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O Dono do Santo da Chapada

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O Dono do Santo da Chapada

Editoração eletrônica: Carlos AraujoCapa: Lamartine Araujo

Ilustrações: Lamartine AraujoRevisão: Fernanda Simões Braga Araujo

Edvaldo Joaquim Pereira

Carlos Araujo

O Dono do Santo da Chapada

Copyright © Carlos Araujo

4156/1 - 250 - 260 - 2007

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)____________________________________________________

Araujo, Carlos O Dono do Santo da Chapada / Carlos Araujo. - - São Paulo - Scortecci, 2007

ISBN 85 - 366-0735-1

1. Ficção brasileira I. Título

06-6742 CDD-869-93____________________________________________

Índices para catálogo sistemático

1. Ficção: Literatura brasileira. 869-93

Grupo Editorial ScortecciScortecci Editora

Caixa Postal 11481 - São Paulo - SP - CEP 05422-970Telefax: (11) 303201179 e (11) 3032-6501

[email protected]

Livraria e Loja Virtual Asabeçawww.asabeca.com.br

A g r a d e c i m e n t o s

Aos que fizeram a apreciação crítica e o diagnóstico desteromance:

Edson Alves Ferreira

Carlos Barbosa

Elta Mineiro

Oldim Mineiro

Reginaldo Pereira

Mônica Simões Braga Araujo

Edson Quinteiro Bastos

Lamartine Araujo

Fernanda Simões Braga Araujo

Camila Simôes Braga Araujo

Um agradecimento especial a

Lamartine Araujo:

Pelas ilustrações e pelas idéias,

que foram fundamentais

para compor esta obra.

Sumário

Lamentação das Almas...............................................................11

Uma conjunção de fatores.........................................................19

O tempo era mormacento.........................................................25

A Chapada...................................................................................37

Reza a lenda.................................................................................45

União de Carvalho com Portela................................................51

Cupido tinha entrado em erupção............................................57

Como se pode ver a alma de alguém?.......................................63

É o objeto da minha afeição......................................................69

Contrariando todas as expectativas...........................................75

Aflorando mais uma geração.....................................................81

Na lentidão do cerimonial dos funerais.....................................87

A caminho do dinheiro!.............................................................93

É o dono do Santo?..................................................................101

Saíram fungando em desabalada carreira..............................109

A senhora Beleza Duarte.........................................................115

As margens do Rio das Garças................................................121

Nosso encontro será inevitável...............................................125

Aguardando seu inimigo declarado........................................131

O alfaiate de repente virou fazendeiro...................................137

Um adeus sem volta..................................................................143

Os tipos que nela habitam..........................................................151

Um só pensamento na cabeça.................................................159

Ao futuro da Chapada..............................................................165

Uma fatalidade...........................................................................173

É o Dono do Santo...................................................................179

Os homens são como as ondas...............................................185

Eu vim aqui para isso.................................................................191

Fama nulla stringitur mora!......................................................199

Em função da romaria.............................................................207

Quem mais saiu lucrando com o Santo..................................213

Já pensando nos planos para o futuro....................................219

Estamos na morada do Santo..................................................227

Enigmático enredo que é a nossa vida...................................235

Fortuna Crítica............................................................................141

Em memória de minha avó Alexandrina Pereirade Araujo e de meus irmãos Sílvio e Humberto

A minha esposa Cleonice e minhas filhasMônica, Fernanda e Camila

“Os homens são como as ondas: quando uma geraçãofloresce a outra declina”

Homero

O Dono do Santo da Chapada

Lamentação das Almas

Capítulo

I

O Dono do Santo da Chapada 13

Donana já havia perdido as contas de quantas vezesinterrompera os afazeres da casa para ficar escutando emarcando nos dedos pacientemente aquelas badaladas do sinoda Igreja Matriz de Santo Expedito. Dessa vez, entretanto, aoouvir e marcar aquele som, começou a ter consciência de queo bimbalhar estava ficando cada vez mais impregnado demelancolia quanto mais tempo se passava daquele longínquo efatídico dia em que Anatalino Pacífico badalou aquele bronze,em melodia compassada e angustiante, que doía no fundo dasua alma, acompanhando o enterro de seu falecido maridoJoaquim.

Era noite de Sexta-feira da Paixão, dia em que ali secomemorava a morte de Cristo de uma forma muito peculiar.Se em outros lugares os sinos silenciavam nesse dia, na Chapadanão. Havia um outro ritual. Donana contou onze badaladas.Aquele era o sinal convencionado para que começassem a se

14 Carlos Araujojuntar na casa dela suas fiéis companheiras de todos os anos.Passou as vistas nos apetrechos mais uma vez e certificou-seque estavam todos à mão. A matraca, a cruz, a Bíblia Sagrada,as velas e o camisolão branco. Este, bem passado e dobradoem cima da mesa da sala.

– Ô de casa! A banda da porta tá aberta e já vou entrando,comadre Donana. Que a noite seja boa para todas nós.

A dona da casa reconheceu imediatamente a voz roucae inconfundível da viúva Prizilina.

– Pode ir entrando, comadre. Venha se agasalhar aquineste tamborete pra gente puxar uma prosa até que todas asnossas companheiras se juntem aqui conosco.

– Estou assim num estado de aperreio que me dói opeito. Enquanto o sino repicava as onze badaladas, me bateuuma tristeza danada, inconsolável, pois fiquei me lembrandodo meu Falecido.

– Imagino como é isso, comadre. A tristeza não devearredar o pé do seu pensamento.

– Como você bem sabe, sou uma pessoa muito curiosa.Acho que foi exatamente essa curiosidade que me levou a serparteira, pegadeira de crianças. É do seu conhecimento tambémque já ajudei a trazer ao mundo tantas crias que não faço nemmais idéia da quantidade. Inclusive, até fora daqui. Em Barrado Mendes, Chapada Velha, Fundão de Brotas e também naGameleira.

– Tenho mais comadres do que mereço!– Isso de comadres demais não é verdade. Você merece

muito mais afilhados do que tem!– Como eu ia dizendo, foi essa curiosidade desmedida

que me levou também a procurar insistentemente umaexplicação para a ligação do sino com a vida e a morte daspessoas.

– E então? O que soube, Donana?– O Padre Mário me explicou, com aquele seu vozeirão,

que os sinos, desde o início do cristianismo, têm a função deanunciar os acontecimentos comunitários. Antigamente, disseo padre, a rotina de toda comunidade era regulada pelobimbalho forte que soava do alto da torre da igreja e inundavatudo ao redor, invadindo os silêncios das moradias e dos camposvizinhos, chegando até às orelhas das pessoas e dos animais.O sino, concluiu o nosso pároco, foi durante anos e anos, ogrito dos tempos antigos, medievais. Era ele que soava osalarmes, os pedidos de socorros, lamentava as pestes eacompanhava, pesaroso, os enterros. Anunciava também asalegrias da comunidade: O dia do padroeiro, a boda da princesa,o nascimento do príncipe, os batizados, casamentos, novenase a festa do senhorio.

– Sempre no alto das torres das igrejas, ainda hoje,anunciam os bons e os maus acontecimentos. Toda comunidadeouve o som do seu bronze. Nos casamentos, batizados e nasmissas, suas batidas soam num ritmo acelerado e alegre. Já nosfunerais, suas badaladas são compassadas, angustiantes e tristes,principalmente para os ouvidos dos parentes dos defuntos.

– Eu ouvia o sino e pensava em 1926. Como foi trágicopra mim aquele ano. Mal tinha nos livrado daquelas lutassangrentas entre os bandos do Coronel Horácio de Matos edo Coronel Militão Rodrigues Coelho, quando, de repente,aparecem como que surgidos do nada, os terríveis revoltosos.

O Dono do Santo da Chapada 15

Aqueles grupos de desconhecidos, que foram chegando naregião, raptando pessoas, arrebanhando e matando nosso gadopara o seu alimento e surrupiando nossos cavalos para suasmontarias. E o que era mais desesperador, espalhando o pânicoe o terror nas pessoas pacatas da nossa Chapada.

– Aquele foi um ano calamitoso mesmo, Donana!– Foi o Coronel Clemente Pereira, esse homem

entendido em política, que me explicou quem eram aquelesrevoltosos. Ele me contou como tudo começou. Foi, disseele, um movimento de insatisfação de um grupo de jovensmilitares do Rio Grande do Sul, contra os presidentes daRepública Velha, Epitácio Pessoa e Artur Bernardes. Governosque, segundo esses jovens, favoreciam sobremaneira osinteresses oligárquicos de uma minoria de brasileiros. Essemovimento era liderado pelo tenente Mário Portela Fagundese por um jovem capitão chamado Luiz Carlos Prestes.

– O Coronel Clemente salientou que esse grupo demilitares rebeldes seguiu para São Paulo, se juntou a outrosque também haviam se rebelado na capital paulista. E, dessamaneira, formaram a Coluna que percorreu mais de 25 milquilômetros pelo interior do Brasil, tentando convencer oshomens do campo a se integrarem à sua causa, no intuito detentar derrubar o Presidente da República.

– Esse movimento de militares rebeldes passou àhistória com o nome de Coluna Prestes. Nome esse adotado,evidentemente, por causa da liderança e estratégia de LuizCarlos Prestes.

– O Coronel Clemente Pereira disse mais. Falou que,em 1926, o Presidente Artur Bernardes mandou chamar um

16 Carlos Araujo

tal de General Mariante, do Ministério da Guerra, para formarbatalhões compostos de militares e homens simples do sertãopara combater os revoltosos.

– A Coluna já se encontrava no interior do Estado daBahia e as autoridades, temendo que os comandados de LuizCarlos Prestes invadissem Salvador, mandaram chamar oCoronel Horácio de Matos.

– Pela segunda vez, naquela época, nós tivemos notíciasde Horácio de Matos aqui na Chapada. Pois, sete anos antes,ele já tinha sido notícia ao impor uma derrota humilhante aotemível Coronel Militão Rodrigues Coelho, dentro do seupróprio terreiro, Barra do Mendes. E, a partir de então, setornara o homem mais poderoso da Chapada Diamantina.

– Foi nessas circunstâncias – frisou o Coronel Clemente– que Horácio de Matos ficou incumbido de formar o BatalhãoPatriótico Lavras Diamantinas. Evidentemente, esses homensarrebanhados entre os civis, mais os militares seriamcomandados por ele mesmo. Para tanto, começouimediatamente a convocar os homens jovens disponíveis naChapada para se juntarem aos militares, com o firme propósitode escorraçar os revoltosos da Bahia e, se possível, do Brasil.

Nesse ponto da conversa da dona da casa, já tinhamchegado Zumira, Dazinha, Maria de Gregório, Joana e Isabel.Aconchegaram-se em tamboretes de são-joão e escutavam,interessadíssimas, a narrativa emocionada da parteira Donana.

– Naquela época, estava eu e meu Joaquim numa fasede muita felicidade e bem estar. Senão quando, ele recebe umaconvocação do Coronel Horácio de Matos para fazer parte dotal Batalhão Patriótico Lavras Diamantinas. E teria que se

O Dono do Santo da Chapada 17

apresentar imediatamente na cidade de Lençóis. Foram diasde aflições, medos e sofrimentos aqui em casa. Passados doisdias da data da convocação, de manhãzinha, ele selou seu cavaloe, aos trinta e três anos de idade, se despediu de mim e foi aúltima vez que vi meu marido com vida.

Foram chegando, nesse instante, Dalva, Rosa, Tributina,Antonia, Zilda e Sabina, encontrando Donana com lágrimasnos olhos.

O sino da igreja começou a soar as doze badaladas dameia-noite da Sexta-feira da Paixão, obedecendo o comandode Anatalino Pacífico.

– Como é do conhecimento de quase todas vocês –prosseguiu a viúva – o corpo do meu marido foi encontradona estrada, nessa viagem para Lençóis. E, até hoje eu não seiquem foi o responsável pela sua morte.

Aquelas treze viúvas que estavam ali reunidas na casade Donana concordaram imediatamente num ponto: A noiteestava realmente propícia para lamentações. Para Lamentaçõesdas Almas!

18 Carlos Araujo

Uma conjunção de fatores

Capítulo

II

Uma conjunção de fatores concorrem para que asviúvas proliferem na Chapada. É raro acontecer viuvez dehomens nessas bandas. Muito comum é encontrar mulheresque enviuvaram por conta dos respectivos maridossucumbirem, com os corpos crivados de balas, ante as lutastravadas entre os partidários dos coronéis desse sertão de meuDeus. A história não registrou ainda a façanha de nenhumadonzela ou senhora empunhando uma lazarina e se declarando,com empáfia, que seria a primeira jagunça da ChapadaDiamantina. Se alguma dona de casa se atrevesse a tanto, seriaridicularizada pelo bando inteiro do primeiro chefete a quemse apresentasse com tal intenção.

Muitas esposas perderam seus maridos emconsequência desses bravos sertanejos não conseguiremtranspor a casa dos cinqüenta anos, em face do seu ritmoincansável de trabalho, de sol a sol, de domingo a domingo, na

O Dono do Santo da Chapada 21

labuta da lavoura, do criatório e do garimpo. A diferença ébrutal entre as intempéries do trabalho na roça e nas lavras,enfrentadas pelos maridos, e o conforto do teto do lar notrabalho doméstico tocado pelas mulheres.

Também há de se mencionar as mal-aventuradas queenviuvaram por conta dos vícios dos maridos. A cachaça e ocigarro, aliados à jogatina no varar das noites e as rondas noscabarés do lugar, levaram muitos chapadenses precocementepara o fundo da sepultura. Essa conduta desregrada foi inimigamortal para a vida de precária alimentação, e muitos dessesviciados sucumbiram ainda moços.

Existe, por fim, entre tantas outras, uma categoria muitopeculiar de viúva na Chapada: A viúva de marido vivo. É fatocorriqueiro acontecer de muitos jovens se conhecerem e secasarem ainda no início da adolescência, principalmente adonzela. Depois do casamento, o marido fica angustiadoporque, muitas das vezes, não quer seguir a mesma profissãodo pai, de roceiro, garimpeiro, jagunço, e sem ter o que fazerno lugar, vai tentar a sorte em São Paulo. O destino natural demuitos desses jovens recém-casados. Na partida, faz juras deamor à esposa. Diz que logo que encontrar trabalho vem buscarsua cara-metade. No início, ainda manda algum dinheiro dentrode cartas,que envia pelos Correios, com promessas de brevereencontro. O tempo passa. Não demora muito e as notíciasvão rareando. Ela perde o contato com o marido. O dito cujonão é mais localizado no mesmo endereço. A esposa ficaesperando uma notícia que nunca chega. Nessas alturas, nãosabe mais se o marido está vivo ou morto. A esposa então sedeclara viúva de marido vivo.

22 Carlos Araujo

São de fato calejadas as viúvas da Chapada. Algumascom filhos, outras não. A maioria já com uma certa idade e,igual a quase todas as viúvas nordestinas do interior, já com osrostos vincados e injiados a denunciar o peso da idade, a açãodo tempo, os sofrimentos e os efeitos dos raios inclementesdo sol a pino desses ares sertanejos, feito os rastros intermitentesdos rios e riachos ziguezagueantes e quase fantasmas queassombram essa região.

Ali estavam, na casa da velha senhora, todos osexemplares de viúvas do interior nordestino. Ao longo dosanos, Donana foi guindada à condição de líder daquelas beatasda Chapada que, naquele exato momento, iam começar umritual que realizavam há bastante tempo: A Lamentação dasAlmas.

Vestiram os camisolões brancos. Prepararam as velas.Maria de Gregório empunhou a matraca, Donana pegou aBíblia Sagrada e Dazinha a cruz.

Todas foram se postar em volta da mesa da sala,enquanto a dona da casa abria a Bíblia na Primeira Epístola deSão Paulo a Timóteo.

– Vamos começar a nossa jornada da Lamentação dasNossas Almas, como sempre, lendo Timóteo 5.3-10.

“3. Honra as viúvas, que são verdadeiramente viúvas.4. E se alguma viúva tem filhos, ou netos: aprenda

primeiro a governar a sua casa, e a corresponder a seus pais:porque isto é aceito diante de Deus.

5. Mas a que verdadeiramente é viúva e desamparada,espere em Deus, e esteja perseverante em rogar e orar de noitee de dia.

O Dono do Santo da Chapada 23

6. Porque a que vive em deleites, vivendo está morta.7. Manda pois isto, para que elas sejam irrepreensíveis.8.E se algum não tem cuidado dos seus, e

principalmente dos da sua casa, esse negou a fé, e é pior queum infiel.

9. A viúva seja eleita, não tendo menos de sessentaanos, a qual não haja tido mais de um marido.

10. Aprovada com testemunho de boas obras, se educoua seus filhos, se exercitou a hospitalidade, se lavou os pés aossantos, se acudiu ao alívio dos atribulados, se praticou todaobra boa.”

– Amém! Amém! Amém! Amém!

24 Carlos Araujo

Capítulo

IIIO tempo era mormacento

Quando aquele cortejo singular ganhou as ruas desertasda Cidade, já passava da meia-noite. Dazinha entregou a cruzpara Donana.

O tempo era mormacento. Vez por outra pedaços denuvens em movimento cobriam a luz do luar. Com o soprardo vento, os clarões das velas iam se acendendo e apagando,parecendo um bando de gigantes vaga-lumes zanzando pelanoite da Chapada. O assoprar da ventania sibilante e o correrdas nuvens pelo Céu, faziam aumentar a sensação de algoextraordinário e sobrenatural. As ruas do Lugar estavamdesertas. Entretanto, um homem misterioso observava aprocissão à distância, sem ser visto.

Donana estava à frente empunhando a cruz e começoua comandar a Lamentação.

– Um Padre-Nosso e uma Ave-Maria.

O Dono do Santo da Chapada 27

As outras respondiam.– Pelas almas dos que morreram assassinados.– Pelas almas dos que morreram sem confissão.– Pelas almas dos que morreram afogados.– Pelas almas que estão no Purgatório.– Pelas almas dos nossos maridos.– A miserricórdia do Nosso Senhor...Enveredaram para o norte, seguindo pela Rua Marechal

Deodoro da Fonseca, que atravessa a praça da Matriz pelo ladoleste. De modo que, quando desembocaram na Praça de SantoExpedito, tiveram que circundar a Igreja, porquanto, como éde praxe com quase todos os templos católicos, é construídade frente para o oeste.

Enquanto faziam a volta pela Igreja, começaram a rezara Ladaínha de Santo Expedito. Senhor, tende piedade de nós,

Jesus Cristo, tende piedade de nós,Senhor, tende piedade de nós,Jesus Cristo, escutai-nos,Jesus Cristo, atendei-nos,Pai Celeste, que sois Deus, tende piedade de nós,Deus Filho, redentor do mundo, tende piedade de nós,Deus Espírito Santo, tende piedade de nós,Santa Maria, rainha dos mártires, rogai por nós,Santo Expedito, invencível atleta da fé, rogai por nósSanto Expedito, fiel até a morte, rogai por nós.Santo Expedito, que tudo perdestes para ganhar Jesus

Cristo, rogai por nósSanto Expedito, que sofrestes os golpes da chibata,

28 Carlos Araujo

rogai por nósSanto Expedito, perecestes gloriosamente pela espada,

rogai por nós.Santo Expedito, que recebestes do Senhor a coroa de

justiça que Ele prometeu aos que O amam, rogai por nós.

Santo Expedito, patrono da juventude, rogai por nós.Santo Expedito, auxílio dos estudantes, rogai por nós.Santo Expedito, modelo dos soldados, rogai por nós.Santo Expedito, protetor dos viajantes, rogai por nós.Santo Expedito, advogado dos pecadores, rogai por nós.Santo Expedito, saúde dos doentes, rogai por nós.Santo Expedito, mediador dos pleitos, rogai por nós.Santo Expedito, nosso socorro nas questões urgentes,

rogai por nós.Santo Expedito, que nos ensinais que jamais é necessá-

rio remeter para o dia seguinte, para pedir com ardor e confiança, rogai por nós.

Santo Expedito, sustentáculo fidelíssimo dos que espe- ram em vós, rogai por nós.

Santo Expedito, cuja proteção à hora da morte é uma garantia de salvação, rogai por nós.

Cordeiro de Deus que tirais os pecados do mundo, perdoai-nos, Senhor.Cordeiro de Deus que tirais os pecados do mundo,

atendei-nos, Senhor.Cordeiro de Deus que tirais os pecados do mundo, ten-

de piedade de nós, Senhor.Jesus Cristo, escutai-nos.

O Dono do Santo da Chapada 29

30 Carlos AraujoJesus Cristo, atendei-nos.Santo Expedito, rogai por nós, para que sejamos dignos

das promessas de Cristo. Amém!

Retornaram à Rua Marechal Deodoro, já pelo outro ladoda Praça e começaram a sair do centro da Cidade. Seu destinoera o cemitério. Na frente da última casa dessa rua estavaestacionado um velho caminhão GMC. O único do Lugar.

O estranho cortejo não seguiu o caminho tradicional docampo-santo. O que era percorrido por todos os defuntos, queficava mais para o sul e era relativamente reto.

As viúvas preferiram ir penitenciando por um tortuosocarreiro, ao norte, que margeava o Morro dos Morcegos. Iamse movendo pelo meio de unhas-de-gato, carrapichos, urtigas,mata-pastos, juremas-pretas, quipás e quiabentos, paraaumentar a diligência daquela santa Lamentação.

O caminho era longo até o cemitério e as beatas seguiamentoando as rezas costumeiras.

“ – Ó bendita cruz,Cruz benditaAli Jesus CristoFoi crucificadoAli vosso sangueFoi derramado...”

Os vultos das viúvas já ladeavam o início do Morro e ohomem misterioso seguia as suas pegadas, mantendo umacerta distância. Ele tinha o soprar dos ventos e a escuridão da

O Dono do Santo da Chapada 31noite como únicas testemunhas.

A Lamentação continuava:– Um Padre-Nosso e uma Ave-Maria....– Em atenção das almas do Purgatório.– Seja tudo pelo amor de Deus.Amor de Deus...O toque seco da matraca e a reza lamentosa das beatas

ecoavam pelas encostas do Morro dos Morcegos. Nessasalturas, já aceleravam a marcha para alcançar seu destino - ostúmulos dos esposos.

Nesse ponto, o carreiro fazia uma bifurcação, indo umcaminho em direção do cemitério e o outro cotornava o morro,a oeste, direto para a Lagoa.

Foi nesse instante que algo espantoso e surpreendenteaconteceu na noite da Chapada:

Uma ensurdecedora explosão se fez ouvir. Ecoou portodos os quadrantes do Lugar e, em cima da explosão, abriu-seum clarão na noite escura que ofuscou os olhos daquelas trezepenitentes. A explosão foi tão próxima delas que todas foramao chão. Seguiu-se um silêncio de jazigo.

