o discurso sem método #5

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O DISCURSO SEM MÉTODO 5 set/out 2013 publicação dos estudantes de Filosofia da FFLCH/USP odiscursosemmetodo.wordpress.com um jornal a serviço da dúvida . pensar a organização: lições de junho Movimentos massivos trazem à cena novas direções e setores imprevi- síveis, tirando-nos do estado frustrante porém confortável em que não precisávamos questionar o sentido, a necessidade e o caráter de nossas organizações e métodos de luta e formação de consciência. João Pedro Bueno e Mariana Luppi. p.14 um olhar crítico sobre a visão de mundo científica Pedro Colucci traduz Wolfi Landstreicher. p.25 rascunho de uma ontologia do estudante (2) Duanne Ribeiro. p.12

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Um jornal a serviço da dúvida. Publicação dos estudantes de Filosofia da FFLCH/USP.

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Page 1: O Discurso sem Método #5

O DISCURSO SEM MÉTODO

nº 5set/out 2013

publicação dos estudantes de Filosofia da FFLCH

/US

Podiscursosemmetodo.wordpress.com

um jornal a serviço da dúvida.

pensar a organização: lições de junho

Movimentos massivos trazem à cena novas direções e setores imprevi-síveis, tirando-nos do estado frustrante porém confortável em que não precisávamos questionar o sentido, a necessidade e o caráter de nossas organizações e métodos de luta e formação de consciência.

João Pedro Bueno e Mariana Luppi. p.14

um olhar crítico sobre avisão de mundo científica

Pedro Colucci traduz Wolfi Landstreicher. p.25

rascunho de uma ontologia do estudante (2)Duanne Ribeiro. p.12

Page 2: O Discurso sem Método #5

editorial. 2

percepção evivência

Editorial

A serviço da dúvida e da crítica o Discurso sem Método está mais uma vez nos corredores e nas bocas.

A coluna do CAF apresenta um balanço da gestão de João Grandino Rodas, evidenciando os marcos desse período para a USP, e pergunta: pode esse reitor conduzir legiti-mamente um processo de ‘democratização’ das eleições para os cargos de direção da USP, tal como foi apresenta-do genericamente? Em seguida, temos uma contribuição do coletivo Lélia Gonzales que pontua a importância de percebermos o machismo presente nas relações pessoais, inclusive entre pessoas próximas, como família, amigos e namorados. Só mediante essa percepção poderemos cons-truir uma vivência plena, livre de preconceitos que muitas vezes passam despercebidos como naturais.

Apesar de a eleição para reitor ser um dos principais te-mas deste semestre, outros mais profundos continuam na ordem do dia da universidade; entre eles está o da re-

pressão, intensificada na gestão Rodas, mas que se estende para além dos muros da universidade, por exemplo, na ação da PM face às manifestações de junho, ou na ação cotidiana desta instituição nas periferias.

Qual a palavra que, uma vez suprimida, pode alterar signi-ficativamente a destinação das verbas para a educação? E o quanto este debate nos diz respeito? São perguntas que sur-gem do interessante texto Sociedade, Universidade e a tão des-prezada educação. Ser estudante é a condição que nos une, mas como se compreende o estudante? A segunda parte do Ras-cunho de uma ontologia do estudante persegue a resposta a essa pergunta, explorando a tensão entre velho e novo em dois autores brasileiros: Mario de Andrade e Nelson Rodrigues.

O que ocorreu em junho, além de uma vitória popular que impediu o aumento da passagem do transporte público, foi a apresentação para o grande público de novas organi-zações políticas defendendo interesses comuns, como por

Na coluna do CAF, lemos: “Só a mobilização pode, de fato, democratizar a USP e permitir que esta cumpra a sua função social

Page 3: O Discurso sem Método #5

editorial. 3

Expediente desta edição

Alberto SartorelliBruno BernardoDuanne Ribeiro (diagramação)Gabriel BichirJoão Pedro BuenoIgor de C. e Souza CâmaraInauê Taiguara (edição)Lucas PaoloMarcelo Soares (revisão)Mariana Luppi (revisão)Monica Marques (diagramação)Pedro ColucciPedro ZambardaRafael LauroThiago Fonseca (ilustrações)

Agradecimentosa Johannes Gutenberg;à Comunicação Social da FFLCH;à Orides Fontela (1940 - 1998)

imagem da capa: ”A Violent Forcing of the Frog”,

Hieronymus Bosch

exemplo o Movimento Passe-Livre. Porém, junto a este ‘surgimento’ verificamos também uma ‘onda’ de rechaço aos partidos e organizações sindicais. Será que tal rechaço se justifica? Não seria por demais precipitada uma compa-ração direta entre formas de organização com meios e fins diferentes? Estas são algumas dúvidas que o texto Pensar a organização: lições de junho coloca em evidência.

O texto Jornalismo intelectual e engajado apresenta o exemplo de Albert Camus que demonstra que a atividade de noticiar pode, e inclusive deve, ser engajada. Afinal não tomar um lado é contribuir para manter o status quo. Em Pós-ideologia e cine-ma somos convidados a refletir sobre como a empresa Globo Filmes pode ser considerada o exemplo máximo da indústria cultural no Brasil. Porém, o fato de uma empresa que se for-taleceu com o golpe de 64 hoje produzir filmes ‘contra’ a dita-dura seria suficiente para afirmar o tempo da pós-ideologia?

Em Contemplando o fim: as profecias de John N. Gray podemos apreciar a evolução e a aceitação do pensamento deste filósofo britânico na última década, a partir de suas publicações Straw Dogs (2002) e The Silence of Animals (2013).

Nesta edição somos brindados com a tradução do texto de Wolfi Landstreicher Um relato equilibrado do mundo, que lança um olhar crítico sobre a visão de mundo científica. De acordo com o texto, longe de ser neutra: “A ciência moderna nunca foi des-tinada a proporcionar o conhecimento real do mundo – que teria exigido a imersão no mundo, não a separação dele – mas sim a impor uma perspectiva particular sobre o universo que iria transformá-lo em uma máquina útil à classe dominante”.

A Luta de classes nas estrelas continua nesta edição. No episódio II o comitê formado por Len Kenobin, que reúne entre outros Jean-Luke Skytre e CHÊ-Bacca, iniciam o resgate da Princesa Plebeia, confinada na sede do Imperialismo Galático. Na fuga, porém, nossos heróis irão ter de enfrentar o poderoso Darth Cola, que revelará sua identidade secreta.

No conto desta edição temos um diálo-go kafkiano que esclarece que ninguém é responsável pelo destino de um pri-sioneiro quando este é sentenciado a enfrentar A máquina. Em O que há de belo nas madrugadas de inverno encontramos o relato do que muitos de nós fazemospara nos esquentarmos naquelas noites frias, mas sob uma ótica diferente: ao in-vés de crer que o calor venha da coberta, descobre-se sua origem no coberto.

Na seção de poesias temos a honra de oferecer aos nossos leitores a tradução de três poesias, duas de Georg Trakl e uma de Charles Baudelaire, todas acompa-nhadas do texto original. Além dessa no-vidade temos, como sempre, uma grande variedade de poesias enviadas pelo espí-rito poético que habita grande parte dos estudantes de filosofia.

Terminamos com mais uma contracapa elaborada em 1994, desta vez, a Leibniz Li’Monada.

Page 4: O Discurso sem Método #5

sumário. 4

leia as edições anteriores e o Manual do Calouro e da Caloura:

issuu.com/caf_usp/

Índice

agenda e notas

calendário..........................................................5

coluna do CAFbalanço da gestão rodas.................................6

universidade e política

sobre o machismonas relações pessoais.....................................8Coletivo Feminista Lélia Gonzales

a atualidade da repressão ..............................9Mariana Luppi

Sociedade, Universidade e atão desprezada educação .............................10Monica Marques

rascunho de uma ontologia do estudante (2)............................12 Duanne Ribeiro

sociedade

pensar a organização: lições de junho...............................................14João Pedro Bueno e Mariana Luppi

Jornalismo intelectual e engajado.................17Pedro Zambarda

Pós-ideologia e cinema.................................19Alberto Sartorelli

resenha

Contemplando o fim: As profecias de John N. Gray......................22Igor de C. e Souza Câmara

tradução

“ainda um relato equilibrado do mundo: um olhar crítico sobre a visão de mundo científica”, de Wolfi Landstreicher..............25Pedro Colluci

quadrinhos

luta de classes nas estrelasepisódio 2.......................................................31Thiago Fonseca

conto

a máquina.......................................................33Gabriel Bichir

crônica

o que há de belo nasmadrugadas de inverno................................35Rafael Lauro

poesia.............................................................36

minhas ruas, em bloco, pedem passagem Lucas Paolo

do eclesiastes Orides Fontela

Filosofia Monica Marques

Rondel e Um anoitecer de inverno de Georg tralk Bruno Bernardo

Correspondências de Charles Baudelaire Alberto Sartorelli

O Ato-Ítaca (variação sobre Constantine Cavafy)Duanne Ribeiro

Helena e PárisAlberto Sartorelli

Arquiteta Revisitada à Rondino Régirréxitégui

rodapé............................................................40CAF em 1994

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agenda e notas. 5

calendáriojornal:

- 20 de outubro. Prazo máximo para o envio de textos à próxima edição do DSM (nov/dez)

acadêmico:

- De 7 a 11/10, II Semana de Filosofia Politica.

Segunda-feira (7/10)

15h às 17h Roda de conversa sobre espaços estudantis, pelo CAF

19h às 21h Grade curricular: “Por que não estudamos Marx?”, com prof. Eleutério F. S. Prado (FEA)

Terça-feira (8/10)

15h às 17h Oficina de Livestream e de Rádio Livre, no Espaço Ver-de, com Mídia Ninja e Rádio Várzea.

19h às 21h Redes sociais e mídias independentes

Quarta-feira (9/10)

15h às 17h Impactos da crise na economia brasileira, com João Machado

19h às 21h A importância da reforma agrária para o Brasil, com Grupo dos 51

Quinta-feira (10/10)

15h às 17h Exibição do documentário sobre Pinheirinho, com Natália Keiko (diretora do documentário) e um ati-vista do Pinheirinho.

19h às 21h Desmilitarização da Polícia Militar?, com DAR, Quilom-bo Raça e Classe, Baldan

Sexta-feira (11/10)

15h às 17h Instrumentos de luta e organização política, com An-tonio Carlos Mazzeo (PUC), Osvaldo Coggiola, MPL, Luta Populas e Metroviários.

19h às 21h Reforma Política?, com Valério Arcary

- Dias 8 e 9/10, Um mundo em convulsão - Simpósio Interna-cional. A programação vai das 9h às 19h30. Mais informa-ções: http://mundoemconvulsao.fflch.usp.br

- De 14 a 18/10, Semana de combate a violência contra a mu-lher, na FFLCH. Programação: http://www.facebook.com/frentefeminista.usp

- De 21 a 25/10, Simpósio Internacional de Iniciação Científi-ca (SIICSUP). De 21, 22 e 23/10/2013, na ECA-USP Cidade Universitária - Campus da Capital, trabalhos da área de Humanas e Humanidades. De 22, 23 e 24/10/2013, na EESC - Campus de São Carlos, trabalhos da área de Exatas e En-genharias. De 23, e 24/10/2013, na EERP/FCFRP - Centro de Convenções - Ribeirão Preto, trabalhos da área de Biológi-cas e Saúde 24. E no dia 25/10/2013, na CENA-USP - Cam-pus de Piracicaba, trabalhos da área de Agropecuárias. Mais informações: http://www.usp.br/siicusp

- De 21 a 25/10, V Colóquio Marx e os Marxismos, na FFLCH. As normas de inscrição nas mesas de comunicação estão dispo-níveis no blog do LeMarx: http://lemarxusp.wordpress.com.

Neste ano, os eixos em torno dos quais o colóquio estará organizado serão:

1. A obra teórica de Marx e Engels; 2. As Internacionais Comunistas; 3. Política e Teoria do Estado; 4. Direito, Democracia e Partidos; 5. Arte, Estética e Cultura; 6. Psicanálise e Teoria Social; 7. Educação no capitalismo e perspectivas de emancipação; 8. Economia política contemporânea; 9. Movimentos sociais; 10. Crises do capitalismo e neoliberalismo; 11. Resistências globais ao capital e lutas de classes; 12. Marxismo na América Latina; 13. Caminhos para o socialismo hoje; 14. Imperialismo e Neoimperialismo; 15. Filosofia crítica; 16. Trabalho ontem e hoje;

- 28/10 - Consagração ao Funcionário Público. Não haverá aula.

- 2/11 - Finados. Não haverá aula.

- 15/11 - Proclamação da República. Não haverá aula.

- Dia 16/11 - Recesso Escolar. Não haverá aula.

- De 27/11 a 2/12 - PERÍODO DE MATRÍCULA DOS ALU-NOS para o 1º semestre de 2014 (1ª Interação). ATENÇÃO: o aluno deverá inscrever-se em, pelo menos, uma das in-terações, masde preferência na primeira, para participar da seleção das disciplinas/turmas de seu Período Ideal (1ª Consolidação), e dar às Unidades noção mais precisa da de-manda por vagas.

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coluna do CAF. 6

Olá colegas,

Tendo em vista que um dos temas mais candentes dos próximos meses na USP será a eleição de reitor decidimos apresentar um balanço da gestão do atual reitorado.

Breve histórico

João Grandino Rodas, que ocupa atualmente o cargo de rei-tor da USP e propõe genericamente a ampliação no processo eleitoral para dirigentes, inclusive para reitor, é aquele que em 2007, quando diretor da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, foi responsável pela entrada da Polícia Militar no pátio da Universidade para prender estudantes e integrantes de movimentos sociais que se encontravam em uma jornada de movimentos sociais. Ao sair da SanFran, Rodas foi conside-rado “persona non grata” pela congregação desta faculdade, pelo fechamento da biblioteca e por utilizar-se de verba pública para produzir boletins com críticas à faculdade. Como se não fosse o bastante, é o mesmo que em 2011 se aproveitou do sentimento de medo da comunidade acadêmica para firmar convênio com a PM e a Universidade para patrulhamento do campus, ao invés de reforçar a guarda universitária e o sistema de iluminação do campus - que só agora, nos últimos meses de seu mandato, depois de ter a licitação para o novo projeto suspensa três vezes por conta do favorecimento irregular de uma empresa, começou a ser reformado. Ainda é o mesmo que em novembro de 2011 chamou contingente de 400 ho-mens para prender, por motivos políticos, 72 estudantes que ocupavam a reitoria, sem deixar de processá-lxs administra-tivamente segundo decreto 52.906/72, promulgado durante a ditadura civil--militar. Além disso, é o mesmo que, tendo sido membro da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, votou pelo indeferimento de 45 desaparecidxs políticos, den-tre eles Alexandre Vanucchi Leme e Zuzu Angel. Em maio deste ano, criou uma Comissão da Verdade da USP para barrar a reivindicação por uma Comissão da Verdade da USP ampla e de representação paritária, fruto de uma mobilização de mais de um ano do Fórum pela Democratiza-ção da USP. Além de tudo, ele ainda

se negou a comparecer à audiência pública da Comissão da Verdade Rubens Paiva do caso Ana Rosa Kucinski, professora do Instituto de Química, desaparecida e morta pela ditadura e, postumamente, demitida pela Universidade de São Paulo por justa causa.

A USP e os rankings internacionais

A gestão Rodas teve como carro chefe de propaganda e marke-ting a “Internacionalização” de nossa Universidade. Apoiando--se nas ascensões dos diversos cursos da USP nos mais variados rankings internacionais e na grande quantidade de intercam-bistas que aqui chegaram e para o exterior foram, o reitor da Universidade de São Paulo concentrou seus esforços em de-monstrar que a sua gestão abria um novo período na USP: o da modernização. Para tanto, não foram poupados investimentos em bolsas de intercâmbio ou obras de modernização de (alguns) prédios do interior da Universidade, investimentos esses que tinham como objetivo enquadrar a USP no modelo de Universidade de Excelência da Europa e Estados Unidos, sendo que até convênios com instituições do velho continente e do país do Tio Sam foram firmados. A mensagem foi clara: a USP é uma Universidade de “todo o mundo”.

