemento. A ambigüidade dos diversos elementos dos sonhos encontra paralelo nesses antigos sistemas de escrita, bem como a omissão de várias relações, que em ambos os casos têm de ser suprimida pelo contexto (FREUD, [1910] 1990, p. 212).

No rastro das estratégias de expressão da linguagem do inconsciente, Freud

sempre esteve atento aos labirintos de construção da fala e da escrita. Investiga no

cerne da manifestação da fala o outro texto (contorno) que se inscreve na

linearidade do texto expresso. Dessa feita o tema da ironia vem também fazer parte

das inserções do interesse da psicanálise no campo da linguagem. Freud trata do

conceito de ironia no texto Os chistes e sua relação com o inconsciente122 [1905].

122 Este livro de Freud, à época do lançamento, não obteve todo o reconhecimento que conseguiu posteriormente. Depois, veio a ser considerado um dos textos base da psicanálise, formando trilogia com A interpretação dos sonhos e a psicopatologia da vida cotidiana.

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A morte: um encontro com o desamparo

Neste, ele a situa muito próxima ao chiste. Abordaremos o chiste, para melhor

entendermos essa relação.

Freud investiga, no texto acima citado, a presença do chiste, na literatura

estética e na psicologia, ressalta a importância desses dois campos para a

compreensão da natureza dos chistes e o quanto essa atenção está sendo

negligenciada por ambos. “A primeira impressão derivada da literatura é que é bem

impraticável tratar os chistes, a não ser em conexão com o cômico”. Freud destaca

que o chiste é uma produção subjetiva e bem sucedida, do sujeito, a partir da

observação de dada realidade objetiva; revela-se no cômico ou na comicidade, que

ao ser emitida demanda interpretação; demanda a participação do outro.

O chiste, para se revelar no cômico ou na comicidade, usa mão de recursos e

a caricatura é uma via de abordagem. Ao exibir a comicidade presente no estético

quando colocado fora do padrão (dos determinantes estéticos contextuais, entre o

belo e o feio) o chiste torna esse cômico accessível sem o abordar diretamente. Ele

lança luz sobre o detalhe, que quer destacar, atribuindo um juízo que ilumine o que

quer denunciar ou abordar. “Um chiste é um juízo que produz contraste cômico;

participa já, tacitamente, da caricatura, mas apenas no juízo assume sua forma

peculiar e a livre esfera de seu desdobramento” (apud FREUD, [1905] 1990, p. 22).

Freud concorda com a característica “distintiva do chiste na classe do cômico”

destacada por Lipps sobre “a ação, o comportamento ativo do sujeito” que pratica o

chiste e o que esse ato demanda de um outro. O ponto crucial de destaque, além

desse trabalho subjetivo, é relativo também ao contraste da situação real (a peça

chave contrastante) que é focada e ampliada. O descompasso, iluminado pelo chiste

só tem êxito se produzir o efeito no outro.

Ainda entre as características123 do chiste, Freud destaca o processo de

condensação, também presente no trabalho elaborado pelos sonhos. O resumo, ou

o recorte bem sucedido elaborado pelo chiste, retirado de um contexto maior,

revelado num breve reflexo, contraste da realidade e que revela o todo.

123 Freud destaca a condensação e enumera didaticamente os seus desdobramentos, referindo esse mecanismo de ato da linguagem como a característica mais importante do chiste. O deslocamento também é apontado em outros exemplos, ficando assim, a manifestação dos chistes, similar aos sonhos como vias de expressão do inconsciente.

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A morte: um encontro com o desamparo

A brevidade dos chistes é freqüentemente o resultado de um processo particular que deixa um segundo vestígio na verbalização do chiste – a formação de um substituto. Pela redução do procedimento de redução, que procura desfazer esse peculiar processo de condensação, verificamos também que o chiste depende inteiramente de sua expressão verbal tal como estabelecida pelo processo de condensação (FREUD, [1905] 1990, p. 42).

O processo de condensação é destacado como sendo a característica mais

comum, e também marcante, na elaboração dos chistes. Com raras exceções a

alguns tipos de chistes determinados pela própria estrutura de alguma língua

(chistes fônicos) em que o som da língua atua como participante do efeito. É o caso

de duas palavras distintas serem pronunciadas com o mesmo som e poderem ser

(usadas de duas maneiras) pronunciadas num determinado contexto que faça surgir

o efeito chistoso. Os chistes têm um vasto campo de atuação, tais quais as

possibilidades se façam emergir nas palavras, no jogo de combinações124, às quais

as mesmas se oferecem. “As palavras são um material plástico, que se presta a todo

tipo de coisas. Há palavras que, usadas em certas conexões, perdem todo o seu

sentido original, mas o recuperam em outras conexões” (FREUD, [1905] 1990, p.

49).

É em continuidade à análise da técnica dos chistes que Freud pontua um

espaço para a ironia. Coutinho Jorge observa que a ironia não tem sido uma figura

de destaque nos estudos clínicos da psicanálise, tanto em Freud quanto nos demais

pós-freudianos. Mesmo Lacan, que seguiu passos na base da teoria em Freud,

dando-lhe especial enfoque, não privilegiou estudo destacado a essa figura. Jorge

atribui essa omissão teórica, em relação à figura da ironia, dada a dificuldade

apresentada pela própria figura em se deixar apreender. “Certamente é a ela que

podemos atribuir, em grande parte, a dificuldade de sua leitura, pois na fala a ironia

é detectável pela enunciação, ao passo que na escrita ela impõe uma decifração”

(FREUD, [1905] 1990, p. 111).

Desse modo, é na décima parte da análise das características dos chistes

que Freud vai pontuar a ironia, especificamente em seu campo mais restrito e

especializado; o da representação pelo oposto. Freud ressalta muita importância a

124 Freud destaca um exemplo de chiste citado por Lichtenberg em que as palavras esvaziadas são levadas a recuperar seu sentido pleno: “Como você anda? – perguntou um cego a um coxo. Como você vê – respondeu o coxo ao cego” (LICHTENBERG, apud FREUD, [1905], 1990, p. 49). Freud destaca outros inúmeros exemplos de tipos distintos de chistes em textos literários, incluindo principalmente Shakespeare.

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129

A morte: um encontro com o desamparo

essa representação pelo oposto, usada na técnica dos chistes e também na ironia

seja por meio da evocação de termos com duplo sentido, seja na demasiada

valorização de detalhes pouco importantes usados em sentidos comparativos. Nesse

ponto ele aproxima o trabalho do chiste ao da ironia, como também destaca o fato

de os dois atuarem juntos, originando os “chistes irônicos”.

Refiro-me à ironia, muito próxima do chiste e contada entre as subespécies do cômico. Sua essência consiste em dizer o contrário do que se pretende comunicar a outra pessoa, mas poupando a esta uma réplica contraditória fazendo-lhe entender – pelo tom de voz, por algum gesto simultâneo, ou (onde a escrita está envolvida) por algumas pequenas indicações estilísticas – que se quer dizer o contrário do que diz (FREUD, [1905] 1990, p. 199).

Após apontar esse campo de atuação comum e até de atuação conjunta do

chiste e da ironia, o da representação pelo oposto, além do prazer cômico que

ambos propiciam; Freud destaca uma crucial distinção no tipo de leitura que ambos

evocam e favorecem. A ironia só tem o efeito assegurado quando a outra pessoa

está em condições de compreender, ser provocada em apontar sua contradição.

“Isso produz prazer cômico no ouvinte, provavelmente porque excita nele uma

contraditória despesa de energia” (FREUD, [1905] 1990, p. 199). Freud coloca essa

observação em referência à construção dos chistes serem evocadas a partir de uma

relação com o inconsciente. Coutinho Jorge destaca o fato de a ironia “ilustrar de

modo excelente o caráter antitético do significante” (JORGE, 2000, p. 109).

Uma comparação como essa, entre os chistes e um tipo de comicidade, que lhes é intimamente relacionada, pode confirmar nossa pressuposição de que a característica peculiar dos chistes é sua relação com o inconsciente, o que permite talvez distingui-los também do cômico (FREUD, [1905] 1990, p. 199).

Freud pontua como peculiar da ironia e não do chiste o jogo da enunciação de

termos opostos, quando a inversão de um sim por um não é muitas vezes no sentido

de intensificar o dito oposto, intensificar o sim. Freud evoca o discurso em Hamlet:

‘há mais coisas no céu e na terra do que sonha vossa filosofia’, e o coloca em

oposição à resposta irônica de Lichtenberg acrescentando a ironia do príncipe, ‘Mas

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A morte: um encontro com o desamparo

há também na filosofia muita coisa que não é encontrada no céu ou na terra’

(FREUD, [1905] 1990, p. 90). Freud vê nesse jogo de sentenças um caráter de

inversão intensificado, só possível de alcançar o extremo êxito pela linguagem da

ironia.

Para Coutinho Jorge, o interesse da psicanálise pela ironia é referente a sua

forma discursiva, que revela, como nenhuma outra, a questão da enunciação e do

sujeito. Essa atuação acentuada com extrema eficácia, nas palavras de Jorge

comprova que

A ironia manifesta a possibilidade, inerente a todo significante, de produção da significação antitética, na medida em que esta revela a função sujeito em seu caráter radicalmente cindindo. A ironia é exemplar para evidenciar o sujeito do inconsciente, na medida em que nela, não se produzindo nenhuma alteração no enunciado, mas apenas na enunciação, o sujeito fica como que reduzido ao seu verdadeiro lugar – entre significantes (JORGE, 2000, p.109, grifo do autor).

Além de poder ser representada em várias modalidades de expressões e na

diversidade de tipos que já foi referida, a ironia circula muito à vontade na linguagem

popular. Nesse vasto campo de manifestação, seja pela mais evidente antífrase, em

que exprime a idéia no extremo de sentido oposto com palavras de significação

contrárias, seja por Parêmia: repete um discurso ridicularizando pensamentos

estereotipados e já conhecidos, realçando seu sentido de galhofa; seja por

sarcasmo, seja por mioterismo, no qual infere com intensa agressividade inflexões

injuriosas; e/ou, ainda, por eufemismo ou asteísmo, a forma de representação

irônica mais diplomática, sutil ou delicada de dizer uma coisa, satiricamente

querendo dizer o seu oposto, mas atenuando a intensidade agressiva das palavras.

O notório, na figura da ironia, é que cotidianamente, no texto oral ou escrito, ela se

revela, e simboliza a força do caráter antitético do significante.

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Literatura e psicanálise: possibilidades de diálogo

Gradiva

SEÇÃO III

LITERATURA E PSICANÁLISE: POSSIBILIDADES DE DIÁLOGO

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Literatura e psicanálise: possibilidades de diálogo

DIÁLOGO ENTRE MESTRES: MACHADO DE ASSIS E SIGMUND FREUD

• Pontos de convergência: literatura e psicanálise.

• Machado de Assis - Sigmund Freud: intertextualidades.

Machado de Assis Sigmund Freud

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Literatura e psicanálise: possibilidades de diálogo

3.1.1 Pontos de convergência: literatura e psicanálise

Seja qual for o caminho que eu escolher, um poeta já passou por ele antes de mim (Sigmund Freud).

Aproximar a literatura e a psicanálise é uma agradável – ainda que desafiante

– tarefa. A tentativa é fazer emergir a singularidade do texto sem moldá-lo ao

enquadre de leitura clínica, atentos para acolher as inúmeras possíveis leituras

advindas de outras referências teóricas, como também observar a impossibilidade

de esgotar uma leitura interpretativa. Um outro cuidado igualmente importante é

respeitar a construção ficcional, não caindo no engodo de mesclar a análise do

protagonista ao autor. Nesse sentido, Leila Perrone-Moisés destaca a contribuição

de Lacan e seus discípulos ao trabalho iniciado por Freud.

Ao colocar, como ponto de partida de sua teoria, que ‘o inconsciente é estruturado como uma linguagem’, e ao propor um trabalho de tipo sintático, que busca captar a cadeia de significantes e não o significado último (vazio), essa corrente psicanalítica nos permite: (1) lembrar que o texto literário é, antes de mais nada, obra de linguagem; (2) abandonar a miragem de uma interpretação última e definitiva; (3) privilegiar a produção do sentido e não a troca enganosa de sentidos plenos prévios; (4) dispensar o biografismo, que confunde indivíduo falante com enunciador (PERRONE-MOISÉS, 1990, p. 112).

Na análise freudiana de textos literários, encontramos ainda a vinculação da

obra à pessoa do autor, ainda que ele mesmo reconheça a limitação desse trabalho

ao afirmar que: “diante do problema do artista criador, a análise, ai de nós, tem que

depor suas armas” (FREUD, [1927] 1990, p. 205). Esse fato por ele percebido é bem

justificado no discurso do prêmio Goethe125. Reconhece essa necessidade, no misto

de ambivalências despertadas nos receptores da obra. Ocorre a tentativa de uma

125O ‘prêmio Goethe’ foi criado pela cidade de Frankfurt em 1927. Era concedido a ‘uma personalidade de realizações já firmadas cuja obra criadora fosse digna de uma honra dedicada à memória de Goethe’. O prêmio foi concedido a Freud em 1930. Por motivos de saúde ele não pôde comparecer, sendo representado por Anna Freud, que procedeu a leitura do discurso enviado pelo pai (PAQUET, apud FREUD, [1930] 1990, p. 238).

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134

Literatura e psicanálise: possibilidades de diálogo

identificação com o homem criador em seus êxitos tanto quanto em sua “frágil”

parcela de humanidade.

Mas como podemos justificar uma necessidade desse tipo, a de obter conhecimento das circunstâncias da vida de um homem, quando suas obras se tornaram tão plenas de importância para nós? As pessoas geralmente dizem que se trata de nosso desejo de nos aproximarmos de tal homem também de maneira humana. Aceitemos isso; trata-se então da necessidade de adquirir relações afetivas com esses homens, acrescentá-los aos pais, aos professores, aos exemplos que conhecemos ou cuja influência já experimentamos, na expectativa de que suas personalidades sejam tão belas e admiráveis quanto as obras deles que possuímos. [...] Mesmo assim, podemos admitir que existe ainda outra força motivadora em ação. A justificação do biógrafo também contém uma confissão. [...] E é inevitável que se aprendermos mais a respeito da vida de um grande homem, ouviremos também falar de ocasiões em que ele, de fato, não se saiu melhor do que nós, em que, na realidade, se aproximou de nós como ser humano (FREUD, [1930] 1990, p. 245).

Apesar desse reconhecimento, Freud defende a legitimidade do estudo

biográfico, inclusive, também, por revelar esse caráter ambivalente de aproximação

humana à obra do criador. Defende que o aproveitamento de aprendizagem final

possível a um estudo dessa natureza justifica suas limitações. Essa ressalva fica

resguardada no detalhe de “ser uma das principais funções de nosso pensamento

dominar psiquicamente o material do mundo externo” (FREUD, [1930] 1990, p. 245).

Nesse sentido, mesmo com as possíveis lacunas, ele destaca “que agradecimentos

são devidos à psicanálise se, quando aplicada a um grande homem, ela contribui

para a compreensão de sua grande realização” (FREUD, [1930] 1990, p. 246).

Para falar da condição da existência humana, entendemos que a Psicanálise

situa-se muito mais próxima dos campos de saber onde a produção é

caracteristicamente singular (com especial destaque, a Arte, a Literatura, a Filosofia,

a História), do que o campo da ciência, embora se situe também no âmbito científico,

por ter um método. Ainda assim, a Psicanálise não pode ser generalizada, seu

método se renova em cada encontro. É absolutamente original a cada sujeito que a

experimenta.

Lacan nos ensina que o ser humano estrutura-se no campo da linguagem de

um simbólico já constituído, marcado pelo ato de quem particularmente o recebe,

portanto, marcado pelo desejo (palavra) de um outro; pelo imprevisto de

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Literatura e psicanálise: possibilidades de diálogo

experiências singulares. A verdade visada pela psicanálise é singular, própria de

cada sujeito; é uma verdade a ser construída no campo da palavra e da ética, a ética

do desejo. “O saber psicanalítico não funciona, assim, em posição de verdade, a não

ser na medida em que opera como saber furado, afetado por uma falha central – o

que determina o estatuto da verdade enquanto semidizer” (ANDRÉ, 1994, p. 10).

É pela palavra que o ser falante tenta construir sua verdade ou pelo menos

fazê-la representar. “Para além dessa fala, é toda a estrutura da linguagem que a

experiência psicanalítica descobre no inconsciente” (LACAN, 1996, p. 498). É pela

palavra que se faz a tentativa de assimilação do mundo exterior e a elaboração de

respostas frente ao enigma do existir. “O próprio das palavras é desviar-nos do

caminho reto do sentido” (PERRONE-MOISÉS, 1990, p. 14). O próprio das palavras

é transfigurar-se em seus múltiplos sentidos e jogar o sujeito no engodo de sua

enunciação.

Lacan, dando seguimento à descoberta freudiana, lança luz sobre a teoria da

psicanálise com o conceito do inconsciente estruturado como uma linguagem, o que

implica na compreensão da linguagem como condição do inconsciente. Examinou o

campo da linguagem e de seus elementos constitutivos. Tomou como referência a

teoria lingüística de Ferdinand de Saussure. Para este, o signo lingüístico é uma

entidade psíquica de duas faces, não une uma coisa a um nome, mas um conceito a

uma imagem acústica. Saussure substitui conceito por significado e imagem acústica

por significante. O signo passa a ser a relação de um significado com um

significante. Lacan inverte essa relação e dá primazia ao significante.

O significante ganha sentido quando remetido a um outro significante, seu

deslocamento se dá por cadeias. Roland Chemama diz a respeito desta primazia: ”Se o significante for concebido como autônomo em relação à significação, ele irá,

portanto, assumir uma função completamente diferente da de significar: a de

representar o sujeito e também determiná-lo” (CHEMAMA, 1995, p. 198). A forma de

utilizar o termo significante vai ser fundamental para a Psicanálise. Essa

consideração ganha maior clareza nas palavras de Chemama:

O significante não é apenas um efeito de sentido. Ele comanda ou pacifica, adormece ou desperta. Talvez fosse ainda mais importante do que a referência à lingüística, a referência que podemos fazer à poética. Como o poeta, o analista está atento às diversas conotações do significante, que ampliam as possibilidades da interpretação (CHEMAMA, 1995, p. 199).

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Literatura e psicanálise: possibilidades de diálogo

No ensino de Lacan, o ser humano é um ser de pura linguagem, sua verdade

joga-se de uma palavra para outra numa incessante construção subjetiva em busca

de seu desejo. É característica do desejo ser metonímia da falta; deslizar de

significante a significante numa constante insatisfação que assegura novos

investimentos. O desejo é aquilo que escapa sempre, pois é na falta que se

constitui. Freud evidenciou que a Psicanálise é uma experiência da palavra em

transferência de amor; suporte para o sujeito responder frente ao enigma de seu

desejo.

A linguagem da arte, a palavra literária, foi ricamente usada por Freud além

da aparência de sentido. Como grande leitor apaixonado pelo texto, ampliou seu

estudo ao campo da investigação. Reconstruiu a partir do texto literário

desdobramentos, vislumbrando a possibilidade de aprendizagem. Da referência

estética inicial (escapando aos riscos do reducionismo), para o estudo do texto

privilegiando o conteúdo, transferiu para a psicanálise um saber advindo da

literatura.

A literatura, não importando a verossimilhança de sua informação, fala-nos da

estrutura humana. É um tipo de discurso que atua na constituição do sujeito,

gerando efeitos na psique. Segundo Jean Bellemin-Noël, a importância da literatura

na formação humana se sobrepõe ao ato de ler, impregna-se em seus efeitos

cotidianos na parcela não-consciente que o texto transmite. É pela literatura “que

tomamos consciência de nossa humanidade, que pensa, que fala. [sic] [...] é por ela

que o homem se interroga sobre si mesmo, sobre seu destino cósmico, sua história,

seu funcionamento social e mental” (BELLEMIN-NOËL,1978, p.12).

Da mesma maneira que o psíquico não constituía uma espécie de bloco unitário com suas simples superposições e repartições de competências. A escritura das grandes obras não poderia ser assimilada à transmissão de uma mensagem dotada de um único sentido evidente. As palavras de todos os dias reunidas de uma certa maneira adquirem o poder de sugerir o imprevisível, o desconhecido; e os escritores são homens que, escrevendo, falam, sem o saberem, de coisas que literalmente ‘eles não sabem’. O poema sabe mais que o poeta (BELLEMIN-NOËL,1978, p.13).

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Literatura e psicanálise: possibilidades de diálogo

Freud teve a genial sensibilidade de perceber essa íntima relação. Recorre à

referência do discurso mítico como modelo de construção da estrutura humana.

Constrói a base para algumas formulações fundamentais à psicanálise da relação

partilhada entre literatura e psicanálise. Reconhece nas grandes obras literárias a

mestria que orienta sua construção teórica associada à clínica. “Se Freud optou por

ler O mercador de Veneza e Rei Lear como meditações sobre o amor e a morte,

nem por isso Shakespeare tornou-se um assunto de interesse puramente clínico

para ele” (GAY, 1995, p. 301).

Quer dizer, por um lado, parece estabelecer-se entre a Literatura e a Psicanálise uma relação aditiva em que se tenta acrescentar sentidos ao texto literário a partir da interpretação psicanalítica e por outro, vislumbra-se uma atitude que poderíamos chamar de extrativa, interessada em tentar resgatar do texto literário a particularidade que pudesse nutrir a Psicanálise (VILLARI, 2002, p. 21).

A linguagem é o ponto de partida para pensar esses dois campos como

comuns. “A linguagem não é só meio de sedução. Nela, o processo de sedução tem

seu começo, meio e fim. As línguas estão carregadas de amavios, de filtros

amatórios, que não dependem nem mesmo de uma intenção sedutora do emissor”

(PERRONE-MOISÉS, 1990, p. 14). A linguagem porta uma fonte de sentidos que

não se revela no simples enunciar. Camufla-se no labirinto de infindos

deslizamentos, demandando acirradas interpretações, sem nenhuma garantia prévia

de acesso à fonte do desvio. “O extremo desse desvio (ou sedução) chama-se

poesia” (PERRONE-MOISÉS, 1990, p. 14). Perrone-Moisés destaca que:

Os poetas são sedutores porque foram vítimas de uma sedução primeira, exercida pela própria linguagem. Corrompidos por essa capacidade sedutora da língua materna, os poetas se tornam seus cúmplices para seduzir terceiros. O que é sedutor nas palavras é tudo que está ao lado do sentido primeiro – o que em lingüística se chama conotação. Mas haverá mesmo um sentido primeiro, a denotação? O afinco dos semânticos em buscar esse grau zero das palavras é de puritanismo obsessivo; eles não querem ver que esse sentido primeiro é uma simulação da linguagem, e que as palavras sempre viveram em total promiscuidade (PERRONE-MOISÉS, 1990, p. 14).

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Literatura e psicanálise: possibilidades de diálogo

Freud trabalhou com mestria a comunhão literatura e psicanálise, utilizando o

caráter aditivo e extrativo em via dupla de acesso aos dois campos de saberes de

tão íntimas relações e de similar “sedução”. Desenvolveu com destreza os prováveis

deslizamentos peculiares aos riscos dessa junção. “Absolutamente impávido Freud

entrou com coragem nesse pântano, com seu fascinante estudo da Gradiva126 de

Jesen. Ele o redigiu, disse a Jung, ‘em dias ensolarados’, e o texto deu-lhe ‘muito

prazer’” (GAY, 1995, p. 298).

A primeira sedução interpretativa que o romance Gradiva oferece a Freud

está em referência ao estudo dos sonhos. Conforme já havia publicado A

interpretação dos sonhos127 [1900] e, nesse texto, afirmado serem os sonhos

realizações de desejos, deparou-se com a dúvida da ciência e da maioria das

pessoas cultas. Admite que só as pessoas simples e supersticiosas e que se

apegam às convicções da Antiguidade, acreditam serem os sonhos passíveis de

interpretações. Afirma, então, comungar com esse pensamento das pessoas simples

e “ousou, apesar das reprovações da ciência estrita, colocar-se ao lado da

superstição e da Antiguidade” (FREUD, [1906] 1990, p. 17).

A questão que o texto Gradiva desafia, em primeira análise, é se a “classe de

sonhos que nunca foram sonhados – sonhos criados por escritores imaginativos e

por estes atribuídos ao personagem de uma história” (FREUD, [1906] 1990, p. 17)

ganham validade, se submetidos ao mesmo esquema de análises dos

verdadeiramente sonhados. Ainda pesquisando respostas às controvérsias da

recepção científica dos sonhos (como produção subjetiva do sonhador, e não

apenas mero estímulo fisiológico), Freud encontra nos escritores criativos mais

respaldos como aliados à comprovação de sua tese.

No prólogo da primeira tradução de Gradiva em língua portuguesa, Coutinho

Jorge faz uma interressante observação: “qual o passo que Freud dá com esse

texto?” (JORGE, 1997, p. 05). A partir da indicação da nota do editor inglês James

Strachey, ressalta o fascínio de Freud pela arqueologia em geral e em particular por

Pompéia. Esse fascínio é exercido “Pela analogia existente entre o destino histórico 126

Gradiva – uma fantasia pompeiana [1903] do escritor Wilhelm Jesen (1837-1911), foi a primeira análise de uma obra literária feita por Freud a ser publicada. Anterior a essa publicação havia os comentários sobre Édipo Rei e Hamlet em A interpretação dos sonhos [1900] e uma curta análise da obra de Conrad Ferdinand Meyer ‘Die Richterin’ [‘A juíza’], que enviara a Fliess, junto com a carta 91 de 20 de Junho de 1898. 127

Á época do lançamento A interpretação dos sonhos mostrou-se de pouco interesse geral e, em seis anos, foram vendidos apenas 351 exemplares. Somente em 1909 foi lançada uma segunda edição.

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Literatura e psicanálise: possibilidades de diálogo

de Pompéia (o soterramento e posterior escavação) e os eventos mentais que lhe

eram tão familiares: o soterramento pelo recalque e a escavação pela análise”

(STRACHEY, apud FREUD, [1906] 1990, p. 14).

Dentro desta observação, Coutinho Jorge destaca o percurso de Freud no

texto de Gradiva, como traçando um verdadeiro paralelismo da associação do

método de trabalho no procedimento arqueológico e do método psicanalítico. Única

diferença apontada entre os dois, diz respeito ao material do arqueólogo já estar

destruído e o da psicanálise ainda estar vivo, apenas soterrado. Freud expõe esse

pensamento com extrema clareza no texto Construções em análise [1937],

detalhando o processo de trabalho do psicanalista.

Seu trabalho de construção, ou, se preferir, de reconstrução, assemelha-se muito à escavação, feita por um arqueólogo, de alguma morada que foi destruída e soterrada em algum edifício. Os dois processos são de fato idênticos, exceto pelo fato de que o analista trabalha com melhores condições e tem mais material a sua disposição para ajudá-lo, já que aquilo que está tratando não é algo destruído, mas algo que ainda está vivo – e talvez por outra razão também. Mas assim como o arqueólogo ergue as paredes do prédio a partir dos alicerces que permanecem de pé, determina o número e a posição das colunas pelas depressões no chão e reconstrói as decorações e as pinturas murais a partir dos restos encontrados nos escombros, assim também o analista procede quando extrai suas inferências a partir dos fragmentos de lembranças, as associações e do comportamento do sujeito da análise. Ambos possuem direito indiscutido a reconstruir por meio da suplementação e da combinação dos restos que sobreviveram. Ambos, ademais, estão sujeitos a muitas das mesmas dificuldades e fontes de erros (FREUD, [1937] 1990, p. 293).

Freud explora o texto de Gradiva tal qual o faria um arqueólogo, pelo modo

como aprofunda a exegese. Ele mesmo confessa que só pretendia analisar dois ou

três sonhos, mas que não resistiu a “dissecar toda a história e a examinar os

processos mentais dos personagens principais” (FREUD, [1906] 1990, p. 48). A

primeira justificativa para a acirrada análise foi a necessidade de favorecer uma

melhor compreensão no trabalho dos sonhos. Uma outra, foi o reconhecimento de

que o escritor criativo descreve bem os estados mentais. “A descrição da mente

humana é, na realidade, seu campo mais legítimo; desde tempos imemoriais ele tem

sido um precursor da ciência e, portanto, também da psicologia científica” (FREUD,

[1906] 1990, p. 50).

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Literatura e psicanálise: possibilidades de diálogo

Esse interesse pelo material do escritor criativo é bem explorado no texto,

Escritores criativos e devaneios [1907]. Nesse, Freud interroga acerca do material

utilizado pelo escritor, de onde ele o retira e como consegue impressionar e provocar

emoções. Argumenta que esse interesse fica ainda mais intensificado, ao observar a

resposta dos escritores em referência a essa indagação. Eles não oferecem

respostas que satisfaçam a tal curiosidade. Antes, devolvem a questão, expondo

que o trabalho criativo é extensivo a todos, diminuindo assim a distância entre a

categoria de escritor e a do homem comum, não escritor. Asseguram “com muita

freqüência de que todos, no íntimo, somos poetas, e de que só com o último homem

morrerá o último poeta” (FREUD, [1907] 1990, p.149).

No percalço dessa construção Freud levanta mais outra questão: “Será que

deveríamos procurar já na infância os primeiros traços de atividade imaginativa?”

(FREUD, [1907] 1990, p.149). A partir dessa indagação faz uma comparação entre o

ato do brincar infantil e a produção do escritor criativo. Toma por base o fato de

ambas as atividades criarem um mundo próprio, de acordo com os devaneios

peculiares a cada particularidade. “Acaso não poderíamos dizer que ao brincar toda

criança se comporta como um escritor criativo, pois cria um mundo próprio, ou

melhor, reajusta os elementos de seu mundo de uma nova forma que lhe agrade?”

(FREUD, [1906] 1990, p. 149).

Mesmo tomando como séria a atividade de brincar e a emoção que envolve

esse ato, a criança distingue o mundo do brincar e o mundo da realidade. Faz uma

conexão ligando seus objetos e as coisas da realidade, promovendo assim uma

separação entre o brincar e o fantasiar. “O brincar da criança é determinado por

desejos: de fato, por um único desejo – que auxilia o seu desenvolvimento -, o

desejo de ser grande e adulto” (FREUD, [1907] 1990, p. 151).

Nessa perspectiva, nos jogos e brinquedos infantis ocorre a imitação do

modelo de vida dos adultos. Porém, ao crescer, a “antiga” criança pára de brincar,

abrindo mão do prazer que essa atividade proporciona. Todavia, torna-se difícil ao

ser humano renunciar a um prazer outrora conhecido e, nesse caso, o que ocorre é

uma troca: quando pára de brincar, a criatura humana fantasia, construindo, a partir

dessa, seus devaneios.

As fantasias, no adulto, não são fáceis de serem observadas, são guardadas

com a maior discrição possível. A exceção é quando o sofrimento de alguma

patologia impõe a necessidade de revelação em sigilo médico. A necessidade de

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Literatura e psicanálise: possibilidades de diálogo

ocultá-las aponta que a essência destas fantasias causa vergonha. As fantasias

surgem em suplência às insatisfações com a realidade, é uma forma de restituir o

prazer de brincar no enfrentamento árido da verdade cotidiana. O caráter das

fantasias sinaliza, então, para os desejos e a busca por essa realização.

Freud compara, por esse argumento, o trabalho do escritor criativo à atividade

do brincar infantil. O escritor investe emoções num mundo de fantasia que leva muito

a sério, embora mantenha a nítida distinção entre esse e a realidade. “A linguagem

preservou essa relação entre o brincar infantil e a criação poética”128 (FREUD, [1907]

1990, p. 150). A não preocupação com a veracidade dos fatos aponta para a

liberdade de proporcionar pelo devaneio da criação emoções não possíveis de

suportar num encontro real com tais sentimentos. O escritor joga com as palavras e

envolve seu público no prazer lúdico. “Mas a literatura é um jogo elaborado: a

seriedade que preside a sua criação exige mais labor, suas construções são mais

complexas” (BELLEMIN-NOËL, 1978, p. 33).

O escritor produz, em geral, numa língua conforme aos usos da gramática, um discurso de quase-racionalidade e de quase mimetismo em face das condições da realidade; se ele se permite ‘licenças’ de expressão, se tem direito a uma visão ‘fantasista’ das coisas, etc., sabemos bem que são exigências da ‘arte’. Sem o engajamento de todo o homem, sem a aplicação de sua inteligência, de sua cultura, mas também sem os ‘grãos de loucura’ que, aos olhos do público, fazem do artista uma espécie de criança grande ou de perverso inofensivo, não há mais encanto possível (BELLEMIN-NOËL, 1978, p. 33).

O brincar infantil é também comparado à gratificação do espectador

participante da apresentação de uma peça teatral dramática. No texto Personagens

psicopáticos no palco [1905], Freud aborda, pela primeira vez, que uma das funções

da arte (da ficção), seja a literatura, seja o teatro ou a dança, é produzir uma

‘purgação dos afetos’ pela identificação do espectador ao herói protagonista. É a

estratégia pela qual o espectador pode, junto ao herói, desabafar sentimentos que

128 Freud destaca que a língua alemã dá o nome Spiel [‘peça’] às formas literárias que são necessariamente ligadas a objetos tangíveis e que podem ser representadas. Fala em ‘Lustspiel’ ou ‘Trauerspiel’ [‘comédia’ e ‘tragédia’: literalmente, ‘brincadeira prazerosa’ e brincadeira lutuosa], chamando os que realizam a representação de ‘Schauspieler’ [‘atores’, literalmente, ‘jogadores de espetáculo’] (FREUD, [1905] 1990, p. 150).

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Literatura e psicanálise: possibilidades de diálogo

lhe são inacessíveis. Pelo tempo fugaz do espetáculo o espectador mergulha nas

sensações que lhe proporciona a identificação àquele herói.

[...] O espectador sabe que essa promoção de sua pessoa ao heroísmo seria impossível sem dores, sofrimentos e graves tribulações, que quase anulariam o gozo. Ele sabe perfeitamente que tem apenas uma vida, e que poderia perdê-la num único desses combates contra a adversidade. Por conseguinte, seu gozo tem por premissa a ilusão, ou seja, seu sofrimento é mitigado pela certeza de que, em primeiro lugar é um outro que está ali atuando e sofrendo no palco, e em segundo, trata-se apenas de um jogo teatral, que não ameaça sua segurança pessoal com nenhum perigo. Nessas circunstâncias, ele pode deleitar-se como um ‘grande homem’, entregar-se sem temor a seus impulsos sufocados, como a ânsia de liberdade nos âmbitos religioso, político, social, e sexual, e desabafar em todos os sentidos em cada uma das cenas grandiosas da vida representada no palco (FREUD, [1905] 1990, p. 289-290).

Para Freud, na especificidade de cada tipo de produção criativa (poesia lírica,

épica, dança, etc...) e principalmente no gênero “drama”, surge a possibilidade de

escape ao espectador para deixar fluir as emoções. O destaque à grandeza do herói

desfiando algum tipo de perigo ou alguma divindade gera prazer, mesmo quando

esse sofre a punição por essa ousadia. “Eis aí, portanto, o prometeísmo humano, só

que apequenado pela disposição de se deixar acalmar temporariamente por uma

satisfação momentânea” (FREUD, [1905] 1990, p. 290).