Devagar, uma a uma, foram se levantando atordoadas.– O que foi isso, pelas chagas de Nosso Senhor Jesus

Cristo?– Será que foi um trovão, Donana?– Nunca vi um trovão com esse rompante! Muito menos

no chão e tão próximo!– Parece que foi pro lado da Caverna.– Da Caverna dos Morcegos? Será?– Acho que sim.

32 Carlos AraujoTodas as penitentes trataram de acender novamente as

velas e saíram correndo em direção da caverna. Quandochegaram nas imediações, pararam indecisas. Foram seaproximando de mansinho e começaram a perceber querealmente a explosão tinha sido na gruta. Havia sido abertauma enorme passagem para o interior da Caverna dosMorcegos. Uma abertura tão grande que dava para passarvárias pessoas ao mesmo tempo.

Ficaram atarantadas e hesitantes, a princípio, mas emseguida foram criando coragem e começaram a iluminar, comsuas velas acesas, o interior ainda inexplorado do lugar. Ohomem misterioso observava, ansioso e interessadíssimo, acerta distância.

A confusão se generalizou. O mais admirável cenário sedescortinou para as assustadas viúvas, quando transpuseramaquela passagem aberta pela explosão. Havia um amplo salãodentro da gruta, como se fosse a nave de uma grande catedral,com paredes de pedras quase na vertical. Cabiam ali umasduzentas pessoas. As luzes de algumas velas, colocadas empontos estratégicos, iluminavam o local. No chão do ambiente,que apresentava uma horizontalidade perfeita, havia muitaslascas de pedras provenientes do evento recente.

Maria de Gregório gritou a plenos pulmões:– A imagem do nosso padroeiro está dentro da Caverna

dos Morcegos! Vejam! Vejam!A imagem de Santo Expedito estava colocada numa

fenda em forma de altar, na parede do fundo da grande sala.Todos os presentes foram se ajoelhar nas proximidades

do Santo.

O Dono do Santo da Chapada 33A ensurdecedora explosão foi ouvida em toda a Cidade

e arrancou os moradores mais cedo de suas camas. Houve umadesenfreada correria em direção do acontecido e, em poucosminutos, a população inteira da Chapada estava nas imediaçõesda boca da gruta.

O sacristão foi um dos últimos a chegar. Estavaesbaforido e foi logo gritando:

– A imagem do nosso Santo sumiu! Não está mais noaltar da igreja!

Donana rebateu.– É claro que não está na igreja! Santo Expedito está

dentro da gruta!Aquilo tudo fica parecendo irreal e muito confuso para

as pessoas ali presentes. Estão todas de olhos arregalados emaravilhadas com aquele esplendor de cenário. O dia vaiamanhecendo. O sacristão não acredita no que dizem e querentrar na Gruta dos Morcegos para ver, com os próprios olhos,a imagem que desapareceu da igreja. O sacristão desmaia. Opovo se inquieta. O sacristão volta a si. Fica apontando para aimagem.

– Ele trocou de roupa! Avalie uma coisa dessa!– Quem trocou de roupa, homem de Deus?

– Olhem o Santo. Lá na igreja a roupa dele era vermelhae aqui ele está com a roupa azul!

Todos ficam espantados e começam a pensar em mila-gre.

Nesse momento, ouvem-se gritos unissonantes.Milagre!! Milagre!! Milagre!! Milagre!!

34 Carlos AraujoHá na atmosfera alguma coisa invulgar que exala o so-

brenatural. As pessoas parecem hipnotizadas, em transe, emestado de torpor, como num delírio coletivo. Todos os olharesse voltam para o centro do salão.

Abre-se imediatamente uma roda. No centro está ChicoAleijado que havia largado as muletas e começava a andarnormalmente. Caiu de joelhos em frente da imagem do Santo,chorando copiosamente e rezando.

Novamente ecoaram os gritos:Milagre!! Milagre!! Milagre!! Milagre!!Todos se viram e ficam espantados. A Amelinha, que se

dizia cega de nascença, sai do meio da multidão e aponta paraa imagem, gritando:

– Estou enxergando o Santo! Estou vendo o Santo!– Milagre! Milagre!Naquele exato momento, se aproximavam três notívagos

farristas , e eram os últimos cidadãos da Chapada a chegar aolocal da explosão. Tinham varado a noite na esbórnia. Vinhamdiretamente da casa de Ana Gata e ainda conservavam as pan-ças encharcadas de cachaça.

Ninguém ainda havia prestado atenção no homem mis-terioso. Mas, logo que chegaram os boêmios, eles notaramimediatamente a presença dele ali. E, o mais sóbrio dos três,empertigou-se, fez pose de solenidade e soltou o verbo:

– Alea jacta est! Natalia Sancto!– Depois de tanto tempo de convivência, já sei traduzir o

seu famigerado latim, Espirro:– A sorte está lançada! O Nascimento do Santo!– Exatamente, meu caro!

O Dono do Santo da Chapada 35– Entretanto, tem um porém meus jovens Manhas e Fila

Grogue.– Que porém? Parece que tudo vai depender da sorte!– Alea non facit omnia!– Já sei!:– Não é a sorte que decide tudo!– Perfeitamente. Concordam?Espirro ainda gritou para quem quisesse ouvir:– Altis prerumque adiacent abrupta!– Quem muito alto vai, de muito alto cai!– É isso aí Manhas! Todos à casa de Ana Gata!Fizeram meia-volta e, com ares interrogativos, foram to-

mar mais uma dose de pinga, quase indiferentes àquela agita-ção da manhã do Sábado de aleluia.

O homem misterioso, que tinha se misturado com amultidão, observava a cena e ficava satisfeito com o rumodos acontecimentos. Quando constatou que tudo havia saídodentro dos conformes, veio imediatamente à sua memória certotempo de outrora.

A Chapada

Capítulo

IV

A partir do final do século XVII e até meados do séculoXVIII, o Brasil era o maior produtor mundial de diamantes ede ouro. Prova disso era que quase a metade de todo ourocomercializado naquela época provinha do subsolo brasileiro.Esses minerais tupiniquins mudaram o rumo da história daEuropa. No ano de 1703, Portugual assinou o Tratado deMethuen e se obrigou a desativar todas as ourivesarias quemanufaturavam o ouro extraído no Brasil. Por conta dessetratado, nossa Colônia teve que transferir, através de Portugal,aproximadamente, cento e vinte milhões de libras de ouro paraa Inglaterra, que foram fundamentais para o financiamentoda Revolução Industrial, e fizeram do Reino Unido a maiorpotência mundial do século XIX.

A extração desses minerais no interior da Colônia fezdesencadear um novo ciclo na economia do Brasil e foi fatorpreponderante para o povoamento de seus mais recônditos

O Dono do Santo da Chapada 39

rincões. Naquele tempo, a riqueza mineral do nosso Paísbrotava da Cordilheira do Espinhaço, complexo montanhosoque, do centro de Minas Gerais, atravessa a região central daBahia e corre paralelo ao Oceano Atlântico e ao Rio SãoFrancisco e vai até o norte do Estado.

O Espinhaço é literalmente um divisor de águas noterritório baiano, separando os rios que são afluentes do VelhoChico e os cursos d’água que deságuam diretamente no OceanoAtlântico. Temos como exemplo destes últimos, os riosParaguaçu e Rio de Contas. Na Bahia, o Espinhaço forma aSerra Geral, mais ao sul, e a Chapada Diamantina, no coraçãodo Estado.

A descoberta de ouro em Minas Gerais e na Bahiaefetivamente encetou o processo de povoamento do interiordo território brasileiro. Aliado a isso, a mudança da Capital doBrasil, de Salvador para o Rio de Janeiro, provocou umadesorganização na economia açucareira do Recôncavo e dolitoral baiano. Até aquela época, quase que a totalidade dapopulação se concentrava na área litorânea do Estado da Bahia.Em face desses acontecimentos, enormes contingentes de forçade trabalho escravo foram deslocados para os garimpos daChapada Diamantina.

Foi pois, com o início do ciclo da mineração que seinaugurou o processo de colonização do interior baiano,notadamente na área central da Província.

Por volta de 1839, um explorador proveniente dasMinas Gerais, descobriu diamantes no lugar de nomeTamanduá, que distava onze léguas de Gentio do Ouro, nonoroeste da Chapada Diamantina. Logo depois, foram

40 Carlos Araujo

descobertas novas minas em Santo Inácio, região aurífera daSerra do Assuruá. E em seguida em Morro do Chapéu.

Entretanto, a descoberta mais importante, até então,foi a perpetrada por garimpeiros de uma família de nome Grota,na Chapada Velha, na Serra das Aroeiras, município de Brotasde Macaúbas. Esse garimpo se tornou o maior e maisimportante centro de mineração diamantífera da Bahia, até ofinal do ano de 1844. Nesse ano, foram descobertos diamantesna nascente oriental do planalto, mais precisamente, na regiãode Mucugê. Os diamantes que até aquela quadra foramgarimpados eram de poucos quilates e, portanto, de valormodesto.

No entanto, os encontrados no Rio Mucugê, eramabundantes, de boa qualidade e muito maiores do que os deChapada Velha.

Sucedeu naquela ocasião uma corrida desenfreada esem precedentes para a região, que provocou o despovoamentodos antigos centros baianos de mineração auríferos ediamantíferos. Dessa maneira, as lavras se multiplicavam comoque por encanto e não sobrou nenhum leito de rio, riacho,córrego ou brejo da Chapada Diamantina oriental que não fosseescarafunchado.

Esse período de mineração foi o que determinou osurgimento de uma nova geração de assentamentos humanosnaquelas bandas. A partir de Mucugê, a lavra de diamantes sealastrou para o sul, chegando até o vale do Rio de Contas,levando um novo ânimo a vilas, como Rio de Contas, Caetité eBarra da Estiva. Para o norte, apareceram novas povoaçõescomo Igatu, Andaraí e Lençóis, e mais outras, até atingir Morro

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do Chapéu. Foi a partir de então que a região começou a serconhecida como Chapada Diamantina. Em pouquíssimotempo, mais de vinte e cinco mil pessoas afluíram para essesgarimpos, no coração da Bahia.

A propensão nômade dos garimpeiros e a crise demoradia fizeram com que grutas, locas e cavernas fossemtransformadas em residências e muitas famílias vivessem, pormuitos anos, em barracas cobertas de tecidos existentes naépoca.

Esse frenético e efêmero período de lavras dediamantes, em larga escala, na região central da Bahia, que nãodurou mais do que trinta anos, era assim como o pulsar desangue carmesim no coração de um ser agitado e esperançoso,com garimpeiros em fluxo e refluxo pela Chapada Diamantinaafora. A cada boato que se espalhava, no dia a dia, a ondahumana ia de um lado para o outro. E nesse vai e vem daspessoas, na época em que os únicos meios de transporte naregião eram os animais e as próprias pernas dos garimpeiros,iam aflorando aglomerados humanos aqui e ali. E existiam locaisespecialmente apropriados para tal fim. Lugares de atraçãoquase mágica, que seduziam os viajantes sertanejos: um riacho,um terreno mais ou menos plano e um brejo entre as serras.Um terreno embrejado era sempre sedutor.

O brejo é uma espécie de oásis do sertão, foiresponsável, no passado, pelo surgimento de várias cidades dointerior da Bahia. É tanto que os moradores desses lugarespassaram a ser conhecidos como brejeiros.

Assim, no momento em que se descortinou um lugarque reunia essas três bênçãos da natureza no mesmo sítio: brejo,

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planície e riacho, e se espalhou um boato absolutamentefantástico sobre diamantes nessa plaga, esse bendito chão ficoupredestinado a ser um dos mais cativantes ajuntamentoshumanos da Chapada Diamantina.

O Dono do Santo da Chapada 43

Reza a lenda

Capítulo

V

Reza a lenda, lá do final do século XIX, de quando osdiamantes já escasseavam em Chapada Velha, que correu umanotícia – correu não, desembestou – deixando os garimpeirosda região em estado de alvoroço. Ninguém soube quemespalhou a história. Mas, da noite para o dia, todo mundo ficousabendo que um garimpeiro sortudo teria encontrado umdiamante gigante, de mais de 80 quilates, a seis léguas deChapada Velha, nos cascalhos do Riacho das Aroeiras, próximodo Brejo das Moças.

Imediatamente, centenas de garimpeiros abandonaramsuas lavras e se debandaram para aquele endereço. No início,tiveram uma grande decepção. Porque ninguém, por mais quetentasse, conseguiu ver o tal diamante e seu dono. Muitosacreditaram na história de que a pedra era muito grande e tãovaliosa que o felizardo proprietário teria viajado, de repente,para Salvador na esperança de tentar negociar a jóia.

O Dono do Santo da Chapada 47

De imediato, o lugar foi batizado de Chapada Nova,alusão muito apropriada a Chapada Velha, que ficava a seisléguas dali.

Depois de semanas e semanas faiscando no riacho, semresultados animadores, aqueles aventureiros já estavamdesalentados e prontos para desistir da empreitada.

Quando ergueram as vistas para levantar acampamento,dezenas deles se recusaram a partir. Fitaram uma paisagemdeslumbrante.

Observaram o horizonte e perceberam a magníficaaléia. Um cortinado verde formado por copas de coqueiros eburitizeiros centenários e altíssimos, eretos, a pique, cobrindoparte das serras e do arrebol poente do lugar e, com prazer,descobriram que a Chapada era definitivamente a felizproprietária dos mistérios do entardecer.

Ambicionaram o massapé dos canaviais daquele brejoe se esbaldaram nos banhos de cachoeira e nas bicas da Fontedas Moças, em noites enluaradas.

Ficaram abismados com a convivência harmoniosa dosjuazeiros com o pau louro, dos surucucus com os cipós, doscaroás com as ararutas, das aroeiras com as mangueiras, dosaipins com os quipás e das pegas e dos sofrês nas flores dosmulungus.

Viram, e acharam bonito, o tapete verde do lírio-d’águacobrindo a metade da Lagoa do Morro dos Morcegos.

Amaram o povo que ali vivia e resolveram, sempestanejar, engrossar a população daquele magnífico rincão.

Fincaram raízes. Edificaram suas moradas na junçãodaquelas montanhas espigadas, espremidas por tão notável e

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extensa planíce. Pedaço abençoado de chão, no qual não sesabe onde começa a Serra da Mangabeira e termina a Serra dasAroeiras, ou vice-versa.

Ali, no coração da Bahia, com todo o sangue, artérias eveias a que tem direito, é onde está encravado o cenário destasurpreendente história: A Chapada.

O Dono do Santo da Chapada 49

União de Carvalho com Portela

Capítulo

VI

Quando principiou o Século XX, os coronéis ditavamas leis na Chapada Diamantina. Naquela quadra, chegava-seao apogeu do coronelismo nessa parte do Brasil.

Oficialmente, a patente de coronel só era concedida ahomem de notório prestígio e poder político em suacomunidade. E ainda teria que deter uma renda anual nuncainferior a cem mil réis.

Esses coronéis eram, teoricamente, responsáveis pelagarantia da segurança e da ordem. Entretanto, muitos deles, oque mais faziam era ter exatamente um procedimento inverso:Usavam a força, com todo tipo de arbitrariedades e atrocidades,para poder manter a oligarquia agrária, com o poder políticosob seu comando.

Eles compunham a Guarda Nacional, criada em 1831,no período da Regência Trina Permanente no Brasil.

O Dono do Santo da Chapada 53

Mesmo com a extinção da Guarda Nacional, ocorridaem 1911, as patentes de coronel continuaram valendo nointerior do País. Devido à estrutura dessa Guarda, a patente decoronel passou a ser equivalente a um título nobiliárquicooutorgado, de preferência, aos grandes latifundiários. Dessamaneira, o cidadão agraciado com tal honraria, conseguiaadquirir autoridade suficiente para impor sua vontade e a ordemsobre o povo de sua jurisdição.

No final do segundo decênio do Século XX, doiscoronéis do extenso município de Brotas de Macaúbas botavamsuas tropas, de centenas de jagunços, em confronto beligerante,levado às últimas conseqüências, na disputa do poder políticolocal.

O coronel Horácio de Matos era natural de ChapadaVelha e, naquelas escaramuças, representava os oligarcas deBrotas de Macaúbas. Cercava por todos os flancos os adeptosdo também coronel Militão Rodrigues Coelho, nascido emImbaúba do Fundão, àquela época, residente e representavaBarra do Mendes, do mesmo município de Brotas.

No tempo em que durou aquela contenda, cada famíliatomava partido e torcia pela vitória da tropa do seu coronelpreferido. E, no decorrer desse fogo cruzado, havia um códigode conduta que devia ser seguido ao pé da letra: Ninguém podiaficar neutro na disputa, sob pena de ter que abandonar omunicípio. Mudar de ares.

Foi assim que, de repente, a Chapada assistiu,alvoroçada, multiplicar sua população, por conta da chegadade muitas famílias provenientes daquela área conturbada.

De maneira que, da noite para o dia, começaram a

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chegar os Carvalho, os Duarte, os Paixão, os Silva, os Matos,os Santana, os Morais, os Lima, os Rezende, os Souza, os Pereirae os Portela.

A partir da convivência harmoniosa dos membrosdessas famílias na nova Cidade, com as novidades das relações,houve casamento de Morais com Rezende; matrimônio deSouza com Santana, relação de Matos com Lima e enlace deSilva com Pereira. Todavia, a união de Carvalho com Portelafoi a que deixou marcas profundas na vida do Lugar, com grausdiversos de amor, afeição, paixão, sexo, dinheiro, religião,sofrimento, tragédia...

O Dono do Santo da Chapada 55

Cupido tinha entrado em erupção

Capítulo

VII

Fria manhã de céu nuvioso. Camadas de nuvens deslizamsuavemente pelo ar, de este para oeste, tangidas pelo zunir dosventos. Nesse desfecho de alvorecer, começa mais um dia delabuta na encantadora Chapada.

As patas dos cavalos, das mulas e dos jumentos, levandopatrões e empregados para as atividades nas fazendas, fazemlevantar poeira pelas ruas do Lugar.

Mulheres transitam com latas d’água na cabeça, enquantovelhos e desocupados formam uma roda de conversa no oitãoda Igreja. Pitam. E de seus cigarros de palha levantam fumaçasque se dissipam pelo ar.

Nesse instante, uma jovem abre a porta, bota a cabeçapra fora e olha para a casa em frente.

– Bom dia, Ritinha. Tô indo na padaria de seu Enéas.Vem comigo?

– Bom dia, Dalva. Também vou comprar pão. Tava es-

O Dono do Santo da Chapada 59

perando você sair.As duas amigas saem de mãos dadas conversando anima-

damente. Ganham a Rua da Fonte e, ao fazê-lo, olham auto-maticamente para o canto da praça da matriz.

Era a primeira vez que Dalva via aquele rapaz. Trajavaum terno de linho branco, com lenço no bolso do paletó, sa-patos bem lustrados e segurava um chapéu na mão direita.

Estava, naquele momento, orientando um moleque a pre-gar uma tabuleta na parede, que tinha a inscrição: “AlfaiatariaPortela”.

No instante em que o moço virou o rosto em direção dasmoças, os olhares se cruzaram e o coração de Dalva começoua disparar. Os olhos dela ficaram grudados naquelas feiçõespor um bom tempo. Seus pés recusavam a se mexer. Ficou aliplantada.

Foi preciso Ritinha sacudir a amiga.– Que aconteceu Dalva? Parece que recebeu uma flechada

de Cupido?– Acho... Acho que sim.– Desse alfaiate? O Portela? Você conhece?– Claro que não! É a primeira vez que vejo. A única coisa

que sei é o mesmo que você também sabe. Essa família Portelase mudou recentemente pra cá. Sabe-se que eles têm dois fi-lhos. Um se chama Nilson e o outro Nilton. A propósito, esse,quem é?

– Cuidado! Dizem que os alfaiates são maricas.– Calma, Ritinha. Eu só olhei para o rapaz. Nem sei se é

Nilson ou Nilton. E você já quer me casar com ele. Além domais, seu Inácio também é alfaiate e tem quatro filhos.

60 Carlos Araujo

Quando as duas amigas voltaram da padaria, a tabuletajá estava fixada na fachada da casa e o rapaz não estava maisno local. No entanto, na memória de Dalva ficara impregnadaa imagem das feições do jovem alfaiate. Pelo que pôde obser-var daquela distância de trinta a quarenta metros, ele tinha aestatura média dos homens brasileiros. Cabelos lisos, pretos efartos, partidos cuidadosamente ao meio. Pele de tonalidadeque mediava entre o moreno e o branco. Olhos castanhos, emrosto estreito, com traços delicados.

Entretanto, o que mais impressionou Dalva foi umaindescritível elegância no porte daquele moço. Cupido tinhaentrado em erupção!

O Dono do Santo da Chapada 61

Como se pode ver a alma de alguém?

Capítulo

VIII

A família Portela foi uma daquelas que não tomarampartido nos barulhos entre os jagunços dos coronéis Horáciode Matos e Militão Coelho. Por conta disso, pai, mãe e os doisfilhos se viram forçados a se mudar do município de Brotas deMacaúbas no início de 1917.

Viveram uns tempos no Bom Jardim e outros anos nacidade da Barra. Não se adaptaram, porém, ao clima quentedas barrancas do Rio São Francisco.

Depois de quase uma década, aqui e ali, resolveramretornar ao clima ameno da região brejeira.

Vieram fixar residência precisamente ali na Chapada. Equando o fizeram, seus rapazes já estavam na casa dos vinteanos e continuavam solteiros. Tão parecidos fisicamente osdois que só poderiam mesmo ser gêmeos, como efetivamenteeram Nilson e Nilton.

No mais, as semelhanças paravam por aí. Eram como

O Dono do Santo da Chapada 65

água e vinho, tanto no comportamento como no rumo quederam às suas vidas.

O Nilson era delicado, caseiro, meio fechado consigo eescolheu para tocar a sua vida a profissão de alfaiate.

O Nilton, por outro lado, era expansivo, farrista, notívagoe optou por ser tropeiro como meio de vida. Já era dono deuma grande tropa de animais.

Naquela manhã, Nilson estava instalando sua alfaiataria,na praça da cidade, quando viu de repente apontarem naesquina duas jovens que estancaram em sua frente. Ficou aliparado, olhando fixamente para uma delas. Todo seu ser foitomado por uma sensação esquisita que não sabia explicar oque era. Não conseguia tirar mais a garota da sua cabeça. Doseu pensamento.

Depois que as duas se foram, ficou refletindo e pensan-do com seus botões: Por que até àquela idade ainda não tiveravontade de namorar uma moça? Não contava uma única na-morada até então. Não era como o seu irmão, namorador in-corrigível.

Ao meio-dia, Nilson fechou a alfaiataria e foi direto pracasa. Lá encontrou o irmão.

– Mano, hoje de manhã me aconteceu algo estranho. Duasgarotas muito bonitas pararam em minha frente, lá na alfaiatariae, uma delas ficou me olhando, me olhando, me olhando e euexperimentei uma sensação tão diferente que não consigo ex-plicar com palavras.