No entanto, é interessante quando observamos como a política externa de nosso reitor se relaciona com os projetos desenvol-vidos por ele no âmbito interno da Universidade (como o sen-tido da política externa da reitoria vai de encontro ao índice de projetos destinados o entorno da USP, onde os seus con-cidadãos vivem). Se por um lado observamos a abertura da

balanço da gestão Rodas

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coluna do CAF. 7USP para xs que vem de fora (do país), por outro vimos o seu fechamento para aquelxs que vivem ao seu redor e não tem “nenhum vínculo” com essa instituição - entendendo-se por nenhum vínculo, falta de uma carteirinha USP - ou seja, tercei-rizados que mantém os prédios limpos não tem nenhum vín-culo com a USP. Se os aviões não param de aterrissar e levan-tar vôos para levar e trazer estudantes, o mesmo não se pode dizer dos ônibus que passavam por aqui. A privatização do circular - antes gratuito para todxs, agora somente para xs que tem “vínculo com a Universidade” - não só restringiu o acesso de muitxs que não possuem a carteirinha USP e que, portanto, tem de agora pagar R$3,00 (por pouco não é R$3,20), como foi uma medida de preparação para o corte de inúmeras linhas que passavam antes pelo campus Butantã, vindas de fora da Universidade, e agora não existem mais.

Ao mesmo tempo, foi marcante a postura de nosso reitor quando o assunto cotas chegou por aqui. Mantendo-se como o fiel escudeiro do governo PSDBista, rechaçou qualquer pro-posta e qualquer espa-ço de discussão - mas sinceramente, esperá-vamos outra atitude? - em detrimento da pro-posta do Governo do Estado de São Paulo: o PIMESP. O Programa de Inclusão por Mérito do Estado de São Paulo é a resposta de Alckmin e cia ilimi-tada para a demanda popular de programas que abram, de fato, essa Universidade para todxs. E como se não bastasse isso, não foram poucos os ataques que o Núcleo de Consciên-cia Negra sofreu durante essa gestão que nunca se incomo-dou em explicitar sua intenção com relação ao Movimento Negro: expulsá-lo da Universidade, sem contar a negligência da Guarda Universitária com os inúmeros casos de racismo cotidianos, como foi o episódio do time de basquete masculi-no da Poli que linchou um intercambista de Cabo Verde den-tro do CEPE-USP sem qualquer tipo de intervenção de nossa Guarda Patriomonial.

Orçamento e centralização de poder

A proposta orçamentária da secretaria de planejamento e de-senvolvimento regional indica que o orçamento da USP para 2012 foi estimado em R$ 4.376.193.120,00 (http://bit.ly/or-çaUSP2012). Deste alto montante, pouco está disponível para melhorias, pois, segundo a reitoria em boletim de 17/01/2013 (http://bit.ly/boletimreitoria170113), a “USP gasta 93% do or-çamento com folha de pagamento”. Porém, é preciso chamar atenção para um ponto alarmante: o número de portarias bai-xadas diretamente pelo gabinete do reitor nos últimos anos e as principais disposições que estas portarias decretam. Por

um lado, o número de portarias cresceu exponencialmente a partir de 2009, na época gestão de Suely, a qual já estava sob a influência jurídica de Rodas. Isto significa que as decisões passaram a ser cada vez mais centralizadas na própria reito-ria, sem passar nem pelo C.O., inclusive sobre a utilização do orçamento da Universidade. Por outro lado, das 324 porta-rias baixadas este ano (até 23 de agosto), nada menos do que 125 delas dispõem sobre a distribuição de empregos públicos (http://bit.ly/portariasUSP2013). Ou seja, 93% do orçamento está comprometido com a folha de pagamento, mas, através de portarias, a reitoria cria parte desta folha de pagamento, sem consulta alguma à comunidade uspiana. O aumento do número de portarias nos últimos anos é apenas um reflexo da centralização de poder que vem ocorrendo na USP. Foi in-clusive esta mesma centralização de poder que fez com que a reitoria usurpasse a competência do C.O., ao julgar recursos

apresentados por alu-nos que estavam sendo processados adminis-trativamente.

Indo por esta linha, é importante ressal-tarmos que os rumos da USP interessam diretamente ao go-verno do estado. O orçamento da USP é considerável, assim como a sua população. A Universidade está mais do que nunca alinhada a um projeto

privatizador da educação, o qual, a curto prazo, apresenta resultados nos rankings, mas que que a longo prazo só contribuem para a alienação da Universidade de seu papel social. Este reitor, segundo colocado de uma lista tríplice pro-duzida de forma extremamente antidemocrática, vem agora propor ampliação do processo democrático. Não podemos deixar este processo ser conduzido por alguém com este his-tórico. Só a mobilização pode, de fato, democratizar a USP e permitir que esta cumpra a sua função social.

balanço da gestão Rodas

Propostas para a eleição para reitor apresentadas na assembleia geral dos estudantes, ocorrida em 20 de agosto de 2013 na POLI:

1. “Por uma estatuinte livre e soberana, sem burocratas, fim do reitorado e dissolução do CO. Governo tripartite, composto pe-los 3 setores, estudantes, trabalhadores e professores, incluindo trabalhadores terceirizados, um voto por cabeça (universal).”

2. “Por um governo tripartite, eleito diretamente pelo voto universal, com mandato revogável e subordinado à assembleia geral universitária”

3. “Eleições diretas para Reitor, Diretor de Unidades e Chefes de Departamento, paridade entre as três catego-rias e fim da lista triplice.” (proposta vencedora)

Page 8: O Discurso sem Método #5

universidade e política. 8

Para que possamos compreender como o machismo opera nas vidas das mulheres, é importante romper com o silêncio que circunda o tema do machismo nas relações pessoais. Nesse sen-tido, é fundamental problematizarmos a divisão público/priva-do: muitas formas de violência contra mulheres são descredita-das por ocorrerem na esfera do “privado”. O que consideramos ser privado torna-se, por sua vez, supostamente apolítico e, por-tanto, escapa da discussão pública. Isso faz com que normalize-mos esse tipo de situação e, por consequência, não nos demos conta de que constitui um tipo de violência, seja ela simbólica, verbal ou física. Todos conhecemos a famosa frase que diz “Em briga de marido e mulher, não se mete a colher”, expressando como os casos de violência doméstica são usualmente tratados: no silêncio. Mas esse debate não se restringe somente à violência doméstica, mas tudo aquilo que constitui a relação “pessoal” homem-mulher. Nesse sentido, é importante entender o “pessoal como político” para compreender de que forma o ma-chismo opera nas vidas das mulheres.

Como um coletivo feminista, acreditamos que devemos encarar a violência contra a mulher como um ataque à integridade físi-ca e psicológica de mulheres. O assunto precisa ser encarado e debatido, e não silenciado. A violência contra as mulheres esta-belecida no interior de relações pessoais (familiares, amorosas e/ou de amizade) constitui parte importante da forma como o ma-chismo opera. Sabemos que o machismo é um problema social e histórico e não uma demência individual e, portanto, devemos parar de considerar homens machistas como simples “psicopa-tas”, “maníacos” ou “monstros anti-sociais”. Essa abordagem deixa de fora nossa análise principal de quem pode oprimir mulheres: homens como um grupo, que de fato também consti-tuem aqueles homens que nos são mais próximos, sejam namo-rados, maridos, pais, vizinhos, tios, amigos. Portanto, não que-remos transfigurar o homem. A agressão não é promovida por um monstro sem rosto. Ela é promovida por homens. Homens

com os quais, muitas das vezes, temos contato diário.

Ou seja, a pretensão é a de questionar o machismo nas relações pessoais e queremos com isso criticar a corrente ideia de que os agressores de mulheres são “os outros”, os abusadores com os quais nós mulheres não tivemos qualquer contato ao longo de nossa vida. Apesar de a violência empreendida por desconheci-dos também ser uma realidade, reconhecemos a necessidade de radicalizar nosso discurso, atentando para o que materialmen-te constitui a maior parte das agressões causadas às mulheres: aquilo que se processa no âmbito supostamente individual – algo que, na realidade, é inseparável de todo o acesso que os homens mantêm sobre nós. Assim acontece, por exemplo, em casos como os de estupro marital, assédio sofrido por mulheres em festas ou nas calouradas das universidades, abuso contra mulheres em estado de consciência alterado (alcoolizadas, por exemplo), chantagem emocional por parte de namorados ou amigos…Em todos esses casos (e muitos outros), a proximida-de pessoal pode ser usada como meio para atitudes machistas.

Queremos, com isso, dizer que a violência é em geral nor-malizada no interior dos relacionamentos com homens. Nós mulheres fomos ensinadas a estarmos acessíveis (se-xualmente, psicologicamente, etc.) aos homens e a aceitar-mos tal violência como parte normal dos relacionamentos que desenvolvemos. Para as mulheres, a violência é parte “normal” e constitutiva de nossas vidas cotidianas.

É nesse sentido que enxergamos a necessidade de nos organizar para combater a violência contra as mulheres. Primeiro, devemos enxergar que esses tipos de violência ocorrem, sim, dentro de nossas relações pessoais entre mulheres e homens. Evidenciar aquilo que constitui uma forma de violência como tal é importante para que possamos combater o machismo e lutar por um mundo mais livre.

sobre machismo nas relações pessoais

Coletivo Feminista Lélia Gonzales

participe do jornal!Envie artigos, traduções, contos, crônicas, poesia, manifestos, comentários; ajude na edição; colabore com a diagramação. A produção do jornal é aberta a todos os alunos da Filosofia, com discussões presenciais e online.

Page 9: O Discurso sem Método #5

universidade e política. 9

Já é de alguns anos a tentativa de alguns setores do movimento estudantil na USP de colocar a repressão no centro das discussões na universidade. A necessi-dade de tratar a questão apenas vem tornando-se mais candente com o crescimento da presença policial nos campi. Já em 2009 um célebre professor da casa come-çou a ver a necessidade de discutir o problema, segun-do ele, no momento em que estava dando aula e sentiu o cheiro do gás lacrimogênio. Desde então, a gestão Rodas trouxe-nos um convênio com a PM, processos judiciais com acusações de formação de quadrilha, sem falar nos processos internos e nas expulsões com base em decretos da ditadura.

Também externamente à universidade, a repressão a mo-vimentos políticos é crescente, vide a forte atuação da PM contra as manifestações de junho. Se é verdade que o mesmo governante controla a PM do estado e escolhe o reitor da USP, por outro lado é uma limitação relacionar os processos repressivos ao projeto de um partido polí-tico específico. Em julho houve ação policial em todo o Brasil, e sabe-se também que o governo federal não se furtou no último período a reprimir greves nas obras da copa e em Belo Monte.

A repressão a todo tipo de contestação à ordem estabele-cida é, então, generalizada, ao menos quando se esgotam as possibilidades de concessões e de controle de direções pelegas. O fato de a violência ser monopólio do Estado e, em última instância, da burguesia, dá a ela a possibilidade de controlar a insatisfação de diversos setores, calar-lhes a voz, mesmo em um regime que é considerado democráti-co. O crescimento de processos repressivos indica, então, uma cada vez maior impossibilidade de atender às reivin-dicações populares expressas pela luta. Mas não só.

A repressão atinge também os setores mais explorados da sociedade, sob a forma de violento controle social, antes mesmo de eles se organizarem, de forma preven-tiva, . Se o pinheirinho foi destruído por apresentar uma luta consciente contra a especulação imobiliária e pelo direito à moradia, os moradores da cracolân-dia foram expulsos violentamente porque sua própria existência atrapalhava a especulação. Se os líderes dos movimentos sociais são perseguidos por organizarem pessoas para reivindicar demandas sociais, Amarildo e Ricardo foram mortos apenas por existirem, por serem pobres e negros.

Uma luta contra a repressão deve ter em vista todos esses aspectos, não podendo nunca ser meramente estudantil, mas devendo articular os movimentos sociais, em parti-cular o movimento negro, e os trabalhadores. Estudantes processados da USP, Unesp e Unifesp participaram no dia 15 de agosto de um ato que buscava ter esse caráter. A par-tir daí, formou-se um comitê estadual contra a repressão, que tem próxima reunião no dia 12 de setembro, no insti-tuto de artes da Unesp, na Barra Funda.

Os setores majoritários do movimento estudantil da USP hoje discutem as eleições para reitor da USP, exigindo elei-ções diretas. Embora esteja claro que o questionamento à estrutura de poder seja importante para que haja algum espaço de debate sobre os rumos da universidade, para que se lute contra sua submissão à lógica do capital, essa pauta é incapaz de questionar as consequências dessa lógi-ca para amplas camadas da população. A discussão sobre a repressão, as funções da polícia (seja militar ou civil) e o poder jurídico ao mesmo tempo são e não são pautas estudantis – e por isso mesmo são tão importantes para o avanço da nossa luta.

atualidade da repressão

Mariana Luppi

inscreva-se no grupo de discussão por email: http://bit.ly/jornaldafilosofia

Ou envie um email para [email protected], com o assunto Jornal.

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e conheça nosso blog:http://discursosemmetodo.wordpress.com

Page 10: O Discurso sem Método #5

Ao mesmo tempo em que se reivindica a vinculação dos justos 10% do PIB para educação, surge uma preocupação: onde, como e no que serão investidos os tais 10%.

Desde 2010 circula no Congresso Nacional o texto do Plano Nacional de Educação (PNE), que teve como documento base a CONAE 2010 (Conferência Nacional de Educação). Após dois anos de discussões sobre de onde se tirariam esses 10% (do pe-tróleo, da exploração de recursos hídricos etc) e nada menos do que 3.000 propostas de emendas (um recorde!), o texto enfim foi aprovado e encaminhado para aprovação no Senado, que propôs ainda mais 80 emendas. Atualmente o texto se encontra na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania.

A mais interessante dentre as 3.080 propostas é a emen-da aprovada pelo Senado que retira da Meta 20 a palavra “pública”, deixando apenas “educação”.

Meta 20: ampliar o investimento público em educação pública de forma a atingir, no mínimo, o patamar de 7% (sete por cento) do Produto Interno Bruto - PIB do País no 5º (quinto) ano de vigência desta Lei e, no mínimo, o equi-valente a 10% (dez por cento) do PIB ao final do decênio.

Novo texto:

Meta 20: ampliar o investimento público em educação de forma a atingir, no mínimo, o patamar de 7% (sete por cento) do Produto Interno Bruto – PIB do País no quinto ano de vigência desta Lei e, no mínimo, o equivalente a 10% (dez por cento) do PIB ao final do decênio.

Essa sutil mudança permite que os recursos pú-blicos destinados à educação sejam investidos em instituições privadas que se encarregarão de educar/formar os cidadãos. Em outros termos, trata-se de terceirização da educação, isto é, a terceirização de um direito. Isso demonstra como o setor privado está muito bem represen-tado no poder legislativo.

Pode-se imaginar as consequências que um texto como esse, se aprovado, possa provo-

universidade e política. 10

sociedade, universidade e a tão

desprezada educaçãoMonica Marques

Permitir que o dinheiro destinado à educação seja repassado ao mercado significa submeter esse direito ao interesse do empresário

car. Isso significa, entre outras coisas, que os governos alcan-çarão suas “metas” sem que tenham de construir creches, escolas e universidades. Por outro lado, se tornarão submis-sos ao setor privado para desempenhar sua função, a saber, garantir educação a todos.

A maioria dessas universidades que serão bancadas pelo dinheiro público, no entanto, não estão compromissadas necessariamente com a qualidade, mas sobretudo com o lucro e com a produtivida-de que se mede pelo critério quantitativo – formar rápido, barato e de preferência à distância em troca de isenção de impostos e inves-timentos. Considerando a proliferação descomunal de faculdades privadas nos últimos anos no Brasil, com destaque especial a com-panhia Anhanguera/Kroton que está comprando compulsivamen-te pequenas faculdades e com isso tornou-se líder de setor e prin-cipalmente de EAD (Educação à distância), com direito a ações em alta na Bovespa, podemos ver como a mercantilização da educação tem se tornado cada vez mais interessante no Brasil.

