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297  O distante, o governo e o governo à distância: administração local portuguesa e a atuação dos oficiais camarários como juizes de pequenas causas. 297  Temporalidades   Revista Discente do Programa do Programa de Pós-graduação em História da UFMG, vol. 3 n. 1.  Janeiro/Julho de 2011   ISSN: 1984-6150 www.fafich.ufmg.br/temporalidades O distante, o governo e o governo à distância: administração local portuguesa e a atuação dos oficiais camarários como juizes de pequenas causas.  Thiago Enes Mestre em História Social Moderna Universidade Federal Fluminense [email protected] RESUMO: As investigações sobre a política, a administração e a justiça empreendidas pelas monarquias européias têm percebido, cada vez mais, que a distância dos centros de poder acaba por gerar situações diferenciadas em muitas regiões. Analisar as funções judiciais e as adaptações de alguns dos ofícios do poder local, no quadro imperial e, especialmente na América portuguesa, é um dos objetivos desse artigo. PALAVRAS-CHAVE: Império Ultramarino Português, Câmaras Municipais, ofícios municipais, distância.  ABSTRACT: The investigations about the politics, administration and the justice practiced by the European Monarchies realized that the distance from the centre of the power originate different situations in many regions. This article discuss about the judicial practice and the local power adaptations, in Portuguese Seaborne Empire and, principally, the America’s situation. KEYWORDS: Portuguese Seaborne Empire, Local Chamber, local representatives, distance. O estudo da Era Moderna e, com ela, as reflexões acerca do advento do novo mundo firmaram-se como objetos tão interessantes quanto diversos diante do olhar dos muitos historiadores que seguiram por tais meandros. Investigações iniciais deram conta de que as expansões européias teriam culminado com o estabelecimento de colônias ultramarinas que, em primeira análise, nada mais seriam do que simples desdobramentos de suas matrizes originárias. O interesse secundário e a assimetria de algumas monarquias européias em relação às suas possessões recém conquistadas é fator concorde e assente. Entretanto, há que se considerar que, especialmente no que tange ao modo de governo, essas colônias foram interpretadas como duplicações da sua máquina administrativa celular, verdadeiras similitudes que guardavam diferença, apenas, por estarem em cenário distinto do europeu. Não demorou muito para que o avanço das investigações ulteriores fizesse florescer múltiplos prismas, seja pelas alterações de cunho essencialmente teóricos ou pelas incursões

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O distante, o governo e o governo à distância: administração local portuguesa e a atuação dosoficiais camarários como juizes de pequenas causas. 297 

 Temporalidades –  Revista Discente do Programa do Programa de Pós-graduação em História da UFMG, vol. 3 n. 1. Janeiro/Julho de 2011 –  ISSN: 1984-6150 www.fafich.ufmg.br/temporalidades 

O distante, o governo e o governo à distância:

administração local portuguesa e a atuação dos oficiaiscamarários como juizes de pequenas causas.

 Thiago EnesMestre em História Social Moderna

Universidade Federal [email protected]

RESUMO:  As investigações sobre a política, a administração e a justiça empreendidas pelasmonarquias européias têm percebido, cada vez mais, que a distância dos centros de poder acaba porgerar situações diferenciadas em muitas regiões. Analisar as funções judiciais e as adaptações de

alguns dos ofícios do poder local, no quadro imperial e, especialmente na América portuguesa, é umdos objetivos desse artigo.

PALAVRAS-CHAVE: Império Ultramarino Português, Câmaras Municipais, ofícios municipais,distância.

 ABSTRACT: The investigations about the politics, administration and the justice practiced by theEuropean Monarchies realized that the distance from the centre of the power originate differentsituations in many regions. This article discuss about the judicial practice and the local poweradaptations, in Portuguese Seaborne Empire and, principally, the America’s situation.

KEYWORDS: Portuguese Seaborne Empire, Local Chamber, local representatives, distance.

O estudo da Era Moderna e, com ela, as reflexões acerca do advento do novo mundo

firmaram-se como objetos tão interessantes quanto diversos diante do olhar dos muitos historiadores

que seguiram por tais meandros. Investigações iniciais deram conta de que as expansões européias

teriam culminado com o estabelecimento de colônias ultramarinas que, em primeira análise, nada

mais seriam do que simples desdobramentos de suas matrizes originárias. O interesse secundário e a

assimetria de algumas monarquias européias em relação às suas possessões recém conquistadas é

fator concorde e assente. Entretanto, há que se considerar que, especialmente no que tange ao modode governo, essas colônias foram interpretadas como duplicações da sua máquina administrativa

celular, verdadeiras similitudes que guardavam diferença, apenas, por estarem em cenário distinto do

europeu.