– Dessa vez você desencalha, Nilson! Eu nunca vi vocênamorando antes. Será que essa jovem chapadense está fadadaa mudar o seu destino?

66 Carlos Araujo

– Deixa de brincadeira, Nilton!– Não estou brincando não. Sabe que eu sou adepto do

namoro. Namorar é sempre bom. Só não me casei ainda por-que vivo pelo mundo afora, tocando tropa praqui e pracolá.Não ia dar certo mesmo.

– Mas, me diga uma coisa, como é a sua moça?– Fisicamente é uma garota muito bonita. Aparenta ter

uns dezoito anos. Estatura mediana. Pele branca e lisa. Seurosto é largo e delicado, com olhos castanhos e muito vivos.Os cabelos são negros, fartos e lisos, caídos até na região dacintura. Mas eu só vi tudo isso no primeiro momento. A partirdaí era como se eu só enxergasse a sua alma! Como é que euposso explicar? Só posso sentir.

– Êh! Lá vem você com suas esquisitices. Como se podever a alma de alguém?

– Não se brinca com esses assuntos, mano!– A propósito, estou de partida para Bom Jesus da Lapa.

Vou levando uma caravana de romeiros.– Boa viagem!– Obrigado.– Na volta, quero encontrar você casado com essa

“felizarda alma chapadense”.– Algum dia ainda vou com você, nessas suas viagens,

para conhecer a Lapa. Moramos tão perto, lá no Bom Jardim,mas não tive a oportunidade de pegar um Vapor e desembar-car no pé do morro do Bom Jesus. Tenha uma boa viagem,mano!

O Dono do Santo da Chapada 67

É o objeto da minha afeição

Capítulo

IX

Passados exatos trinta e cinco dias daquela despedida dosdois irmãos, eis que o Nilton retorna de sua romaria a BomJesus da Lapa e encontra o ambiente familiar com uma novi-dade. Ao entrar em sua casa, deu de cara com a mãe conver-sando com uma moça, demonstrando bastante intimidade.Conversação descontraída de amigas.

– A bênção, mãe!– Deus abençoe, filho! Como foi a viagem?– Foi tudo bem.– Esta jovem é a Dalva, namorada de seu irmão. Não é

bonita?– Muito bonita! Como vai?– Tudo bem.

Dalva levantou-se para os cumprimentos de praxe e elepôde conferir pelas descrições feitas pelo irmão, há mais deum mês, que se tratava precisamente da “felizarda alma

O Dono do Santo da Chapada 71

chapadense”.Nilton despediu-se das duas e foi andando contente para

o banheiro e pensando alto: – Não se casou, é bem verdade,como eu vaticinei, mas já é um bom progresso!

– O que disse, filho?– Nada não, mãe. Tô falando sozinho. Muito sol na mo-

leira. Cansaço da viagem.A determinação da mulher apaixonada não pode ser me-

dida em conta-gotas. Sua força desconhece barreiras. A princí-pio, Dalva usou uma tática que imaginava infalível para se apro-ximar de Nilson. Os encontros casuais se amiudaram, e osnão casuais também. Além de freqüentar as mesmas missasque ele.

Mesmo assim, ela achava o rapaz ainda meio arredio. Mascreditava essas atitudes dele a um excesso de timidez.

Não alcançando de imediato o êxito esperado, Dalva re-solveu jogar mais uma cartada que poderia ser definitiva: Raci-ocinou que poderia laçar o namorado através da mãe.

Assim foi. E deu tão certo que quando o Nilton chegoude viagem, já encontrou a moça com relações de intimidadecom sua mãe.

Naquela tarde, ao chegar em casa para jantar, Nilson en-controu o irmão. Foram conversar no quarto.

– Gostei de ver, mano! A Dalva fisgou você. Quando vaiser o casamento?

– Vamos devagar, Nilton. Estou muito confuso com re-lação aos meus sentimentos.

– Pela mãe, já estaríamos casados. Mas, o que é o amor?Eu sinto que a Dalva é o objeto da minha afeição. É amor?

72 Carlos Araujo

Não sei. Vou sentir a atração do macho pela fêmea? Do sexooposto? A única coisa que tenho certeza é que somos duasalmas que se completam!

– Só teoria, mano! Vá em frente.A mãe trabalhou tanto para unir os dois que, em dois

meses, estavam casados. Nilson Portela com Dalva Carvalho.Enquanto os dias iam transcorrendo na Chapada dentro

da normalidade dos costumes, no lar de Nilson e Dalva, umdrama germinava viçosamente desde a noite do casamento.

O tempo avançava, ao passo que o ânimo de Nilson seesvaía. Aproveitando que a alfaiataria estava abarrotada de ser-viços, ficava ali, até altas horas da noite, no pedal da máquinade costura protelando, o mais que podia, a volta para casa e aangústia de ter que enfrentar aquela dura realidade.

Quando o irmão voltou de uma de suas viagens, perce-beu imediatamente o seu abatimento acabrunhador. Aprovei-tou um desses serões que Nilson estava fazendo no serviço efoi conversar com ele.

– Algo muito grave está acontecendo com você, mano, oque é?

Nilson se levantou, fechou as portas da alfaiataria, abra-çou o irmão e começou a chorar.

– A desgraça fez moradia em minha existência, mano!Eu sou um infeliz! Estou desesperado. Como você estava via-jando, eu não tinha com quem desabafar.

– Vou lhe contar toda a história. Nunca tive vontade de irpra cama com uma mulher, como naturalmente acontece comvocê e com os outros rapazes. Eu tinha a ilusão de que, mecasando com Dalva, essa vontade viria normalmente. Não veio.

O Dono do Santo da Chapada 73

– Na noite do nosso casamento esse problema foi rele-vado por conta da emoção do momento. Do acontecimento.Todavia, as noites foram se sucedendo, o problema persistin-do e a angústia e o sofrimento tomando conta de nós dois.

Nilson ainda estava soluçando e muito agitado. – Já estamos com cinco meses de casados e nada! As

duas famílias nos cobrando a chegada do primeiro neto e agente sem saber o que fazer. Tentei todo tipo de raízes ebeberagens e nada disso funcionou. Neste momento, só vocêpode me ajudar, meu irmão! Eu não quero me separar de Dalva!

Os dois permaneceram por mais de uma horadiscutindo o assunto e, na saída, Nilton se despediu com umapergunta:

– Será que vai dar certo? Acho muito arriscado... – Arriscado mas necessário. Eu lhe aviso o dia. Talvez

seja amanhã.

74 Carlos Araujo

Contrariando todas as expectativas

Capítulo

X

O Dono do Santo da Chapada 77

No dia seguinte àquele em que os irmãos procuravamuma saída para o labirinto em que Nilson se enredara, Dalvainventariava sua vida até àquela quadra. Na solidão de sua casa,em tarde cinzenta e agourenta, denunciando tragédia, ela cons-tatava, entristecida, que seu simples viver estava se tornandoum fardo pesado demais para ser suportado.

Na estrada que a levara até ali, havia um inesperado ma-logro. A felicidade gorada.

Fez o retrospecto de sua existência, desde o momentoem que se entendeu como gente. Viu-se, na meninice, comouma garota normal do interior, com todas as virtudes e defeitos,sendo preparada pela família para seguir os mesmos trilhos dasua mãe: Meninar, adolescer, namorar, noivar, casar e ter filhos.De preferência casar com um primo ou, não sendo possível,arrumar um consorte nas relações de seus familiares. Tudoestava se encaminhando para isso. Havia até o primo Benício,

78 Carlos Araujoque a currichiava desde a adolescência. Era feito canáriomarcando território num pé de jatobá. Cuidando de sua fêmeapara, no ambiente só seu, se tornar o único macho naqueleespaço, e assim, fazer o seu ninho de amor.

O primo estava sempre presente em suas saídas de casa.Nas missas, na fonte, na feira, nos batizados e nos casamentosele grudava nela como sua sombra.

Tudo ia caminhando nesse diapasão para o desfechopresumido. Até que chegou aquela manhã em que ela estavaindo para a padaria do Enéas com a amiga Ritinha e entãopercebeu a “indescritível elegância do seu alfaiate”. Aí seucoração disparou e nunca mais voltou a bater do mesmo jeito.Paixão arrebatadora. Conheceu o amor. Lutoudesesperadamente por ele. Conseguira o feito de se casar como seu escolhido. E, no entanto, era como se tivesse entradonum beco sem saída.

Sua desventura começou exatamente no dia do seucasamento. Aquele que estava predestinado a ser o mais felizde sua vida.

De noite, na cama, Nilson não conseguiu desempenharo seu papel de macho, por mais que tentasse, não teve ereção.Nada deu certo. Dessa primeira vez, o problema tinha sidodebitado à carga emocional do importante dia de suas vidas.Mas, depois veio a segunda tentativa, a terceira, a quarta eentão o desespero bateu forte e se instalou definitivamente noseu lar.

Dalva sequiosa para se entregar a seu marido comomulher e Nilson angustiado sem conseguir enrijecer aquelesseus músculos genitais e vitais.

O Dono do Santo da Chapada 79Os dias se passavam céleres e com cobrança das duas

famílias querendo imediatamente o primeiro neto.Foi colocada em ação de pronto uma operação de

salvamento da união. Primeiro veio a fase das meizinhas ebeberagens – tudo na maior surdina. Depois sobreveio a fasedo desespero e acabrunhamento.

Dalva começou a perceber que o marido passou a fazerserões todas as noites na alfaiataria, dando a entender que tinhareceio de retornar para a casa todas as tardes. A partir de então,evitava encarar a esposa, falando o estritamente necessário nodia a dia.

O estado deplorável do marido estava estampado noseu rosto. Bastante visível. Vinha definhando a olhos vistos.

Nessa noite, no entanto, contrariando todas asexpectativas, ele chegou cedo do trabalho. Estava visivelmentealiviado. Conversou bastante com a mulher. Jantaram. Saírampara visitar os pais de Nilson e voltaram um pouco tarde.

Em casa, o marido começou uns carinhos daspreliminares para o sexo. Carícias, beijos, abraços, cama. Luzapagada. Nilson se levanta e vai ao banheiro. Dalva ansiosa.Quando o marido retorna na escuridão ela sente algo duroroçando suas coxas. Tem um estremecimento excitante emtodas as suas entranhas e começa um frenesi de emoções. Fazum sexo desesperado como se fosse o primeiro e o último davida dela. Depois do ato, tem um amolecimento de demência.Mas, naquele estado de desfalecimento, tem a impressão de tervisto o marido voltar ao banheiro.

Aflorando mais uma geração

Capítulo

XI

O Dono do Santo da Chapada 83

Passada a experiência delirante da sua primeira relaçãosexual, Dalva passou o dia seguinte conjeturando a propósitoda importância daquele acontecimento na vida do casal. Umanuvem negra havia se dissipado do aconchego do seu lar. Nilsonsaíra para trabalhar em paz com o mundo e ela sentia-se levecomo uma pluma.

Ficou repassando em sua memória a noite de amor, queainda lhe parecia um sonho. Não obstante, uma pitada de dúvidase instalara no seu sexto sentido. A cogitação lançou um sinalde alerta.

Transcorreram-se dois dias sem que nada acontecesse.No terceiro dia, porém, tudo se repetiu. Nilson chegando cedodo trabalho. Nilson investindo nas preliminares. Luz apagada.O marido saindo do quarto para o banheiro. Voltando noescuro.

Como não havia mais aquela tensão da primeira vez,

84 Carlos AraujoDalva pôde perceber, estarrecida, que aquele corpo sobre oseu ali na cama não era positivamente o do seu marido!

Naquele instante, um turbilhão de sentimentoscontraditórios girava em sua cabeça. Seu primeiro impulso foiuma vontade irresistível de sair correndo dali. Entretanto, seconteve. Raciocinou... o que estava acontecendo ali tinha aconivência do seu marido.

Presumiu que Nilson não só tinha conhecimento dapantomima, como também a estava patrocinando. Tinha razõesde sobra para pensar que era o ônus que ele se dispôs a pagarpara propiciar a ela a geração de um filho. Dalva ainda nãotinha certeza, mas cogitava. E cogitava acertadamente. Pois,na terceira noite de relações, reconheceu seu cunhado Niltonescapulindo sorrateiramente do seu quarto de dormir, enquantoseu marido saía do banheiro.

Dalva se convenceu de que Nilson estava fazendo umenorme sacrifício. Entregando a mulher amada a outro, mesmosendo esse homem seu irmão.

Com o passar dos dias, ela notou que o marido sabiaque ela sabia de tudo. Imaginou que ele esperava que elaengravidasse para acabar com a farsa. No entanto, os meses sepassavam e a gravidez não chegava, para colocar um pontofinal naquela burla.

Foi aí que Dalva começou a desconfiar que o cunhadoe amante poderia ser estéril. E nesse caso, o sacrifício do seuesposo não estava servindo para nada.

Nessas circunstâncias, ela decidiu também se sacrificarpara acabar de vez com aquele drama. Lembrou-se do primoBenício, o eleito da família. Sua sombra na adolescência.

O Dono do Santo da Chapada 85Nilton havia partido em viagem com sua tropa. Isso

facilitaria a ação de seu plano.A partir daquele momento, Dalva iniciou

imediatamente uma frenética operação de caça ao primo. Osdeuses trabalharam a seu favor. Pois, se lembrou do aniversáriode seu pai que cairia no domingo. Aconselhou a família a fazera comemoração na Fazenda. Assim foi feito. Todos os parentese conhecidos foram convidados. O primo Benício entre eles.

Na Fazenda havia uma casinha de antigos colonos, queservia naquela época para depósito de cereais colhidos naslavouras. Dalva atraiu o primo para o local, com a desculpa deterem brincado ali na adolescência.

Naqueles conhecidos cômodos se insinuou para oparente e terminou por cair nos seus braços. Rolaram em cimada sacaria de milho e feijão, até saciar o desejo dele, e depoisvoltaram para a casa-grande como se nada tivesse acontecido.

De repente, algo inesperado sobressaltou o juízo deDalva. Benício certamente poderia querer repetir a dose desexo. Que desculpa daria então? Nos dias que se seguiram,aquilo ocupou sua mente e ficou martelando em sua cabeça. Epor mais que pensasse, não encontrava uma maneira de se livrardaquele embaraço.

Eis senão quando, chega-lhe a notícia de que seu primohavia sido picado, na roça, por uma cobra cascavel. O venenoda serpente provocara hemólise e o Benício acabava de falecer.

Tal notícia deixou Dalva desnorteada. Se por um ladoachava que seu sacrifício poderia não ter servido para nada,mesmo assim, por outro lado pensava que ela fora castigadaexemplarmente por Deus, por causa do seu idílio com o primo.

86 Carlos AraujoO certo é que, contrariando suas suposições, alguns

dias depois daquele episódio, ela amanheceu com engulhos etonturas. Nilton ainda não retornara da viagem.

Nilson e Dalva vibraram com a novidade: Grávida!Houve então os arrefecimentos dos ânimos e a casa voltouaos hábitos normais.

Nove meses depois, em 19 de abril, dia do padroeiroda Chapada, o filho tão aguardado nasceu. Foi batizado,homenageando o Santo, com o nome de Expedito Portela deCarvalho.

Daí passaram-se seis anos na vida da Chapada dentrodas rotinas dos conformes, aflorando mais uma geração dejovens chapadenses, até que...

Na lentidão do cerimonial dos funerais

Capítulo

XII

O Dono do Santo da Chapada 89

A memória do homem misterioso voltou à época de me-nino e foi ater-se na Chapada, no tempo do onça e de antanho,encontrando a Cidade em estado de consternação absoluta.

Desde tenra idade, Donana fora iniciada e traquejada nasartes e ofícios de pegadeira de criança, benzedeira e responseira.Labutas essas herdadas da mãe, avó e demais ancestrais. Demodo que então, mesmo antes de se casar, reinava absolutanas questões de cortar umbigo de recém-nascido e de passarum ramo de arruda.

De tal sorte que, quando Joaquim Andrade Silva despo-sou a jovem, o dito ganhou uma esposa e de lambujem rece-beu um outro sobrenome. Seu casamento entrou imediata-mente para o regime matriarcal e, desde então, passou a serconhecido como Joaquim de Donana.

O sol já se descambava para o ocaso na Chapada, numatarde com acinzentamento de mormaço, quando de repente

todas as portas e janelas das casas começaram a se escancarar,no mesmo ritmo da passagem de um cortejo macabro.

Os habitantes saíam às calçadas ou ficavam espiandopelas janelas enquanto trotava lentamente pelas ruas do Lugaruma mula transportando um corpo sem vida de um homem,atravessado em seu lombo. A cabeça do morto pendia prumlado e os pés pendiam para o outro lado.

Dois cavaleiros emparelhados à mula completavam acena funesta.

As vestes do cadáver estavam repletas de manchasavermelhadas.

O cortejo ia vagarosamente atravessando a Cidade, emuitos curiosos se juntavam ao penúltimo itinerário do falecido,já formando uma extravagante procissão. Foi até o final daRua Marechal Deodoro da Fonseca e parou em frente da casade Donana.

O sino começou a bimbalhar na lentidão do cerimonialdos funerais e, a partir desse momento, toda a população tomouconhecimento da identidade da vítima. Era Joaquim de Donana.

Só restou a Donana se desesperar, acompanhar o corpodo seu marido no último itinerário e fazer voto de viuvezpermanente. Não teria mais filhos. Por isso, lamentava nãopoder honrar a tradição familiar. Ela sempre teve a intençãode transmitir a suas descendentes essas ocupações meritóriasde pegadeira de criança, benzedeira e responseira. Mas, com amorte de seu marido Joaquim, tal desejo ia se tornar impossívelde ser realizado.

O episódio ficou grudado definitivamente na memóriado então garoto de seis anos Expedito Portela de Carvalho.

90 Carlos Araujo

O Dono do Santo da Chapada 91Joaquim e Donana eram os seus padrinhos de batismo.

A caminho do dinheiro!

Capítulo

XIII

– É uma coisa que eu sempre digo, meus amigos: Ahistória é muita vez apenas a versão de um fato do ponto devista do historiador.

– Como assim, professor Hermenegildo Feitosa?– Vejam, por exemplo, o assassinato que tivemos o

desprazer de presenciar, ocorrido há pouco tempo, no bar aliem frente. Nós vimos daqui um vaqueiro, todo paramentado,se juntar a dois senhores que circulavam pelo largo e, empoucos minutos, esfaquear mortalmente, dentro da venda, umdos companheiros de bebida, quando conversavam,aparentemente tranquilos, como se fossem membros da mesmafamília. Observamos o vaqueiro fugir, depois da desgraceirae, em seguida, levarem o cadáver do vitimado ainda cobertode sangue. Desfez-se a cena do crime. Dizem que todos eramde um lugar próximo daqui, chamado Bom Jardim.

– A morte parece que está nos rondando. Veja,

O Dono do Santo da Chapada 95

professor, o que já nos reservou esta viagem. Quando saímosda Chapada e não tínhamos percorrido ainda nem duas léguas,encontramos um corpo de homem estendido no chão. Estavacrivado de balas. Era o corpo do compadre aqui do manoNilson, o Joaquim de Donana. Ele estava indo se apresentarao Coronel Horácio de Matos, em Lençóis. Havia sidoconvocado para o Batalhão Patriótico Lavras Diamantinas.Iria combater os revoltosos. Não pudemos voltar, por causado contrato com os romeiros. Colocamos o cadáver no lombode uma mula e ordenei a dois dos meus homens, com montaria,para voltarem à Chapada levando o corpo do morto.

– Ao chegar aqui na Lapa do Bom Jesus, o queacabamos de ver? A morte em ação, através desse brutalassassinato envolvendo essas pessoas do Bom Jardim.

– Imaginemos, meus caros, que seja instaurado uminquérito policial sobre a ocorrência funesta que acabamos deassistir. Nessas circunstâncias, nenhuma testemunha doacontecido poderá afirmar com convicção absoluta qual teriasido a arma do crime: Punhal? Peixeira? Quantas polegadas?Qual teria sido a motivação do crime? Dessa forma, tudo ficariano campo das hipóteses. Portanto, seria apenas uma versão docaso.

– É verdade.– Esta minha teoria pode ser perfeitamente comprovada

com uma infinidade de outros exemplos, meu caro Nilton.– E o senhor, caro Nilson, que me diz?

– Ainda não havia pensado nisso professor. Mas, vistoassim, também concordo.

– Companheiro, sirva mais três doses de pinga de Januária.

96 Carlos Araujo

Da boa!– Até mesmo quando existe um documento oficial so-

bre um fato, esse documento pode ser apenas uma mera ver-são.

– Versão? Como assim?– Vamos aqui imaginar que o grande Castro Alves, poeta

baiano, tivesse nascido na madrugada de um dia treze, sexta-feira. O pai era médico e fez o parto. No entanto, vamos suporque mesmo o progenitor sendo médico, era supersticioso. Nodito momento de registrar o poeta, ele pensou, pensou e resol-veu colocar na certidão de nascimento do vate, não o dia doacontecido, e sim, a data de doze. Esse documento oficialseria um engodo. Só uma versão, do pai.

– Vamos ao ponto aonde quero chegar: Não existisseessa gruta aqui em Bom Jesus da Lapa, talvez o português Fran-cisco de Mendonça Mar não encontrasse outro local tão apro-priado para agasalhar suas imagens. Isso é um fato, de fato.Não fora isso, eu, professor de história e estudioso das religi-ões, Hermenegildo Feitosa, jamais teria botado meus pés aquinas barrancas do Velho Chico. Teria perdido, é certo, a opor-tunidade única de descer esse grande Rio a bordo de um Va-por, degustando a deliciosa cachaça de Januária e comendoum estupendo guisado de suribum.

– Também eu, Nilton Portela, seu criado, dono de tropana Chapada, não fosse o Bom Jesus não estaria aqui todo anotrazendo os romeiros nas suas peregrinações.

– Desta vez trouxe comigo o mano Nilson Portela paraconhecer o lugar.

– Ainda não cheguei ao ponto. Vou continuar.

O Dono do Santo da Chapada 97

– Portugal de antanho atravessou uma fase de crençapagã e, nesse período, o povo dedicava devoção especial à Ter-ra-Mãe, através de um ritual, em essência fálico, que tomavaformas de culto de pedras e rochedos. Desse culto podemosencontrar, ainda hoje, vestígios ou reminiscências sob formasou aparências cristãs. Daí as inúmeras Nossas Senhoras: daRocha, da Penha, do Penedo, da Serra e da Lapa.

– Os portugueses trouxeram esses cultos para o Brasil, eaqui são numerosas as Nossas Senhoras ligadas a pedras, a pe-nhascos ou grutas. É aqui que entra o português Francisco deMendonça Mar.

– Que levou esse homem a andar mais de cento e qua-renta léguas sertão adentro, colocar duas imagens nessa Gru-ta, transformar Jesus Cristo num importante Santo e encher asburras da Igreja de dinheiro? Esse foi o maior dos milagres! Averdadeira multiplicação do dinheiro! O milagre foi tamanhoque a Igreja vestiu logo o eremita de batina e o batizou de FreiFrancisco da Soledade.

