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Rua Manuel Paulino de Azevedo e Castro, 3 9930 – 149 Lajes do Pico, Açores, Portugal TM +351 912 553 059 / +351 917 391 275 TEL +351 292 672 748 www.companhiadasilhas.pt [email protected] Apresentação Colectânea de cerca de 60 ensaios, de diferente alcance, de José Enes, um dos mais importantes filósofos portugueses do século XX. Prefácio de Carlos E. Pacheco Amaral e Nota Introdutória de Maria Fernanda Enes. Portugal Atlântico divide-se em duas grandes partes: Atlanticidade de Portugal e relações internacionais e Os Açores e a autonomia regional. Ficha técnica Género: Ensaio Ano: 2015 Número de edição: 63 Colecção: transeatlântico 013 série especial 002 ISBN: 978-989-8592-91-0 Dimensões: 14X22 cm Nº de páginas: 336 PVP: 18 € Excerto Os Açores, como sociedade estabelecida nestas ilhas desertas a que os ingleses sempre gostaram de chamar Western Islands – ilhas ocidentais –, foram, desde a primeira decisão de povoamento, um projecto estratégico do Ocidente. Creio haver, no pouco que escrevi e publiquei sobre este tema, evidenciado a sua verdade histórica. Ao longo de toda a História, os Açores desempe- nharam um papel estratégico do maior alcance para todas as potências que os utilizaram como base para a navegação marítima e aérea e para as ligações telegráficas. E as suas potencialidades estra- tégicas continuam a ser o fundamento mais firme e mais valioso para a sua integração nas relações internacionais. [O Estudo da Estratégia e das Relações Internacionais: Projecto Universitário] Portugal Atlântico Estudos de fenomenologia política José Enes A Companhia das Ilhas apresenta José Enes (Lajes do Pico, 1924 – Lisboa, 2013). É um dos mais importantes filósofos portugueses do século XX. A vida pública e a obra escrita de José Enes, de formação em escolástica tomista na Universidade Gregoriana de Roma (1945-1950 e 1964-1966), professor da Universidade Católica entre 1968 e 1973, e, a partir de 1976, professor e primeiro reitor da Universidade dos Açores, jubilando-se como vice-reitor da Universidade Aberta (1992-1994) – têm sido atravessadas por três explícitas paixões: a Poesia, os Açores e a Filosofia. Da sua extensa actividade intelectual e de acção social, é justo destacar ainda: a fundação da página cultural “Pensamento” do jornal União, a organi- zação do movimento das Semanas de Estudo dos Açores, a criação do Departamento de Filosofia da Universidade Católica e a organização

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Page 1: Estudos de fenomenologia política José Enes · Estudos de fenomenologia política ... Este “Conhecer para Agir” deu de certeza no goto à PIDE, ... em acto solene evocativo

Rua Manuel Paulino de Azevedo e Castro, 39930 – 149 Lajes do Pico, Açores, Portugal

TM +351 912 553 059 / +351 917 391 275TEL +351 292 672 748

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Apresentação

Colectânea de cerca de 60 ensaios, de diferente alcance, de José Enes, um dos mais importantes fi lósofos portugueses do século XX.Prefácio de Carlos E. Pacheco Amaral e Nota Introdutória de Maria Fernanda Enes.Portugal Atlântico divide-se em duas grandes partes: Atlanticidade de Portugal e relações internacionais e Os Açores e a autonomia regional.

Ficha técnicaGénero: EnsaioAno: 2015Número de edição: 63 Colecção: transeatlântico 013 série especial 002ISBN: 978-989-8592-91-0Dimensões: 14X22 cmNº de páginas: 336PVP: 18 €

Excerto

Os Açores, como sociedade estabelecida nestas ilhas desertas a que os ingleses sempre gostaram de chamar Western Islands – ilhas ocidentais –, foram, desde a primeira decisão de povoamento, um projecto estratégico do Ocidente. Creio haver, no pouco que escrevi e publiquei sobre este tema, evidenciado a sua verdade histórica.Ao longo de toda a História, os Açores desempe-nharam um papel estratégico do maior alcance para todas as potências que os utilizaram como base para a navegação marítima e aérea e para as

ligações telegráfi cas. E as suas potencialidades estra-tégicas continuam a ser o fundamento mais fi rme e mais valioso para a sua integração nas relações internacionais.

[O Estudo da Estratégia e das Relações Internacionais: Projecto Universitário]

Portugal AtlânticoEstudos de fenomenologia políticaJosé Enes

A Companhia das Ilhas apresenta

José Enes

(Lajes do Pico, 1924 – Lisboa, 2013).É um dos mais importantes fi lósofos portugueses do século XX.A vida pública e a obra escrita de José Enes, de formação em escolástica tomista na Universidade Gregoriana de Roma (1945-1950 e 1964-1966), professor da Universidade Católica entre 1968 e 1973, e, a partir de 1976, professor e primeiro reitor da Universidade dos Açores, jubilando-se como

vice-reitor da Universidade Aberta (1992-1994) – têm sido atravessadas por três explícitas paixões: a Poesia, os Açores e a Filosofi a.

Da sua extensa actividade intelectual e de acção social, é justo destacar ainda: a fundação da página cultural “Pensamento” do jornal União, a organi-zação do movimento das Semanas de Estudo dos Açores, a criação do Departamento de Filosofi a da Universidade Católica e a organização

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APRESENTAÇÃO DO LIVRO PORTUGAL ATLÂNTICO DE JOSÉ ENESColóquio José Enes, Pensamento e Obra | Casa dos Açores, 30 de Outubro de 2015

Um confl ito de interessesDevo começar com a revelação de um grave confl ito de interes-ses.Sou admirador e amigo do Prof. Doutor José Enes (Pereira Car-doso) desde tempos imemoriais.Com efeito, era eu ainda adolescente, estudante do Liceu Naci-onal de Angra do Heroísmo, quando assisti, atónito, ao eclodir das Semanas de Estudo que dois ilustres açorianos, José Enes e Artur da Cunha Oliveira, corajosamente levaram a cabo durante 5 anos.Os temas – manifestamente avançados para a época – foram os seguintes: “Diálogo entre Intelectuais Açorianos” (I Semana de Estudo dos Açores, realizada em Ponta Delgada, de 3 a 8 de Abril de 1961); “Sob o Signo da Unidade” (II Semana de Estudo, em Angra do Heroísmo, de 3 a 10 de Abril de 1963); “Sob o Signo da Responsabilidade” (III Semana de Estudo, Horta, 19 a 25 de Março de 1964); “Conhecer para Agir” (IV Semana de Estudo, Ponta Delgada, 6 a 16 de Setembro de 1965); “Conhecer para Agir” (V Semana de Estudo, Angra do Heroísmo, de 24 a 30 de Setembro de 1966).Muito embora já não me encontrasse na Terceira por ocasião das duas últimas edições – subordinadas ambas ao lema “Conhecer para Agir” – fui acompanhando a distância, do Continente, a grande polémica gerada em torno desses eventos. Passo a citar o segundo dos mencionados promotores a partir do testemunho que ele publicou recentemente na Revista Povos e Culturas do CEPCEP, UCP – N.º especial: “Os Católicos e o 25 de Abril” (Oliveira, 2015, 281-283).

Este “Conhecer para Agir” deu de certeza no goto à PIDE, que já vinha de pé atrás quanto às Semanas de Estudo, pois durante a IV Semana, em Ponta Delgada, foi queixar-se ao Governador Civil e pedir-lhe que a encerrasse, sob o pretexto de que nela “já se discutia a reforma agrária de Cuba”! Sucedeu o mesmo na V Semana, em Angra do Heroísmo, por “não ter sido autorizada a realização de qualquer reunião pública”! Em ambos os casos, e embora hesitantes, lá nos permitiram os Governadores Civis que completássemos os trabalhos. Mas nunca mais pudemos realizar qualquer Semana de Estudo do teor destas. Felizmente que então nos foi possível confrontar o que sabíamos e aquilo por que aspirávamos, com o pensamento, o saber e a experiência de intelectuais de muito mérito: académicos, pensadores, investigadores e dirigentes, e aprender deles a lutar e a nunca dar por bem aquilo que, já estando bem, ainda podia estar e ser melhor (p. 283).