Nessa perspectiva, defende que o espectador, ou leitor, faz uma analogia

entre o herói e o próprio Ego. Que o sentimento com que se acompanha um herói na

ficção é o mesmo com que se acompanha um herói na realidade ou, ainda, que a

coragem do herói é a que gostaríamos de ter numa evidência real que exigisse

intrepidez, tanto quanto, que permitisse a entrega de fantasias sem a preocupação

com as censuras que a realidade impõe. Ressalta então a observação de que “na

maioria dos chamados ‘romances psicológicos’, só uma pessoa – o herói – é

descrita interiormente, como se o autor se colocasse em sua mente e observasse as

outras personagens de fora” (FREUD, [1907], 1990, p. 156).

Na análise das fantasias e devaneios constantes na “mágica” da escrita

literária, Freud destaca a importância da relação atemporal dos fatos. “É como se ela

flutuasse em três tempos – os três momentos abrangidos pela nossa ideação”

(FREUD, [1907], 1990, p. 153). Detalhe que justifica ainda mais a associação que

ele faz das fantasias ao trabalho dos sonhos. “A linguagem, com sua inigualável

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Literatura e psicanálise: possibilidades de diálogo

sabedoria, há muito lançou luz sobre a natureza básica dos sonhos, denominando

de ‘devaneios’ as etéreas criações da fantasia” (FREUD, [1907] 1990, p. 154). Dessa

feita, conclui que as fantasias são também “sonhos” devaneados na vida – de vigília

– e, tal qual, os da formação do inconsciente, apontam para a realização de desejos.

Sendo os sonhos também atemporais, explica a relação desse fio condutor ao traço

do desejo.

O trabalho mental vincula-se a uma impressão atual, a alguma ocasião motivadora no presente que foi capaz de despertar um dos desejos principais do sujeito. Dali retrocede à lembrança de uma experiência anterior (geralmente da infância) na qual esse desejo foi realizado, criando uma situação referente ao futuro que representa a realização do desejo. O que seria então um devaneio ou fantasia, que encerra traços de sua origem a partir da ocasião que o provocou e a partir da lembrança. Dessa forma o passado, o presente e o futuro são entrelaçados pelo fio do desejo que os une (FREUD, [1907] 1990, p. 153).

Dentre as argumentações levantadas por Freud acerca de como o material do

escritor toca tão profundamente as emoções do leitor, embora não podendo

responder com precisão, atribui a principal causa desse êxito à arte do autor em

possibilitar o leitor de devanear através do herói as suas próprias fantasias, “A

verdadeira arts poética está na técnica de superar esse nosso sentimento de

repulsa, sem dúvida ligado às barreiras que separam cada ego dos demais”

(FREUD, [1907] 1990, p.158). Ou seja, possibilita abrir mão da censura e “viajar” no

prazer com que a formulação estética da fantasia e do devaneio é revestida na arte

do escritor. “Talvez até grande parte desse efeito seja devida à possibilidade que o

escritor nos oferece de, dali em diante, nos deleitarmos com nossos próprios

devaneios, sem auto-acusações ou vergonha (FREUD, [1907] 1990, p. 158).

Desde Freud, essa dupla vertente de cruzamento entre a literatura e a

psicanálise comunga afinidades, constituindo amplo recurso de aprendizagem. No

entanto, algumas questões se abrem como limites a esse circuito de igual usufruto

de proveito mútuo. O principal cuidado refere-se ao trânsito de mão única, onde a

psicanálise se beneficie sem oferecer igual retorno. Esse risco funda-se

principalmente em olhar o texto como um “inconsciente literário” a ser esgotado.

Outro grande equívoco seria buscar no texto as pistas inconscientes do autor e não

fazer distinção entre a fala do narrador e do escritor.

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Literatura e psicanálise: possibilidades de diálogo

Os impasses apontados nesta questão ganham possibilidades de mediação

quando buscados na própria escritura do texto como autônimo, uma vez que, escrito,

ele fala por si só. “Na verdade o texto diz na medida em que é lido. Convocamos

então a figura do leitor. É este quem possibilita que o texto diga através dele,

introduzindo-se nas possibilidades de análise” (VILLARI, 2002, p. 23). Nesse

sentido, o sujeito, posicionado como leitor está “no lugar do não sabido, atravessado

pela falta perante o texto” (VILLARI, 2002, p. 26).

Com isso, podemos dizer que aquilo que nos parece poder ser questionado não é o texto literário a partir da Psicanálise, mas seu inverso, a Psicanálise a partir da Literatura. Esse posicionamento acarreta, através do texto literário, um questionamento do saber da Psicanálise, buscando nas palavras dos escritores, aquilo que não alcançamos dizer (VILLARI, 2202, p. 26).

Recorrentemente, encontramos possibilidades de aproximação entre a

Psicanálise e a Literatura. Não é possível dizer tudo, mas a palavra poética, a

palavra literária, sabe utilizar-se bem de um “semidizer” que em alguma medida

mediatiza, faz frente à impossibilidade do todo dizer. Um texto literário pode ser lido

muitas vezes sob vários aspectos, sem ser esgotado. O nível polissêmico da palavra

desliza para novos questionamentos independentemente da ótica de quem se

dispõe a analisá-lo e das ferramentas para isso utilizadas.

A Literatura é uma das formas de expressão do saber mais reiteradamente

próxima da Psicanálise. É uma produção particular, mas que toca a singularidade

de um outro. Nessa medida, tanto quanto a Psicanálise, a Literatura utiliza-se da

linguagem. A Psicanálise, indo além do esquema de comunicação, vai ao ato da

fala. Esta fala, apropriada por um sujeito, produz efeitos. Em contrapartida, a

Literatura, no ato da escrita, também produz seus efeitos, atingindo subjetivamente

quem dela se apropria. Por todos os laços comuns que unem esses dois campos do

saber e da produção humanas, procedemos à leitura do texto literário com suporte

em conceitos psicanalíticos sem pretender esgotá-lo nem reduzi-lo. Ao contrário,

oferecendo contribuição à riqueza de elementos nele contidos.

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Literatura e psicanálise: possibilidades de diálogo

3.1.2 Machado de Assis - Sigmund Freud: intertextualidades.

Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro... [...] A alma exterior pode ser um espírito, um fluído, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. Há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é uma alma exterior de uma pessoa; - e assim também a polca, o voltarete, um livro, uma máquina, um par de botas, uma cavatina, um tambor, etc. Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é metafisicamente falando uma laranja. Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência; e casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira (Machado de Assis).

É incontestável a afinidade entre a literatura e a psicanálise e, para bem

referendar essa comunhão, aproximamos a escritura de similar mestria de Machado

de Assis e Sigmund Freud. Embora os textos biográficos de ambos não relatem

vestígios de uma aproximação na realidade, o resultado da produção escrita por eles

o faz. A visão de mundo, a visão do caráter do ser humano e, advindo disso, a

perspectiva do futuro da humanidade é de semelhante constatação cética. Fruto de

semelhante inquietação interior, revela-se no interesse por desvendar os mistérios

da alma humana, com especial destaque para o “inexplicável” do ser feminino.

Tantas identificações, em autores que não se consultaram, apontam para a fonte

onde ambos beberam.

O criador da psicanálise sempre se rendeu ao fascínio das grandes obras

literárias e declarou por diversas vezes que a fonte de seu aprendizado advinha dos

grandes mestres da literatura. Observou na representação da tragédia grega de

Sófocles o destino de Édipo e o transferiu, como um paradigma do destino humano

na relação de amor com o par parental. Sua obra é permeada de citações literárias

dos grandes clássicos, incluindo textos da Bíblia. Peter Gay afirma, na biografia de

Freud, que ele era

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Literatura e psicanálise: possibilidades de diálogo

o jovem médico pobre que comprava mais livros do que podia e lia obras clássicas noite adentro, profundamente comovido e não menos profundamente divertido. Freud procurava mestres em vários séculos: os gregos, Rabelais, Shakespeare, Cervantes, Molière, Lessing, Goethe, Schiller, além daquele espirituoso alemão, amante da natureza humana, do século XVIII, Georg Chistoph Lichtenberg, médico viajante e autor de imemoráveis aforismos (GAY, 1995, p. 58).

Freud confessou em carta a Marta Bernays, na ocasião ainda sua noiva, que

um de seus poetas favoritos era Friedrich Schiller. Destaca desse poeta a dualidade

“fome e amor”, acrescentado que “esta, afinal, é a verdadeira filosofia, como disse o

nosso Schiller” (GAY, 1995, p. 58). Essa dualidade retorna na obra de Freud como

forma de ilustração à teoria das pulsões. “A fome representava as ‘pulsões do ego’

que servem à sobrevivência do indivíduo, ao passo que o amor, evidentemente, era

um nome polido para as pulsões sexuais que servem à sobrevivência da espécie”

(GAY, 1995, p. 58).

É interessante destacar que Machado de Assis no Memorial de Aires coloca

na fala do narrador versos de um poeta (Shelley) para demarcar a relação do

Conselheiro Aires com a questão do amor. Pelas inúmeras citações em ambas as

obras evidencia-se que Freud e Machado de Assis comungavam a mesma simpatia

também por Goethe e por Shakespeare. Em um comentário na folha de A Semana,

de 1896, Machado de Assis declara poeticamente uma defesa ao dramaturgo inglês:

“Um dia, quando já não houver império britânico nem república norte-americana,

haverá Shakespeare; quando se não falar inglês, falar-se-á Shakespeare” (ASSIS,

1997, p. 703).

As constantes referências intertextuais nas obras de ambos os mestres são

de peculiar sapiência e de extrema destreza às aplicações citadas. Desde os

grandes clássicos até os escritores contemporâneos, revelam a escolha do percurso

dedicado a desfrutar o prazer de ler e a apreender a vida a partir do campo das

Letras e da Filosofia. Massaud Moisés defende que o texto literário alimenta o leitor

como prazer estético, mas também é fator de aprendizagem, é formador de

consciências. “Campo dos possíveis como ensinava Aristóteles na sua Poética, não

dos acontecimentos históricos” (MOISÉS, 2201, p. 60).

Compõem a temática abordada por ambos a inquietação humana e o destino

de fugaz existência; a incompletude e a impossibilidade de encontro com a

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Literatura e psicanálise: possibilidades de diálogo

satisfação plena, o que motiva o “mal-estar” humano. O ceticismo machadiano, mais

visível a partir da segunda fase, é bem representado nas personagens de Brás

Cubas e de Quincas Borba. Embora os textos freudianos tragam desde o início esse

aspecto cético, ele vai estar bem identificado nos textos sobretudo a partir de 1920,

quando introduz o conceito de pulsão de morte em contraponto com as pulsões de

vida. Porém, o ápice do desamparo humano é referido nos textos O futuro de uma

ilusão e o Mal estar na Civilização.

Discorrendo sobre Machado de Assis, Afrânio Coutinho destaca que ele dava

mostras concretas de sua filosofia de vida e do extremo cuidado com o processo

estético. Desenvolvia um mesmo tema em diversas modalidades da escrita (crônica,

conto e por fim romance) como se o colocasse em processo de maturação gradativa,

em uma “persistente repetição temática” (COUTINHO, 1997, p. 52), fato identificado

entre os vários estudiosos de sua obra. Coutinho referenda essa característica

machadiana com um primoroso recorte da fala de Barreto Filho.

Machado é useiro em tomar um tema, ou uma idéia, esboçá-los em uma crônica, desenvolvê-los num conto, em tentativas frustras, até se revestirem da forma amadurecida e definitiva que a sua pertinácia acabava por lhe conferir. Era um trabalhador que sabia esperar. Não cedia à precipitação e ensaiava sempre, em certos casos mais de uma vez, a mesma idéia, até encontrar variante excelente. Só então se desembaraçava dela’ (BARRETO FILHO, apud COUTINHO, 1997, p. 53).

Montello aborda esse detalhe da temática machadiana como o constante

privilégio que era dado ao referencial da memória, vista como uma forma de

aprendizado acumulativo e como um prazer revelado no aperfeiçoamento de uma

idéia. “A memória teria de ser para ele, ao longo de toda a vida, a fiel companheira,

com a singularidade de que, das experiências acumuladas, Machado de Assis

saberia recolher os subsídios para sua obra” (MONTELLO, 1997, p. 14). Em

referência a uma mesma cena (sobre a utilidade das catástrofes129) citada numa das

129 A citação na crônica foi em alusão à ressonância internacional da morte de Victor Hugo, ocorrida em Paris. Na crônica, Machado de Assis escreveu: ‘Eu em criança, ouvi contar a anedota de uma casa que ardia na estrada. Passa um homem, vê perto da casa uma pobre velhinha chorando, e pergunta-lhe se a casa era dela. Respondeu-lhe a velha que sim. – Então permita-me que acenda ali o meu charuto.’ A conclusão da crônica refere ‘Imitemos este homem polido e econômico. Vamos acender os charutos no castelo de Hugo, enquanto ele arde’ (MONTELLO, 1997, p. 15).

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Literatura e psicanálise: possibilidades de diálogo

crônicas de Balas de Estalo de 28 de Maio de 1885 e repetida no capítulo CXVII de

Quincas Borba, Montello comenta:

Em machado de Assis, como se vê, a reminiscência factual serviria assim ao cronista e ao romancista, num testemunho objetivo de que a memória vivida lhe entraria naturalmente na composição do texto literário, e daí nosso reconhecimento de que, no mestre do Dom Casmurro, o memorialista sabia abastecer no momento próprio a imaginação do criador literário, chegando mesmo a ir além, quando a ressonância da lição alheia assumia a feição ilusória da criação pessoal (FREUD, 1997, p. 15).

Por igual modo, encontra-se na obra de Freud uma relação progressiva na

construção dos conceitos. Há um crescente aperfeiçoamento, sem a preocupação

de caráter definitivo, e um repetitivo retorno aos conceitos básicos da psicanálise.

Desde as primeiras publicações [1886] e no Projeto para uma psicologia científica

[1895] já se encontram os fundamentos da teoria e esses perpassam toda a

construção teórica no paulatino despontar, como abrindo em leque a grandeza dos

anos dedicados a rigoroso estudo. Genialmente, em um de seus últimos textos,

Esboço da psicanálise [1938], resgatou o desenvolvimento de todo o seu trabalho ao

longo dos anos, e apresentou em ampla visão, bem sintetizada, toda a teoria

psicanalítica.

Em relação à temática da escrita machadiana há extrema abrangência,

porém, em qualquer direção, ela aborda o enigmático cerne da alma humana em sua

mais profunda forma de revelação dos sentimentos, seja no plano do indivíduo, seja

no da inserção no meio social. Traduz a visão da crua contingência do desamparo

humano em sua parca trajetória na condição, comum aos mortais, de efêmera

transição. Aponta, ainda, o descrédito nas potencialidades do caráter humano.

Coutinho nomeia essa exposição do pensamento de Machado de Assis como uma

visão pessimista e trágica da existência, e acrescenta que em Machado existe

“inquietação metafísica: o pensamento da morte e sua dura contingência, a lei do

perecível, a transitoriedade de tudo, e existência maciça do mal, a contradição

essencial do homem, o caráter absurdo e inseguro da vida...” (COUTINHO, 1997, p.

53, grifo nosso).

Como um prolongamento dessas questões, está a referência recorrente à

temática do tempo, numa intrínseca associação à efemeridade da existência

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Literatura e psicanálise: possibilidades de diálogo

humana. Nessa perspectiva, a irreversibilidade, a transitoriedade de tudo, “o aspecto

destruidor do tempo conduzindo à decadência física e à morte, [...] a perecibilidade

do ser humano contrastando com o ideal da vida perpétua, a descontinuidade

humana, o nada como fim de todas as coisas e seres” (COUTINHO, 1997, p. 53) são

pontos notoriamente destacados.

Para Coutinho a representação social na obra machadiana também não

escapa ao prisma do referencial pessimista. “A ociosidade é a norma entre os

personagens de Machado, pois a vida não vale a pena de nenhum esforço. Que

fazer então? De que se vive?” (COUTINHO, 1997, p. 54). Machado de Assis

capturava em tudo que a sua “pena modelou” a marca ímpar da imprevisilibilidade

humana, o “hábito” representa a “alma exterior” do “monge”, mas não deixa

transparecer sua “alma interior”. Nessa medida, configurou em suas personagens a

divisão intrínseca ao sujeito humano, pactuando com a descoberta freudiana da

existência do inconsciente. Esse outro, não visível nem ao próprio sujeito, mas que

se revela nos escapes provocados pelo trabalho oculto dos sonhos, dos chistes, dos

lapsos cotidianos, mesmo à revelia do praticante.

O lugar do papel da mulher no romance machadiano questiona também o seu

ser feminino, mesclado na dúvida e no imprevisível, em especial destaque na

segunda fase. Sobre essa questão, Freitas aponta que a mulher tinha um lugar

privilegiado “em todos os romances: Lívia em Ressurreição; Guiomar em A mão e

Luva; Helena; Iaiá Garcia; Virgília e Marcela em Brás Cubas; Sofia em Quincas

Borba; Capitolina em Dom casmurro; Flora em Esaú e Jacó e finalmente Fidélia e

Carmo em Aires” (FREITAS, 2001, p. 21). Machado de Assis veste suas

personagens femininas como agentes dos questionamentos que são fundamentais

ao desenvolvimento da trama. Mesmo em “papel” secundário, elas guiam o

protagonista e são anunciadoras das insatisfações humanas, tanto quanto em

apontar o âmago das questões do desejo feminino.

O perfil da mulher, inovador à época, na escrita machadiana, revela com

maior clareza a captura do enigma da alma feminina como “inexplicável”, apenas

representável em suas multifaces. E ao seu modo, todas elas velam a

impossibilidade de dizer a essência do ser feminino, aspecto que demonstra

antecipada verdade, combinada à indicação freudiana na conferência sobre a

Feminilidade [1932] na qual Freud conclui afirmando: “se desejarem saber mais a

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Literatura e psicanálise: possibilidades de diálogo

respeito da feminilidade, indaguem da própria experiência de vida dos senhores ou

consultem os poetas...” (FREUD, [1932] 1990, p. 165).

É curioso notar o caminho percorrido por Machado para tratar as relações entre os homens e as mulheres. Virgília trai abertamente, Sofia promete, apenas promete, fantasias, apenas fantasias de infidelidade. Capitolina nada diz, Bento, sim, considera-se traído. Apesar da dúvida existir, ele a nega. Flora paga com a morte o crime de amar, ‘não se sabe a quem, mas amar’. Trai a si mesma, porque seduz e não escolhe – se não entra na aposta do amor, não vive, morre. Fidélia de nome sugestivo é fiel ao ex-marido, entretanto, ‘a idéia é saber se Fidélia terá voltado ao cemitério depois de casada’. As suposições de infidelidade são idéias do Conselheiro, apenas idéias, contraponto à moralidade absoluta de Carmo (FREITAS, 2001, p. 21).

Atrelado às inovações do lugar do feminino na escrita de Machado de Assis

segue a visão de amor que rompe com a “romântica” ânsia de completude e do “par

ideal”. As possibilidades do amor estão atravessadas pelas circunstâncias

cotidianas. Nessa via, o amor, é apenas uma miragem de um encontro possível

dentro de determinada contingência e, como tal, fadado à transitoriedade. Ou ainda

representado em sua “real” impossibilidade que conduz à morte como escolha que

resta na devastação da demanda de amor visando à completude. Machado de

Assis, sabiamente, captou o âmago do discurso do desejo, escamoteado no não

querer saber do sujeito, e o representou em personagens.

A impossibilidade da completude humana trai o ideal imaginário de amor

eterno. Freud afirma em O mal-estar na civilização que o amor é a forma privilegiada

do homem buscar a felicidade, mas também a certeza de só atingir a parcialidade da

satisfação. O caminho da felicidade está posto como sempre parcial, pois a

demanda que a ele se faça é maior que sua possibilidade de resposta. “Nunca nos

achamos tão indefesos contra o sofrimento como quando amamos, nunca tão

desamparadamente infelizes como quando perdermos o nosso objeto amado ou o

seu amor” (FREUD, [1929] 1990, p. 101), fato que não anula a existência do amor.

Apenas é preciso reconhecer seu caráter transitório e parcial. Reconhecer sua mítica

origem; “Eros e Ananke [Amor e Necessidade] se tornaram os pais também da

civilização humana” (FREUD, [1929] 1990, p. 11).

O desejo de amor, construído por uma necessidade da vivência coletiva,

perpassa o âmbito do par (homem-mulher) na busca por gratificação genital e

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Literatura e psicanálise: possibilidades de diálogo

abrange as relações do grupo presentes no contexto da civilização. Para melhor

“domar” a agressividade do animal humano, a instituição religiosa, mais antiga que o

Cristianismo, cunhou o pacto de “amar o próximo como a si mesmo”, pacto de difícil

viabilidade. Freud considera que isso se deve ao fato de que “os homens não são

criaturas gentis que desejam ser amadas e que, no máximo, podem defender-se

quando atacadas; pelo contrário, são criaturas entre cujos dotes pulsionais deve-se

levar em conta uma poderosa cota de agressividade” (FREUD, [1929] 1990, p. 133).

Machado de Assis bem referenda essa teoria nos exemplos construídos pela

personagem de Quincas Borba e o cerne de sua teoria do Humanitismo, em que

defende a guerra como necessária condição de subsistência da espécie e como

forma de evasão à agressividade. Na teoria do Humanitismo, composta em quatro

volumes, o último dedica-se ao tratado político com rigor de lógica. “Reorganizada a

sociedade pelo método dele, nem por isso ficavam eliminadas a guerra, a

insurreição, o simples murro, a facada anônima, a miséria, a fome, as doenças”

(ASSIS, 1997, p. 262), uma vez que esses “supostos flagelos” são equívocos de

interpretação e em nada impedem a felicidade humana.

O contexto do mundo civilizado também criou um referencial ao amor advindo

da beleza estética e isso influi por demais no julgamento de escolha de objeto. A

preocupação com a beleza da forma ultrapassa todos os campos de fruição, seja de

objetos, de paisagens, de criações artísticas, entre outras. “A atitude estética em

relação ao objetivo da vida oferece pouca proteção contra a ameaça de sofrimento,

embora possa compensá-lo bastante. A fruição da beleza dispõe de uma qualidade

peculiar de sentimento, tenuemente intoxicante” (FREUD, [1929] 1990, p. 102). E

mais uma vez abre espaço às sensações de desamparo frente ao encanto do desejo

e à demanda não possível de realizá-lo em toda a sua dimensão. “O amor da beleza

parece um exemplo perfeito de um impulso inibido em sua finalidade” (FREUD,

[1929] 1990, p. 102).

A obra machadiana advém de extremado rigor estético, e não escapou a seu

alto teor crítico. “Para ele, a crítica tinha por função não somente a regulação da

produção literária geral, mas também a normalização da própria atividade criadora

do escritor” (COUTINHO, 1997, p. 55). Caberia ao escritor conhecer os preceitos de

sua produção e “autopoliciar-se”. Sua autocrítica permitiu a genialidade de um

“estilo” maduro e original. “E todos admitem que essa autocrítica exerceu vigilante e

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Literatura e psicanálise: possibilidades de diálogo

decisiva função na criação literária de Machado nos diversos gêneros imaginativos”

(COUTNHO, 1997, p. 55).

Coutinho define essa preocupação machadiana como zelo apurado da

tradição dos antigos. Seu guia de apuro estético vinha da Antiguidade e dos

clássicos. A esse respeito, cita o trabalho de Maritain em Art e Scholastique

Modernamente só se conhecem a primitividade e originalidade naturais, de um lado, e a senilidade das regras acadêmicas do outro. Os antigos pensavam que a verdade é difícil, que a beleza é difícil, e que o caminho é estreito; e que para vencer a dificuldade e a altura do objetivo, é absolutamente necessário que uma força e uma elevação intrínsecas – isto é, um habitus – se desenvolvam no indivíduo. [...] forma intelectual dominadora da matéria, que não se opõe aos dotes naturais, à disposição inata, necessária, indispensável, mas apenas condição prévia, que jamais passará a arte, sem uma cultura e uma disciplina que os antigos queriam fosse longa, paciente e honesta (MARITAIN, apud COUTINHO, 1997, p. 56).

Em Machado de Assis o refinado apuro na busca de aperfeiçoamento é sua

marca registrada. “Sua norma é apoiar a criatividade no estudo das técnicas da arte

literária através da observação dos modelos e das leis da poética” (COUTNHO,

1997, p. 56). A forma de concretização desse êxito deve-se exatamente ao preço de

grande dedicação ao trabalho da escrita. “Como princípio geral, esse código é

centralizado pela desvinculação da arte e da moral, pela autonomia da arte”

(COUTNHO, 1997, p. 56).

Essa busca de saber no conhecimento do mundo Antigo é marca bem

presente na obra freudiana. A poesia de Homero, seja a Ilíada, seja a Odisséia, são

citações privilegiadas em seus textos, tanto quanto a tragédia grega, os poetas

clássicos e contemporâneos. Essas mesmas referências encontram-se amplamente

bem utilizadas ao longo de toda a escrita machadiana, fato que justifica tanta

afinidade de visões, nos mais diversos temas abordados pelas duas obras de

semelhante rigor técnico.

Outra extrema coincidência de comunhão de pensamentos diz respeito ao

amplo conhecimento da Bíblia e de quanto os textos dessa escritura são também

citados em ambos os trabalhos. Porém o uso da Bíblia por ambos os mestres,

encapa a essência das citações, apontando o texto sagrado como um texto literário

e não como conteúdo de crença religiosa. Freud, em O futuro de uma ilusão, deixa

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Literatura e psicanálise: possibilidades de diálogo

clara sua posição a respeito do uso ilusório feito pela religião no contexto da

civilização. Machado de Assis também se refere na sua visão da religião, em que se

destaca o enfoque crítico, à exploração da ingênua carência humana nesse sentido.

Pode-se dizer ainda que os dois eram “homens de seu tempo” e que

escreviam também com o olhar à volta, capturando com sensível criatividade o

contexto que os cercava. Como cronista, Machado de Assis esteve atento ao

registro das inquietações de sua época. Em A Semana, ficou registrada a

contemporaneidade de suas percepções.

Machado de Assis e Freud estiveram atentos aos acontecimentos de sua

época e escreveram envolvidos com a conjuntura que os cercava, mas também

movidos pelo outro, o “desconhecido inconsciente”. Contaminados pelo saber dos

grandes clássicos e por amplo aparato filosófico, criaram, a partir desses, um outro

saber, um novo arcabouço teórico. Deixaram marcas indeléveis em seus textos pela

aguçada percepção da realidade, e notadamente pela inovação que a escrita de

ambos provocou, na sensibilidade poética que lhes foi peculiar.

Mesmo não tendo como desvincular um homem de sua obra, não há aqui

interesse biográfico por puro biografismo. Sempre que esse conteúdo não escapou e

se inscreveu, foi nas entrelinhas em que ambos estiveram assim tão fortemente

imbricados por uma vida dedicada às “Letras”. O que aqui se comprova é que os

escritores, como bem referendou Freud, usando as palavras de Shakespeare, “são

aliados muito valiosos, cujo testemunho deve ser levado em alta conta, pois

costumam conhecer toda uma vasta gama de coisas entre o céu e a terra com as

quais a nossa filosofia ainda não nos deixou sonhar” (FREUD, [1907] 1990, p. 18).

Nessa medida, o texto fala além do homem que o escreveu. A obra

representa a esse outro, sobre o qual não sabe, nem mesmo o seu autor, o texto

fala no “Mais além”, torna-se maior que o homem, pois ameaça sempre ultrapassar a

condição estritamente humana, a transitoriedade. “Resta lembrar que a vida dos

livros é vária como a dos homens. [...] Muitos há que, passado o século, caem nas

bibliotecas, [...] e onde podem sair ou para a história, em parte para os florilégios. [...]

A imortalidade é que é de poucos” (ASSIS, 1997, p. 724, grifo nosso).

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

SEÇÃO IV

A MORTE NA SEGUNDA FASE ROMANESCA DE MACHADO DE ASSIS

A Barca de Caronte - Óleo sobre linho, doada ao museu em 1932 por José Benlliure Gil

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

ENTRE O MELANCÓLICO E O LÚDICO: TRAVESSIAS

• Rememorando as Memórias póstumas: contextualização.

• Revelando a morte: velada entre a ironia e a melancolia.

• Humanitismo: neologismo entre a loucura e a morte.

Jovem Defendendo-se de Eros -1880 - William-Adolphe Bouguereau (1825-1905)

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

4.1.1 Rememorando as Memórias póstumas: contextualização.

Cada estação da vida é uma edição que corrige a anterior, e que será corrigida também, até a edição definitiva, que o editor dá de graça aos vermes (Machado de Assis).

Falar da escrita de Machado de Assis, focando o romancista, remete-nos,

inevitavelmente, à observação mais geral que é comum na crítica literária: ocorre um

processo de amadurecimento em sua escrita, bem definido a partir da publicação de

Memórias Póstumas de Brás Cubas. Nas palavras de Alfredo Bosi: “todos

reconhecem nas Memórias Póstumas o divisor de águas da obra machadiana”

(BOSI, 2000, p. 83). Nesse texto, “no estilo, na filosofia da vida, no enfoque das

personagens, processa-se uma transformação tão grande, que seria mais do que

uma evolução; uma mudança de rumo, com o mestre a alcançar no romance a

plenitude da maturidade” (MONTELLO, 1997, p. 10).

Outro ponto marcante que se observa desse romance em diante é a marca do

conteúdo mnêmico como fator desencadeador da narrativa. As modificações que se

processam e, gradativamente, se aprimoraram “têm na reminiscência o seu apoio

evidente, podemos reconhecer que a evocação da vida vivida, quer como

experiência, quer como testemunho, estará no centro mesmo da produção

machadiana” (MONTELLO, 1997, p. 10). E Ainda, referendando essa evidência,

Montello destaca na indicação do próprio autor a escolha dos títulos, que, de

Memórias a Memorial, já demarcam nitidamente o seu propósito do começo ao fim

desse ciclo:

Atentemos agora para a circunstância de que a segunda fase machadiana, no plano da construção romanesca, principia com as Memórias póstumas de Brás Cubas e termina com o Memorial de Aires. Basta essa indicação de seus pontos extremos para que de pronto se perceba que a memória é o fio condutor do mundo romanesco de Machado de Assis (MONTELLO, 1997, p. 11).

É a marca dos cinco últimos romances, construídos “sob o signo da memória”,

o que queremos destacar, e seguir como o fio de Ariadne, que nos conduz não à

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

saída, mas ao interior do labirinto romanesco desse ciclo machadiano. O traço

recorrente do uso das reminiscências, fio condutor dessa fase, pode ser considerado

como similar a um tipo de recurso do discurso melancólico. Essa vertente do

discurso melancólico marca a libido presa ao objeto perdido e, por identificação,

revivido. Os registros desses traços mnêmicos se intercalam entre a ironia e o

pessimismo, e expressam a descrença no potencial humano e na própria vida. Esse

recurso de linguagem, no contexto dos cinco romances, é usado como estratégia de

acesso para falar do enigma da morte e da perplexidade humana frente a essa

questão.

Em Memórias Póstumas, ele está explícito com maior evidência, pelo fato de

o narrador autodenominar-se um “defunto autor” e dizer a que veio: entregar ao leitor

uma “obra de finado”, com propósito definido. “Escrevi-a com a pena da galhofa e a

tinta da melancolia”; tecidas num outro mundo, em meio a um contra-senso

deliberado. “O melhor prólogo é o que contém menos coisas, ou o que diz de um

jeito obscuro e truncado” (ASSIS, 1977, p. 97). Com irreverência, anuncia um falso

mistério: “Evito contar o processo extraordinário que empreguei na composição

destas Memórias trabalhadas cá no outro mundo. [...] A obra em si mesma é tudo”

(ASSIS, 1977, p. 98).

É seguindo a indicação do próprio narrador, “a obra em si mesma é tudo”, que

percorremos sua irônica e melancólica trajetória nas reminiscências que privilegiou

para viajar “à roda da vida” (ASSIS, 1977, p. 95), mesmo anunciando notícias de um

“outro mundo”. Luis Costa Lima, em Dispersa demanda, rastreando as alusões da

música no referido texto, conclui: “cabe-nos por ora dizer que a tematização da

música, nas Memórias, é sufocada pela tematização aqui principal: a da morte”

(LIMA, 1981, p. 65, grifo nosso).

É redundância reafirmar a importância desse livro no contexto da obra

machadiana e do cenário literário nacional, porém necessário. Destacamos então

alguns pontos-chave que marcam seu confronto com o estilo em voga por ocasião

de seu lançamento. A narrativa é extremamente original, já se constituindo como

ponto de ruptura com o tipo de escrita convencional à época. A partir desse texto,

Machado direciona sua narrativa para a análise da condição da existência humana.

Com perspicácia genial, conduz o leitor pelo cotidiano de suas personagens,

inserindo especulações filosóficas e psicológicas. Não é possível prever o destino

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

da narrativa. O leitor é conduzido pelo desejo do narrador e capturado nas redes de

sua sedução; tanto quanto convocado à participação.

Machado de Assis inaugura técnicas estruturais na composição da narrativa:

usa capítulos curtos, intencionalmente ligeiros; e a ordem não-cronológica na

disposição dos fatos. Constrói capítulos inesperados e absolutamente originais, a

exemplo O velho diálogo de Adão e Eva (cap. LV), no qual, para ler-se o diálogo, é

mister recorrer ao idioma dos amantes, ou seja, da poesia, haja vista que expresso

literariamente, há apenas a alternância entre os nomes de Brás Cubas e Virgília,

intercalados por pontos de interrogação, exclamação e reticências. “O diálogo de

Adão e Eva é o exemplo acabado de como os momentos decisivos não necessitam

ser narrados para ganhar identidade, ou escapam de o ser, justamente porque se

mantêm inacessíveis ao olhar e à língua humana” (MOISÉS, 2001, p. 52).

Essa lógica segue-se em outros capítulos. O capítulo Inutilidade (CXXXVI)

consta de uma única frase para explicar a inutilidade do capítulo anterior, quando o

próprio é uma “inutilidade”. Apresenta um capítulo (LIII), cujo título é feito por

reticências. O capítulo (CXXXIX) De como não fui ministro, o texto é feito apenas por

reticências, para expressar no capítulo (CXL), Que explica o anterior: “Há coisas que

melhor se dizem calando; tal é a matéria do capítulo anterior” (ASSIS, 1977, p. 281).

Essa relação de um capítulo explicando outro é um recurso recorrente na

estruturação do texto. Os títulos130 dos capítulos são geralmente irônicos e

provocadores; alguns, um desacato desnecessário, a exemplo do capítulo (CII), De

repouso, e do capítulo (CXXXII), Que não é sério. A supressão dos mesmos não

alteraria o rumo da narrativa, mas eles cumprem a promessa do “defunto autor”.

Importa dizer que este livro é escrito com pachorra, com a pachorra de um homem já desafrontado da brevidade do século, obra supinamente filosófica, de uma filosofia desigual, agora austera, logo brincalhona, coisa que não edifica nem destrói, não inflama nem regala, e é todavia mais do que passatempo e menos do que apostolado (ASSIS, 1977, p. 104).

O texto é extremamente singular e inusitado na forma de condução da trama.

Há um enorme distanciamento entre a trama e o enredo, demarcando maior

130Há o uso de muita intertextualidade nos títulos dos capítulos. Fato que “obriga” o leitor (caso desconheça) ir à fonte para melhor assimilar se a relação é condizente à realidade, ou se está assim empregado como referência irônica.