Não demorou muito para que o avanço das investigações ulteriores fizesse florescer

múltiplos prismas, seja pelas alterações de cunho essencialmente teóricos ou pelas incursões

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documentais operadas a  posteriori . No horizonte das interpretações antitéticas emergiram, pouco a

pouco, as aparentes diferenças existentes entre os dois lados do Atlântico, na mesma profusão em

que colônias e metrópoles foram alocadas em pólos opostos e concorrentes, dois lados de uma

mesma moeda que compunham a mesma aviltante lógica do objeto que as representavam. Entrava

em cena o exclusivismo metropolitano, as atrocidades proporcionadas pela escravidão e pelo tráfico

negreiro, a desmedida exploração da Coroa portuguesa que sufocava seus pobres e inermes súditos

com cobranças, taxas e desmandos os mais diversos, a ponto de fomentar discórdias e florescer

ideais revolucionários, ou mesmo separatistas, por todo o território.

Se a negociação e a tentativa de equacionar interesses, por vezes conflitantes, visando a

manutenção da governabilidade nos perece um refinamento teórico recente, ao menos a claveinterpretativa que apontou a iminente tensão entre as monarquias européias e suas congêneres de

além mar instituiu a diferença entre esses dois institutos e, no caso luso, assim como em outros

tantos, a América, de fato, não se transformou em um imenso Portugal. Tributária dessa matriz

teórica, a questão do distanciamento geográfico parece incorrer em distanciamento político,

colorindo as relações governativas de tons específicos, na medida em que ganha cada vez mais fôlego

em análises impensadas até então.1 

O afastamento, aqui considerado em seus muitos níveis, se impõe não apenas aos

observadores das teias do poder, mas ainda figura como importante variável na percepção das

inúmeras diferenciações dele decorrentes, que permitiu aos historiadores deslocar o olhar para as

regiões de fronteira, os sertões e as longínquas fímbrias que se interpunham por entre a vasta rede

que se estendeu por todo o Império português, nos quatro cantos do mundo. Torna-se ocioso

explorar, posto serem vastas e sobejamente conhecidas, as investigações que atentaram para as

multifacetadas diferenciações entre a corte, centro do poder, e suas possessões extra continentais,

bem como o funcionamento das instituições que geriam o governo nesses pontos. Contudo, a

1 Dentre os estudos que destacaram a distância como fator relevante, destacam-se: RAMINELLI, Ronald José. ViagensUltramarinas : monarcas, vassalos e governo à distância. São Paulo: Alameda, 2008. ARAÚJO, Emanuel. Tão vasto, tãoermo, tão longe: o sertão e o sertanejo nos sertões coloniais. In: PRIORE, Mary Lucy del. (org.). Revisão do Paraíso: osbrasileiros e o Estado em 500 anos de história. Rio de janeiro: Campus, 2000. DEAN, Warren. The frontier in Brazil. In:Frontiers in comparative perspectives.  Washington D. C. The Woodrow Wilson Center, 1990. FRAGOSO, João Ribeiro;GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. (Org.).  Na Trama das Redes . Política e negócios no império português. Séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. SOUZA, Laura de Mello; FURTADO, Júnia Ferreira; BICALHO,Maria Fernanda. (Org.). O governo dos povos:  Relações de poder no mundo ibérico da Época Moderna. 1. ed. São Paulo: Alameda Editorial, 2009. BICALHO, Maria Fernanda; FERLINI, Vera Lúcia Amaral. (Orgs.). Modos de Governar : Idéias epráticas políticas no Império português, séculos XVI a XIX. São Paulo: Alameda, 2005.

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historiografia que tomou a distância como fator relevante percebeu, logo cedo que, para além das

disputas pouco intestinas entre inversos insinuava-se o diverso, na pluralidade de formas de governo

e na gestão das instituições, especialmente aquelas que se vinculavam aos mais baixos estamentos do

poder local. Sem dúvida, a noção de centros e periferias toma por base a distância dos gestores do

poder e, a partir de então, analisa de forma mais consubstanciada as limitações e as possibilidades

surgidas dessa realidade, que se decompõe em planos sobrepostos, com diferentes ritmos e nuances.2 

De acordo com John Russel Wood, mesmo que centro e periferia não sejam elementos

estanques, e dependam de um referencial, a dimensão política, social, cultural e econômica dessa

dinâmica seria aplicável à criação de novos institutos, adaptações e autonomias não apenas no nível

metrópole-colônia, mas ainda comportaria um tipo de ressonância que ele classificou como intra-colonial.3 A primeira vista, não se dispensa a centralidade do monarca e sua inelutável soberania na

condução dos negócios e das justiças, no reino ou nos trópicos, dando-se a crer na hegemonia

absoluta na condução de todo o luso Império. Não havia um corpo legal de referência para a

 América, tomava-se por base as mesmas Ordenações e compilações que vigoravam em Portugal,

assim como inexistiam órgãos de governo capazes de julgar e determinar casos legais, que eram

enviados à Casa de Suplicação, em Lisboa,4 onde também se encontravam as agências ou instituições

responsáveis por jurisdicionar as matérias ultramarinas, como o próprio Conselho Ultramarino, o

Desembargo do Paço e a Mesa de Consciência e Ordens. À instância do soberano ainda eram

tomadas decisões finais e confirmações as mais diversas, bem como nomeações civis, militares e até

mesmo eclesiásticas.

