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O duro fardo de ser símbolo nacional MÚSICA Biografia mostra que celebração de Carlos Gomes fez mal ao compositor | C ARLOS H AAG > REPRODUÇÃO DO LIVRO CARLOS GOMES - UMA OBRA EM FOCO

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Page 1: O duro fardo de ser símbolo nacional · 2013. 3. 18. · gas e, pobre Nhô Tonico, elevado a símbolo pátrio nos anos 1970. Não se pode negar que o Brasil gosta de se lembrar dele,de

O duro fardo de ser símbolo nacional

MÚSICA

Biografia mostra que celebração de Carlos Gomes fez mal ao compositor | CARLOS HAAG

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continua lá, mas em versão “moderninha”).Infeliz o país que precisa de heróis, ainda maisinfeliz aquele que não sabe o que fazer de-les: “nosso” Carlos Gomes (1836-1896) foi oprimeiro músico brasileiro erudito a conquis-tar platéias internacionais, o compositor deóperas italianas mais representado no Tea-tro alla Scala, de Milão, depois de Verdi, entre1870 e 1879. Ligado, por laços de amizade egratidão, a Pedro II, foi colocado no ostracis-mo pela República, retirado do limbo por Var-gas e, pobre Nhô Tonico, elevado a símbolopátrio nos anos 1970.

Não se pode negar que o Brasil gosta de selembrar dele, de quando em quando, mas, aocontrário de Villa-Lobos (um notório colabo-rador do Estado Novo), o nosso “maestro so-berano”, Carlos Gomes é, observa o profes-sor de história da música da ECA-USP, Loren-zo Mammì, autor de “uma música famosís-sima e, ao mesmo tempo, quase desconheci-da”. No universo cultural da República Velhaele era a nostalgia do antigo regime e tambémsintoma de “mau gosto”de uma pequena bur-guesia de imigração recente, os italianos “car-camanos”. Para os modernos de 22, era oexemplo da decadência da arte tradicional emoposição direta à música de Villa. Mesmoquando o elogia, com parcimônia, Mário deAndrade avisa que “representar uma obra suaseria proclamar o bocejo uma sensação esté-tica”. Foi preocupada com essas camadas dedesprezo que surrupiaram o compositor queLenita Waldiges Nogueira, professora de mú-sica do Instituto de Artes da Unicamp, resol-veu se dedicar a resgatar o maestro de Campi-

nas da sua ambígua qualidade de “ilustre des-conhecido”.“A obra de Carlos Gomes foi dei-xada de lado não por sua qualidade musical,mas em razão de uma imagem pública criadaà sua revelia e para a qual ele certamente na-da colaborou”, explica a pesquisadora, que aca-ba de lançar Nhô Tonico e o burrico de pau: ahistória de Carlos Gomes por ele mesmo, um li-vro, diz,“escrito a quatro mãos”.

Afinal, desejando fugir a uma biografiatradicional, a professora optou por retratar ocompositor de Fosca a partir de suas cartas,numerosas, trocadas com familiares, amigos,colegas, editores, entre outros, em que, con-ta, “ele revela diversos aspectos de sua vida,desmistificando e humanizando a figura domúsico”.A primeira edição do livro, feito comapoio da Prefeitura Municipal de Campinas,será apenas para distribuição em escolas, mu-seus e universidades. Surge o homem CarlosGomes, com suas misérias cotidianas em bus-ca eterna de dinheiro para saldar suas dívidascrescentes, o depressivo que se sentia incom-preendido entre os europeus e ainda mais noseu país natal, que, efetivamente, amava, aponto de gastar fortunas em uma vila nos ar-redores de Milão, a Villa Brasília, em que exi-bia orgulhosamente cores e símbolos nacio-nais. Há detalhes tocantes, como a carta en-viada, em 1860, ao pai, o também músico Ma-neco Gomes, em que tenta ganhar o perdãopaterno falando de seu sucesso inicial: “Meubom pai, escrevo para não demorar uma boanotícia. Afinal tenho um libreto, A noite docastelo, e começo a trabalhar hoje mesmo nacomposição da ópera. Prepare-se para vir ao

POR VÁRIOS ANOS ELE GEROU MAL-ESTAR PARAMUITOS BRASILEIROS, SINÔNIMO DA HORA DE DES-LIGAR O RÁDIO QUANDO SE INICIAVAM OS ACORDES DASUA OBRA MAIS CONHECIDA, A ÓPERA O GUARANI, QUE ABRIA,

DESDE O ESTADO NOVO, A FAMIGERADA HORA DO BRASIL (HOJE ELA

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Rio. Saudades muitas às manas e aosmanos, abençoe-me como a seu filhomuito grato. Carlos”.