– As versões são muitas sobre sua jornada de Portugalaté aqui. Em todas elas há um ponto em comum: Francisco deMendonça Mar era um pintor e ourives português e, por voltade 1679, ainda jovem, chegou a Salvador, onde instalou umaoficina. Em 1688, foi encarregado de pintar o Palácio do Go-vernador Geral do Brasil.

– A partir daí, tudo parece que fica ao gosto do freguês.– A Igreja Católica prega abertamente nos púlpitos e nos

altares, em forma de ensinamento doutrinário, que: “ Francis-co Mendonça Mar, fundador do Santuário e da Romaria aoBom Jesus da Lapa, teria sido um criminoso que, a fim de ex-

98 Carlos Araujo

piar seus erros, teria se refugiado nesta Gruta, em busca desalvação, uma vez que, era um foragido da Lei e da Justiça”.

– Vou citar só mais uma versão sobre sua trajetória. Essadiz que Francisco Mendonça Mar fora encarregado de pintaro tal Palácio em 1688. Ao terminar o serviço, ao invés de rece-ber o devido pagamento, foi preso e açoitado. Desenganadoda Justiça e dos homens, magoado, embrenhara sertão aden-tro, em busca de outras consolações, vindo ter aqui em mar-gens do Rio São Francisco, na frente da Gruta.

– Veja se eu entendi o que o professor falou! O senhorquis dizer que se eu tiver uma gruta lá na minha Chapada ecolocar dentro dela uma imagem, começa imediatamente umculto àquele santo? Iniciando uma romaria ao lugar, com pers-pectiva de arrecadação de dinheiro e crescimento da Cidade?

– Não se esqueçam que esse português era um artista edevia ser relativamente instruído. Provavelmente conhecia al-gumas ervas medicinais. E é de se supor que tenha curadoalguns ribeirinhos das doenças da época. Sua fama pode terse espalhado por esse motivo. Esses sertanejos podem ter vis-to aquelas curas como milagre. Só o fato do homem morarnuma gruta como eremita e, principalmente, ter as imagensconsigo, já deixava transparecer um certo ar sobrenatural.

– Nós temos uma gruta ideal para esse fim, lá na Chapada!Lá vivem muitos morcegos. Os moradores têm pavor de mor-cegos. Por isso, ninguém conhece o interior da caverna. É co-nhecida como Caverna dos Morcegos. É maior do que essaGruta da Lapa. Eu conheço!

– Vão em frente, meus caros! A caminho do dinheiro!

O Dono do Santo da Chapada 99

É o dono do Santo?

Capítulo

XIV

O Dono do Santo da Chapada 103

– Mãe? Como é que se compra um santo?– O que você perguntou, Dito?Dito. Era assim que Dalva chamava o filho. Por ele ter

nascido no dia 19 de abril e de ter sido batizado com o nomede Expedito, desde tenríssima idade, recebeu, de coleguinhase vizinhos, o apelido de Santo. Pegou. A mãe não gostava daalcunha, pois achava uma heresia, e passou a chamar o peque-no de Dito.

– Eu perguntei como se compra um santo!– Que história é essa, filho? Onde foi que você escutou

isso de comprar santo?– Aqui em casa. Na hora que o Pai e o Tio chegaram da

Lapa do Bom Jesus, estavam falando de comprar um santo.Caverna dos Morcegos... Eu ouvi. Por isso que eu pergunteipra Senhora.

– Provavelmente eles deviam estar falando de compraruma imagem de santo. Elas são vendidas em lojas, ou por

104 Carlos Araujoencomenda. Tem artista que trabalha durante semanas parafazer uma dessas imagens, e deve ser recompensado pelo ser-viço. Lá em Lapa mesmo deve ter casa que vende essas figuras.De qualquer maneira, vou conversar com seu pai sobre isso.

– E quem compra a imagem é o dono do santo?A mãe não entendeu direito o sentido da pergunta e deu

a primeira resposta que lhe veio à cabeça.– Muitas pessoas compram imagens dos santos de sua

devoção para colocar nos oratórios de suas casas. Outras ad-quirem os santos para doar para as igrejas...

Enquanto Dalva dava essas explicações ao filho, Nilsonentrava em casa. Ela o chamou para uma conversa, no particu-lar.

– Meu bem, o nosso filho me veio com uma conversaesquisita, de compra de santo, que escutou entre você e seuirmão! Que história é essa?

– Dalva querida, essa minha viagem para Bom Jesus daLapa, não foi uma simples romaria! Foi, por assim dizer, umaaventura recheada de imprevistos e toda ela marcada pelo ex-traordinário.

– O primeiro sinal de como seria essa aventura sucedeulogo no início ao encontrarmos o compadre Joaquim deDonana, crivado de balas, na beira da estrada, morto!

– Foi precisamente um aviso do Céu para vocês volta-rem para cumprir a obrigação de velar o padrinho do nossofilho.

– Meu medo de defuntos é conhecido de toda a Chapada,e o mano tinha o acerto com os romeiros. Ele fez o que podiafazer. Mandou trazer o corpo para ser sepultado.

O Dono do Santo da Chapada 105– E o que mais ocorreu na viagem?– Tão logo chegamos em Lapa e nos desvencilhamos dos

romeiros, fomos nos abancar num bar defronte da Gruta doBom Jesus. Lá nós conhecemos uma pessoa fascinante! Uminsigne professor de história e pesquisador, de São Paulo, cha-mado Hermenegildo Feitosa. Ele desceu o Rio São Franciscopara conhecer Bom Jesus da Lapa e realizar alguns estudos.Está fazendo pesquisas sobre cidades onde são colocadas ima-gens em grutas, rios e riachos, e elas se transformam em san-tos milagreiros para o povo.

– O professor nos deu uma verdadeira aula sobre o as-sunto. Eu fiquei espantado quando ele disse que imagem desanto em caverna é uma tradição popular que remonta aostempos de antanho, na Península Ibérica. Lá em Portugal. Étanto que, disse ele, o Frei Francisco da Soledade era, na ver-dade, o português Francisco de Mendonça Mar, que trouxe asimagens de Cristo e de Nossa Senhora e colocou dentro daGruta.

– O pesquisador tem como certo que qualquer cidade,que disponha de uma boa caverna, pode ser transformada numlocal de romaria. Basta alguém alojar uma imagem de qualquersanto no interior da gruta, espalhar algumas versões sobre mi-lagres daquele santo, que começará imediatamente uma pere-grinação ao lugar. E será encampada com todo interesse pelaIgreja, pois, frisa o professor, será mais uma romaria que abar-rotará os seus cofres de dinheiro.

– Ele salientou ainda que o dinheiro despejado pelosromeiros em Bom Jesus da Lapa é tanto que já existe umagrande desavença entre os responsáveis pela sua administra-

106 Carlos Araujoção.

– Foi nesse momento da conversa que eu e o mano fala-mos sobre a Caverna dos Morcegos, da compra do santo, daságuas termais e da lama medicinal daqui da Chapada. O Expe-dito deve ter ouvido um comentário meu ao Nilton sobre esseassunto.

– Nem fale mais sobre isso, Meu Bem, é uma heresia.Uma blasfêmia!

– Mas, algo espantoso aconteceu no correr dessa nossaconversa no bar.

– O professor nunca tinha visto um vaqueiro encouradoem pessoa e começou a apontar um, no meio do largo, aindamontado no seu cavalo. O mestre ficou acompanhando osmovimentos do vaqueiro. Por isso, ele viu o casaca-de-courodesapear de sua montaria, se juntar a um senhor e começarema caminhar juntos. Um terceiro homem se juntou aos dois eentraram os três numa venda defronte do bar onde nós estáva-mos.

– Naquele exato momento, eu fiquei com a impressãode já ter visto um dos dois senhores que estavam à paisana.Enquanto eu estava absorto ali matutando sobre o lugar ondeeu poderia ter conhecido aquele senhor, meus olhos me trou-xeram à realidade e ficaram grudados na cena inusitada que sedesenrolava na nossa frente. Fiquei estupefato. Os três se atra-caram e começaram a rolar pelo chão. O vaqueiro puxou umafaca da cintura e, naquele momento, eu assisti ao primeiro ho-mem ser assassinado a poucos metros do meu nariz.

– Instantes depois, observei uma senhora abrindo cami-nho na multidão e então reconheci imediatamente a mulher.

O Dono do Santo da Chapada 107Era dona Izaulina, que eu conhecia do Bom Jardim, quandomorei por lá. Ela corria desesperada para o corpo sem vida doseu marido Dualdo, que ficara estendido no chão ensangüen-tado.

Saíram fungando em desabalada carreira

Capítulo

XV

O Dono do Santo da Chapada 111

A população da Chapada era constituída basicamente depobres e remediados. Entretanto, havia uma pequena casta queextrapolava a remediação por ter conseguido amealhar algumariqueza nos garimpos, no criatório de gado, na lavoura de fumoe no comércio emergente.

Valter Duarte era, por assim dizer, o exemplar mais bemsucedido dessa raça. Homem truculento e tido como valentão,formou seu patrimônio como comerciante e fazendeiro e, porconta do seu poder de dinheiro, desfrutou do privilégio de secasar com uma morena pestanuda, de boniteza tão perfeitaque nenhum dos seus conterrâneos se lembrava mais de seuverdadeiro nome, de batismo e de registro, que era Maria Françada Costa. Porquanto, toda a Cidade a conhecia pelo apelido deBeleza. A verdade é que corria o boato à boca pequena, noscochichos, em segredos, que ela não amava o esposo, e só ca-sara com o dito pela abundância dos seus contos de réis.

112 Carlos AraujoImediatamente após o desfecho dessa união, começou a

circular insistentemente um rumor sobre uma Aparição queera vista, como um vulto, se esgueirando pelos becos, oitões eesquinas, e se deslocando suavemente entre os mata-pastos efedegosos, no meio da noite do Lugar.

Em poucos dias, as mais estapafúrdias versões sobre aAssombração se alastraram pela Cidade e virou a coqueluchenas rodas de conversas.

Para uns, era a Mula-sem-cabeça. Para outros, não passa-va da Mulher da Meia Noite. Havia quem jurasse que o quetinha visto era a Alma Penada. Batizaram também a Apariçãode Livusia, Besta Fera e Lobisomem.

Naquela ocasião, o garoto Expedito mudou completa-mente sua rotina de brincadeiras e, antes mesmo que se esbo-çasse o lusco-fusco do anoitecer, ele já corria para casa e nãomais saía. Esse fato vinha causando certa estranheza em Dalva.

– Filho, por que você está voltando tão cedo para casaultimamente?

– Tô com medo da Livusia, mãe!– Que Livusia?– A senhora não tá sabendo? Muita gente já viu, lá pros

lados do cemitério. Estão dizendo que ninguém sai mais denoite, com medo.

– Essa coisa não existe, Dito. É invenção de algum deso-cupado.

– Se a senhora tá dizendo... Eu tenho medo!Positivamente, não eram somente as crianças que esta-

vam impressionadas com a Aparição. Os adultos também. Porcausa disso, as ruas ficavam cada vez mais desertas à noite.

Ocorre que uns rapazes destemidos e determinadosencasquetaram de exorcizar e desmascarar a tal Assombração.E numa noite de Chapada escura e deserta, com vento zunin-do desembestado de leste para oeste, os mancebos muniram-se de uma cruz, postaram-se num ponto estratégico e ficaramà espreita.

Já passava da meia-noite quando a Assombração apare-ceu de repente num beco próximo da Praça da Matriz. O Vul-to tomou a direção norte, se esgueirando sorrateiramente pe-las vielas e oitões. Foi desembocar na Rua do Cemitério. Nes-se instante, os rapazes perceberam atônitos, na escuridão danoite, a Aparição receber a companhia de outra. Dali, as duasAlmas Penadas foram se movimentando manhosamente pelomeio do mata-pasto. Adiante, dobraram à direita e alcançaramas imediações da casa de Madame Leila Morais. Contornaramo oitão, em direção do quintal e sumiram. Os perseguidoresnotaram alguma coisa estranha. Se as duas criaturas eram real-mente fantasmas, por que não se deslocavam flutuando e atra-vessando o mato? Eles perceberam que as Assombraçõesandavam pisando firme como gente, seguindo sempre a trilhado carreiro.

Os rapazes se juntaram e enredaram um estratagema. Di-vidiram o grupo em dois. Deduziram que as Livusias iriamretornar por um determinado beco. Uns se postaram a umacerta distância da entrada e os outros, da mesma forma, nasaída do tal beco, para não serem percebidos, com algumastochas preparadas.

Acertaram no prognóstico. Depois de uma longaespera, eis que lá vêm os Vultos atravessando o beco. Os

O Dono do Santo da Chapada 113

114 Carlos Araujo

perseguidores fecharam a entrada e a saída. Acenderam astochas, empunharam a cruz e alumiaram as Figuras.

Foi então que os rapazes enxergaram os rostosconhecidos das “Assombrações”. Pasmados e boquiabertos,saíram fungando em desabalada carreira.

A senhora Beleza Duarte

Capítulo

XVI

No momento em que o sol transpôs as montanhas eseus primeiros raios tocaram os telhados da Chapada,inaugurando a manhã do dia seguinte, os cochichos emurmurinhos já davam conta do singular acontecimento danoite recém-finda.

Aquele episódio foi tão inesperado que produziu estragosirremediáveis e estremeceu as entranhas da coletividade urbanacausando abalo na sociedade chapadense.

A partir daquela manhã, a senhora Beleza Duarte nãomais exibiria sua formosura pelas ruas da Chapada, ou poronde quer que passasse, distribuindo alegria e simpatia,provocando suspiros na maioria dos homens. Haviadesaparecido da Cidade. Anoiteceu e não amanheceu.

Enquanto isso, Valter Duarte, depois de ter retornadoda Fazenda, onde pernoitara, reunia uma dúzia de jagunços,fortemente armados, e mandara bloquear todas as saídas do

O Dono do Santo da Chapada 117

118 Carlos AraujoLugar para capturar Nilton Portela, vivo ou morto.

À medida que as horas avançavam, naquele dia de tristememória, mais a Cidade ficava alvoroçada, por causa daqueleacontecimento inesperado.

Na casa de Dalva e Nilson, o alvoroço era ainda maior.Lá os ânimos destilavam preocupações. Os moradores quei-mavam as pestanas para arquitetar uma maneira de tirar Niltonda Cidade, caso ele ainda estivesse escondido em alguma casada Chapada.

– Mãe! Estão dizendo aí na rua que o tio Nilton é aAssombração! Ele morreu?

– Claro que não, filho. Ele não é Assombração e tam-bém não morreu. Está viajando.

– Também dizem que a dona Beleza é Assombração!– Já lhe disse que assombração não existe. É conversa

fiada de desocupado. De quem não tem o que fazer.Já era noite quando bateram insistentemente na porta.

Todos da casa ficaram apreensivos. Nilson foi atender. Masantes de abrir, perguntou:

– Quem é?– Trago um bilhete!Nilson abriu a porta e viu um rapaz que não conhecia

segurando um papel. Recebeu o bilhete e quis saber:– Espera a resposta?– Não, só vim entregar.– Muito obrigado!– De nada! Até logo.No bilhete, Nilton pedia um vestido de mulher e indicava

a hora e o local onde deveria ser entregue. Implorava, outros-

sim, a presença do irmão para um entendimento.Nilson foi ao lugar, na hora aprazada.– Que loucura foi essa que você fez, mano? Acabou de

se meter numa tremenda enrascada! Esse Valter Duarte é mes-mo um sujeito muito violento!

– Ninguém manda no coração, mano! Vou tentar mesafar dessa! Se eu conseguir, mando a imagem do Santo pragente botar o nosso plano em ação!

– Boa sorte, Nilton. Já sabe como vai tentar sair daqui?– Pela primeira vez na vida vou me vestir de mulher!

O Dono do Santo da Chapada 119

As margens do Rio das Garças

Capítulo

XVII

Há momentos na vida de um homem em que ele se vênuma encruzilhada onde só conta duas direções a tomar. NiltonPortela se achava naquele dia num desses cruzamentos de ca-minhos.

Analisou as premissas e raciocinou que, se ficasse na Ci-dade e se dispusesse a encarar a fúria e o orgulho ferido deValter Duarte, seria suicídio. Morte certa. Podia encomendarseu caixão. Foi por isso que escolheu a opção de fugir daChapada, vestido de mulher.

Ele tinha consciência de que, mesmo escolhendo aquelaopção, seria de difícil execução. Ia ser assim como uma perse-guição do gato ao rato. Seu desafeto e os jagunços a seus servi-ços conheciam todos os caminhos da Chapada Diamantina.

Sucede que Nilton Portela, sendo tropeiro de profissão,além de conhecer também todos esses caminhos, ainda porcima, sabia dos seus atalhos. Em vista disso, conseguiu se safar

O Dono do Santo da Chapada 123

de todos os cercos que lhe fizeram seus perseguidores.Tão logo se livrou do perigo imediato, representado pe-

las incursões do marido de Beleza, Nilton Portela passou azanzar, sem um destino certo, pelo Estado de Minas Gerais,até que deu um estalo em sua cabeça. Ele se lembrou do Bata-lhão Patriótico Lavras Diamantinas. Tinha conhecimento quemuitos dos seus conterrâneos que perseguiam os revoltososaté a fronteira do Brasil com a Bolívia, integrando o tal Bata-lhão, abandonaram os combates e ficaram em Mato Grosso,nos garimpos de diamantes.

Foram seis longos meses que ele consumiu de sua vidanas estradas, de Minas Gerais para o Mato Grosso. Eram diase dias viajando e outros tantos trabalhando duro aqui e ali parase sustentar até que, em certa tarde ensolarada, deu de caracom as margens do Rio das Garças.

E era exatamente ali, nas margens daquele rio, ondecomeçaria mais um capítulo trágico na atribulada existência deNilton Portela.

124 Carlos Araujo

Nosso encontro será inevitável

Capítulo

XVIII

As fugas de Nilton Portela e de dona Beleza inauguraramum longo período de agitação na vida da Chapada, por contado peso social dos envolvidos naquele terrível acontecimento.Isso porque muitos moradores já estavam prevendo asconseqüências trágicas que poderiam resultar da aventuraimprudente dos dois amantes.

Com efeito, os fugitivos estavam predestinados aenfrentar toda a ira de um Valter Duarte truculento, poderoso,violento e cheio do dinheiro. Magoado, pois se sentiadesmoralizado perante a sociedade chapadense, e estava feridode morte nos seus brios de macho. Ficou mais furioso aindaquando constatou que o desafeto e sua mulher haviamconseguido escafeder-se.

Por causa disso, andava alardeando aos quatro ventosque iria perseguir Nilton Portela e dona Beleza para matá-los,nem que tivesse que ir às profundezas dos infernos.

O Dono do Santo da Chapada 127

Assim, na casa de Nilson e Dalva, os dias se iam, numaagonia sem precedentes.

E, porque aquele tempo se ia, no mesmo diapasão, maisde nove meses se passaram, na tribulação e no silêncio.

Nas primeiras semanas, escassearam as notícias sobre osfugitivos e o perseguidor. Depois, um véu de mistério envolveuo caso.

Ninguém do Lugar sabia do paradeiro de Valter Duarte,de dona Beleza e muito menos de Nilton Portela. Até que,numa tarde de feira agitada na Chapada, parou um cavaleirona frente da casa de Nilson e passou às suas mãos um caixotede madeira e esta carta:

Rio das Garças – Mato Grosso.

Estimado Irmão,

Desculpe não datar aí em cima. É que a datapoderia não estar correta. Não imagino qual seja o dia dehoje, pois já nem faço mais idéia do tempo que gasteidescalqueado, zanzando por aí, sem rumo certo, até toparaqui nos garimpos do Mato Grosso.

Fato é que a minha vida está desmantelada.Tenho pra mim que me meti num verdadeiro angu-

de-caroço. Mas agora não é hora de chorar o leitederramado.

128 Carlos Araujo

Não tem nem pra onde eu tomar chá de sumiço eficar fugindo do mandu, se a qualquer hora dessas euterei de ficar cara a cara com o lazarento.

Já chegou aos meus ouvidos que o Valter Duarteestá virado no cão. E me jurando de morte, mesmo quetenha que me perseguir até nas profundezas dos infernos.

Nosso encontro será inevitável e está próximo. E aípoderá acontecer de tudo, até o pior. Só lhe digo, mano,que vou vender muito caro minha vida. Não adianta ele semeter a besta comigo. De modo algum temo enfrentar oatrevido fora do seu terreiro e sem a proteção de seusnumerosos capangas.

Na eventualidade de ocorrer o pior, estou mandandoessa imagem do Santo. Ponha muita fé nele, pois com certezaele mudará o futuro do nosso Expedito.

Saudades do mano,

Nilton Portela

O Dono do Santo da Chapada 129

Aguardando seu inimigo declarado

Capítulo

XIX

Nos séculos XVIII e XIX, a Coroa Portuguesa tinhapor lei cobrar percentual altíssimo de imposto sobre as pedraspreciosas e os ouros extraídos no Brasil. Por conta disso, algunsmineradores mais sagazes mandavam fazer santos ocos, demadeira – santos do pau oco – para poder esconder o ouro e aspedras preciosas dentro deles. A religiosidade do povo daqueletempo impedia os guardas que vigiavam as barreiras de violaremas imagens para verificar o que havia no interior delas.

A descoberta de ouro e pedras preciosas em MinasGerais, Mato Grosso, Goiás e Bahia estimulou uma corrida detodo tipo de aventureiros para o Brasil. Temendo que Portugalse tornasse um país despovoado, o imperador proibiu aimigração dos “bons” cidadãos, permitindo que para cá viesseuma caterva de vagabundos, ladrões e inimigos do trabalho.No meio deles veio um bando de clérigos de má fama. Muitosdesses religiosos foram personagens de muitos casos de santos

O Dono do Santo da Chapada 133

do pau oco, para contrabandear ouro em pó no bojo dessasestátuas, o que ensejou a expulsão em massa de frades das MinasGerais no século XVIII.

No tempo em que vagueou pelo Estado de MinasGerais, Nilton Portela ouviu estas e outras tantas histórias sobreimagens ocas de santos.

Foi assim que seu interesse começou a se aguçar peloassunto, porquanto precisava comprar um Santo Expedito parao plano da Caverna dos Morcegos lá na Chapada.

Por uma dessas coincidências que o destino poderiaexplicar, durante essas andanças pelos Solos Mineiros, chegouaos ouvidos de Nilton Portela que um determinado artesãopossuía uma imagem de Santo Expedito.

Sem perda de tempo, ele foi tentar negociar a comprada imagem junto ao artífice. Ficou pasmado ao botar os olhosem cima da imagem. Era uma cópia fiel do Santo Expedito daIgreja Matriz da Chapada, com duas diferenças: Esta era oca etinha as vestes em cores diferentes. Juntou todas as economiasque lhe restavam, pechinchou, pechinchou e terminouconvencendo o dono a lhe vender o Santo.