2 Gostaríamos de pontuar estudos elaborados, que tomaram por base esta noção de centros e periferias nos modos degoverno: SHILS, Edward. Centro e Periferia . Trad. José Hartuig de Freitas. Lisboa: Difel, 1992; SUBTIL, José. M. L. Ospoderes do Centro. In: MATTOSO, José (dir.). Quarto Volume, O Antigo Regime  (1620-1807). HESPANHA, AntónioManuel (coord.). Círculo de Leitores, 1993; SUBTIL, José M. L. “As rela ções entre centro e periferia no discurso doDesembargo do Paço (séc. XVII e XVIII)”. In: CUNHA, Mafalda Soares da e FONSECA, Teresa. (coords.). Osmunicípios no Portugal Moderno: dos forais manoelinos às reformas liberais. CIDEHUS, Edições Colibri, 2005; RUSSEL-

 WOOD. A. J. R. “Centros e periferias no mundo luso-brasileiro, 1500-1808.” In: Revista Brasileira de História, São Paulo, v.18, n. 36, 1998. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-01881998000200010&script=sci_arttext#1not>. Acesso em: 15 Jan. 2011. Mais sobre a distância e a relação entre centrose periferias na administração portuguesa: HESPANHA, António Manuel. Centro e Periferias nas Estruturas Administrativas do Antigo Regime. In: Ler História , n. 8, p. 35-60, 1986. Disponível em: <http://www.hespanha.net>. Acesso em: 15 Jan. 2011.3 RUSSEL-WOOD. A. J. R. Op. Cit . É necessário ressaltar que centro e periferias são entendidos como “um conjunto deorganizações ligadas entre si, estruturas engendradas a partir da ação” e não como perspectivas geograficamente estáticas,bem como ressalta Edward Shils. SHILS, Edward. SHILS, Edward. Centro e Periferia . Trad. José Hartuig de Freitas.Lisboa: Difel, 1992.4 Uma vez que os Tribunais da Relação presentes em terras brasílicas não gozavam de plena jurisdição.

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Entretanto, essa hegemonia altamente centralizada parece dissolver-se, quase por

completo, na medida em que a administração indireta e o sistema de representação transferia poderes

a um vasto séqüito de funcionários pessoalmente nomeados pelo monarca e diretamente ligados à

administração da casa real. Indispensável ao equilíbrio de poder e visando, antes de mais, a condução

e a manutenção do bem comum e do reto governo,5  a corrente prática de atribuição de funções

assumia feições ainda mais delineadas ao cruzar-se o oceano.6 Por estar diretamente sob a sombra do

poder central o Senado de Lisboa talvez tenha configurado caso isolado em relação à autonomia

administrativa das Câmaras Municipais portuguesas. Desde 1572 era responsabilidade do próprio

monarca deliberar sobre os letrados que compunham o Senado daquela Câmara que, segundo

análises, permaneceu demasiadamente atrelada aos interesses do próprio rei.

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  Sendo esta uma daspoucas exceções, via de regra, os poderes locais gozavam de notoriedade suficiente para agir em

relativa liberdade, sem a consulta prévia ao monarca ou aos poderes centrais, embora pudesse haver

intervenções em casos pontuais.8 

O poder camarário constituía a base da pirâmide de poder e os seus Senados eram

formados por membros mais nobres e os ditos “principais” de cada localidade.9  Estes “homens 

5  A despeito da noção moderna de “bem comum”, a concepção corporativa de poder e e sobre o princípio classificadocomo justiça distributiva, recomenda-se: BLACK, Antony,  El Piensamiento Político em Europa   (1250-1450). CambridgeUniversity Press. 1996. Veja ainda: FRIGO, Daniela. Disciplina Rei familiae e a economia como modelo administrativodo  Ancient Regime . In: Penélope : Fazer e Desfazer a História, Revista de História e Ciências Sociais, Lisboa, n. 6, 1991.Disponível em: <http://www.penelope.ics.ul.pt>. Acesso em: 20 Jan. 2011.6 XAVIER, Ângela Barreto; HESPANHA, António Manuel. A representação da sociedade e do poder. In: HESPANHA, António Manuel (Coord.). História de Portugal  vol. 4: O Antigo Regime. Lisboa: Editorial Estampa, 1993. p. 123; PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo  (Colônia). São Paulo: Brasiliense, 1999. p. 309. WEHLING, Arno; WEHLING, Maria José. O funcionário colonial entre a sombra e o rei. In: DEL PRIORE, Mary (Org.). Revisão do Paraíso:os brasileiros e o Estado em 500 anos de história. Rio de Janeiro: Campus, 2000. p. 144.7 OLIVEIRA, Eduardo Freire de. Elementos para a História do Município de Lisboa. Lisboa : Typografia Universal, 1887. p. 7-33.8 Normalmente, as intervenções régias em relação aos poderes locais tratavam sobre a qualidade (ou, em sua maioria, daausência da mesma) dos ocupantes do Senado das Câmaras por todo Império. Em muitas localidades, a falta depopulação letrada e apta a servir aos postos de vereança gerava conflitos os mais diversos, que terminavam sendo