Desde logo, aprendi a admirar a profundidade científi ca do

pensamento do fi lósofo, a sua tranquila embora febril produção intelectual, a sua dedicação impenitente às grandes causas, e a pulsão interveniente do cidadão inconformado. Esta dupla faceta – a do universitário, homem de ciência, e a do açoriano empenhado na mudança do estado de coisas no país – é um traço dominante, conforme fui constatando ao longo de um convívio gratifi cante que perdurou por três décadas, envolvendo as nossas famíllias, de uma personalidade irrequieta, superior, e sempre atenta ao pulsar da res publica.Feito o “disclosure” do meu confl lito de interesses, passo a apresentar a obra Portugal Atlântico que a contumaz perseguição movida pela Maria Fernanda Enes me destinou em sorte, na pre-sente celebração tripolar (UAçores, UCP e Casa dos Açores) que, sob a iniciativa oportuna do Instituto de Filosofi a Luso-Brasileira, muito justamente homenageia a fi gura maior do açoriano e por-tuguês José Enes, ora conhece o seu encerramento que tem lugar, muito signifi cativamente, em acto solene evocativo que decorre na nossa Casa-Mãe, a Casa dos Açores.E, perante a difi culdade de me desincumbir de tão complexa ta-refa, socorro-me ab initio da inspirada palavra do nosso celebrado autor, citando-o directamente a partir da obra que me cabe, na circunstância, aqui apresentar:

Na realidade, o tema é amplo em demasia para uma exposição que não descaia do nível científi co do programa e esta actividade (...) logo mostrou ser para mim uma perturbadora e desconcertante aporia (...) A dúvida de corresponder à expectativa do convite não só preocupou a elaboração mas angustia a prolação deste discurso que eu desejaria alcançasse pelo menos ser uma refl exão sobre alguns dos problemas mais urgentes da nossa hora. E entregando à inteligente benevolência de Vossas Excelências a avaliação das soluções que pude arranjar para os desta conferência, enceto já a ex-posição do seu tema (p. 57).

Jamais o poderia dizer melhor! Seguramente que não seria capaz de o formular com mais propri-edade! Seja-me apenas permitido o aditamento, num momento afl itivo em que me sinto atingido de nanismo intelectual perante a enor-midade da tarefa cometida, da fórmula breve que ouvimos no juramento do presidente norte-americano: May God help me!

Quatro categorias analíticasA espinhosa tarefa que me foi atribuída viu-se, todavia, facilitada mercê do cotejo de dois textos introdutórios ao livro em apreço, a saber: o luminoso Prefácio de Carlos Pacheco Amaral e a ternu-renta, mas imensamente informativa, Nota Introdutória de Maria Fernanda Enes.Destacam ambos, o atento discípulo e a dedicada esposa – numa

Leituras, notas críticas

do Ciclo Propedêutico de Filosofi a na Licenciatura em Teologia desta Universidade; a Presidência das Comissões de avaliação dos Cursos de Filosofi a das Universidades portuguesas (dois primeiros ciclos).

Especulação e acção, em José Enes, constituem duas faces da mesma realidade, como o lema “mais co-nhecer para melhor viver”, da II Semana de Estudo dos Açores traduz. A sua investigação fi losófi ca, pura ou aplicada, tinha por objecto descortinar “a

insubstituível pertinência de um discurso científi co em ordem a se tornar possível a compreensão de um dado momento histórico e a propiciar o atinado acerto das decisões que selecionarão e actuarão as suas potencialidades de futuração.»

Principais publicações: Água do Céu e do Mar (1960), Autonomia da Arte (1964), À Porta do Ser (1969, 1990), Estudos e Ensaios (1982), Linguagem e Ser (1982), Noeticidade e Ontologia (1999).

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interpretação que é da minha estrita lavra – uma tetralogia de qualidades distintivas do pulsar mental complexo de José Enes as quais perpassam, de forma transversa, a obra em questão. Permi-to-me recolher, e sublinhar, estes quatro atributos do pensamento de José Enes que me servirão de bengala analítica na descodifi a-ção do livro em apreço.

1. Uma capacidade interpretativa inabitual que ousa dissecar a cultura lusa nas suas origens, especifi cidades e idiossincrasias.

2. Um amor acrisolado aos Açores1 acompanhado de uma aposta pessoal, de largo alcance, numa plena Autonomia Regional.

3. Um cultivo da universalidade do pensamento fi losófico que revisita, com impressionante agilidade, e assiduidade, a história das ideias e da cultura.

4. Uma obsessão genuinamente estratégica com o “Mirante Atlântico”.

Na ortodoxia, heterodoxa, do universitário este livro recolhe 39 ensaios que, embora escritos em momentos díspares ao longo de um percurso temporal de fecundidade notável, cobrindo pelo menos um arco de 20 anos (1986-2006), revelam uma notável unidade de pensamento e um robusto rigor analítico. 1. Subsídios para uma arrojada interpretação da cultu-ra lusa Comecemos por reler o que diz José Enes na sua monumental interpretação do que ele apoda os “traços específi cos da cultura portuguesa”. A título de aperitivo do embarque nesta extraordi-nária aventura, permitam-nos que assinalemos as primícias da dissecção do que é ser português, na pré-clara palavra do autor:

Culturalmente, a compleição biopsíquica do povo português resultara do cruzamento de autóctones iberos com celtas, com romanos e com os «bár-baros», berberes, árabes. O povo português assimilara ao longo de cerca de três mil anos contributos tecnológicos, científi cos, ideológicos, artísticos e linguísticos através da convivência, bastas vezes imposta à força, com comerciantes e com os invasores, vindos sempre de oriente para o ocidente por mar e por terra. Constituiu, mediante este processo de quase perma-nente aculturação, uma cultura existencialmente integrada, na qual se ha-viam depositado as estruturas culturais de todas essas hordas de invasores e viajantes (p. 62).

E prossigamos com o pensamento ágil e a elegante escrita do autor que nos brinda com um original esquiço do carácter

1 É extremamente curioso como José Enes vê o nascimento do ilhéu e a sua relação telúrica com o elemento terra: “Ora, toda a sociedade humana habita uma parte da ecúmena, quer dizer, da superfície habitada do planeta Terra. O povo latino viu nesta matriz terrestre a reciprocidade congénita do homem e do seu planeta. Deu-lhe o nome de terra porque o pode pisar com a planta dos seus pés, manter-se erecto sobre ele e percorrê-lo e, porque só nele é que pode nascer, viver, alimentar-se, morrer e sepultar-se, lhe chamou húmus. Terrenos humosos são aqueles que possuem a composição idónea para alimentar os viventes. De tal étimo o povo latino derivou o nome da espécie viva a que pertence – homo, o ho-mem, a espécie humana. Esta base terrestre constitui o sistema geofísico que torna possível a vida do homem enquanto homem, a sua habitação e coabitação num dado sítio da Terra. A polimórfi ca e variada combinação dos factores geofísicos gera a formação de múltiplos e numerosíssimos sistemas geofísicos: a terra fi rme compacta, sólida e enorme dos continentes ou a exiguidade territorial das ilhas, a lonjura adensada dos interiores continentais ou a abertura marítima dos litorais, a proximidade costeira ou a distância oceânica das ilhas, a áspera altura das monta-nhas ou a amplitude das planícies, os climas quentes ou frios, húmidos ou secos, gélidos ou tropicais, as diversas fl oras e faunas que tais conjuntos condicionam. Foi a partir destes sistemas geofísicos que as comunidades humanas elaboraram laboriosamente os sistemas culturais, construindo, aperfeiçoando, embelezando, fortifi cando e defendendo os seus sistemas ecológicos ou habitacionais com a mira de usufruí-los gostosamente em paz e segurança e com a garantia do cresci-mento constante da qualidade de vida. As labutas e as lutas, com que os homens têm perseguido este objectivo, abriram e percorreram os caminhos da História” (197-198).

português mediante a singularidade de um constructo conceitual de matiz intercultural:

(...) eticidade coabitacional permissiva que desde a romanização e a cristi-anização dos lusitanos, dos suevos e dos visigodos, passando pela recíproca integração dos moçárabes e dos mouros, se veio consuetudinariamente estatuindo pela experiência autoconstitutiva daquela mesma sociedade. É uma eticidade compreensiva das situações de compromisso, subtil na estratégia do evitar e superar os confl itos, ardilosa nas artimanhas de sa-tisfazer e subtrair-se às exigências da lei, humana na aceitação das excep-ções, propensa à amenidade dos costumes, sofredora dos duros trabalhos e longas esperas, sensível à congenitude dos homens. Foi esta eticidade que deu ao povo português a capacidade de suportar profundas trans-formações políticas, económicas e sociais sem cair nos excessos sangren-tos das guerras civis (...) a despeito da catástrofe da descolonização, das nacionalizações, das agressões ideológicas e das querelas partidárias e da degradação económica. Esta serenidade comportamental não sonega a falta de coragem militar como a história das guerras com outros povos gloriosamente demonstra. É uma maneira de viver na própria casa que leva os membros da família a suportarem-se apesar das desigualdades e ambições que os opõem, a aceitarem-se a despeito das faltas e misérias que se censuram, bem assim a entenderem-se para salvar a honra da casa, garante da sobrevivência e reconquista do bem-estar e da alegria de viver. Esta eticidade permissiva contém, no seu mais profundo núcleo de padro-nização comportamental, um fi no e exigente sentido de honorabilidade e de orgulho colectivo. E foi esta eticidade que deu e dá ao povo portu-guês a capacidade de integração cultural e de miscigenação de compor-tamentos étnicos divergentes e culturalmente repulsivos, a qual constitui a característica mais singular da projecção de Portugal no mundo, da sua acção civilizadora e criadora de outros povos. A língua portuguesa é das estruturas culturais aquela em que a eticidade permissiva, assimiladora e integrativa, mais claramente se expressa (...) O Português foi a «Koiné» do novo Império do Oriente. Mas é na língua brasileira que a potencialidade criativa do português mais se manifesta, pela sua capacidade assimiladora de elementos estranhos e pela criatividade de novas estruturas (pp. 64-66).

Mas, nem tudo são rosas. José Enes encontra, novamente com inspiração na História, os fundamentos da endémica situação crísica que nos assola há quase quatro centúrias e meia. Explica-nos o nosso autor sob escrutínio, usando as palavras de Eduardo Lourenço, que:

(...) o povo português, «nas camadas populares ou nas que estão mais pró-ximas delas», vivendo o humilhante confronto com o usurpador da sobe-rania, havia feito uma experiência que permitiu «que nos descobríssemos às avessas, que nos sentíssemos na carne que éramos (também) um povo naturalmente destinado à subalternidade. Esta experiência constituiu um segundo traumatismo, de consequências mais graves que o primeiro».

O primeiro fora o da independência (p. 147).Nessa sequência, José Enes fala-nos sotto voce em tom realista, embora implacável, do duplo complexo com que ele diagnostica um profundo padecimento da frágil condição lusa:

Superioridade, em recusar ser a pequena nação que era e em acreditar na infalibilidade da protecção divina; inferioridade, em nunca se poder convencer que se transformara em grande nação e em reconhecer a sua falta de forças que a ajuda divina supre. A respeito destes dois comple-xos de superioridade e inferioridade, Eduardo Lourenço com perspicácia nota: «É por demais claro que ambos cumprem uma única função: a de esconder de nós mesmos a nossa autêntica situação de ser historiador em estado intrínseco de fragilidade.» (p. 148).

2. José Enes, Açoriano Íntegro e Autonomista Convicto: Uma Concepção de Estado DescentralizadoPicaroto – Picoense – indefectível, José Enes personifi ca, esco-rado no orgulho lávico típico do ilhéu, o açoriano impenitente que não se exime a denunciar os excessos centralistas associados a uma lamentável falta de estratégia para as regiões atlânticas efetivamente, que não formalmente, distinta da adotada para as regiões continentais2. Uma tal tendência antiautonómica de facto

2 O autor fornece importantes pistas para a compreensão da realidade dicotómica

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terá projectado as Ilhas Adjacentes para um estatuto meramente subalterno e periférico, com as mais graves consequências ao nível da sua condenação estrutural a um desenvolvimento inci-piente e afunilado, em manifesto descompasso relativamente aos respectivos potenciais económicos.

A não existência de um discurso estatal da atlanticidade do Estado por-tuguês não é culpa da «autonomia insular». Os arquipélagos, ao conquis-tarem a «autonomia regional», não destruíram aquele projecto – pois ele não existia – nem o tornaram mais difícil. Mas este vazio histórico está na origem tanto do surto do movimento autonómico nos fi ns do século passado, como da forma que a autonomia tomou no pós-25 de Abril de 1974 (p. 114).

Deste progressivo abandono geoestratégico por parte de Lisboa, a eco-nomia dos dois arquipélagos vai-se fi xando cada vez mais na agricultura, com algum turismo na Madeira, subordinada ao mercado continental. A pouca indústria, que se arriscou ao custo dos transportes, fi cou na de-pendência aleatória de monopólios continentais e à criatividade de muito poucos insulares. Os vectores de tal evolução histórica apontaram sempre na direcção de uma autonomia que à primeira oportunidade se erigiria numa dialética de fuga ao centralismo lisboeta, ocupado primeiro com os lucros do Brasil e depois com os de África, e sempre desinteressado das regiões continentais e das «Ilhas Adjacentes». Sem um plano de socie-dade atlântica, as autonomias insulares corriam o perigo de agravarem, na sua organização, os mecanismos burocráticos de uma administração autocêntrica. Era esse o modelo de Estado, contra cujo centralismo elas se ergueram contestatariamente. Nos Açores os refl exos de tal exemplarismo sócio-genético atingiriam proporções preocupantes. A sublimação da ter-ritorialidade administrativa dos três distritos autónomos pela sectorização da competência governativa substituiu um centralismo a longa distância por três centralismos a menos longa distância (pp. 116-117).

Tudo isto acaba por tolher, em autêntica marcha à ré, o desen-volvimento da patria açoriana, por confronto com a narrativa promissora que uma simples leitura histórica nos proporciona:

Com efeito, os Açores foram nos séculos xvi e xvii uma sociedade organi-zada tecnológica e economicamente para actuar as potencialidades geoes-tratégicas da sua posição geográfi ca e geofísica. Tinham uma agricultura experimental orientada para a exportação e uma organização económica de âmbito europeu e mundial. Nos dois primeiros séculos a economia aço-riana foi, portanto, uma economia de mercado à escala europeia plena-mente integrada no sistema económico mundial (...) Esta integração na escala da economia mundial foi constitutiva da função geoestratégica que os Açores desempenharam fazendo girar a navegação e o comércio em todo o Atlântico (p. 133-134).

E quanto à dependência económica baste o seguinte rápido apontamento de Oliveira Marques na sua História de Portugal, ao referir a situação económica dos arquipélagos da Madeira e dos Açores nos séculos XVII e XVIII: «Ambos os arquipélagos mostravam saldo positivo nas respectivas balanças de comércio, conseguindo pagar as suas próprias despesas sem encargos para a Coroa.» (p. 135). Nos Açores, como no Continente, a população também cresceu, fruto da revolução demográfi ca3. Mas este

entre regiões do continente e as regiões atlânticas: “A autonomia regional dos Açores nasceu e desenvolveu-se no processo dialético do centralismo político do Estado português. Embora este modelo e estilo de governação sejam uma cons-tante histórica, não atingiram as regiões continentais do mesmo modo que afecta-ram as insulares. As regiões continentais foram condados, senhorios, municípios, províncias e distritos. As suas origens são contemporâneas do Estado português e a evolução identifi ca-se com a própria formação do organismo nacional. E esta é, com certeza, uma das causas – há evidentemente outras – por que no seu relacionamento com os governos de Lisboa nunca aquelas partes do todo nacional se assumiram como regiões, mesmo depois de criadas por decreto as regiões continentais. A razão de tal diferença radica na diferença originária de objectivos e de estruturas” (p. 218).3 Vem aqui a talhe de foice, referir que José Enes repete nesta sede uma sua tese muito respeitável a propósito do povoamento das ilhas açorianas, episódio que, segundo ele, enferma com frequência de interpretações que não encontram susten-tação histórica: “«Povoamento» foi o termo usado nos documentos ofi ciais. Mas ele é portador de um equívoco semântico, responsável por um equívoco histórico. De facto, o objectivo principal não foi o povoamento para a instalação de uma sociedade com o fi m da ocupação territorial, exploração dos recursos naturais

crescimento, por não ter sido acompanhado pelas demais inovações tecno-lógicas e económicas, transformou-se em mais um factor de desfasamento histórico e de atraso cultural. A emigração foi a solução de recurso e com ela se desqualifi cou a mão de obra. Deu-se ao longo de todo o século xviii uma ruralização progressiva da população activa açoriana. A economia do Arquipélago veio, assim, adquirindo as características de uma econo-mia agrícola de autossufi ciência (p. 136).