É ainda interessante notar que os des-beneficiários da educação terceirizada serão os de baixa-renda. O ProUni, por exemplo, prevê o acesso de pessoas com renda familiar de até um salário mínimo e meio, enquanto a elite continua a ocupar as univer-sidades públicas e as mais renomadas. É visível a contradição, considerando a pretensão apresentada no próprio PNE de rea-lizar a igualdade entre seus cidadãos e as regiões do país.

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Permitir que o dinheiro destinado à educação seja repassado ao mercado da educação significa submeter o direito elemen-tar à educação de cada cidadão (como previsto na constitui-ção) ao interesse do empresário e à lei do mercado.

Embora medidas emergenciais para educação sejam impor-tantes, já que a construção de escolas e universidades públi-cas leva tempo, como medidas paliativas, devem ter prazo determinado e compromisso com a qualidade através de um acompanhamento – o que não vem acontecendo. Tampouco podem se tornar a principal forma de inclusão – o que vem acontecendo – pois o repasse substancial da verba para o se-tor privado comprometeria a construção e os investimentos na escola pública e em seus colaboradores.

Em vários momentos se colocou o desejo do movimento es-tudantil de se articular com a sociedade e ultrapassar a in-se-gurança dos muros do feudo Uspiano. Mas enquanto nossos maiores problemas forem apenas a eleição direta para reitor ou a presença da PM no campus, ainda que questões importantes, pela simples ausência de uma palavra, outros decidem o desti-no da educação no país nos próximos dez anos. É importante lembrar que vários dos problemas com que o movimento es-tudantil lida, como a segregação racial, as questões de gênero e a alienação são decorrência de uma educação básica precária e podem ser potencializados ou diminuídos pelo que fazem dela.

Aqui é preciso abrir um parêntese e pensar em quem é o movimento estudantil. Considerando que na maioria das universidades (que são as privadas) não tem nada pareci-do com isso, ele se restringe, e ainda precariamente, aos es-tudantes das universidades públicas que, por sua vez, são desarticulados. Por isso a importância de se abrir a outras faculdades. Isso também aponta, mais uma vez, para o peri-go de se investir o dinheiro público no ensino privado. Pelo fato de ser privado e encarado como um serviço prestado por uma empresa, e não um direito, a participação política é excluída dessas universidades (a exceção da PUC, que tem uma história política antiga) – ou você está satisfeito ou não está – se não está, procure outra universidade com melho-res serviços (isso se você tiver condições para tal). Não há sentido em reivindicar melhorias no ensino.

Assim, se existe realmente esse desejo é preciso se envolver diretamente com os problemas dessa sociedade, que também são os estudantes. Mas não apenas criticando o existente, mas de modo a compreender o funcionamento efetivo dos meca-nismos políticos, identificando onde é possível interferir. É preciso ultrapassar o grito “10% para educação” e discutir como e onde devem ser investidos esses 10%. Não adianta investir em educação se não se alterar o projeto pedagógico.

A apatia de nossa faculdade frente aos problemas políticos de pri-meira ordem é um reflexo da parceria USAID (United States Agen-cy for International Development) / MEC do período da ditadura, que com a Lei 5540 de 1968 implantou a reforma universitária na USP, substituindo as antigas cátedras pelos departamentos. A di-visão entre departamentos acabou por fragmentar o conhecimen-

to em unidades especializadas e isoladas em institutos. A isso se articulou implantação do sistema de créditos e currículo flexível que resultou na dispersão dos estudantes, na medida em que im-pede um vínculo mais sólido e duradouro entre os estudantes de um mesmo ano – o que facilitava a participação política estudan-til. Essa reforma visava transformar a universidade em uma pro-dutora de profissionais voltadas para o mercado, transformando o próprio modelo da universidade num modelo empresarial que busca a produtividade e a eficiência (caso que já foi apontado por nosso camarada de jornal Rafael Zambonelli em O cinismo do mo-vimento estudantil no nº0). Como já não interessa formar pessoas, a universidade é reduzida ao estudo das disciplinas específicas e cada um que se arranje para formar sua chamada “opinião”. Professores, alunos, pesquisadores (salvo exceções) encontram-se isolados, unidos excepcionalmente em conferências/debates que se dissolvem e esvanecem rapidamente. A educação é deixada para os especialistas em educação. A sociedade é deixada para os políticos especialistas. A história é esquecida.

A universidade já não proporciona uma experiência formadora que inicialmente se propunha. Interferir e criar estratégias de par-ticipação política é o desafio de nossa jovem-proto-democracia. Não existe uma esfera pública que nos receba e frequentemen-te estamos sujeitos ao sentimento de impotência. É certo que tal situação tem raízes profundas, mas é preciso tentar pensar um “por onde”, um “como” de dentro de uma sociedade de controle.

A educação se coloca como um aspecto crucial da política, já que é por ela que serão formados os sujeitos do futuro. Nós mesmos já somos espécies de vítimas de uma educação pre-cária, que nos ensinou apenas a resolver problemas propos-tos através de um método determinado e não a participar do problema. A universidade pública, criada pela e para a socie-dade, tem uma responsabilidade social, como aponta Franklin Leopoldo e Silva. Assim, ela, enquanto ainda lhe resta algu-ma autonomia, deve se voltar à sociedade e procurar soluções para seus problemas e não simplesmente oscilar entre atender a interesses mercadológicos e a improdutiva denúncia total do sistema. Isso impõe uma reflexão sobre o que seja a filosofia e qual o seu papel, assim como o da universidade.

Agradecimento às aulas da professora Sonia Kruppa (Facul-dade de Educação) que trouxeram as bases para esse texto.

Referências

Documento referência CONAE 2014 http://bit.ly/conae2014

Texto inicial do PNE saído do congresso http://bit.ly/PNEcongresso

Texto modificado pelo Senado http://bit.ly/PNEsenado

LEOPOLDO E SILVA, Franklin. Reflexões sobre o con-ceito e a função da universidade pública – In Revista Es-tudos avançados vol.15 no.42 São Paulo Mai/Aug. 2001 http://bit.ly/conceitoefuncao

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Como se compreende o estudante? — chegamos a essa per-gunta no primeiro texto desta série; a intenção era escla-recer se há características identitárias próprias ao estado de estudante; de que maneira se enxerga o aluno, como o enxerga o professor, como a sociedade o vê? Essas repre-sentações implicam o que nas práticas educacionais e po-líticas? Nossa primeira incursão se deu através do livro O Poder Jovem, de Arthur José Poerner, uma história da UNE, do qual extraímos a tensão velho versus jovem — que ser-viu como ferramenta para explorar qual seria a identidade do estudantado. Essa oposição no entanto tem uma histó-ria mais longa e não se restringe ao livro de Poerner. Nesta segunda parte, veremos como os mesmos dois elementos surgem em Mário de Andrade e Nelson Rodrigues.

Mário escreve, em 1932, na crônica “Estudantadas” (mani-festações de estudantes):

“As estudantadas não são fenômenos individuais, refletem antes uma verdade coletiva. O moço, quer nos exames, quer nos atos livres da mocidade, aspi-ra a uma aprovação. D’aí serem os atos dos moços muito mais sintomáticos duma coletividade que os atos dum velho. A experiência, vinda com a velhi-ce, nos liberta muito, não só dos próprios homens como da própria vida. A velhice é muito egoísta; e os egoístas são sempre seres envelhecidos. Ao passo que a mocidade, muito mais egocêntrica sem dúvi-da, tem essa generosidade de ceder muito de si, de refletir a verdade coletiva da grei, pra ser amada e aprovada por essa mesma grei. Nisso está a força genial da estudantada. (...)”

O estudante, a juventude, é como que portadora de uma intuição própria sobre o espírito do tempo, do qual a visão é obscura aos velhos. O que se torna ainda mais claro no trecho:

“(...) E afinal a estudantada avançou tanto no seu ritmo de aventura, que veio a dar em morte de es-tudante. É uma coisa desgraçada a gente imaginar nesses rapazes que morreram por estudantada. Pouco importa verificar se a causa que defendiam, e pela qual a sorte exigiu o sacrifício de alguns, era

legítima ou não. (...) Se a experiência me obriga a constatar que a mocidade tem sempre razão (...) Garantir e provar a legitimidade duma estudanta-da é o mesmo que cortar as asas dum pássaro para provar que é por causa delas que o pássaro voa. E temos que não cortar as asas dessa mocidade, por mais que ela nos contrarie e aflija.”

O egoísmo e a liberdade do velho (é curioso que “liberda-de” esteja deste lado do par, não?), a necessidade de apro-vação e o coletivismo do jovem do outro (também curioso, é este outro lado que mantém a tradição, que se esforça por ela, quando a anterior tende à desagregação). Mário brinda os estudantes com o tipo de confiança com que sempre servimos os artistas: ele deve estar certo, ele vê além do que eu vejo. Ele é algo que precisa ser interpretado.

Nelson será consideravelmente distinto. Em 1968, em “Da Linha Chinesa”, ele narra:

“Ainda ontem, fui procurado por um rapaz, estu-dante de teatro. Entrou na redação e vinha solene, ereto, hierático. Para na minha mesa. Diz, gravíssi-mo: — ‘Seu Nelson, trouxe isto aqui para o senhor ler’. (...) ‘Queria que o senhor lesse, o senhor que é contra o jovem’. Com tal afirmação, o rapaz criou entre nós o súbito e cavo abismo da primeira diver-gência. Dá-me um certo cansaço, um certo tédio, ouvir que sou contra o jovem. Repeti para o rapaz a casta e singela verdade: — não sou contra ou a favor de ninguém, automaticamente. Expliquei que a mais tola das virtudes é a idade. Que significa ter quinze, dezessete, dezoito ou vinte anos? Há pu-lhas, há imbecis, há santos, há gênios de todas as idades. Naturalmente, o jovem tem o defeito salu-bérrimo e simpaticíssimo da imaturidade.”

Esse trecho, apesar da aparência, serve mais para que o autor ataque a concepção que vimos em Mário, de que “juventude” possui, por ser o que é, qualidades especiais e inacessíveis. O cronista dá a impressão de um igualita-rismo de condições, e na sequência até mesmo respeita em Rimbaud a genialidade possível no jovem. Porém, ao fim:

“Fez-se uma pausa. E, então, catei na mesa a en-

rascunho de uma ontologia do estudante

(2)Duanne Ribeiro

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trevista da minha amiga Cacilda Becker. (...) Co-meço a ler e paro nesta frase: — “O mundo é dos jovens”. A gloriosa atriz dá o mundo, de graça, de mão beijada. O sujeito tem dezessete, dezoito, vinte. Pronto. Toma o mundo. Mas vejam como, numa simples frase, está todo um crime, ou seja, o crime de dar razão a quem não a tem. O mundo só pode ser dos que têm razão. Mas a razão é todo um mara-vilhoso esforço, toda uma di-lacerada paciência, toda uma santidade conquistada, toda uma desesperada lucidez.”

No longo caminho da maturidade do pensamento, o jovem não saiu ainda das primícias. Veja a série de termos elencados: esforço, pa-ciência, conquista — trata-se de um processo difícil, e é só depois dele que alguém poderá se arrogar a “razão”, que, aqui, inclui o direito a decidir da forma de ser do mun-do. Podemos dizer ainda mais — contanto que me permitam dois saltos interpretativos com toda imprecisão que possam ter. A fra-se “a razão é toda uma dilacerada paciência” parece ecoar uma frase de Buffon: “O gênio é apenas uma longa paciência”. Gênio, por sua vez, segundo Marilena Chauí, de-signava, em Goethe, o caráter de um grupo social, antes que o ro-mantismo o substituísse por “es-pírito de um povo”. Aceitas essas genealogias apressadas, é como se Nelson negasse a clarividência estudantil; é mais provavelmente o velho quem está em posição de avaliar qual seja o zeitgeist.

O Velho e o Moço

Há uma semelhança entre as posi-ções apresentadas: ambas abordam o tema sob o impacto de manifes-tações da juventude. Mário, na re-nascença de protestos de que ele se sentia saudoso. Nelson, fren-te a 1968 e tudo o que isso significa. Será uma constan-te? Dei uma pausa no artigo e chequei no Acervo Folha o que

havia sido dito sobre os caras-pintadas. Muita euforia, e Otto Lara Resende, em “Brava Gente”, registrou: “Lú-dicos e lúcidos, as caras pintadas, essa festa de garotos

diz sim de ponta a ponta. (...) Me-ninos e meninas levam pela rua, mais que a esperança, a honra de um povo de cidadãos”. Serginho Groisman, em “Alquimistas desa-fiam o coro dos contentes”, ressal-va: “Nada de achar que baixou o espírito da profunda consciência política, e que todos os jovens es-tão na mais pura militância. Mas esse re-recomeço mostra que, se os canais foram abertos, (...) mais jo-vens estarão perto de uma prática política”.

Será uma constante? Se for, pode-remos encontrar expressões desses gêneros na atualidade — eis que estão dadas as condições, os gran-des protestos. Das ações do Mo-vimento Passe Livre às caras-pin-tadas contemporâneos e kitsch que as sucederam; da Mídia Ninja, do Fora do Eixo; disso tudo e de nós mesmos cotidianamente, o que di-zemos? Existe em nós, vemos nos outros um certo frescor, liberdade de criar coisa nova? Há pouco em nós e nos outros, e é através do trabalho e do estudo que acessare-mos a cidadania plena? Ou os dois ao mesmo tempo?

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Referências:

Mário de Andrade, Taxi e Crônicas no Diário Nacional

Nelson Rodrigues, Cabra Vadia

Otto Lara Resende:

http://bit.ly/folhaotto

Serginho Groisman:

http://bit.ly/folhagroisman

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Leia o primeiro texto da série:

http://issuu.com/caf_usp/docs/discurso5_final/12

Existe em nós, vemos nos outros, liberdade de criar coisa nova? Há pouco em nós e nos outros, e é através do trabalho e do estudo que acessaremos a cidadania plena?

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“Pondo-se e repondo-se, desde 1964, como politiciza-dora da totalidade, a oposição no Brasil tem colhido

sua subsunção, voluntária ou involuntária, ao diapasão das perspectivas governistas”

J. Chasin

O vislumbre quase alucinatório de um ressurgimen-to de processos de luta popular durante o que aca-bou ficando conhecido como “jornadas de junho”

- iniciadas com as revindicações por revogação do aumento da tarifa dos transportes públicos - colo-cou diante da esquerda a clara necessidade de reto-mar o velho debate a respeito dos instrumentos de luta e organização.

Movimentos massivos tendem a ter esse efeito: por um lado reacendem nossas esperanças e confirmam nossas avaliações de que a crise estrutural que aco-mete esta sociedade produz uma profunda insatisfa-ção no povo, e que os mais afetados pelas condições

desumanas e desumanizantes da vida sob o capitalismo não se cala-rão diante delas por muito tempo. Por outro, via de regra, colocam em xeque as preconcepções estratégi-cas e táticas da esquerda, trazem à cena do enfrentamento político novas direções e setores impre-visíveis e inexperientes da juven-tude e/ou da classe trabalhadora, tirando-nos do estado frustrante porém confortável do movimento em períodos de calmaria, em que não precisávamos questionar o sentido, a necessidade e o caráter de nossas organizações e métodos de luta e formação de consciência.