diretamente deliberados pelo próprio rei.9  A historiografia sobre as Câmaras ou, como querem os portugueses, os Concelhos e as municipalidades é deverasprofusa e bastante conhecida. Concedendo os devidos e, infelizmente, quase sempre esquecidos créditos aos trabalhospioneiros e àqueles que me melhor representam nossas perspectivas, cita-se: LOBO, Eulália Maria Lahmeyer. OComércio Atlântico e a comunidade de mercadores no Rio de Janeiro e em Charleston no século XVIII. In: Revista deHistória , São Paulo, 1975, v. LI, n. 101. BOXER, Charles O Império Marítimo Português . 1415-1825. São Paulo: Companhiadas Letras, 2002. RUSSEL-WOOD, Russel A. J. Fidalgos e Filantropos. A Santa Casa da Misericórdia da Bahia, 1550-1755 .Brasília: Ed. da UNB, 1981. BICALHO, Maria Fernanda. As Câmaras Municipais no império português: o exemplo doRio de Janeiro. In: Revista Brasileira de História .1998, v. 18, n. 36, p. 251; MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Os Conselhos e asComunidades. In: MATOSO, José. (Org.) História de Portugal : quarto volume, o Antigo Regime (1620-1807). Lisboa:Editorial Estampa, 1983. p. 304-309. CAPELA, José Viriato. Administração local e municipal portuguesa do século

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bons” detinham a prerrogativa de publicar aditamentos extravagantes que complementavam,

retificavam ou ratificavam as Ordenações e, assim, adaptavam a legislação oficial à realidade, por

 vezes muito diversa, das localidades distantes do centro de onde emanava o poder. Em um período

em que justiça e administração mesclavam-se indistintamente, as Câmaras nomeavam os seus

próprios oficiais e, por vezes, criavam ofícios e funções diversas, visando o pleno exercício do poder

e da ordem, prescrevendo aos seus funcionários a precípua função de atuar como executores das

régias resoluções. Ao menos em tese, vereadores, procuradores, juizes ordinários e os demais

personagens que orbitavam o universo camarário personificariam os desígnios da Coroa em níveis

locais, atuando como representantes diretos do rei mesmo nas mais longínquas e remotas localidades.

Não bastassem todas essas responsabilidades a cargo dos ocupantes dos postos de vereança, eles ainda estavam aptos a julgar casos sumários e, conforme demonstra a historiografia,

compunham tribunais de primeira instância, seguidos das ouvidorias.10  Nas cidades e vilas que

dispunham da presença dos juizes de fora o painel da administração e das justiças locais era

ligeiramente alterado na medida em que esses magistrados designados diretamente pelo rei assumiam

as funções e responsabilidades que, originalmente, estavam sob a alçada dos juizes ordinários. Com

os governadores das Capitanias e magistrados de maior ascendência, os juizes de fora compunham

juntas que objetivavam conceder celeridade aos processos de maior vulto que, do contrário, teriam

que ser presididos diretamente pelo Conselho Ultramarino.11 

 A complexidade dessa dinâmica judicial e o fazer administrativo da Coroa portuguesa é

tema bastante explorado pela historiografia que se lançou a investigar, mormente, o funcionamento

das instituições de governo e os grados tribunais que deliberavam a vida no Antigo Regime.

Entretanto, as pesquisas recentes têm tido certa desconfiança em relação as grandes sínteses e

generalizações, justamente pela iminente possibilidade de se incorrer em imprecisões. Sem dúvida, as

XVIII às reformas liberais: alguns tópicos da sua historiografia e nova história. In: CUNHA, Mafalda Soares da e

FONSECA, Teresa. (coords.). Os municípios no Portugal Moderno: dos forais manoelinos às reformas liberais. CIDEHUS,Edições Colibri, 2005.10 Segundo Graça Salgado, os ouvidores representavam a instância imediatamente superior às Câmaras Municipais, erammagistrados nomeados diretamente pelo monarca para presidir as comarcas e tinham a seu cargo os casos agravados nojuízo ordinário. Veja: SALGADO, Graça. Fiscais e Meirinhos : a administração no Brasil colonial. Rio de Janeiro: NovaFronteira, 1985. p. 20. Confira ainda: SCHWARTZ, Stuart B. Burocracia e Sociedade no Brasil Colonial : a suprema corte daBahia e seus juizes (1609-1751). São Paulo: Perspectiva, 1979. p. 57.11 Durante todo o Antigo Regime a presença de um juiz de fora foi uma mercê peticionada por várias localidades, masconquistada por poucas. Sua presença, além de conceder maior autonomia e celeridade no julgamento de processosdiminuía a dependência das Câmaras Municipais em relação ao moroso Conselho Ultramarino, para onde seguiam osprocessos das várias localidades de origem portuguesa.