A partir de então, era ele, o caixote de madeira com aimagem e a estrada de Mato Grosso.

Foi botar os pés nas margens do Rio das Garças e darde cara com muitos ex-perseguidores de revoltosos, seusconterrâneos, garimpando naquele solo mato-grossense.

Como a intenção de Nilton era se isolar para não deixarpistas de sua presença naquela região, foi faiscar numa áreamais afastada do Rio.

Em pouco tempo, a sorte lhe sorriu e bamburrou numa

134 Carlos Araujo

boa quantidade de diamantes. Uma pequena fortuna. Muitoscontos de réis em pedras preciosas.

Imediatamente tratou de camuflar seu achado,guardando o lote dentro da imagem de Santo Expedito quecarregava consigo, logo depois de separar uma pequena parte,suficiente para comprar uma boa arma, munição e para efetuarseus gastos com alimentação.

Algumas semanas após essa bênção do garimpo, veio anotícia ruim. Soube que seu feroz e implacável perseguidorestava se dirigindo para aquela região.

Em face daquela informação, resolveu tomar decisõesimportantes para o seu futuro:

Decidiu não mais ficar fugindo o tempo todo.Aguardaria a chegada do desafeto, disposto a acertar suasdiferenças.

Foi ao cartório mais próximo e mandou redigir seutestamento. Incluiu os diamantes guardados no interior doSanto e alguns bens que possuía na Chapada. Colocou umacópia do documento no bojo da imagem, junto das pedras.Enviou o caixote e a carta ao irmão. Por não confiar plenamenteno portador, não mencionou na carta exatamente o objetotransportado nem seu valioso conteúdo. Resolveu que em outraoportunidade o faria.

Feito isso, pegou a arma, carregou de munição e ficouaguardando seu inimigo declarado.

O Dono do Santo da Chapada 135

O alfaiate de repente virou fazendeiro

Capítulo

XX

Nilson Portela foi pego de surpresa. Recebeu o caixotecom o Santo e a carta do irmão em circunstância que não lheera favorável. Na presença do filho Expedito e da esposa. Elepretendia preparar antes o espírito de Dalva e posteriormentecontar sobre o plano que havia arquitetado com o parenteforagido. Além do mais, pensava em deixar Expedito o maisafastado possível daqueles preparativos. Era ainda uma criançae, como tal, poderia dar com a língua nos dentes. Poringenuidade mesmo.

De modo que então, do jeito como a entrega aconteceu,não teve outra saída senão ler a carta para a família e desembalaro Santo.

Logo que viu a imagem, ouviu a carta e conheceu o talplano, Dalva ficou alarmada.

– Benza-me Deus! – Isso que vocês estão planejando fazer é um grande

O Dono do Santo da Chapada 139

sacrilégio! Instalar uma imagem na Caverna dos Morcegos, iguala que tem na Igreja! Deus vai castigar todos nós! Valha-meDeus!

– Não é bem assim, Dalva. Francisco Mendonça Mar, oportuguês que botou as imagens lá na Gruta de Bom Jesus daLapa, não foi castigado, nem por Deus nem pelos homens.Muito pelo contrário. A Igreja vestiu uma batina nele, ordenouo lusitano como padre e, quando morreu, era considerado quaseum santo.

– Era diferente! Bom Jesus da Lapa faz milagres. Osromeiros contam.

– O milagre vem da fé de cada um, Dalva.– Pensa melhor no que vocês vão fazer, Meu Bem! Con-

tinuo achando uma profanação.– O que vamos fazer é a coisa mais simples do Mundo.

Só queremos retirar a imagem de Santo Expedito da Igreja ecolocar na Caverna dos Morcegos. É apenas uma questão decomo fazer para o Santo de repente ficar milagreiro. Já com-pramos toda a área do Morro da Lagoa. Futuramente ali vaiser o centro da nossa Cidade. Um espaçoso largo, com hotéis,bares, restaurantes e vendas de produtos religiosos. Além, éclaro, do Santuário!

– Volto a insistir que reflita muito sobre o assunto.– Já foi decidido!É fato que certas circunstâncias enviesam os aconteci-

mentos e conduzem a pessoa a trilhar, muitas vezes, por cami-nhos que nunca imaginou fazê-lo.

Houve mudança substancial na vida profissional de NilsonPortela, naquela conjuntura.

140 Carlos Araujo

Ele, que amava o que fazia e gostaria de continuar sendoalfaiate pelo resto da vida, teve que abandonar o pedal da má-quina de costura.

Eis senão quando, Dalva e ele se viram guindados à con-dição de herdeiros de duas grandes fazendas de gado, em con-seqüência dos falecimentos de seus pais e dos progenitores desua esposa. Sem mencionar o fato de ter que cuidar dos ani-mais da tropa do irmão que ficaram sob seus cuidados.

O alfaiate de repente virou fazendeiro. Não um pecuaristade serviços, de labuta. Porque Nilson nada sabia do ofício. En-tretanto, atuava mais como um administrador, por força dasituação. E para cumprir com alguma eficiência essa função,começou a freqüentar diariamente as duas fazendas e, dessemodo, sua pele mudou imediatamente o colorido.

Assim, com o correr dos dias, quando seu nariz e suasorelhas apresentaram uma tonalidade avermelhada, isso nãodespertou nenhuma estranheza em ninguém. O fato foi debi-tado aos efeitos dos raios inclementes do sol da Chapada.

Foi o caso que, algumas semanas depois, os sintomas queNilson apresentava acendeu um sinal de alerta e caiu comouma verdadeira bomba na casa de Dalva. Havia uma acentua-da perda de pêlos de seus cílios e supercílios e exibia uma grandeinchação no seu nariz e em suas orelhas.

O Dono do Santo da Chapada 141

Um adeus sem volta

Capítulo

XXI

Uma sensação estranha de abatimento, coisa depremonição, de sexto sentido, tomou de assalto o espírito deDalva, como um aviso de que algo terrível estava por vir.

Em poucos dias, não havia mais pêlos nas sobrancelhase nas pestanas de Nilson e suas duas orelhas dobraram detamanho, o que dava um aspecto de enorme feiúra ao seu rosto,antes tão perfeito. Ele já não saía mais de casa e a esposa sedesesperava.

– Mãe, o que houve com o rosto do meu pai?– Não sei, filho. Eu estou angustiada e sem saber mais o

que fazer. O pior é que aqui não tem médico para consultar.– E o Doutor Clarindo Mendes, mãe? Ele pode examinar

o pai.– Ele não é médico, Dito. É só um apelido, por ser

dono da única farmácia aqui da Chapada. O jeito que tem érecorrer a ele mesmo.

O Dono do Santo da Chapada 145

Dalva deu um beijo no filho e saiu em disparada para aFarmácia de Clarindo.

– Bom dia, seu Clarindo. – Bom dia, dona Dalva. O que vai querer hoje? – Na verdade eu gostaria de falar um particular com o

senhor. Pode ser?– Pois não, dona Dalva. Vamos entrar aqui pra casa.A Farmácia era instalada no cômodo da frente da

residência, como de costume no Lugar.Dalva explicou com todas as particularidades os

sintomas que Nilson apresentava e o interlocutor permaneceuo tempo todo sério e pensativo.

– A senhora sabe muito bem que eu não sou médico.Este apelido que tenho é apenas por causa da Farmácia.Entretanto, ao longo do tempo que trabalho nesse ramo, fuicomprando alguns livros de medicina e neles comecei a ler umpouco sobre doenças e seus sintomas. Isso para aconselhar osmeus fregueses.

– Aguarde um instante que vou buscar um desses livros.– Fica à vontade, seu Clarindo.O dono da Farmácia desapareceu no interior da casa e

voltou minutos depois com um livro volumoso nas mãos.Passou algum tempo folheando e, de repente, se deteve numapágina.

– Vamos ver... Aqui está:“É caracterizada pela presença de manchas vermelho-

vinhosas ou acastanhadas, sem limites precisos. Podem surgirnódulos, perdas definitivas de pêlos dos cílios e supercílios einchaço do nariz e orelhas. Compromete vísceras importantes

146 Carlos Araujo

(baço, testículos, supra-renal e o fígado). É altamentecontagiosa”.

– E então, seu Clarindo, que doença é essa?Ele estava tão ligado na leitura, de cabeça baixa, que

respondeu automaticamente:– Lepra! Dimorfa!Ouviu um baque no chão e, ao tirar os olhos do livro,

viu Dalva estendida a seus pés, desmaiada.Com muito custo conseguiu reanimar a esposa do

doente.Quando ela voltou a si permaneceu um instante imóvel,

parecendo meio desorientada. Depois, disparou num chorarinconsolável. Com tato, o farmacêutico conseguiu acalmá-laum pouco.

– Dona Dalva, eu já lhe disse que não sou médico e oque li no livro é apenas uma hipótese. Pode não ser a verdade.

– O senhor leu os sintomas da terrível doença. Nãotem cura. Todo mundo foge de quem tem esse mal, como oDiabo foge da cruz. A desgraça se abateu sobre nós! Ai meuDeus!

– Calma, dona Dalva. Nem tudo está perdido.Aconselho que Nilson parta ainda hoje para São Paulo. Podeser que sua doença não seja o que diz aqui neste livro. Osmédicos vão diagnosticar com precisão o que seu marido tem.

– Obrigado, seu Clarindo.– Boa sorte para o Nilson. Que vá com Deus!Dalva entrou em casa em estado lastimável. E foi nesse

estado de tristeza dos vencidos que a receberam, o filho e oesposo. Quando souberam do diagnóstico do livro do Doutor

O Dono do Santo da Chapada 147

Clarindo Mendes, os três se entregaram num pranto só. É certoque a mulher derramava mais lágrimas.

De resto, naquele ambiente carregado de melancolia,ultimaram os preparativos para a viagem de Nilson para SãoPaulo.

Na hora da despedida entre pai, mãe e filho, as emoçõesse afloraram, com lágrimas, abraços compridos e olharesprofundos de um adeus sem volta.

Efetivamente, o prognóstico do livro do DoutorClarindo Mendes estava correto. Todavia, Dalva só ficousabendo disso quatro meses depois, ao receber a notícia dofalecimento do marido, em São Paulo.

No dia seguinte, ainda chorando lágrimas amargas,recebeu outra notícia ruim.

Um garimpeiro que havia chegado de Mato Grossolhe contou o ocorrido.

– Eu sinto muito, dona Dalva. Pelo seu marido e peloseu cunhado. Aconteceu assim: Valter Duarte e seu NiltonPortela se meteram num confronto de duelo e se feriram demorte. Isso aconteceu na beira do Rio das Garças. A briga foitão feia que o caso virou notícia em todo o Mato Grosso.

No momento em que o garimpeiro saiu, Dalva já nãotinha mais lágrimas para derramar, de tanto pranto.

– A desgraça se abateu sobre nossa família, filho!Ela contou sobre a morte do tio Nilton.– Estamos sozinhos no mundo, mãe!– Deve ser castigo de Deus, por causa do Santo da

Caverna!– Amanhã você vai fazer uma coisa importante, pra

148 Carlos Araujo

gente ficar em paz com Deus, filho.– O que é, mãe?– Vamos nos livrar de uma vez por todas dessa imagem

que seu tio mandou! Deve ser pecado destruir uma imagem desanto ou queimar. Por isso, você vai jogar este Santo na Lagoa.No lugar mais fundo que puder.

– Mas... Mãe!– Vai ter que fazer o que eu mandei!!! É uma ordem!

O Dono do Santo da Chapada 149

Os tipos que nela habitam

Capítulo

XXII

Ao tempo em que transcorreram mais dez anos na exis-tência da Chapada, dentro da normalidade dos conformes, fru-tificou aquela nova geração de jovens chapadenses que haviaaflorado.

No particular, entretanto, nem todos os frutos dessa sa-fra eram de boa cepa.

O franzino rapazote Almir Santos Carneiro, por exem-plo, foi despachado para um seminário pelos pais, com a espe-rança de transformá-lo no primeiro padre nascido na Chapada.Ele, todavia, frustrou o desejo da família, desistindo três anosdepois, alegando falta de vocação. Retornou com uma paixãoexacerbada pelo latim, trazendo alguns tomos do idioma den-tro da bagagem, a cachaça na cabeça e já carregando a alcunhade Espirro de Grilo ou, simplesmente, Espirro. Apelido este,decorrente de sua acentuada magreza.

Outro garoto, o Clodoaldo de Souza, ficou taludo, ade-

O Dono do Santo da Chapada 153

riu às farras de Espirro e, por conta de suas astúcias, passou aser chamado de Sete Manhas.

Para completar o trio de respeito, juntou-se aos dois, ojovem Heitor Pestana, que saiu direto da adolescência para osbares e cabarés do Lugar. A ele, apelidaram de Fila Grogue,porque só bebia a expensas dos outros.

Havia também outros exemplares fora do comum nessageração: Ernesto Fernandes, que adquiriu a pecha de sujeitomais bruto e ignorante do Lugar; Cristóvão Rodrigues, que setornou o homem mais forte da Cidade; Antonio Silva Santos,que ganhou o apelido de Antonio Fuá, por ser espalhafatoso efanfarrão; Manoel Francisco de Souza, que passou a ser cha-mado de Manoel Porém. E para não deixar o sexo feminino defora, essa geração também produziu a Luzia Tagarela – A quetomou água de chocalho.

Surgiram também caras novas no final dessa quadra. Che-gou o primeiro médico à Chapada. O Doutor Heleno Freitasnão tinha a intenção de se estabelecer na cidade com sua famí-lia, de receitar e medicar os moradores do Lugar. Ele veio paraconhecer e testar as águas termais e as lamas medicinais dessasbandas, porque a esposa tinha um problema na pele.

Numa noite de escuridão propícia para luz de vaga-lume,pio de corujão e cantiga de grilo, o Dr. Heleno Freitas deitavafalação filosófica em roda de conversa de botequim, no Bar doCido, localizado na Rua da Fonte das Moças.

– Enganam-se aqueles que se arvoram em afirmar pe-remptoriamente que existe um único Mundo. Sou daqueles queacreditam que cada indivíduo possui um mundo particular, for-jado por ele mesmo, à sua maneira, e nele se encasula, às vezes,

154 Carlos Araujo

desde sua meninice até o fim de seus dias. É a sua personalida-de.

– No mais das vezes, tal mundo individual se sobrepõeao dito universo real.

– A cidade, meus amigos, como o indivíduo, também pos-sui uma personalidade, uma marca, que a diferencia das de-mais. E quem evidencia a personalidade de cada comunidade?

– Quem? Quem? Quem?– Os tipos que nela habitam!– E quem são esses tipos, doutor?Naquele momento, adentraram no bar Fila Grogue, Sete

Manhas e Espirro. Este último, que já vinha de ouvido ligado,vira-se para o médico e alardeia o seu latim.

– Fecundi calices quem non facere disertum! Doutor!– Depois de beber, cada qual dá o seu parecer, certo?– Perfeitamente, meu preclaro cientista! Vejo que a filo-

sofia reina absoluta em terras da Chapada! – Percebem, caros amigos, de quem eu falava! Dos tipos!

Aqui temos os três exemplares mais representativos desta Ter-ra: Manhas, Fila Grogue e Espirro!

– Nossa importância não é tão grande assim, Doutor.Aqui na nossa Cidade há tipos muito mais interessantes. Frentea eles, nós somos apenas amadores.

– Deixa eu contar um episódio envolvendo o Ernesto,um desses tipos daqui.

– Ele é tido como o camarada mais bruto da Chapada.Dizem que é um jumento batizado, ignorante de pai e mãe. Étanto que posso usar até meu latim no caso dele.

– In teneris consuescere multum est!

O Dono do Santo da Chapada 155

– O que se aprende no berço dura até a sepultura, confere, Es-pirro?

– Confere, doutor.– Vamos ao caso. O Ernesto é dono de uma roça que

dista mais ou menos uma légua daqui. A casa da roça fica fe-chada a chave, pois nela guarda suas ferramentas de trabalho.

– Certa manhã, ele selou seu cavalo, despediu-se da mu-lher e tocou pra dita roça. Chegando à propriedade, verificouque havia esquecido a chave para pegar as ferramentas. Aindaprocurou nos bolsos e nada. Teve que voltar.

– No meio da manhã, a esposa dele sai à porta e vê omarido subindo a Rua caminhando e puxando o cavalo pelocabresto. Ela ficou tão espantada que aguardou o marido, nafrente da casa.

– O que houve, Ernesto?– Esqueci a chave da casa lá da roça. Vim buscar.– Sim, você esqueceu a chave e veio buscar, certo. Mas,

por que veio a pé, puxando o cavalo pelo cabresto?– Fica quieta mulher, não me aborreça! Quem esqueceu a

chave fui eu, não foi o cavalo não!– Bom, meu caro Espirro! Muito bom! Ah! Ra!Ra!Ra!Ra!– Apresenta o Cristóvão e o Antonio Fuá aqui para o

doutor, Manhas!Tomaram mais uma dose e os ouvidos ficaram atentos.– As desavenças entre os coronéis da nossa região deixa-

ram um ranço de valentia nos jagunços que se alastrou e con-taminou toda população masculina da Chapada. Provém daí aocorrência de muitas discussões, escaramuças e brigas nos fi-nais de nossas feiras livres, no sol das quatro da tarde, quando

156 Carlos Araujo

a cachaça começa a subir pro juízo dos pingunços.– O Cristóvão, carrega a façanha de já ter matado um

jumento com as próprias mãos, torcendo-lhe o pescoço, sóporque o animal derrubara seu pai. Estava ele transitando tran-qüilamente por entre as bancas, no final da feira. Foi aí que oAntonio Fuá começou a soltar indiretas e impropérios na dire-ção do homem.

– Os circunstantes, já prevendo um desfecho trágico, fo-ram se acercando dos dois, a fim de não perderem o espetácu-lo.

– Lá pelas tantas, o Cristóvão perdeu as estribeiras,aberturou o Antonio Fuá e o suspendeu por mais de meiometro do chão. Uma roda se formou imediatamente em voltadeles. Cristóvão balançou o desafeto e o jogou ao solo comoum saco de batatas, fazendo levantar poeira.

– O Antonio Fuá fez finca-pé, firmou-se nos pés e, numátimo, levou a mão direita à cintura. A roda das pessoas foi sealargando, como que por encanto. Ele continuava a procurar,enfiando as mãos nos bolsos e alguém gritou...

– Vai atirar! Corram! Corram!– Foi aí que todos viram, espantados, Fuá tirar um pente

da gibeira e sair caminhando tranqüilamente penteando os lon-gos cabelos e assobiando como se nada tivesse acontecido.

As gargalhadas ecoaram no meio da noite.– Isso é só uma pequena amostra das estripulias dos nos-

sos tipos, doutor.– Qualquer noite dessas vamos levar o senhor à casa da

Ana Gata para comer um Centrolobium Robustum!

O Dono do Santo da Chapada 157

158 Carlos Araujo– Gororoba!– Essa sim; Que tipão!

Um só pensamento na cabeça

Capítulo

XXIII

O tempo traz reveses, sempre vence. Passa. Está presente.Destrói relacionamentos, caminhos, medos. Coloca o desafiode viver a vida dia após dia. O tempo traz vitória, constrói umhomem – Expedito.

Dalva pensava nessas coisas justamente no momento emque inventariava pela segunda vez a sua vida, e verificava queos trágicos acontecimentos dessa quadra passada ainda estavammuito vivos em sua memória.

Não precisou ficar perguntando com insistência a simesma para concluir que o bem mais precioso desse inventáriosó poderia ser mesmo o seu querido Expedito. Foi ele quemlhe deu a força necessária para poder enfrentar os momentosmais difíceis de sua vida.

A morte de seu marido não fora provocada por umadoença qualquer. Comum. Fora pela Lepra. As pessoas daChapada tinham tanto pavor da Lepra que nem sequer

O Dono do Santo da Chapada 161

mencionavam o seu nome. A viúva e o filho sofreram todotipo de discriminação. No início, ninguém chegava perto deles,com medo de pegar o mal, como diziam.

Dalva se lembrou perfeitamente que teve que ir pedirajuda novamente ao Doutor Clarindo Mendes.

– Bom dia, seu Clarindo. – Bom dia, dona Dalva. Em que posso ajudar?

– O senhor falou bem, ajudar! Estou necessitandonovamente de socorro. Esta é a palavra certa. A minha vidaestá ficando impossível. Ninguém chega perto de mim e demeu filho. As pessoas pensam que nós vamos transmitir adoença. Gostaria que o senhor olhasse, naquele seu livro, se eue meu Expedito estamos contaminados.

– Um momento, dona Dalva.Clarindo foi buscar o livro novamente e começou a

folhear.– Está escrito aqui: “ Felizmente, 95% das pessoas

nascem com resistência natural de defesa contra o bacilo deHansen, não contraindo a doença!”

– Isso quer dizer que só 5% das pessoas podem contraira doença?

– Perfeitamente, dona Dalva. E se a senhora e seufilho não ficaram doentes até agora, não ficam mais. Tambémnão transmitem a doença.

– Eu peço, pelo amor de Deus, que o senhor diga issopras pessoas. A gente precisa levar uma vida normal.

– Conte comigo, dona Dalva.– Muito obrigado, seu Clarindo. Passar bem!Venceram, por fim, todas as dificuldades.

162 Carlos Araujo

Com olhos de inquietação, a encarava, nesse instante,seu maior orgulho: Expedito Portela de Carvalho. Já um homemfeito. Bonito, alto, forte, espadaúdo. Mas, havia aquelainquietude em seu semblante.

– Mãe, eu quero falar com a senhora.– O que tem, filho? Parece inquieto.– E estou. Nesses anos todos, comemos o pão que o

Diabo amassou. Pela doença que matou o pai. Vencemos todasas dificuldades. Chegou o momento de dar uma guinada navida.

– Já completei dezoito anos e não quero passar o restoda minha vida enfurnado numa fazenda, cuidando de gado.

– E o que pretende fazer, filho?– Eu vou lhe contar.Expedito passou o resto daquela tarde expondo seu

projeto de futuro, no que a mãe concordou completamente.Nas semanas seguintes, vendeu Fazenda, gado e outros

animais, só ficando com a propriedade da Roça do Morro daLagoa, onde ficava a Caverna dos Morcegos.

No momento exato em que apurou todo o dinheiroproveniente dessas vendas, despediu-se da mãe e viajou daChapada com um só pensamento na cabeça.

O Dono do Santo da Chapada 163

Ao futuro da Chapada!

Capítulo

XXIV

– Trouxemos o senhor aqui a esta casa aconchegante daquerida Ana Gata por motivos muito especiais, meu insigneDoutor Heleno Freitas.