O rechaço às formas tradicionais - partido, sindicato - ficou explícito de várias maneiras, de modo bran-do e mais indireto no início, e mais direto e agressivo depois. Os méto-dos de luta convencionais que es-tas organizações adotariam em mo-mentos como este foram claramente suplantados por outros surgidos muito mais da espontaneidade das

massas e da proeminência de “direções” e influências atí-picas no movimento, como o MPL, grupos anarquistas e setores que adotam táticas

pensar a organização: lições de junho

João Pedro Bueno e Mariana Luppi

Entender o que pode estar errado e o que precisa mudar para que possamos repor o sentido fundamental dos movimentos sociais, sin-dicatos e partidos e sua centralidade no movimento de massas - se é

que isso ainda é possível ou mesmo desejável

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coletivas radicalizadas sem buscar se inserir em qual-quer organização de caráter político - como a tática de black block, tão polêmica ultimamente na grande mídia, mas que já aparecia desde os primeiros atos contra o aumento. Por fim, as tais massas - ou parte delas - se viraram num dado momento contra todos nós, e mostraram sua face ideológica, por vezes aber-tamente reacionária, tornando patente que, se a rela-ção de forças entre nós e os detentores do poder mu-dou substancialmente com o fato do “povo na rua”, o processo de consciência está muito aquém do que gostaríamos para se expressar num projeto autêntico de transformação da sociedade. Precisamos sim, en-tão, questionar e analisar os meios, os instrumentos, para entender o que se passa, o que pode estar errado e o que precisa mudar para que possamos repor a im-portância e o sentido fundamentais dos movimentos sociais, sindicatos e partidos e sua centralidade no movimento de massas - se é que isso ainda é possí-vel ou mesmo desejável (há quem diga que as formas tradicionais estão superadas...). Não queremos aqui apresentar respostas definitivas; apenas gostaríamos de contribuir com esta análise, e sugerir algumas questões.

Vejamos, pois, as diferenças e rela-ções entre os três tipos de organiza-ção (movimentos sociais, sindicatos e partidos):

- Os movimentos sociais buscam em primeiro plano o aprofundamento de pautas específicas. No caso do MPL – protagonista nos últimos processos-, a pauta privilegiada são os transportes, mas temos importantes movimentos que fazem outras reivindica-ções, de forma parcializada, como o MST, o MTST, além mesmo do movimento negro, feminista e LGBTT, com suas especificidades e diferenças pontuais. A estrutura dessas organizações é adequada a suas necessidades: é horizontal, ou seja, prescinde de líderes, o que permite maior democracia interna e formulação de pautas es-pecíficas nos locais autônomos. A sua autonomia em relação à institucionalidade, por princípio, contribui para a possibilidade desse tipo de estrutura, em que não se estabelecem hierarquias rígidas e centralizadas entre os membros.

- Já as tarefas dos sindicatos são outras, o que se re-flete em sua forma de organização. Neles, a unidade entre seus membros baseia-se diretamente na explo-ração do trabalho, no conflito econômico. O sindicato está sempre em busca de negociar com o patrão (e, em alguns casos, com o governo) as melhores condições de trabalho para sua categoria – ou seja, vai tratar de reajustes, combater demissões, negociar planos de carreira, discutir reestruturações. Esta é sua impor-

tância: servir como instrumento de luta e organização da classe trabalhadora a partir de suas necessidades imediatas. Mas em termos de estrutura, nesse caso, faz-se necessária em geral uma relação de represen-tação, por meio de uma diretoria, eleita em urnas e/ou assembleias periodicamente (salvo raras exceções localizadas de lutas sindicais autogestionárias, cuja generalização só é possível, como vem demonstrando a história, em situações diretamente revolucionárias, na passagem da forma sindicato às formas de comitês de fábrica e conselhos operários).

- Se os movimentos sociais, então, tratam de pautas es-pecíficas em geral relacionadas a formas de opressão e controle social, e os sindicatos atentam à exploração econômica de categorias específicas, a esfera de atuação estritamente política aparece como responsabilidade dos partidos. Essas organizações buscam relacionar-se com o poder político estabelecido, seja disputando-o, seja buscando (de forma mais ou menos radical) sua

transformação. Reconduzem, assim, tanto os problemas especificamente econômicos quanto as pautas especí-ficas sociais à politicidade, ao caráter geral do poder político. Ora, sendo esse poder político, embora sob apa-rência de certa fragmentação, bas-tante centralizado, i.e., voltado para os interesses da classe dominante, é compreensível que uma resposta que vise atingi-lo deva apresentar atua-ção centralizada nos diversos locais do país, objetivos comuns claramente definidos e um programa geral para a ação – o que leva, necessariamente,

a uma estrutura organizativa mais hierarquizada, com mais instâncias de decisão.

Nenhuma dessas esferas, porém, existe isolada, e a re-lação entre elas é fundamental para uma intervenção coerente na realidade. Mesmo tratando de pautas espe-cíficas, os movimentos sociais demonstram capacidade de atuar em conjunto em algumas lutas – as jornadas de junho o demonstraram. Os sindicatos também de-monstraram sua solidariedade aos movimentos e orga-nizaram no dia 11 de julho uma paralisação nacional, unindo suas reivindicações com questionamentos dos movimentos sociais. Os partidos políticos (ou alguns deles) também estiveram presentes na mobilização dos últimos meses. Eles foram importantes (nesse e em ou-tros momentos) para estabelecer essa ligação entre os sindicatos e os movimentos sociais e para generalizar a luta estabelecida - inclusive tendo mais facilidade na atuação nacional unitária.

Apesar de suas potencialidades e de um claro cará-ter complementar, essa interação entre as esferas não ocorre, no entanto, de forma pacífica. As mobilizações

Está claro que há uma re-sistência, ideologicamente construída, à esfera espe-

cificamente política. Trata-se de uma noção que afasta a

população do questionamen-to ao poder, que vê na políti-ca apenas a administração tecnocrática e não o campo

em disputa do controle sobre todos os aspectos do social

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de junho, como já apontamos, também apresentaram tensos momentos de oposição e rechaço aos partidos políticos, enquanto os movimentos sociais apareciam como forma organizativa mais adequada para o pro-cesso de luta estabelecido.

Por um lado está claro que há uma resistência, ideo-logicamente construída, à esfera especificamente po-lítica. Trata-se de uma noção que afasta a população do questionamento ao poder, que vê na política ape-nas a administração tecnocrática e não o campo em disputa do controle sobre todos os aspectos da vida social. Vê-se, assim, todos os partidos como meros conjuntos de indivíduos interessados em garantir seus próprios cargos, não projetos baseados em inte-resses de classe. A política aparece como unidimen-sional, não contraditória, não apresentando perspec-tivas de superação da ordem que a engendra como ela é hoje.

É fato, por outro lado, que a recondução à politicidade dos partidos (mesmo os de esquerda) muitas vezes ocorre como recondução à institucionalidade, e é bas-tante pertinente que os processos de intervenção dire-ta na realidade (nos atos e assembleias populares que se espalharam pelo Brasil) pareçam incoerentes com a forma de representação indireta e alienante típica des-sa esfera. Parte do rechaço aos partidos certamente se fundamenta nisso. Nesse sentido, também os sindica-tos tiveram dificuldade de se inserir no processo de luta direta, tendo conseguido, no entanto, realizar uma paralisação nacional a partir das centrais, com caráter já diferente das principais manifestações do país.

Mas parece que outro processo – a burocratização - também fortalece a resistência aos partidos e torna sua relação com os movimentos sociais e os sindica-tos pouco orgânica. Que se queira ressaltar o caráter político das pautas específicas e estabelecer pontes para o questionamento mais geral do poder e da or-dem socioeconômica é compreensível e necessário. Muito da atuação dos partidos, no entanto, se baseia na transposição de uma atuação centralizada para ins-tâncias em que ela não faz sentido. Baseia-se, assim, na imposição de pautas ou propostas, com incapacidade de compreensão das dinâmicas estabelecidas nos dife-rentes espaços de atuação. Em outras palavras, mesmo os partidos que visam questionar o poder estabeleci-do são muitas vezes incapazes de atuar democratica-mente para a construção de movimentos, preferindo em geral construir a si mesmos como organização, por meio de operações propagandísticas de disputa de posição espetacular nas mobilizações, reflexo do vício de disputa de direções e aparelhos tão caro à atuação

sindical e eleitoral desses partidos.

Por fim, cabe também atentar para o perigo de ideali-zação dos movimentos sociais. Processos de organiza-ção horizontal apresentam uma série de dificuldades, inclusive para preservar esse caráter. Fazer apologia a essa forma de organização sem reconhecer essas dificuldades é problemático. Os movimentos sociais sofrem pressões para aderir à institucionalidade, e quanto mais o fazem, mais se tornam pólos de repre-sentação, burocratizados e corrompidos também pela mesma lógica – pensemos no tipo de negociação polí-tica que o MST vem fazendo desde a chegada do PT ao poder, e os efeitos desastrosos de desmobilização e re-trocesso na consciência que a dependência do governo e de um partido produziram nas suas bases militante e social. A ausência de líderes também não é de forma alguma absoluta, apenas esse tipo de liderança se ma-nifesta de forma diferente que em um partido, às vezes até mais perniciosa, por estar camuflada na ideologia do horizontalismo e autonomia. De qualquer forma, a relação entre os militantes organizados e as massas não é de forma nenhuma resolvida pela horizontalida-de (ou não) das formas organizativas.

Procurar estabelecer uma oposição entre os três tipos de organização é, assim, inócuo. Com todas as pos-síveis críticas, os partidos têm um sentido em sua atuação que não pode ser substituído por sindicatos ou movimentos sociais. Esses últimos também não devem ser idealizados, uma vez que suas próprias determinações organizativas tornam-nos suscetíveis a todo tipo de influências, ainda mais quando não há para eles a baliza (que não deveria ser o contro-le) de programas políticos mais gerais, fornecidos por organizações partidárias. Por outro lado, as tendências à burocratização e/ou institucionalização são generalizadas, atingem aos três níveis de diferentes maneiras, mas têm raízes sociais mais profundas numa crise de longa data das direções do movimento de massas em geral, só reforçada pelos processos de fragmentação social e cultural instau-rados pelas reestruturações produtivas por que vem passando o capitalismo, especialmente nos últimos 50 anos. A esquerda precisa saber dar respostas a es-ses movimentos críticos que ressurgiram e, para isso, precisa se submeter a uma depuração auto-crítica permanente de suas práticas e mecanismos de auto--justificação teórica. Deixemos de lado oportunismos, formalismos e dogmatismos: precisamos ter a capa-cidade de nos reinventar nos próprios movimentos de enfrentamento, aprender com eles mais do querer dominá-los e instruí-los.

A esquerda precisa saber dar respostas a esses movimentos críticos que ressurgiram e, para isso, precisa se submeter a uma depuração auto-crítica permanente de suas práticas e mecanis-

mos de autojustificação teórica. Deixemos de lado oportunismos, formalismos e dogmatismos

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sociedade. 17

O escritor franco-argelino Albert Camus é conhecido por um livro chamado O Estrangeiro, lançado em 1942 e trans-formado em um sucesso nos círculos de intelectuais em Paris. No entanto, além de escritor, Camus tem um lado menos popular, mas igualmente importante em sua traje-tória: foi editorialista de jornal clandestino da Resistência Francesa, escrevendo textos de esquerda.

Em seus manuscritos, evoca duas palavras que nossa im-prensa contemporânea vive esquecendo, deliberadamen-te: engajamento e inteligência.

Camus escreveu em dois jornais na França, quando deixou sua pátria-mãe, a Argélia. Foi redator-chefe do Combat, entre 1944 e 1947, redigindo textos que descreveram o so-frimento de Paris diante da República de Vichy, um go-

verno que se curvou aos anseios de Adolf Hitler e colocou franceses contra franceses. O papel de Albert Camus era fornecer um panorama das notícias do front da Resistência e encorajar a França com engajamento formado contra os invasores da Alemanha. E essa iniciativa de assumir uma posição política clara casou com os ideais do socialismo e do comunismo da época.

A verdade é que Camus não seria o jornalista de esquerda que foi se não tivesse sido acolhido e divulgado por Jean--Paul Sartre, o filósofo existencialista que o colocou no cir-cuito intelectual francês.

O segundo jornal em que ele escreveu, como editorialista, foi o L’Express, entre 1955 e 1956, tempo de ascensão do Le Monde. Neste período, sua carreira estava completamente

jornalismo intelectual e engajado

Pedro Zambarda

“Pode ser necessária uma centena de matérias de jornal para fundamentar uma única ideia clara-mente. Mas essa ideia pode esclarecer outras, provida da mesma objetividade que foi feita na sua

formulação, empregada na investigação de suas implicações“

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sociedade. 18transformada: ele tinha rompido com Sartre após a publica-ção de O Homem Revoltado, um livro que critica alguns pres-supostos do comunismo e os compara com um “messianis-mo cristão”. Albert Camus também estava pressionado a tomar uma decisão quanto às batalhas em sua terra natal, a subdesenvolvida Argélia, mas decidiu por manter uma posição pacifista, sem apoiar atos de revolta. Foi marcado, até sua morte num acidente de carro em 1960, como um pensador oposto à Jean-Paul Sartre, que decidiu apoiar as revoluções e as guerrilhas de esquerda ao redor do mundo.

Por essas histórias, que s vezes não são tão bem divulgadas, Al-bert Camus no jornalismo é um assunto que merece destaque e um estudo maior de quem se interessa ou está na mídia. O pró-prio Camus, em seus editoriais, também fez reflexões preciosas sobre a função do repórter e do homem de imprensa.

“Jornalismo não é reconhecido como escola de perfeição. Pode ser necessária uma centena de matérias de jornal para fundamentar uma única ideia claramente. Mas essa ideia pode esclarecer outras, provida da mesma objetividade que foi feita na sua formulação, empregada na investiga-ção de suas implicações», disse Camus, em um editorial de Combat. Muitos de seus textos estão reunidos em uma edição organizada pela francesa Jacqueline Levi-Valensi. Há uma tradução, do francês para o inglês, organizada por Arthur Goldhammer pela Pricetown University.

Em outro trecho, Albert Camus fala especificamente sobre engajamento no jornalismo, que era próprio na Segun-da Guerra Mundial e tinha menos interesses puramente econômicos: “Jornalismo clandestino é honrável porque é uma prova de independência, porque envolve um risco. É bom, é saudável, tudo o que tem a ver com os atuais even-tos políticos tem se tornado perigoso. Se há algo que nós não queremos ver novamente, é a proteção da impunidade por trás de quem com um comportamento tão covarde e com muitas maquinações que uma vez tiveram refúgio”.

Com esses dois trechos, é possível ver que Camus enxergava uma inteligência no jornalismo, mesmo que ele se construa aos poucos, e muitas vezes repleto de imperfeições em vários artigos e reportagens. E não é à toa que o escritor pied-noir en-xerga a imprensa desta maneira, porque os jornais franceses cresceram promovendo intelectuais como Honoré Balzac e André Gide. É muito diferente do jornalismo profissionaliza-do e hard news dos Estados Unidos, onde as figuras de Tom Wolfe e Gay Talese provocaram uma transformação por ape-nas inserirem alguns elementos literários no texto.

Hoje, a imprensa de Camus não existe mais, principalmen-te com a massificação da cópia do modelo americano em grandes veículos. Resiste apenas em alguns repórteres e ar-ticulistas com senso crítico forte e uma grande coerência de textos e ideias. Um blogueiro da agência Reuters, chamado Jack Shafer, acredita que parte da imprensa ideal para Al-bert Camus, com análises em tempo real, existe principal-mente na internet, em sites que comentam notícias.

O jornalista e editor brasileiro Cláudio Abramo, que trabalha-va em O Estado de S.Paulo, teve a chance de entrevistar Albert Camus em agosto de 1949. A conversa, em uma coletiva de imprensa, tratou tanto sobre a carreira literária do escritor quanto sobre a política. Camus não estabeleceria esta ponte entre assuntos se não tivesse sido jornalista. E o intelectual fez uma análise interessante sobre seu desempenho como crítica de imprensa: “Não julgo nada desesperado, nem mesmo o terrorismo. A propaganda, as ideologias tornaram abstratas as relações humanas. Cabe-nos individualmente torná-las nova-mente concretas”, disse Camus no texto de Abramo.

Devemos então ter esperança com o jornalismo online? Não sabemos, mas com as recentes crises de demissões na grande imprensa, não custa resgatar valores importantes que os jornais não se recordam direito, ou utilizam de ma-neira indevida: engajamento e inteligência.

“A propaganda, as ideologias tornaram abstra-tas as relações humanas. Cabe-nos torná-las

novamente concretas”

Pedro Zambarda estuda Camus desde 2006.