A autonomia distrital, surgindo na década de 1890 para libertar dos mo-nopólios, nomeadamente do álcool, a tentativa de industrialização dos Açores, administrou como dona de casa poupada o orçamento de subsí-dios que lhe negou receitas próprias4. A autonomia regional conquistou a autonomia política e administrative com o propósito de resolver o proble-ma sistemático de fundo. Recuperou séculos de atraso de infraestruturas

e expansão demográfi ca da sociedade de origem. O povoamento esteve desde o início subordinado aos objectivos da navegação e da organização comercial. Bases navais é o que foram na sua origem os primeiros estabelecimentos humanos que ao longo do século xv se transformaram também em entrepostos comerci-ais. O planeamento da população activa e das estruturas urbanas, industriais e agrícolas obedecem àquelas duas fi nalidades. A descrição que Gaspar Frutuoso faz, na última década do século xvi, da ilha Terceira – universal escala do mar do poente, […] celebrada por todo o mundo – é daquela realidade demonstração clara e impressionante. Aliás, a doação das ilhas ao Mestrado da Ordem de Cristo, entidade responsável pelo empreendimento comercial e religioso da expansão portuguesa, ligou desde o começo tudo quanto por sua iniciativa e competência nelas se construiu e fez à navegação e ao comércio. Os encarregados de montar tais bases e entrepostos eram «capitães» do Infante. A sua actuação era programa-da, dela se devia dar conta e qualquer alteração ao programa carecia de autoriza-ção do donatário. Assim foi no temporal e no espiritual. As ilhas, para o efeito de organização social e administração, eram tratadas de uma forma muito semelhante à que era usada com as naus e as caravelas: um regimento à saída e um roteiro à chegada. Ora se este regime se adaptava com efi cácia e bons resultados ao plano e programas da navegação, já seria inevitavelmente gerador de confl itos na admi-nistração comercial e sobretudo na governação da sociedade. Não foi preciso que a sociedade muito crescesse para que por volta de 1527 a assistência à navegação fosse entregue a um novo cargo – O Provedor das Armadas.” (pp. 219-220).4 O autor contesta, aliás, o movimento de criação dos três distritos como reforço das autonomias. Bem pelo contrário, ele socorre-se da história da evolução administrativa do país para provar que, desde Pombal, o movimento centralista tem sido dominante: “O sistema agravou-se com a reforma pombalina, porque o Capitão General não foi investido com mais competências do que as que tinham os capitães do donatário, e centralizando na Terceira a ligação governativa de to-das as ilhas com Lisboa acrescentou mais uma instância retardadora e confl ituosa no exercício do poder. Mas introduziu uma nova estrutura e uma nova ótica na governação dos Açores. A estrutura era a de uma só província e a ótica perspecti-va-se através do conceito de que a província dos Açores era igual a qualquer uma das outras províncias do Reino. Desaparecia, assim, nas categorias da governação central, a sensibilidade à peculiar natureza da sociedade insular e à realidade soci-al e política de cada ilha do arquipélago dos Açores. A revolução liberal conserva, na nova orgânica decretada em 1832 para os Açores, o conceito de província, com a capital em Angra e com o nome de prefeitura. Mas adopta pela primeira vez o esquema das compensações distribuindo pelas três cidades açorianas pelouros diferentes da governação, com competência em todas ou em algumas ilhas: sede da Prefeitura em Angra; uma subprefeitura para a Horta; outra subprefeitura e o poder judicial com a sede do tribunal de 2.ª instância para Ponta Delgada. O esquema, como se sabe, não resultou: nem os micaelenses se satisfi zeram com a relação, nem os terceirenses aceitaram que ela tivesse a sede em Ponta Delgada; nem os faialenses levaram a bem terem sido contemplados apenas com a subpre-feitura. O resultado foi a divisão do arquipélago em duas prefeituras em 1833 e a criação dos três distritos em 1836. Parece-me que uma cuidadosa análise deste rápido e acidentado processo é da máxima importância para a compreensão dos mecanismos comportamentais na política açoriana. O esquema dos três distritos abolia o conceito de província, destruía a unidade política e administrativa do arquipélago, continuava a esbater a realidade social e tentava assentar no sistema das recíprocas dependências sociais e económicas entre as ilhas, bem como nas áreas de infl uência de cada uma delas, capitais de distrito (...) (pp. 221-222).A transição da autonomia distrital para a autonomia regional deu-se através das estruturas para o planeamento regional – A comissão do planeamento regional dos Açores – criada em 1969 como resultado de um processo desencadeado pelas Semanas de Estudo dos Açores. Através de tal processo chegou-se, mediante a co-operação dos responsáveis do governo e pelos vários sectores da vida de cada um dos distritos, à consciência da região económica e da necessidade da integração administrativa” (p. 226).

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indispensáveis para qualquer das soluções que se mostrem possíveis. Nas suas incessantes e incansáveis tentativas actualizou muitas das ideias e das iniciativas que os açorianos tiveram no século xix. Encontrarão fi nalmente o caminho do sucesso económico indispensável ao progresso social? (pp. 214-215).

Não há contradição entre atlanticidade e territorialidade no pen-sar autonómico do autor. Ressalta na visão de José Enes o triângulo estratégico que dá sentido a um Estado português revigorado, unido na sua dupla dimensão, continental e insular, plenamente cônscio da sua verdadeira potência e capacitado animicamente para dela fazer acto transformador:

Ora a essência da atlanticidade portuguesa reside na sua territorialidade atlântica. O território do Estado português é composto pelo Continente e pelos dois arquipélagos, Açores e Madeira. Este triângulo forma a singula-ridade mais vincadamente marcante e original da atlanticidade portugue-sa. A situação e a confi guração desta territorialidade

atlântica possuem duas dimensões que a conjuntura histórica mundial valoriza com potencialidades novas para cuja compreensão o Estado por-tuguês não esteve e ainda não está preparado. Essas duas dimensões são: a Zona Económica Exclusiva (ZEE) e a geoestratégica (GE). Estas duas dimensões constituem a caracterização da territorialidade portuguesa no mapa-mundo actual. E, no entanto, seria somente sobre a territorialidade do Estado, as suas potencialidades historicamente reais e de exploração possível e necessária, que se poderia conceber, planear e executar uma estratégia de soberania, responsável pela identidade da Nação portugue-sa e pela sua preservação, ou seja, pela sua independência estatal, como Estado europeu de pleno direito, sem perder a sua identidade (p. 113).

A autonomia regional dos Açores é um subsistema do sistema político por-tuguês. É, por assim dizer, uma emanação do Estado português, através da qual este se projecta na sociedade açoriana assumindo uma organização que lhe é não só adequada senão mesmo

estruturada em órgãos próprios. Por força desta genética, pertença ao sis-tema político do Estado português como parte integrante de um todo, o sistema autonómico regional recebe dele as infl uências mais decisivas quer da sua emergência histórica quer da sua confi guração estrutural (pp. 196-197).

Ao falar de Estado, refi ro-me ao seu inteiro aparelho, incluindo os gover-nos regionais insulares. A dialética estatal, que se trava entre o governo da República e os das Regiões Autónomas, tende pelo seu próprio discurso para a diluição atlântica e não para a potenciação atlântica. Da territoria-lidade do Estado português. A razão deste facto é que aquele discurso não é animado nem dirigido por um projecto atlântico do Estado Português (p. 114).