– Enumere, jovem Espirro, enumere!– Para começar, vamos apresentá-lo à dona da Casa e ao

seu famoso Centrolobium Robustum.Feitas as devidas apresentações e pedida a famigerada

Gororoba, Espirro atacou de filósofo de ponta de rua.– Este é o nosso território, Doutor. Formamos aqui uma

espécie de estado-maior da esbórnia chapadense. Portanto,estamos no local e no momento oportunos para apresentar aopreclaro médico a filosofia de vida de nossa Trempe: Espirrode Grilo, Heitor Fila Grogue e Clodô Sete Manhas. Ela se baseiano seguinte tripé:

– Bis vivit qui bene vivit!– Quem vive bem, vive duas vezes!

O Dono do Santo da Chapada 167

– Aurora musis amica est!– Quem madruga Deus ajuda!– Cura diluitur mero!– A preocupação se dissolve com o vinho!– O eminente discípulo de Hipócrates traduziu com

perfeição o meu latim. Entretanto, ainda cabem aqui algumasexplicações:

– É assim que nós queremos viver. E vivemos bem. Demodo que, cada ano de nossas vidas vale por dois. Portanto, seeu morrer aos quarenta anos, por exemplo, terei vivido, naverdade, oitenta.

– Faz sentido.– Como nós sempre varamos as noites nas farras, Deus

está sempre nos ajudando. Madrugar pra nós é coisa do dia adia.

– Também faz sentido.– Fizemos uma pequena modificação na terceira base

do tripé. No lugar de vinho, nós dissolvemos nossaspreocupações com a cachaça mesmo. Infelizmente os itálicosnão a conheciam.

– Natu nobilis cachaça est!– Genial, meu caro Espirro, genial!– A cachaça é nobre de nascimento!– E já que estamos destilando as prosopopéias

chapadenses, que tal falar de mais alguns tipos de nossa Cidade?Falar da vida alheia? Diga aí Manhas!

– O Doutor Clarindo Mendes é o nosso tipo clássico.Circunspecto, morrinha e sovina. Sua sovinice é tamanha quecontam dele este caso: Os fregueses o viam partindo

168 Carlos Araujo

cuidadosamente palitos de fósforos ao meio, ficaram naobservação por pura curiosidade. Quando o breu da noiteescurecia sua farmácia, Clarindo não acendia luz alguma.Sentava-se num tamborete na frente da casa com um candeeiroapagado do lado. E só acendia o fifó quando um freguêsaparecia para comprar algum remédio. Quando indagado, eledizia que era para economizar querosene.

– Preciso conhecer essa figura, meus jovens. Afinal, pelomenos de apelido, ele e eu somos colegas.

– Outro tipo que o senhor precisa conhecer também é onosso louco mágico, o Tonho Piroca. Ele mora num pequenocercado, próximo do Morro da Lagoa. Mas, de tempos emtempos ele desaparece. Desconfiamos que passa essastemporadas morando na Caverna dos Morcegos. Porém, comotodo mundo aqui tem pavor dos quirópteros, isso não ficoucomprovado. Curioso e gozoso é o tipo de alienação do nossomandraque. Sua tara é se masturbar, esgueirando-se nos troncosdas árvores, sempre que passa uma moça ou senhora, no seucampo de visão, vestindo roupa domingueira e cheirando alavandula spica.

– Essa alfazema aí você tirou do fundo do baú, meujovem! Ah! Ra! Ra! Ra! Ra!

– Outro tipo a conhecer é o Ré Curicaca, o único jornalistada Chapada. Ele criou um jornal diferente. O primeiro jornalde parede de que se tem notícia. As paredes alvas de suasapataria inspiraram o sapateiro de profissão a rabiscar comlápis, no local, manchetes originais de todos os acontecimentosimportantes da vida da Cidade. Seu jornal, digo, sua parede,foi inaugurada há algum tempo, com a seguinte notícia:

O Dono do Santo da Chapada 169

“Primeiro desmascaramento de livusia na noite chapadense”.Isso foi no episódio em que Nilton Portela e dona Beleza forampegos, por um grupo de jovens, em conluio amoroso. Hoje aSapataria de Ré Curicaca é atração na Cidade, com umainfinidade de manchetes paredais.

– Original, meus caros, original!– Outrossim, temos as nossas figuras femininas:– A nossa aqui presente Ana Gata, que nasceu para ser

mulher pública;– Madame Leila Morais, que nasceu para ser alcoviteira;

– A viúva Donana, que nasceu pra ser parteira, e hojecomanda doze companheiras nas Lamentações das Almas;

– E, finalmente, temos Beleza e Belezinha, que vieramao mundo para simplesmente personificar a formosura!

– Belas figuras, meus jovens!– Para finalizar, apresentamos um tipo que, pela

dramaticidade dos infortúnios que envolvem sua vida, somosforçados a guindá-lo à categoria de personagem protagonistade romance. No princípio eram dois irmãos: Nilton e Nilson.O que tinha tudo pra casar, não se casou. O outro que tinhatudo para não se casar, pelos trejeitos, delicadeza e profissão,se casou. Nasceu um filho do casamento, no dia de SantoExpedito. Batizaram de Expedito Portela de Carvalho. Virousanto de apelido, que fuma, que bebe e que freqüenta os cabarés.Já no nascimento começaram suas desventuras. Uma nuvemde mistério envolve sua verdadeira paternidade. Algunsgarantem que seu pai não era seu pai, era seu tio. Seu padrinhoJoaquim de Donana foi assassinado ainda jovem. Seu tio(?) seenvolveu com dona Beleza e terminou seus dias num duelo de

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morte, no Mato Grosso, com o marido da amante. O pai(?)morreu tragicamente, vitimado pela lepra. Por isso, ele e a mãeforam discriminados durante muito tempo.

– Algum tempo atrás, o nosso Santo vendeu quasetodos os bens que herdou e fez uma longa viagem. Quandoregressou, foi na boléia e no volante de um caminhão GMC.Aliás, Expedito foi o primeiro motorista a fazer roncar o motorde um carro nas ruas da Chapada.

– É bem provável que a maior de suas agruras aindaesteja por vir. Pois, na sua volta, quis o destino que fosse seengraçar justamente por Belezinha! A filha de dona Beleza,que regressara à Chapada para cuidar dos bens deixados porValter Duarte, o marido morto.

– Com efeito, nuvens negras de mistério tambémenvolvem a paternidade dessa jovem. Há quem diga que seuverdadeiro pai é Nilton Portela.

– Sendo assim, como os principais envolvidos nessashistórias de amor são geralmente os últimos a tomarconhecimento das verdades, só nos resta comer a gororoba deAna Gata, tomar cachaça, viver bem e aguardar o desenrolardos acontecimentos.

– Façamos um brinde, senhores!– Saúde!– Ao futuro da Chapada!

O Dono do Santo da Chapada 171

Uma fatalidade

Capítulo

XXV

Está dito que Maria França da Costa Duarte era umamorena pestanuda de boniteza tão perfeita que recebeu dosseus conterrâneos chapadenses o justo apelido de Beleza.

O que dizer então da morena trigueira, tambémpestanuda, gerada em suas entranhas, que veio ao mundo parapersonificar a formosura, e que recebeu o nome de batismode Flor de Maria e o apelido de Belezinha? Só poderia mesmo,como flor, possuir a essência dos atributos físicos da mãe e dasdeusas da beleza. Como era o seu caso. Só existe um adjetivopara qualificá-la: Perfeita!

Há algo inexplicável que se supõe muito além dametafísica da vida, atua sobre duas criaturas humanas, nomomento exato em que ficam face a face, no primeiro encontro,e faz aflorar um sentir mútuo do simpatizar, do se dar, doconfiar, como se muito antes de se conhecerem já se achassemunidas, alma a alma, para a jornada até o fim dos dias.

O Dono do Santo da Chapada 175

Expedito nada sabia sobre essa teoria, entretanto, sentiuexatamente tudo isso, no instante preciso em que pôs os olhosnas feições de Belezinha e ela correspondeu aos seus olhares.

A partir desse primeiro contato, um amor de visgo muitoaderente uniu aquelas duas criaturas, caprichosamente ligadaspelo mesmo infortúnio.

Com efeito, Expedito começou então a conjeturar seera de sua sina experimentar no seu coração aquele sentimentoque nutria pela filha de dona Beleza, exatamente a mulher quefora o estopim do duelo de morte entre Nilton Portela e ValterDuarte. Seu tio e o pai de Belezinha, nessa ordem.

Isso era um prenúncio de que estava no destino deExpedito passar pelas agruras vaticinadas por Espirro e seuscompanheiros, nas conversas da casa de Ana Gata.

Esses dissabores começaram a se delinear a partir domomento em que a notícia do namoro dos dois correu soltapela Cidade.

Um alerta mental fez com que Expedito, preso nostentáculos de Eros, que enredaram Belezinha e ele para aqueladireção, rememorasse pontas de conversas, cochichos emurmúrios, ouvidos aqui e ali, sobre a possível paternidadecruzada dos dois namorados.

– Flor, - era assim que Expedito a chamava – ouçoinsistentemente por aí que você pode ser filha de meu tio Nilton.Pediria que falasse com sua mãe sobre isso.

– Dito, - assim como Dalva, ela também o chamava comesse apelido – não vejo que importância poderá ter um sim daminha mãe. Pois, se assim for, nós seremos apenas primos. Enão há problema de casamento entre primos.

176 Carlos Araujo

– É que existe outra suspeita. Porém, só posso falar sobreela após a sua conversa com dona Beleza.

– Vou falar com minha mãe, então.Ao Regressar à Chapada para se apossar dos haveres

herdados do marido morto, Beleza não foi diretamente para aCidade. Alojou-se provisoriamente numa das fazendas dafamília. Com isso, ela pretendia se livrar do falatório do povo.

De forma que só foi tomar conhecimento do namorode Expedito com a filha quando a própria Belezinha lhe contou.

– Estou namorando o Expedito, mãe. O filho de donaDalva. Gostaria de saber a opinião...

Enquanto Belezinha falava viu a mãe, ali na sua frente,revirar os olhos... Parecia que ia desmaiar, em seguida caiusentada numa poltrona.

Antes de concluir a frase, a filha saiu correndo para acozinha e voltou com um copo d’água na mão. A mãe ofegava.

– Valha-me Deus! É a desgraça! Isso não pode estaracontecendo com a gente! É um castigo de Deus, filha!

– Calma mãe. Toma essa água e respira fundo.Beleza permanecia muito agitada.

– O que está havendo, mãe? – Uma fatalidade, filha. Uma desgraça. Achava que esse

assunto estivesse apagado definitivamente de minha vida. Masvocê e esse rapaz fizeram renascer do limbo do esquecimento.

– Tenho plena consciência de que você poderá até meodiar depois de ouvir o que tenho a lhe dizer. Porém, é meudever de mãe revelar a verdade dos fatos. Veja a ironia do des-tino!

– Eu era muito jovem na época e Valter Duarte o

O Dono do Santo da Chapada 177

homem mais poderoso da Chapada. Também o mais rico. Epara ele era uma questão de honra se casar com a moça maisbonita do Lugar. Naquele tempo as pessoas já me chamavamde Beleza. Mas havia um grande problema. Eu não gostavadele. Comecei a gostar de Nilton Portela desde quando elechegou à Cidade.

– Acontece que o poder de dinheiro do meu maridoenredou minha família e a minha juventude. Nos casamos. Sóque não deixei de gostar de Nilton. Nos encontrávamos àsescondidas. Quando Valter ia pernoitar na Fazenda.

– Na noite em que fomos descobertos, Nilton mecontou algo inacreditável. Disse-me ele, com todas as letras,que o irmão Nilson era maricas. E que havia suplicado suaajuda para engravidar sua mulher, a Dalva. Eu só acrediteiporque realmente o Nilson tinha aqueles trejeitos e era meiodelicado.

– Isso quer dizer que...– Sim, Belezinha, Expedito é filho de Nilton.Nesse instante, as idéias começaram a nublar na cabeça

de Belezinha. Mesmo assim ela ainda teve forças para fazer apergunta mais dificultosa de sua vida.

– Mãe, e quem é o meu pai?– Nilton Portela, filha!Belezinha desmaiou.

178 Carlos Araujo

É o dono do Santo

Capítulo

XXVI

No momento exato em que Belezinha desmaiava naChapada, sacolejava na boléia de seu caminhão, carregado pormais de cinqüenta romeiros, na entrada de Bom Jesus da Lapa,o corpo de Expedito, sua força física, empenho e responsabi-lidade. Entretanto, seu pensamento estava longe dali. Estavaligado na namorada.

Por esse motivo, ele custou a entender porque havia umapessoa no meio da estrada ordenando que parasse o seu carro.

– Pára o caminhão! Tenho que contar os romeiros. To-dos vão ter que pagar uma taxa para poder entrar na Cidade.

– Quem inventou essa barbaridade? Esse absurdo? BomJesus da Lapa já vai ficar com o suado dinheiro desses coitadosromeiros. E ainda vão ter que pagar uma taxa para ver o San-to?

– É um decreto do Prefeito. Não temos nada com isso.Somos apenas empregados. Só cumprimos ordens.

O Dono do Santo da Chapada 181

Findos os protestos indignados e pagas as taxas injusta-mente cobradas, Expedito conduziu os romeiros até à entradada Gruta. Estacionou o carro no local determinado e entrouno primeiro bar que viu pela frente. Sentou-se a uma mesa e,ao virar-se para pedir uma bebida, deparou-se com um senhorgrisalho, de pé em sua frente, fumando um enorme cachimbo.

– Permita que me apresente, jovem! Meu nome éHermenegildo Feitosa. Sou um velho professor aposentadode São Paulo.

– Tenho a impressão de já ter ouvido o nome do senhorem algum lugar.

– É bem provável, jovem. É bem provável. Eu só vim tercom sua pessoa porque, estando eu no local da parada doscarros para a cobrança da esdrúxula taxa dos romeiros, perce-bi que seu caminhão é da Chapada. Alguns anos atrás conheci,aqui neste mesmo bar, dois irmãos lá da sua Cidade. O Niltone o Nilson Portela. Só que naquela época se viajava de tropa.

– Ah! Então era isso!– Isso o que, jovem?– Nilson era o meu pai e Nilton Portela, meu tio! Agora

me recordo que ouvi o nome do senhor lá em casa, numa con-versa sobre a compra de Santo. Eu era só um garoto naquelaépoca.

– Muito prazer, professor! Meu nome é Expedito Portelade Carvalho.

– O prazer é todo meu, jovem Expedito. Mas, parece-meter ouvido você falar: Era meu pai...

– Sim, eles já morreram.– Jovem Expedito, se não for pedir demais e, caso o

182 Carlos Araujo

assunto não o entristeça sobremaneira, pediria que me falasseum pouco sobre eles.

Expedito consumiu alguns minutos discorrendo erelembrando os passos do tio e do pai, desde a época do en-contro com o professor até os últimos dias de suas vidas.

– Que fins trágicos, meu jovem! Saiba que sinto muito.Porém, de todos esses episódios lamentáveis, algo me deixoubastante curioso.

– O que, professor?– Você jogou o Santo na Lagoa?– Não joguei. Uma força superior à ordem da minha mãe

começou a martelar no meu juízo, na hora em que recebi aquelaincumbência. Como se dissesse que eu ainda ia precisar da-quela imagem.

– Eu tinha certeza! Só queria a confirmação. Pelo queentendo do assunto, você fará uso da imagem!

– Como assim? Nem tenho pensado nisso.– Você herdou a Caverna, com todos os terrenos adja-

centes. É o dono do Santo. Sua Cidade, como diz, é cenário decinema. Tem as águas termais e a lama medicinal. Falta o quê?Alojar a imagem do Santo na Caverna. É a parte mais fácil.Espero ainda estar vivo para ser um dos seus romeiros!

– No momento, professor, só penso numa coisa. No meucasamento com Belezinha!

– Mais duas doses da caninha de Januária, meu jovem, eduas moquecas de surubim.

– Você foi testemunha ocular da cobrança da taxa dosromeiros. O Santo projeta a cidade para altos vôos e muitagente aproveita a oportunidade para ganhar dinheiro.

O Dono do Santo da Chapada 183

– O jovem Expedito seria capaz de adivinhar o motivopelo qual voltei a esta Cidade, depois de tantos anos?

– Gostou da cachaça da região e do surubim do Rio SãoFrancisco?

– Também por isso. Mas, principalmente, porque estáagendada uma visita a Bom Jesus da Lapa de Getúlio DornelesVargas, o Presidente da República!

– O Presidente em pessoa vai pisar aqui nesta Terra?– Exatamente, meu jovem Expedito. Veja você a impor-

tância desta romaria no cenário nacional.Depois de ingerida a sexta dose de pinga e de degustada

a moqueca de surubim, o professor se despediu do amigo re-cente.

– Foi um imenso prazer em conhecê-lo e, principalmen-te, de ter conversado todo esse tempo com você, meu jovemExpedito.

– Digo o mesmo, professor. Pra mim também foi muitoprazerosa e agradável essa nossa conversa.

– Despeço-me com as mesmas palavras com as quais medespedi de seu pai e de seu tio naquela época:

– A caminho do dinheiro!

184 Carlos Araujo

Os homens são como as ondas

Capítulo

XXVII

“Os homens são como as ondas: quando uma geraçãofloresce a outra declina”. Esta máxima foi um legado do poetagrego Homero para as gerações futuras.

Já o escritor brasileiro Lima Barreto deixou suacontribuição ao escrever que: “A morte nivela a todos; os bemvestidos e os mal vestidos, os elegantes e os pobres, os feios eos bonitos, os inteligentes e os néscios, passando a sua tesouraem todas as distinções que inventamos”. Acrescente-se que,homenageando o nacionalismo exacerbado de PolicarpoQuaresma, no fim, todos, sem exceção, terão que enfrentar aceifa de seu infalível tacape.

Dalva nunca ouvira falar de Homero, muito menos deLima Barreto. Todavia, como o ato de pensar, até certo ponto,também iguala as pessoas, no momento em que inventariavapela terceira vez sua vida, o foco de seu pensamento estava nasua geração e na morte.

O Dono do Santo da Chapada 187

Com efeito, a morte arrebatara de sua geração, entesmuito próximos de si, e essas perdas provocaram estragosirreparáveis nas suas relações de amizade, confiança, afeto,carinho e amor.

De algum tempo até àquela quadra, foi obrigada aincluir no seu inventário o falecimento do primo e parceiro deaventura amorosa Benício, de seu pai, de sua mãe, de sua sogra,de seu sogro, da amiga Ritinha, do compadre Joaquim deDonana, de Valter Duarte, do cunhado Nilton e de seu grandeamor Nilson Portela.

Era perfeitamente natural que a ausência mais sentidadessas todas fosse mesmo a do seu marido. Por isso, a partirdo dia da tragédia, Dalva entrou numa fase de definhamentolento e gradual. Nos últimos anos, no entanto, houve aceleraçãodesse processo. Ela passava os dias, muitas vezes, largada noscantos da casa, macambúzia, taciturna, maldizendo da vida edos caprichos do destino. Era como se lhe tivessem tirado osangue das veias, o motivo de viver. Foram meses e meses nesseestado, até que o corpo não suportou.

De tal maneira que, quando Expedito regressou de BomJesus da Lapa, ela estava prostrada, entregue, doente de morte.

Quando o caminhão de Expedito parou em frente daIgreja Matriz da Chapada para deixar ali os romeiros, ele soubeda gravidade do estado de saúde da mãe. Imediatamenteexperimentou uma perturbação profunda no seu ânimo. Deixouo carro ali mesmo e saiu em disparada para casa.

Entrou ansioso nos aposentos de Dalva e viu amadrinha Donana e o Doutor Heleno Freitas na cabeceira desua cama.

188 Carlos Araujo

– A bênção, madrinha!– Deus abençoe, filho!– Como a mãe está?– Não está bem! Vou sair um pouco para você poder

conversar com ela. Depois nos falamos.– Ôi, Doutor! Como minha mãe está?– Vou sair também. Depois nós conversamos.– Olá, mãe! A bênção! A senhora quer me dar um susto!

Tem que lutar!– Deus abençoe, filho. Você sabe muito bem que há

muito tempo, com a morte de seu pai, perdi a principal razãode viver.

– Mas a senhora ainda tem a mim!– É verdade, filho. Mas você está no início da vida. Eu

já estou no final.– Que nada, ainda tem muito que viver. Vou deixar a

senhora descansar um pouco.– A propósito, mãe, a Flor tem visitado a senhora?– Não tem aparecido aqui não, filho. Eu até estranhei!Expedito saiu daquele quarto arrasado. Pela ausência

injustificada de Belezinha e, principalmente, pela debilidadeda mãe.

As idéias embaralharam em seu juízo. Respirou fundoe decidiu que o assunto mais urgente era cuidar da saúde damãe. Depois procuraria Belezinha. Talvez ela tivesse algumaexplicação convincente para tamanha falta de consideraçãocom sua mãe.

Estava nessa confusão mental quando, ao entrar nacozinha para tomar água, lá encontrou Donana e o médico,

O Dono do Santo da Chapada 189

conversando.– E então Doutor, o problema de minha mãe é grave?– Vou ser franco com você, Expedito. O estado dela é

gravíssimo. Nem só pela enfermidade em si. A questão é queme parece que ela não quer mais viver. Entregou-se à doença.E para complicar ainda mais seu estado, é quase certo quecontraiu tuberculose.

– Que desgraça!Os dias passavam para Expedito num misto de angústia

e esperança. Ele rezava para que o estado de saúde de Dalvamelhorasse. Mas, pelo contrário, só piorava.

Até que certo dia, Donana, que sempre estava ao ladodela, chamou Expedito.

– Filho, sua mãe quer falar com você. Tenha muitocuidado. Ela não pode fazer muito esforço. Não pode se cansar.

Ao se aproximar da cama, Expedito notou que sua mãese encontrava bastante agitada.

– Senta aqui na cama, filho. Quero falar com você.Ele notou que a mãe falava com muita dificuldade.

Parece que fazia um derradeiro esforço para falar.– Fica calma, mãe! A senhora não pode se esforçar.

Não precisa falar agora. Depois a senhora fala.– Eu sei que vou morrer e não quero levar um terrível

segredo comigo para a sepultura. Ouça... Você não é... Filho...Nesse instante, ela teve uma convulsão. Revirou os

olhos e a primeira reação de Expedito foi gritar...– Madrinha, corra! Minha mãe está morrendo!E, desgraçadamente, estava.

190 Carlos Araujo

Eu vim aqui para isso

Capítulo

XXVIII

Uma vez mais o sino da Chapada reboava, ecoando pelasserras e grotões, no cerimonial dos funerais. Dessa feita, noentanto, suas badaladas compassadas repercutiam no fundodo peito de Expedito e doíam como golpes de punhal.

Afinal, era o fatídico dia em que ele passava pela provaçãode perder o ente mais querido. A morte da mãe lhe dava a realcompreensão de experimentar pela primeira vez na vida comoera se sentir desamparado.

No dia seguinte, Expedito comprovou que a mágoa eraum sentimento novo que atormentava seu coração. Algo muitograve acontecera para Belezinha ter desaparecido desde o diade sua viagem para Bom Jesus da Lapa.