Leia sua iniciação científica “Jornalismo Francês e Albert Camus”: http://bit.ly/zambardacamus1

E assista à sua palestra sobre Camus e o jornalismo, evento de divulgação deste Discurso sem Método:http://bit.ly/zambardacamus2

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sociedade. 19

Para a arte revolucionária, não há indiferença em questão de cinema: o filme sempre tem um moti-vo, pode ser a perpetuação da ordem vigente ou a transformação social; neste caso, qualquer tentativa de neutralidade ideológica é conservadora. No en-tanto, a velha dicotomia direita versus esquerda, no capitalismo tardio, ganha novos elementos e tem au-mentado a sua complexidade. O lucro ultrapassou qualquer limite ético. É o fim do dogmatismo moral. É tempo de pós-ideologia.

Para exemplificar a questão da pós-ideologia, tomarei como exemplo dois filmes brasileiros recentes: Batismo de Sangue (Helvécio Ratton, 2007) e O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias (Cao Hamburger, 2006). O primei-ro relata a história real de Frei Tito Alencar (Caio Blat), estudante de filosofia na Universidade de São Paulo e religioso ligado à Teologia da Libertação, doutrina for-mada por membros da Igreja Católica que visava unir cristianismo e comunismo, indo de encontro aos inte-resses econômicos dos regimes ditatoriais capitalistas na América Latina dos anos 60 e 70. Frei Tito foi tortu-rado pelos agentes do Estado brasileiro, e suicidou-se na França por decorrência da tortura física e psicológi-ca. O segundo filme relata a história de um jovem garo-to apaixonado por futebol, Mauro, que é deixado com

o avô enquanto os pais têm de se exilar do Regime por serem partidários de esquerda; o avô de Mauro morre, e ele fica aos cuidados da comunidade judaica do bair-ro do Bom Retiro, em São Paulo, de onde acompanha fanaticamente pela televisão os desdobramentos da Copa do Mundo de 1970.

Percebe-se o teor sociopolítico destes dois filmes, como retratos da restrição de liberdade política im-plantada pelo Regime Militar no Brasil, com tortura, desaparecimentos e assassinato de militantes de es-querda. São filmes que acusam os horrores da Dita-dura e resgatam a memória de figuras de resistência, reais em um e fictícias em outro. No entanto, há um outro elemento que está presente nas duas realizações (além de Caio Blat no papel de universitário revolu-cionário): o envolvimento da Globo Filmes no proces-so de produção.

As Organizações Globo estão entre os maiores conglo-merados midiáticos do mundo. A Globo envolve canais de TV aberta e a cabo, estações de rádio, um jornal es-crito, uma gravadora famosa, uma editora de grande circulação e uma companhia de produção e divulga-ção de produções audiovisuais, a Globo Filmes. As Or-ganizações Globo, por meio de seu fundador Roberto

Pós-ideologia e cinema

Alberto Sartorelli

Globo Filmes: provinda de uma raiz politicamente conservadora, hoje produz e veicula filmes como Batismo de Sangue e O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias,

críticas ao regime que ela própria apoiou

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sociedade. 20Marinho e sua linhagem, utilizaram a mídia para criar um império econômico, político e ideológico. A Rede Globo de Televisão, terceira maior rede de TV do mun-do, foi criada em 1965, coincidentemente um ano após o Golpe Militar. Roberto Marinho escreveu, em 1984 no editorial de seu jornal O Globo (primeiro grande empreendimento dos Marinho, que data de 1925), as seguintes palavras:

“Participamos da Revolução de 1964, identifica-dos com os anseios nacionais de preservação das instituições democráticas, ameaçadas pela radi-calização ideológica, greves, desordem social e corrupção generalizada. Quando a nossa reda-ção foi invadida por tropas anti-revolucionárias, mantivemo-nos firmes em nossa posição. Prosse-guimos apoiando o movimento vitorioso desde os primeiros momentos de correção de rumos até o atual processo de abertura, que se deverá consolidar com a posse do novo presidente.” – Roberto Marinho, jornal O Globo, edição n° 1.596, 7 de outubro de 1984.

O que Marinho chama aqui de “Revolução” é o Golpe Militar, patrocinado pelos Estados Unidos - os paladi-nos da democracia e dos direitos humanos - que depôs o presidente João Goulart e instaurou a Ditadura no país. “Anti-revolucionários” são os comunistas. Vê-se que, mesmo com os movimentos pela democratização do país, Marinho presta reverência aos militares que o ajudaram a chegar ao topo; afinal, ditadura ou de-mocracia, o senhor Roberto Marinho detinha o mono-pólio da informação num país subdesenvolvido e de população preponderantemente pobre e alienada pelo trabalho e pela mídia, como era o Brasil nos anos 80. Ele realmente não tinha o que temer.

Portanto, sabemos que, no auge da ditadura até a época do editorial, as Organizações Globo susten-tavam uma posição moralmente conservadora, inci-tando a população contra a ameaça do comunismo, defendendo os valores da família, da propriedade e da prosperidade, e ditando moda e bons costumes a partir de suas novelas. No entanto, de lá para cá, algumas coisas aconteceram. A União Soviética caiu e, junto dela, a referência concreta de organização socialista. O capitalismo - e os economistas que me perdoem pela grosseria - entrou na fase globaliza-da ou tardia, na qual a lógica do capital penetra em todas as localidades geográficas do planeta, impul-sionada pela economia, política e cultura expansio-nistas, unidas em busca do lucro máximo. Se os eu-ropeus vieram trazer a civilização para a América, os capitalistas atuais levam o avanço econômico para as comunidades tribais da Polinésia.

Uma das características do capitalismo globalizado ou tardio é a dissolução de qualquer valor secular. A única

A mídia, o mercado, a propaganda deixam de ser apenas conservadores. É o lucro acima de

tudo. E onde há resistência?

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sociedade. 21moral é o lucro. Tudo deve ser mercadoria e vendida pelo maior preço possível, não importa se ferir valores que o indivíduo burguês sustentava antes. Vemos esse processo de modo ímpar na análise da Globo Filmes: provinda de uma raiz politicamente conservadora, hoje produz e veicula filmes como Batismo de Sangue e O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias, críticas ao regime que ela própria apoiou.

Adorno e Horkheimer, com a obra Dialética do Escla-recimento nos anos 40, já diziam que a Indústria Cul-tural se caracteriza por ser gestora da própria crítica e lucrar com a crítica de si mesma, assimilando qual-quer produção artística passível de alto valor de ven-da. A mesma empresa produz, veicula, avalia e vende a obra. Já nos anos 40, Adorno e Horkheimer previam a dissolução da moral em questão de veiculação de arte, afinal, há um público que se interessa por obras de crítica social (e paga por elas). A Globo Filmes é a representação perfeita da Indústria Cultural no Bra-sil. Seus filmes quase sempre conseguem fomentos governamentais por meio de editais, limitando muito a veiculação do cinema independente para o grande público e criando um monopólio quase incombatível. Kleber Mendonça Filho, diretor do filme Som ao Re-dor, declarou sobre a Globo Filmes: “Minha tese é a seguinte: se meu vizinho lançar o vídeo do churrasco dele no esquema da Globo Filmes, ele fará 200 mil espectadores no primeiro final de semana.” Ou seja, mais vale a capacidade do meio que veicula a obra em atingir o público, e sua alta rentabilidade, do que o conteúdo mesmo da obra.

A mídia, o mercado, a propaganda deixam de ser apenas conservadores. Hoje há até o estilo de publi-cidade “heroína-chic”, que estetiza o uso de drogas ilícitas com modelos maquiadas e com tipo físico de usuárias, criando uma poética do consumo de entor-pecentes. É o lucro acima de tudo. E onde há resis-tência? Essa tensão entre dogmatismo conservador e lucro máximo se dá de modo exemplar no filme The Godfather (Francis Ford Coppola, 1972). Don Corleo-ne (Marlon Brando) recusa-se a oferecer proteção a uma outra família da máfia envolvida no tráfico de heroína; os Corleone tinham envolvimento apenas com cassinos e prostituição, as drogas eram abomi-nadas pela família católica italiana. Essa resistência ao tráfico de drogas gerou uma verdadeira guerra entre as famílias mafiosas. A postura eticamente con-servadora dos Corleone impedia o rápido aumento do lucro, tanto da própria família quanto das outras máfias que dependiam da proteção deles. Era a mo-ral secular como empecilho ao lucro máximo. O pro-cesso de dissolução da moral conservadora em prol do máximo lucro possível, esboçado em The Godfa-ther, se aprofundou após a queda da URSS.

A Globo não é mais moralmente conservadora. A Globo

se adequa às transformações do capitalismo. Diferente do público homogêneo dos anos 80, hoje a Globo pro-duz para um público heterogêneo, e procura agradar a todos os gostos. Não só a Globo, qualquer empresa, qualquer burguês. O fetichismo da mercadoria substi-tui tendencialmente a idolatria religiosa. O dogmatis-mo moral conservador dá lugar ao vigor pelo lucro. É o desencantamento do mundo, diagnosticado por Weber em seu estágio mais avançado. As afecções cada vez mais dão espaço ao cálculo. O burguês não tem mais tempo a perder indo a missas ou vigiando a vida amo-rosa de sua filha mais nova.

Podemos chamar as sociedades capitalistas desenvol-vidas no século XXI de pós-ideológicas. As multina-cionais, por meio da publicidade, não precisam mais fortalecer uma moral em detrimento de outra através de ideologia (falsidade travestida de verdade); sim-plesmente vendem para todos os públicos. É a supera-ção da ideologia.

A busca pela verdade e pela memória de determinado período histórico tem como valor o desvelamento das estruturas daquele período para que elas sejam iden-tificadas e combatidas hoje em dia. “Batismo de San-gue” e “O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias” são obras importantes para a compreensão do período da Ditadura Militar no Brasil. No entanto, quem ganha dinheiro com elas é a Globo Filmes, empresa cujo fun-dador apoiou e se beneficiou do Golpe Militar. Hoje em dia, não importa. Se ser pós-moderno é poder ser tudo e por isso não ter identidade, ser pós-ideológico também é poder ser tudo e não ser nada. O capitalis-mo, de conservador se tornou multifacetado. Na era dos prefixos de posterioridade, o único “pós” que ain-da não surgiu foi o “pós-lucro”.

Importantes:

Editorial d’O Globo de 1984

http://bit.ly/principiosglobo1984

Discussão entre Kleber Mendonça Filho e um executivo da Globo Filmes

http://bit.ly/kleberversusexecutivo

Caio Blat, ator que participa dos dois filmes citados, anali-sa a lógica operante da Globo Filmes

http://bit.ly/caioanalisaglobo

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resenha. 22

Straw Dogs (2002)

The Silence of Animals (2013)

A filosofia contemporânea escrita em língua inglesa não tem grande popularidade em solos brasileiros. Enquan-to esse cenário permanecer assim, John N. Gray seguirá conhecido apenas por sua crítica virulenta ao filósofo popstar esloveno Slavoj Žižek, As Visões Violentas de Žižek, traduzido e publicado no número 71 revista Piauí (http://bit.ly/zizekpiaui). Talvez, também, por aqueles que o confundem com seu homônimo: o autor do best--seller Homens são de Marte, Mulheres são de Vênus. Ape-sar disso, até data recente esse anonimato não lhe era exclusivo nos trópicos. A despeito de uma sólida carrei-ra acadêmica – o filósofo se aposentou como professor emérito da conceituada London School of Economics – e dos comentários iluminadores sobre pensadores de ex-tração liberal, de Mill à Berlin, a obra de Gray parecia ser restritiva o bastante para circular apenas nos corre-dores universitários. Suas incursões em terrenos mais amplos pareciam não se conformar ao sucesso. Seu False Dawn: The Delusions of Global Capitalism, publicado em 1998, onde Gray jogava com a ideia de uma crise econô-mica, partindo da atual conjuntura do mercado finan-ceiro, recebeu 99 resenhas negativas, num universo de uma centena. Evidentemente, em 2008, a obra ganhou olhares mais benévolos, e o telefone de Gray voltou a tocar. O filósofo ganhava alguma notoriedade como vi-sionário: a crise financeira se somava a outras previsões, como a derrocada da União Soviética e a emergência da Al-Qaeda. Mas foi antes disso, em 2002, que sua situa-ção de intelectual desconhecido sofreu uma mudan-ça radical e o filósofo subiu aos palanques do debate público. Nesse ano, Gray publicou Straw Dogs (Granta Books ou Cachorros de Palha, Editora Record), livro que figurou nas listas de melhores do ano em um número razoável de periódicos, ao mesmo tempo que atraiu crí-ticas mordazes em uma proporção também razoável.

Se o nome soava enigmático, o subtítulo, Reflexões Sobre Humanos e Outros Animais, não dava grande contribui-ção. O livro, enxuto, trazia uma série de reflexões pí-

lula, divididas em 6 capítulos, sobre uma miríade de temas, de epistemologia à política, de filosofia ao am-bientalismo. As fontes intelectuais, pelas quais os temas se articulam, também são numerosas e ecléticas, indo de Schopenhauer – o pessimista por quem Gray nutre uma óbvia simpatia – ao sociobiólogo Edward O. Wil-son, com um breve interlúdio em Fernando Pessoa. A forma da prosa chama atenção: se alguma objeção pode ser levantada contra o filósofo, certamente não é aque-la de falta de clareza e simplicidade, virtudes às vezes raras no meio intelectual. As frases, curtas e objetivas, não fazem rodeios, e espantam pela potencial explosi-vo – aqui, Gray se assemelha mais ao estilo furioso de Nietzsche. O fio condutor que dá o tom da obra, aparen-temente uma colcha de retalhos, é a crítica à tradição de pensamento cuja marca definidora é a ideia de progres-so. Ideia complexa, possuidora de inúmeros rebentos, até mesmo os aparentemente antagônicos, como o cris-tianismo e o ateísmo secular.

Nós encampamos a ideia, mais fantástica que a de um Deus que ressuscitava mortos, diz Gray, de que há algo como “a humanidade”, e que ela atravessa os séculos numa caminhada progressiva. Lenta e gradual, talvez, mas ine-gavelmente marchando em direção à melhora. Essa pers-pectiva, argumentará ele, contém muitos erros. Um deles é depositar uma fé mágica no ser humano, um animal sem grande atributo que os distingua dos outros dentro de um sistema supostamente materialista. Inúmeras vezes se bate na tecla de que, afinal, não somos tão especiais assim.

No terreno amplo da política e da ética, quando há avan-ços, eles são tão frágeis quanto uma taça de cristal – a me-nor perturbação sonora pode ser suficiente para detonar as fundações do edifício. Não é preciso voltar ao início do século XX, onde o desenvolvimento da cultura, das artes, das ciências parecia permitir apenas as previsões mais oti-mistas e que, no entanto, serviu de prelúdio para algumas das maiores atrocidades que a história presenciou. Sem apelar para o exemplo óbvio, bastaria lembrar a ressur-gência admitida e institucionalizada da tortura no contex-to da cruzada contra o terrorismo. Ou que, conforme a cri-

contemplando o fim: as profecias de

John N. GrayIgor de C. e Souza Câmara

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resenha. 23

se econômica assola a Europa, a perseguição às minorias volta a circular como moeda corrente, surgem agremia-ções ultranacionalistas etc. A barbárie, dirá Gray, espreita a civilização a cada esquina.