E, apesar de tudo e de todo o autismo que se verifi ca ao nivel das mais altas esferas do aparelho de Estado, José Enes deixa-nos breves apontamentos de esperança apoiada na sua original (re)interpretação de uma nova hermenêutica política:

Mas, no meu entender, ainda há uma esperança de o Estado português, aproveitando não só a sua História, que lhe permitiu a expansão da sua língua, bem como a sua situação geográfi ca, conseguir tomar consciência das potencialidades históricas e geográfi cas e

tentar ensaiar um plano estratégico de soberania estatal, assente na sua atlanticidade. E aí, sim, dar uma nova amplitude ao seu futuro integrando o Continente, as duas regiões autónomas e potenciando o espaço de língua portuguesa em cooperação «natural» com os países irmãos e os seus alia-dos que partilham as margens do Atlântico. Só assim Portugal será intei-ramente europeu, dando à Europa aquilo que, efectivamente, só ele pode dar, e poderá ombrear com os seus pares a cena internacional (p. 140).

A hermenêutica não é retórica poética. É a arte científi ca e fi losófi ca de encontrar o sentido verifi cável da História. Por este caminho os portu-gueses encontrarão o que têm a fazer, hoje, no contexto internacional, tanto daqueles países para quem Portugal é um parceiro com inteligência bastante para participar nas descobertas científi cas e tecnológicas que pro-cessam o evoluir da civilização. O que o Estado português tem a fazer para que tal aconteça é ser simplesmente Estado (p. 165).

3. O fi lósofo impenitente de grande angular, universal e civilizacionalO autor, dentro do rigor académico que caracteriza todos os seus escritos, começa por ensaiar uma tentativa de hermenêutica feno-menológica dos grandes conjuntos, denominados «civilizações»,

(...) que formaram e ainda constituem a chamada Civilização Ocidental ou com ela têm contracenado, encarados precisamente como factores de-terminantes do sentido do acontecer histórico (...) começando por escla-recer e precisar o conceito de Civilização. A civilização coincide com o sistema cultural de uma comunidade que possua a totalidade integrativa, organizativa e funcional de uma sociedade humana. Por conseguinte, ela resulta da recíproca integração sistemática dos subsistemas jurídico, ético, religioso, noético, tecnológico e artístico, em virtude do qual se institui a totalidade semântica do universo onde todas as partes e todas as actuações ganham sentido (p.40).

Prossegue o autor, dentro de uma clareza conceptual cristalina que diferencia entre conceitos frequentemente confundidos ou, no mínimo, fungibilizados:

Mas nem todas as culturas são civilizações no sentido próprio do termo. Para que uma cultura seja civilização, ela há de ter os elementos designa-dos pela metáfora signifi cativa ou pela ratio nominis, tanto do fundamento da denominação, que é o adjectivo civil, como do sufi xo que é simulta-neamente verbal e nominal – civilizar e civilização. Uma cultura ou um conjunto de culturas constituirão uma civilização quando possuírem os elementos que civilizam a sociedade ou sociedades respectivas, que façam delas sociedades civis (p. 41).

Propomo-nos continuar a senda da densifi cação dos conceitos matriciais de José Enes, acompanhando a sua busca criativa dos fundamentos do relacionamento entre progresso cultural e poder civil num enciclopédico conjunto de saberes historiográfi cos que, conforme concede o autor, constitui“o domínio mais cultivado ao longo de toda a história da cultura portuguesa” (p. 70).

Toda a cultura possui, como parte integrante da sua estrutura, um sistema e uma estratégia do poder. Numa civilização, porém, o sistema tem que ser do tipo «civil», em que os civis são os detentores e os agentes do poder. Por coincidência estrutural este sistema de poder civil é democrático. A sua estratégia preconiza, como primeiras estruturais, a escolarização e a organização social da cientifi cação. Daí a necessidade da escrita: não há civilização com uma cultura oral (...) Civilizar implica essencialmente a responsabilização da comunidade pela posse e exercício do poder polí-tico e pelo progresso moral e tecnológico da vida social, num sentido de evolução que tende para a plenitude. Deste dinamismo de culturalização resultam as virtudes cívicas que formam o civismo, os bons costumes e as belas maneiras que se denominam civilidade, e a melhoria da quali-dade de vida que se compõe dos «cómodos e amenidades da civilização. Civilização, por conseguinte, é a cultura ou o conjunto de culturas que não somente sejam capazes de dar, mas que de facto dêem, às sociedades humanas esta democraticidade, esta excelência de vida e este progresso permanente (pp. 42-43).

Afoitando-se, agora, no domínio da intimidade relacional entre cultura, circularidade habitacional e língua, o nosso autor ofere-ce-nos uma exegese etimológica original:

Cultura é o substantivo verbal do verbo latino colo, que signifi ca habitar e cultivar. Ora este verbo derivou da raiz indo-europeia kwelo, cujo sentido nuclear é o do movimento circular que o homem faz em relação ao espaço onde habita, onde trabalha ou onde existe alguém ou alguma coisa que sejam objecto do seu amor ou do seu cuidado. É o sempre voltar, o frequentar, o não sair de, o morar (...) Assim, toda a cultura é constituída pelos discur-sos da coabitação no espaço dos homens consigo mesmos e com Deus: o ético, o jurídico, o tecnológico, o artístico, o científi co, o teológico, e buscando a inteligibilidade do universo cultural, o fi losófi co. A estrutura de comunicação que torna possível e efectiva a elocução destes discursos é a língua. O sistema linguístico é o elemento transcendental da cultura. Quando uma série de culturas, aparentadas pela mesma origem, apresen-ta um estilo de vida social caracterizado pela procura da dignifi cação cres-cente do homem como civis, como cidadão, membro da civitas, da sociedade civil, denomina-se civilização. As culturas europeias constituem a civilização ocidental. A origem comum engendra-se historicamente pela simbiose das

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culturas helénica, da romana e da judaica às quais se juntaram outras como a siríaca, a arménia e a egípcia. Os genes dominantes, inovadores e integrativos da nova estrutura cultural foram produzidos pelo cristianis-mo. As ciências e a fi losofi a derivam de cromossomas helénicos, o direito e a política de romanos, mas a religião, a teologia e a moral são cristãs, se bem que a inteligibilidade das mesmas se faça dentro do quadro da razão helénica (pp. 57-59).

Assim, José Enes, desassombrado, nomeia o Cristianismo como o irmão gémeo da Civilização Ocidental que ele analisa com a sua proverbial maestria de fi lósofo cristão, marca indelével, sem sombra de dúvida, em toda a sua prolixa produção intelectual e académica.

Entre o Cristianismo e os outros sectores da Civilização Ocidental existe uma conaturalidade tão recíproca e tão íntima que nenhum deles se pode entender sem o refl exo estruturante e causativo do sector religioso. Com efeito, o pensamento fi losófi co ocidental não se entende sem a tonalidade e a ótica do espírito do Cristianismo, sem a temática suscitada pela teolo-gia católica, sem a contribuição dada pelas escolas, pelos teólogos e pelos místicos. O mesmo se há de ver com o Direito e a Moral, com as doutrinas sociais e políticas, com as ciências humanas e também com as da natureza, com as artes e até com as tecnologias. O mesmo aparece com evidência, no percurso histórico, nos empreendimentos felizes e infelizes que o di-namizaram e defi niram. Por seu lado, o Cristianismo não se entende na sua doutrina, no seu culto, na sua organização social e na sua actuação histórica sem o concurso dos outros sectores e das gestas e do destino da própria civilização (p. 47).

Quando em fi ns do século xv a Civilização Ocidental se apresentava em Portugal e em Espanha para a sua, até então, mais arrojada e grandiosa marcha para o Ocidente, encontravam-se ultimados os mecanismos de cientifi cação que iriam possibilitar o conhecimento directo e experimen-tal do planeta Terra (...) Foi uma empresa colectiva que também se veio realizando do Oriente para o Ocidente e na qual participaram não só as civilizações helénica e romana, absorvidas pela Ocidental, como as civili-zações hebraica e islâmica. Em Portugal se fez a síntese da inovação quer científi ca quer tecnológica, e os portugueses, levando a bom termo os pri-meiros grandes descobrimentos atlânticos, inauguraram a era planetária. Só a primeira viagem à Lua, já nos nossos dias, inaugurou a que se lhe seguiu, a era especial (pp. 52-53).

Algo profeticamente, o nosso autor fi losofa ainda sobre a tentati-va recorrente de reinstauração do império tedesco, citando para o efeito o genial escritor e tradutor von Schlegel (1767-1845) que atribui à Alemanha nos começos do século XIX ambiciosos sonhos imperiais que começaram a esquiçar-se no Estado prus-siano, sempre sob a efígie da águia bicéfala, aquela que espreita, a um tempo, com os dois olhares gulosos e expansionistas: a Ocidente e a Oriente.