Lamentavelmente não visitou Dalva uma única vez nosmomentos mais agudos de sua doença. Também não apareceusequer para acompanhar o funeral de sua mãe.

O Dono do Santo da Chapada 193

Será que tinha algo a ver com a conversa que ela teriacom dona Beleza? – interrogou-se Expedito. Comprometeu-se em tirar aquilo a limpo.

Parou o caminhão em frente da casa de dona Beleza,tudo fechado. Indagou os vizinhos e soube que ela e a filhatinham ido para a fazenda. Expedito tocou pra lá.

A sede da fazenda dos Duarte distava cerca de quatroléguas do centro da Cidade, de modo que, enquanto o aflitonamorado dirigia seu caminhão pela estrada que levava ao lu-gar, toda a sua atenção se voltou para os eventos do passado. Epôde sentir que o que mais ficara impregnado na sua memórianessa retrospectiva foram os dissabores de acontecimentosfunestos de tempos a tempos.

O mais recente e mais sofrido de todos eles fora a perdada sua mãe. Será que o aperto que sentia no coração naquelemomento era o presságio de nova desgraça se desenhando emsua vida, no final daquela viagem? Já era a vigésima terceiravez que fazia mentalmente essa pergunta, no exato momentoem que avistou a casa da propriedade que procurava. Seu cora-ção bateu mais forte.

– Ô de casa!?Beleza apareceu na porta e veio ter com ele.– Bom dia seu Expedito. Meus pêsames. Estávamos já

há muitos dias isolados aqui na fazenda e só hoje soubemos damorte de sua mãe. Sentimos muito.

– Bom dia dona Beleza!. Muito obrigado. A senhora jádeve imaginar o que me trouxe aqui. Então vou direto ao as-sunto. Vim para falar com Belezinha. Quero saber o que acon-teceu com ela para ter desaparecido assim, e sem explicação.

194 Carlos Araujo

Tudo isso está muito estranho.– Faça o favor de entrar. Senta e vamos conversar. Pre-

pare-se que nossa conversa vai ser muito dolorosa. Belezinhaestá trancada há dias no seu quarto e não quer falar com nin-guém. Aconselho não insistir.

– Essa atitude tem a ver com o segredo que a senhorarevelou a ela?

– Como o senhor sabe disso?– Eu tinha cá minhas suspeitas de que ela poderia ser

filha do meu tio Nilton Portela.– Não é só isso. O senhor nem imagina!– Como não?– Existe algo mais terrível nessa história!– O quê, dona Beleza?– Tem certeza que quer ouvir?– Eu vim aqui pra isso!À medida que Beleza Duarte pormenorizava os tristes

episódios da mesma versão que havia contado para sua filha,Expedito ia empalidecendo.

– Então era isso que minha mãe tentou me revelar nomomento de sua morte. Pensou Expedito, amaldiçoando suapouca sorte, em voz alta.

– O que disse? Quis saber Beleza. – Minha mãe morreu tentando me revelar algum segre-

do e não conseguiu. Só me lembro de ter entendido uma pala-vra: filho!

– Devia ser isso. – Essa é mais uma desgraça que se acumula na minha

existência. Apesar de já estar calejado, esta é terrível demais

O Dono do Santo da Chapada 195

para eu suportar. Não tenho mais nada que fazer aqui.– Passar bem, dona Beleza!– Adeus, seu Expedito!Foi assim que uma revolução se operou na índole de Ex-

pedito. Naquele momento começaram a brotar em seu cora-ção sentimentos ruins, de revolta, de vingança!

Que adiantou ser temente a Deus, freqüentar as missas,rezar as orações pertinentes e levar uma vida de retidão exem-plar, se Deus e o destino tiraram tudo dele? Subtraíram o pai, otio, a mãe e agora o grande amor de sua vida, Belezinha? Nocaso dos primeiros, não perdera apenas fisicamente entes mui-to queridos, como também o conceito ilibado que conservavadeles até aquele momento. Ganhara uma meia-irmã, é verda-de, entretanto, preferiria mil vezes trocar aquela irmã pelamulher dos seus sonhos.

Expedito nunca havia se sentido tão desamparado na vida.Com todas as emoções dos últimos dias, estabeleceu-se umaconfusão em sua cabeça que se voltava contra os personagensdessas tramas sombrias do seu passado. E nesse emaranhadode perturbação tinha consciência e lamentava nada poder co-brar de seu tio (?) Nilton, de seu pai (?) Nilson e de sua mãeDalva. Eles já não estavam neste mundo.

Poderia descarregar toda sua vingança em dona Beleza,ela era a maior culpada de sua mais recente desgraça e estavabem viva. No entanto, contra a mãe de Belezinha nenhum malteria coragem de fazer.

Foi nessas circunstâncias que Expedito Portela de Carva-lho, o filho de Dalva e Nilson (?), elegeu o alvo de sua vingan-ça: O Destino. Para Expedito, ele era o grande culpado, pois

196 Carlos Araujo

lhe impingira todos aqueles reveses e chegava então o mo-mento propício para lhe dar o troco.

A partir daquele dia, empregaria toda sua força física emental para conduzir seu futuro e o futuro da Chapada à suamaneira e condições. Seria o grande comandante.

Veio à sua memória o conselho que o professorHermenegildo Feitosa lhe dera em Bom Jesus da Lapa. Che-gou em sua casa, desembalou a imagem e iniciou imediata-mente, com a frieza dos determinados, a arquitetar o plano dealojar Santo Expedito na Caverna dos Morcegos.

O Dono do Santo da Chapada 197

Fama nulla stringitur mora!

Capítulo

XXIX

“1. É pois a fé a substância das coisas que se deve esperar,um argumento das coisas que não aparecem;

2. Porque por esta alcançaram testemunho os antigos;3. Pela fé é que nós entendemos que foram formados os

séculos pela palavra de Deus: para que o visível fosse feito doinvisível”.

Expedito tinha ciência de que dispunha de uma aliadade peso e era essencial para poder levar avante e obter o êxitoque esperava na execução de seu animoso plano: A fé religiosado povo. E para reforçar essa sua convicção, estava naquelemomento com a Bíblia Sagrada aberta, na qual acabara de ler a“Carta de São Paulo aos Hebreus 11.1”.

Pelo menos de uma coisa Expedito tinha absoluta certeza:Não lhe era dado o direito de cometer uma falha sequer nessasua desforra. Por isso, emprestaria um cuidado extremo no

O Dono do Santo da Chapada 201

planejamento e na execução do plano para que tais falhas nãoacontecessem.

Ao iniciar o planejamento, ele vislumbrou de saída umprimeiro empecilho. Seria praticamente impossível botar emprática um plano dessa envergadura sozinho. Haveria de tercolaboradores.

Ele achou por bem contratar todos os ajudantesnecessários fora da Cidade. Afinal, não queria que levantassemsuspeitas sobre sua pessoa. Para isso, preparou seu caminhão efez uma longa viagem, aproveitando a oportunidade paracontratar pessoas aqui e acolá.

Essa viagem serviu também para a maturação daseqüência de todos os passos que ele teria que seguir. De formaque, quando regressou à Chapada, já havia se firmado na dataideal para alojar Santo Expedito na Caverna dos Morcegos.

Na Chapada, havia aquele grupo de treze viúvas,comandadas por sua madrinha Donana, que realizava em todameia-noite de Sexta-feira da Paixão a Lamentação das Almas.O roteiro de tal cortejo partia da Igreja Matriz, no centro daCidade, terminando no Cemitério. Nesse percurso, as viúvasteriam que passar forçosamente defronte da Caverna dosMorcegos.

Dessa forma, Expedito se fartou de contentamento porter encontrado finalmente as testemunhas perfeitas para seremas primeiras pessoas a se deparar com a imagem de SantoExpedito no interior da Caverna e atestar os primeiros milagresdo Santo.

E foi assim que, depois de tantas peripécias, chegou àPraça da Matriz da Chapada, antes da meia-noite de Sexta-

202 Carlos Araujo

feira da Paixão, Expedito Portela de Carvalho na pele do“Homem Misterioso”. Ficou ali postado, aguardandopacientemente, para acompanhar a uma certa distância, semser visto, todos os passos das treze viúvas, que exatamente àmeia-noite, iniciariam a Lamentação das Almas. Estava ansioso,pois chegara o momento de botar em prática a parte maisimportante de seu plano.

De seu ponto de observação ele pôde ver as beatassaindo do lado sul da Rua Marechal Deodoro, penetraram naPraça da Matriz e começaram a circundar a Igreja. O gruporetornou à mesma rua, já pelo lado norte e foi se afastando docentro da Cidade. Ele seguiu em seu encalço.

Quando o grupo de beatas chegou no ponto onde ocarreiro fazia uma bifurcação, indo um caminho em direçãodo Cemitério e o outro contornava o morro, a oeste, diretopara a Lagoa, houve a explosão, como estava previsto, eaconteceu tudo aquilo que já é sabido.

Expedito sentiu-se realizado com o êxito que alcançaranessa parte fundamental de seu plano e passou o Sábado dealeluia em comemoração solitária, na sua própria casa.

Ele acordou no domingo inquieto para saber arepercussão do inusitado acontecimento da madrugada daSexta-feira da Paixão. Tomou o café da manhã e foi direto parao Bar do Cido, lugar ideal para saborear sua vitória.

O local estava apinhado de gente. Mesmo assim,Expedito enxergou Espirro, Manhas, Fila Grogue e o DoutorHeleno Freitas numa mesa de canto. Ele foi se aproximandodeles e, quando já estava bem perto, deu pra ouvir o que Espirrodizia:

O Dono do Santo da Chapada 203

– Temos aqui o primeiro caso de santo rebelde, Doutor!Santo Expedito se revoltou, não aceitou ser alojado numacaverna e fugiu! Escafedeu-se!

O filho de dona Dalva empalideceu. Ficoudesorientado. Sua cabeça começou a entrar em parafuso, comose mil cigarras começassem a chiar em seu juízo. Ele notouque os quatro da mesa perceberam sua reação ao que foi ditopor Espirro e fez um esforço quase sobre-humano para nãodeixar transparecer tanto seu estado de tontura.

– Você está se sentindo bem, Expedito? Parece pálido!– Estou bem, Doutor. Deve ser pela noite mal dormida.

Como vocês souberam que a imagem de Santo Expedito sumiuda Caverna?

– Fama nulla stringitur mora!– O quê?– Ah! Notícia ruim corre depressa!– O povo está desconsolado!– Também, depois de tantos milagres!– A imagem simplesmente desapareceu da Caverna,

esta madrugada, sem deixar pistas!Expedito deu uma desculpa qualquer e saiu dali

atarantado.Deve ser mentira! Eles estão de gozação comigo – ia

pensando enquanto saía do Bar. Ocorre que as conversas dasruas também davam conta da versão contada por Espirro.

Assim, naquela ensolarada manhã de domingo,Expedito concluiu que havia desmoronado todo seu plano devingança. Nada mais havia a fazer. O destino lhe devolvia a

204 Carlos Araujo

desforra, fazendo tudo ir por água abaixo. E, atordoado comoestava, foi correndo pra casa colocar suas idéias em ordem.

O Dono do Santo da Chapada 205

Em função da romaria

Capítulo

XXX

Expedito voltou para sua casa, tomou um revigorantebanho de água fria, mesmo assim continuou com a sensaçãode que todo seu sangue subira para a cabeça. E por mais quetentasse não conseguia recolocar suas idéias no prumo. Mesmonessa desordem mental começou a enxergar uma luzinha nofim do túnel. De súbito, lembrou-se da bendita entrada secretapara o interior da Caverna dos Morcegos. Ficava do outro ladodo morro, e só duas pessoas da Chapada sabiam de suaexistência. Ele, naturalmente, e... Tonho Piroca!

Saiu como um foguete. Seu destino não era a casa doaluado. Para lá iria depois. Foi direto se entender com AnatalinoPacífico. Conseguira a cumplicidade do sacristão através dealiciamento, pois precisava de alguém que tivesse livre acessonas vinte e quatro horas do dia ao interior da Igreja Matriz.

– Bom dia, sacristão!– Bom dia, seu Expedito!

O Dono do Santo da Chapada 209

– Eu avisei que se algo desse errado era para recolocara imagem de Santo Expedito no altar da igreja. O senhor fezisso, seu Anatalino?

– Fiz, sim senhor! O Santo está no seu lugar. Sabe queestou em suas mãos. Vou fazer sempre o que mandar. Mas... Oque aconteceu com a imagem da Caverna? Isso deve ser castigode Deus!

– Que castigo, que nada! Ainda não sei o que houve,mas vou saber. Espero que fique de olhos bem abertos, porquea imagem da Caverna vai voltar pra seu lugar. E quando issoocorrer, desapareça imediatamente com o Santo da Igreja,combinado?

– Combinado, seu Expedito!– Isso deve acontecer ainda nesta madrugada.O casebre de Tonho Piroca ficava muito próximo da

entrada secreta da Caverna, dentro dos limites do Cercado doMorro dos Morcegos. Como Expedito era o proprietário dosítio, com o tempo, adquiriu certa ascendência sobre o morador,tornando-se seu protetor e amigo.

Algo chamou a atenção de Expedito no momento emque ia rodear o Morro em direção ao norte. Avistou uma grandeaglomeração de pessoas na frente e dentro da Caverna dosMorcegos. O povo continuava lá em vigília, na expectativa,firme, rezando pela volta do Santo. Expedito não coube em side satisfação ao se deparar com tamanha demonstração de fé.O episódio do sumiço da imagem havia revertido em seu favor.Por certo iria resultar numa verdadeira explosão de devoção aSanto Expedito. A coisa estava saindo mil vezes melhor doque o planejado - pensou Expedito.

210 Carlos Araujo

Naquele dia, Piroca estava especialmente atacado. Deumuito trabalho para acalmar o homem.

– Está nervoso, Tonho?– Muito barulho, patrão. Muita gente por aqui atrás de

uma imagem. Eu fui lá e peguei ela!– Fez muito bem! Mas eu quero combinar uma coisa

com o amigo. Vou construir uma casa grande e afastada dobarulho pra você morar. Em troca, quero que me faça umgrande favor!

– Favor para o patrão, Tonho faz. O que é?– A entrada secreta da Caverna é um segredo só nosso.

Não fale com ninguém sobre isso. A imagem que estava ládentro, fui eu que botei. Tonho leva de volta. Mas tem que sermeia-noite, e que ninguém veja você, certo?

– O patrão manda, Tonho faz!– Amanhã mesmo vão começar a construir sua nova

casa!Dali por diante, a Caverna, áreas próximas e adjacentes

se transformaram num verdadeiro canteiro de obras. Consoanteacordo firmado entre a Prefeitura Municipal, o padre Mário eExpedito, proprietário dos terrenos, a Gruta estava recebendoas adaptações necessárias para ser transformada e batizada deSantuário de Santo Expedito. No terreno em frente, o que maisse via era um vai-e-vem de mestres-de-obras, pedreiros,carpinteiros e serventes, misturados aos romeiros e devotos,que a cada dia aumentavam mais. Ali nascia o Largo doSantuário. Erguiam-se freneticamente hotéis, pensões, vendas,bares e casas de produtos religiosos.

Enquanto isso, a imagem sumia da Gruta, reaparecia

O Dono do Santo da Chapada 211

na Igreja Matriz e vice-versa, tudo de acordo com a ordem evontade de Expedito e sob a execução de Tonho Piroca eAnatalino Pacífico. Cada vez que o Santo retornava à Cavernanovos milagres aconteciam.

A notícia desse acontecimento incomum, da rebeldiado Santo, de seu sumiço e reaparecimento, começou a seespalhar rapidamente. Ultrapassou as fronteiras da Cidade edo Estado. Desencadeou uma corrida desenfreada de devotospara o Lugar. Em pouco tempo, o progresso chegou e aChapada já vivia exclusivamente em função da romaria.

212 Carlos Araujo

Quem mais saiu lucrando com o Santo

Capítulo

XXXI

O aparecimento da imagem de Santo Expedito naCaverna dos Morcegos, seu sumiço e reaparecimento,transformou-se em assunto trivial nas conversas em toda aCidade.

Em três lugares especialmente – Bar do Cido, Casa deAna Gata e Sapataria de Ré Curicaca – o tema era alvo dasmais acaloradas discussões. Especulava-se. E havia até aquelesque achavam que o caso merecia uma acurada investigação.

Estavam entre esses, Espirro, Fila Grogue e Sete Manhas.Desde o início eles ficaram encafifados com o assunto. Oepisódio passou a merecer uma atenção toda especial quandopresenciaram o nervosismo de Expedito, no Bar do Cido,naquela manhã de domingo.

Ocorre que o interesse deles era mais na teoria que naprática. Ainda não tinham passado para a ação.

– Para mim esse Santo tem um dono. E tudo isso foi

O Dono do Santo da Chapada 215

feito de caso muito bem pensado. O que você acha, Espirro? – Quod erat demonstrandum, Manhas! – Ah! É isso que era para ser demonstrado! Um sujeito meio embriagado, na mesa ao lado, foi

categórico: – Eu acho que o Santo se rebelou! Não quer colaborar

com tamanha farsa. Ele não admite ajudar a encher os cofresda Igreja de dinheiro. Por isso desaparece misteriosamente. Maso tiro tá saindo pela culatra. Acredito que o Santo não émalicioso. E, seu sumiço e posterior reaparecimento, só fazaumentar ainda mais a devoção do povo.

O companheiro de mesa retrucou:– Que nada! Tão dizendo por aí que o Capeta está

aboletado lá dentro da Caverna. Como o Santo não gosta desua companhia, foge do lugar. Todavia, quando Santo Expeditoestá na Gruta, para mostrar ao Satanás que tem poder, realizaos milagres. É tanto que estão comentando que o Padre Márioestá meio indeciso se exorciza ou não o Coisa Ruim!

– Vejamos quem mais saiu lucrando com o Santo,Espirro!

– Pela ordem: A Igreja, pelo advento da romaria;Expedito, que é dono das terras; e, naturalmente, o Prefeito,pelo crescimento da Cidade!

– Sendo assim, tanto o padre Mário quanto Expeditoou até mesmo o Prefeito pode ser o idealizador desse embuste.O responsável pela farsa.

– Eu proponho então que desmascaremos o dono doSanto. Que acham?

– Concordo, Manhas! Saímos daqui da Casa da Ana

216 Carlos Araujo

Gata, lá por volta das onze horas, e ficamos de tocaia dentroda Caverna.

– Alguém vai ter que aparecer para pegar a imagem edamos o flagrante. Ou, por acaso, algum de vocês acredita quea imagem vai desaparecer por milagre?

– Probabilius est quod non, Fila Grogue!– O mais provável é que não, Espirro!Os três notívagos gastaram o final da tarde e o princípio

da noite entabulando uma maneira de fazer a incursão ao pédo Morro. A dificultosa caminhada, de mais de mil metros, doponto onde se encontravam, até o lugar, era o maior dosempecilhos para cachaceiros inveterados iguais a eles, quepreferiam o levantamento de copo. É tanto que a última vezque botaram os pés em frente da Caverna dos Morcegos foiexatamente no famigerado dia da explosão. E só foram láporque toda a população da Chapada se encontrava no local.

Com um pouco de atraso do horário previamentecombinado, feita a devida provisão de cachaça, partiram ostrês à caça do dono do Santo. Lá iam eles, em passo de tartaruga,atravessando a Cidade de ruas desertas. A lua iluminava suaspegadas, como única testemunha daquele inusitado passeionoturno.

No momento em que desembocaram no Largo doSantuário, eles não conseguiam acreditar no que seus olhosenxergavam. Espirro falou pelos três:

– Incredibile est quod dico, sed verum, meus amigos!– Parece mentira, mas é verdade, Espirro!– Sanctum Sanctorum!– O Santuário!

O Dono do Santo da Chapada 217

O Largo, que mais parecia uma esplanada, tal a suaextensão, em forma de “U”, estava totalmente pavimentado,com novíssimas construções em três lados. Hotéis, bares,pensões e casas de produtos religiosos tinham nascido do nadaem toda sua extensão. Quando se aproximaram da Gruta,estancaram abismados. Havia duas enormes torres construídascom pedras regulares, onde antes era a boca da Caverna. Doisgrandes portões, trancados a cadeados, impediam a passagempara o interior da Gruta, naquela hora da noite. Espirro nãoresistiu:

– Eureca! Pecunia Regina mundi!Sete Manhas traduziu:– O dinheiro é o rei do mundo!– É inacreditável o que aconteceu aqui desde o dia da

explosão. Missão impossível, meus amigos. Nessas condiçõesjamais conseguiremos descobrir quem botou a imagem naCaverna. Pra não dizer que perdemos nosso tempo, vamospassar o resto da noite ali inaugurando aquele Bar dos Romeiros,que ainda está aberto.

Chegavam a seus ouvidos um som de violão e a músicade Francisco Alves. Com efeito, no Bar, que tinha relativafreqüência naquele fim de noite, um seresteiro dedilhava seupinho e entoava uma valsa do Rei da Voz. Foram direto aobalcão e pediram três doses de cachaça.

Nesse momento, um senhor se aproximou deles.– Meus jovens, vocês são daqui da Cidade?– Sim, somos, respondeu Espirro.– Muito prazer! Eu sou Antonio Cícero, de Mato

Grosso.

218 Carlos Araujo

Já pensando nos planos para o futuro

Capítulo

XXXII

A despeito do sangue-frio com que planejou e botou emprática a desforra contra seu destino e o destino da Chapada,Expedito era um ser humano ansioso, inquieto. Passada aeuforia do triunfo, seu coração voltara a ficar em frangalhos.Sua vitória tinha um sabor amargo. Todos os seus pensamentosagora se voltavam para Belezinha.

Ela teria superado aquele drama terrível?Que teria feito da vida dela?Onde ela estaria naquele momento?Teria se casado?Estas e outras perguntas ele fazia a si mesmo e não tinha

coragem de procurar saber das respostas. Devido às suasatribulações, desde o dia da conversa com dona Beleza nãosoubera de nenhuma notícia sobre elas. No entanto, mãe efilha continuavam no mesmo endereço onde ele as deixara.

Na verdade, Beleza e Belezinha se isolaram de tal forma

O Dono do Santo da Chapada 221

naquela mesma fazenda que não saíam de lá para nada.Ademais, algo espantoso estava acontecendo com a mãe

de Belezinha. Dona Beleza nem lembrava mais a mulher deformas perfeitas de outros tempos. Da mesma forma que Dalva,também ela entrara num processo de definhamento. Mas,diferentemente do que ocorreu com a mãe de Expedito, seuproblema era o peso do remorso. A compunção acelerou oprocesso de consumição, porque via a filha num sofrimentoinconsolável. Viviam como dois zumbis dentro de casa. Poucose falavam, cada uma com a sua dor.

Beleza sentiu que chegara o momento de fazer algo paramudar de vez aquela situação. Aquilo já tinha ido longe demaise a solução não poderia ficar para depois, talvez fosse tardedemais.