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

“singularização” e “desautomatização131”, evidenciados desde a posição do narrador,

o encadeamento dos fatos, a constante interloculação com o leitor, dentre outras

inovações. As modificações introduzidas por Machado de Assis, a partir desse texto,

são reconhecidas e bem pontuadas pela crítica literária.

Alfredo Bosi, no texto Machado de Assis: O enigma do olhar, chama nossa

atenção para a extrema liberdade usada por Machado para desenvolver sua

temática, inovando no desenvolvimento da trama.

As Memórias Póstumas de Brás Cubas começam pelo fim dos fins: são póstumas, vêm depois da vida e da morte; e o narrador, apartado dos homens que continuam os seus embates cá na terra, começa contando sua morte para, só depois, com vagar e muita liberdade, reconstituir a sua vida. Póstumo, superlativo de post, é o que vem depois de tudo: da vida e da morte. É o mais do que posterior, é o depois absoluto (BOSI, 2000, p. 129).

Discorrendo sobre a escolha do tema, B. Tomachevski afirma: “A obra literária

é dotada de uma unidade quando construída a partir de um tema único que se

desenvolve no decorrer da obra. Por conseguinte, o processo literário organiza-se

em torno de dois momentos importantes: a escolha do tema e sua elaboração”

(TOMACHEVSKI, 1971, p. 169). Sobre a escolha do tema, Tomachevski vai suscitar

uma polêmica discussão, haja vista que coloca a aceitação do tema como uma

preocupação do escritor para com o leitor; embora não haja como prever a recepção

do leitor. Ele mesmo levanta a questão de que “a palavra ‘leitor’ designa em geral

um círculo bastante mal definido de pessoas, do qual, muitas vezes, o próprio

escritor não tem um conhecimento preciso” (TOMACHEVSKI, 1971, p. 170).

No que diz respeito a Machado essa preocupação não existe. Ele inova e a

resultante fica por conta do próprio leitor. O narrador machadiano, desde Brás

Cubas, tem ampla liberdade e desafia o leitor a tecer suposições sobre a trama,

partindo do fio fornecido. Temos em Dom Casmurro o maior exemplo dessa 131 Uma das categorias de análise levantadas pelo “Formalismo russo” para caracterizar um texto literário, é que o texto seja singular e que possa “desautomatizar” a realidade. O Formalismo russo foi fundado pelo grupo de estudantes da Universidade de Moscou (1914-1915) com o objetivo de promover estudos de poética e de lingüística. Para esse grupo, o essencial não é o problema do método nos estudos literários, mas o da literatura enquanto objeto de estudo. (SCHNAIDERMAN, 1971, p. 03). Apontaram à necessidade de desautomatização da obra literária, reclamaram um estatuto próprio de análise peculiar à ciência literária, portanto presente no escopo do texto (SCHNAIDERMAN, 1971, p. 05).

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

artimanha da narrativa. Machado de Assis provoca o leitor com tanta mestria que o

envolve num paradoxo como parte do contexto. Convoca o leitor de modo tão

surpreendente que o implica, mesmo à revelia de sua vontade. Ora falando ao

universo feminino, quando trata a especificidade de assuntos do coração; ora sem

especificar o gênero, quando o tema é geral, principalmente ao indagar a validade

ou não do texto que está a escrever. Brás Cubas falando da monotonia da vida além

morte, desacata o leitor na seguinte afirmação:

Começo a arrepender-me deste livro. Não que ele me canse; eu não tenho o que fazer; e, realmente, expedir alguns magros capítulos para esse mundo sempre é tarefa que distrai um pouco da eternidade. Mas o livro é enfadonho, cheira a sepulcro, traz certa contração cadavérica; vício grave, e, aliás, ínfimo, porque o maior defeito deste livro és tu, leitor. Tu tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar; tu amas a narração direta e nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e o meu estilo são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem... E caem! (ASSIS, 1977, p. 208).

Em continuidade à questão do tema, Tomachevski sugere que a obra precisa

ser interessante e girar em torno de temas abrangentes que capturem o interesse do

leitor. Citando como temas que prendem a atenção do leitor os que são referentes a:

“passatempo” (recreativo); de interesse contemporâneo ou universal, destacando

“(os problemas do amor, da morte) que, no fundo, permanecem os mesmos ao longo

de toda a história humana” (TOMACHEVSKI, 1971, p. 171). Associados a esses

temas, ele destaca ainda as condições históricas e as questões emocionais. Atribui

grande importância à captura do leitor pelo âmbito da emoção.

Dentre os termos mencionados sobre o interesse temático, podemos

enumerar um pouco de cada um desses elementos no texto machadiano. No

entanto, não os percebemos como preocupação prioritária do narrador. Destacamos

sobre a questão do tema um aspecto o qual consideramos um tanto questionável, de

acordo com as idéias destacadas por Tomachevski:

O tema apresenta uma certa unidade. É constituído de pequenos elementos temáticos dispostos numa certa ordem. A disposição destes elementos temáticos faz-se de acordo com dois tipos principais: obedecendo ao princípio de causalidade e inscrevendo-se numa certa cronologia, ou expondo-se sem consideração temporal numa sucessão que não obedece a nenhuma

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

causalidade interna. No primeiro caso temos obras ‘com trama’ (novela, romance, poema épico), no segundo as obras sem trama, descritivas (poesia descritiva e didática lírica, escritos de viagem...etc.) (TOMACHEVSKI, 1971, p. 172).

Podemos situar o narrador Brás Cubas infringindo parte dessa unidade

enumerada nos elementos temáticos e, ainda assim, situá-lo no primeiro caso (de

obra com trama). Brás Cubas é um narrador que rompe com o estabelecido e o

esperado. O seu tema geral é a morte, porém o apresenta escamoteado na

representação social. E ainda assim, sobre a morte, ele só a consegue tratar como

escape das agruras de uma vida desmotivada e sempre recomeçada em algum novo

projeto que não tem sustentação que gere conclusões, culminado em constantes

interrupções.

Brás Cubas semeia fértil campo de análise em temas de diversas vertentes

de interesse para o leitor. A singularidade é marcante. O narrador circula do cômico

(lúdico) ao irônico (melancólico e amargo). Faz uso da irreverência, do tom de abuso

deliberado a partir do contra-senso com que inicia o texto. Ao começar por narrar

sua morte, o faz numa forma de afrontar o leitor. A dedicatória ao “verme” é marcada

por uma amargura que convida o leitor a ironizar132 junto ou desviar-se da crueza de

seu anúncio, escapando da frieza da descrição, marcada no real da carne.

Observemos a dedicatória:

Ao verme que

primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver

dedico como saudosa lembrança

estas MEMÓRIAS PÓSTUMAS (ASSIS, 1997, p. 94).

Ao falar da morte (destino natural dos viventes) com tamanha franqueza e

uma carga de ironia, o narrador trata de um tema de interesse universal. Oferece um

revestimento lúdico, um aparato imaginário que “desautomatiza” a maneira 132 Esse tipo de ironia é caracterizado como sendo Disfemística. “A ironia que busca a produção do cômico é agente dessa degradação. O ironista acentua a sua superioridade, utilizando como trampolins os temas que foca, rebaixando a realidade para fazer sobressair a sua altura, promovendo insatisfação que o caracteriza a índice de um nível mental acima do comum” (PAIVA, 1961, p. 18).

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

convencional de como tal tema é recorrentemente tratado, via de regra, num aparato

filosófico, político ou religioso. Ou seja, pela via do imaginário, que escapa à crueza

do real. E o paradoxo primordial é que por mais que Brás Cubas seja lúdico, suas

palavras portam uma ironia escarnecedora que pauta sobre o desamparo humano.

Analisando as Memórias Póstumas em Um Mestre na periferia do

Capitalismo, Roberto Schwarz diz que o texto se transcreve como uma música no

movimento de um ritmo binário, marcado por alternâncias, paralelismos, antíteses,

simetria, disparidades. O narrador usa de constante dualidade. Os temas são

apresentados sempre em forma de paradoxos, começo e fim; nascimento e morte;

campa e berço, entre outros. E mesmo os temas que aparecem isolados possuem

um par implícito que os implica numa ordem dual (SCHWARZ, 1990, p. 56).

Schwarz aponta como princípio formal do texto a “volubilidade” do narrador

num constante desrespeito de alguma norma. O narrador usa a todo momento a

cadência ritmada do contraste, que lhe garante êxito. Desliza por modalidades

literárias, trocando estilos, técnicas, gêneros, recursos gráficos etc. Todos os

recursos utilizados perpassam a esfera do contraste, cujo alvo é a satisfação de sua

constante “volubilidade” (SCHWARZ, 1990, p. 31). “O escândalo das Memórias está

em sujeitar a civilização moderna à volubilidade. Os assuntos podem ser os mais

diversos, mas o efeito da prosa é este” (SCHWARZ, 1990, p. 54).

Esse traço demarcado ao narrador é associado como sendo uma

representação de uma dada classe na conjuntura social em vigor. É configurado no

retrato da sociedade brasileira, considerando-se que Schwarz privilegia a análise

sociológica para os textos machadianos. Segundo ele:

A fórmula narrativa de Machado consiste em certa alternância sistemática de perspectivas, em que está apurado um jogo de pontos de vista produzido pelo funcionamento mesmo da sociedade brasileira. O dispositivo literário capta e dramatiza a estrutura do país, transformada em regra da escrita (SCHWARZ, 1990, p. 11).

Essa mesma questão já havia sido apontada por Schwarz no texto “Duas

notas sobre Machado de Assis”. Analisando a composição da escrita machadiana e

a polêmica entre os críticos, quanto à realidade nacional ser ou não, representada

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

nos textos machadianos, ele nos remete à fala do próprio Machado, em Instinto de

nacionalidade.

Não há dúvida que a literatura, sobretudo uma literatura nascente, deve principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua região; mas não estabeleçamos doutrinas tão absolutas que a empobreçam. O que se deve exigir do escritor, antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e de seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço. Um notável crítico da França, analisando há tempos um escritor escocês, Mason, com muito acerto dizia que do mesmo modo que se podia ser bretão sem falar sempre de tojo, assim Mason era bem escocês, sem dizer palavra do cardo, e explicava o dito acrescentando que havia nele um scotticismo interior, diverso e melhor do que se fora apenas superficial (ASSIS, 1997, p. 804).

Tomachevski ressalta também que tema atual é “aquele que trata dos

problemas culturais do momento...” (TOMACHEVSKI, 1971, p. 171), e acrescenta:

“A forma elementar da atualidade nos é dada pela conjuntura quotidiana”

(TOMACHEVSKI, 1971, p. 171). A esse respeito Schwarz destaca os resíduos do

contexto histórico social, apontando os inúmeros artifícios utilizados pelo narrador. A

maneira incomum de Brás Cubas introduzir o texto declarando-se um “defunto

autor”, fazendo uma comparação arrojada entre suas memórias e o Pentateuco133, e

as constantes intromissões as quais infringem sempre a regra da narrativa, são

pontos apresentados por Schwarz. Esses, considerados enquanto forma, dando ao

termo dois sentidos: como regra da composição da narrativa, e como a estilização

de uma conduta própria à classe dominante brasileira.

Segundo Schwarz, a “volubilidade” de Brás Cubas reproduz implicações

estruturais do quadro histórico da sociedade da época. Reproduz a ambivalência

ideológica sustentada pela classe dominante, que convive com as idéias

progressistas do liberalismo (resultante do crescente capitalismo nos países

desenvolvidos), em contraste com o atraso da relação (desumana e cotidiana) da

escravidão negra e do branco pobre (espoliado pela relação de favor), transformado

em um tipo peculiar de escravo na dependência e fidelidade ao seu protetor.

133 O Pentateuco é o conjunto que compõe os cinco primeiros livros da Bíblia, (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio). A escrita desses livros é atribuída ao patriarca Moisés, relata a origem da terra e da humanidade e a origem de Israel, sua formação como nação e a posse da terra prometida aos judeus. Em hebraico é chamado de Tora.

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

Brás Cubas conduz sua narrativa num sistema objetivo versus subjetividade.

Sabe tudo, mas faz o leitor conviver com seu discurso de ambigüidades. Utiliza-se

de contrastes, sátiras, vestindo-se e desvestindo-se de verdades incertas. Imprime

aspectos originais em sua maneira expositiva. Sua maneira alógica de tratar o real

consegue abranger num só movimento a marca do contraste e da oposição. Em se

tratando do tema da motivação, concordamos que o narrador aqui citado inaugura

um gênero (visto que marca uma ruptura), gerando inovação, e essa se sustentando

ao longo de sua narrativa. Porém, o motivo pelo qual cativa o leitor consideramos

uma incógnita. Se seguirmos o fio condutor de uma análise sociológica com a

conjuntura brasileira da época, encontramos amplo respaldo, conforme apresenta

bem Schwarz.

Ao contar suas memórias, Brás Cubas apresenta, além de sua biografia, o

percurso de um brasileiro inserido na classe dominante de sua época. O tipo de vida

peculiar à parcela da população portadora da terra, detentora dos meios de

produção que lhe asseguravam um estilo de vida especificamente privilegiado. Uma

infância entre “mimos”, imprimido-lhe uma relação diferenciada entre as classes,

explícita no seu trato com os escravos domésticos.

Estudos no exterior, marcados por libertinagem e divagações; encontro frontal

com os contrastes ideológicos da civilização crescente do primeiro mundo, face aos

atrasos de um país colonial agrário. Os relacionamentos afetivos estão imbricados

por questões econômicas e sociais. Sua relação com o trabalho não existe, nem

como projeto de investimento pessoal, nem como re-investimento acumulativo de

manutenção e reprodução de capital. Os movimentos dos fatos e eventos no

percurso de sua vida acontecem pelo tédio que o conduzem a um novo episódio.

Se tomarmos outra condução de análise, percebemos que há também outras,

e inúmeras possibilidades de leituras, e todas a partir do próprio texto. Mesmo a

ficção refletindo questões do contexto histórico, econômico e social, o que ficará em

questão (e sempre em aberto) é a “singularidade” de recepção pertinente à estrutura

humana. Afinal, humanos engendrados e inseridos num mesmo contexto social

(ainda que vivenciando oportunidades similares) não se pautam pelo mesmo padrão

de escolhas na vida.

Podemos inferir que Brás Cubas, por ser “um defunto autor”, pelo tema que

se propõe a tratar e pela forma como se apresenta para tal, imprime certa

“curiosidade” pertinente ao “não saber” humano sobre a morte, a qual o coloca

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

nesse lugar de “herói” atípico, conhecedor do “outro lado do mistério”, o que lhe

confere tanta liberdade de interlocução com o leitor. Em suma, o texto é de extrema

singularidade e o processo de “desautomatização” perpassa toda a estrutura da

narrativa, seja no tema, na articulação da trama, seja ainda na representação do

próprio narrador.

Coutinho, tratando dessa mesma questão, concorda que Machado de Assis

retrata muito bem a imagem social do Brasil de sua época, mas discorda de que

esse tenha sido seu objetivo. Ressalta na escrita machadiana a capacidade criativa

que a torna ímpar. “Sua mestria técnica, sua consciência artesanal levaram-no a

buscar o novo, e a criar por sua vez uma tradição, uma forma diferente”. E

acrescenta:

Sua obra é dominada pelo senso estético, pelos valores estéticos. O que nela predomina não é a preocupação social, sem embargo de estar presente a imagem social, a sociedade de seu tempo, por ele observada com olhar agudo, sensível e registrador, o que a tornou um seguro retrato de sua época. Mas a realidade, o meio, para ele, constituíam apenas a base, a matéria-prima que, à imagem de todos os grandes artistas, ele transfigurava e transformava em arte. Para ele a verdade histórica existia para ser transmutada em verdade estética. Por essa razão, a sua obra transcende o tempo e as escolas (COUTINHO, 1997, p. 24).

Coutinho afirma ainda que a obra de Machado de Assis é fundada sobre três

grandes motivos: o humorismo, a tragicidade e a simbologia. Destaca o aspecto do

humorismo, associando-o à melancolia. “Em Machado, o humorismo é aliado ao

pessimismo, à amargura, ao ódio do gênero humano, à irritação que lhe causava o

espetáculo da vida” (COUTINHO, 1997, p. 43). A narrativa da segunda fase de sua

escrita, além de expor, exacerba o cerne da alma humana, sem censura e com

tamanha sinceridade que lança o destino humano num grande desamparo,

apontando a “nossa melancólica humanidade”. “Para compreendê-lo, pois, é preciso

aliar o humorismo à melancolia e ao tédio, ao ódio da vida e ao pessimismo”

(COUTINHO, 1997, p. 32, p. 43).

O pessimismo machadiano revela-se nas criações artísticas, através de um ódio radical da vida e da humanidade, uma ausência total de simpatia para os

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homens e de confiança neles, uma indiferença completa para os seus sofrimentos, amarguras e desesperos. É essa a tonalidade geral da sua obra, a nota permanente de sua interpretação do mundo, essa falta de generosidade no julgar os homens e a vida (COUTINHO, 1997, p. 40).

Lima assinala o duplo eixo temático encontrado nas Memórias póstumas. “Se

pensarmos nos elementos mais freqüentes nas Memórias, a representação social e

a morte, constataremos seu oposto tratamento. Se aquela é minudentemente

trabalhada – esta é descarnada” (LIMA, 1981, p. 71). Para esse autor, o pano de

fundo criado pela estrutura social escamoteia o ruído da morte. É como se o tema da

morte só suportasse entrar em cena protegido na sonoridade dos eventos sociais. “A

morte marca sim a pontuação do livro, cujos intervalos são preenchidos pela

representação social” (LIMA, 1981, p. 72).

Acatamos nas palavras do próprio Machado de Assis que o escritor é homem

do seu tempo, mesclado por sentimentos internos. Portanto, aberto ao jogo das

temáticas e da liberdade que o mundo ficcional propicia. “Pensar sobre o mundo que

o envolvia não é por certo especificidade machadiana. Criar ficcionalmente, contudo,

a partir desta reflexão, parece-nos sua singularidade” (LIMA, 1981, p. 57). Dessa

feita, mesmo considerando o duplo eixo temático presente nas Memórias póstumas,

tomaremos, oportunamente, a afirmação de Lima: “A morte pontua a narrativa e

representação social cobre seus intervalos” (LIMA, 1981, p. 72). E nos deteremos

nesse primeiro ponto, deixando à representação social as ricas análises já

existentes.

Nossa pesquisa na Fortuna Crítica nos tem conduzido para trabalhos

direcionados para as vertentes analíticas que já mencionamos, e outros que

apontam à questão do humor, da ironia e da melancolia, porém todas fazendo uma

relação dessas categorias de análise com o pessimismo e o descrédito machadiano

na natureza humana; algumas até fazem um entrelaçamento entre essas questões e

a vida pessoal do autor. Consideramos, sim, a representação social no contexto das

Memórias Póstumas (é evidente que nenhum elemento de eixo temático é inserido

ao acaso); ela tem seu lugar e está imbricada à temática da morte, que se ancora na

temática social. Porém não cabe na perspectiva desse trabalho acomodar mais essa

análise, haja vista que já é tão bem apreciada pelos estudiosos machadianos.

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

4.1.2 Revelando a morte: velada entre a ironia e a melancolia.

Que tens tu com essa sucessão de ruína a ruína ou de flor em flor? Trata de saborear a vida: e fica sabendo que a pior filosofia é do choramingas que se deita à margem do rio para o fim de lastimar o curso incessante das águas. O ofício delas é não parar nunca; acomoda-te com a lei, e trata de aproveitá-la (Machado de Assis).

No texto: Machado de Assis: Ficção e Utopia, Massaud Moisés também

referenda a análise de que Machado construiu as Memórias Póstumas sobre a idéia

de dualidade e paralelismo, e que essas “organizam-se dialeticamente, entre o sim e

o não, a cara e a coroa, o falso e o verdadeiro, o visível e o ignoto, etc., numa

permanente mutação, e não apenas porque se tratasse de um texto literário, por

natureza metafórico, polissêmico” (MOISÉS, 2001, p. 62). Considera que, a partir

das Memórias póstumas, a atenção de Machado de Assis está voltada para o que

há de mais interior em suas personagens: problematizar os conflitos da alma. Nas

palavras de Moisés,

[...] o narrador faz o close-up das personagens, visando a analisá-las de perto. Penetrar-lhe a alma e os pensamentos, em busca, no mais recôndito da sua vida interior, da fonte dos dramas e do seu posterior desenvolvimento, eis o seu objetivo maior. A sondagem interior não se detém nas primeiras camadas, como de hábito no romance romântico, segue em busca das regiões profundas, para além da consciência, onde se escondem os conflitos mais densos. Numa palavra: sondagem no inconsciente, como se a convite da Psicanálise. Visão de interioridade, mergulho no recesso do indivíduo guiado por imponderáveis, em atrito com personagens igualmente orientadas pelas pulsões abissais. No contexto social, assim como no interior de cada um dos seus membros, reinam ‘forças ocultas’. E as pessoas se identificam mais por essas zonas de sombras do que por aquilo que deixam conhecer aos outros no convívio em sociedade (MOISÉS, 2001, p. 46, grifo nosso).

Aceitando o convite da psicanálise, começamos a percorrer o curso da

narrativa, observando o discurso do irreverente narrador de Memórias Póstumas.

Acompanhando o percurso de suas reminiscências, divididas entre a ironia e o travo

de amargura. Comparamos esse tipo de fala ao que caracteriza a estrutura do

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

pensamento melancólico. Passamos a refletir sobre os elementos estruturais do

discurso, interrogando-nos: que elementos são relativos ao discurso melancólico,

e/ou equivalentes à elaboração do luto?

O texto é narrado em primeira pessoa, por meio de reminiscências, um dos

recursos do discurso melancólico, que está sempre voltado para o passado e sem

perspectiva futura, visto que a libido está presa ao que foi perdido. Sua morte

acontece, velada no lamento de não conseguir o êxito pelo invento do “emplasto”,

que seria libertador da condição do desamparo humano. A morte impede a

descoberta da cura da melancolia, tanto quanto, de que consiga o reconhecimento

público por tão brilhante feito. A morte liberta-o da condição humana, mas não o

liberta do lamento melancólico.

Brás Cubas afirma que sua escrita “trata-se, na verdade, de uma obra difusa”.

Propositadamente escrita com a aliança da “galhofa e da melancolia”, temperada

com possíveis pitadas de “rabugens e pessimismo” (ASSIS, 1977, p. 97). A

melancolia atrelada à ironia é transformada em fino escárnio; sugere que essa é a

maneira possível de falar do irremediável mal que avassala o saber humano: o

encontro com a morte; o encontro com o inominável, posto que é impossível ser

representada no inconsciente (FREUD, [1913] 1990, p. 99), ([1915] 1990, p. 327, p.

335, p. 338). ([1919] 1990, p. 302). ([1923] 1990, p. 75). Nessa medida, o que existe

é a resposta que é possível a cada ser humano elaborar diante deste impasse/passe

certo e definitivo.

Serge André afirma que “a primeira constatação efetuada pela psicanálise é a

de que o humano não pára de querer falar daquilo que não pode dizer (a mulher, a

morte, o pai, etc)” (ANDRÉ, 1994, p. 10). Em referência “àquilo” que não se pode

falar, mas que também não pára de se inscrever; insistindo para que algo possa ser

dito a seu respeito, foi preciso criar formas alternativas de expressões que

possibilitem a fala. A criação, o mito, a Arte, a escrita (entre outras) são meios de

suplência a essa hiância, que, ainda assim, não preenche totalmente a demanda.

Freud destaca o mundo da ficção como uma maneira de acesso a conteúdos

difíceis de lidar. Em relação ao tema da morte, a ficção propicia a viagem imaginária

de que necessita o humano para se defrontar com essa questão. É no campo do

domínio ilusório do mundo ficcional que “encontramos a pluralidade de vidas de que

necessitamos. Morremos com o herói com o qual nos identificamos, contudo

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

sobreviveremos a ele, e estamos prontos a morrer novamente, desde que com a

mesma segurança, com outro herói” (FREUD, [1915] 1990, p. 329).

Na ficção, Machado de Assis, através de seu personagem-narrador, oferece

vias de possibilidades para falar, ou para suportar a melancolia existencial da

transitória condição humana. Brás Cubas, ainda que se autodenominando um

“defunto autor”, parece estar recorrentemente tentando elaborar o luto da própria

morte. O acesso do narrador para falar da morte é através do domínio pelo paradoxo

dos jogos de pares antitéticos. Só é possível falar num jogo lúdico entre o transitório

e o eterno. Para aceitar a realidade factual da própria morte, os males da vida são

narrados em maior evidência, fazendo um contraposto imaginário com as vantagens

favorecidas pela nova condição de morto. É o que se percebe nas passagens

abaixo:

[...] a solidão pesava-me, e a vida era para mim a pior das fadigas, que é a fadiga sem trabalho (ASSIS, 1977, p. 298). [...] Se o leitor ainda se lembra do capítulo XXIII, observará que é agora a segunda vez que comparo a vida a um enxurro; mas também há de reparar que desta vez acrescento-lhe um adjetivo – perpétuo (ASSIS, 1977, p. 228). [...] Senhores vivos, não há nada tão incomensurável como o desdém dos finados (ASSIS, 1977, p. 147).

A narrativa é conduzida por um discurso que privilegia uma lógica própria e

atemporal. Uma lógica que se sustenta na ambigüidade divisória dos pares

antitéticos: começo-fim; nascimento-morte; campa-berço; vida–morte; sandice–

razão; entre outros, intercalados pela figura recorrente da ironia. A ironia dá um

revestimento enganoso ao tema da morte, que por esse viés aparece numa vertente

menos avassaladora. “A utilização da ironia, ao evitar para seu autor a dificuldade

inerente à utilização da expressão direta, produz prazer cômico no ouvinte” (JORGE,

2000, p. 11).

Brás Cubas introduz seu texto de modo bastante incomum, narra o próprio

óbito, no tempo verbal presente, fazendo uma comparação arrojada entre seu texto

e o Pentateuco. Muda de fisionomia recorrentemente. Apresenta-se a princípio

como um narrador com contornos visíveis numa narração figurativa. Pausa

momentânea e retoma a ironia ao narrar o número dos participantes no cortejo

fúnebre: “[...] fui acompanhado ao cemitério por onze amigos. Onze amigos! Verdade

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

é que não houve cartas nem anúncios. Acresce que chovia – peneirava – uma

chuvinha miúda, triste e constante...” (ASSIS, 1977, p. 99).

Brás Cubas ressalta com sarcasmo o discurso de um amigo na ocasião da

cerimônia. O referido senhor tomou de empréstimo o acaso da natureza, a chuva

que caia, e “engenhosamente” acrescentou ao texto, de última hora que, “a natureza

parece estar chorando a perda irreparável de um dos mais belos caracteres que tem

honrado a humanidade” (ASSIS, 1977, p. 99). Ele interpretou os sinais exteriores do

ambiente chuvoso como uma reação da natureza inconformada com a partida do

ilustre finado. O excesso que há nessa interpretação, ainda que se considerem “as

boas intenções do orador”, quando comparado ao que foi a vida do morto, já

configura discreta ironia situacional.

Ao contar esse episódio, Brás Cubas acrescenta com um tom tão lacônico,

que já intensifica e denúncia o seu propósito, “Bom e fiel amigo! Não me arrependo

das vinte apólices que lhe deixei” (ASSIS, 1977, p. 99). A forma exclamativa da

frase, recheada por dois adjetivos que pontuam a dedicação do amigo, fica atenuada

no segundo tempo da fala, que faz emergir o tipo de ironia pura, intensificada no

falso tom ingênuo. Comentando esse detalhe, Lima observa:

Mesmo que o defunto não comentasse seu não arrependimento pelas apólices que lhe deixou, o leitor não se enganaria quanto ao propósito irônico com que o discurso é exposto. A retórica empolada do orador é idêntica à enxurrada de outros que oferece a obra machadiana. A altissonância verbal compensa a ausência de idéias e disfarça o feito das apólices e dos favores (LIMA, 1981, p. 68).

O texto é rico em expressões antitéticas, seja pelo uso da ironia, em que se

diz uma coisa querendo-se dizer outra, seja pelo jogo retórico da própria antítese,

em que as oposições são colocadas no contraste das palavras ou das idéias,

quando ambas se contrapõem com a mesma força de intensidade e uma coexiste

pela outra: “razão e sandice; princípio e fim; vida e morte; mãe e inimiga; campa e

berço”, entre outras.

Ao descrever a paixão pela dama espanhola Marcela, Brás Cubas brinca

deslizando pelos mais diversos tipos de ironia, e usando o tom principalmente

retórico. Ao resumir o relato de sua paixão, declara:

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

Teve duas fases a nossa paixão, ou ligação, ou qualquer outro nome, que eu de nome não curo; teve a fase consular e a fase imperial. Na primeira, que foi curta, regemos o Xavier e eu, sem que ele jamais acreditasse dividir comigo o governo de Roma; mas quando a credulidade não pôde resistir à evidência, o Xavier depôs as insígnias, e eu concentrei todos os poderes na minha mão; foi à fase cesariana. Era o meu universo; mas, ai triste! Não é de graça. Foi-me preciso coligir dinheiro, multiplicá-lo inventá-lo (ASSIS, 1977, p. 129).

A expressão da ironia se encaixa bem ao discurso melancólico, reflete uma

amargura dissimulada. É tentar dizer ludicamente algo que faz sofrer, é uma forma

de negar a realidade. Além da preferência do uso das antífrases, o eufemismo

também é constantemente utilizado. Mencionando a relação de amor vivenciada

com Marcela (tipo de relação afetuosa, desde a origem, esclarecida na função social

bem definida) Brás Cubas comenta, usando um tipo de ironia contornante, de forma

antitética e alegórica:

Ocorre-me uma reflexão imoral, que é ao mesmo tempo uma correção de estilo. Cuido haver dito, no capítulo XIV, que Marcela morria de amores pelo Xavier. Não morria, vivia. Viver não é a mesma coisa que morrer, assim o afirmam todos os joalheiros desse mundo, gente muita vista na gramática. Bons joalheiros, que seria do amor se não fossem os vossos dixes e fiados? Um terço ou um quinto do universal comércio dos corações. [...] Marcela amou-me... Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis; nada menos (ASSIS, 1977, p. 132).

E relatando o seu envolvimento e a tentativa de convencer Marcela a

acompanhá-lo à Europa, (onde cumpriria estudos, obrigado pelo pai, fato que

precipita o fim do “romance”) diz ter recorrido ao método mais eficiente de

convencimento. “Era fasciná-la, fasciná-la muito, deslumbrá-la, arrastá-la; lembrou-

me pedir-lhe por um meio mais concreto do que súplica” (ASSIS, 1977, p. 134). O

meio mais eficaz, a compra de uma jóia, advinda de mais empréstimo sem

consentimento do avalista. Resultando na seguinte cena:

- Vens comigo? Marcela refletiu um instante. Não gostei da expressão com que passeava os olhos de mim para a parede, e da parede para a jóia; mas toda má impressão se desvaneceu, quando ela respondeu resolutamente: - Vou. Quando embarcas? - Daqui a dois ou três dias.

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- Vou (ASSIS, 1997, p. 135). [...] Achava-me feliz. Certo é que os diamantes corrompiam-me um pouco a felicidade; mas não é menos certo que uma dama bonita pode muito bem amar os gregos e os seus presentes. E depois eu confiava na minha boa Marcela; podia ter defeitos, mas amava-me... (ASSIS, 1977, p. 136).

As idéias contrárias são recorrentes no texto machadiano. O ponto de

encontro destas idéias parece brincar em alguma medida com a crueza do fato que

anunciam. Provocam um efeito de retardamento no impacto da verdade que é

anunciada. Lançam um meio-termo que dá tempo ao leitor de se acomodar com a

temeridade do inevitável. Seria esta a função da ironia no discurso melancólico? “Na

linguagem plena e viva, é o que há de mais surpreendente, mas também de mais

problemático – como pode ser que a linguagem tenha seu ponto máximo de eficácia

quando ela consegue dizer alguma coisa dizendo outra?” (LACAN, 1997, p. 255).

A narrativa atemporal confere ao “defunto autor” um poder lúdico, um saber

imaginário sobre o destino. Confere um domínio sobre a situação da morte, sobre as

demais personagens e sobre o leitor. A citação dos sentimentos de Virgília diante da

cena da morte de Brás Cubas evidencia bem esse jogo com o uso do tempo não

cronológico. Diz o narrador:

De pé, à cabeceira da cama, com os olhos estúpidos, a boca entreaberta, a triste senhora mal podia crer na minha extinção. - Morto! Morto! Dizia consigo. E a imaginação dela, como as cegonhas que um ilustre viajante viu desferirem o vôo desde o Ilisso134 às ribas africanas, sem embargo das ruínas e dos tempos, a imaginação dessa senhora também voou por sobre os destroços presentes até as ribas de uma África juvenil... Deixá-la ir; lá iremos mais tarde; lá iremos quando eu me restituir aos primeiros anos (ASSIS, 1977, p. 100).

Ao anunciar a comprovação de sua morte e o sofrimento da senhora (até

então anônima), Brás Cubas faz a insinuação de que tem algo a revelar e uma

revelação antagônica àquele momento de luto. O mistério aponta um retorno à

juventude. Antecipa uma trama, cujo segredo momentâneo aguça a curiosidade do

134 Ilisso – ribeirão da África – região Grécia antiga – que brotava no Monte Himeto. Alusão à literatura de viagem do escritor francês Chateaubriand (1768-1848), que no Itinerário de Paris a Jerusalém, diz: “Eu tinha visto, quando nós estávamos sobre a colina do Museu, as cegonhas formaram alas e voaram rumo à África.

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

leitor e alivia o torpor fúnebre da narrativa que se segue, qual seja a descrição da

morte orgânica.

O par antitético “vida-morte” é o tema privilegiado no texto. Dentre as

reminiscências da vida, a temática da morte é destacada, tanto como fato real, em

referência à morte do corpo e seus funerais, quanto como representação simbólica

em referência a perdas, desencanto, solidão e fim. A primeira morte real narrada é a

do próprio “defunto autor”, que, desde a dedicatória do livro oferecida ao verme, já

oferece um impacto. Convida o leitor a prosseguir ou desistir da leitura. Desafia o

leitor a seguir no sarcástico jogo lúdico, ou recusar-se a entrar em contato com a

nudez da carne que será digerida pelo verme.

O termo morte, ou palavras que tenham o mesmo sentido, ou a mesma

implicação como morrer, morto(a), morreu, morrido, mortal, morro, morresse, morre,

morrem, morria, mortuária, moribundo, matar, matava, matamos, matando, cadáver,

cemitério, caveira, expirar, enterro, epitáfios, fatal, féretro, funéreo, jazigo, sepulcro,

sepultura, pêsames, entre outros, aparecem do começo ao fim do texto. Lima pontua

com precisão a cadência de marcação da “aparição” da morte do começo ao fim das

Memórias póstumas.

A morte em Machado não precisa senão de uma dezena de linhas para mostrar o que gerara. Em inversão do topos clássico sobre as relações entre a obra e a morte, aquela não é o que dura além da morte, mas o que dela nasce. Entre a morte inaugural do narrador e a final do autor de Humanitas, desfilam nas Memórias as de parentes e conhecidos (LIMA, 1981, p. 71).

Partindo dessa indicação e do percurso de leitura do próprio texto, vemos um

desfile funéreo de mortes físicas135 e simbólicas que transcorrem em todo o texto.