Isso não quer dizer que não haja progresso em alguma esfera. Nossa ciência é melhor – mais preditiva e expli-cativa – que a ciência de épocas passadas; com o avanço inegável da técnica, muitas das tarefas humanas se tor-naram extremamente mais leves e, por vezes, o que antes era impossível se tornou possível. No entanto, o animal permanece largamente o mesmo. Para cada uso positivo de um avanço da técnica, há pelo menos uma contraparte negativa. Bastaria evocar o exemplo óbvio da tecnologia de ponta empregada nos campos de concentração nazistas para alcançar essa conclusão ou, quem sabe, o potencial destrutivo da bomba atômica. A própria agricultura, que definiu boa parte do que o homem é atualmente, já trouxe um sem número de infortúnios, o que levou Jared Dia-mond a chamá-la de o pior erro da humanidade. O carro, projetado para incrementar a mobilidade humana, é fonte de boa parte dos problemas relacionados à mobilidade. Um americano médio se locomove, de carro, em uma ve-locidade média de menos de cinco milhas por hora: “não

muito mais do que alguém poderia percorrer a pé”, nota o filósofo, para depois perguntar: “Mas o que é mais im-portante hoje: o uso de carros como meio de transporte, ou seu uso como expressão de nossos desejos inconscien-tes por liberdade pessoal, liberação sexual e a libertação final por morte súbita?” Conclui a reflexão com a sentença amarga: “O progresso técnico deixa apenas um proble-ma irresolvido: a fragilidade da natureza humana. Infe-lizmente, esse problema é insolúvel.” Apesar disso, John Gray não é, de forma alguma, um ludita contemporâneo. Sua defesa de soluções algumas técnicas para problemas humanos é o que o separa em definitivo dos partidos ver-des, não obstante sua simpatia pelas causas ligadas aos problemas ambientais.

As considerações filosóficas de Gray também são amplas. Seguindo o estilo do resto de seus comentários – curtos e grossos -, os leitores habituais de filosofia talvez torçam o nariz para as leituras, forçosamente superficiais, que ele faz de seus pares. Wittgenstein merece um comentário de duas páginas, de onde sai como idealista, e ponto. A totalidade desse comentário é baseada em sua afirmação sobre a fala dos leões, e passa ao largo de qualquer con-sideração sobre a variedade de sua obra. Como esse, há

Encampamos a ideia de que há algo como “a humanidade”, e que ela atravessa os séculos numa caminhada lenta e gradual, inegavelmente marchando em direção à melhora. Essa perspectiva

contém muitos erros. Um deles é depositar uma fé mágica no ser humano, um animal sem grande atributo que os distingua dos outros. Afinal, não somos tão especiais assim

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resenha. 24

outros problemas similares em relação a outros filósofos, por exemplo Heiddeger e Nietzsche. Além da história da filosofia, conforme apontado por Thomas Nagel em uma resenha crítica, alguns problemas filosóficos de grande complexidade (o exemplo em questão era a relação entre linguagem e mundo) recebem o mesmo tratamento dema-siado ligeiro. Mas, se isso é um defeito, não parece ser su-ficiente para desqualificar o livro. Talvez, a falta de rigor e precisão históricas sejam os sacrifícios necessários para al-cançar originalidade e generalidade. E, de todo e qualquer caso, interpretar mal parece uma constante para os bons filósofos: o mesmo Heidegger supostamente não entendeu Nietzsche; também Wittgenstein não entendeu Agostinho.

Publicado no início do ano, The Silence of Animals (Far-rar, Straus and Giroux, ainda sem tradução) dá conti-nuidade às reflexões de Straw Dogs. Sobre Progresso e Outros Mitos Modernos, diz o subtítulo. A sequência se-gue a fórmula natural do primeiro – capítulos gerais, reflexões pontuais e agressivas, erudição eclética – e lhe provê um anexo às suas discussões, tornando o tom levemente mais positivo e introspectivo. Aqui, as re-ferências bibliográficas são ainda mais variadas e sur-preendentes. Há uma grande profusão de poe-sia, romances e relatos de viagens. Entre elas, a fantástica história de J. A. Baker, que dedicou uma década de sua vida a acompanhar o voo do falcão peregrino; ou Patrick Leigh Fermor, ex--combatente que percorreu mosteiros abando-nados pelo interior da França. Esse é, ao mesmo tempo, o ponto fraco e o calcanhar de Aquiles dessa nova empreitada. Por um lado, a grande variedade de histórias tingem a prosa abstrata e filosófica de Gray. Esses matizes contribuem não só para tornar a leitura mais agradável, mas também para enriquecer suas teses, e fornecem exemplos vivos do que ele imagina. Por outro lado, alguns pontos do edifício parecem se sustentar quase que exclusivamente nesses relatos. Algumas passagens tem um Gray mais editor, selecionando trechos adequados e tecen-do breves comentários, do que autor efetivo. Embora isso não seja um mal em si, é verda-de que, por serem assim, alguns dos capítulos transmitem um sentimento de incompletude. Alguns comentários mereciam mais linhas an-tes de serem subitamente interrompidos.

A ideia que dá título ao livro, o silêncio dos ani-mais, é um desses casos. Uma exploração inte-ressante e original do significado do silêncio para o humano e para os demais animais, ela parece acabar antes do que deveria, e deixa mais sugestões do que pontos finais. O que é uma pena. A temática se insere no esteio do

que parece ser o eixo do livro: a defesa de um misti-cismo – uma atitude mística - sem Deus e cujo coração é a contemplação. Gray percorre uma série de autores e ideias, não para definir rigidamente os conceitos, mas para sugerir os contornos de uma forma de vida que abandonou a busca obsessiva pelo sentido, entendido como conforto metafísico, e, no entanto, permanece rica e estimulante. Apesar disso, seu esforço permanece ma-joritariamente destrutivo, e é justamente aí onde mais se notam as lacunas que assaltam o livro.

O filósofo canadense Charles Taylor comenta, no docu-mentário Being in the World, o sentimento de ambivalên-cia que muitos tem em relação ao mundo contemporâ-neo. Algum mal-estar é repelido pelo imperativo moral de reconhecer o progresso - sobretudo material, mas também de outras esferas - que a humanidade vem atra-vessando. John Gray se recusa a recalcar esse sentimen-to. Suas teses não são de fácil aceitação; nem todos seus argumentos resistem ao escrutínio do cético; os resulta-dos de algumas de suas enunciações não são palatáveis. Apesar disso, seu livro é inteligente e bem articulado o suficiente para fazer surgir a fagulha do pensamento – não só no leitor habitual de filosofia, como no público geral. E isso não é pouco.

Gray percorre uma série de autores e ideias para sugerir os contornos de uma forma de vida que abandonou a

busca obsessiva pelo sentido, entendido como conforto metafísico, e, no entanto, permanece rica e estimulante

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tradução. 25

(Texto original: http://bit.ly/originalwolfi)

A origem da ciência moderna nos séculos XVI e XVII cor-responde às origens do capitalismo moderno e do sistema industrial. Desde o início, a visão de mundo e os métodos da ciência têm se encaixado perfeitamente à necessidade do sistema social capitalista de dominar a natureza e a grande maioria dos seres humanos. Francis Bacon deixou claro que a ciência não foi uma tentativa de compreender a natureza como ela é, senão de dominá-la, a fim de torcê--la aos fins da humanidade – neste caso significando os governantes atuais da ordem social. A esta luz, a ciência deve necessariamente ser submetida a análise social por qualquer um que ligue para a presente realidade social em questão.

A ciência não é simplesmente uma questão de observar o mun-do, experimentar com os seus elementos e tirar conclusões ra-zoáveis. Caso contrário, teríamos que reconhecer as crianças, os chamados primitivos e um bom número de animais como exce-lentes cientistas. Mas os experi-mentos práticos realizados por todos nós todos os dias carecem de alguns fatores necessários, o primeiro e mais importan-te dos quais é o conceito do universo como uma entidade única, operando sob leis universais, racionais e cognoscí-veis. Sem essa base, a ciência não pode funcionar como tal.

Claro, a ideia de leis naturais universais já tinha entrado em vigor na Grécia antiga, surgindo mais ou menos ao mesmo tempo em que a lei escrita para governar a cidade--estado e o comércio monetário. Mas a antiga perspectiva grega difere significativamente da ciência moderna. As leis naturais universais da filosofia grega eram fundamental-mente relacionais, paralelamente às instituições políticas e econômicas da sociedade grega antiga. Assim, essa con-cepção tende a promover moderação – a “áurea” de Aris-tóteles – e uma evitação de arrogância, características que

claramente não encontram seu equivalente na perspectiva científica moderna.

Entre a época dos antigos filósofos gregos e a origem da ciência moderna, dois eventos históricos significativos afe-taram a visão ocidental do mundo. A primeira delas foi a ascensão da religião cristã como o fator dominante central no pensamento ocidental. Essa visão de mundo substituiu a concepção de uma multiplicidade de deuses que faziam parte do mundo pela de um único deus externo ao univer-so que o criou e o controla. Além disso, também declarou que o mundo tinha sido criado para o uso da criatura fa-vorita de Deus, o ser humano, que deveria subjugá-lo e governá-lo. O segundo evento significativo foi a invenção

da primeira máquina automática a desempenhar um papel signi-ficativo na vida social pública: o relógio. O pleno significado da invenção do relógio no de-senvolvimento do capitalismo, particularmente em sua forma industrial, é um conto em si, mas a minha preocupação aqui é mais específica. Ao materializar para a população o conceito de uma coisa sem vida que poderia

se mover por conta própria, o relógio deu uma base com-preensível para uma nova concepção do universo. Junto com a ideia de um criador externo ao universo, forneceu a base para a percepção da unidade do universo como um relógio criado pelo grande relojoeiro. Em outras palavras, era essencialmente mecânica.

Assim, a religião e o desenvolvimento tecnológico lan-çaram as bases para o desenvolvimento de uma visão mecanicista do universo e com ela a da ciência moder-na. Reconhecendo a importância da religião em fornecer este quadro ideológico, não deve ser nenhuma surpresa que a maioria dos primeiros cientistas eram eclesiásti-cos, e que os sofrimentos de Galileu e Copérnico foram exceções à regra, úteis no desenvolvimento da mitologia da ciência como uma força da verdade lutando contra o

um relato equilibrado do mundo: um olhar crítico sobre a

visão de mundo científicaWolfi Landstreicher

Pedro Colucci

Visões relacionais do universo implicam que uma compreensão do todo viria da tentativa de vê-lo da forma mais holísti-ca possível. Tal ponto de vista funciona bem para aqueles que não têm nenhum desejo de dominar o universo, mas só

querem determinar como interagem com seu ambiente, a fim de satisfazer seus

desejos e criar sua vida. Mas a necessi-dade capitalista exigia algo diferente

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tradução. 26obscurantismo da superstição e do dogma. Na realidade, os primeiros cientistas trabalhavam em geral para um ou outro dos vários poderes do Estado, como parte integrante da estrutura de poder, seguindo o mesmo caminho que um dos mais conhecidos entre eles, Francis Bacon, que não teve nenhum problema em denunciar pessoas como Giordano Bruno, o qual expressou ideias “heréticas”, às autoridades da igreja.

Mas os escândalos da ciência, como os da igreja, do Es-tado ou do capital, não são a substância do problema. A substância está nas bases ideológicas da ciência. Basi-camente visões relacionais do universo – seja a legalista da Grécia antiga ou os pontos de vista mais fluidos de pessoas que viveram fora da civilização – implicam que uma compreensão do universo viria da tentativa de vê--lo da forma mais holística possível, a fim de observar as relações entre as coisas, as conexões e interações. Tal ponto de vista funciona bem para aqueles que não têm nenhum desejo de dominar o universo, mas só querem determinar como interagem com seu ambiente, a fim de satisfazer seus desejos e criar sua vida. Mas a necessi-dade capitalista de desenvolvimento industrial exigia uma visão de mundo diferente.

Se o universo é uma máquina e não uma inter-relação entre uma infinidade de seres, então não se alcança uma compreensão dele através da simples observação e expe-rimentação direta, mas através de uma forma especializa-da de experimentação. Não se pode chegar a uma com-preensão de como uma máquina funciona simplesmente observando como ela funciona em seu ambiente. É preciso dividi-la em suas partes – as engrenagens, as rodas, os fios, as alavancas, etc –, a fim de descobrir o que cada parte faz. Assim, um aspecto fundamental do método da ciência moderna é a necessidade de quebrar tudo em suas partes, com o objectivo de atingir a unidade mais básica. É nes-ta perspectiva que se pode entender por que os cientistas pensam que é possível aprender mais sobre a vida cortan-do um sapo aberto em um laboratório do que sentando-se junto a uma lagoa observando sapos e peixes e mosquitos e lírios realmente vivendo juntos. O conhecimento que a ciência busca é o conhecimento quantitativo, conheci-mento matemático, conhecimento utilitário – um tipo de conhecimento que transforma o mundo na máquina que ele afirma que o mundo é. Esse tipo de conhecimento não pode ser obtido a partir da observação livre no mundo. Ela exige a esfera do laboratório onde as peças podem ser experimentadas fora do contexto do todo e no âmbito dos fundamentos ideológicos da matemática e de uma visão de mundo mecanicista. Somente as peças que foram sepa-radas desta forma podem ser reconstruídas para atender às necessidades daqueles que governam.

Naturalmente, as primeiras partes que devem ser sepa-radas deste conjunto mecânico são os próprios cientistas. O fator que faz os experimentos de animais, crianças, povos não-civilizados e pessoas não treinadas dentro do

mundo moderno não científicos é a nossa falta da cha-mada objetividade; estamos muito envolvidos, ainda em relação íntima com aquilo que experimentamos. O cien-tista, por outro lado, tem sido treinado para colocar-se do lado de fora daquilo que ele experimenta, para usar a racionalidade fria da matemática. Mas essa objetividade não é realmente diferente da separação de um rei, um imperador ou um ditador do povo que eles governam. O cientista não pode pisar fora do mundo natural, em qualquer sentido literal que lhe permitiria vê-lo de fora de suas fronteiras (para todos os intentos e propósitos práticos, este universo não tem fronteiras). Um pouco como um imperador do alto de seu trono, a partir do seu laboratório o cientista proclama ao universo: “Você vai se submeter aos meus mandamentos.” A visão científica do mundo só pode realmente ser entendida nesses termos. As concepções sobre a natureza do universo que têm sido formuladas pela ciência moderna não tem sido tão descritivas quanto prescritivas, decretos anunciando o que o mundo natural deve ser forçado a tornar-se: peças mecânicas com movimentos regulares e previsíveis que podem ser feitas para funcionar como o desejado pela classe dominante que financia a pesquisa científica. Não é nenhuma surpresa, então, que a linguagem da ciência é o mesmo que a linguagem da economia e da burocra-cia, uma linguagem desprovida de paixão e qualquer co-nexão concreta com a vida, a linguagem da matemática. Qual a melhor linguagem que se poderia encontrar para governar o universo – uma linguagem que é ao mesmo tempo totalmente arbitrária e totalmente racional?

Assim, a ciência moderna se desenvolveu com uma finali-dade específica. Esse propósito não era a busca da verdade ou mesmo de conhecimento, exceto no sentido mais utili-tarista, mas sim a atomização e racionalização do mundo natural para que ele pudesse ser dividido em suas partes componentes que poderiam ser forçadas a relações novas, regularizadas e calculadas, úteis para o desenvolvimento de sistemas tecnológicos que poderiam extrair mais e mais componentes para a reprodução destes sistemas. Afinal, era isso que os governantes queriam, e eles foram os finan-ciadores (e, portanto, financeiramente os fundadores) da ciência moderna.

Com a matematização de todas as coisas, o que é singular em cada coisa desaparece, porque o que é singular está para além da abstração e, portanto, para além da matemá-tica. Quando o que é singular de seres e coisas desapare-ce, a base das relações apaixonadas, as relações de desejo, desaparece também. Afinal de contas, como medir a pai-xão? Como calcular o desejo? O domínio da razão instru-mental tem pouco espaço para qualquer outra paixão que não esse tipo deformado da ganância que busca acumu-lar mais e mais dos itens padronizados e mercantilizados disponíveis no mercado e o dinheiro que os torna todos iguais no sentido estritamente matemático.