E como a civilização sempre viera do Oriente, a situação geográfi ca da Alemanha também fazia dela o oriente da Europa. Dela partiria um novo movimento de civilização europeia e unifi cação da Europa que sob a égide germânica estenderia a todo o mundo a sua civilização e o seu poder. Só que para A.W. Schlegel o modelo do seu projecto era o Sacro Império Ro-mano-Germânico, medieval (919-1024). O projecto, porém, expressava vectores de historicidade que conduziram o povo alemão, a Europa e o Mundo à hecatombe da Segunda Guerra Mundial (pp. 66-67).

4. Uma preferência conceptual: O Mirante AtlânticoJosé Enes foi, a vários títulos, um visionário, um inovador, um pioneiro na acepção plena da palavra.E fê-lo sobretudo no seu terreno de eleição: a Universidade.Coube-lhe assim a iniciativa de“instaurar, na Universidade dos Açores, a investigação científi ca e o ensino de pós-graduação nas ciências e tecnologias que hoje se ocupam das relações internacionais e da estratégia” (p. 81). Ele fundamenta a criação do Centro de Estudos de Relações Interna-cionais e Estratégia – CERIE, sobre sua proposta e na qualidade de director do Departamento de História, Filosofi a e Ciências Sociais, por despacho reitoral do seu sucessor na Universidade,

António Machado Pires, com base em três pressupostos primeiros assim enunciados:

(i) a urgência histórica da consideração científi ca própria daqueles domí-nios, entendida como “a insubstituível pertinência de um discurso cientí-fi co em ordem a se tornar possível a compreensão de um dado momento histórico e a propiciar o atinado acerto das decisões que seleccionarão e actuarão as suas potencialidades de futuração” (p. 81);

(ii) a estratégia, tomando em consideração que “as ciências estratégicas, que pesquisam as origens, os princípios, os conteúdos e os instrumentos do dis-curso estratégico, não podiam deixar de ser objecto de estudo e de ensino nas universidades, como instituições destinadas à formação das elites civis dos quadros estataise à elaboração dos padrões culturais das sociedades da era nuclear” (p. 85);

(iii) a insularidade açoriana, tendo por pano de fundo que, “ao longo de toda a História, os Açores desempenharam um papel estratégico do maior alcan-ce para todas as potências que os utilizaram como base para a navegação marítima e aérea e para as ligações telegráfi cas. E as suas potencialidades estratégicas continuam a ser o fundamento mais fi rme e mais valioso para a sua integração nas relações internacionais” (p. 87).

Muito ao seu estilo voluntarista e liderante, José Enes remata o argumentário favorável à criação da nova vertente de investiga-ção e de estudos avançados na Universidade dos Açores, com uma autêntica exortação à assumpção da vertente arquipelágica atlântica por parte dos Açores:

Uma vez que as universidades são instituições destinadas à cientifi cação dos processos de culturalização das sociedades a que pertencem, à Uni-versidade dos Açores incumbe estudar as potencialidades estratégicas do Arquipélago e pôr os conhecimentos alcançados à disposição e ao serviço da comunidade, da Região Autónoma e de Portugal. É sua obrigação ins-titucional contribuir para a criação de uma consciência regional, esclare-cida e actualizada, capacitada da sua função histórica, apta a participar com responsabilidade e com proveito nos empreendimentos internacio-nais que passam pelo Arquipélago e dele se servem5. Uma tal consciência só se forma através da competência científi ca e tecnológica nos domínios das relações internacionais e da estratégia. Só assim, poderemos voltar a ser como fomos no começo da nossa História capazes de participar como sociedade, e não apenas como ilhas, em projectos mundiais que as utilizam como bases estratégicas. Só assim a nossa autonomia será uma forma de tornar Portugal participante, responsável e criativo, como outrora foi, na história mundial” (p. 87).

E, assumindo a fala do fi lósofo encartado, amante da noeticidade e da hermenêutica, mais nos diz José Enes ao jeito de interpreta-ção interdisciplinar, domínio do atravessamento de saberes onde ele nada à vontade qual peixe na água6:

5 Sempre atento à historiografi a, José Enes aduz vários argumentos a favor do entreposto açoriano: “O aperfeiçoamento da construção naval e o aumento do calado dos navios agravavam a falta dos portos de abrigo. Daqueles países sur-giam sugestões e propostas para a sua construção. Não admira que sobretudo da Inglaterra surgissem insinuações de um interesse político pela posse dos Açores. Portugal, por outro lado, não acompanhava a inovação tecnológica da constru-ção naval e da própria navegação. O centralismo impede também que os Açores tentem acompanhá-la. O aparecimento do navio a vapor provoca a ruptura. Os americanos, que tinham adoptado a Horta para a base da sua navegação comercial e dos seus navios baleeiros, oferecem-se para aí construírem uma doca fl utuante. Os açorianos tomam a angustiada consciência de que sem os portos de abrigo adaptados à escala dos navios a vapor não poderão continuar a exercer a função de base naval. E foi esta a decisão do governo de Lisboa. Com efeito, contrata sucessivamente duas companhias de navegação estrangeiras para garantir a liga-ção entre os Açores e o Continente com a concessão de monopólio. Esta decisão alterou o estatuto histórico dos Açores. Estas ilhas deixaram de ser para Portugal bases de navegação para passarem a ser possessões Ultramarinas com a designa-ção ofi cial – eufemisticamente carregada de humor negro – de ilhas adjacentes” (pp. 223-224).6 Muito a este propósito confessa-se o autor sedento de atravessar os estritos limites disciplinares do conhecimento: “A abordagem pluri e interdisciplinar da complexidade diferenciada das populações insulares tornou-se imperiosa a fi m de se alcançar a compreensão integrada, indispensável para fundar a estratégia

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Nestes domínios da organização e do planeamento da função estatal, em última instância e a longo prazo, a responsabilidade da inovação recai sobre as universidades. A História regista a acção inovadora de génios do pensamento político que não elaboraram as suas doutrinas sob dependên-cia directa de uma actividade universitária. São os casos de Maquiavel, Hobbes e de Rousseau. Todavia, a amplitude e a complexidade plane-tárias dos sistemas económicos e políticos, a pluri e interdisciplinaridade da investigação científi ca, tanto da ciência em geral, como e muito em particular das ciências sociais, exigem a cientifi cação e a organização aca-démica como condição do nível, do ritmo e da continuidade dos processos de aperfeiçoamento e inovação (p. 108).

As relações internacionais são ainda hoje um domínio disciplinar em for-mação, e o problema, cuja valorização permaneceu em expectativa, é o horizonte de sentido que une as várias disciplinas entretanto já constituí-das através da procura de inteligibilidade das entidades e acontecimentos, referidos por aquela denominação (...) Em regra o cume da confl uência dos saberes ocorre a partir da perspectiva histórica que proporciona a vi-são interdisciplinar da existência humana. É aí que o pensamento procura a compreensão (p. 92).

No que tange à defi nição material de Relações Internacionais, um misto de ciência e de arte nas palavras do autor, mais nos propõe o nosso ilustre ensaísta uma intersecção com noções avançadas de Soberania e Poder em termos tais que, nessa exacta interface, ele vê espreitar uma eloquente advocacia da noeticidade do discurso politico:

Esta ciência seria composta das perspectivas formais de outras disciplinas – geografi a, economia, direito, sociologia, etc. –, unifi cadas pela unidade material das relações entre os Estados e os povos. Enquanto aquelas ciên-cias contribuíssem para a compreensão global das relações internacionais, no seu próprio processar-se, nessa mesma medida contribuiriam para esta nova ciência, composta, assim, pelos contributos de outras ciências que tratam de diversos aspectos do mesmo objecto (p. 94) (...)

Hoje as ciências que se dedicam à procura do saber nos domínios das Re-lações Internacionais formam um universo em permanente expansão. A refl exão teorizadora e metodológica entrega-se, com intensidade crescen-te, ao virtuosismo da matematização e da metalinguagem e as especializa-ções proliferam com uma fecundidade incontida; as biografi as acumulam-se desmesuradamente; a formação universitária torna-se, cada vez mais, um desafi o à coragem, à duração de vida e às possibilidades fi nanceiras (p. 94) (...)