O original da partitura desta primei-ra obra lírica de Carlos Gomes, aliás, foiresgatado, em 1999, pela USP, com apoioda FAPESP, que, em 2003, também fi-nanciou a edição crítica de outra óperasua, Joana de Flandres, feita por LenitaWaldiges.“Fala-se muito dele, mas pou-co se escuta do que ele criou. Sua rea-bilitação como herói nacional causoumais danos do que benefícios à sua ima-gem”, reitera a pesquisadora. “As falsifi-cações da biografia de Carlos Gomes sãotão reveladoras quanto os fatos”, concor-da Mammì. De tez escura, sempre seconsiderou descendente de índios, e nãomulato, cercando-se, em sua Villa Brasí-lia, de objetos indígenas, que dizia per-tencerem à tribo de seus antepassados.Mania curiosa, repetida, em outro con-texto, em outros tempos, por Villa, queadorava contar, em Paris, que fora pri-sioneiro de índios canibais e, com eles,aprendera os sons primais do Brasil.“No

era atacado por uma jovem intelligent-sia que falava em “lavar o altar da arte,sujo como uma parede de lupanar”, co-mo observa o musicólogo Marcus Góesem A força indômita, estudo definitivosobre Carlos Gomes.“O guarani foi es-treado no Scala em 1870 e causou es-tupefação. Os intelectuais e quase todosos músicos queriam algo novo e, ali, derepente, um estrangeiro aparece no pal-co com uma obra que tinha, ainda querudimentarmente, o que todos queriam:maior unidade dramática, continuida-de do discurso musical, não insistênciaem números fechados, adequação damúsica à cena, novos ritmos e harmo-nias ousadas”, nota Góes.

Com o maior sucesso lírico dos pal-cos italianos desde Il trovatore, de Verdi,Carlos Gomes viu seu projeto colocadode cabeça para baixo:“Ele deixou de sero jovem bacharel encarregado de impor-tar a linguagem musical européia parao teatro brasileiro e se tornou, muito an-tes do esperado, o representante brasi-leiro entre as nações líderes da produ-

caso de Carlos Gomes, esse indianismoé mais do que um disfarce oportuno,pois comporta uma identificação pro-funda.‘Eu sou de uma raça bárbara, masreconhecida até a morte a quem saibaprezá-la’, escreveu numa carta. Peri nãoteria dito melhor”, observa Mammì.

A PÓS O SUCESSO COM A NOITEdo castelo, estreada no aniversário decasamento do imperador, o músi-

co muda-se para Milão com uma bol-sa de estudos obtida por mérito próprio,que, ao contrário da lenda, não foi con-cedida por Pedro II, mas por dom JoséAmat, o criador da Ópera Nacional, umprojeto que pretendia promover o can-to em língua portuguesa. Tampouco, co-mo se pensa, foi aluno regular do Con-servatório de Milão, dada a sua idademais avançada, mas teve aulas particu-lares como “compositor em aperfeiçoa-mento”. Chegou na Itália num momen-to crítico, em que o melodrama italiano

ção cultural européia”, nota Mammì. Emvez das “farolices” de Villa, que adora-va dizer que fora à Europa ensinar, e nãoaprender, Carlos Gomes efetivamenteconseguiu ser um marco na música in-ternacional de sua época. E, ao mesmotempo, de seu país. “Se o Segundo Rei-nado se caracteriza justamente pela ten-tativa de construir um perfil cultural na-cional, cimentando traços locais comuma linguagem internacional, pode-sedizer que O guarani é seu produto artís-tico mais bem-sucedido”, completa opesquisador.