Os vários sistemas de classificação da ciência – paralelos

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tradução. 27aos sistemas utilizados pelas burocracias estatais – certa-mente desempenharam um papel significativo na exclusão do singular do reino da ciência. Mas a ciência utiliza outro método mais insidioso e irreparável para destruir o singu-lar. Ela tenta quebrar todas as coisas em seus menores componentes possíveis – pri-meiro as unidades que são compartilhadas por todas as entidades de um tipo parti-cular, e, em seguida, aque-las que são compartilhadas por cada entidade que exis-te – porque a matemática só pode ser aplicada a unidades homogêneas, unidades que podem ser equivalentes. Se os primeiros cientistas tive-ram uma tendência a experi-mentar frequentemente com animais mortos, incluindo os seres humanos, foi porque na morte um cão ou um macaco ou um ser humano são muito parecidos com qualquer ou-tro. Quando presas em uma placa em um laboratório com seus corpos cortados abertos, todas as rãs não se tornam equivalentes? Mas isso ainda não divide as coisas de forma adequada. Certamente tais experiências, seja com orga-nismos mortos ou com maté-ria não orgânica permitiram à ciência dividir o mundo em componentes que ela podia moldar para se encaixar em sua bem medida e calculada perspectiva mecanicista, um passo necessário no desen-volvimento de tecnologia industrial. Mas a matemáti-ca e a correspondente visão mecanicista do mundo ain-da eram claramente ideias que estavam sendo impostas a um mundo relutante e re-sistente – em particular (ou talvez apenas mais visivel-mente) o mundo humano, o mundo dos explorados que não querem suas vidas me-didas em horas de trabalho cronometradas pelos reló-gios industrialmente preci-sos do patrão, explorados

que não querem passar todos os dias na mesma tarefa re-petitiva, que também está sendo realizada por centenas – ou talvez milhares – de outras pessoas no mesmo prédio, ou em uma outra idêntica que permita receber o equiva-

lente geral para comprar a sobrevivência.

A física tem sido sempre a ciência na vanguarda do esforço para tornar a matemática a base ine-rente da realidade. Se al-guém quiser crer no mito, quando a maçã acertou Newton na cabeça, ela supostamente o inspirou a inventar equações para explicar matematicamente a atração e repulsão dos objetos. Por alguma razão, isso deve nos fazer pensar que ele é um gênio e não um empresário/cientista mesquinho e calculista. (Ele era um acionista na famosa Companhia das Índias Orientais, que for-neceu a base financeira para muitos dos esforços imperialistas da Grã-Bre-tanha e foi presidente do Banco da Inglaterra por um tempo.) Mas a lei da gravidade de Newton, a lei de Galileu da inércia, as leis da termodinâmi-ca, etc. vêm transversal-mente como construtos matemáticos da mente humana que são impostos sobre o universo, assim como os seus resultados tecnológicos – o sistema industrial do capitalismo – foram uma imposição da visão de mundo racionalizada no cotidiano das classes exploradas.

Deve ficar claro a partir disto que o método cien-tífico nunca foi o método empírico. Este último era baseado apenas na expe-riência, observação e ex-perimentação no mundo sem preconcepções, ma-temáticas ou outras quais-

A ciência moderna nunca foi destinada a propor-cionar o conhecimento real do mundo – que teria

exigido a imersão no mundo, não a separação dele – mas sim a impor uma perspectiva particular sobre

o universo que iria transformá-lo em uma máquina útil à classe dominante

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quer. O método científico, por outro lado, começa a partir da necessidade de imposição da racionalidade matemática, instrumental, no universo. A fim de realizar esta tarefa, como eu já disse, ele tinha que separar os componentes es-pecíficos do seu ambiente, removê-los para a esterilidade do laboratório e lá experimentar com eles, a fim de desco-brir como adequá-los a essa lógica instrumental, matemá-tica. Muito longe da exploração sensual do mundo, que constituiria uma investigação verdadeiramente empírica.

A ciência moderna tem sido capaz de continuar a se de-senvolver não porque abre o caminho para o aumento do conhecimento, mas porque tem sido bem-sucedida na rea-lização da tarefa para a qual o Estado e a classe dominan-te a financiou. A ciência moderna nunca foi destinada a proporcionar o conhecimento real do mundo – que teria exigido a imersão no mundo, não a separação dele – mas sim a impor uma perspectiva particular sobre o univer-so que iria transformá-lo em uma máquina útil à classe dominante. O sistema industrial é a prova do sucesso da ciência na realização desta tarefa, mas não da verdade de sua visão de mundo. É a essa luz que podemos examinar os “avanços” que constituem a “nova física” – teoria da re-latividade, física atômica e física quântica – porque é esta a física pós-newtoniana que consegue impor a concepção matemática sobre o universo a tal grau que os dois passam a ser vistos como um só. Na física newtoniana, o universo é uma realidade material, uma máquina composta de pe-ças de interações que podem ser “explicadas” (embora, na verdade, nada é realmente explicado) matematicamente. Na “nova” física, o universo é um constructo matemático – a matéria é simplesmente parte da equação – composto de bits de informação. Em outras palavras, a “nova” física tem uma visão cibernética do universo.

A física relativista matematiza o universo no nível macro-cósmico. De acordo com suas teorias, o universo é um “con-tinuum espaço-tempo”. Mas o que isso significa? O “conti-nuum espaço-tempo” é, de fato, puramente um constructo matemático, o gráfico multidimensional de uma equação complexa. Assim, está completamente além da observação empírica – estranhamente como o cyberespaço. Ou não tão estranhamente, se se considerar o primeiro como um modelo para o último. Mais uma vez, pouco importa se esta imagem do universo é verdadeira. Ela funciona em um nível tecnológico e econômico, e isso sempre foi a linha de fundo para a ciência.

A “realidade última” que é o “espaço-tempo” – esta “reali-dade” além dos nossos sentidos que os especialistas dizem ser mais real do que a nossa experiência diária (e quem ainda duvida disto neste mundo alienado?) – é construí-

da de bits de informações chamados quanta. Este é o mi-crocosmo da matematização total do universo, o reino da física quântica. A física quântica é particularmente interes-sante pela maneira em que ela expõe o projeto da ciência moderna. A física quântica é supostamente a ciência de partículas subatômicas. Inicialmente, havia apenas três: o próton, o elétron e o nêutron. Estas explicavam o peso atô-mico, eletricidade, etc, e permitiram o desenvolvimento da tecnologia nuclear e da eletrônica moderna. Mas mui-tas discrepâncias matemáticas apareceram. A física quân-tica tem lidado com essas discrepâncias, usando o método científico mais consistente possível, que formulou novas equações para calcular as discrepâncias e chamou a essas construções matemáticas partículas subatômicas recém--descobertas. Mais uma vez, não há nada que podemos observar através dos nossos sentidos – mesmo com a ajuda de ferramentas como microscópios. Estamos dependentes das alegações de especialistas. Mas especialistas em quê? Claramente, eles são especialistas em construir equações paliativas que sustentam a concepção matemática do uni-verso até que a próxima discrepância surja – funcionando de uma forma que se assemelha ao próprio capitalismo.

A teoria da relatividade e a física quântica são muitas ve-zes passadas como “ciências puras” (como se tal coisa já tivesse existido), exploração teórica sem quaisquer con-siderações instrumentais. Sem sequer considerar o papel que estes ramos da ciência têm desempenhado no desen-volvimento de armas nucleares e de energia, cibernética, eletrônica, e assim por diante, esta afirmação também é desmentida pelos interesses ideológicos do poder a que eles servem. Juntas, essas perspectivas científicas apresen-tam uma concepção da realidade que está completamente fora da esfera da observação empírica. A realidade última está totalmente além do que podemos perceber e existe completamente dentro da esfera de equações matemáti-cas complexas que somente aqueles com tempo e educa-ção – ou seja, os especialistas – são capazes de aprender e manipular. Assim a “nova” física – como a antiga, mas mais enfaticamente – promove a necessidade da fé nos especialistas, da aceitação da sua palavra sobre a própria percepção. Além disso, promove a ideia de que a realidade consiste de bits de informação que estão ligados matemati-camente e podem ser manipulados à vontade por aqueles que conhecem os segredos, os feiticeiros de nossa época, os cientistas-técnicos.

Relatividade e a física quântica conseguiram fazer o que todos os ramos da ciência gostariam de fazer; elas separa-ram completamente sua esfera de conhecimento do reino dos sentidos. Se a realidade é apenas uma equação mate-mática complexa composta de bits de informação, então

Assim a “nova” física – como a antiga, mas mais enfaticamente – promove a necessidade da fé nos especialistas, da aceitação da sua palavra sobre a própria percepção. Além disso, promove a

ideia de que a realidade consiste de bits de informação que estão ligados matematicamente e podem ser manipulados à vontade por aqueles que conhecem os segredos,

os feiticeiros de nossa época, os cientistas-técnicos

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pensou-se que essas experiências certamente são pelo menos tão fiáveis quanto as experiências com objetos ma-teriais. Deveria ficar claro agora que este foi um ideal da ciência moderna desde o início. A separação do cientista da esfera da vida cotidiana, o laboratório estéril como o reino da experimentação, o desprezo evidente dos pri-meiros cientistas pela experiência cotidiana e pelo que é aprendido através dos sentidos só são indicações claras sobre a atitude e a direção da ciência. Para Bacon, para Newton, para a ciência moderna como um todo, os sen-tidos – como o mundo natural de que eles são uma parte – são obstáculos a serem superados na busca do domínio sobre o universo. Interagir com o mundo em um nível sen-sual torna provável demais que se evoque a paixão, e a razão da ciência é uma razão fria e calculista, não a razão passional do desejo. Assim, o mundo da experimentação não-material aberta pela “nova” física se encaixa bem com a trajetória da ciência.

Embora alguns tenham tentado retratar os conceitos da relatividade e da física quântica como uma ruptura com a visão de mundo mecanicista, realizada pela ciência até então, de fato, esta “nova” visão do mundo como puro constructo matemático composto de bits de informação era precisamente o objetivo da ciência. Ela desenvolveu sua manifestação material na tecnologia cibernética. A vi-são de mundo mecanicista industrial deu lugar à muito mais totalizante visão de mundo mecanicista cibernética, porque esta serve aos propósitos da ciência e seus mes-tres melhor do que a anterior. O desenvolvimento da tec-nologia cibernética e, particularmente, da realidade vir-tual abriu a porta para a possibilidade de experimentação não-material para os ramos da ciência para os quais isso era previamente impossível, particularmente as ciências biológicas e as ciências sociais. Esse mundo não apenas fornece um meio de armazenar, organizar, categorizar e manipular dados e informações recolhidas durante a ex-perimentação e pesquisa no mundo físico, mas também oferece um mundo virtual em que se pode experimentar em seres virtuais e sistemas orgânicos, em sociedades e culturas virtuais. E se o universo é nada mais do que bits de informação intercambiáveis em relação matemática entre si, então essas experiências estão no mesmo nível que as realizadas no mundo físico. Na verdade, elas são mais confiáveis, já que os obstáculos dos sentidos e do possível desenvolvimento de emoção solidária para com aqueles em que o cientista está experimentando não en-tram em jogo. Não há necessidade de se preocupar com o fato de que qualquer coisa matematicamente calculável e, portanto, programável, pode acontecer no mundo vir-tual; isto apenas mostra as infinitas possibilidades tecno-

lógicas que podem ser encontradas na manipulação de bits de informação.

É interessante notar que a “descoberta” do DNA ocorreu poucos anos antes do início do que alguns têm chamado de “era da informação”. Claro, tecnologias cibernéticas e de informações já existiam há algum tempo, mas foi no iní-cio dos anos 1970 que essas tecnologias começaram a pe-netrar nas esferas sociais comuns em escala suficiente para mudar a maneira como as pessoas enxergavam o mundo. Uma vez que já fomos arrancados de qualquer tipo de relacionamento profundo e direto com o mundo natural, devido às exigências do sistema industrial, a maioria do nosso conhecimento do mundo vem até nós de forma in-direta. Não é realmente o conhecimento em si, mas bits de informação aceitos pela fé. Não é tão difícil, portanto, con-vencer as pessoas de que o conhecimento não é realmen-te nada mais do que uma acumulação desses bits e que a realidade é simplesmente a equação matemática complexa que os engloba. É muito curta a distância disso à perspecti-va da genética de que a vida é simplesmente a relação en-tre bits de informação codificada. O DNA fornece os preci-sos bits intercambiáveis que são a base necessária para isso e, portanto, fornece a base para a digitalização da vida.

Como vimos, a ciência nunca foi simplesmente uma tenta-tiva de descrever o que existe. Em vez disso, procura do-minar a realidade e fazê-la adequar-se aos fins daqueles que detêm o poder. Assim, a digitalização da vida e do universo tem o propósito expresso de dividir tudo em bits intercambiáveis que podem ser manipulados e ajustados por aqueles treinados nessas técnicas complexas, a fim de atender às necessidades específicas da ordem dominante. Não há lugar nesta perspectiva para uma concepção de individualidade composta de um corpo, mente, paixões, desejos e relações em uma dança inimitável pelo mundo. Em vez disso, nós não somos nada mais do que uma série de ajustáveis bio-bits. Essa concepção não deixa de ter a sua base social. O desenvolvimento capitalista, particularmen-te na última metade do século 20, transformou cidadãos (já parte do aparelho do Estado-nação) em produtores--consumidores, intercambiáveis com todos os outros em termos das necessidades da máquina social. Com a inte-gridade do indivíduo já abalada, não é um grande passo transformar cada coisa viva em um mero banco de arma-zenamento de peças genéticas úteis, um recurso para o de-senvolvimento da biotecnologia.

A nanotecnologia aplica a mesma digitalização à matéria inorgânica. A química e a física atômica forneceram a con-cepção da matéria como construída de moléculas que são construídas de átomos, que são construídos de partículas

A digitalização da vida e do universo tem o propósito de dividir tudo em bits intercambiáveis que podem ser manipulados e ajustados por aqueles treinados nessas técnicas comple xas, a fim de

atender às necessidades específicas da ordem dominante. Não há lugar nesta pers pectiva para uma concepção de individualidade composta de um corpo, mente,

paixões, desejos e relações em uma dança inimitável pelo mundo

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tradução. 30

subatômicas. O objectivo da nanotecnologia é a constru-ção de máquinas microscópicas num nível molecular que, idealmente, serão programadas para se reproduzir por meio da manipulação das estruturas moleculares e atômi-cas. Se aceita-se a concepção empobrecida de vida promo-vida pela ciência genética e biotecnologia, estas máquinas sem dúvida seriam “vivas”. Se examinarmos alguns dos propósitos que os seus desenvolvedores esperem que elas sirvam, parece que eles poderiam, como genes emenda-dos, funcionar no meio ambiente de maneira muito seme-lhante a um vírus. Por outro lado, algumas das descrições da função de autorreprodução que a ser neles programa-da dão a ideia assustadora de células cancerígenas ativas transmitidas pelo ar.

Tanto a biotecnologia quanto a nanotecnologia podem evocar visões horríveis: monstros de pequena e grande escala, doenças estranhas, manipulação genética totali-tária, microscópicos dispositivos de espionagem trans-mitidos pelo ar, máquinas inteligentes sem a necessi-dade de seus dependentes humanos. Mas esses poten-ciais horrores não atacam o coração do problema. Estas tecnologias são um reflexo de uma visão do mundo dre-nada de admiração, alegria, desejo, paixão e individuali-dade, uma visão do mundo transformado em uma má-quina de calcular, a visão de mundo do capitalismo.

Os primeiros cientistas modernos eram em sua maioria cristãos devotos. Seu universo mecânico era uma má-quina fabricada por Deus com um propósito além de si mesma, determinado por Deus. Essa concepção de um propósito maior desapareceu do pensamento científico há muito tempo. O universo cibernético não serve a ne-nhum outro propósito senão o de manter-se, a fim de manter o fluxo de bits de informação. No nível social onde isso afeta nossas vidas, isto significa que cada in-divíduo é simplesmente uma ferramenta para a manu-tenção da ordem social atual e pode ser ajustado confor-me o necessário para manter o fluxo de informações que permite que esta ordem se reproduza, informações mais precisamente chamadas de trocas de mercadorias.