A «Soberania», como poder próprio do Estado, constitutivo da sua essên-cia e exaustivo da sua função, polariza a sua potência sobre a garantia da «segurança». Quer isto dizer que a soberania se exerce essencialmente através do emprego de todos os meios aptos e bastantes para a garantia da segurança externa e interna do Estado. Consequentemente o discurso do poder, próprio da soberania, é o discurso estratégico, pois ele outra coisa não é senão o discurso prático, que dispõe os meios aptos à garantia da segurança do Estado e toma a decisão efectiva do seu emprego. Todos os procedimentos e operações do aparelho estatal serão dirigidos pelo discur-so estratégico para a obtenção daquele fi m supremo. É na medida em que os discursos próprios de tais procedimentos e operações são ilumina dos e conduzidos pelo discurso estratégico que eles adquirem a noeticidade do discurso politico (p. 102) (...)

Em última instância, portanto, a segurança e a independência do Estado fundamenta-se na capacidade que ele tenha de organizar e de manter

da elaboração e da execução dos projectos. Foi o esforço esgotante da iniciação intensiva e da actuação criticamente controlada, conduzidas para a acelerada maturação categorical e metodológica nos universos científi cos da sociologia, da antropologia cultural, da economia, da história, facilitada pela propedêutica aprendizagem a nível do secundário e do médio destas e de outras ciências sociais e humanas, que me tem conduzido nas incursões nesses campos científi cos. Não se trata de autodidatismo nem de enculturação improvisada, nem mesmo de uma especialização abreviada, por técnicas idóneas dos processos cognoscitivos de aquisição de competência para a dinamização dialética de equipas pluridiscipli-nares e interdisciplinares e para a elaboração do discurso projectivo, resultante da integração das diversas óticas científi cas em cooperação. Esta competência está em permanente verifi cação experimental e a sua confi rmação é dada ou recusada exclusivamente pelo êxito ou fracasso dos projectos” (p. 206).

operacional o poder sufi ciente para responder aos desafi os da conjuntura. Este poder consiste no conjunto de factores – éticos, económicos, recursos materiais, dimensão territorial, posições geoestratégicas,

parcerias de interesses, acordos e alianças com outros Estados. Factores estes que sistematicamente dispostos dão ao Estado a capacidade de ga-rantir a segurança interna e externa da actividade social, ordenada e pro-gressiva. A função específi ca do Estado situa-se precisamente na organiza-ção e ordenação sistemática daqueles factores e nas decisões que utilizam para defender e garantir a segurança da comunidade estatal. A ciência e tecnologia que cientifi cam aquela função e o seu exercício constituem a «estratégia política». É uma ciência e uma arte. O termo «estratégia» não se lhe aplica por determinação extrínseca, por analogia com a «estratégia militar». Ambas concorrem para o mesmo objectivo fi nal que é a garantia da segurança da sociedade estatal; mas a «estratégia política» dirige todos os factores do poder estatal directamente para esse fi m supremo e especí-fi co do Estado, enquanto a «estratégia militar» exerce-se na guerra como um dos meios para a obtenção daquele fi m. A «estratégia política» é, por conseguinte, a estratégia global e permanente do poder do Estado que a exerce na paz e na Guerra (p. 104-105).

No seguimento do seu raciocíonio José Enes aprofunda os seus conceitos de «triângulo estratégico» português e de rectângulo lusófono do Atlântico com meridiana clareza:

A essência da atlanticidade portuguesa reside na sua territorialidade atlân-tica. O território do Estado português é composto pelo Continente e pelos dois arquipélagos, Açores e Madeira. Este triângulo forma a singularidade mais vincadamente marcante e original da

atlanticidade portuguesa. A situação e a confi guração desta territorialida-de atlântica possuem duas dimensões que a conjuntura histórica mundial valoriza com potencialidades novas para cuja compreensão o Estado por-tuguês não esteve e ainda não está preparado. Essas duas dimensões são: a Zona Económica Exclusiva (ZEE) e a geoestratégica (GE). Estas duas dimensões constituem a caracterização da territorialidade

portuguesa no mapa-mundo actual. Até ao momento presente, os qua-dros estatais portugueses não deram com o sentido histórico desta terri-torialidade. Não o utilizam nem para a concepção do Estado nem para a prospecção do futuro da Nação. Este está ausente no planeamento eco-nómico, na política externa e até – mirabile dictu! – na criação constitu-cional das Regiões Autónomas e no subsequente relacionamento dos três governos do novo Estado português. E, no entanto, seria somente sobre a territorialidade do Estado, as suas potencialidades historicamente reais e de exploração possível e necessária, que se poderia conceber, planear e executar uma estratégia de soberania, responsável pela identidade da Nação portuguesa e pela sua preservação, ou seja, pela sua independência estatal, como Estado europeu de pleno direito, sem perder a sua identida-de. (p. 113).

A descoberta ofi cial dos Açores por Diogo de Silves assinala dois momen-tos decisivos do plano da expansão portuguesa: o momento da certeza científi ca de a escala dos Açores ser indispensável para a torna-viagem das rotas para o Atlântico Sul; o segundo é o momento

da decisão estratégica de tomar posse ofi cial do Arquipélago, antecipando-se à iniciativa de qualquer outra potência7 (p. 206).

A novidade histórica e a validade política da autonomia regional insular está, precisamente, em possuir, nos seus termos constitucionais, a virtua-lidade da projecção orgânica da soberania à distância da territorialidade

7 Citando, em continuação, José Enes: É a este período que se aplicam as seguin-tes palavras de Bentley Duncan: «As ilhas portuguesas do Atlântico prestaram uma assistência essencial às frotas sempre crescentes de navios. As ilhas eram o eixo à volta do qual giravam as rodas do comércio internacional. Eram pontos fi xos de socorro e de referência num mundo movediço de vento, água e sal. Como tais, as ilhas, agora relegadas ao esquecimento, foram os mais puros símbolos do mundo atlântico». Tais factos sugerem que a organização de uma sociedade nos Açores apta a desempenhar as funções de base naval, indispensável para garantir a possibilidade das rotas comerciais transatlânticas para o Sul e para o Extremo Oriente e as viagens de descoberta para o Ocidente, foi uma decisão estratégica do Estado português, como primeira grande potência atlântica mundial (pp. 208-209).

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atlântica. A sua estruturação será congénita da realização progressiva de um projecto nacional na medida em que os órgãos do Governo da República e os das Regiões Autónomas forem os agentes responsáveis. Pensando a partir do mirante açoriano, vejo que os Açores necessitam de um repovoamento, de um reordenamento demográfi co, de uma reconver-são económica e de uma reestruturação administrativa e política a fi m de poder participar naquele projecto. Mas vejo, também, que sem tais refor-mas a orgânica montada não dispõe de longa viabilidade. O projecto de Portugal como Estado atlântico terá como elementos estruturais de base:

1. uma estratégia atlântica de soberania;

2. uma economia alicerçada na valorização económica da ZEE e nas po-tencialidades geoestratégicas da territorialidade atlântica;

3. um plano de culturalização orientado para a revalidação da função histórica de matriz civilizacional (p. 118).