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análises macroscópicas e os modelos mais esquemáticos ou fundamentalmente teóricos foram

essenciais, num dado momento, para melhor se compreender o jogo de poder arquitetado pelos

magistrados portugueses no trato com as diversas questões que envolviam a justiça e as leis oficiais,

mas há que se considerar uma possível perda de foco diante da pluralidade de situações vividas pelos

agentes históricos nos mais diversos pontos onde esta malha administrativa se fez presente. A

alteração da escala de observação inaugura não apenas um novo olhar sobre a justiça e seus

magistrados, em seus mais baixos patamares, mas permite que, da documentação local, produzida

pelos trâmites burocráticos das Câmaras Municipais, surjam novas situações que revelem o

comportamento das instituições de direito diante de situações anteriormente consideradas

comezinhas ou de menor nível de complexidade. Ao fim e ao cabo, eram elas que compunhamgrande, senão a maior parte, dos casos em que as leis eram conclamadas a mostrar os rumos de

determinada situação cotidiana.

Contrapondo legislação oficial com os processos e demais procedimentos judiciais

julgados pelos poderes locais, as nuances proporcionadas pelo distanciamento entre centro e

periferias revelam procedimentos distintos dos comumente praticados em Portugal, especialmente

daqueles verificados na corte. A história feita ao rés do chão, que não considera somente a legislação

oficial e as recomendações, muitas vezes tropegamente respeitadas nestes lados do Atlântico, tem

falado por si só.

Os juizes de vintena ficaram consagrados pela historiografia como os funcionários

camarários que representavam o mais baixo patamar da justiça, arbitrando questões de mínima

importância.12  Todavia, se a posição desse ofício na hierarquia funcional da Coroa possa não ser

muito questionável, a atuação dos vintenários, especialmente nas regiões de fronteira, era de extrema

relevância na infra-estrutura burocrática da justiça. Corroborando a assertiva, para Maria do Carmo

Pires, que investigou a atuação deste ofício na Capitania de Minas Gerais, eram eles os grandes

responsáveis por vários aspectos dos governos paroquiais, como a verificação do cumprimento dos

editais expedidos pelas Câmaras, fiscalização de todos os episódios conflituosos envolvendo a

população das freguesias, julgamento verbal dos casos cíveis além da atenta fiscalização de aspectos

12  De acordo com Cândido Mendes de Almeida, em nota às Ordenações Filipinas, os juizes de vintena “eram osmagistrados das aldeias e julgados dos Termos”, tendo número mínimo de vinte indivíduos ou casais, “sujeitos a suajurisdição, em causas de mínima importância.” Cf : ORDENAÇÕES Filipinas . Livro 1, título 65: Dos Juizes Ordinários ede Fora. p. 144. Disponível em: <http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l1p144.htm>. Acesso em: 20 Jan. 2011.

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da sanidade urbana e a realização de diligências diversas.13 Mesmo sem profundo conhecimento das

leis os vintenas, ao menos os atuantes nas Minas, eram alfabetizados e seguiam as ordens e os

modelos existentes para os processos cíveis e criminais, participando ativamente do mundo da justiça

em vigor no Império português.

Mesmo que a similaridade de tais diretrizes em relação à Portugal seja autêntica, e revele

os trâmites da justiça em um nível microscópico pouco conhecido até então, a distância do centro do

poder parece ter sido característica indelével não apenas na condução do ofício e em seu trato

cotidiano, mas na própria designação e valorização social na sociedade de Antigo Regime.14  Nos

trópicos, exercer certas funções camarárias não representava um ônus à população que, no afã de

diferenciação social e impulso de enobrecimento, almejava o exercício do cargo público, muitas vezes, uma das poucas portas de entrada no mundo dos melhores diante daquela hierarquizada

sociedade.15  Já em terras lusas, muitas das funções camarárias, anteriormente exercidas

exclusivamente por elementos grados no espectro social das vilas e cidades, ao longo do tempo,

passou a constituir elemento desabonador, ao menos em relação às funções consideradas menos

proeminentes na escala administrativa dos poderes locais. A lógica estruturante que emanava do

centro do poder se fazia sentir até mesmo nos mais distantes pontos onde a administração

portuguesa se manifestava, porém, ganhava contornos muito específicos, capazes de variar mesmo

em regiões muito próximas, posto que cada unidade camarária acabava sendo regida por leis locais,

apesar de sua matriz única.