No prólogo da 4ª edição, Machado de Assis faz uma advertência:

135. Começando por fazer uma homenagem póstuma ao seu professor da infância, o mestre Ludgero, seguindo-se pela viagem marítima para a Europa, cujo primeiro objetivo é “matar” em Brás Cubas o seu desmedido e inconseqüente amor por Marcela; que começa a seqüência de mortes físicas narradas: morre a mulher do Capitão (cap. 19). O retorno de Brás marca a morte de sua mãe (cap. 23); depois a menção da morte de seu sobrinho (cap. 25); a morte do pai (cap. 45); a morte do avarento Viegas (84); a morte do filho de Virgília e Brás (cap. 95); a da noiva de Brás (cap. 125); a de Lobo Neves (cap. 125); a de Marcela (cap. 143); a morte de D. Plácida (cap. 158); a morte de Quincas Borba (cap.159 ).

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

Há na alma deste livro, por mais risonho que pareça, um sentimento amargo e áspero, que está longe de vir dos seus modelos. É a taça que pode ter lavores de igual escola, mas leva outro vinho. Não digo mais para não entrar na crítica de um defunto, que se pintou a si e aos outros, conforme lhe pareceu melhor e mais certo (ASSIS, 1977, p. 96).

Na “alma” do livro, além do sentimento amargo e áspero, há a “galhofa”, ou o

que sobra do par melancolia-ironia – uma tristeza permeada de gozo. Em maior

destaque percebe-se a morte física, e nas entrelinhas a morte simbólica perpassa a

orgânica, revela-se na amargura renitente de desencanto com a vida e a

humanidade. Ao relatar sua morte, o narrador circula num discurso indeciso,

alternado pela melancolia, ironia, tristeza, negação... Diz-nos ele:

Agora, quero morrer tranqüilamente, metodicamente, ouvindo os soluços das damas... [...] Juro-lhe que essa orquestra da morte foi muito menos triste do que podia parecer. De certo ponto em diante chegou a ser deliciosa. A vida estrebuchava-me no peito, com uns ímpetos de vaga marinha, esvaía-se-me a consciência, eu descia à imobilidade física e moral, e o corpo fazía-se-me planta, e pedra, e lodo, e coisa nenhuma... (ASSIS, 1977, p. 100).

Se fizermos ponto na declaração “Agora quero morrer”, encontraremos

expresso um desejo articulado ao puro gozo, pois “no inferno de gozo de tristeza

desvelado pelo melancólico, o desejo é mal-dito; banido” (QUINET, 1999, p. 11). O

desejo anulado na entrega da morte, revelado nos sarcásticos mínimos detalhes de

sensações físicas, escancara a nudez da carne desprovida do élan que mistifica seu

vazio. “A essência do ser humano é o desejo e que desejamos tanto quando somos

passivos como quando somos ativos. Que desejo nos resta na melancolia quando

não nos resta nenhuma força interna? O desejo de morte” (ESPINOSA apud

QUINET, 1999, p. 11).

Esse “querer” do narrador é afirmado e negado num mesmo parágrafo, numa

substituição que alterna uma afirmativa e uma negativa, recurso que dá à afirmação

um valor irônico, intensificado136. Ao dizer que a experiência da morte “de certo

136 Freud destaca no livro dos Chistes e sua relação com o inconsciente (já apresentado na seção 3.2) esse traço próprio da figura da ironia. Utilizar alternadamente a negativa e a afirmativa, num jogo de opostos que intensifica o que se quer ironicamente destacar.

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

ponto em diante chegou a ser deliciosa”, afirma uma contraposição com a

experiência da realidade, que ao mesmo tempo o reduzia a um esvaziamento,

“imobilidade física e moral”, “a pedra, e lodo, e coisa nenhuma” (ASSIS, 1977, p.100,

grifo nosso).

O termo “coisa” já é da ordem do inominável e acompanhado de “nenhuma” é

a redução extrema ao nada (ou à falta de possibilidade de nomear o sentimento

experimentado). ”A tristeza é o afeto correlato à “dor de existir” em suas diferentes

gradações, que vão do luto à melancolia” (QUINET, 1999 p. 07). Mesmo nas

palavras de um narrador que afirma ter chegado “ao outro lado do mistério” (ASSIS,

1977, p. 301), nenhuma palavra exata foi possível dizer sobre o mistério. Nem

relatando seus próprios sentimentos na experiência com a morte, nem observado a

morte de um outro.

Por ocasião da morte de sua mãe, questiona pela primeira vez o enigma da

morte. E ainda assim fazendo analogias à situação da morte, em “tom” retórico, na

referência da morte de vultos famosos na história. Aborda a morte, de forma

impessoal, elege assim, um aparato que o distancia, e o protege da intimidade da

morte, como um lamento por perder um ente tão próximo e querido, como é peculiar

à dor de um filho ante a perda de uma mãe. Apesar de sofrer o impacto, reconhece

sua falta de habilidade em lidar com a situação e confessa: “jamais o problema da

vida e da morte me oprimira o cérebro; nunca até esse dia me debruçara sobre o

abismo do Inexplicável; faltava-me o essencial, que é o estímulo, a vertigem...”

(ASSIS, 1977, p. 146). Vejamos suas palavras diante da cena da morte de sua mãe:

Longa foi a agonia, longa e cruel, de uma crueldade minuciosa, fria, repisada, que me encheu de dor e estupefação. Era a primeira vez que via morrer alguém. Conhecia a morte de oitava; quando muito, tinha-a visto já petrificada no rosto de algum cadáver, que acompanhei ao cemitério, ou trazia-lhe a idéia embrulhada nas amplificações de retórica dos professores de coisas antigas, - a morte aleivosa de César137, a austera de Sócrates138, a orgulhosa de Catão139. Mas esse duelo do ser e não ser, a morte em ação dolorida, contraída, convulsa, sem aparelho político ou filosófico, a morte de uma pessoa amada, essa foi a primeira vez que a pude encarar. Não chorei; tinha

137 Caio Júlio César (100-44 a.C.) estadista, general e escritor romano que, tendo arruinado o poder do senado e tentado instaurar uma monarquia militar, acabou sendo assassinado por um grupo de conspiradores. 138Sócrates, (470-339 a.C.), filósofo grego, que, julgado por ter ‘desrespeitado os deuses e corrompido a juventude’, foi condenado a beber cicuta. 139 Catão. Marcos Póncio Catão (96-46 a.C.), político romano, típico sábio estóico, que se suicidou em Utica, para não assistir à tirania de César e à destruição do regime republicano.

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os olhos estúpidos, a garganta presa, a consciência boquiaberta. [...] Confesso que tudo aquilo me pareceu obscuro, incongruente, insano... (ASSIS, 1977, p. 145).

“Fiquei prostrado. E, contudo, era eu, nesse tempo, um fiel compêndio de

trivialidade e presunção” (ASSIS, 1977, p. 146). Nessas reflexões, percebe-se a

angústia provocada em função de um não saber dizer com precisão o que se passa

na morte, e para além dela. A morte, quando se manifesta ausente do aparato

“político ou filosófico” ou ainda religioso, invalida todo revestimento imaginário

dogmatizado a seu respeito. Apresenta-se na crueza da carne; desnuda a precária

relação humana com a temporalidade de sua existência, deixa a “garganta presa”,

sem palavras que a possam definir.

“[...] o temor da morte a priori é justamente o reverso da vontade de vida,

fundo comum de nosso ser” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 25). A morte como

condição da existência humana é estruturante, e justo porque a morte é certa, que o

viver é significado e resignificado muitas vezes. Seguindo o pensamento de

Espinosa, Freud e Lacan, Quinet conclui que a questão se coloca intransponível

para o melancólico porque diante de uma perda ocorre um extravio do desejo,

impedindo a libido de circular e investir em novos objetos, porque o melancólico não

quer saber do seu desejo e nem agir em direção a ele. Nas palavras de Quinet,

enquanto o desejo, por ser ativo, leva à ação e se reporta ao espírito, a tristeza é algo passivo e indica uma perda de potência no agir. Assim se o poeta, melancolicamente, diz que a tristeza não tem fim, a clínica psicanalítica mostra, a partir de Freud, que a tristeza tem uma história: esta se inicia com uma perda, se constitui como covardia moral e rejeição do saber e termina a partir de sua transmutação em gaio saber e desejo de existir (QUINET, 1999, p. 09).

O discurso melancólico é representado na imagem da morte enquanto perda

de uma “coisa” não possível de identificar e nomear. Na fase de moribundo, o

narrador vive a angústia do prenúncio da morte, marcado em referência a algo

perdido que o tempo não devolve. No capítulo VI, recebendo a visita de Virgília140, o

narrador rememora:

140 Nome da misteriosa senhora referida na cena do enterro.

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

Havia já dois anos que nos não víamos, e eu via-a agora não quem era, mas qual fora, quais fôramos ambos, porque um Ezequias141 misterioso fizera recuar o sol até os dias juvenis. Recuou o sol, sacudi todas as misérias, e este punhado de pó, que a morte ia espalhar na eternidade do nada, pôde mais que o tempo, que é o ministro da morte. Nenhuma água de juventa142 igualaria ali a simples saudade (ASSIS, 1977, p. 105, grifo nosso). [...] Quem diria? De dois grandes namorados, de duas paixões sem freio, nada mais havia ali, vinte anos depois: havia apenas dois corações murchos, devastados pela vida e saciados dela, não sei se em igual dose, mas enfim saciados (ASSIS, 1977, p. 106).

Moisés comenta que essa intemporalidade tem seu fundamento no gradativo

aperfeiçoamento da escrita machadiana, como também numa forma de repetição

que produz no personagem efeito de reencontro com o sentimento da experiência

destacada. “Brás Cubas não esconde o travo de amargura de uma existência

frustrada, como se condenado a recordar-se dela à maneira de Tântalo, num perene

círculo vicioso” (MOISÉS, 2001, p. 53). E acrescenta:

Essa intemporalidade, além de resultar do processo em que a memória se desvenda ao reconquistar o tempo perdido, decorre dos ventos míticos que atravessam brandamente os últimos romances machadianos, marcados pela transformação das personagens em símbolo. A sondagem no tempo, o regresso até a mais remota sensação, não se realiza impunemente: recordar o passado é não raro sinônimo de sofrimento (ASSIS, 1977, p. 53).

Aparentemente, há um luto elaborado de um amor vivido e saciado, esgotado

no desejo. No entanto, o tempo é evocado como tendo o domínio sobre todas as

coisas, é evocado como guardião do desejo trancado no passado. As reminiscências

são típicas do pensamento melancólico, que não suporta a realidade presente e fica

amargamente envolto nas lembranças passadas. “Os corações murchos,

devastados pela vida e saciados dela” (ASSIS, 1977, p. 106), não parecem ter

elaborado essa perda, haja vista que há um lamento instaurado que melhor se

configura no descrédito pela vida.

141 Ezequias, um dos reis mais marcantes de Judá. Sucessor do perverso Acaz. No livro bíblico de Isaías, conta-se como Ezequias, tendo orado para livrar-se de uma enfermidade mortal, foi atendido, e Deus, como sinal de sua proteção, fez o sol recuar dez graus no relógio de Acaz. 142 Água de Juventa, locução que designa uma fonte mitológica, cujas águas tinham o poder de rejuvenescer os que a bebiam.

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

Vigírlia deu-me longas notícias de fora, narrando-as com graça, com um certo travo de má língua, que era o sal da palestra; eu, prestes a deixar o mundo, sentia um prazer satânico em mofar dele, em persuadir-me que não deixava nada (ASSIS, 1977, p.106, grifo nosso).

A amargura dissimulada pela ironia faz da tristeza algo cômico, suaviza a

gravidade da enfermidade presente. “Os contrastes irônicos assumem muitas

formas, a disparidade pode ser entre a inevitabilidade de um resultado ou a certeza

de um fato e uma aparência de indeterminação, causalidades ou possibilidades

abertas” (MUECKE, 1995, p. 74). A aparente calma, na narração amena, escamoteia

a dificuldade inerente à certeza prenunciada da morte, pela evidência da doença

manifestada na carne.

A angústia frente à morte se expressa em maior evidência no capítulo VII,

intitulado “O delírio”. Esse é o maior capítulo do livro, e o que melhor resume a

fragilidade, a incerteza e a melancolia frente ao desamparo da efêmera condição

humana. Usando a linguagem do delírio, o narrador viaja até a origem dos séculos,

montado num hipopótamo, guiado por uma imagem transfigurada em mulher, sendo

ela própria a encarnação da face da morte. Freud aponta que o desejo de conhecer

a origem é o desejo que conduz o destino humano; é o desejo infantil por

excelência. É um desejo dividido em três fontes de saber – De onde venho? O que

sou? Para onde vou?

O processo de civilização não conseguiu recobrir medos e crenças (infantis)

primitivas. No mundo Antigo, as relações humanas com os avatares da natureza e

com os seus deuses eram mais próximas à realidade que vivenciavam. Aceitava-se

a incontestável ação do destino, esse já designado e revelado na voz do Oráculo.

Mesmo que não pudesse ser retirado poderia ser modificado ou amenizado pela

intervenção de algum deus. No entanto, apesar do avanço da civilização, o mito não

perdeu sua força no imaginário. Segundo Freud, esse pode ser outro recurso para

recobrir o desamparo.

O desamparo do homem, porém, permanece e, junto com ele, seu anseio pelo pai e pelos deuses. Estes mantêm sua tríplice missão: exorcizar os temores da natureza, reconciliar os homens com a crueldade do Destino, particularmente a que é demonstrada na morte, e compensá-los pelos sofrimentos e privações que uma vida civilizada em comum lhes impõe (FREUD, [1927] 1990, p. 29, grifo nosso).

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

O mito tem um papel preponderante na estruturação humana. “Foi assim que

se criou um cabedal de idéias, nascido da necessidade que tem o homem de tornar

tolerável seu desamparo, e construído com material da própria infância e da infância

da raça humana” (FREUD, [1927] 1990, p. 30). Essas idéias têm um sentido de

proteção contra os perigos da natureza e do destino, de entrar em contato

cruamente com o que há de mais contingente no destino individual e coletivo.

“Quando se chega, e em muitos outros campos além daquele do amor, há um certo

termo que não pode ser obtido no plano da èpistèmè, do saber, para ir mais além é

necessário o mito” (LACAN, 1981, p. 123).

O encontro com a misteriosa aparição acontece como uma confrontação

frente à vida e à morte. O poder sobrenatural do vulto personificado na mulher

conduz o narrador numa viagem igualmente sobrenatural, viagem no túnel do tempo;

um passado sem datas através dos séculos; através de uma existência indefinida. O

anúncio desse capítulo já se faz conduzido pela ironia. Afirma-nos o narrador que

narrar o próprio delírio é um fato inusitado, portanto, devedor da gratidão da ciência.

“Se o leitor não é dado à contemplação destes fenômenos mentais, pode saltar o

capítulo; vá direto à narração. Mas, por menos curioso que seja, sempre lhe digo

que é interessante saber o que se passou na minha cabeça...” (ASSIS, 1977, p.

108). Mais uma vez o leitor é convocado a um jogo lúdico de contrastes que provoca

a curiosidade.

A imagem da mulher é representada por Pandora143 (mitológica figura grega

guardiã da caixa que porta todos os males e também a esperança). Sua aparição é

relatada numa dimensão que avassala. É narrada em atitudes que a tornam

incompreensível como figura humana, com atributos de caráter sobrenatural. O

primeiro momento do encontro é marcado pelo espanto e pelo silêncio. O diálogo

que se segue referente à apresentação de Pandora, se autodenominando de

mulher-mãe-inimiga, forma a tríade simbólica apresentada por Freud no texto O

143 Pandora, no mito grego, é a primeira mulher da humanidade, ‘o belo mal’, modelada em argila, encomendada por Zeus a Hefesto (com ajuda de Afrodite) para que fosse ideal, fascinante e semelhante às deusas imortais. Foi dada de presente a Epimeteu, (que se esquecera do conselho de Prometeu de que não aceitasse presente de Zeus). Pandora trazia consigo uma caixa, (contendo o bem e o mal) cujo conteúdo desconhecia e a recomendação de não abri-la. Desconsiderando as ordens de Zeus, ela retirou a tampa e da caixa saíram todas as desgraças e calamidades que atormentavam a vida dos homens, só ficando a esperança presa entre as bordas, porque Pandora apressadamente fechou a caixa (HESÍODO, 1996, p. 25).

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

Tema dos três Escrínios [1913]144, onde alegoricamente o feminino encarna a

representação da morte. Palavras de Freud:

Poderíamos argumentar que o que se acha representado aqui são as três inevitáveis relações que um homem tem com uma mulher – a mulher que o dá à luz, a mulher que é a sua companheira e a mulher que o destrói; ou que elas são as três formas assumidas pela figura da mãe no decorrer da vida de um homem – a própria mãe, a amada que é escolhida segundo o modelo daquela, e, por fim, a Terra Mãe, que mais uma vez o recebe (FREUD, [1913] 1990, p. 379)

Na narrativa machadiana, a figura da mulher encarna essas vertentes

apontadas por Freud: a mulher–mãe, santa; a mulher–companheira e a mulher–

amante, pecadora, a que conduz à morte, à perdição. Brás Cubas vive todas essas

nuanças de mistérios possíveis de encarnar-se numa mulher.145 Refletindo diante da

cena da morte de sua mãe, ele expressa: “Que? Uma criatura tão dócil, tão meiga,

tão santa, que nunca jamais fizera verter uma lágrima de desgosto, mãe carinhosa,

esposa imaculada, era força que morresse assim...” (ASSIS, 1977, p.145).

Relembrando seu primeiro contato com uma mulher, o seu encontro com “a dama

espanhola, Marcela”, ele afirma: “a verdade é que Marcela não possuía a inocência

rústica, e mal chegava a entender a moral do código. “Era boa moça, lépida, sem

escrúpulos, luxuosa, impaciente, amiga do dinheiro e dos rapazes” (ASSIS, 1977, p.

127).

144

No Tema dos três escrínios, Freud desenvolve análise a partir de duas cenas de Shakespeare (uma de comédia e outra de tragédia) reportadas ao mito grego do Destino, o detalhe de uma escolha entre três elementos simbólicos. Relaciona essa escolha aos possíveis lugares que uma mulher ocupa na vida de um homem. Traz para a cena do texto o mito das Moiras (Parca; Normas) Cloto, Láquesis, e Átropos (FREUD, [1913], 1990, p. 317). As Moiras são a personificação do destino individual. Originalmente, cada ser humano tinha a sua Moira individual. Depois ela passou a ser uma divindade universal, senhora inconteste do destino de todos os homens. Essa Moira, após as epopéias homéricas, se projetou em três Moiras, e predeterminam o destino. Fiam o tempo de vida que já foi prefixado e Tânatos (a morte) comparece, não como agente, mas como executor. Cloto (fiar) segura o fuso e vai puxando o fio; Láquesis (sortear) é a que enrola o fio da vida e sorteia o nome de quem deve perecer; Átropos (alfa primitivo; inflexível) é a que não volta atrás. Sua função é cortar o fio da vida (BRANDÃO, 2000, p. 140). Na formação da tríade, as Moiras tem uma estreita relação com as Queres (Graças) e as Horas (Estações) As Horas tem relação com o tempo, e com as águas; a distribuição de chuvas. Determinam as Estações e a passagem do tempo. As Normas, da mitologia germânica, são aparentadas com as Horas e as Moiras e apresentam essa significação de tempo em seus nomes (Que podem ser traduzidos por ‘O que foi; O que é; e o que será’) O mito da Natureza transformou-se num mito humano: as deusas do tempo tornaram-se as deusas do Destino (FREUD, [1913] 1990, p. 374). 145 As três mulheres mais marcantes na vida de Brás Cubas e que podem ser compreendidas dentro dessa interpretação freudiana estão representadas na figuras de sua mãe, de Marcela e de Virgília.

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

No que diz respeito a Virgília, a mulher eleita como sua amada, Brás Cubas a

recorda e a define em dois momentos: na adolescência ele a percebe como “bonita,

fresca, saía das mãos da natureza, cheia daquele feitiço, precário e eterno, que o

indivíduo passa a outro indivíduo, para os fins secretos da criação. Era isto Virgília...”

(ASSIS, 1977, p. 152). No reencontro com ela, depois de transcorridos alguns anos,

já casada e mãe, Brás re-elabora sua definição e diz: “vi assomar a distância, uma

mulher esplêndida. Era ela; só a reconheci a poucos passos, tão outra estava, a tal

ponto a natureza e a arte lhe haviam dado o último apuro” (ASSIS, 1977, p. 179).

Na vivência do delírio, Pandora é a imagem que vem representar e cumprir o

papel da “Terra Mãe”146, a última mulher a recebê-lo nos braços. Ou ainda, a própria

imagem de Átropos transfigurada, a “senhora do destino”, a “Deusa da Morte”, a

inflexível, aquela a quem nem o poderoso Zeus147 contesta. Os termos “vulto”,

“imagem” e “figura” reforçam o aspecto mitológico da aparição: na gargalhada, há a

força que produz efeitos fenomenais; no diálogo e na face, a dualidade que

aterroriza e fascina. A própria encarnação de Pandora se dá em forma dual como

vida e morte; mãe e inimiga; fugaz e eterna; portadora do mal e da esperança.

Caiu do ar? Destacou-se da terra? Não sei; sei que um vulto imenso, uma figura de mulher me apareceu então, fitado-me uns olhos rutilantes como o sol. Tudo nessa figura tinha a vastidão das formas selváticas, e tudo escapava à compreensão do olhar humano, porque os contornos perdiam-se no ambiente, e o que parecia espesso era muita vez diáfano. Estupefato, não disse nada, não cheguei sequer a soltar um grito; mas, ao cabo e algum

146 Geia ou Gaia (Terra) não tem etiologia convincente. É concebida como mito primordial e deusa cósmica, surgiu após o Caos e antes de Eros. Por partenogênese Geia deu à luz Urano (o céu), Montes e Pontos, personificação do mar. Uniu-se a Urano e gerou filhos. Urano, porém temendo ser destronado pelos inúmeros filhos, de certo ponto adiante passou a devolvê-los ao ventre de Géia. A “Terra mãe” pesada e cansada (com o ventre cheio) pediu ajuda aos filhos para libertar-los. Encontrou só o apoio de Cronos (filho caçula), que cortou os testículos do pai. Desse corte do Céu, o sangue espalhado caiu sobre a Terra, concebendo esta, no devido tempo as Erínias, os Gigantes e as Ninfas. E dos testículos lançados ao mar, formaram uma espumarada de que nasceu Afrodite. Como origem e matriz da vida, Géia recebeu o epíteto de Magna Mater, a Grande Mãe. Guardiã da semente e da vida, em todas as culturas sempre houve ‘enterros’ simbólicos, análogos às imersões batismais, seja com a finalidade de fortalecer as energias seja de curar ou como rito de iniciação. De toda forma, esse regressus ad uterum, essa descida ao útero da terra, tem sempre a mesma conotação religiosa: a regeneração pelo contato com as energias telúricas; morrer para uma forma de vida, a fim de renascer para uma vida nova e fecunda (BRANDÃO, 2000, p. 460). 147 Zeus, deus todo poderoso do Olimpo. Os epítetos que o descrevem são inúmeros. Após o governo de Urano e de Cronos, Zeus simboliza o reino do espírito. Embora não seja um deus criador, ele é o organizador do mundo exterior e interior. Dele dependem a regularidade das leis físicas, sociais e morais. Suas muitas relações extraconjugais o tornam responsável pela maior parte da descendência do Olimpo e de alguns mortais também. Ele é o senhor do raio, da punição e do castigo e é temido por todos. Zeus simboliza o término de um ciclo de trevas e o início de uma era de luz. Partindo do Caos, da desordem primordial para a justiça. No entanto o seu poder não interfere sobre o poder do Destino e da deusa Átropos (BRANDÃO, 2000, p. 501).

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

tempo, que foi breve, perguntei quem era e como se chamava: curiosidade de delírio (ASSIS, 1977, p. 110).

Em meio ao desamparo da realidade de moribundo, Brás Cubas busca no

delírio uma possibilidade de elaboração. Através desse recurso, uma forma de

escape, entra em contato com o cerne de sua aflição. Ao apresentar-se, a mulher

diz: “[...] - chama-me Natureza ou Pandora; sou tua mãe e tua inimiga” (ASSIS,

1977, p. 110). “[...] eu não sou somente a vida; sou também a morte” (ASSIS, 1977,

p. 111). A ambigüidade configura-se como o fio condutor do delírio, assim como em

toda a narrativa. O conteúdo do delírio circula por temas que demandam profundas

reflexões. Esses indicam que o objetivo do narrador é elaborar o luto da própria

morte para escapar à melancolia da vida. O capítulo é repleto de figuras e

expressões que representam simbolicamente a morte. A mística visão encarna um

antagonismo que a inscreve fora do âmbito de humanidade, deixando-a na esfera de

divindade.

A visão estendeu o braço, segurou-me pelos cabelos e levantou-me ao ar, como se fora uma pluma. Só então pude ver-lhe de perto o rosto, que era enorme. Nada mais quieto; nenhuma contorção violenta, nenhuma expressão de ódio ou ferocidade; a feição única, geral, completa, era a da imparcialidade egoísta, a da eterna surdez, a da vontade imóvel. Raivas, se as tinha, ficavam encerradas no coração. Ao mesmo tempo, nesse rosto de expressão glacial, havia um ar de juventude, mescla de força e viço, diante do qual me sentia eu o mais débil e decrépito dos seres (ASSIS, 1977, p. 110).

A primeira evocação à morte sofrida pelo narrador aparece na flexibilidade em

que o corpo muda de forma, apontando a liberdade de tomar várias formas, ao

mesmo tempo em que, quando transformado na “Summa Theológica”148 de S.

Tomás, perde a flexibilidade, passando a sentir o oposto, a “mais completa

imobilidade; e ainda agora me lembra que, sendo as minhas mãos os fechos do

livro, e cruzando-as eu sobre o ventre, alguém as descruzava (Virgília decerto),

porque a atitude lhe dava a imagem de um defunto” (ASSIS, 1977, p. 108). Essa

atitude, que é referida a Virgília, é pertinente com uma afirmação de Freud de que

148

Suma teológica, principal escrito de Tomás de Aquino (1223-1275), propondo uma nova sistematização à ‘doutrina sagrada’, que se tornará o texto de ensino da teologia na maioria das escolas católicas a partir do século XVI.

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

“Quando se trata da morte de outrem, o homem civilizado cuidadosamente evita falar

de tal possibilidade no campo auditivo da pessoa condenada” (FREUD, [1915] p.

321).

Na percepção do delírio, Brás Cubas refere conhecer a região dos gelos

eternos. “O silêncio daquela região era igual ao do sepulcro: dissera-se que a vida

das coisas ficara estúpida diante do homem” (ASSIS, 1977, p. 109). Um ambiente

marcado pelo silêncio, convoca à reflexão, é uma pausa ante o “burburinho” fugaz

da vida. Uma situação que resulta em texto mudo, sem a necessidade de palavras,

uma vez que o impacto provoca a mudez. A mudez pode ser entendida como

representando a deusa da Morte, aquela diante de quem nada se tem a dizer. Freud

afirma na Interpretação dos sonhos e repete no Tema dos três escrínios que “nos

sonhos, o silêncio e a mudez são uma representação comum à morte” (FREUD,

[1913] 1990, p. 371). Inúmeros vocábulos são usados (frio, branco, eterno, séculos,

tempo, viagem, nevoeiro) também como significantes que nomeiam a morte.

O encontro com a misteriosa aparição é também um confronto entre a vida e

a morte. O efeito retrospectivo dos séculos (viagem no tempo) vislumbrado através

de um nevoeiro é apenas um entre os inúmeros significantes que representam a

morte e que são parte da visão sobrenatural conferida ao delirante. É uma

antecipação da morte como condição material de existir, porém relacionando a morte

física com a morte do sentido de viver. “Não é raro ver os melancólicos delirarem,

terem perdido sua própria personalidade e terem sofrido uma metamorfose”

(QUINET, 1999, p. 41).

O delírio é uma possibilidade apontada por Freud, no texto Luto e Melancolia.

Quando o trabalho de luto exige que o teste de realidade seja reconhecido pelo ego,

ou seja, que o objeto amado não mais exista, essa exigência provoca uma oposição

reconhecida como compreensível, porque não se abandona de bom grado uma

posição libidinal. “Essa oposição pode ser tão intensa, que dá lugar a um desvio da

realidade e a um apego do objeto por intermédio de uma psicose alucinatória

carregada de desejo” (FREUD, [1915] 1990, p. 278). Através do delírio, é possível a

Brás Cubas conhecer a origem de todas as coisas e observar a fragilidade da

estrutura humana. Nas palavras do delirante:

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

[...] Aí vinham à cobiça que devora, a cólera que inflama, a inveja que baba, e a enxada e a pena, úmidas de suor, e a ambição, a fome, a vaidade, a melancolia, a riqueza, o amor, e todos agitavam o homem, como um chocalho, até destruí-lo, como um farrapo. Eram as formas várias de um mal, que ora mordia a víscera, ora mordia o pensamento, e passeava eternamente as suas vestes de arlequim, em derredor da espécie humana. A dor cedia alguma vez, mas cedia à indiferença, que era um sono sem sonhos, ou ao prazer, que era uma dor bastarda. Então o homem flagelado e rebelde, corria diante da fatalidade das coisas, atrás de uma figura nebulosa e esquiva, feita de retalhos, um retalho de impalpável, outro de improvável, outro de invisível, cosidos todos a ponto precário, com a agulha da imaginação; e essa figura, nada menos que a quimera da felicidade, - ou lhe fugia perpetuamente, ou deixava-se apanhar pela fralda, e o homem a cingia ao peito, e então ela ria, como um escárnio, e sumia-se, como uma ilusão (ASSIS, 1977, p. 112).

A vida é apresentada frente a um real devastador. A disputa acirrada entre

pólos opostos perpassa marcadamente a história. Não há qualquer possibilidade de

sustentação satisfatória no transcorrer dos séculos. O homem é mostrado frente às

misérias, flagelos e destruições, completamente entregue à fatalidade de males e de

um acaso sem perspectivas. A narrativa toma um rumo de extremo pessimismo e se

conduz por uma vertente que leva o delirante ao convencimento de entregar-se à

morte, pois o destino e perspectiva humanos são pura calamidade. “Cada século

trazia a sua porção de sombra e de luz, de apatia e de combate, de verdade e de

erro, e o seu cortejo de sistemas, de idéias novas, de novas ilusões...” (ASSIS, 1977,

p. 113). Como um fuso circular a tecer com o mesmo fio de ambigüidades, a vida se

repete num enigmático circuito de lamento interminável.

A vida tinha assim uma regularidade de calendário, fazia-se a história e a civilização, e o homem, nu e desarmado, armava-se e vestia-se, construía o tugúrio e o palácio, a rude aldeia e Tebas149 de cem portas, criava a ciência, que perscruta, e a arte que enleva, fazia-se orador, mecânico, filósofo, corria a face do globo, descia ao ventre da terra, subia à esfera das nuvens, colaborando assim na obra misteriosa, com que entretinha a necessidade da vida e a melancolia do desamparo (ASSIS, 1977, p. 113).

O desamparo humano parece ser o fio condutor da vida. Seja qual for a

circunstância em que esse fato se apresente na linguagem do delírio, apenas

149 Tebas, cidade egípcia, capital do alto Egito no segundo milênio a.C. Segundo a Ilíada de Homero, era cidade de cem portas, onde, através de cada uma, podiam passar duzentos homens com carros e cavalos.

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

comprova uma realidade dura de aceitar, portanto bem escamoteada em toda a

tessitura do aparato social. A possibilidade que resta é aceitar e elaborar que a

morte é o melhor saldo da vida. A retrospectiva é pertinente à reação melancólica,

que busca no passado a ancoragem que está perdida no momento presente. O

delírio possibilita ao moribundo a experiência do inexplicável e a tentativa de

aceitação do que não é possível de aceitar na plenitude da racionalidade.

“Que há entre a vida e a morte? Uma curta ponte” (ASSIS, 1977, p. 269).

Com essa sentença Brás Cubas atenua o pesar do anúncio da morte precoce de

sua noiva aos dezenove anos de idade (provocada por uma epidemia). Mesmo a

“curta ponte” não oferecendo a extensão verdadeira e mensurável para o que existe

“entre a vida e a morte,” é uma tentativa de responder à hiância que se coloca diante

de tal questão. Retomamos na narrativa a presença funesta, nas inúmeras situações

pontuais das citações da morte, com as quais Brás Cubas privilegiou marcar suas

Memórias.

Ao falar da escola relembrando a infância, também marcada por “matar” aulas

e divertir-se fora do contexto de estudos, Brás Cubas relembra ironicamente seu

velho mestre das primeiras letras. Caracteriza sua passagem pela vida de maneira

medíocre. Desrespeitado pelos alunos, repetindo uma rotina de trabalho de enfados,

no ranço da obrigação. Caracteriza a marca de uma vida melancólica; de uma morte

simbólica que antecipa a morte orgânica.

E fizeste isto por vinte e três anos, calado, obscuro, pontual, metido numa casinha da rua do piolho, sem enfadar o mundo com a tua mediocridade, até que um dia deste o grande mergulho nas trevas, ninguém te chorou, salvo um preto velho, - ninguém, nem eu, que te devo os rudimentos da escrita. Chamava-se Ludgero o mestre; quero escrever-lhe o nome todo nesta página: Ludgero Barata, - um nome funesto, que servia aos meninos de eterno mote e chufas (ASSIS, 1977, p. 125).

A homenagem póstuma fica apenas na intenção, haja vista o propositado uso

de ironia até na metáfora escolhida no sobrenome do mestre. É uma citação que soa

como mais um descaso à memória do falecido que mais uma vez é rebaixado em

sua função e mestria. A ironia disfemística é usada pra degradar a imagem do

professor e reduzi-lo ao aspecto de “coisa”, resto humano. Amargura personificada.

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

A bordo do navio, rumo à Europa, Brás expressa a “idéia fixa” de mergulhar

no oceano, repetindo o nome de Marcela. Desiste de seu “fúnebre projeto”, ou,

melhor dizendo, o projeto é interceptado pelo confronto da morte real da mulher do

capitão. “Fiquei só; mas a musa do capitão varrera-me do espírito os pensamentos

maus; preferi dormir, que é um modo interino de morrer. [...] Eu que meditava ir ter

com a morte, não ousei fitá-la quando ela veio ter comigo” (ASSIS, 1977, p. 138).

Lima destaca a forma seca e irônica de como o óbito é descrito e o oportunismo

descabido do capitão, que por ocasião do enterro, feito à moda marítima, se

aproveita para divulgar sua má poesia (LIMA, 1981, p. 70).

De volta da Europa, Brás Cubas enfrenta a morte da mãe, faz um período de

recolhimento na Tijuca para o luto; breve tempo que culmina no encontro com

Eugênia (“a flor da moita”) marcada em vida por uma insígnia no corpo, como o real

da morte encarnado. O defeito físico da moça reflete também como uma morte

social. Schwarz observa sobre “a flor da moita” (título do capítulo XXX), em que é

narrado o encontro de Brás Cubas e Eugênia, que o encanto do signo “flor”, ali

empregado, não tem essa função, já é uma ironia, haja vista que, nesse caso, faz

referência a sua origem. “Designa com desprezo a moça nascida fora do casamento,

concebida atrás do arbusto, por assim dizer no matinho” (SCHWARZ, 1990, p. 81).