Por uma estratégia atlântica assumida de soberania é o sonho (utopia?) de José Enes, a qual, pressupõe ele, alicerçada em dois elementos estruturantes, em que releva o prenúncio de uma tecno-logia de utilização estratégica, posta ao serviço da busca identitária de almas açoriana e lusa, em confronto simultâneo de alteridades, a partir do miradoiro atlântico:

Formularei, fi nalizando, à maneira de intuições matriciais, os seguintes postulados: A estratégia atlântica de soberania do Estado português assen-tará sobre os outros dois elementos, elaborar-se-á através de um discurso legitimativo de Direito Internacional, inovador nos domínios do arquipe-lágio e da utilização do espaço exterior, e executar-se-á através de uma participação negociada nas funções estratégicas atribuídas à sua territoria-lidade atlântica. A economia atlântica alterará o actual sistema económico português, que deixará de alicerçar-se sobre a agricultura e sobre uma in-dústria meramente imitativa e concorrente da dos outros países europeus. Ela envolverá o desenvolvimento da tecnologia de utilização estratégica no quadro de uma concertação internacional negociada pelos Estados; a inventariação e a exploração progressiva da ZEE; a criação de estruturas de investigação adequadas a estes dois conjuntos operacionais e a orga-nização dos sistemas de vigilância e defesa. A função histórica de matriz civilizacional será possibilitada pelo desenvolvimento da consciencializa-ção hermenêutica da historicidade portuguesa, dos papéis civilizacionais desempenhados pelo Estado português, da cultura portuguesa e da sua projecção em outras culturas nacionais. Tal consciencialização herme-nêutica será obra das universidades, em que a Universidade dos Açores terá responsabilidade acrescida, de outras instituições e de elites pensantes da intelectualidade portuguesa. O apelo e o acolhimento do regresso às origens dos povos de fala portuguesa e dos portugueses emigrados serão pedra de toque da revitalização histórica da função de matriz civilizacio-nal. Nos arquipélagos se hão de estabelecer as competências estatais e as outras estruturas públicas e privadas de forma que as funções respeitantes à territorialidade respectiva nela mesma se exerçam na dependência da hi-erarquização racionalizada, em que o número de funções é inversamente proporcional à participação no poder da soberania (p. 119).

(...) nós poderemos chamar aos Açores o miradoiro atlântico da nossa vi-são de Portugal. Por força da ainda em nós vigente transcendentalidade da proto-história dos Açores, para usar a expressão nemesiana, a nossa perspectiva atlântica é de facto essencial para a descoberta dos vectores mais autênticos da historicidade portuguesa. Façamos dos Açores o espaço para a refl exão comunitária na procura do projecto português, ou, como agora se começa a formular programaticamente, na procura da identida-de nacional, do papel de Portugal no espaço cultural e político dos países de língua portuguesa e do papel deste espaço no enquadramento mun-dial. A grandeza dos Açores está em assumir a pequenez da sua dispersa territorialidade oceânica como fronteira estratégica para a comunidade cultural e política entre a Europa e a América.Tal realidade é sem dúvida a mais clara razão de que numa sociedade politicamente capaz e poderosa nem tudo se reduz às instituições políticas e ao exercício das respectivas funções. Aqui termino a minha mensagem. O projecto autonómico dos Açores não está acabado. Estará algum dia? Mas encontra-se num mo-mento em que se conseguirmos racionalizar os seus processos e encon-trar o seu sentido histórico, não obstante as difi culdades que do exterior se levantem, teremos garantido a sobrevivência e o progresso da nossa

sociedade insular (pp. 232-233).

E no que toca a escalpelizar conceitos analíticos, ortogonais ao livro, esgrimindo com maestria o bisturi intelectual da ciência, José Enes oferece-nos a originalidade de uma fundamentação histórico-cultural da condição açoriana, no contexto da Civiliza-ção Ocidental que ele, com tanta minúcia e singularidade, ousa explicitar:

Quando em fi ns do século xv a Civilização Ocidental se apresentava em Portugal e em Espanha para a sua, até então, mais arrojada e grandiosa marcha para o Ocidente, encontravam-se ultimados os mecanismos de cientifi cação que iriam possibilitar o conhecimento directo e experimen-tal do planeta Terra (...) Foi uma empresa colectiva que também se veio realizando do Oriente para o Ocidente e na qual participaram não só as civilizações helénica e romana, absorvidas pela Ocidental, como as civili-zações hebraica e islâmica. Em Portugal se fez a síntese da inovação quer científi ca quer tecnológica, e os portugueses, levando a bom termo os pri-meiros grandes descobrimentos atlânticos, inauguraram a era planetária. Só a primeira viagem à Lua, já nos nossos dias, inaugurou

a que se lhe seguiu, a era espacial. Ora a Civilização Ocidental era, como vi-mos, uma civilização mediterrânica pela sua origem, pela sua composição cultural e pelo cenário do seu acontecer histórico. Ao expandir-se para o Atlântico ampliou o cenário, mas quanto à essência da sua estrutura e à tessitura da sua historicidade, continuou a ser mediterrânica. (pp. 52-53).

A título de remate ...Concluiremos com a transcrição parcial do original/genial manuscrito que consta da capa do livro, de difícil percepção e leitura, o qual, por gentileza da Prof. Maria Fernanda Enes, me chegou às mãos8:

O Atlântico foi para a planetização da civilização europeia o que o Mar Egeu foi para o seu nascimento. A este os gregos chamaram “mar prin-cipal” – archipélagos, pela importância das suas ilhas no sistema de co-municações. Os arquipélagos, que hoje integram o território português, constituíram o núcleo originário do sistema de comunicações que viabili-zam a expansão planetária da civilização europeia. Portugal foi pioneiro, à compita com Castela, no estabelecimento da primeira economia mundo.

[Carta de José Enes a Francisco Lucas Pires (rascunho incompleto), 1987].

*****Ficou demonstrada, sem que tal fosse necessário ou mo tivesse sido pedido, a riqueza ímpar de uma personalidade multiface-tada, a muitos títulos desconcertante, cultora de um positivis-mo científi co só comparável à sua prosódia poética (q.e.d.).

8 A propósito deste notabilíssimo e actualíssimo testamento de José Enes vem-nos à memória o saudoso Professor Agostinho da Silva que falava de um Portugal arquipelágico, traduzido numa omnipresença cultural lusa pelas sete partidas do mundo, muito embora o nosso autor mantenha um militante distanciamento crítico de qualquer neo-manifestação do complexo sebastiânico, entre os quais o mito do Quinto Império, que ele verbera energicamente ao longo do seu compên-dio histórico-cultural. Nas palavras do Autor: “A conjuntura histórica impele à integração na CEE e na NATO como no seu natural espaço geoestratégico. Neste espaço, o Estado português possui uma inconfundível personalidade, defi nida pela sua territorialidade continental e insular, rica de potencialidades euro-a-tlânticas, e pelo seu currículo histórico que o habilita ao exercício de funções de matriz civilizacional em relação aos países de língua portuguesa. E não lhe faltam estímulos à rápida actualização cultural, científi ca e tecnológica, ao reordenamento económico, à racionalização e à regionalização, à concorrência e à participação internacional. Nem lhe escasseiam solicitações de cooperação na formação de quadros superiores de alguns países. Mas eis que se agitam de novo os avatares sebastianistas, preconizando a estratégia do isolamento, na mira da construção de um «Estado Arquipelágico» em que o próprio território continental se transformaria em ilha. Este seria, como acima disse, o comportamento mais específi co do complexo sebastianista, na presente conjuntura histórica do Estado português. Mas seria também, e por essa mesma conaturalidade, a mais perigosa das decisões estratégicas. A que novo «ciclo» daria ela início?” (p. 168).

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Curvo-me respeitosamente perante a memória de um príncipe do pensamento e das letras do nosso tempo. Choro a ausência do Mestre e Amigo que partiu na sua derradeira viagem. Dele retenho as imagens fortes de um homem bom, carinhoso para os familiares e próximos, dotado de um sibilino sentido de humor no qual ele estilizava a ácida ironia açoriana, de sorriso largo, tranquilo e acolhedor, capaz de exibir amiúde um riso contagiante que o fazia estremecer da cabeça aos pés com particular incidência numa intense e frenética oscilação de ombros, evidenciando assim, à saciedade, uma cumplicidade solidária com o outro com quem gostava de se relacionar. Mas, a concluir permitam-me que sublinhe, como nota pes-soal, a enorme coragem moral de um homem aparentemente franzino vítima da odisseia de uma vida de atração-repulsão da sociedade que ele tanto amou, a qual com pundonor e um raro sentido de ministério serviu, mas que nunca lhe facilitou a caminhada de peregrino e de Homo Viator que, apesar de todas as vicissitudes, ele sempre conduziu com notável integri-dade e dignidade. Cumprimento a fi nal com afecto incontido a Maria Fernan-da, a Ana Sofi a, o José e o Fernando Miguel, bem como o José Maria e a Maria, num abraço de sentida veneração por José Enes, personalidade que marcou o pensamento de uma geração inteira de açorianos e de portugueses e cuja presença imorredoira também nos cabe aqui e agora celebrar.

Por tudo quanto nos deste,Bem Hajas, Querido José Enes!

Roberto Carneiro.