13 PIRES, Maria do Carmo.  Em Testemunho de verdade : juizes de vintena e o poder local na comarca de vila rica (1736-1808). Tese de doutoramento apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de MinasGerais. Belo Horizonte: FAFICH/UFMG, 2005. p. 267. Embora a pesquisa, pioneira, investigue a função quepermanecia desconhecida e desconsiderada até então, não se pense que há circunscrição das atividades desse oficial, uma vez que a sobreposição de funções é considerada uma característica intrínseca aos poderes portugueses, sejam eles locaisou não. Para esclarecimentos sobre este complexo mosaico de funções conjugadas, recomenda-se: ENES, Thiago. Atuação conjunta, conflitos e atropelos de jurisdição. In: De Como Administrar Cidades e Governar Impérios . Almotaçariaportuguesa, os mineiros e o poder. Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da

Universidade Federal Fluminense. Niterói: UFF, 2010. p. 226-241.14 Para análise destas relações de poder nas Minas setecentistas, a partir da perspectiva aqui discutida, consultar: Passim . ATALLAH, Cláudia Cristina Azeredo. Centro e periferias no Império português: uma discussão sobre as relações depoder nas Minas coloniais. In: Outros Tempos : Revista de História da Universidade Estadual do Maranhão, v. 6, n. 8, 2008.15 Para a América, esta questão vem sendo trabalhada em outros estudos deste autor. Contudo, alguns pesquisadoresportugueses verificam situação análoga para regiões como o Porto e norte de Portugal. MONTEIRO, Nuno Gonçalo.

 Elites e Poder : Entre o Antigo Regime e o liberalismo. Lisboa: Imprensa do Instituto de Ciências Sociais da UniversidadeNova de Lisboa, 2003. p. 71; MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Elites locais e mobilidade social em Portugal em fins do Antigo Regime. In  Análise Social , v. XXXII, p. 335-368, 1997. Disponível em: <http://www.ics.ul.pt/analisesocial/>.

Acesso em 20 Jan. 2011. SILVA, Francisco Ribeiro da. O Porto e seu Termo (1580-1640): os homens, as instituições e opoder. Porto: Arquivo Histórico da Câmara Municipal do Porto, 1988. p. 591.

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 Temporalidades –  Revista Discente do Programa do Programa de Pós-graduação em História da UFMG, vol. 3 n. 1. Janeiro/Julho de 2011 –  ISSN: 1984-6150 www.fafich.ufmg.br/temporalidades 

Se os juizes de vintena simbolizavam o último e menor plano da hierarquia judicial,

mesmo sem constituírem parte do corpo direto de funcionários camarários,16  fazendo com que,

efetivamente, as municipalidades funcionassem como tribunais de primeira instância; outros ofícios

igualmente importantes no seio do poder local exerciam funções ainda menores que, em sua maioria,

sequer chegavam a adentrar nos círculos da justiça formal constituindo processos.

Os almotacés, assim como os juizes de vintena, desdobravam-se em oficiais que

compunham a base da administração local onde, aliás, o poder efetivamente se dava a ver. Contudo,

assim como seu parelho, os almotacés foram alvo de abjeto preconceito rigidamente estabelecido na

historiografia17  que, desconhecendo suas efetivas funções, afirmava que esses funcionários eram

fiscais de comércio, tão somente, ignóbeis cidadãos em meio à municipalidade e responsáveis portorpes tarefas. Fruto de pesquisas documentais mais empíricas e empreendidas em documentação

sobre e produzida pelos próprios trâmites locais, sabemos que, na realidade, os almotacés foram

importantes oficiais que superintendiam no econômico, sobretudo no abastecimento e controle de

preços e mercadorias, legislavam sobre as construções e todo o planejamento urbano levado à cabo

nos territórios citadinos e, ainda, ficavam responsáveis pelas questões sanitárias de todas as vilas e

cidades dos territórios portugueses, passando pela Andaluzia e chegando ao Irã.

 Além de legislarem sobre os mais importantes aspectos daquilo que se compreende como

urbano, os almotacés ainda constituíam um braço da justiça, mesmo sem vincular-se diretamente a

ela, ai incluída a hierarquia funcional camarária que, como supracitado, via nos juizes de vintena o seu

grande representante, entre outros cargos que interpunham-se de forma quase indistinta. Ao definir o

16 A maior parte da historiografia trata dos pequenos ofícios municipais de forma um tanto descurada, afirmando seremtodos os funcionários municipais agentes diretos das Câmaras. São exemplos: WEHLING, Arno; WEHLING, Maria José. O funcionário colonial entre a sombra e o rei. In: DEL PRIORE, Mary (Org.). Revisão do Paraíso: os brasileiros e oEstado em 500 anos de história. Rio de Janeiro: Campus, 2000. p. 149; ABREU, Capistrano. Correspondência . v. 2. Rio de Janeiro: INL, 1954. p. 28; COMISSOLE, Adriano. Os “Homens Bons” e a Câmara de Porto Alegre  (1767-1808). Dissertação(Mestrado em História) - Universidade Federal Fluminense, 2006. p. 22-23. Cabe ressaltar que, das fronteiras da regiãoplatina à remota península de Macau, as Câmaras portuguesas dispunham, apenas, dois tipos de oficiais em exercício. Os