Seguindo o viés da ironia, a deficiência física é acentuada em maior escala e

determinante do fim do breve idílio campestre entre Brás Cubas e a moça. Em sua

reflexão Brás Cubas pontua: “O pior é que era coxa. Uns olhos tão lúcidos, uma

boca tão fresca, uma compostura tão senhoril; e coxa! Esse contraste faria suspeitar

que a natureza é às vezes um imerso escárnio. Por que bonita, se coxa? Por que

coxa, se bonita” (ASSIS, 1977, p. 160). Dessa reflexão, o narrador antecipa a morte

simbólica de Eugênia, o que se concretiza na petição de miséria em que se

transforma sua vida; indo, tempos depois, ser encontrada num cortiço da periferia.

[...] Em verdade vos digo que toda filosofia humana não vale um bar de botas curtas. Tu, minha Eugênia, é que não as descalçastes nunca; fostes aí pela estrada da vida, manquejando da perna e do amor, triste como os enterros dos pobres, solitária, calada, laboriosa, até que vieste também para esta outra margem... O que eu não sei é se a tua existência era muito necessária ao século. Quem sabe? Talvez um comparsa de menos fizesse patear à tragédia humana (ASSIS, 1977, p. 163, grifo nosso).

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

Uma outra morte simbólica que antecipa a do corpo físico é a da “bela

Marcela”. O reencontro de Brás com Marcela, depois da longa estadia na Europa, foi

marcado pelo acaso. Ao entrar numa loja para consertar o vidro do relógio que caíra,

é com espanto e profundo mal-estar que ele a reconhece. A descrição é digna de

nota, inclusive por ter sido designada pelo narrador como um curioso espetáculo.

Não podia ter sido feia; ao contrário, via-se que fora bonita, e não pouco bonita; mas a doença e a velhice precoce destruíram-lhe a flor das graças. As bexigas tinham sido terríveis; os sinais, grandes e muitos, faziam saliências e encarnas, declives e aclives, e davam uma sensação de lixa grossa, enormemente grossa. Eram os olhos a melhor parte do vulto, e aliás tinham uma expressão singular e repugnante, que mudou, entretanto, logo que comecei a falar. Quanto ao cabelo, estava ruço e quase tão poento como os portais da loja. Num dos dedos da mão esquerda fulgia-lhe um diamante. Crê-lo-eis, pósteros? Essa mulher era Marcela (ASSIS, 1977, p. 165).

A assombrosa descrição da mulher, assolada pela decrepitude da doença e

da sorte, fez Brás Cubas refletir sobre os desatinos do passado e analisar

brevemente a validade deles. “Eu deixei-me ir ao passado, e, no meio das

recordações e saudades, perguntei a mim mesmo por que motivo fizera tanto

desatino. Não era certamente a Marcela de 1822...” (ASSIS, 1977, p. 165). A marca

da deficiência encarnada na pele mais uma vez fez Brás Cubas antecipar a morte

simbólica, antes da real, manifesta na sensação interna de repugnância. “A verdade

é que eu me sentia pungido e aborrecido” (ASSIS, 1977, p. 166). E o efeito do

encontro, foi de certa forma, tão avassalador que saindo dali para a casa da noiva

(Virgília), faz uma alucinação visual, condensando o rosto de Marcela e o de Virgília.

“De repente morre-me a voz nos lábios, fico tolhido de assombro. Virgília... Seria

Virgília aquela moça? [...] As bexigas tinham-lhe comido o rosto; [...] aparecia-me

agora amarela, estigmada pelo mesmo flagelo, que devastara rosto da espanhola”

(ASSIS, 1977, p. 169). A segunda morte de Marcela (a morte física) acontece

testemunhada por Brás Cubas.

[...] Vi morrer no hospital da ordem, adivinhem quem?... A linda Marcela; e via-a morrer no mesmo dia em que, visitando um cortiço, para distribuir esmolas, achei... Agora é que não são capazes de adivinhar... Achei a flor da

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

moita, Eugênia, a filha da Dona Eusébia e do Vilaça, tão coxa como a deixara, e ainda triste. [...] Sei que continuava coxa e triste. Foi com esta impressão profunda que cheguei ao hospital, onde Marcela entrara na véspera, e onde a vi expirar meia hora depois, feia, magra, decrépita... (ASSIS, 1977, p. 299).

Eugênia nasce com uma marca na carne, que lhe marca também um lugar

simbólico na realidade, o lugar de morta no contexto social; marca essa que o seu

desejo não consegue ultrapassar. Toda a “graça” física e espiritual esculpidas na

“flor” se apaga no “espinho” encravado na carne. Brás Cubas, embora seduzido,

deixa-se dominar, é capturado no significante, naquilo que evidentemente falta como

presença na carne. O idílio transcorre sob o signo de quatro borboletas (SCHWARZ,

1990, p. 86). (como as fases da sedução) as duas primeiras coloridas, anúncio de

esperança, indo culminar na borboleta preta, cuja morte o narrador descreve

demonstrando crueldade, fato evidente da comparação simbólica entre a última

borboleta preta e a flor da moita.

A morte física do pai de Brás também vai acontecer em referência preliminar à

morte simbólica. Foi por ocasião do rompimento do noivado de Brás Cubas com

Virgília. Fato bem demarcado, e sentido com decepção, na incompetência de Brás

Cubas, ter dado oportunidade à moça de preferir um outro noivo que lhe prometesse

títulos advindos de uma promissora carreira política.

Meu pai ficou atônito com o desenlace, e quer-me parecer que não morreu de outra coisa. Eram tatos os castelos que engendrara, tantos e tantíssimos os sonhos, que não podia vê-los assim esboroados, sem padecer um forte abalo no organismo. A princípio não quis crê-lo. Um Cubas! Um galho da árvore ilustre dos Cubas! E dizia isso com tal convicção, que eu, já então informado da nossa tanoaria, esqueci um instante a volúvel dama, para só contemplar aquele fenômeno, não raro, mas curioso: uma imaginação graduada em consciência. - Um Cubas! Repetia-me ele na seguinte manhã, ao almoço. [...] Mas eu era moço, tinha o remédio em mim mesmo. Meu pai é que não pôde suportar facilmente a pancada. Pensando bem, pode ser que não morresse precisamente do desastre; mas que o desastre complicou as últimas dores, é positivo. Morreu daí a quatro meses – acabrunhado, triste, com uma preocupação intensa e contínua, à semelhança de remorso, um desencanto mortal, que lhe substituiu o reumatismo e tosses (ASSIS, 1977, p. 172).

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

As notas em referência ao velório são minuciosa e paulatinamente

detalhadas, sugerindo a dor sentida no passo a passo de um rito, sofrido,

compungido e necessário, à elaboração do luto. O capítulo inteiro é descrito em um

longo período descrevendo o ritual funéreo, e conclui ao fim da comovida descrição,

num outro período, breve, com efeito irônico o seguinte contra-senso: “Isto que

parece um simples inventário, eram notas que eu havia tomado para um capítulo

triste e vulgar que não escrevo” (ASSIS, 1977, p. 173, grifo nosso).

Soluços, lágrimas, casa armada, veludo preto nos portais, um homem que veio vestir o cadáver, outro que tomou a medida do caixão, caixão, essa, tocheiros, convites, convidados que entravam, lentamente, a passo surdo, e apertavam a mão à família, alguns tristes, todos sérios e calados, padre, sacristão, rezas, aspersões d’água benta, o fechar do caixão a prego e martelo, seis pessoas que tomam da essa, e o levantam, e o descem a custo pela escada, não obstante os gritos, soluços e novas lágrimas da família, e vão até o coche fúnebre, e o colocam em cima e transpassam e apertam as correias, o rodar do coche, o rodar dos carros, um a um ... (ASSIS, 1977, p. 173).

Ainda referindo “luto pesado e profundo silêncio”, detalha os trâmites da

partilha que resulta em briga com a irmã e o cunhado. Lamenta o episódio como

sendo comparável à doença que marcou a face de Marcela e lhe trouxe uma

sentença precoce da morte. “Fizeram-se finalmente as partilhas, mas nós estávamos

brigados. [...] Como bons irmãos que éramos. Mas estávamos brigados. Tal qual a

beleza de Marcela, que se esvaziou com as bexigas (ASSIS, 1977, p. 176). Como

resultante da divisão dos bens, segue-se o rompimento com a família, marcando

uma fase de afastamento. “Vivi meio recluso, indo de longe em longe a algum baile,

ou teatro, ou palestra, mas a maior parte do tempo passei-a comigo mesmo. Vivia;

deixava-me ir ao curso e recurso dos sucessos e dos dias, ora buliçoso, ora apático,

entre a ambição e o desânimo” (ASSIS, 1977, p. 173).

É em meio a esse estado de ambígua apatia, que acontece o reencontro com

Virgília. O reencontro vai selar a saga de um amor proibido, intenso e marcado

também pela insígnia da ironia e da morte. Construído à revelia da situação, haja

vista Virgília estar casada, tornando instigante a conquista do fruto proibido. “Sim

senhor, amávamos. Agora que todas as leis sociais no-lo impediam, agora é que nos

amávamos deveras. Achávamo-nos jungidos uma ao outro, como duas almas que o

poeta achou no purgatório” (ASSIS, 1977, p. 188). O adultério passa a ser um

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

detalhe atribuído ao destino. “Pobre destino! Onde andarás agora, grande

procurador dos negócios humanos?” (ASSIS, 1977, p. 188).

Esse enlace “fora da lei” é vivenciado na cômoda ironia oportunista do acesso

de Brás Cubas à casa da amante, pelo fato de desfrutar da amizade do marido

traído, e até consolá-lo nas melancolias da vida. Compartilha com ele da opinião de

que Virgília “era a perfeição mesma, um conjunto de qualidades sólidas e finas,

amorável, elegante, austera, um modelo. E a confiança não parava aí. De fresta que

era, chegou à porta escancarada” (ASSIS, 1977, p. 190). Caracterizando uma ironia

situacional. O “romance” todo é vivenciado em meio a uma situação dúbia e em

“semi presença” do marido. Compartilham também o mesmo projeto de filho, que

morre ainda feto.

Eu só pensava naquele embrião anônimo, de obscura paternidade, e uma voz secreta me dizia: é teu filho. Meu filho! E repetia estas duas palavras, com certa voluptuosidade indefinível, e não sei que assomos de orgulho (p. 233). [...] Uma tarde, após algumas semanas de gestação, esboroou-se todo o edifício das minhas quimeras paternais. Foi-se um embrião... [...] Tive a notícia por boca do Lobo Neves, que me deixou na sala, e acompanhou o médico à alcova da frustrada mãe (ASSIS, 1977, p. 238).

Antecedendo a morte do feto, futuro filho de Virgília e Brás (ou de Lobo

Neves), aconteceu a morte do avarento Viegas, parente de Virgília. “Viegas passou

aí de relance, com os seus setenta anos, abafados de asma, desconjuntados de

reumatismo, e uma lesão de coração por quebra” (ASSIS, 1977, p. 228). Virgília

cuidou do enfermo com esperanças de ver o filho incluído no testamento do mesmo,

sem obter êxito. Essa morte é narrada num extremo clima de ironia. O moribundo

negocia um imóvel com um comprador, num diálogo de leilão, até a última hora, e

morre repetindo (como uma gagueira) as primeiras sílabas do valor pleiteado e

ardorosamente defendido. “- Não... não... quar... quaren... quar... quar... Teve um

acesso de tosse, e foi o último; daí a pouco expirava ele... (ASSIS, 1977, p. 233).

O amor adúltero de Brás e Virgília conheceu o mesmo ciclo peculiar à vida.

Circula no desejo ardente aguçado no clima do subterfúgio proibido, “insaciável

como a morte” (ASSIS, 1977, p. 196); clandestinamente dividido no mesmo teto com

o matrimônio; e no sossego do “recanto da Gamboa”, metodicamente preparado e

temperado com “mistério e solidão” (ASSIS, 1977, p. 204). Só sobrevive exatamente

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

na indecisão da escolha entre o amor e a conveniência. “Vi que era impossível

separar duas coisas que no espírito dela estavam inteiramente ligadas: o nosso

amor e a consideração pública” (ASSIS, 1977, p. 204). Decidir entre o marido e o

amante e abdicar de um dos dois não parece representar para ela nenhum conflito.

“Virgília era capaz de iguais e grandes sacrifícios para conservar ambas as

vantagens, e a fuga só lhe deixava uma” (ASSIS, 1977, p. 204).

No Mal estar na Civilização, Freud aponta as restrições culturais como uma

das três fontes de sofrimento humano. “[...] a inadequação das regras que procuram

ajustar os relacionamentos mútuos dos seres humanos na família, no Estado e na

sociedade” (FREUD, [1929] 1990, p. 105). Argumenta que não de bom grado que a

criatura humana abre mão de um prazer já experimentado, mas a troco de uma

negociação entre as instâncias do ego e as vantagens provenientes da civilização.

“Enfim, de que nos vale uma vida longa se ela se revela difícil e estéril em alegrias, e

tão cheia de desgraças que só a morte é por nós recebida como uma libertação?”

(FREUD, [1929] 1990, p.108, grifo nosso).

Virgília é descrita por Brás Cubas como “o grão pecado de sua juventude”,

Embora comprometidos em um casamento agendado pelas famílias e com vistas a

uma carreira política, romperam sem dor, só vindo a descobrir o amor quando

Virgília é socialmente impedida, por estar casada, mediante própria escolha, com o

promissor político Lobo Neves. O reencontro que culmina numa explosão de amor

clandestino é justificado por Brás Cubas em função da oportunidade, “[...] Por que se

nenhum de nós estávamos verde para o amor, ambos estávamos para o nosso

amor: distinção fundamental. Não há amor possível sem a oportunidade dos

sujeitos” (ASSIS, 1977, p. 187).

Mesmo rompendo as limitações sociais e vivenciando a explosão do amor,

em vias alternativas e camufladas, não houve como escapar à impossibilidade do

amor. Lacan argumenta no Seminário Mais, ainda [1972-73] que o inconsciente

demarca “que, o desejo do homem é o desejo do outro, e que o amor, se aí está

uma paixão que pode ser ignorada do desejo, não menos lhe deixa seu alcance.

Quando se olha para lá mais de perto, vêem-se as devastações” (LACAN, 1996, p.

12). Brás Cubas sintetiza sua aventura amorosa, sinalizando essa demanda do amor

que não pára de demandar, bem definido em sua contemplação dos olhos e boca da

amada: “Eu deixei-me estar a vê-los, a namorar-lhe a boca, fresca como a

madrugada, e insaciável como a morte” (ASSIS, 1977, p. 196).

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

Sem encontrar uma explicação plausível para o desencanto do amor, Brás

Cubas, recorre ao mítico exemplo do amor das Mil e uma noites, em que a sentença

prévia de morte, faz a esposa-amante Sheherazade buscar uma estratégica saída, a

sedução ao desejo de saber do outro. Usando propositadamente no não

(des)velamento da palavra, a jovem porta-se como aquela que “causa” o desejo e

não como a que o satisfaz, possibilitando deslizar um enigma pelos revezes da

palavra, invólucro do amor. “Todos sabem que Xerazade [sic] foi uma extraordinária

sedutora porque mantinha o prazer do sultão suspenso a sua fala. Xerazade [sic]

usava com maestria uma das mil armas sedutoras da linguagem: sua capacidade de

narrar” (Perrone-Moisés, 1990, p. 14). Estratégia que Virgília não soube manejar

totalmente, deixando escapar o declínio do amor, segundo a constatação de Brás

Cubas.

E assim reatamos o fio da aventura, como a sultana Sheherazade150 o dos seus contos. Esse foi, cuido eu, o ponto máximo do nosso amor, o cimo da montanha, donde por algum tempo divisamos os vales de leste e de oeste, e por cima de nós o céu tranqüilo e azul. Repousado esse tempo, começamos a descer a encosta com as mãos presas ou soltas, mas a descer, a descer... (ASSIS, 1977, p. 227). [...] Veja bem o quadro: numa casinha da Gamboa, duas pessoas que se amam há muito tempo, uma inclinada para a outra, a dar-lhe um beijo na testa, e a outra a recuar, como se sentisse o contato de uma boca de cadáver. Há aí, no breve intervalo, entre a boca e a testa, antes do beijo e depois do beijo, há aí largo espaço pra muita coisa, - a contração de um ressentimento, - a ruga de desconfiança, - ou enfim o nariz pálido e sonolento da saciedade... (ASSIS, 1977, p. 240).

Uma nova viagem de Virgília em função da carreira política do marido serve

de pretexto ao rompimento e fim do amor, as despedidas acontecem aparentemente

sem grandes padecimentos, chegam quase à formalidade. Mas na franqueza da

meditação interior, o narrador é traído por sua solidão. Brás Cubas deixa escapar na

sua dor a melancolia que marca a impossibilidade da viva permanência do amor.

150 Sheherazade, personagem principal das Mil e uma noites. Para escapar da morte, a narradora conta todas as noites uma estória ao sultão (seu marido) usando a estratégia de não concluí-la, mas deixar o fio de condução narrativa para que a estória possa continuar numa outra, na noite seguinte, adiando assim sua sentença de morte, determinada desde a noite de núpcias.

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

Ai dor! Era preciso enterrar magnificamente os meus amores. Eles lá iam, mar em fora, no espaço e no tempo, e eu ficava-me ali numa ponta de mesa, com meus quarenta e tantos anos, tão vadios e tão vazios; ficava-me para os não ver nunca mais, porque ela poderia tornar e tornou, mas o eflúvio da manhã quem é que o pediu ao crepúsculo da tarde? (ASSIS, 1977, p. 258).

É nesse espírito que haverá novo reencontro, em um baile, em que a dança e

a proximidade física confirmam a morte do amor. O encontro convoca as

reminiscências do antigo amor. Para expressar seus sentimentos após o baile, o

narrador empresta voz a um morcego e esse lhe adverte. “Senhor Brás Cubas, a

rejuvenescência estava na sala, nos cristais, nas luzes, nas sedas, enfim, nos

outros” (ASSIS, 1977, p. 277). O retorno físico de Virgília, em nada modifica o

desencanto do amor, antes vibrante, mesmo na impossibilidade da legalidade social.

Atendendo a um pedido de Virgília, Brás Cubas presta assistência à velha

senhora D. Plácida, que chega ao fim da vida em situação de miséria. Outrora

apadrinhada por Virgília e Brás Cubas e guardiã deste adúltero amor na casinha da

Gamboa. Ficara viúva aos quinze anos de um alfaiate que morreu tísico e lhe deixou

uma filha, D. Plácida narra sua história de vida, pontuando os detalhes de eventos

marcados por muitas agruras. Uma vida de miséria, em meio a muito trabalho e

pouca remuneração, morando em guetos, e em condições insalubres; até conseguir

a proteção que goza no momento. Brás Cubas destaca o fato de que ter

presenteado a velha Plácida com uma “pratinha”, o fez merecedor de suas

confidências, sobre as quais faz algumas irônicas reflexões:

É de crer que D. Plácida não falasse ainda quando nasceu, mas se falasse podia dizer aos autores de seus dias: - Aqui estou. Para que me chamastes? - Chamamos-te para queimar os dedos nos tachos, os olhos na costura, comer mal, ou não comer, andar de um lado pro outro, na faina, adoecendo e sarando, com o fim de tornar a adoecer e sarar outra vez, triste agora, logo desesperada, amanhã resignada, mas sempre com as mãos no tacho e os olhos na costura, até acabar na lama ou no hospital; foi para isso que te chamamos, num momento de simpatia (ASSIS, 1977, p. 213).

Profecia cumprida. Apesar do dinheiro ganho como indenização pelos

préstimos ao casal adúltero da Gamboa, D. Plácida deixou-se iludir por um

casamento que lhe custou todos os recursos, levada à casa de Misericórdia, já no

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

preâmbulo da morte. Brás Cubas comenta: “achei um molho de ossos, envolto em

molambos, estendida sobre um catre velho e nauseabundo; fi-la transportar para a

Misericórdia, onde lá ela morreu uma semana depois. Minto: amanheceu morta: saiu

da vida às escondidas, tal qual entrara” (ASSIS, 1977, p. 287).

A morte de Lobo Neves é anunciada como em continuidade da rotina de

trabalhos e da carreira política. “Morria com o pé na escada ministerial” (ASSIS,

1977, p. 293). Ou entre o movimento de “rotação e translação” (ASSIS, 1977, p.

293). As reflexões diante dessa morte geram uma reação de remorso, sem, no

entanto, arrependimentos. As reações sinceras de Virgília ao chorar a morte do

marido provocam certa reação ambígua em Brás Cubas, dividida entre angústia e

ciúmes. “Digo-vos que as lágrimas eram verdadeiras. Eu fui ao cemitério: e, para

dizer tudo, não tinha muita vontade de falar, levava uma pedra na garganta ou na

consciência” (ASSIS, 1977, p. 293). A cena desse enterro gera as reflexões que

suscita numa filosofia própria à ocasião. A “filosofia dos epitáfios” (capítulo CLI) que

vale destacar.

Saí, afastando-me dos grupos, e fingindo ler os epitáfios. E, aliás, gosto de epitáfios; eles são, entre a gente civilizada, uma expressão daquele pio e secreto egoísmo, que induz o homem a arrancar à morte um farrapo ao menos da sobra que passou. Daí vem, talvez, a tristeza inconsolável dos que sabem os seus mortos na vala comum; parece-lhes que a podridão anônima os alcança a eles mesmos (ASSIS, 1977, p. 293).

A última morte (física) referida por Brás Cubas é a do amigo de infância,

Quincas Borba, o filósofo, autor da teoria do Humanitismo. Voltaremos a falar de

Quincas Borba no livro que leva seu nome. Aqui só cabe referir sua proximidade de

Brás Cubas, sendo confidente de suas melancolias. Desde o convívio da infância, a

morte social, enquanto esteve mendigo e a morte simbólica marcada na

semidemência. “Morreu pouco tempo depois em minha casa, jurando e repetindo

sempre que a dor era uma ilusão...” (ASSIS, 1977, p. 300).

Brás Cubas escolhe fechar sua narrativa com “negativas”, última descarga da

amargura, e desprezo pela vida dirigida ao leitor. Todo ressentimento de sua saga

resumida com muita força na soma de ilusões que comporta a estrutura humana.

“De modo que, se eu disser que a vida humana nutre de si mesma outras vidas,

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

mais ou menos efêmeras, como o corpo alimenta os seus parasitas, creio não dizer

uma coisa inteiramente absurda” (ASSIS, 1977, p. 292).

Apesar de começar o texto pela narrativa da própria morte, privilegiando a

descrição fúnebre da morte orgânica, não é a morte nessa vertente de realidade que

revela traços de melancolia no discurso de Brás Cubas, mas a morte na sua vertente

simbólica; a morte do desejo de viver; o desencanto diante do desnudamento

humano. O discurso é atravessado pelo pensamento caótico, fragmentado, marcado

por elementos inconstantes, disfarçados e sustentados pela figura recorrente da

ironia.

Brás Cubas encarna com muita propriedade a fragilidade constante do advir

humano. Seu desejo circula com muita rapidez, não tendo sustentação prolongada

em nenhuma causa ou objeto específico. Seu modo de vida reflete uma constante

insatisfação que o conduz sempre a um eterno recomeço, expresso num discurso

irônico e amargo. Narrando seus préstimos numa instituição de caridade, o mesmo

afirma: “Os quadros eram tristes; tinham a monotonia da desgraça, que é tão

aborrecida como a do gozo, e talvez pior” (ASSIS, 1977, p. 298). Urania Peres,

afirma no texto Dúvida melancólica, dívida melancólica, vida melancólica, que “o

melancólico caminha guiado pela perda. Sentindo-se ele próprio um objeto perdido,

o seu vínculo com objetos é frágil e a sustentação de seu desejo vacilante” (PERES,

1996, p. 66).

A dor de Brás Cubas revela-se na descrença pelo potencial humano e pelo

mundo que o cerca. A melancolia evocada em seu discurso, ao mesclar-se com a

ironia, dá um revestimento ilusório, aparece como se aquela fosse a condição

natural dos viventes. Tal fatalidade o leva a concluir a vida, dizendo ter como saldo o

não ter transmitido a nenhuma criatura o legado da miséria humana (ASSIS, 1977, p.

301). Seu sonho era produzir “um emplasto anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a

nossa melancólica humanidade” (ASSIS, 1977, p. 101), ironicamente foi sua causa

mortis. Impedido pela morte de realizar tão grande feito, segundo ele: “[...] ai vos

ficais eternamente hipocondríacos” (ASSIS, 1977, p. 301).

Nessa relação escapa um saber: que a condição da melancolia encarnada

por Brás Cubas é inerente à condição da criatura humana, marcada em sua perda

original, marcada na “dor de existir em suas diferentes gradações, que vão do luto à

melancolia” (QUINET, 1999, p. 07). Nas palavras do próprio Brás cubas: “Cada

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

estação da vida é uma edição, que corrige a anterior, e que será corrigida também,

até a edição definitiva, que o editor dá de graça aos vermes” (ASSIS, 1977, p. 152).

Na perspectiva de Brás Cubas há uma errância generalizada nas relações

humanas e seja qual for o esforço humano feito em direção à correção dessa

precariedade, será sempre ineficaz. Brás Cubas vive a representação de que não há

um significante possível de designar o desejo humano em sua totalidade, apenas em

sua parcialidade; em semblante. Chegar à “edição definitiva” é encontrar-se com a

morte. Seu descrédito ante a vida varia como um pêndulo entre elaborar o luto das

perdas e a impossibilidade de assimilar a falta como condição estrutural da

existência humana, ficando, então, aprisionado em sua “melancólica humanidade”.

4.1.3 Humanitismo: neologismo entre a loucura e a morte.

{...] O essencial é que lutes. Vida é luta. Vida sem luta é um mar morto no centro do organismo universal. Como a vida é o maior benefício do universo, e não há mendigo que não prefira a miséria à morte (o que é um delicioso influxo de Humanitas), segue-se que a transmissão da vida, longe de ser uma ocasião de galanteios, é a hora suprema da missa espiritual. Porquanto, verdadeiramente há só uma desgraça: é não nascer (Machado de Assis).

Machado de Assis permanece inovando ao criar a personagem de Quincas

Borba151. Continua a tecer esse segundo livro ainda privilegiando o fio da memória;

mesmo que narrado em terceira pessoa, as reminiscências o compõem. Lima

destaca o fato de que “Quincas Borba é um romance mais complexo que as

Memórias póstumas” (LIMA, 1981, p. 77), detalhe com que concordamos, dado que

o defunto autor diz claramente a que veio, mostra sua performance, enquanto que

Quincas Borba esbarra na aprendizagem vivida por Rubião, na linguagem culta

151 Quincas Borba escrito em duas versões. Primeiro publicado (quinzenalmente) em A estação, revista de modas, de 15 de Junho de 1886 a 15 de Setembro de 1891. Para a publicação do livro em 1891, o autor fez algumas alterações na ordem de apresentação dos capítulos iniciais. No capítulo VI, Machado deixa clara sua intenção de prolongar os efeitos das Memórias Póstumas, relacionado com a filosofia de Humanitas, que cunhou o lema ”Ao vencedor as batatas”.

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

entre os infortúnios do convívio com o casal Palha, na doutrina do Humanitismo,152 e

no reempobrecimento que põe à prova os limites entre a razão e a sandice. São bem

pertinentes as observções feitas por Lima, de que:

Nas Memórias póstumas, Quincas Borba tivera uma presença meteórica. No livro que leva seu nome, a presença ainda é mais rápida. Sua ação, contudo, é incisiva. No primeiro confirmava sua teoria e afirmava por seu destino a existência da loucura. Sua importância se dava por contigüidade: Brás Cubas o conhecera garoto, o reencontrara mendigo, depois enobrecido, freqüentador de sua casa e enunciador do Humanistismo. No segundo livro é o agente dos transtornos de Rubião. Da lucidez de um louco. Quincas Borba afasta-se, pois, do seu romance, para que este trate de seu legado, exposto em dois patamares: o patamar da riqueza a ostentar o patamar da demência que fermenta (LIMA, 1981, p. 77).

Seguindo o fio de condução deixado por Machado de Assis, abordarmos

Quincas Borba em companhia de Brás Cubas, dado o fato da maior parte da teoria

de Humanitas estar a ele vinculada. Considere-se ainda que Brás Cubas demonstra

simpatia e interesse pelos ensinamentos do filósofo, chegando inclusive a consultá-

lo antes de algumas decisões de cunho político, tanto quanto sobre assuntos do

coração e da alma. Diríamos que Brás Cubas é o primeiro discípulo de Quincas

Borba, ainda que não venha a exercer o sacerdócio; ele é o receptáculo das

explanações hipotéticas que referendam a construção teórica de seu autor. Nas

palavras de Brás Cubas: “Íamos a pé, filosofando as coisas. Nunca me há de

esquecer o benefício desse passeio. A palavra daquele grande homem era o cordel

de sabedoria” (ASSIS, 1977, p. 283).

Não acompanharemos a análise das representações sociais, nitidamente

colocadas no texto de Quincas Borba. O nosso interesse segue apenas o viés da

filosofia Humanitista, de suas reflexões filosóficas sobre a morte em contraponto à

vida, ou, melhor dizendo, significando a vida. Para o seu criador, o Humanitismo é

um sistema que define

o princípio de todas as coisas, não é outro senão o mesmo homem repartido por todos os homens. Conta três fases Humanitas: a estática, anterior a toda

152Lima pontua que o sistema do Humanitismo é uma sátira feita por Machado de Assis ao naturalismo evolucionista e mais acentuadamente ao positivismo.

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

criação; a expansiva, começo das coisas; a dispersiva, o aparecimento do homem; e contará mais uma, a contrativa, absorção do homem e das coisas. A expansão, iniciando o universo, sugeriu a Humanitas o desejo de gozar, e daí a dispersão, que não é mais do que a multiplicação personificada da substância original (ASSIS, 1977, p. 260).

A essa primeira153 explicação, feita a Brás Cubas, gradativamente será dada

continuidade e aprofundamento à teoria de Humanitas, visto que o sistema é

explanado como uma “grande obra. Eram quatro volumes manuscritos, de cem

páginas cada um, com letra miúda e citações latinas” (ASSIS, 1977, p. 260).

Metodicamente o autor aproveita as situações da realidade e vai aplicando sua

doutrina como possibilidade prática. Principalmente nas questões de melancolias

pessoais vividas por Brás Cubas, pertinentes às decepções no amor e na carreira

política.

Quincas Borba é apresentado no texto das Memórias póstumas, nas

reminiscências de infância de Brás Cubas. Este define seu companheiro de escola e

de travessuras com certo tom de ironia. Os detalhes enfatizados na apresentação,

intencionalmente, pontuam o travesso menino, maquinando astúcias e dissimulando

as atitudes. No tocante ao velho mestre Ludgero Barata, alvo de eterno mote de

“chufas” pelos alunos, há destaque para Quincas Borba:

Um de nós, o Quincas Borba, esse então era cruel com o pobre homem. Duas ou três vezes por semana, havia de lhe deixar na algibeira das calças – umas largas calças de enfiar, - ou na gaveta da mesa, ou ao pé do tinteiro, uma barata morta. Se ele a encontrava ainda nas horas da aula, dava um pulo, circulava os olhos chamejantes, dizia-nos os últimos nomes: éramos sevandijas, capadócios, malcriados, moleques. – Uns tremiam, outros rosnavam; o Quincas, porém, deixava-se estar quieto, com os olhos espetados no ar. Uma flor, o Quincas Borba. Nunca em minha vida, achei menino mais gracioso, inventivo e travesso. Era a flor, e não era já da escola, senão de toda a cidade (ASSIS, 1977, p. 126, grifo nosso).

Dessa imagem pueril, e desse traço de “inventivo” já aí destacado, o próximo

encontro dos dois amigos será de maneira bastante adversa e em certa medida

153 Na verdade a primeira referência feita ao Humanitismo é na carta em que Quincas Borba devolve o relógio de Brás Cubas e se desculpa pelo triste episódio do Passeio Público, ocasião em que lhe afanou o relógio durante um abraço.

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

irônica, em função do estado oposto de reapresentação. No segundo encontro, já na

vida adulta, Brás Cubas é interceptado no Passeio público por um mendigo, que se

apresenta como sendo o Quincas Borba. A reação de Brás Cubas é de extremo

incômodo, fornece ajuda e, ao se afastar, conclui: “não pude deixar de comparar

outra vez o homem de agora com o de outrora, entristecer-me e encarar o abismo

que separa as esperanças de um tempo da realidade de outro tempo...” (ASSIS,

1977, p. 194). Para completar a decepção, no abraço de despedida solicitado pelo

amigo mendigo, acontece o furto do relógio.

A devolução do relógio e o pedido de desculpas vão dar o tema de uma carta

que marca um novo reencontro entre Brás Cubas e Quincas Borba. Nessa carta já

são antecipadas as primeiras noções da teoria do Humanitismo. O novo sistema

filosófico é já apresentado como fruto de longo estudo, um novo sentido do gênesis.

Nas palavras do criador: “É singularmente espantoso este meu sistema; retifica o

espírito humano, suprime a dor, assegura a felicidade, e enche de imensa glória o

nosso país. Chamo-lhe de Humanitismo, de Humanitas, princípio das coisas”

(ASSIS, 1977, p. 235).

Lima destaca a artimanha machadiana ao abordar a alusão à loucura diluída

no contexto das Memórias Póstumas, quando a atenção do leitor está presa ao

adultério de Virgília com o narrador. “Se, ao invés, compreende o veio paralelo

aberto pelo filósofo Quincas Borba, terá depois condições de verificar como a deriva

explícita, formada por amor e morte, converge para deriva apagada, que formam a

loucura e o Humanitismo” (LIMA, 1981, p. 65). Podemos inferir dessa observação

que a loucura está também inserida na narrativa em referência à morte. O

Humanitismo é uma possibilidade de expressão, por meio de certa idealização, do

enigma da morte, assim como o delírio elaborado por Brás Cubas foi recurso de

linguagem para falar de sua “viagem à roda da morte”.

Machado de Assis escolheu atrelar esse caminho circular, de certa ironia

lúdica, ao juntar essas duas personagens e tratar ficcionalmente temas tabus, tanto

quanto avassaladores: a loucura e a morte. Ao reapresentar Quincas Borba no livro

que leva seu nome, já o faz mencionando a morte dos planos de casamento,

conseqüente motivo de descendência perdida, levados à tumba, junto à noiva agora

finada.

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

Este Quincas Borba, se acaso me fizeste o favor de ler as Memórias póstumas de Brás Cubas, é aquele mesmo náufrago de existência que ali aparece, mendigo, herdeiro inopinado, e inventor de uma filosofia. Aqui o tens em Barcelona. Logo que chegou, enamorou-se de uma viúva, senhora de condição mediana e parcos meios de vida; mas tão acanhada, que os suspiros do namorado ficavam sem eco. Chamava-se Maria da Piedade. Um irmão dela que é o presente Rubião, fez todo o possível para casá-los. Piedade resistiu, um pleuris a levou (ASSIS, 1975, p. 109).

A caracterização da apresentação demonstra a intenção machadiana de

continuar sob o mesmo signo da memória, tanto quanto da ironia. Uma morte é

anunciada seca e polidamente, incluindo causa mortis. Já se infere também, em

seqüência a essa informação, o grão de sandice, precocemente diagnosticado por

um alienista, ironicamente convocado por Quincas Borba para tratar a provável

insanidade do amigo Brás Cubas, que naquela ocasião demonstrava insatisfação

melancólica diante de suas perdas objetais.