Foi então que tomou uma importante resolução. Chamouum dos empregados da Fazenda e entregou este bilhete:

Senhor Expedito,

Peço encarecidamente que venha ainda hoje ànossa Fazenda. É caso de vida ou morte.

Beleza Duarte.

Expedito ainda refletia sobre as indagações do seupensamento, quando o positivo bateu em sua porta e lheentregou o bilhete.

– Dona Beleza disse que era para eu esperar a respostado Senhor.

222 Carlos Araujo

A primeira reação dele foi dizer que não iria. Seu encontrocom Belezinha só poderia machucar ainda mais os dois. Mas,releu o bilhete várias vezes e ponderou que poderia se tratar dealgo muito grave.

- Pode dizer que irei.Em idêntico ritual de meses atrás, Expedito preparou

seu caminhão e fez o mesmo percurso do caminho para aFazenda de dona Beleza. Só que desta vez ia com outrosentimento.

Parou o carro em frente da casa da propriedade e seucoração disparou de emoção.

– Tem alguém em casa?Desta feita quem apareceu na porta para atender foi uma

senhora, empregada da Fazenda.– Boa tarde, seu Expedito! A patroa está esperando pelo

senhor no quarto dela. Entre por favor.Ele entrou e acompanhou a mulher em comprido

corredor. Ela abriu a porta de um dos quartos e fez sinal paraExpedito entrar.

Ao botar os pés naquele ambiente taciturno, empenumbra, viu Beleza prostrada na cama, irreconhecível. Foiacometido de repente por um mal estar estranho. Uma sensaçãodesagradável.

– Muito obrigado por ter vindo, Expedito.– Fiquei em dúvida se devia vir ou não.– Fez muito bem em ter vindo. O remorso está me

levando à sepultura. Se não fizesse o que vou fazer agora nãopoderia morrer em paz com a minha consciência e,principalmente, com Deus.

O Dono do Santo da Chapada 223

– Nem fale em morte, dona Beleza! Ela pareceu nem ter ouvido o que Expedito acabara de

falar e chamou a empregada. – Antonia, vai buscar Belezinha. – Mas... Patroa, ela não quer sair do quarto de jeito

nenhum!– Traga de qualquer maneira. Na marra, se for preciso.– Sente-se aqui, por favor, jovem!Havia duas cadeiras próximas da cama da doente e

Expedito ocupou uma delas. Ficou em silêncio. Um silêncioangustiante, enquanto aguardava a chegada da filha da dona daCasa.

Depois de longos minutos de espera, finalmenteBelezinha apareceu na porta do quarto. O coração de Expeditobateu desenfreado. Suas pernas só não bambearam porqueestava sentado. Ela foi entrando e o jovem pôde perceber suaexpressão de sofrimento. Parecia outra pessoa. Muito diferenteda Belezinha que havia namorado meses atrás. Não lhe dirigiua palavra. Aliás, calada entrou e calada foi sentar-se na cadeiraque a mãe indicou.

– Eu tomei a difícil decisão de juntar vocês dois aquiporque já não agüento mais esse remorso que está consumindoa minha vida. Agradeço se me escutarem com bastante atenção.

– Quando Valter e Nilton se mataram em Mato Grossoe eu tive que voltar à Chapada para cuidar das coisas deixadaspelo meu marido, a Cidade inteira me rejeitou. Fiquei muitomagoada com a atitude das pessoas. Por isso, vim me refugiaraqui na Fazenda com todo o ressentimento guardado no fundodo coração.

224 Carlos Araujo

– Os anos foram passando e, quando soube que vocêsestavam namorando, eu vi ali a oportunidade ideal para mevingar da Cidade. Até porque o namorado tinha o sobrenomePortela, que fazia lembrar a minha desgraça. Havia jurado amim mesma que minha filha jamais se casaria com alguém daChapada. Para isso não acontecer seria capaz de vender todosos nossos bens e ir tentar recomeçar nossas vidas em outrolugar.

– Foi então que resolvi contar aquela mentira pra vocês!– Mentira?!– Mentira?!As transformações das expressões dos rostos de

Expedito e Belezinha faziam lembrar duas fênix renascendodas cinzas. Pularam das cadeiras e grudaram os olhos emdona Beleza pedindo explicação.

– Por favor, me ouçam até o final. Eu tenho certezaabsoluta que Belezinha não é filha de Nilton. Quando me casei,passei quatro meses viajando em lua-de-mel, entre Salvador eLençóis, e quando voltei já estava grávida.

Belezinha e Expedito nem ouviram o final da conversa.Saíram do quarto abraçados, já pensando nos planos para ofuturo.

O Dono do Santo da Chapada 225

Estamos na morada do Santo

Capítulo

XXXIII

O destino pode se tornar inexorável e nos enredar paraarmadilhas de desforra. Assim conjeturava Expedito, aorelembrar os últimos acontecimentos de sua atribuladaexistência.

Tudo havia começado quando Beleza Duarte tentara sevingar de seu destino, sustentando uma perversa mentira. Eele, a partir dessa mentira, também executara a sua desafronta,alojando a imagem do Santo na Caverna dos Morcegos. DonaBeleza se redimiu a tempo, restabelecendo a verdade edevolvendo a felicidade dele e de Belezinha. Por isso, resolveuque, também ele, faria o mesmo, para ficar em paz com suaconsciência e poder alcançar a felicidade completa ao lado dasua amada.

O assunto ficou martelando na sua cabeça o dia inteiroe, à noite, saiu e foi direto para a Casa Paroquial.

– Boa noite, padre!

O Dono do Santo da Chapada 229

– Boa noite, filho! – Padre Mário, eu quero me confessar! – Agora, filho? – Tem que ser agora, padre! Uma coisa está atazanando

minha consciência. – Senta aqui e pode começar, filho! – O senhor bem sabe que a minha família foi marcada

pelas tragédias. A última delas, que é do seu conhecimento, foia morte da minha mãe. No entanto, a minha desgraça maioraconteceu depois...

Expedito contou ao padre Mário os episódios queentrelaçaram Beleza, Belezinha, ele e a imagem do Santo nomesmo enredo do destino.

– E a coisa não parou por aí, padre. O destino mepregou uma outra peça. Apareceu recentemente aqui naChapada um sujeito de Mato Grosso, de nome Antonio Cícero.Há dias ele vinha fazendo perguntas na cidade inteira sobre aminha família. Eu fiquei de sobreaviso. Comecei a seguir ospassos do homem. Notei que estava sempre rondando oSantuário de Santo Expedito. Um belo dia, eu o surpreendimuito próximo da imagem do Santo e aberturei o indivíduo.Remexi em seus bolsos, escarafunchei, e sabe o que encontrei?A cópia do testamento do tio Nilton, no qual deixava pra mimuma grande quantidade de diamantes que estavam escondidosdentro da imagem de Santo Expedito. Fui lá e retirei as pedras.O Santo é oco.

– O que pretende que eu faça, filho?– Quero que restabeleça a verdade, padre!– Você já pensou que tudo isso que lhe aconteceu havia

230 Carlos Araujo

sido traçado no seu destino? Não poderá mais voltar no tempoe consertar o que já passou, filho! O assunto é controverso ealvo de acirrados debates filosóficos e religiosos.

– Mesmo assim, quero tentar consertar o meu erro,padre. Peço que marque o meu casamento para o dia 19 deabril e, no final da cerimônia, conte esta história que lheconfessei. A minha verdade. E se não quiser fazer, permitaque eu mesmo fale aos chapadenses e romeiros.

– Você está certo disso, filho? Essa sua decisão vaicontrariar muitos interesses. A nossa Cidade vive hoje emfunção da romaria. Ademais, que diferença faz Santo Expeditoficar no Santuário da Gruta ou na Igreja, se os milagres jáaconteceram?

– Minha consciência pede a verdade, padre!– Tudo bem, filho. Se você quer assim, vou falar com o

Prefeito. Afinal, é a nossa maior autoridade. Depois confirmareia cerimônia do seu casamento. Aguarde alguns dias. O assuntoé muito delicado.

Expedito achou muito estranho Padre Mário botar oPrefeito no meio daquele assunto. Mas não deu muitaimportância ao fato.

Alguns dias depois, o sacerdote confirmou o casamentopara o dia do Padroeiro, e mandou espalhar a notícia de que,durante o evento, seria feita uma importante revelação sobre oaparecimento da imagem de Santo Expedito na Caverna dosMorcegos.

Já na véspera, verificou-se que seria impossível realizaro ato religioso no interior do Santuário. Havia algumas centenasde romeiros na Cidade, fora os habitantes do Lugar, com

O Dono do Santo da Chapada 231

previsão de chegar ainda mais no dia seguinte.Dessa forma, o casamento estava sendo celebrado na

área externa, no Largo do Santuário.No momento em que o Padre Mário proferiu as últimas

palavras da cerimônia, o local estava apinhado de gente.– Irmãos e irmãs, chegou o momento propício para

fazer a grande revelação de Santo Expedito. A ocasião é tãoespecial que vou chamar aqui à frente o nosso Prefeito.

– Estamos na morada do Santo. E muita gente sepergunta como sua imagem chegou a este Santuário!

– O jovem que agora se casa já nasceu predestinado.Vejam, queridos irmãos e irmãs, que ele veio ao mundoexatamente no dia do Padroeiro: 19 de abril. Recebeu o nomede Expedito, como o Santo, o apelido de Santo, e uma missãodivina!

O filho de Dalva sobressaltou-se. Desesperado, faziasinais pro lado do Padre. Porém, este nem se abalava e iaprosseguindo tranqüilamente.

– Não se sabe porque mistério chegou às suas mãos aimagem do glorioso Santo. A partir de então, uma voz do Alémo acompanhava dia e noite. Essa voz insistia para que eletrouxesse a imagem para a Caverna dos Morcegos, à meia-noite de Sexta-feira da Paixão. Assim foi feito. O mais incrívelé que, ao se aproximar do local determinado, aconteceu aquelaexplosão, abrindo a porta para a sua passagem, e o resto todosjá sabem.

Neste instante, Expedito partiu furioso para cima doPadre Mário e, quando deu por si, estava já nos braços do povo.E todos gritavam:

232 Carlos Araujo

O Dono do Santo da Chapada 233– Santo! Santo! Santo! Santo! Santo!

Enigmático enredo que é a nossa vida

Capítulo

XXXIV

– Ilustre Doutor Heleno Freitas, às vezes mesurpreendo a pensar sobre esse intricado e enigmático enredoque é a nossa vida. Aí eu me pergunto se não existe algum tipode ordem ou razão por detrás dela!

A Casa de Ana Gata abrigava todos os seusfreqüentadores habituais naquela fria e mormacenta noite desábado. Espirro, Manhas, Fila Grogue e o Doutor HelenoFreitas foram os primeiros a chegar e já estavam em adiantadoestado de embriaguez.

– A propósito de que você desfia esta sua tiradafilosófica, Espirro?

– Estou falando do destino, Doutor! Prestem bastanteatenção na minha explanação!

– Tomei conhecimento lá no Seminário que “algunshistoriadores acham que Santo Expedito nunca existiu. Naverdade teria existido, mas com outro nome. Um santo foi

O Dono do Santo da Chapada 237

martirizado e morto em Roma e, após seus seguidores o teremcolocado dentro do caixão, resolveram despachá-lo para ummosteiro na Espanha, onde teria um enterro mais condizentee seguro. Assim, o caixão, contendo o corpo do santo, foidespachado com urgência, tendo o nome “SPEDITO” escritodo lado de fora do esquife, significando “urgência” no despacho.Porém, aqueles que receberam o caixão na Espanha,confundiram a etiqueta como sendo o nome do mártir(Expedito é um nome muito comum na Espanha). E, comgrande vigor e energia, propagaram o seu culto, como se fosseo Santo das causas expeditas, ou seja, das causas urgentes”

– Espantoso, meu caro Espirro! Espantoso! Eu nãosabia nada sobre essa história.

– Esse Santo Expedito veio a ser então o Padroeiro denossa Cidade. Vejam a ironia do destino, meus amigos!

– Vale registrar que a Chapada já havia começado comuma enorme mentira! Com uma providencial lenda sobre umdiamante gigante que teria sido encontrado por aqui, noscascalhos destes riachos. Diamante esse que jamais foi vistopor alguém. Na época, esse boato arrastou centenas degarimpeiros para este endereço, e muitos deles aquipermaneceram, engrossando a população do Lugar.

Espirro parou um pouco para respirar e aproveitou oensejo para tomar mais um gole de cachaça. Prosseguiu.

– No momento, estamos assistindo ao crescimentoacelerado da Chapada motivado por uma mentira ainda maior.Expedito Portela de Carvalho transformou seu celestial xaránum santo milagreiro, simplesmente alojando sua imagem naCaverna dos Morcegos e providenciando espertamente a

238 Carlos Araujo

simulação de alguns “milagres”. Hoje a romaria do nosso Santojá é irreversível. A motivação para montagem de sua farsa teriasido a vingança. Quando se arrependeu do que fez e quis seredimir, contando a verdade, foi transformado, pelas palavrashábeis do Padre Mário, numa figura tão venerada quanto oSanto. É tanto que saiu do seu casamento carregado nos braçospelo povo até a sua residência.

– Atualmente, sua casa é tão ou mais procurada que oSantuário de Santo Expedito. Consta que ele ficou tão abaladoemocionalmente que desapareceu de vez da Cidade, e hojeninguém sabe do seu paradeiro.

– Diante desse amontoado de mentiras, eu fico a meperguntar se realmente a Chapada existe, se nós existimos ouse tudo isso não passa de ficção! Se assim for, só me restagritar, no meu último suspiro: Consummatum est!

O Dono do Santo da Chapada 239

Fortuna Crítica

Um mergulho no universo da Chapada Diamantina

Carlos Araujo, em o “Dono do Santo da Chapada”,

novamente nos conduz para um passeio histórico pelos

meandros da colonização da Chapada Diamantina. Descortinou

cenários fantásticos entre florestas e serras, misturou sua ficção

com dados históricos e geográficos verídicos, configurando

à trama um aporte realístico que o faz um grande escritor.

Com um bem elaborado e intrincado enredo, a todo

instante nos convida ao inesperado, por meio de um

emaranhado inteligente de possibilidades que forçosamente

nos induz ousar saídas para os personagens e com maestria

desvencilha da teia saindo pela tangente.

Numa sacada espetacular promoveu o encontro da

“Dama do Velho Chico” com o “Dono do Santo da Chapada”,

mostrando toda a sua capacidade e genialidade literária,

provando que além de conhecer os caminhos, conhece também os atalhos.

O Dono do Santo da Chapada 243

Escarafunchou os tipos e a alma de cada personagem, levando-

os ao extremo das possibilidades, às vezes ultrapassando para

uma discussão filosófica sobre a verdade e suas artimanhas.

O “Dono do Santo da Chapada” além de ser uma

deliciosa leitura, a história é um mergulho no universo da

Chapada Diamantina, com todos os seus coronéis, jagunços,

causos, garimpos, rezas, santos, mortes, traições, amores,

vingança, ambição, livusia . Tudo isso misturado com humor,

latim e embriaguez. No mais, só lendo o livro. “Et Dixi”

Reginaldo Pereira

n.a. Reginado Pereira é poeta e professor

244 Carlos Araujo

O Dono do Santo da Chapada 245

Outra toada difícil

“Como se pode ver a alma de alguém”? Sabemos que sóse enxerga a alma com os olhos... pois é essencial. E o essencialé invisível. Assim, registramos em nossas memórias mais umahistória regada por sentimentos, onde a dor traspassa, mas oamor, tudo pode, supera, fala mais alto, aperta o peito fazendobater desenfreado um tambor no descompasso do tempo, dashoras, nos tornando confiantes. Mais uma vez, outra toada difícil de tecer...Se não fossepelo encanto, a facilidade da leitura explicitando suasentrelinhas, não seria fácil tecer comentários a respeito de “ODono do Santo da Chapada”. Mas Carlos Araújo, assim comooutros escritores, a exemplo de Guimarães Rosa, quando nosfaz começar a ler, não nos deixa parar. E quando paramos,pequenas gotas atravessam nossas faces indo desaguar no riachodo querer, na vontade do desejar e queremos mais... Desejamosque o fim não chegue. Coisa boa deveria ser como o infinito...As palavras expressadas com tanta clareza, não nos deixa perder

de vista as histórias memoráveis regadas a sangue, a ódio noperíodo da busca desenfreada pelo ouro. Lamentamos a dor, a angústia de personagens que seconfundem com a realidade...Somos parte da história. Podemosnão fazer tantos dramas porque fugimos da qualidade do real.O que não podemos é esquecer que personagens são figurasque se assemelham ao espelho do eu. Se não expomos nossosrostos, deixamos aparentes nossas máscaras. E lembramos que,mais uma vez, o poeta escritor nos transporta para o imagináriosentindo o sabor, ora adocicado ora azedo, de suas palavras.

Elta Mineiro28. 06.06às 11:58 h

n.a. Elta Mineiro é poeta e professora

246 Carlos Araujo

O DONO DO SANTO DA CHAPADA

O segundo romance de Carlos Araújo pode ser definidocomo a história de uma idéia. Uma idéia que surge em umaconversa de botequim, que se implanta na mente de dois irmãose que germina durante anos, até ser executada com sucesso,afetando toda a vida de um lugarejo na Chapada Diamantina.Bem, a história não se dá exatamente assim e o sucesso nãoalcança a todos os envolvidos. E antes de a história que dátítulo ao livro se desenvolver, há outras histórias preparatóriase em seu entorno. Episódios de amor e sangue, e até mesmode uma traição amorosa que espanta por sua singela crueza.Carlos Araújo mostra um vigor de escritor que amadurece juntocom sua escrita. Demonstra interesse pelas origens de seu povoe nelas mergulha resgatando ocorridos, verdadeiros oulendários, que ajudam o leitor a melhor entender o que se passaao nosso redor, mesmo que esse redor seja o mundo inteiro.Em “O dono do santo da Chapada”, o leitor tem acesso a um

O Dono do Santo da Chapada 247

universo ficcional nada estranho, mas preparado com esmero:há uma gruta, há uma imagem de santo, há romarias enegociatas, há desvios no caminho enquanto as beatas rezamem procissão, há tramas e tramóias. Coisas do nosso povo,enfim, tratadas literariamente por quem demonstra conhecerbem os caminhos da narrativa e dos sertões da Chapada.

Carlos Barbosa

Salvador, junho de 2006.

n.a. Carlos Barbosa é poeta e escritor

248 Carlos Araujo

ALEA JACTA EST

Quando Carlos Araujo lançou seu primeiro romance“Milagre na Chapada-Romanceiro da Chapada Diamantina”,não me surpreendeu totalmente, pelo fato de conhecer seusdotes literários. Essa virtude veio sedimentar-se com o seu novolançamento “O Dono do Santo da Chapada”. É mais umahistória de ficção cavada dos grotões chapadenses, e por sinal,excelente.

Quem ler o livro vai sentir, com certeza, o “modusvivendi” de personagens filosóficos de bares e boemias, aexemplo do estripulento e inteligente “Espirro de Grilo”, comseus dois colegas de copos, penetrarem na história fazendocom que o Expedito-homem se transformasse em Expedito-santo. Alea Jacta Est!

Dito e feito!Salvador-Ba, 13/07/2006Edson Alves Ferreira

n.a. Edson Alves Ferreira é poeta

O Dono do Santo da Chapada 249

Recomendo

A cultura tem como um de seus elementossedimentadores a literatura, que pode transportar de umacomunidade para outra os costumes, inclusive de outras épocas,portanto, elementos culturais.

Em “O Dono do Santo da Chapada”, Carlos Araujoafirma alguns elementos particulares de cultura de uma regiãopara outra, como se vê no caso da Lamentação das Almas. NaChapada Diamantina, esse costume se fundamentou com asviúvas que surgiram frequentemente, em razão da perda dosmaridos nas lutas armadas, lideradas por coronéis e chefes dejagunços. Portanto, as Lamentações das Almas, na ficção doautor, ali eram praticas somente por viúvas. Aqui na região doSão Francisco esse ato de fé pagã era praticado por mulheres,viúvas ou não, e até por crianças, que vestidas de mortalhas,começando seu ritual normalmente do cemitério, ia até a igrejamatriz.

Como se vê, a prática de certos atos culturais varia deregião para região, e essa variedade é disseminada pela literatura,através de contos e em outras formas de comunicação.

Neste romance, o autor procura referir-se a fatoshistóricos baseados em pesquisas muito bem fundamentadasque devem esclarecer muitas dúvidas dos leitores,principalmente com relação aos “revoltosos” que, para muitos,

O Dono do Santo da Chapada 251

não passavam de bandos de jagunços que lutavam contra quemquer que fosse, sob o comando de um chefe de jagunço, emproveito próprio. Nesta obra, fica bem claro que essesrevoltosos eram adeptos da Coluna Prestes, que seguiam peloBrasil e não tinham a oportunidade de agirem sozinhos. Muitoscidadãos, depois de tomarem conhecimento do verdadeiroobjetivo da Coluna, procuravam integrar-se ao grupo e lutarpela causa, que era a intenção de convencer as comunidadesinterioranas da importância de transformar os destinos do nossoPaís, na busca de uma luta pela igualdade social. Além disso,veio também o ciclo do ouro, que era explorado pordependentes dos coronéis de engenho, que vieram substituir amão-de-obra do escravo, e diferia muito pouco da escravidão.

Seguiu também a evolução econômica, a descoberta dosdiamantes, que deram origem a várias lavras, dando origemassim o nome das chapadas, como Chapada Diamantina.

A essa altura já havia sido criada pelo governo a GuardaNacional, dando origem aos coronéis, capitães, tendo comocritério de nomeação a receita de cada um que pleiteava o títuloe o número de protegidos.

Refere-se também o autor, de forma muito cuidadosa, auma trama amorosa entre dois irmãos gêmeos e um terceiroelemento, que resolveu o problema da procuração entre eles,dando origem ao dono do santo. Relata muito bem a religiosidadedo povo da região, tendo como principal fator a romaria doBom Jesus. Já havendo, naquela época, o primeiro caminhãoque transportava esses romeiros até Bom Jesus da Lapa.

É um livro gostoso de se ler, recomendo.

Dr. Edson Quinteiro BastosIbotirama-Ba., 17 de julho de 2006n.a. O Dr. Edson Quinteiro Bastos é médico e escritor

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O Dono do Santo da Chapada (Sinopse)

Histórias incontestes do nosso passado, esquecidas umpouco pelo nosso presente e descrentes pelo reciocíniomaterial. Naturalidade simplificada nas coisas por nós tãoconhecidas e revividas, enfatizando o que de mais puro eestranho existiu e existe, nos proporcionando deliciosos causos,com uma mistura integral da mais pura verdade.

Enfim, agradeço o espaço bem como a opoutunidadede ser um dos primeiros entre os milhares de leitores desteprocioso trabalho. São minha palavras.

Oldim MineiroEm 29.jul.2006Às 17:25 hsSexta-feira

O Dono do Santo da Chapada 253

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