cargos eletivos, aos quais era facultado o direito a voto eram compostos por dois juizes ordinários, não necessariamente versados em leis, de dois a quatro vereadores e um procurador. Esses cargos compunham o que, efetivamente, seentende por oficial camarário. Todos os demais cargos não pertenciam diretamente à hierarquia funcional da realeza,embora mantivessem nítidas e óbvias ligações com o poder, seja ele local ou real. Alguns deles eram remunerados pormeio de salários, e outros obtinham ganhos proporcionais às atividades exercidas por meio de multas e apreensões demercadorias confiscadas.17 A atestar-nos, a opinião de Capistrano de Abreu é exemplar, para quem “João Francisco Lisboa falseou a história,dando-lhes uma importância que nunca tiveram as municipalidades. Só quando havia alvoroto, apareciam ligeiramente,em feições semelhantes às que os castelhanos chamavam de cabildo abierto; fora disso, nomear almotacéis, aferir medidas emandar consertar pontes, estradas e calçadas consumia-lhes todo o tempo”. ABREU, Capistrano. Correspondência . v. 2. Riode Janeiro: INL, 1954. p. 28.

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 verbete almotacé, Rui de Abreu Torres afirma que esses oficiais tinham alçada de até 600 réis para

julgar os feitos em matéria de suas atribuições, em processos sumários.18 Durante a chamada Idade

Média, eles ficaram conhecidos por julgarem infrações sobre as matérias de sua competência

podendo reverter as penas sob a forma tríplice de coimas,19  prisões e açoites. Dentre os

constrangimentos públicos previstos ainda figuravam os discursos moralizantes, degredos nos casos

considerados mais graves ou mesmo a condenação do réu ao patíbulo, em situações extremas ou de

reincidência.20 

Mesmo com autoridade suficiente para julgar tais casos, que certamente eram verificados

em várias cidades e vilas de origem portuguesa, nos territórios extra continentais a notoriedade

desses oficiais, acredita-se, foi ainda maior ao considerarmos a morosidade da justiça e o próprioisolamento geográfico das regiões fronteiriças, de onde acabava-se por determinar o que era legítimo

ou ilegítimo, através de procedimentos moldados ao sabor das contingências locais e interesses

consuetudinários. Na tarefa, muitas vezes vã, de esquadrinhar os espaços urbanos e não urbanos,

moldá-los conforme a lógica do centro, recolher impostos e evitar condutas desviantes que eram

 verificadas por todas as regiões, as Câmaras, de forma obstinada, enviavam os seus almotacés em

correições periódicas pelos Termos. Além da denúncia e imposição de penas pecuniárias ou

recolhimentos às Casas de Câmara e Cadeia em casos mais graves e que, efetivamente, constituíam-se

em processos que seriam arbitrados pelos magistrados à cargo da justiça D’El Rey, importa-nos

funções ainda menores praticadas pelos almotacés que sequer seriam deliberadas em juízo ou

presididas por qualquer espécie de tribunal, por menor que fosse.

Na vastidão dos rincões americanos a justiça ganhava feições bem menos formais e as

contendas mais simples poderiam resolver-se através de ágeis acordos presididos pelos almotacés. É

o que nos informa um processo aberto em 1749 por Paulo de Sousa, morador da cidade de Mariana,

na Capitania de Minas, que alegava ter em sua residência “parede velha, de pau a pique, podre e

prestes a cair ao chão, escorada por cinco paus em vista das chuvas”. A parede na qual se refere o

dito morador fazia fronteira com o terreno vizinho, que tinha Felipe da Costa como proprietário. O

suplicante solicitava que a justiça obrigasse o seu vizinho a arcar com a metade das despesas para a

18 TORRES, Rui de Abreu. Dicionário de História de Portugal . v. 4. Porto: Livraria Figueirinhas, 1992. Verbete almotacé , p.121.19 As coimas eram multas, penas pecuniárias impostas aos desviantes das posturas municipais.20 VIDIGAL, Luis. Câmara, Nobreza e Povo: poder e sociedade em Vila Nova de Portimão (1755-1834). Câmara Municipalde Portimão, 1993. p. 109.

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construção de um novo muro, visto que o atual não tardaria a ruir.21 Nesses casos de desavenças

entre os moradores de determinada localidade eram os almotacés os primeiros representantes da

autoridade municipal a serem acionados para vistoriar o local e tentar estabelecer um acordo entre as

partes litigantes.

 A prática de tentar equacionar as contendas de forma rápida e amigável, empregando os

oficiais da almotaçaria para presidirem tais esforços pode ser verificada em outras regiões da América

no mesmo período. A atuação desses funcionários na Câmara Municipal da Vila de Nossa Senhora

dos Pinhais, atual cidade de Curitiba, revela que os moradores apenas recorriam aos almotacés na

resolução de desentendimentos após verem frustradas todas as tentativas de negociação de maneira

autônoma.