Para Lúcia Miguel Pereira “o Humanitismo é ponto de contato entre as

Memórias póstumas de Brás Cubas e o Quincas Borba. O seu nome, que faz pensar

numa troça com o positivismo, é mais um ‘piparote no leitor’” (PEREIRA, 1988, p.

200). Recorrentemente encontramos na crítica machadiana essa referência ao

Humanitismo como sátira dirigida ao positivismo, porém não deixa também de ser

essa convocação ao leitor, no levante de pontos reflexivos da existência humana

frente às adversidades. Como bem sinaliza o delírio de Brás Cubas, “só isso resta ao

homem, e mais um último bem, vingança suprema: a capacidade de rir dos seus

tormentos” (ASSIS, 1977, p. 200). Fica no Humanitismo o caminho aberto a

construções singulares, como é bem peculiar à escrita machadiana.

Quincas Borba só tinha em mente o sistema do Humanitismo, dar

prosseguimento às suas formulações. Acrescenta que o sistema, mesmo

reorganizando a sociedade, não lhe assegura a ausência de sofrimento, haja vista

que esse é parte mesmo do processo de transformação necessário à manutenção

da vida. “A dor, segundo Humanitas, é uma pura ilusão” (ASSIS, 1977, p. 262). Não

ficam “eliminadas as guerras, a insurreição, o simples murro, a facada anônima, a

miséria, a fome, as doenças” (ASSIS, 1977, p. 262). E todos esses infortúnios não

impediriam a felicidade humana, posto que são “esses supostos flagelos equívocos

do entendimento, porque não passariam de movimentos externos da substância

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

interior, destinados a não influir sobre o homem, senão como simples quebra da

monotonia universal” (ASSIS, 1977, p. 262).

Segundo seu criador, o Humanitismo aceita a violência e a dor, seja física ou

moral, como partes da própria condição humana. A guerra é reconhecida como um

processo fundamental para a sobrevivência do homem. “Há nas coisas todas certa

substância recôndita e idêntica, um princípio único, universal, eterno, comum,

indivisível e indestrutível... [...] pois essa substância ou verdade, esse princípio

indestrutível é que é Humanitas.” (ASSIS, 1975, p. 113). Montello destaca que “O

Quincas Borba, na linha de sua singularidade, é, sobretudo o romance da loucura

que gradativamente evolui...” (MONTELLO, 1997, p. 264).

Ao destacar a singularidade de Quincas Borba, escamoteada nas

representações socais que perpassam como centro das atenções, Montello está em

acordo com a observção de Lima. O anúncio do sistema, vindo de um cérebro que

prenuncia o limite da saúde mental, é uma estratégia de mestre de Machado de

Assis, é uma sátira à antropomorfização da ciência. “Controlada pela reflexão, a

fantasia se transforma em ficção – um pensar sobre o tempo histórico sem a procura

de dominá-lo conceitualmente“ (LIMA, 1981, p. 58). Diante do desamparo da

demanda de representação social, não possível de atender, há no delírio uma saída.

”A relevância da loucura se faz por deslocamento: pela teoria do Humanitismo,

exposta antes que Quincas Borba desse plenas mostras de seu estado mental”

(LIMA, 1981, p. 65).

A teoria de Quincas Borba não responde por si só, convoca uma implicação

de seus adeptos “Uma vez que o homem se compenetre bem de que ele próprio é

Humanitas, não tem mais do que remontar o pensamento à substância original para

obstar qualquer sensação dolorosa” (ASSIS, 1977, p. 262). É essa a herança da

doutrina que é transmitida a Rubião: antes de lhe haver deixado a fortuna monetária,

Quincas Borba lhe deixou o conhecimento da doutrina e o desafio. “A evolução,

porém é tão profunda, que mal se lhe podem assinar alguns milhares de anos”

(ASSIS, 1977, p. 262).

Nem Brás Cubas, nem Rubião desconfiavam do “grão de sandice” que

portava Quincas Borba, e embora o achassem esquisito, o adjetivo ficava por conta

da estranheza do espírito filosófico. Isso apesar da advertência do alienista de que a

“loucura entra em todas as casas” (ASSIS, 1977, p. 295), o que sugere “a loucura”

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

depender ou não do ângulo de quem a vê, ficando como questão diluída no contexto

cotidiano.

Há um paradoxo na filosofia humanitista: o seu louvor à vida e em igual

proporção à violência (a guerra e a morte), como necessárias à continuidade da

espécie, dão-lhe um caráter interrogatório sobre sua validade como princípio de

sanidade. “A extensão da crueldade declarada pelo Humanitismo é menos o elogio

da loucura do que a acusação aos ‘saudáveis’: sua saúde não lhes permite pensar o

que aos loucos fica reservado” (LIMA, 1981, p. 67).

Tal qual como Brás Cubas, Rubião tem o privilégio de conhecer do próprio

filósofo a teoria do Humanitismo. Como único amigo (em Barbacena) e exercendo a

função de enfermeiro, é convidado para ser discípulo dessa doutrina. Rubião aceita

de pronto e começa a receber os ensinamentos do mestre filósofo. Um desses

ensinamentos vem refletido ao nome do cachorro, que assim como o dono também

se chama Quincas Borba e por dois motivos: “um doutrinário, outro particular”; assim

explicados:

- Desde que Humanitas, segundo a minha doutrina, é o princípio da vida e reside em toda parte, existe também no cão, e este pode assim receber o nome de gente, seja cristão ou mulçumano... - Esse agora é o motivo particular. Se eu morrer antes, como presumo, sobreviverei no nome do meu cachorro. Ris-te não? Rubião fez um gesto negativo. - Pois deverias rir, meu querido. Porque a imortalidade é o meu lote ou o meu dote, ou como melhor nome haja. Viverei perpetuamente no meu grande livro. Os que, porém, não souberem ler, chamarão Quincas Borba ao cachorro, e... (ASSIS, 1975, p. 110).

A declaração do filósofo em preservar a imortalidade contraria em alguma

medida sua própria teoria. Se a morte não existe, como entender e justificar sua

ânsia de preservar a imortalidade? O foco do Humanitismo está na continuidade ad

infinitum da renovação da matéria gerada ao fim de um combate, quando uma parte

morre (sucumbe) para que a outra sobreviva e dê continuidade ao ciclo vital. Nas

palavras do criador:

- Não há morte. O encontro de duas expansões, ou a expansão de duas formas, pode determinar a supressão de uma delas; mas rigorosamente não

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há morte, há vida, porque a supressão de uma é a condição da sobrevivência da outra, e a destruição não atinge o princípio universal comum. Daí o caráter conservador e benéfico da guerra (ASSIS, 1975, p. 114).

Para melhor exemplificar seu pensamento, dada a densidade da teoria de

Humanitas, Quincas Borba procura recursos didáticos que favoreçam uma aplicação

prática de sua filosofia. Um desses exemplos, o mais famoso deles, do qual vai

surgir o lema que designa sua doutrina, imortalizando-a, é: “ao vencedor, as

batatas”. Segue a aplicação prática:

supõe tu um campo de batatas e duas tribos famintas. As batatas apenas chegam para alimentar uma das tribos, que assim adquire forças para transpor a montanha e ir à outra vertente, onde há batatas em abundância; mas, se as duas tribos dividirem em paz as batatas do campo, não chegam a nutrir-se suficientemente e morrem de inanição. A paz, nesse caso, é a destruição; a guerra é a conservação. Uma das tribos extermina a outra e recolhe os despojos. Daí a alegria da vitória, os hinos, as aclamações, recompensas públicas e todos os demais efeitos das ações bélicas. Se a guerra não fosse isso, tais demonstrações não chegariam a dar-se, pelo motivo real de que o homem só comemora e ama o que lhe é aprazível ou vantajoso, e pelo motivo racional de que nenhuma pessoa canoniza uma ação que virtualmente a destrói. Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas.

- Mas a opinião do exterminado? - Não há exterminado. Desaparece o fenômeno; a substância é a

mesma. Nunca viste ferver água? Hás de lembrar-te que as bolhas fazem-se e desfazem-se de contínuo, e tudo fica na mesma água. Os indivíduos são essas bolhas transitórias.

- Bem; a opinião da bolha... - Bolha não tem opinião (ASSIS, 1975, p. 114).

Rubião, que já ouvira do médico de Quincas Borba a sentença de que esse

tinha poucos dias de vida, ficou sem entender e “perguntava a si mesmo como um

homem, que ia morrer dali a dias podia tratar tão galantemente aqueles negócios”

(ASSIS, 1975, p. 115). Rubião se mostra interessado na doutrina, embora se

espante e não a compreenda.

Lima destaca que, em Quincas Borba, a temática fica entre a representação

social e a loucura, embora haja ainda espaço para se tratar da morte. Mesmo não

sendo falado explicitamente, como nas Memórias póstumas, “há a morte de

Quincas, da tia de Sofia, do Freitas, do noivo de Tonica, além das de Rubião e do

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cachorro. Para este leitor, pois, se não cogitamos da morte seria porque se tornara

secundária. Mas não é este o meu ponto de vista” (LIMA, 1981, p. 84).

Acrescemos à citação das mortes descritas o fato de a saga de Rubião, através

da herança, só ser possível a partir da morte de Maria da Piedade, fato destacado

friamente pelo próprio Rubião na primeira reflexão que faz de sua nova condição de

capitalista. “Se mana Piedade tem casado com Quincas Borba, apenas me daria

uma esperança colateral. Não casou; ambos morreram, e aqui está tudo comigo; de

modo que o que parecia uma desgraça...” (ASSIS, 1975, p. 107).

A representação social está presente e é marcante, porém a loucura e a morte

marcam seu lugar, inclusive, não apenas em referência à morte física, mas

principalmente à morte simbólica. O Humanitismo gira em torno da fórmula ideal de

sobrevivência, e embora apresentado como uma apologia à vida, é da morte que

trata. No entusiasmo do Humanitismo, seu criador faz uma comparação entre esse e

a religião indiana (Bramanismo) e mostra onde o sistema novo é comparável a essa

e onde a ultrapassa. Assim ele a refere:

Nesta igreja nova não há aventuras fáceis, nem quedas, nem tristezas, nem alegrias pueris. O amor, por exemplo, é um sacerdócio, a reprodução um ritual. Como a vida é o maior benefício do universo, e não há mendigo que não prefira a miséria à morte (o que é um delicioso influxo de Humanitas), segue-se que a transmissão da vida, longe de ser uma ocasião de galanteio, é a hora suprema da missa espiritual. Porquanto, verdadeiramente há uma só desgraça: é não nascer (ASSIS, 1977, p. 260).

Esse efusivo culto de louvor à vida perde-se na essência prática já

exemplificada na luta, na guerra, na inconstância dos fatos. O paradoxo presente em

Humanitas o inscreve no impasse de um limite impossível de transpor. Um ponto

nodal só possível de existir como enigma delirante. Tal qual é o cerne de seu

conteúdo, só obedece à lógica da mente que sob delírio o criou. Apesar de

filosoficamente assegurar a inexistência da morte, Quincas Borba reconhece-a como

realidade e revela o seu desejo de sobrepor-se a ela, inclusive sendo este um dos

motivos de ter criado o novo sistema filosófico e ter batizado o cachorro com seu

próprio nome, além de impor em testamento que o herdeiro só lhe tomaria a posse

da herança caso cuidasse do cachorro, Quincas Borba, até a morte do mesmo.

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“Rubião era discípulo, sem idéias, do filósofo Quincas Borba, e a herança que

recebeu, aliada aos amores prometidos de Sofia, foi paulatinamente levando-o aos

delírios de grandeza e à psicose” (FREITAS, 2001, p. 109). Os amores por Sofia só

mostram que o desejo é o desejo do outro, ou seja, é na interdição que visualiza o

semblante do seu desejo. “Machado conhecia bem esses meandros da loucura,

soube fazê-la aparecer aos poucos, ia preparando o leitor para a eclosão final do

delírio – a glória através da loucura, Rubião transmutado em Luís Napoleão”

(FEITAS, 2001, p. 109).

Sofia se oferece ao jogo da cena histérica de se fazer semblante como o

objeto ideal para Rubião em perverso par, de consentimento do marido. O que foi

permitido a Virgília e Brás Cubas ficou velado em Sofia e Rubião, mas, nem por isso,

menos avassalador, denunciador da inexistência do amor. Rubião encontra no

sonho do abundante “capital” herdado a impossibilidade de identificar e recobrir sua

demanda. Junto à herança, herdou a falta, o vazio, só possível de recobrir no delírio

ou na morte.

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

CASMURRICE: UMA PRESENÇA DA MORTE

• O que há entre o amor e a morte? Memórias – luto ou melancolia.

Melancolia -1894-95 – Edvard Munch – (1863 – 1944)

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

4.2.1 Que há entre o amor e a morte?154 Memórias – luto ou melancolia.

Acolhemos as ilusões porque nos poupam sentimentos desagradáveis, permitindo-nos em troca gozar de satisfações. Portanto, não devemos reclamar se, repetidas vezes, essas ilusões entrarem em choque com alguma parcela da realidade e se despedaçarem contra ela (Sigmund Freud).

Apresentado consensualmente como a obra-prima machadiana, Dom

Casmurro revela o apogeu de sua escrita. O enigma de Capitu imortalizado na

dúvida indecifrável de um “pecado” que não se desvela, apenas revela o inominável

do ser feminino, demanda constantes elaborações. Porém, não procederemos ao

estudo nessa vertente. “Embora Capitu seja a personagem central do romance e a

máxima razão das reminiscências que deram corpo à narrativa, o título refere-se a

seu narrador” (MOISÉS, 2001, p. 88). E é ao caminho tecido pelo fio melancólico do

discurso do narrador, o seu entrelaçamento às imagens da morte, que privilegiamos

o percurso a seguir.

A memória é que preside o espetáculo, tecendo o fio condutor da narrativa; o tempo é o pretérito, ainda quando nos dá a impressão de fluir no presente da leitura. O tempo é o da memória, com todas as distorções que esse mecanismo implica, de tal modo que rememorar corresponde a recuperar o tempo perdido e vice-versa. A paixão, vida e morte de Capitu, assim como o purgatório a que foi condenado Bentinho, são artes e partes da memória, ou do passado, que se negam a desaparecer (MOISÉS, 2001, p. 53).

Recortamos nas palavras do narrador a construção ou a reconstrução de sua

história minada por elementos melancólicos e fúnebres, porém em discurso

descontínuo, podendo até passar nas entrelinhas da “representação social”155 sem

154 Parodiando a sentença de Brás Cubas: Que há entre a vida e a morte? Uma curta ponte. No capítulo CXXIV “Vá de intermédio”, frase usada para explicar a morte precoce de sua noiva (morta pela febre amarela) D. Eulália Damasceno de Brito. 155A observação que Luiz Costa Lima aponta em Dispersa demanda a respeito das Memórias póstumas de Brás Cubas, pode também ser aplicado a Dom Casmurro (dada às devidas proporções, haja vista que nas Memórias póstumas o narrador é um morto). Segundo esse autor, “a morte marca

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

ser completamente lido. Como bem é típico na escrita machadiana a temática

recobre vários pontos e dá margem a muitas vertentes de análise. Além do que já

pontuamos, a célebre versão da culpa ou inocência de Capitu, John Gledson revela

ainda em Machado de Assis impostura e realismo, “Dom Casmurro como um

romance realista na concepção e no detalhe, cujo objetivo é nos proporcionar um

panorama da sociedade brasileira do século XIX” (GLEDSON, 1999, p. 07). Gledson

amplia sua observação e destaca também a densidade do conteúdo que está para

além da leitura realista do contexto social.

Dom Casmurro não é um romance realista no sentido de que nos apresenta abertamente os fatos, sob forma facilmente assimilável. Apresenta-se com eles, mas temos de ler contra narrativa para descobrir-los e conectá-los por nós mesmos. À medida que assim procedermos, descobriremos mais não só acerca dos personagens e dos acontecimentos descritos na história, mas também sobre o protagonista de Machado, Bento, o próprio narrador. Forma e conteúdo são absolutamente inseparáveis. É altamente perigoso subestimar a perícia manipuladora de Bento ou atribuir a Machado opiniões que o narrador proclama (GLEDSON, 1999, p. 14).

Roberto Schwarz, em Duas meninas, destaca que “O livro tem algo de

armadilha, com lição crítica incisiva – isso se a cilada for percebida como tal. Desde

o início há incongruências, passos obscuros, ênfases desconcertantes, que vão

formando um enigma” (SCHWARZ, 1997, p. 09). Concorda ainda com Gledson, para

quem o texto revela um tipo de elite da ideologia brasileira da época. Schwarz

aponta três caminhos que favorecem penetrar no enigma do texto.

O livro assim, solicita três leituras sucessivas: uma romanesca, onde acompanhamos a formação e a decomposição de um amor; outra de ânimo patriarcal e policial, à cata de prenúncios e evidências do adultério, dado como indubitável; e a terceira, efetuada a contracorrente, cujo suspeito é logo réu é o próprio Bento Santiago, na ânsia de convencer a si e ao leitor da culpa da mulher (SCHWARZ, 1997, p. 10).

Mesmo sem o objetivo de enquadrar nossa leitura nessa terceira possibilidade

apontada por Schwarz, uma vez não se tratar (para esse estudo) de culpados ou

a pontuação do livro, cujos intervalos são preenchidos pela representação social ou ainda, a morte pontua a narrativa e a representação social cobre seus intervalos” (LIMA, 1981, p. 72).

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

inocentes, reconhecemos que privilegiamos o foco da perspectiva do narrador, traído

em seu próprio discurso, marcado no traço melancólico. Bento Santiago (Bentinho)

protagonista-narrador, na velhice, que resolve escrever suas memórias, contar sua

história segundo a fidelidade de suas lembranças, afirma: “[...] vou deitar ao papel as

reminiscências que me vierem vindo. Deste modo viverei o que vivi...” (ASSIS, 1977,

p. 68). Sustentado por reminiscências, o mesmo defende seu ponto de vista como

verdade absoluta.

O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência. Pois, senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo (ASSIS, 1977, p. 68).

Mesmo fazendo essa constatação, admitindo o vazio de sua existência,

Bentinho busca nos objetos e no espaço externo o que não encontra internamente.

Ao narrar o texto em primeira pessoa, através de reminiscências, seu discurso

reintegra o passado. “A certos respeitos, aquela vida antiga apareceu-me despida de

muitos encantos que lhe achei; mas é também exato que perdeu muito espinho que

a fez molesta, e, de memória, conservo alguma recordação doce e feiticeira” (ASSIS,

1977, p. 69).

Aparentemente, Bentinho traz um luto elaborado, ao contar os anos felizes da

adolescência e a história de amor infantil (invejável). Entretanto a sua escrita vai

paulatinamente revelando os traços de melancolia revestidos em alguns recursos de

ironia, concluída em grande freqüência, em imagens de morte. Já inicia sua escrita

acatando a sugestão, imaginária, de mortos; dos retratos e esculturas de

personalidades históricas a sua volta. “Fiquei tão alegre com esta idéia, que ainda

agora me treme a pena na mão. Sim, Nero, Augusto, Massinissa, e tu, grande

César, que me incitas a fazer os meus comentários, agradeço-vos o conselho...”

(ASSIS, 1977, p. 69).

Após explicar a “alcunha de casmurro”, que cabe tão bem como título do que

se propõe a escrever, por ser “o vulgo de homem calado e metido consigo” (ASSIS,

1977, p. 67), explica também os motivos que estimulam a escrita. Motivos os quais

só confirmam sua vida presa às referências de um passado no narcisismo infantil.

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

“Talvez a narração me desse à ilusão. E as sombras viessem perpassar ligeiras,

como o poeta, não o do trem, mas o do Fausto: Aí vindes outra vez, inquietas

sombras...?” (ASSIS, 1977, p. 69). A reclusão de sua vida retrata sua verdade

interna e revela seu afeto preso, paralisado nas cenas do passado.

Vivo só, com um criado. A casa em que moro é própria; fi-la construir de propósito, levado de um desejo particular que me vexa imprimi-lo, mas vá lá. Um dia, há bastantes anos, lembrou-me reproduzir no engenho novo a casa em que me criei na antiga rua de Mata-cavalos, dando-lhe o mesmo aspecto e economia daquela outra que desapareceu. (ASSIS, 1977, p. 68) [...] os amigos que me restam são de data recente; todos os antigos foram estudar a geologia dos campos santos (ASSIS, 1977, p. 68). [...] ora, como tudo na vida cansa, esta monotonia acabou por exaurir-me também. Quis variar, e lembrou-me escrever um livro (ASSIS, 1977, p. 69). [...] Foi então que os bustos pintados nas paredes entraram a falar-me e a dizer-me que, uma vez que eles não alcançavam reconstituir-me os tempos idos, pegasse da pena e contasse alguns. Talvez a narração me desse à ilusão, e as sombras viessem perpassar ligeiras... (ASSIS, 1977, p. 69).

A inspiração de Bentinho se origina da solidão, do tédio e da saudade, da

ilusão de preencher o tempo reconstituindo na memória a possibilidade de reviver a

felicidade do passado, tanto quanto uma reedição de sua vingança. O objetivo da

escrita é convocar “sombras”, e reencontrar nessas as companhias perdidas, já

levadas pela morte. Ao recontar os fatos justifica seus atos, provavelmente uma

tentativa de lidar melhor com o inelutável passado.

Relembrando Freud, Bentinho até sabe quem perdeu, só não sabe o que

perdeu em todas essas perdas e vai buscar na reconstrução material o “objeto

perdido”. Só sendo passível de encontrar a “sombra”, e essa apenas “paira sobre”

sua demanda, dada a impossibilidade do reencontro. Na direção desse reencontro o

que se encontra é a “Coisa” (das Ding). “É como um paradoxo ético que o campo de

das Ding é reencontrado no final, que Freud aí nos designa o que na vida pode

preferir a morte” (LACAN, 1988, p. 131).

Bentinho entrega-se à casmurrice e reproduz seu ambiente enlutado da

época de criança. Encomenda a reconstrução de uma réplica da antiga casa da

infância, reproduzindo o espaço físico da vivência passada. Sua moradia é um tipo

de museu particular que o ajuda a conservar consigo os fantasmas pessoais e os da

família Santiago. Os retratos dos mortos e seus pertences são cultuados no

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

ambiente. Reedita “a casa dos três viúvos”, agora a casa do “casmurro”, um tipo

especial de cárcere emocional. “Tio Cosme vivia com minha mãe, desde que ela

enviuvou. Já então era viúvo, como prima Justina; era a casa dos três viúvos”

(ASSIS, 1977, p. 74). A sombra da morte é o signo que nomeia a casa. Françoise

Dastur chama a atenção para um detalhe que destacamos,

Que a vida do homem seja uma vida ‘com’ os mortos, eis ai talvez, o que distingue verdadeiramente a existência humana da vida puramente animal, como sugere um fragmento de Heráclito, freqüentemente citado, o qual diz que ‘o caráter do homem é seu demônio’, a crença grega em um daimon pessoal que acompanha cada homem ao longo de sua vida não fazendo senão expressar essa comunidade de vida com o espírito dos ancestrais que é o fundamento unitário de todas as culturas (DASTUR, 2002, p. 16).

Por ter perdido o primeiro filho, a mãe de Bentinho (Dona Maria da Glória),

por medo de perdê-lo também, oferece-lhe como promessa à vida sacerdotal em

troca da sua sobrevivência. Bentinho já nasce assim, sob o signo da morte.

Morrendo-lhe o pai, sua infância é cercada por viúvos que cultuam seus mortos e

entregam-se ao recato e à reclusão numa velhice precocemente consentida, ou

melhor, evocada. A mãe de Bentinho, ficando viúva aos trinta e um anos, entrega-se

a esse estado com certo prazer na morbidez do luto.

Minha Mãe era boa criatura. Quando lhe morreu o marido, Pedro de Albuquerque Santiago, contava trinta e um aos de idade, e podia voltar para Itaguaí. Não quis; preferiu ficar perto da igreja em que meu pai fora sepultado (ASSIS, 1977, p. 75, grifo nosso). [...] Era ainda bonita e moça, mas teimava em esconder os saldos da juventude, por mais que a natureza quisesse preservá-la da ação do tempo. Vivia metida em um eterno vestido escuro, sem adornos, com um xale preto, dobrado em triângulo e abrochado ao peito por um camafeu (ASSIS, 1977, p. 76).

Destacamos as letras iniciais de “Minha Mãe”, grafadas em maiúsculas.

Coberta pelo véu, que vela a sexualidade adormecida na viuvez, é no filho que a

mãe vai investir libidinalmente e na falta do interdito paterno da realidade, substitui-

se pelo interdito sublimatório da fé (um Pai todo poderoso), ficando perto do cadáver

do pai, enterrado na igreja. Esse primeiro lugar designado pela mãe a Bentinho,

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

substituto do irmão morto e, por escape, oferecido ao altar, impregna-se como uma

marca que ele não consegue ultrapassar. A situação de dependência de Bentinho

começa na simbiose (sem corte) com a mãe, e completa-se na transferência a

Capitu.

Contemplando seu mausoléu particular de lembranças, relíquias da “casa dos

mortos” (eternizadas na casa do “casmurro”), Bentinho expõe suas idealizações

acerca do enlace matrimonial de seus pais. “Se padeceram moléstias, não sei, como

não sei se tiveram desgostos: era criança e comecei por não ter nascido. Depois da

morte dele, lembra-me que ela chorou muito...” (ASSIS, 1977, p. 77, grifo nosso).

Pulando dessa reminiscência “Comecei por não ter nascido”, recorre à outra, como

se a segunda viesse em suplência da primeira, para ressignificá-la. Bentinho

relembra a feliz tarde de novembro e declara que ali “verdadeiramente foi o princípio

de minha vida; tudo o que sucedera antes foi como o pintar e vestir de pessoas que

tinham que entrar em cena, o acender de luzes, o preparo das rabecas, a sinfonia...

Agora é que eu ia começar a minha ópera” (ASSIS, 1977, p. 77, grifo nosso).

A esse respeito, Gledson faz uma importante observação, somando a esse

comentário a declaração anterior de que quando reproduziu a casa tal qual era em

Mata-cavalos, Bentinho não conseguiu encontrar a si mesmo. [...] “mas falto eu

mesmo e essa lacuna é tudo”. [...] “como se diz nas autópsias” (ASSIS, 1977, p. 68).

Para Gledson, Bentinho está buscando uma identificação com o seu “eu”, o que lhe

falta; faz então uma comparação dessa procura de Bento e o narrador Brás Cubas.

Em certo sentido, esta lacuna, branco, ou vazio descende da morte... [...] algo sugerido pela própria metáfora de Bento a respeito da autópsia, e pela qual ele implicitamente se compara a um cadáver (curiosamente, autópsia significa, etimologicamente, auto-análise): embora talvez tenha menos consciência de suas faltas do que Brás Cubas, Bento escreve com um senso semelhante a seu próprio vazio. [...] Podemos notar a segurança com que Bento anuncia que a “célebre tarde de Novembro”, com a qual abre sua história, é o “princípio da minha vida”. Talvez o seja, no sentido de que a consciência da sua situação e de seus desejos fica então subitamente focalizada; mas não devemos nos esquecer de que o parágrafo anterior, ele acabara de dizer: “comecei por não ter nascido”, expressão que no mínimo é igualmente verdadeira, considerando-se a promessa pré-natal de sua mãe de fazê-lo padre (GLEDSON, 1999, p. 37).

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

A referida tarde de novembro traz à luz o débito a ser quitado, sendo a vida

de Bentinho a moeda, mas também revela o seu desejo por Capitu. Revelação

trazida pela palavra do outro (José Dias), reconhecida por Bento, porém só

confirmada pela própria Capitu. Ou seja, há em Bentinho esse pedido constante de

que o outro referente dê sustentação a seu desejo. É a Capitu que ele pede ajuda

para escapar à promessa da mãe. Tendo ouvido a sentença da clausura

eclesiástica, Bentinho corre a procurar a amiga e a recompor para si o enredo da

promessa.

Os projetos vinham do tempo em que foi concebido. Tendo-lhe nascido morto o primeiro filho, minha mãe pegou-se com Deus para que o segundo vingasse, prometendo, se fosse varão, metê-lo a igreja. Talvez esperasse uma menina. Não disse nada a meu pai, nem antes, nem depois de dar à luz; contava fazê-lo quando eu entrasse para a escola, mas enviuvou antes disso. Viúva sentiu o terror de separar-se de mim; mas era devota, tão temente a Deus, que buscou testemunhas da obrigação, confinando a promessa a parentes e familiares. Unicamente, para que nos separássemos o mais tarde possível... (ASSIS, 1977, p. 80).

Lima destaca a dependência de Bentinho em relação à vontade de sua mãe e

os medos infantis socorridos sempre por essa. Aponta também a indisponibilidade

de Bentinho em contrariá-la. “Bentinho não tem vontade própria e mesmo quando

procura uma desculpa, recai na verdade, na verdade da dependência” (LIMA, 1981,

p. 94). A dependência o leva ao Seminário. É em Capitu que consegue o socorro de

um plano alternativo. “O estrangulamento da vontade própria o entrega a uma

espécie de paralisia: Bento é incapaz de representar, flagrado, ora pela mãe, ora

pelo pai de Capitu, Bentinho permanece estático, incapaz sequer de cooperar...”

(LIMA, 1981, p. 94).

O perfil da infância e adolescência de Brás o revela paralisado frente à

demanda desse primeiro outro, a mãe. Os desdobramentos feitos por ele, a esse

lugar a ela referido, são transferidos a uma segunda escolha objetal, “o amor”,

encarnado em Capitu. Lima aponta que a temática escamoteada na representação

social é “derrota de Bentinho no mundo” (LIMA, 1981, p. 96). E analisa essa derrota

em função do medo de Bentinho o conduzir a buscar saídas no viés da fantasia.

Ainda adolescente, conversando com Capitu sobre medos, fica paralisado quando

ela o coloca frente à possibilidade de escolha entre ela a mãe dele, ou à de ruptura

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

por morte. A artimanha do discurso de Capitu, ainda adolescente, demonstra a

peculiaridade do desejo feminino, ser o objeto único causador de sedução.

- Diga-me uma coisa, mas fale verdade, não quero disfarce; há de responder com coração na mão. - Que é? Diga. - Se você tivesse que escolher entre mim e sua mãe, a quem é que escolhia? - Eu?

Fez-me sinal que sim. - Eu escolhia... Mas para que escolher? Mamãe não é capaz de me perguntar isso. - Pois, sim, mas eu pergunto. Suponha você que esta no Seminário e recebe a notícia de que eu vou morrer... - Não diga isso. - ... Ou me mato de saudades, se você não vier logo, e sua mãe não quiser,

que você venha, diga-me, você vem? - Venho. - Contra a ordem de sua mãe? - Contra a ordem de mamãe. - Você deixa seminário, deixa sua mãe, deixa tudo, para me ver morrer? - Não fale em morrer, Capitu! Capitu teve um risinho descorado e incrédulo, e com a taquara escreveu uma palavra no chão; inclinei-me e li: mentiroso (ASSIS, 1977, p. 133, grifo do autor).

Gledson destaca a falta do pai para Bentinho e sua referência apenas pela

herança e pelo retrato (GLEDSON, 1977, p. 58). Um pai morto, que o deixa entre

mulheres, à mercê, dividido entre a demanda da mãe e da amada. Serge André

retoma em Freud a famosa questão: o que quer uma mulher?

Quanto ao que ela pode querer, como afirma a sabedoria ancestral, jamais se está seguro. De onde a incontornável oscilação ente o culto da mulher como mistério – enigma - e ódio à mulher como mistificação – mentira. Mas essas duas posições só servem para alimentar o desconhecimento do que constitui a verdadeira questão da feminilidade, pois postulam, todas as duas, que a mulher é como o esconderijo que dissimularia alguma coisa (ANDRÉ, 1994, p. 11).

No imaginário cultural a morte encarna a vertente do feminino pela linguagem

mítica. No mito grego das deusas do destino as (Moiras, Parcas, ou Normas) são

três irmãs: Cloto (fiandeira; segura o fuso e vai puxando a vida) Láquesis (sortear;

enrola o fio da vida) e Átropos (inflexível; corta o fio da vida) (BRANDÃO, 2000, p.

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

140). Na psicanálise o feminino também encarna a morte; estão na mesma posição

daquilo que não se pode nomear, pelo fato de não haver um significante que as

represente no inconsciente156. São ambos da ordem do inexplicável. Freud afirma no

artigo Algumas conseqüências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos

[1925], que sexualidade feminina é o “continente obscuro” (FREUD, 1990, p. 304).

No decorrer da narrativa, nas entrelinhas dos acontecimentos, vamos

percebendo uma tessitura sutil de convocação à morte como solução a diversas

questões ou ainda a sua aparição como conseqüência natural da vida, secamente

descrita ou ironizada. Quando Pádua, pai de Capitu, perde o cargo e sente-se

envergonhado, considera a morte como solução, sendo dissuadido do intento por D.

Glória (ASSIS, 1977, p. 89).

Bentinho se adapta à vida dupla entre os estudos do seminário e as

esperadas visitas em casa para encontrar a amiga-namorada. Já nesse percurso lhe

atormentam as saudades atravessadas por ciúmes. Imaginava a “bela na janela” a

despertar olhares e galanteios dos rapazolas157. Ao narrar esse fato, Bentinho repete

o seu propósito na escrita de suas memórias: curar a melancolia da vida. Volta a

justificar seu objetivo em reconstruir a réplica da casa Mata-cavalos, “o meu fim em

imitar a outra foi as duas pontas da vida, o que, aliás, não alcancei”. Refere esse fato

como análogo à tentativa de retomar um sonho depois de acordado e não obter

êxito. “Donde concluo que um dos ofícios do homem é fechar e apertar muito os

olhos, e ver se continua pela noite velha o sonho truncado na noite moça” (ASSIS,

1977, p. 160).

A rotina do seminário intercalada nas visitas de descanso é abruptamente

quebrada pela alteração do estado de saúde de D. Glória. O agravamento da

enfermidade coloca Bentinho face a face com a verdade da morte.

Era a primeira vez que a morte me aparecia assim perto, me envolvia, me encarava com os olhos furados e escuros. [...] mais me aterrava a idéia de chegar a casa, de entrar, de ouvir os prantos, de ver um corpo defunto.... Oh! Eu não poderia nunca expor aqui tudo o que senti naqueles terríveis minutos. A rua por mais que José Dias andasse superlativamente devagar, parecia fugir-me dos pés, as casas

156 No Seminário 20 Mais, ainda Lacan avança discutindo a posição do sujeito frente ao gozo (um todo fálico, outro não todo) e não na divisão entre os sexos. 157 No título do capítulo que faz referência a esse episódio (“Uma ponta de Iago”) Machado infere a intertextualidade com Otelo, que será bem trabalhada por Helen Cadlwell, The Brazilian Othelo of Machado de Assis, Berkeley, University of California Press, 1960 ( apud SCHWARZ, 1997, p. 11).

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

voavam de um e outro lado, e uma corneta que nessa ocasião tocava no quartel dos Municipais permanentes ressoava aos meus ouvidos como a trombeta do juízo final. (ASSIS, 1977, p. 164).