Isso, porém, não trouxe nada de bomao compositor. No dia 15 de novembrode 1889 ele estava de passagem por Cam-pinas, ainda morando em Milão.“O cho-que foi de tal natureza contra meu cora-ção de amigo da Augusta Família Real,que fiquei até hoje pasmado. A minhasaúde tem sofrido muito, pois sinto atéfaltar o equilíbrio corporal. Deus perdoeaos autores de semelhante ato brutal e

O original da partitura da primeira obra lírica de Carlos Gomesfoi resgatado em 1999 pela USP, com apoio da FAPESP, que também financiou a edição crítica de Joana de Flandres

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proteja a terra e o povo brasileiro”, escre-veu, em 20 de novembro, a um amigo.“Antes mesmo da queda do Império, jáem 1888, Carlos Gomes havia tido pro-blemas na apresentação da ópera O es-cravo, cuja estréia, no Rio de Janeiro, cau-sou polêmica nos círculos abolicionistaspor ter transformado os escravos do tex-to original de Taunay em índios, dedi-cando a obra à princesa Isabel, represen-tante do regime que se esfacelava”, obser-va Lenita.A pesquisadora lembra que emnenhuma de suas cartas o compositortoca na questão da monarquia de formaideologizada. “Não havia engajamentopolítico por parte dele, mas gratidão eamizade pela família real. Nunca mani-festou simpatia pelo regime.”

C ARLOS GOMES DESCREVEUem carta seu credo político: “Todossabem que eu não tenho política,

que não me meto em barulho (a não sero da música), mas que como brasileiro-patriota tenho o direito de censurar ouaplaudir os atos e procedimentos dequem governa a nossa terra, do mes-mo modo que qualquer politicote di-letante da música está no direito de gos-tar ou não de minha música. Cada vezme convenço ainda mais de que a arte eos artistas de algum merecimento, todosreunidos, nada valem, em comparaçãoa um só da política”. Problemas à vista.Aos quais se somavam as crises pessoaise financeiras por que passava na Itália.“Apesar da boa recepção de Condor, em1891, o músico começava a se sentir des-confortável em Milão, pois era estran-geiro e não era visto com bons olhos pe-los compositores italianos, que não que-riam um selvagem de pele morena ocu-pando seu espaço”, conta a professora.Lorenzo Mammì lembra que o compo-sitor daqueles anos era um homem di-vidido entre dois mundos: de um lado,a Itália, que significava glória, mas des-gaste emocional e físico, bem como umaconcorrência crescente. Do outro, o Bra-sil, onde as perspectivas eram limitadase ele achava que seria tratado como he-rói e não teria rivais. Ledo engano.

“A frieza de uma resposta dessa or-dem é de truncar o arrojo de um busca-pé na noite de São João! Pois um RAPAZcomo eu pode ter tempo para esperar?Até quando? Até que a preguiça ou ta-manduá vá subindo até apanhar o talo daembaúva?”, escreveu em 1893, após uma

mal-sucedida tentativa de criar um con-servatório musical em Campinas. Foipreterido em favor de Leopoldo Miguez,ligado aos republicanos, como diretor doConservatório do Rio de Janeiro:“Lá nãome querem nem para porteiro do con-servatório”, lamentou o compositor, ca-da vez mais cheio de dívidas, envelheci-do, com uma doença grave na língua, de-sempregado e tendo de cuidar de um fi-lho tuberculoso.No fim da vida,em 1895,recebeu o convite para dirigir o Conser-vatório de Belém do Pará, onde morreuem 1896.“Em 1905 é inaugurado o mo-numento-túmulo no centro de Campi-nas, com a presença de autoridades daRepública. Esta estava consolidada e nãohavia razão para que Carlos Gomes fos-se rejeitado.Ao contrário, era o exemplode um brasileiro humilde que venceu noexterior”, observa Lenita. Durante o go-verno Vargas a figura (e não o músico)virou vulto da pátria.“No Museu CarlosGomes em Campinas podem ser encon-

tradas fotos em que corporações e po-líticos prestam homenagem a seu túmu-lo. Uma das mais curiosas é a de um gru-po de integralistas perfilados, com a jáidosa Anna Gomes, irmã do compositor,tendo ao fundo sua estátua portentosa.”Por fim chegou ao dial dos rádios, leva-do pela ditadura varguista, prática con-tinuada na ditadura militar.

“Se há algo incompleto em sua vida,não é por não ter conseguido se ligarcom a verdadeira natureza de sua nação.É, ao contrário, ter ficado inevitavelmen-te ligado a ela, sua situação histórica eseus limites”, analisa Mammì. Não semrazão, no fim da vida, observa Lenita,novamente Nhô Tonico escreve umacarta na qual fala de sua infância, da sau-dade dos cambuís floridos e das brinca-deiras na rua das Casinhas, onde par-ticipava das procissões e, depois, comamigos, corria atrás do judas, quandonão empinava papagaios por Campinas.Nem sonhava em ser herói. ■

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Carlos Gomes (ao centro),entre asprincipaisfiguras do elenco de Fosca, no Scala de Milão

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