E aqui a função real da ciência é revelada. A ciência é a tentativa de criar um sistema que possa apresentar uma conta equilibrada de todos os recursos do univer-so, tornando-os disponíveis ao capital. É por isso que tem que dividir o universo em seus pequenos peda-ços (bits), pedaços que tenham um grau suficiente de identidade e intercambiabilidade para atuar como um equivalente geral. É por isso que deve forçar o univer-so a se conformar com uma construção matemática. É por isso que em última análise um modelo cibernético

é melhor para o funcionamento da ciência. O verdadei-ro fim da ciência moderna, desde o início tem sido o de tornar o universo em uma grande máquina de calcular que preste contas de seus próprios recursos. Assim, a função da ciência sempre foi o de servir à economia e seu desenvolvimento tem sido a busca de meios mais eficientes de fazê-lo. Mas os contadores científicos com os seus cálculos, gráficos, mapas e livros estão perpe-tuamente confrontados com uma realidade recalcitran-te composta por entidades que não estão em conformi-dade com os números ou medidas, de indivíduos que resistem à intercambiabilidade, de fenômenos que não podem ser repetidos – em outras palavras, de coisas que incessantemente desequilibram as contas. Os cien-tistas podem tentar recuar para o laboratório, para o experimento de pensamento, da realidade virtual, mas além da porta, além de suas mentes, para além do do-mínio do ciberespaço, o inexplicável ainda espera. As-sim, a ciência, como a ordem social capitalista a que serve, torna-se um sistema de medidas paliativas, de

ajustamento constante face a um caos que ameaça des-truir a economia. O mun-do imaginado pela ciência – aquele que ela proclama ser real, enquanto tenta criá-lo através da escravi-dão e tortura tecnológicas mais excruciantes – é um mundo economizado, e esse mundo é aquele dre-nado de admiração, ale-

gria e paixão, de tudo o que não vai ser medido, de tudo o que não dará conta de si mesmo.

Assim, a luta contra o capitalismo é a luta contra a ciência moderna, a luta contra um sistema que se esforça para co-nhecer o mundo apenas como recursos mensuráveis com um preço, como bits intercambiáveis de valor econômi-co. Para aqueles de nós que procuram conhecer o mundo apaixonadamente, que querem encontrá-lo alegremente, com um sentimento de admiração, diferentes formas de conhecimento são essenciais, formas que não visam a do-minação, mas o prazer e a aventura. Que é possível estudar e explorar o universo de outras maneiras que a da ciência moderna foi demonstrado pelos raciocínios de certos fi-lósofos da natureza na Grécia antiga, pelo conhecimento do mar de navegadores polinésios, por versos de canções de aborígenes australianos e pelas melhores explorações de certos alquimistas e hereges, como Giordano Bruno. Mas eu não estou interessado em modelos, mas na aber-tura de possibilidades, a abertura para as relações com o mundo em torno de nós que não possuem medida – e o passado nunca é uma abertura; na melhor das hipóteses, é a evidência de que o que existe não é inevitável. A rebelião consciente daqueles que não serão medidos poderia abrir um mundo de possibilidades. É um risco que vale a pena.

A luta contra o capitalismo é a luta contra a ciên-cia moderna, a luta contra um sistema que se esforça para conhecer o mundo apenas como recursos mensuráveis com um preço. Para aqueles de nós que procuram conhecer o mun-do apaixonadamente, que querem encontrá-lo alegremente, com um sentimento de admira-ção, diferentes formas de conhecimento são es-senciais, formas que não visam a dominação, mas o prazer e a aventura

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quadrinhos. 31

Desenhos e roteiro: Thiago Fonseca

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quadrinhos. 32

Leia o Episódio I: http://bit.ly/classwars1

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conto. 33

Once meek, and in a perilous path, The just man kept his course along

The vale of death

(William Blake)

Encontravam-se ambos imóveis. O guarda, em plena observância de seu dever, permanecia ereto ao lado da cela, privando-se de qualquer tipo de distração. Já era madrugada. Ele imaginava que a tal hora o pri-sioneiro estaria dormindo, até que notou um ruído proveniente do in-terior da cela:

- Por que você não dorme?

- Não quero dormir.

- Não dormiu nada até agora?

- Não.

- Pois deveria.

- Perdi o sono.

O guarda voltou-se ao prisioneiro e encontrou-o absorto em seus pensa-mentos. Espantou-se com tal atitu-de, mas nada disse, retornando ao seu posto.

- Diga-me, é você quem irá me ma-tar?

- Não.

- Então quem?

- Ninguém.

- Como assim?

- É a máquina que o matará.

- Que máquina?

- É o novo equipamento da prisão.

- Como ela funciona?

- Não sei.

- Não sabe?

- Não é minha função saber.

- Mas você a opera.

- Evidente, mas isso não significa que conheça seu mecanismo.

O prisioneiro aproximou-se das grades e arriscou olhar em volta. Silêncio. O corredor estava vazio, o guarda era a única presença visível que se anunciava na fria madrugada.

- Resta-me quanto tempo?

- Quatro horas.

- É muito tempo.

- Ou muito pouco.

- Talvez. Conte-me sobre a máquina.

- O que você quer saber?

- Como ela funciona.

- Já lhe disse que isso não sei.

- E o que sabe?

- Que a máquina não é um simples me-canismo de tortura.

- Mas ela me matará?

- Deveras.

- Em quanto tempo?

- Impossível dizer. Isso depende apenas da máquina.

- Não compreendo.

Nesse momento ouviu-se um ruí-do proveniente do lado externo do presídio. A neve começara a cair suavemente, aglomerando-se em volta da pequena janela localizada

a máquina Gabriel Bichir

- Quem irá me matar?- Ninguém. A máquina.

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conto. 34próxima ao teto da cela. Mas o prisioneiro sequer percebera a brusca mudança de temperatura, pois já estava muito próximo ao guarda, com os ouvidos atravessando a grade. Após alguns minutos de si-lêncio, o guarda prosseguiu:

- A máquina determina o tempo necessário para a execução.

- Mas você não a comanda? Não pode ajustá-la confor-me desejar?

- Eu apenas coloco-a em funcionamento. O mais corre-to seria dizer que é ela mesma que se opera.

- Isso significa que ela pode poupar-me a vida?

- Talvez.

- Isso já aconteceu antes?

- Não.

- Então como você sabe que ela pode fazê-lo?

- Porque tudo é possível para a máquina.

- E o que ela faz?

- Não sei.

- Você não a vê funcionando?

- A máquina está localizada em uma sala isolada, a qual nenhum de nós tem acesso. Durante as execuções, per-manecemos do lado de fora e nada vemos do que se passa dentro.

- E quando sabem que ela concluiu a execução?

- Não há como ter certeza. Há um especialista no presí-dio designado especificamente para essa função.

- Deve ser perigoso.

- Sim, se o especialista adentra na sala no momento errado, ele fica preso com o prisioneiro, e raramente sai vivo.

- E o que dizem sobre a máquina?

- Que ela opera por turnos.

- E como são encontrados os prisioneiros?

- Nesse ponto não há consenso, a verdade é que os encontramos nos mais variados estados. Alguns são recuperados com ferimentos horríveis, que mal possibilitam seu reconhecimento. Outros são acha-dos com o corpo intacto, embora estejam evidente-mente mortos.

O prisioneiro afastou-se da grade e retornou ao fundo

da sala, onde se sentou e tentou recuperar o sono por algum tempo. Esforçava-se para formar uma imagem da máquina, mas falhava a cada tentativa. Era como se ela se lhe escapasse a cada minuto, e sempre que torna-va a alcançá-la algo dava errado e o forçava a recome-çar do zero a operação. Finalmente, desistiu e passou a olhar com interesse a janela que transbordava com os inúmeros flocos de neve.

- Você já viu a máquina?

- Nunca. Não temos permissão.

- Mas você já sonhou com ela?

- Sim. Inúmeras vezes.

- O que a máquina espera de mim?

- Você descobrirá.

- Sinto-me cansado. Preciso dormir.

Os primeiros raios de luz atravessavam a janela quando o prisioneiro acordou. Olhou em volta e con-templou toda a extensão de sua cela, que consistia apenas em uma cama, uma tigela de comida e um balde para suas necessidades. Levantou-se e dirigiu--se até a grade; o guarda não estava mais lá. Retor-nou e esperou alguns minutos, até ouvir o barulho de uma porta abrindo-se.

- Venha comigo, sua hora chegou – disse um guarda que abria a cela.

- Onde está o guarda com quem conversei de madrugada?

- Não havia guarda algum nessa ala.

Seguiram por um extenso corredor, até que o guarda indi-cou-lhe uma porta que se encontrava à esquerda. O prisio-neiro entrou e viu-se diante de dois oficiais que o miravam com atenção. No centro, apenas uma cadeira e uma corda desgastada pendurada no teto.

- E a máquina? – bradou o prisioneiro

- Você não pode alcançá-la.

- Então nunca a deixarei?

- Não.

Nesse momento, o prisioneiro precipitou-se em direção à corda e, pouco antes de perder a consciência, pensou dis-tinguir o guarda acenando-lhe no canto.

Inspirado no conto “Na Colônia Penal”, de Franz Kafka.

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crônica. 35

2 horas da manhã e um frio de doer os ossos. Deito na cama e rapidamente me enfio debaixo das cobertas. Piorou! Os len-çóis, gelados como a neve, fa-zem meu corpo estremecer. En-colho-me. Imóvel, sinto o calor chegar. Os músculos começam a relaxar, um sorriso se esboça. Aliviado, arrisco sair da posição fetal à qual eu tinha me recolhi-do. Estico lentamente as pernas, como continua frio lá embaixo! Forço-me a ocupar todo o espa-ço da cama. O calor se dilui por debaixo das cobertas e depois volta a se intensificar. Estabele-ce-se o equilíbrio, corpo quente e confortável, que alegria! Como gosto de todo este processo.

Penso: eu estava com frio, eu de-sejava o cobertor! Lembro-me dos momentos de angústia em que algo parecia faltar. Precisei satisfa-zer meu desejo com um caloroso edredom. Certo? Errado! As co-bertas, como a experiência mos-trou, não produzem calor nenhum. O que meu corpo queria então? Por que assumi como o objeto do meu desejo um amontoado de panos grossos?

Meu corpo, tal qual máquina, está disposto sempre a pro-duzir. Dispus-me então a criar um novo arranjo, busquei uma associação para potencializar as minhas próprias capacidades. Meu desejo era minha vontade de potência. Através do encontro com o objeto, investi na minha capa-cidade de gerar calor e, de fato, o calor transbordou-me.

Não há falta nem objeto do desejo, pois não é possível

o que há de belo nas madrugadas de

invernoRafael Lauro

preencher o espaço que não está vazio. O corpo tem ple-na capacidade de produzir aquilo que lhe falta, contan-to que não lhe inventem demandas ideais. Ao tomar o desejo por falta, distanciamos nosso corpo daquilo que ele pode, de sua potência. Não nos falta nada. Nosso desejo é movimento, é o andar por um caminho permea-do de encontros, agenciamentos e arranjos. Eu poderia ter feito uma fogueira e tomado uma generosa dose de conhaque ou quem sabe poderia ter encontrado outro corpo para produzir o calor junto ao meu. São sempre belas as possibilidades de se potencializar.

Nosso desejo é movimento, é o andar por um caminho permeado de encontros, agenciamentos e arranjos

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poesia. 36

E a turbamulta invade-me cidade é um batalhão e pulula ensurdecedora em zumbidos ribombantes que explodem em estalidos, fogos de desartifícios, tantos

desavisados desenviesados e a darandinada louca é-me cidade sendo é vinagre constituindo (há ontologia!) um a um, todos os alvéolos meus novos companheiros (sim, avante companheiros que se abriram as mais grandes alamedas) eu os respiro e nós seremos paulistas fechadas que o silêncio está em greve para que os tempos se interpenetrem na mudança que estamos porvir...

minhas ruas, em bloco, pedem passagem

Lucas Paolo

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poesia/tradução. 37

Foi-se o ouro do dia, Do crepúsculo marrom e azuis cores: Do pastor suaves flautas sucumbem Do crepúsculo azul e marrons cores Foi-se o ouro do dia.

Verflossen ist das Gold der Tage, Des Abends braun und blaue Farben: Des Hirten sanfte Flöten starben Des Abends blau und braune Farben Verflossen ist das Gold der Tage

[tradução: Bruno Bernardo]

A natureza é um templo onde vivos pilares Deixam às vezes fora confusos vocábulos;

O homem passa através de bosques de símbolos Que ali o observam com olhares familiares.

Como longos ecos que longe se confundem Em uma tenebrosa e profunda unidade,

Que é vasta como a noite e como a claridade, Os perfumes, as cores e os sons se respondem.

Há aromas frescos como a carne dos petizes, Doces como oboés, verdes como a campina,

- E outros, corrompidos, ricos e felizes,

Tendo a expansão de tudo que não termina, Como âmbar, almíscar, goma e incenso fluídos, Cantando os transportes do espírito e sentidos.

[tradução: Alberto Sartorelli]

La Nature est un temple où de vivants piliers Laissent parfois sortir de confuses paroles;

L’homme y passe à travers des forêts de symboles Qui l’observent avec des regards familiers.

Comme de longs échos qui de loin se confondent Dans une ténébreuse et profonde unité, Vaste comme la nuit et comme la clarté,

Les parfums, les couleurs et les sons se répondent.

II est des parfums frais comme des chairs d’enfants, Doux comme les hautbois, verts comme les prairies,

— Et d’autres, corrompus, riches et triomphants,

Ayant l’expansion des choses infinies, Comme l’ambre, le musc, le benjoin et l’encens,

Qui chantent les transports de l’esprit et des sens.

[tradução: Alberto Sartorelli]

Rondel

Quando a neve na janela está caída, Prolongado o sino da tarde dobra. A muitos a mesa está posta E a casa bem servida.

Um dos peregrinos se aferra Chega ao portão por escuras estradas. Dourada floresce a árvore das graças A partir da seiva fresca da terra.

Quieto chega o peregrino; Dor petrificou a soleira.Daí brilha em pura clareza Sobre a mesa pão e vinho.

Wenn der Schnee ans Fenster fällt. Lang die Abendglocke läutet, Vielen ist der Tisch bereitet Und das Haus ist wohlbestellt.

Mancher auf der Wanderschaft Kommt ans Tor auf dunklen Pfaden. Golden blüht der Baum der Gnaden Aus der Erde kühlem Saft

Wanderer tritt still herein; Schmerz versteinerte die Schwelle. Da erglänzt in reiner Helle Auf dem Tische Brot und Wein.

[tradução: Bruno Bernardo]

RondelGeorg Trakl

Um anoitecer de inverno

Ein Winterabend

Georg Trakl

Correspondências

Charles Baudelaire

Correspondances

Page 38: O Discurso sem Método #5

Debate-se, remexe-se dentro de seu caixão dourado. é galinha morta correndo sem cabeça. Celebra a loucura de todos os tempos

Filosofia

poesia. 38

Monica Marques

Há um tempo para desarmar os presságios

há um tempo para desamar os frutos

há um tempo para desviver o tempo.

Do EclesiastesOrides Fontela (1940-1998) in Trevo

Page 39: O Discurso sem Método #5

poesia. 39

ítaca é o fato

de ter ido à ítaca.

o ato até íta- -ca.

tensos o mesmo e o mutável: um ato-ítaca.

o ato-ítaca(variação sobre Constantine Cavafy)

Duanne Ribeiro

Helena é bonita elegante e altiva culta, ébria poderosa rainha na sua Grécia. Helena é princesa sacerdotisa de Dioniso gosta de vinho e fumantes filmes interessantes é dada ao riso.

Helena e PárisAlberto Sartorelli

Arquitetar a mulher desenhar nossos sonhos

em lençóis manchados mal dormidos

rabiscar nossos desejos infantis medir o tamanho de minha paixão

e me decepcionar passar a régua no medo que sinto frio no suor

medi-lo? O inseto percorre minhas costas a nado

escala meus membros traça devaneios sofridos assustadores e desejosos

Barata arquiteta de amores pecaminosos Arquiteta a

Mulher ausente Aqui teta me pressiona os dentes imaginários: estão fechados

o teto sem fim de meu exagero

arquiteta revisitada à Rondino Régirréxitégui

Page 40: O Discurso sem Método #5

rodapé: CAF em 1994. 40