Nesse primeiro encontro, tratava-se da possibilidade da morte de sua mãe,

possibilidade essa que o confronta com desejo e culpa. “Três ou quatro vezes,

quisera interrogar o meu companheiro, sem ousar abrir a boca; já nem tinha tal

desejo” (ASSIS, 1977, p. 164). Segue então a seguinte reflexão:

Ia só andando, aceitando o pior, como um gesto do destino, como uma necessidade da obra humana, e foi então que a Esperança para combater o Terror, me segredou ao coração, não estas palavras, pois nada articulou parecido com palavras, mas uma idéia que poderia ser traduzidas por elas: mamãe defunta, acaba o seminário (ASSIS, 1977, p. 164).

A morte de sua mãe seria a solução para libertá-lo de uma dívida contraída

por ela, para ser paga por ele, a dedicação à vida sacerdotal. A verdade da reflexão

foi de tal intensidade que lhe devolveu a submissão filial. O efeito da educação

religiosa fez-se evidente em suas palavras de arrependimento e na impregnação do

remorso. Pensou até em autopunição e se esvaiu em reflexões paliativas. Deparou-

se pela primeira vez com a angústia da morte.

Leitor foi um relâmpago. Tão depressa alumiou a noite, como se esvaiu, e a escuridão fez-se mais cerrada, pelo efeito do remorso que me ficou. Foi uma sugestão da luxúria e do egoísmo. A piedade filial desmaiou um instante, com a perspectiva da liberdade certa pelo desaparecimento da dívida e do devedor; foi um instante, menos que um instante, o centésimo de um instante, ainda assim o suficiente para complicar a minha aflição com um remorso (ASSIS, 1977, p. 165).

Um novo encontro com a morte surge e ganha até nome de capítulo, “O

defunto” (LXXXV). Contando a morte de Manduca (colega de infância), Bentinho

chega a suspender a narrativa, dado o tamanho do incômodo da lembrança descrita

na morte daquele. A descrição o revela em morte mesmo quando ainda vivo. O

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

horror diante da morte do outro, aponta para o próprio desamparo, a constatação da

fragilidade na carne em prévia decomposição, provocando abalos no narcisismo.

Vá, diga-se tudo; é morto, os seus são parentes são mortos, se existe algum não é em tal evidência que se vexe e doa. Diga-se tudo. Manduca padecia de uma cruel enfermidade, nada menos que a lepra. Vivo era feio; morto pareceu-me horrível. Quando o vi estendido na cama, o triste corpo daquele vizinho, fiquei apavorado e desviei os olhos. Não sei que mão oculta me compeliu a olhar outra vez, ainda que fugida; cedi, olhei, tornei a olhar, até que recuei de todo e saí do quarto (ASSIS, 1977, p. 185).

Apesar do pavor, tenta aproveitar-se da ocasião do enterro para faltar ao

seminário e ficar mais um dia em companhia de Capitu. Havendo recusa por parte

de D. Glória, Bentinho argumenta em nome da amizade que o outro lhe tinha e não

sendo esta suficiente, depois de vencida a recusa, confessa a si mesmo: “Não

éramos amigos, nem nos conhecíamos de muito. Intimidade, que intimidade podia

haver entre a doença dele e a minha saúde?” (ASSIS, 1977, p. 18). Ironia expressa

na situação oposta, entre a saúde e a morte, tanto quanto no oportunismo do enterro

para fins egoístas e festivos.

Com o estranho título de “Um amigo por um defunto” (cap. XCIII) Bentinho

comenta a visita de seu amigo de seminário Escobar. Compartilham o almoço de

domingo e a intimidade da casa. Bentinho compartilha também as intimidades do

coração, inclusive contando sobre o plano de saída do seminário. “Um amigo por um

defunto”, poderia ser lido no desfecho final da amizade como “um defunto por um

amigo”?

Tempos idos, já adulto, é pela ocasião da morte de seu melhor amigo

Escobar, desde a companhia do seminário (também casado com Sacha, a melhor

amiga de Capitu), portanto amigo do casal. É precisamente na cena do enterro, que

o ciúme de Bentinho chega ao ápice e modifica radicalmente a felicidade conjugal.

Só Capitu amparando a viúva, parecia vencer-se a si mesma. Consolava a outra, queria arrancá-la dali. A confusão era geral. No meio dela, Capitu olhou alguns instantes para o cadáver tão fixa, tão apaixonadamente fixa, que não admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas... [...] As minhas cessaram logo. Fiquei a ver as dela; Capitu enxugou-as depressa, olhando a furto para gente que estava na sala. Redobrou as carícias para a amiga, quis levá-la; mas o cadáver parece que retinha

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

também. Momento houve em que os olhos de Capitu fitaram o defunto, quais os da viúva, sem o pranto nem palavras desta... (ASSIS, 1977, p. 324).

A face da morte comparece nessa cena cumprindo outra função: a dor

presente nas comoções pelo cadáver ali velado fica escandida. Bentinho

desconsidera o momento de dor, o lamento da viúva por perder seu ente querido,

tanto quanto a perda de seu melhor amigo. A cena funesta abre-lhe uma outra dor; a

morte de seu ideal conjugal. Mais uma vez uma cena de morte serve aos seus

próprios objetivos. É uma cena de morte (real) que vai definir outra morte

(simbólica), afetando, como um luto não elaborado, o rumo de sua vida.

Pela intensidade do grau de amizade entre os dois casais, e em se tratando

de seu melhor amigo, Bentinho é “constrangido” a discursar no enterro, e como é de

praxe, “o louvor dos mortos é um modo de orar por eles” (ASSIS, 1977, p. 163). Sai

do cemitério comparando-se ao rei Príamo158, pela ironia da situação, humilhado em

presença do oponente. A crise advinda dessa cena engendra a dúvida sobre a

fidelidade de Capitu. Segue-se uma melancolia curtida na morte paulatinamente que

se instala à vida do casal. Bentinho ressuscita no próprio filho Ezequiel as

encarnações do finado e refere, “Escobar vinha assim surgindo da sepultura, do

seminário e do Flamengo para se sentar comigo a mesa, receber-me na escada,

beijar-me no gabinete de manhã, ou pedir-me à noite a benção do costume” (ASSIS,

1977, p. 241).

Bentinho encontra na morte nova possibilidade de libertação. Planeja suicídio,

vai à farmácia e compra “uma substância”. Diz-nos ele, “quando me achei com a

morte no bolso senti tamanha alegria como se acabasse de tirar a sorte grande, ou

ainda maior, porque o prêmio da loteria gasta-se, e a morte não se gasta” (ASSIS,

1977, p. 244). Apesar da firmeza dessa declaração, Bentinho vacila diante de sua

decisão e repensa o seu propósito, chegando à seguinte conclusão: “a morte era

uma solução; eu acabava de achar outra, tanto melhor quanto que não era definitiva,

e deixava a porta aberta à reparação se devesse havê-la” (ASSIS, 1977, p. 938).

A solução encontrada foi outro tipo de morte, dessa feita, não para ele, porém

para sua amada. Sentindo-se traído segundo seus próprios princípios, acusa, julga e

158 Na Ilíada Homero versa no canto XXI a humilhação do rei Príamo diante de Aquiles suplicando a devolução do cadáver de seu filho Heitor, morto por este em batalha e, exposto ao relento sem sepultura como sinal de vingança.

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

condena Capitu a uma morte prévia ao excluí-la de sua vida física e afetiva.

Exilando-a na Europa, condena-a a uma morte simbólica antes da morte real,

condenando-se ele mesmo à solidão e à “casmurrice”. A decisão de Bentinho atinge

também Ezequiel, filho da dúvida e presença provocadora da constante suspeita, ou

evidência desta, caso queiram. Esse é afastado do convívio do pai e condenado

também a conviver com essa ausência.

Ao receber de volta o filho já adulto, Bentinho faz o leitor tomar conhecimento

da morte de Capitu com certo desprezo e desdém, fato já consumado e ainda não

mencionado, como por esquecimento ou por mais um tipo de afronta e castigo.

Deseja livrar-se da presença do filho, incômodo que reedita a cada encontro a teoria

do adultério. Esse desejo é atendido quase que como um passe de mágica, pois ao

financiar-lhe uma excursão científica (desejando-lhe que contraia lepra), o mesmo é

acometido por febre tifóide que culmina em morte, fatalidade comentada por

Bentinho com a maior naturalidade, com o adendo de que “pagaria o triplo para não

tornar a vê-lo” (ASSIS, 1977, p. 258).

Ao concluir suas reminiscências, Bentinho pergunta-se sobre o resto. “E Bem,

e o resto?” Se a Capitu menina era a mesma adulta ou se algum fato a mudou e

conclui que sim, “que uma estava dentro da outra, como fruta dentro da casca”

(ASSIS, 1977, 259). Seguindo sua lógica, podemos também perguntar se o

“Casmurro” em Bento Santiago já habitava o Bentinho menino, submisso;

formalmente estruturado sob o signo da morte, velado no luto dos três viúvos. A

melancolia encarnada no narrador Bentinho comumente é lida como sinônimo de

pessimismo. Entendemos a representação desta melancolia associada ao

significante “casmurro” como uma forma de expressão da face da morte, visto ser a

melancolia em si um tipo de morte, morte simbólica do ser.

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

A MORTE – IN MEMORIAN AO AMOR

• Inexplicável feminino: semblante do amor e da morte.

• Memorial: melancolias, “Saudades de si mesmo”.

Cupido e Psique -Óleo sobre tela -1638 - Anthony van Dick – (1599-1641)

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

4.3.1 Inexplicável feminino: semblante do amor e da morte.

Puro sonho, a minha morte, pura morte, o meu amor (Cecília Meirelles).

Esaú e Jacó [1904] é um romance considerado pela crítica como complexo e

aberto a múltiplas interpretações. É também analisado como um dos textos de

Machado de Assis que melhor documentam a época em que se passa a ação,

narrando, inclusive, detalhes cotidianos do período da Proclamação da República,

fato este que o leva a ser considerado por alguns como um romance histórico. Outro

fator freqüentemente apontado sobre este livro diz respeito à narrativa. O

conselheiro Aires o escreve e participa, mas não o narra em primeira pessoa,

apresenta-se no texto referindo-se a si mesmo como um “ele”. É ainda, interpretado

por muitos159 como uma representação do próprio escritor, o qual, já avançado em

idade, toma corpo no narrador.

Conforme indicado no título, o texto Esaú e Jacó tem como fonte a analogia

ao texto bíblico do Gênesis160. Natividade, mãe dos gêmeos, (Pedro e Paulo161)

acompanhada da irmã, sobe ao morro do Castelo para consultar uma vidente. Temia

a sorte dos filhos e queria conhecê-la antecipadamente. Buscava já no ambiente

físico da consulta uma atmosfera de mistério, mas a sala da casa simples do morro

não comportava sua expectativa. “Era simples, as paredes nuas, nada que

lembrasse mistério ou incutisse pavor, nenhum pretecho simbólico, nenhum bicho

159 Josué Montello, Lúcia Miguel Pereira, Márcia Lígia Guidim, Luis Costa Lima, entre outros. Não tomaremos essa questão como causa, é um detalhe que não interfere no foco que queremos aqui destacar. E ainda que seja, o escritor corporificado no narrador, ao virar personagem ganha ficção, portanto, não se trata mais da pessoa do escritor. 160 Raquel, mulher de Isaac, engravida tardiamente por uma promessa feita por Deus a Isaque, que dele descenderia uma grande nação. “Os filhos lutavam no ventre dela; então disse: se é assim por que vivo eu? E consultou ao Senhor. Respondeu-lhe o Senhor: duas nações há no teu ventre, dois povos, nascidos de ti, se dividirão: um povo será mais forte que o outro, e o mais velho servirá ao mais moço (GÊNESIS, 25:22-3, p. 39). 161 Por analogia aos apóstolos Pedro e Paulo, ambos de grande destaque na história do cristianismo e da igreja.

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

empalhado... [...] Quando muito, um registro da Conceição colado à parede podia

lembrar um mistério...” (ASSIS, 1975, p. 64).

O mistério procurado pela mãe, na ânsia em trazer também à luz o destino

dos filhos, é respondido com uma pergunta e um enigma. A sacerdotisa traz “o

mistério nos olhos” (ASSIS, 1975, p. 65). A pergunta feita por ela remete à analogia

dos gêmeos do texto bíblico: os gêmeos brigaram no ventre materno? Resposta

duvidosa. A mãe vacila, não sabe se interpreta o incômodo pré-natal por brigas, de

qualquer modo... Segue-se a sentença: “a primeira palavra parece que lhe chegou à

boca, mas recolheu-se ao coração, virgem dos lábios dela e de alheios ouvidos.

Natividade instou pela resposta, que lhe dissesse tudo, sem falta...” (ASSIS, 1975, p.

67).

“Sem falta” é a reposta não possível de atender na demanda dessa mãe.

Imitando um oráculo, a vidente responde como um eco: “coisas futuras”. Insatisfeita

a mãe tenta incutir no parco texto seu desejo de que sejam “grandes”.

- Serão grandes? - Serão grandes, oh! Grandes! Deus há de dar-lhes muitos benefício. Eles hão de subir, subir... Brigaram no ventre de sua mãe, que tem? Cá fora também se briga. Seus filhos serão gloriosos. É só o que lhe digo. Quanto à qualidade da glória, coisas futuras! (ASSIS, 1975, p. 67).

Natividade sai da consulta satisfeita. Ouve da boca da cabocla o eco do seu

próprio desejo. “Todos os oráculos têm o falar dobrado, mas entendem-se.

Natividade acabou entendendo a cabocla, apesar de não lhe ouvir mais nada;

bastou saber que as coisas futuras seriam bonitas, e os filhos grandes e gloriosos...”

(ASSIS, 1975, p. 68). O que fica aqui apreendido é a procura dessa palavra a qual

preencha a falta, a qual responda por uma demanda que não se preenche, a não ser

no engodo, no engano da interpretação.

Tomaremos nesse pedido o percurso a seguir no texto, a construção de uma

interpretação. Não seguiremos para leitura o eixo temático das representações

sociais e históricas. Buscaremos a temática subliminar inscrita no pedido feminino

que subjaz no texto pela via do inexplicável, a qual acompanha a morte e o feminino.

“Machado insinua a via psicológica... [...] Dentro dessa armação, o texto de Machado

aparece como uma versão modernizada do relato bíblico. [...] Rebeca engravida por

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

intervenção divina...” (LIMA, 1981, p. 103). Natividade sem intenção. Lima infere a

diferença modernizadora do paralelismo bíblico ao texto machadiano marcado pela

transformação da mulher na sociedade burguesa (LIMA, 1981, p.103).

Em síntese, controlando o jogo de simetrias e diferenças com o texto bíblico e confiando sua apresentação a um narrador de malícia e artimanha, Machado encaminha o relato para o tipo de recepção que será assegurado pela interpretação de cunho ora filosofante, ora psicológico. Tornamos assim à imagem do estilo em palimpsesto, composição que oferece uma pista socialmente aceitável, para que, de seu avesso, entre as frases interrompidas, surjam outras linhas, que, no entanto, não deveriam ser claramente legíveis, porque são virulentas (LIMA, 1981, p. 104).

Seguindo a peculiaridade do texto machadiano, sua temática se desdobra,

abrindo bordas que se oferecem a novas interpretações, em modo paralelo à

temática central. Em seqüência à busca pela representação da morte, nesse

contexto da segunda fase machadiana, encontramos na indicação do narrador as

observações sobre o inexplicável do feminino, atrelado a essa representação.

Associamos as interrogações do conselheiro Aires às indicações freudianas, nessa

mesma vertente, e elaboramos as formulações que se seguem.

Na Apresentação das Novas conferências introdutórias sobre psicanálise

(1933 [1932]), Sigmund Freud conclui a conferência XXXIII intitulada “Feminilidade”

admitindo que tudo o que havia dito até então sobre a feminilidade estava

incompleto e fragmentário, e adverte: “Se desejarem saber mais a respeito da

feminilidade, indaguem da própria experiência de vida dos senhores, ou consultem

os poetas, ou aguardem até que a ciência possa dar-lhes informações mais

profundas e mais coerentes” (FREUD, [1925] 1990, p. 165).

Acatamos a indicação freudiana de consultar os poetas, mesmo sabendo

antecipadamente que estes não têm também uma resposta para tal questão. Porém,

têm a capacidade de expor esboços enigmáticos do caráter feminino, referendando

o pressuposto freudiano do quanto a feminilidade é “inexplicável”. Faremos um

recorte no texto Esaú e Jacó destacando a personagem Flora enquanto encarnação

feminina do inexplicável e como representação da imagem da morte nesse texto.

Na narrativa Esaú e Jacó os gêmeos Pedro e Paulo são divergentes em tudo.

Desde a mais tenra infância, suas escolhas se dão sempre em posições opostas e

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

competitivas. Pedro cursava Medicina no Rio de Janeiro e Paulo cursava Direito em

São Paulo. “Não tardaria muito que saíssem formados e prontos. Um para defender

o direito e o torto da gente, outro para ajudá-la a viver e a morrer. Todos os

contrastes estão no homem” (ASSIS, 1975, p.127).

O único ponto a uni-los é o amor por duas mulheres, e essas só vão

referendar ainda mais a rivalidade entre os dois. É o amor pela própria mãe

(Natividade) e pela mulher eleita como a amada de ambos, a personagem Flora.

Colocada ainda adolescente nesse mistério que envolve as escolhas de uma

mulher, Flora representa o enigmático da postura feminina. Segundo o narrador:

“Flora, aos quinze anos, dava-lhe para se meter consigo. Aires que a conheceu por

esse tempo, em casa de Natividade, acreditava que a moça viria a ser uma

inexplicável” (ASSIS, 1975, p. 121).

O que quer uma mulher? É uma pergunta feita por Freud desde seu primeiro

encontro com as histéricas, encontro este fundador da Psicanálise. Uma pergunta

que não quis calar. Nas notas de rodapé no artigo “Algumas conseqüências

psíquicas da distinção anatômica entre os sexos” [1925] é citado um comentário de

Freud feito a Marie Bonaparte, em que o mesmo afirma: “A grande questão que

jamais foi respondida e que ainda não fui capaz de responder, apesar de meus trinta

anos de pesquisa da alma feminina, é: o que quer uma mulher?” (FREUD, [1925]

1990, p. 304).

O que quer uma mulher? Tem sido da ordem do inexplicável, assim como tem

sido indecifrável o que é uma mulher. A Psicanálise não descreveu o que é uma

mulher, tarefa admitida por Freud como impossível, mas investigou como a menina

torna-se mulher.

O gênio de Freud é o de haver notado que as considerações anatômicas não são, nesse ponto, de ajuda alguma. As constatações possíveis de se fazer pela observação do exterior, bem como do interior do corpo humano, permanecem para nós sem valor, pois o que se trata de apreender não é uma diferença entre órgãos ou cromossomos que determinam nossa configuração, mas uma diferença de sexos – esse termo designando aqui, para além da materialidade da carne, o órgão enquanto aprisionado na dialética do desejo, e dessa forma ‘interpretado’ pelo significante (GUIRAUD, apud ANDRÉ. 1994, p. 11).

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

Flora, ao ser nomeada de “inexplicável” pelo Conselheiro Aires, inquietou-se a

querer uma explicação, tanto quanto sua mãe (D. Cláudia), ao que Aires reagiu

comparando as duas com a frase: “direi que esta moça resume as raras prendas de

sua mãe” (ASSIS, 1975, p. 121). “Em outros termos, é na medida em que ela quer

ter aquilo que falta a sua mãe que se torna mulher” (ANDRÉ, 1994, p. 25). Vejamos

o diálogo que desencadeia essa afirmação:

- Mas eu não sou inexplicável, replicou D. Cláudia sorrindo. - Ao contrário, minha senhora. Tudo está, porém, na definição que demos

a esta palavra. Talvez não haja nenhuma certa. Suponhamos uma criatura para quem não exista perfeição na terra, e julgue que a mais bela alma não passa de um ponto de vista; se tudo muda com o ponto de vista, a perfeição... (ASSIS, 1975, p. 121).

O conselheiro Aires é interrompido, antes de concluir sua reflexão. No

entanto, percebemos que ele faz uma comparação entre Flora e sua mãe,

aproximando a questão do inexplicável referido ao ser feminino, o qual é peculiar às

duas: mãe e filha, ou seja, o inexplicável está referido ao ser mulher. O efeito da

palavra de Aires reverbera em Flora, que não abre mão de uma explicação. O

narrador destaca este efeito alertando o leitor com esta afirmação:

Hás de lembrar-te que Flora não despregava os olhos dele, ansiosa de saber por que é que a achava inexplicável. A palavra rasgava-lhe o cérebro, ferindo sem penetrar. Inexplicável que era? Que não se explica, sabia; mas que não se explica porque? (FREUD, 1975, p. 126).

Flora não se conteve até ouvir uma explicação que justificasse a nominação

de “inexplicável” e aproveitou a primeira ocasião possível para pedir maiores

esclarecimentos ao Conselheiro Aires, obtendo esta resposta:

- Inexplicável é o nome que podemos dar aos artistas que pintam sem acabar de pintar. Botam tinta, mais tinta, outra tinta, muita tinta, pouca tinta, nova tinta, e nunca lhes parece que a árvore é árvore, nem a choupana, choupana. Se, se trata então de gente, adeus. Por mais que os olhos da figura falem, sempre esses pintores cuidam que eles não dizem nada. E retocam com

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

tanta paciência, que alguns morrem entre dois olhos, outros matam-se de desespero (FREUD, 1975, p. 126).

Percebe-se claramente que a explicação dada em nada explica o inexplicável.

É apenas uma tentativa de apreender algo que foge à representação por uma

palavra específica. Freud, desde o começo da prática clínica, ao depara-se com as

questões da feminilidade trazidas nos sintomas das histéricas, e até o fim de suas

elaborações teóricas pesquisando sobre este tema, considerou sempre o feminino

como algo da ordem de “continente obscuro” (FREUD, [1925] 1990, p. 304), do

“inexplicável”.

As primeiras tentativas de explicação partiram da intenção de entender como

se coloca a sexualidade infantil [1905]. Na explicação de Serge André, Freud

elaborou o desdobramento dessa construção teórica, considerando quatro

temáticas: a noção de bissexualidade, o conceito de libido, da diferença dos sexos à

divisão do sujeito, e o tornar-se mulher (ANDRÉ, 1994, p. 19). O cerne das

elaborações feitas sobre as questões do feminino é retomada e discutida por Freud

na já citada conferência XXXIII Feminilidade e mais uma vez ele admite: “Os

senhores, agora já estão preparados para saber que também a psicologia é incapaz

de solucionar o enigma da feminilidade” (FREUD, [1925] 1990, p. 144).

Freud, ao admitir esta verdade, reconhece também que o mistério que

envolve esta questão permeia outros campos de saber e diz que “através da história,

as pessoas têm quebrado a cabeça com o enigma da natureza da feminilidade”

(FREUD, 1990, p. 140). No texto O tema dos três escrínios [1913], este enigma foi

acrescido na envolvente análise de textos literários. Permeando outros campos do

saber, Freud utiliza a mitologia como referência, As Moiras162, o mito das deusas do

destino, recortando pontos de junção entre o feminino e a morte. Destaca como

representações da morte (nos referidos textos) o significante existente nas palavras

silêncio, mudez e ocultamento. Coloca-os, então, na mesma vertente de saber. O

encontro com o feminino e o encontro com a morte são da ordem do inominável,

posto que não são possíveis de serem representados no inconsciente.

162 Já expusemos duas vezes neste trabalho esse mito (As Moiras, as Parcas, ou Normas). Portanto não teceremos os comentários aqui.

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

Lacan, retomando esta questão no Seminário: livro 20 intitulado: Mais, ainda,

coloca a feminilidade no registro do Real163, ou seja, é algo da ordem do não todo

possível de nomear. Há algo que escapa ao alcance da palavra, mas que não pára

de não se inscrever. Assim como a morte, o feminino paira no campo do não todo

significável. É o mutismo, equivalentes no inconsciente, como o não reconhecível, o

que não se explica, silencia.

Na trama machadiana, Flora personifica a representação do feminino

formando um par com a morte, encarnando o mistério que evoca estas duas

questões. Cortejada por dois irmãos gêmeos, fisicamente idênticos (Pedro e Paulo)

encanta-se igual e sinceramente por ambos, comparando-os constantemente, mas

sem conseguir chegar a nenhuma decisão. “Flora ria com ambos sem rejeitar nem

aceitar especialmente nenhum; pode ser até que nem percebesse nada” (FREUD,

1975, p. 127).

Retomando o Tema dos três escrínios, observamos que os textos literários

analisados ali destacam a questão de uma escolha feita geralmente entre três (três

metais: ouro, prata e bronze; três astros: sol, lua e estrela; três irmãs, que Freud vai

associar às três Moiras ou às três Parcas da mitologia grego/romana: Cloto,

Láquesis e Átropos), destacando a última como a deusa da morte. Freud ressalta,

ainda em sua análise, o papel mitológico e dual de Afrodite, Perséfone e Ártemis “as

grandes deusas-Mãe dos povos orientais, contudo parecem todas terem sido tanto

criadoras quanto destruidoras – tanto deusas da vida e da fertilidade quanto deusas

da morte” (FREUD, [1913] 1990, p. 377).

Relembrando Flora, ela é colocada frente a uma escolha, a princípio, entre

dois (os gêmeos). Isso, antes de aperceber-se da necessidade de fazer essa

escolha, e posteriormente, entre “três”, quando frente ao não saber a quem escolher,

escolhe um terceiro, a morte, como solução. Antes de chegar ao ponto de necessitar

fazer uma escolha, Flora deleita-se com o sentimento que ambos lhe despertavam

sem perceber a intensidade do que se passava consigo. Diz o narrador:

Flora, incurável também, se não preferes a definição de inexplicável, que lhe deu Aires, a graciosa Flora teve naquela noite a sua insônia. Mas foi um tanto culpa sua. Em vez de se deitar quietinha e dormir com os anjos, achou

163 O real é uma das três ordens, juntamente com o simbólico e o imaginário, definidas por Lacan como estruturantes do inconsciente.

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

melhor velar com um ou dous [sic] deles, e gastar uma parte da noite, à janela ou sentada, a recordar e a pensar, e a cortejar e a contemplar... (ASSIS, 1975, p. 220).

Flora, enamorada, contemplava mentalmente os dois irmãos, juntos ou

separados. Eles despertavam nela a mesma gama de sentimentos. Ela relembrava-

os exercitando um jogo que já lhe era freqüente, transformar os dois numa só

pessoa, e ficar a confundi-los e separá-los, voltando a fundi-los num só. [...] “cismou

que os ouvia falar; primeira parte da alucinação. Segunda parte: as duas vozes

confundiam-se, de tão iguais que eram, e acabaram sendo uma só. Afinal, a

imaginação fez dos moços uma única pessoa” (ASSIS, 1975, p. 215).

Nessa ilusão de complementaridade, Flora permaneceu algum tempo. O

prazer lúdico dessa junção alimentava-lhe a ilusão da possibilidade de encontrar, em

cada um, as metades as quais formariam um todo. Enquanto esse devaneio não lhe

exigiu uma posição de escolha, enquanto não havia tomado conhecimento de que

sua indefinição tornara-se pública, Flora viveu usufruindo da situação extremo

êxtase. Cita o narrador:

Tudo se mistura, à meia claridade; tal seria a causa da fusão dos vultos que de dous [sic] que eram, ficaram sendo um só. Flora, não tendo visto sair nenhum dos gêmeos, mal podia crer que formassem agora uma só pessoa, mas acabou crendo, mormente depois que esta única pessoa solitária parecia completá-la interiormente, melhor que nenhuma das outras em separado. Era muito fazer e desfazer, mudar e transmudar. Pensou enganar-se, mas não; era uma só pessoa, feita das duas e de si mesma, que sentia bater nela o coração. Estava tão cansada de emoções que tentou erguer-se e ir fora, mas não pôde; as pernas pareciam de chumbo e coladas ao sol (ASSIS, 1975, p. 227).

Toda essa situação, a princípio, prazerosa para Flora, vai gradativamente

transformando-se em questões às quais ela não acha respostas. Pensando nos

dois e tentando eleger um deles, chega à seguinte reflexão:

No valor e no ímpeto podia comparar o coração ao gêmeo Paulo; o espírito, pela arte e sutileza, seria o gêmeo Pedro. Foi o que ela achou ao fim de algum tempo, e com isso explicou o inexplicável. Apesar de tudo, não

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acabava de entender a situação, e resolveu acabar com ela ou consigo (ASSIS, 1975, p. 240).

Esta reflexão é o começo de uma mudança de atitude. Flora começa por se

implicar na situação e preocupar-se com uma resolução (ou acabava com a situação

ou consigo mesma). Esta resolução aponta o primeiro pensamento de Flora em

direção à morte, ou seja, na direção de algo que cale o seu “mal-estar”.

Desde o Projeto para uma Psicologia Científica, [1895], Freud coloca que há

na base do psiquismo humano a necessidade de reduzir as tensões ao mínimo

necessário possível para a sobrevivência. As tensões seriam provocadas na

configuração pulsional do psiquismo. As excitações viriam tanto do mundo externo

quanto do próprio organismo. O aumento da tensão causa desprazer e resulta numa

descarga em busca do prazer, ou seja, em busca do alívio da tensão. A partir desta

primeira formulação, Freud chegou à conclusão de que a base da atividade pulsional

humana estaria no princípio de prazer.

No texto Além do princípio de prazer [1920] ele trabalha o conceito de pulsão

de morte colocando o funcionamento mental numa posição dialética: por um lado o

psiquismo é impulsionado para a busca de paz, enquanto, por outro lado, a pulsão

de vida (libido) introduz no psiquismo uma dose de excitação e impulsiona na busca

de um objeto. Revendo estes conceitos, Freud introduz entre eles um terceiro

princípio: “o princípio de realidade”, um princípio regulador das duas forças.

Flora sente a necessidade de aliviar a tensão da dose de excitação pela qual

está tomada. Ao deparar-se com a exigência da realidade, fica a princípio paralisada

por um não saber, ou o não querer saber do que seja o seu desejo. É o não querer

saber do seu desejo que a precipita para uma escolha outra, a escolha de silenciar.

Retomando o silêncio e o ocultamento como representações da morte,

encontramos agora Flora esquivando-se da presença dos gêmeos e calando-se. Ela

vai sendo tomada, gradativamente, pelo crescimento mútuo dessa paixão

ambivalente e de mesma intensidade entre os dois irmãos, sem achar resolução,

“pensava nos dois, sem confessar a nenhum. Sentia a contradição, sem ousar

encará-la por muito tempo” (ASSIS, 1975, p. 246). A indecisão de Flora não era só

segredo dela, era sentida pelos gêmeos, observada por Aires e comentada por

todos. “Contra o sofrimento que pode advir dos relacionamentos humanos, a defesa

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

mais imediata é o isolamento voluntário, o manter-se a distância das outras pessoas”

(FREUD, [1929] 1990, p. 96).

Numa conversa de Aires com os gêmeos e tratando dessa questão, ele

comenta: “[...] é certo que vocês gostam dela, e igualmente certo que ela não

escolheu entre os dois. Provavelmente, não sabe o que faça” (ASSIS, p. 232). Entre

os gêmeos um acordo se fez, o rejeitado se conformaria, aceitaria a vitória do

escolhido e desistiria de continuar a conquista. Enquanto entre os gêmeos

formalizava-se um acordo, entre os de fora, comentava-se, e Flora, consigo mesma,

a nenhuma conclusão chegava. “Enquanto indagavam dela em Petrópolis, a

situação moral de Flora era a mesma, o mesmo conflito de afinidades, o mesmo

equilíbrio de preferências” (ASSIS, p. 239).

Mergulhada nesse não saber escolher, e perturbada frente a tantas questões,

Flora começa a aparentar uma inquietação sobre a qual não consegue falar. Diz o

narrador que: “um dia pareceu à mãe que a filha andava nervosa. Interrogou-a e

apenas descobriu que Flora padecia de vertigens e esquecimentos” (ASSIS, 1975,

p. 246). A mãe, que antes percebera o despertar da paixão, comparando-se à filha,

refletiu que “também ela foi menina e moça, também se dividiu a si sem se dar nada

a ninguém” (ASSIS, 1975 p. 128). Agora, porém, do estado atual de Flora, parecia

nada saber e nada poder compartilhar do ser mulher. Este mal- estar sentido por

Flora provoca entre ela e Aires um estranho diálogo. Diz ele:

- Por que não vai a Petrópolis? Concluiu. - Espero fazer outra viagem mais longa, muito longa... - Para o outro mundo, aposto? - Acertou. - Já tem bilhete de passagem? - Comprarei no dia do embarque. - Talvez não ache. Há grande concorrência para aquelas paragens; melhor

é comprar antes, e, se quer, eu me encarrego disso; comprarei outro para mim, e iremos juntos. A travessia, quando não há conhecidos, deve ser fastidiosa; às vezes, os próprios conhecidos aborrecem, como sucede neste mundo. As saudades da vida é que são agradáveis. A gente de bordo é vulgar, mas o comandante impõe confiança. Não abre a boca, dá as suas ordens por gestos, e não consta que haja naufragado.

- O senhor esta caçoando comigo; eu creio até que estou com febre. - Deixe ver. - Flora estendeu-lhe o pulso; ele, com ar profundo: - Está; febre de quarenta e sete graus, a mão está ardendo, mas isto

mesmo prova que não é nada, porque aquelas viagens fazem-nas com as mãos frias (ASSIS, 1975, p. 247).

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

Flora expressa para Aires sua ansiedade e a busca por um escape. Brincam

num jogo de palavras que metaforiza a morte. Aires lhe sugere uma mudança e se

propõe a ajudá-la. Poucos dias depois Aires convence sua irmã (dona Rita), a

receber Flora como sua hóspede. A partir desta decisão começa uma fase de

ocultamento, em que Flora ausenta-se fisicamente do convívio dos gêmeos. Ainda

assim, conserva a companhia deles em pensamentos, alimentando suas próprias

fantasias.

O que quer uma mulher? É uma pergunta que também para Flora não quer

calar, mas uma pergunta que ela não suporta sustentar. Ante a indecisão e a

necessidade de solucionar a questão pressionada pela realidade, Flora adoece de

uma enfermidade misteriosa e sem explicação. No decorrer da enfermidade entre

melhoras e agravos, as duas forças vitais entre viver ou morrer enfrentam-se.

A tristeza, sobre a qual nos fala o melancólico, é situada por Lacan como a dor de existir; no âmbito da ética, ela é considerada como covardia moral. A tristeza, como sentimento humano, demasiadamente humano, é a expressão da dor própria à existência e se refere a uma posição do sujeito que faz parte da estrutura psíquica. Se esta posição não deixa de ser estrutural, a ela o sujeito não deve ceder posto ser uma posição relativa ao gozo que se opõe ao desejo (QUINET, 1999, p. 88-9).

Segundo o narrador: “O mais que se passou valia a pena de um livro. Não foi

logo, logo, gastou longas horas e alguns dias. Houve tempo bastante para que entre

a vida e Flora se fizesse a reconciliação ou a despedida” (ASSIS, 1975, p. 260).

Nessa fase intercalar entre a “reconciliação” e/ou a “despedida” Flora ia vivendo

presa ao leito, demandando os cuidados de uma grave enferma, presa a suas

reflexões: “Se a morte a espiava da porta, tinha um calafrio é verdade, e fechava os

olhos. Ao abri-los fitava a triste figura, sem lhe fugir nem chamar por ela” (ASSIS,

1975, p. 261).