22

  Novamente, a cidade de Mariana, na Capitania de Minas, nos brinda com episódiosrepresentativos. Aos 6 dias do mês de setembro de 1756 o alferes Manoel Alves, morador de Catas

 Altas, distrito de Mariana, entrou com um processo na justiça comum solicitando a construção de

uma cerca que delimitasse a extensão do seu quintal com o de seu vizinho que, segundo o suplicante,

se negava de forma taxativa a negociar com ele ou com o almotacé que foi acionado pela Câmara

para solucionar a incômoda situação.23 Outro morador da região do ouro teve reclamação análoga

que, em meados do ano de 1716, acionou a justiça “por causa do mau uso do beco que fica entre sua

casa, que era usado como de costume”, mas que começou a ser utilizado também pelo escravo do

seu vizinho que passou a “depositar esterco no dito beco e impedir as atividades dele suplicante”.24 

Em casos como estes, que não envolviam grandes ou complexas questões judiciais,

quando os almotacés não conseguiam costurar acordo entre as partes, os processos abertos na

justiça, normalmente, passavam a ser presididos pelos oficiais da vintena, que ordenavam

intervenções de qualquer natureza, como obras de muros ou paredes que deveriam ser empreendidas

pelos próprios moradores. Com o término das obras, e executados os ordenamentos repassados pela

justiça, ficava a cargo dos almotacés, uma vez mais, verificar se as intervenções tinham sido

executadas a contento. Eles notificavam a Câmara sobre a sua devida realização findando o processo,

21  AHCSM. Arquivo Histórico da Casa Setecentista de Mariana. AUTO de notificação de 14 de novembro de 1749.Códice 167 –  2º ofício, auto 3992.22  NICOLAZZI, Norton Frehse.  Almotacés : administração e ordem urbana na Curitiba setecentista. Dissertação(Mestrado em História) - Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2002. p. 38.23  AHCSM. Arquivo Histórico da Casa Setecentista de Mariana. AUTO de notificação de 06 de setembro de 1756.Códice 169 –  2º ofício, auto 4079.24 AHCSM. Arquivo Histórico da Casa Setecentista de Mariana. AUTO de notificação do ano de 1716. Códice 176 –  2ºofício, auto 4329.

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caso não houvesse agravo que tivesse de ser encaminhado ao juízo ordinário. Foi o que se

determinou quando, em 1744, dois vizinhos moradores na mesma cidade de Mariana iniciaram uma

batalha judicial sob a alegação de que, “as obras de abertura de portas e janelas na casa do vizinho”

devassava a privacidade do quintal de um deles.25 Provavelmente, tratava-se de uma obra irregular,

realizada sem a devida autorização da Câmara Municipal e, nesse caso, além de um executor dos

desígnios administrativos os almotacés ainda acumulavam as sobreditas funções de cunho judicial,

mesmo que de forma inicial.

Certamente, os casos aqui citados não foram acautelados pelos almotacés e, se tivemos

acesso a eles nos arquivos consultados é sinal de que os esforços empreendidos num primeiro

momento não satisfizeram plenamente as partes, e tais questões seguiram para serem julgadas pelajustiça. Contudo, acredita-se que a grande maioria desses episódios eram, de fato, prontamente

solucionados antes mesmo de se instaurar um processo judicial formal, o que fazia dos almotacés,

mesmo que indiretamente, um dos braços essenciais da justiça em níveis microscópicos,

especialmente nas regiões mais distantes do Termo, ou dos centros administrativos, estivessem eles

deste ou do outro lado do oceano. Mesmo em Portugal é difícil encontrar fontes sobre a atuação dos

juízes e funcionários locais, pois a própria legislação recomendava a esses magistrados que

sentenciassem verbalmente, sem apelação, agravo e processo,26  acrescido do fato de que,

especialmente no ultramar, havia grande número de oficiais iletrados, assessorados por indivíduos

letrados.

Desta forma, a investigação de processos simples, que narram episódios comezinhos,

como uma querela entre vizinhos, parece nos dizer muito sobre o fazer administrativo e a dinâmica

da justiça, em seus mais baixos patamares. Anteriormente considerados eventos vazios, e

absolutamente incapazes de revelar fatos que não fossem meramente episódicos, atualmente, o

deslocamento do olhar investigativo e as novas possibilidades analíticas que apontam para esse tipo

de agente histórico comum, que habitava as vilas e cidades, alheio às grandes interlocuções da

legislação formal, editada e mesmo praticada tão distante da sua realidade tem contribuído

imensamente para a ampliação do conhecimento histórico. E não apenas os habitantes simples e suas

25 AHCSM. Arquivo Histórico da Casa Setecentista de Mariana. AUTO de notificação de 26 de março de 1744. Códice177 –  2º ofício, auto 4418.26  ORDENAÇÕES Filipinas, Livro 1-Título LXV Dos Juízes Ordinários e de Fora   p. 144. Disponível em:<http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l1p144.htm>. Acesso em: 12 Jan. 2011.

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questões cotidianas são alocados no centro da narrativa, que consegue orquestrar um jogo de escalas

de observação, mas deslocam-se os próprios funcionários camarários para uma posição impensada

até então, passando a figurar como representantes últimos dos interesses da Coroa, mesmo nas mais

inóspitas e distantes regiões imperiais, denotadas peças de xadrez no tabuleiro do povoamento e da

colonização do novo mundo.