A “reconciliação” não veio. A enfermidade se manifesta aparentemente como

uma escolha frente à indecisão, e a “despedida” se concretiza, a morte aparece

como uma solução. “Flora acabou como uma dessas tardes rápidas...” (ASSIS,

1975, p. 263). O conselheiro Aires, meditando sobre a situação, conclui: “a morte,

não é outra coisa mais que uma cessação da liberdade de viver, cessação

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

perpétua... mas que crime teria cometido aquela moça, além do de viver, e por

ventura, o de amar, não se sabe a quem, mas amar?” (ASSIS, 1975, p. 263).

4.3.2 Memorial: melancolias: “saudades de si mesmo”.

O tempo é um tecido invisível em que se pode bordar tudo, uma flor, um pássaro, uma dama, um castelo, um túmulo. Também se pode bordar nada. Nada em cima de invisível é a mais sutil obra deste mundo, e acaso do outro (Machado de Assis).

O Memorial de Aires [1908] é o último livro de Machado de Assis e

confessamente escrito sob o signo da saudade. Motivo suficiente para que a crítica

literária associe a personagem central, o conselheiro José Marcondes da Costa

Aires, ao próprio escritor. Detalhe que, para o estudo da ficção, é indiferente, pois é

sobre a personagem que a verdade se constrói, não importando aqui a veracidade

da relação biográfica. “O Memorial de Aires será todo escrito a partir da viuvez e da

solidão – insistentes palavras, tomadas como sinônimas tanto no romance quanto

em cartas contemporâneas de Machado de Assis” (GUIDIN, 2000, p. 24). Guidin,

concordando com Lúcia Miguel Pereira, também confere ao Memorial de Aires o

referencial biográfico164.

Encerrando em Esaú e Jacó seu ciclo de produção romanesca, o escritor escreve uma obra última, quase testamentária, que se dobra sobre si mesma como auto-reflexão e que deseja, isto é novo, retornar à convenção – que é o lugar do ajuste, do pacto social relativamente seguro, em que recai, mais sereno, o olhar de Machado velho. O romance Memorial de Aires será, então, uma espécie de posfácio, um monumento petrificado de toda a obra machadiana anterior: gesto e estratégia de preparação para a morte (GUIDIN, 2000, p. 20).

164 Essa aproximação entre o Memorial de Aires como um retrato da velhice de Machado de Assis, é comum à crítica machadiana.

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

Percorremos este estudo na personagem do Conselheiro Aires destacando

sua solidão como uma velada melancolia, que aponta discretamente os resquícios

da morte. Conforme já mencionado, o conselheiro é apresentado primeiro em Esaú e

Jacó165, participando como narrador e personagem, porém curiosamente narrando

em terceira pessoa. Naquele, já menciona as notas de seu diário(s); agora

transformados no Memorial de Aires, compõem o corpo do texto narrado em primeira

pessoa. “Não chega a ser propriamente um romance, nem mesmo uma novela, pois

este não é o intuito do narrador” (MOISÉS, 2001, p. 54).

Diplomata, aposentando e de volta à terra natal, declara o propósito definido

da volta, “aqui estou, aqui vivo, aqui morrerei” (ASSIS, 1975, p. 67). Divide o tempo

entre a solidão, a companhia da irmã e de poucos amigos. O conselheiro adota

como companhia de cadernos de nota seu diário de vida, testemunha de seu

cotidiano. A sua vida se transmuta em letras. É no diário que tudo redige, como se

fosse um confidente; refere-se a ele de maneira personificada; escreve sobre si e

sobre todos ao seu redor, transforma-o em seu Memorial. Resolve, assim, também,

a dificuldade de não gostar de polemizar as opiniões alheias, “Tinha o coração

disposto a aceitar tudo, não por inclinação à harmonia, senão por tédio à

controvérsia” (ASSIS, 1975, p. 89). Deixa reservadas ao diário as próprias opiniões

como um tipo de auto-análise:

Não cuides que não era sincero, era-o. Quando não acertava de ter a mesma opinião, e valia a pena escrever a sua, escrevia-a. Usava também guardar por escrito as descobertas, observações, reflexões, críticas e anedotas, tendo para isso uma série de cadernos, a que dava o nome de Memorial (ASSIS, 1975, p. 90).

Lima destaca a marcante diferença da personagem Aires e os demais tipos

masculinos dessa segunda fase machadiana. Chama de “discrepante” seu estilo de

vida em referência aos demais. “Aires é o que faz da vida uma prática de renúncia e

conformismo” (LIMA, 1981, p. 106). Para esse autor, Aires tenta conduzir a vida com

o menor dispêndio de dor e energia. E sua primeira renuncia é a vida afetiva.

Declaração feita pelo próprio narrador em Esaú e Jacó.

165 Por esse motivo, a vida de Aires esta distribuída entre os dois textos; motivo que nos leva a fazer citações provindas dos dois.

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

Posto que, viúvo, Aires não foi propriamente casado. Não amava o casamento. Casou por necessidade do ofício; cuidou que era melhor ser diplomata casado que solteiro, e pediu a primeira moça que lhe pareceu adequada a seu destino. Enganou-se; a diferença de temperamento e de espírito era tal que ele, ainda vivendo com a mulher, era como se vivesse só. Não se afligiu com a perda; tinha o feitio do solteirão (ASSIS, 1975, p. 89).

Lima observa então que Aires é diplomata por ofício e por escolha de vida. “A

diplomacia tem esse efeito que separa o funcionário dos partidos e o deixa tão

alheio a eles, que fica impossível de opinar com a verdade, ou, quando menos com

certeza” (ASSIS, 1975, p. 169), fato que faz dele um homem ambíguo, sem ser

cínico ou disso tirar vantagens escusas nas situações propícias para tal. Lima

destaca nisso a exclusão que Aires fez a si mesmo da voz da paixão e do desejo.

Em vez de combater o combate do amor, de suportar suas ascensões e quedas, o conselheiro prefere manter-se a distância, seja para recordá-lo sem amargura, associando sua fugacidade à suave ironia com que pensa a instabilidade dos governos, seja para deixar-se à espera, na estratégica distância que lhe permita uma digna retirada. E na ambigüidade que aí desenvolvera – viúvo sem ter sido propriamente casado – ampliou-se no trato com os homens, mormente no trato com as palavras. Aires é o que em vez de optar, paira sobre os partidos (LIMA, 1981, p. 107, grifo nosso).

Do escasso convívio social à completa auto-reclusão, Aires parece não se

abalar. O narrador apresenta a reflexão e a serenidade peculiares à maturidade.

Aparenta estar acima das impulsividades eloqüentes da palavra. Usa os temas com

refinado apuro de quem já os tem estudado e analisado de longa data. Tem um

aparente luto, uma velada melancolia, flutua como observador se comprazendo nas

conquistas alheias. Quando evoca o passado é em velado lamento. Aires tem certa

dissimulação que dificulta atribuir-lhe um preciso perfil.

Quando muito, para levantar a porta do véu, seria preciso entrar na alma dele, ainda mais fundo que ele mesmo. Lá se descobriria acaso, entre as ruínas de meio celibato uma flor descorada e tardia de paternidade, ou, mais propriamente, de saudade dela... (ASSIS, 1975, p. 229).

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

Podemos inferir que Aires vive em um disfarçado luto, sem se compungir em

dor (o que é próprio das primeiras horas das perdas), mas sem o fluir de novos

investimentos afetivos. No convívio com Flora, exerce ares de conselheiro

sentimental, filosofando sobre a vida e o amor, porém sem se deixar contaminar por

isso. Tem extrema noção do peso dos anos e se esquiva, vive em estagnação

afetiva. Nos diálogos com Flora, escapa-lhe um breve lamento do passar dos anos,

mesmo que em troca haja um ganho de experiência e aprendizagem; afirma a ela:

“A senhora não saberá isto bem, porque é moça e ingênua, mas creia que a

vantagem é toda sua. A ingenuidade é o melhor livro e a mocidade a melhor escola”

(ASSIS, 1975, p. 228).

No convívio com a irmã (Rita) o clima de morbidez é preservado. A própria

Rita é também viúva e vive do culto ao falecido. Aires aceita o convite de Rita para

visitar o jazigo da família e, na ocasião, rezar em gratidão pelo primeiro aniversário

de seu regresso definitivo. Ressalta a motivação mórbida com que Rita preenche a

vida.

Fomos ao cemitério. Rita, apesar da alegria do motivo, não pôde reter algumas velhas lágrimas de saudade pelo marido que lá está no jazigo, com meu pai e minha mãe. Ela ainda agora o ama como no dia em que o perdeu, lá se vão tantos anos. No caixão do defunto mandou guardar um molho dos seus cabelos, então pretos, enquanto os mais deles ficaram a embranquecer cá fora (ASSIS, 1975, p. 68).

Aires tanto fala da própria morte, como também da morte de outros com

extrema naturalidade. Em sua voz a morte é abordada de maneira bem serena e

como conseqüência natural de viver. Referindo-se ao mausoléu da família

demonstra apreciação. “Não é feio nosso jazigo...” Essa observação é feita como se

Aires estivesse falando da própria casa, ou por assim dizer, do que aceita bem como

futura morada, e continua: “achei-o novo demais, isso sim. Rita fá-lo lavar todos os

meses, e isto, impede que envelheça. Ora, eu creio que um velho túmulo dá melhor

impressão do oficio, se tem as negruras do tempo, que tudo consome” (ASSIS,

1975, p. 68).

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

Aires conduz a solidão de sua vida com a mesma tranqüilidade com que fala

da morte. Cultiva a solidão e, em alguns momentos, quase a cultua, fecha-se em

casa como um devoto se recolhe em seu templo: “vou ficar em casa uns quatro ou

cinco dias, não para descansar, porque eu não faço nada, mas para não ver nem

ouvir ninguém” (ASSIS, 1975, p. 98). Seu isolamento não apresenta razões óbvias

(além de clausura narcísica), entretanto também não é natural, visto que necessita

ser mencionado e planejado.

Escrevendo uma carta a sua irmã, Rita, assegura-se de não lhe escrever

nada que aguce a curiosidade desta, evitando assim uma possível visita: “se lhe

digo isto, ela não me crê, ri, e vem cá logo. Justamente o que eu não desejo. Preciso

me lavar da companhia dos outros, ainda mesmo dela, apesar de gostar dela”

(ASSIS, 1975, p. 99). A esse enfado, Aires prontamente se justifica e assume sua

parcela de “casmurrice”, tomando para si as dificuldades de socialização. Já acho

mais quem me aborreça do que me agrade, e creio que esta proporção não é obra

dos outros, e só exclusivamente minha. Velhice esfalfa” (ASSIS, 1975, p. 98).

Aproveitando um pedido de informação de Rita sobre um leiloeiro, Aires

externa (com boa dose de ironia) como deseja que seja tratado postumamente.

“Quando eu morrer podem vender em particular o pouco que deixo, com abatimento

ou sem ele, e a minha pele com o resto; não é nova, não é bela, não é fina, mas

sempre dará para algum tambor ou pandeiro rústico” (ASSIS, 1975, p. 98). A ironia

aponta um empobrecimento do ego, um descrédito de si mesmo, revelado no

modelo de vida inóspita.

O breve vislumbre do conselheiro em um novo investimento libidinal é dirigido

à viúva Fidélia. Observa a moça, por ocasião de uma visita ao cemitério. Na cena,

ela visita o túmulo do marido, ele a vê de longe, “encoberto por um mausoléu”

(ASSIS, 1975, p. 69). Encanta-lhe o mistério do feminino, velado no luto. E indaga

sobre ela para Rita, descreve-lhe a moça numa moldura, própria à cena. “Era moça,

vestia preto, e parecia rezar também, com as mãos cruzadas e pendentes” (ASSIS,

1975, p. 69). Aires se deixa fascinar, ainda que por breve tempo, pelo “inexplicável”

do feminino. Mesmo revestida no obscuro do luto, a sedução feminina se anuncia.

Aires deleita-se ao conhecer a história de vida da viúva. Ela, depois de ter

encontrado um grande amor e enfrentado a ira mútua das famílias (os pais de

ambos eram inimigos políticos), fica precocemente viúva, vivendo, desde então,

dessa solidão, fiel à memória do marido. Aires a encontra dias depois, nas bodas de

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237

A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

prata do casal Aguiar (exemplo de casamento perfeito), situação em que tem

ocasião de observá-la melhor e tecer análises.

Ao vê-la agora, não achei menos saborosa que no cemitério, e há tempos em casa de mana Rita, nem menos vistosa também. Parece feita ao torno, sem que este vocábulo dê nenhuma idéia de rigidez; a contrário, é flexível. Quero aludir somente à correção das linhas, - falo das linhas vistas; as restantes advinham-se e juram-se. Tem a pele macia e clara, com uns tons rubros nas faces, que não lhe ficam mal à viuvez. Foi o que vi logo à chegada, e mais adiante, até que ela foi embora (ASSIS, 1975, p. 75).

A performance de mulher enlutada dá asas às fantasias do conselheiro. Entre

o misto da primeira formulação velada no luto (Tánatos) e essa última aguçada por

Eros, ele ocupa parte de seu monótono tempo a se deleitar nesse enlevo.

Observando a dama, afirma então que essa análise dela não foi composta a

princípio em prosa, mas em versos, ou melhor, adaptada e resumida em um verso

de Shelley. Repete para si o verso lido dias atrás, e lamenta: “I can give not what

men call love.. Eu não posso dar o que os homens chamam de amor... e é pena”

(ASSIS, 1975, p. 76).

Ainda pensando na jovem viúva, declara o conselheiro ao seu diário: “Escuta,

papel. O que naquela dama Fidélia me atrai é principalmente certa feição de espírito,

algo parecido com o sorriso fugitivo, que já lhe vi algumas vezes. Quero estudá-la se

tiver ocasião” (ASSIS, 1975, p. 93). A imagem da mulher jovem presa à morbidez do

luto, que oculta e vela suas formas esculturais, atrai Aires, levando-o até a fantasiar

novas núpcias. Tal fantasia é subjugada pelas reflexões de Aires, como se o tempo,

a idade, enfim, a realidade fosse mais forte que ele.

Conclusões lógicas, ato consciente que não convence o Sujeito Aires. No

sinalizar desse breve desejo, o conselheiro faz um sonho. A viúva o visita com o

propósito de pedir conselhos, demover as dúvidas sobre a continuidade do estado

de viuvez. O conselheiro aproveita a oportunidade e se oferece como marido ideal a

ela. Acorda no exato momento de consumar em ato o que está no campo da

palavra. O sonho, diz Freud, é a via régia para o inconsciente, uma das brechas por

onde o sujeito do inconsciente revela seu desejo. Lacan afirma nos Escritos, que o

Inconsciente é o “capítulo da história que é marcado por um branco ou ocupado por

uma mentira: é o capítulo censurado” (LACAN, 1996, p. 260).

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

A censura prevalece, sublima-se nas alternativas que o sujeito elabora. O

Conselheiro tem profunda dimensão de sua solidão ao tomar o diário como

confidente. O diário é uma possibilidade de falar sem censuras, sem ser

interpretado, questionado ou julgado; chega a mencionar a necessidade de destruí-

lo antes de morrer. O conselheiro toma o diário como o acompanhante de sua

solidão, conferindo a este uma função que vai mais além da de suportar o registro de

sua escrita e de seu desabafo. O diário serve como testemunha da análise de sua

vida e de sua crescente aceitação da morte.

Papel amigo papel, não recolhas tudo o que escrever esta pena vadia. Querendo servi-me acabarás desservindo-me, porque se acontecer que eu me vá desta vida, sem tempo de te reduzir as cinzas, os que me lerem depois da missa de sétimo dia, ou antes, ou ainda antes do enterro, podem cuidar de que te confio cuidados de amor. Não, papel. Quando sentires que insisto nessa nota, esquiva-te da minha mesa, e foge. A janela aberta te mostrará um pouco de telhado, entre a rua e o céu, e ali ou acolá acharás descanso. Comigo o mais que podes achar é esquecimento, que é muito, mas não é tudo; primeiro que ele chegue, virá a troça dos malévolos ou simplesmente vadios (ASSIS, 1975, p. 92-93).

O Memorial de Aires é apontado como “uma espécie de tratado acerca da

velhice” (MOISÉS, 2001, p. 55). Certamente o enredo se desenvolve entre

aposentados, viúvos, à exceção um jovem casal (Tristão e Fidélia), porém ela,

apesar de jovem, já é viúva. A melancolia ronda a narrativa, mas com equilibrada

serenidade. A morte é falada com aceitação e maturidade. Convocado por Rita para

transportar os restos mortais da esposa de Viena ao Rio de Janeiro, Aires conclui:

“os mortos ficam bem onde caem”. “[...] – Quando eu morrer, irei para onde ela

estiver, no outro mundo, e ela virá ao meu encontro, disse eu” (ASSIS, 1975, p. 71).

Aires consome bastante tempo introspectivo em reflexões filosóficas. A morte

transcorre no texto como um tema subliminar. Os significantes referentes ao tema

estão diluídos no tempo, na melancolia, na morbidez da viuvez, na aposentadoria,

na solidão, nos sepulcros visitados, porém apresentar conclusões conceituais. Aires

resume ao diário sua morte lenta e gradual, seu conformismo revelado no

isolamento e seu desejo silenciado no recolhimento interior.

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

Eu tenho mulher embaixo do chão de Viena e nenhum dos meus filhos saiu do berço do nada. Estou só, totalmente só. Os rumores de fora, carros, bestas, gentes, campainhas e assobios, nada disto vive para mim. Quando muito o meu relógio de parede, batendo as horas, parece falar alguma coisa, - mas fala tardo, pouco e fúnebre. Eu mesmo relendo estas últimas linhas, pareço-me um coveiro (ASSIS, 1975, p. 151).

Fecha-se a escrita romanesca machadiana no Memorial de Aires. O narrador

cumpre bem a função a ele designada. “O clima em que se passa o diário do

Conselheiro Aires é marcado pela transparência, a começar das descrições das

personagens, como se nenhum dos seus traços escapasse ao olhar experimentado

do narrador” (MOISÉS, 2001, p. 54). Trata-se de uma escrita bem-estruturada,

organizada e sistemática. Começando em Esaú e Jacó e concluindo no Memorial, o

narrador observa as demais personagens e participa da trama como uma visão

equilibrada. Anexando experiências, conclui as interrogações existenciais com a

sabedoria do Eclesiastes166 e em discreta resignação. Os jovens casam, repetindo o

ciclo da vida; os idosos cumprem o seu em estagnada melancolia, presos na

“saudade de si mesmos”.

166O livro de Eclesiastes é parte do Antigo Testamento da Bíblia, foi escrito no 10º século antes a. C., pelo rei Salomão. O título Eclesiastes foi retirado da tradução da Septuaginta do V. T. e é uma tradução da palavra hebraica Koheleth, que dá a entender que o autor é um professor ou pregador. O tema abordado é o raciocínio do homem. O homem ‘debaixo do sol’ que filosofa sobre a vida. Grande parte do livro é autobiográfica (Bíblia anotada de Dr. C. J. SCOFIELD. p. 662).

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A morte na segunda fase romanesca de Machado de Assis

A morte, por exemplo, bem podia ser tão somente a aposentadoria da vida, com prazo certo. Ninguém iria por moléstia ou desastre, mas por natural invalidez; a velhice, tornando a pessoa incapaz, não a poria a cargo dos seus ou dos outros. Como isto andaria assim desde o princípio das coisas, ninguém sentiria dor nem temor, nem os que se fossem, nem os que ficassem. Podia ser uma cerimônia doméstica ou pública; entraria nos costumes uma refeição de despedida, frugal, não triste, em que os que iam morrer, dissessem as saudades que levavam, fizessem recomendações, dessem conselhos, e se fossem alegres, contassem anedotas alegres. Muitas flores, não perpétuas, nem dessas outras de cores carregadas, mas claras e vivas, como de núpcias. E melhor seria não haver nada, além das despedidas verbais e amigas... (Machado de Assis).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

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Considerações finais

5 CONSIDERAÇÔES FINAIS

Resta lembrar que a vida dos livros é vária como a dos homens. Uns morrem de vinte, outros de cinqüenta, outros de cem ou de noventa e nove. [...] Muitos há que, passado o século, caem nas bibliotecas, onde a curiosidade os vai ver, e donde podem sair em parte para a história, em parte para os florilégios. Ora, esse prolongamento da vida, curto ou longo, é um pequeno retalho de glória. A imortalidade é de poucos (Machado de Assis).

O campo das artes, em sua riqueza de múltiplas possibilidades

representativas, constitui-se como um amplo espaço, aberto à sonhada imortalidade

humana. A obra machadiana é uma comprovação dessa verdade, inclusive pela

pertinência de os temas abordados atingirem a essência da alma humana e,

portanto, permanecerem sempre vivos e atuais. “Machado de Assis é daqueles

escritores que, como os bons vinhos, somente melhoram com o tempo” (MOISÉS,

2001, p. 09).

Dentre os temas abordados por Machado de Assis ao longo de toda a sua

escrita, o tempo tem especial destaque. A recorrência com que utiliza o tema tece

um fio de condução marcante, que fica bem demarcado na escolha dos nomes para

os romances da segunda fase, iniciando com as Memórias e concluindo com o

Memorial. “As narrativas fluem no passado, como longas retrospectivas, obrigando a

memória a extrair das entranhas a matéria da intriga” (MOISÉS, 2001, p. 52).

A memória é evocada como recurso de desenvolvimento da narrativa e

confere autonomia à manipulação de cada narrador, conforme seus próprios

interesses. Esse detalhe já conduz a um olhar que direciona o foco da análise.

Reminiscências são um tipo de trabalho mental já com indicativos de deformação,

cuja confiabilidade, expressa na palavra do narrador, pode sempre ser posta à

prova. É interessante observar como cada narrador faz uso do mesmo recurso,

porém, quando aplicado à realidade em questão, o enredo continua inovador. “Brás

Cubas, por exemplo, inicia-se com a morte do protagonista, ou seja, com a solução

da história, e o relato retorna ao começo de sua vida, após contar o delírio. É o

modelo homérico da narração em retrospectiva da Odisséia” (COUTINHO, 1997, p.

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242

Considerações finais

49). Coutinho destaca a mestria de Machado de Assis em manejar bem essa

relação com o tempo e com o resgate da memória, de maneira que pode contar o

desfecho, tal qual o “defunto autor”, e ainda assim despertar o interesse do leitor,

bem como sustentar a imprevisibilidade do rumo da narrativa. A capacidade de atuar

sobre o leitor com o conteúdo da narrativa faz contraponto entre a emoção e a

razão, com uma análise que infere no conteúdo um convite à implicação do leitor no

tema. “Suas aventuras eram mentais, e o seu raro poder de evocar impressões

passadas, criando emoções presentes e duradouras, é o segredo da permanência e

perenidade de sua obra” (COUTINHO, 1997, p. 51).

A repetição ao resgate do tempo, pelo recurso da memória, está implícita no

tema de maior destaque a partir das Memórias póstumas: a perspectiva do homem

diante da morte. Percebe-se a progressiva construção de um referencial sobre o

enigma da morte desde Brás Cubas até o Conselheiro Aires. A forma lúdica de

apresentar um autor (narrador) que é um defunto já é um convite à reflexão quanto à

veracidade da experiência. O relato do delírio de Brás Cubas perpassa a

compreensão metafórica, “segundo pedia a linguagem alógica que lhe é própria, os

grandes eventos que compõem a história da humanidade. Era, como se sabe, o

auge da busca do impossível, a utopia do emplasto ou a filosofia do Humanitismo”

(MOISÉS, 2001, p. 48).

O livro começa com um delírio de Brás Cubas no momento da morte. Surge aí desde logo o motivo do tempo, numa alegoria confusa, em que o moribundo vê desfilarem os séculos em vertiginosa corrida, esperando encontrar no último ‘a decifração da eternidade’. A página é bizarra, tecida a gosto do humorismo excêntrico, mas é uma confissão de impotência, uma afirmação dolorida do absurdo da vida (COUTINHO, 1997, p. 103).

Através de Brás Cubas o destino da humanidade é apresentado no âmago

extremo de seu desamparo. Inclusive, apontado como sem solução por Pandora, a

“mulher” guia no delírio (representação da primeira mortal e da última mulher, deusa

do destino, a moira Átropos, a inflexível), por essa mensageira, ocorre a

aproximação entre o feminino e a morte. O destino humano é de trágica condição

existencial desde o princípio – assim indica a estranha viagem através do tempo,

viabilizada na linguagem do delirante. A morte é uma solução de escape ao

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Considerações finais

desencanto diante do “espetáculo da vida”, ou é um engodo para a aceitação do

inevitável, a transitória realidade dos mortais.

Em consonância com essa questão, a personagem Quincas Borba apresenta,

na teoria do Humanitismo, um meio-termo entre o desamparo e a lúdica esperança

filosófica advinda da reorganização social diferenciada. A dor e a morte estão no

centro das preocupações do novo Sistema. Quincas atribui a Humanitas o atributo

da imortalidade, uma vez que a matéria orgânica vai sendo transferida

continuamente na “multiplicação personificada da substância original” (ASSIS, 1975,

p. 262), eliminando assim a morte. Continuando a usar o recurso da ironia,

amplamente explorado por Brás Cubas, o Humanitismo de Quincas Borba “é uma

sátira ao Naturalismo evolucionista e mais particularmente ao Positivismo que se

infiltrava no Brasil. Para o pensador bizarro e vagabundo só há uma substância –

Humanitas“ (COUTINHO, 1997, p. 104).

No perfil de louco, Quincas Borba reflete com maior profundidade do que Brás

Cubas a ansiedade da existência e a possibilidade de aceitação ou de escape aos

determinismos existenciais. Seu tempo de mendigo registra a contingência humana

frente à dependência material, confronto entre a representação social e o auto-

reconhecimento. Mesmo como mendigo recusa-se a reduzir-se à condição de

escória social; responde à esmola de Brás Cubas do lugar de sujeito e não colado

ao significante da “alma exterior”. Na herança que transfere a Rubião, Quincas

Borba lhe transfere também a ingênua crença na possibilidade de seu Sistema, fato

que não deixaria a Rubião outra escolha, em face de seus desencontros, senão a

loucura e a morte.

O resgate do tempo em Dom casmurro se faz na tentativa do narrador em

“atar as duas pontas da vida”, numa inválida viagem de retorno ao feliz idílio de seu

amor adolescente, retrato da não-elaboração de suas perdas, tanto quanto de sua

não-implicação na parcela de suas escolhas. “O solitário Dom casmurro consegue

invocar as imagens do passado, não a sua sensação, e por isso a tentativa fica

tocada por uma melancolia incurável e pungente” (COUTINHO, 1997, p.108). Em

Bentinho, lêem-se os efeitos amargos da melancolia na impossibilidade de elaborar

sua parcela de covardia moral sem desmistificar sua própria verdade.

A libido está presa em seu próprio narcisismo e não fica livre para novos

investimentos. A energia libidinal de Bentinho sempre atuou como um circuito em

torno de si mesmo. Envolto em ambiente de luto, fora da cena do amor juvenil, sua

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Considerações finais

cena familiar é de culto aos mortos, junto aos três viúvos. É exatamente em uma

cena de morte, velada no olhar dedicado ao morto por Capitu, um olhar de ternura a

Escobar, que Bentinho descobre o desencontro de sua demanda de amor, que não

corresponde à ressonância por ele esperada. É a morte real do amigo que lhe

aponta essa outra morte simbólica. É na cena de morte que se “desfaz subitamente

o engano daquelas vidas. É um desnudamento das consciências, dando lugar à

aparição de coisas ocultas” (COUTINHO, 1997, p. 110). É também na morte que sua

vingança encontra aporte. “Infiel é a vida. Capitu é a imagem da vida” (COUTINHO,

1997, p. 111).

Em Esaú e Jacó, A morte continua pontual em marcar presença. O tempo

como tessitura do caminho da memória é bem representado no Conselheiro Aires. É

um narrador atípico, que comparece na trama com a voz em terceira pessoa e

dialogando com as personagens como sábio anunciador de refinada filosofia.

“Subsistem a ternura humana, a condescendência, a compreensão, e ao mesmo

tempo a maledicência, a pilhéria, o apurado bom gosto e uma sutil sentimentalidade”

(COUTINHO, 1997, p.112). É o Conselheiro quem aponta a proximidade entre a

problemática da morte e do “inexplicável” feminino, subjacente na temática principal.

No encontro com a personagem Flora, o Conselheiro interpreta como

“inexplicável” o saber sobre o ser do feminino e o que se passa nas “malhas” do

desejo de uma mulher. “A indagação metafísica da morte reponta, embora a alma

esteja apaziguada e se prepare para a grande quietude. Por que morre Flora, indaga

ele mais uma vez, por que a mocidade passa e o ser humano perece?” (COUTINHO,

1997, p. 112). Na jovem Flora, a morte comparece como reposta ao desejo que ela

não quis conhecer. Escolheu o encontro com a melancolia, metamorfoseada em

enfermidade; mudo semblante do amor, concretizado na imagem da morte.

Em continuidade à atmosfera nostálgica da vida, o Conselheiro continua sua

trajetória no Memorial de Aires, através de seu diário de notas, e escreve um registro

fiel de sua observação, assim como de sua “alma interior”. O Memorial, “é uma pura

música interior fluindo velada de sua saudade e de seu espírito e deixando que a

bondade e a simpatia da alma humana se desenvolvam francamente” (COUTINHO,

1997, p. 113). Uma melancólica nostalgia perpassa o ambiente do Memorial,

mulheres viúvas, vivendo à sombra do amor ao morto, velando sua memória. O

casal Aguiar ”fartos” da feliz vida a dois e cheios de “saudades de si mesmos”

(ASSIS, 1975, p. 219), velam os sonhos e ideais dos “filhos postiços”.

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O Conselheiro Aires rende-se diante da fisgada do amor e, assim como Flora,

também renuncia, porém sabe do que desiste, pára diante do enigma do feminino.

Observa ele que “a moça Fidélia foge de alguma coisa, se não foge a si mesma”

(ASSIS, 1975, p.173). Apesar da renúncia, admite que “não há como a paixão do

amor para fazer original o que é comum, e novo o que morre de velho” (ASSIS,

1975, p. 200), porém não se arrisca nessa aposta, e admite a sua morte para o

amor. Antecipa a morte do desejo antes da morte real.

O Memorial de Aires fecha o percurso de escrita da obra machadiana,

notoriamente com uma narrativa de percurso oposto ao iniciado pelo narrador Brás

Cubas. Ainda assim, percebe-se claramente que o fio condutor da temática continua

o mesmo. O que muda é o perfil maduro de desenvolver similar questão. O Memorial

de Aires continua a evocar o tempo, como guardião da memória e porta-voz da

melancolia. Como um reflexo do passado, sem possibilidades de reedição. Diz o

Conselheiro: “a música sempre foi uma das minhas inclinações, e, se não fosse

temer o poético e acaso o patético, diria que é hoje uma das saudades” (ASSIS,

1975, p. 132).

O diário do Conselheiro serve de suporte aos registros das rememorações de

fatos, “assim como as personagens parecem viver e sustentar-se das memórias dos

mortos e dos ausentes” (Moisés, 2001, p. 56). A melancolia, mesclada em disfarçado

luto, apresenta o desencanto da vida em resignada conformação, e em discreta

ironia remete à proximidade da morte. Ainda se indagando sobre as lágrimas de

Fidélia, o Conselheiro conclui: “Ah! Minha amiga (ou meu amigo), se eu fosse

indagar onde param os mortos, andaria o infinito e acabaria na eternidade” (ASSIS,

1975, p. 205).

É visível o percurso gradativo da posição humana frente às situações de

perda e dor, ao desfecho da morte e de sua avassaladora presença, seja concreta,

seja como anúncio velado. Nos dois primeiros textos dessa fase, com Brás Cubas e

Quincas Borba, a ironia e a melancolia dividem espaço no discurso para melhor

situarem a impossibilidade de definições que acalmem o encontro com a morte. Em

Dom Casmurro, Bentinho é de cética frieza, fazendo girar todas as atenções em

torno de sua queixa, para ele ímpar, resolvida também em velada morte.

Em Esaú e Jacó o tema a princípio está diluído na querela antagônica dos

gêmeos, até surpreender na indecisão de Flora, em sua escolha de pagar com a

vida o não saber de seu desejo. Fecha-se então a trajetória dos textos machadianos

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com a presença da serenidade, com resignada aceitação do frágil destino e da

certeza do encontro com a morte, mesclada na sabedoria do Conselheiro em similar

sintonia com a sabedoria do Eclesiastes.

Peres, comentando o estudo de Lacan em Hamlet, afirma “que Shakespeare

nos mostra a vida como um permanente estado de luto... vivemos em busca de uma

perda que nos constitui, e construímos a vida dentro de um incessante trabalho de

luto. Nascemos com a inscrição da morte...” (PERES, 1996, p. 53). Ao colocarmos

esse foco de visão sobre a escrita machadiana da segunda fase, percebemos que

Machado de Assis também nos mostra a vida frente a esse constante impasse.

No percurso desenvolvido na construção do texto machadiano está

paulatinamente demarcada a presença da questão da morte. É incontestável a

repetição temática e sua singular aplicação. Desde as Memórias póstumas de Brás

Cubas até o Memorial de Aires, existe um caminho traçado por memórias, tempo e

desamparo. Como um fio que tece acirradamente um conceito na perspectiva de

responder profundamente tais questões, a escrita machadiana, nessa fase, constitui-

se em progressiva reflexão humana diante da morte.

É evidente que as considerações aqui colocadas não têm caráter fechado.

Reconhecemos que a riqueza dos cinco textos escolhidos para esta análise

oferecem, ainda, amplo campo de leitura e de maior aprofundamento. Sem espaço

possível num único estudo, precisariam até, talvez, ser separadamente trabalhados.

Entretanto, para a proposta deste trabalho, julgamos que os traços já encontrados e

aqui demarcados são mais do que suficientes para demonstrar a preocupação da

escrita machadiana com essa questão.

Reafirmamos também que a escrita romanesca da segunda fase está

construída sob o signo da memória como uma representação da morte. Para melhor

explorar essa questão, Machado de Assis utiliza o recurso da melancolia e da ironia

como estratégias de discurso, possíveis de dizer e assim evocar o não possível de

assimilar, a não ser em representação. Como bem diz o Conselheiro Aires, “Os

mortos param no cemitério, e lá vão ter a afeição dos vivos, com as suas flores e

recordações” (ASSIS, 1975, p. 205). Sobre a morte, nada se pode dizer, a não ser

por uma via imaginária.

“E bem, e o resto?” Se a pulsão se caracteriza por não ter objeto próprio de

satisfação, o resto é da ordem do não possível de significar pela palavra. É o resíduo

do que sobra (objeto ‘a’) na busca do objeto perdido, e jamais reencontrado, já que é

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pela falta que se constitui. O resto só é possível como semblante e índice da “coisa

metonimicamente deslizando por objetos substitutos. O resto coloca o amor e a

morte presentificados na dimensão de perdas, entre o luto e a melancolia.

A psicanálise fundamenta a inquietação humana no desamparo. A condição

da existência estará sempre referida à trágica realidade estrutural de insatisfação.

Não há o objeto adequado obturador da falta, não há a possibilidade de responder

totalmente à demanda do desejo. O que há são objetos paliativos que se constituem

como imagens e recobrem parcialmente a demanda do desejo. Nessa medida a “dor

de existir” é uma constante realidade que pode ser elaborada no luto e reinvestida

em objetos substitutivos, ou pode permanecer aberta, em um tipo de morte, sutil e

cotidiana, melancolicamente pela vida afora, antecipando simbolicamente a morte

real.

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