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DESCARTES DISCURSO DO MÉTODO PARA BEM CONDUZIR A PRÓPRIA RAZÃO E PROCURAR A VERDADE NAS CIÊNCIAS

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DESCARTES

DISCURSO DO MÉTODO

PARA BEM CONDUZIR A PRÓPRIA RAZÃO E PROCURAR A VERDADE NAS CIÊNCIAS

DESCARTES

DISCURSO DO MÉTODO

Para bem conduzir a própria razão e procurar a verdade nas ciências

y

PAULUS

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Descartes, René, 1596-1650.Discurso do método : para bem conduzir a própria razão

e procurar a verdade nas ciências / René Descartes ;[tradução de Thereza Christina Stummer]. — São Paulo : Paulus, 2002.

— (Filosofia)

Título original: Discorso sul metodo ISBN 85-349-1878-3

1. Descartes, René, 1596-1650 2. Filosofia francesa - Século 171. Título. II. Série.

01-4280 CDD-194

índices para catálogo sistemático:1. Descartes : Obras filosóficas 194

Título original Discours de la méthode pour bien conduire sa raison

et chercher la vérité dans les sciences © Rusconi Libri s. r. I, viaie Sarca 235, 20126, Milão, 1997

Edição bilíngüe ítalo-francesa ISBN 88-18-70189-4

TraduçãoThereza Christina Stummer

Impressão e acabamento PAULUS

© PAULUS - 2002 Rua Francisco Cruz, 229 • 04117-091 São Paulo (Brasil)

Fax (11) 5579-3672 «Tel. (11) 5084-3066 www.paulus.com.br • [email protected]

ISBN 85-349-1878-3

tas e aprovadas comumente por outros grandes povos, apren­di a não acreditar com demasiada firmeza naquilo que so­mente me fosse incutido pelo exemplo e pelo costume; as­sim me desfazia pouco a pouco de muitos erros que podem ofuscar nossa luz natural e nos tornar menos capazes de ouvir a razão. Mas depois que empreguei alguns anos a es­tudar dessa maneira no livro do mundo e a tratar de adqui­rir alguma experiência, um dia tomei a resolução de estudar também em mim mesmo e de empregar todas as forças de meu espírito em escolher os caminhos que deveria seguir. Nisso fui mais bem-sucedido, [11] ao que me parece, do que se jamais tivesse me distanciado de meu país e de meus livros.

SEGUNDA PARTE

Encontrava-me, então, na Alemanha,9 para onde me ha­via chamado a ocasião das guerras, que por ali ainda não acabaram; e quando voltava da coroação do imperador para o exército, o começo do inverno me isolou num quartel em que, não tendo encontrado nenhuma conversação que me distraísse, além de, por felicidade, não ter cuidados nem pai­xões que me perturbassem, fiquei durante o dia todo fechado sozinho num quarto aquecido por uma estufa, onde tive todo o lazer para me entreter com meus pensamentos. Um dos primeiros dentre eles foi considerar que freqüentemente não existe tanta perfeição nas obras compostas por várias peças,

9Descartes refere-se ao início do inverno de 1619, por volta de 10 de novembro, quando estava nas proximidades de Ulm, no famoso poèle, isto é, num quarto aquecido por uma estufa. Estava-se no início da Guerra dos Trinta anos, que em 1637 ainda continuava, enquanto terminava a redação definitiva do Discurso do método. Descartes alistara-se nas tropas do duque Maximiliano da Baviera e então retom ava de Frankfurt, onde Fernando, rei da Boêmia e da Hungria, fora coroado im perador com o nome de Ferdinando II.

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e feitas pelas mãos de vários mestres, do que naquelas em que somente um trabalhou. Assim se observa que as constre; ções que um único arquiteto empreendeu e completou costu| mam ser mais belas e bem organizadas do que aquelas que vários se puseram a consertar, utilizando velhas muralhas que haviam sido construídas com outros fins. Assim essas antig' cidades, que de início eram meros burgos, e que se tornara com o tempo, cidades grandes, são comumente tão mal co formadas, quando comparadas com aquelas praças regula que um engenheiro traça segundo sua fantasia numa piai cie, que, embora considerando cada edifício à parte, com fr qüência se encontre neles tanta arte ou mais quanto nos daí outras, entretanto, ao ver como estão alinhados, um grande aqui, um pequeno ali, e como tomam as ruas curvas e de guais, [ 12] dir-se-ia que foi o acaso, mais do que a vontade alguns homens que se servem da razão, que assim os disp“ E se ainda se considerar o fato de que sempre houve funcio nários encarregados de cuidar dos edifícios privados para fa los servir ao embelezamento público, deve-se reconhecer q é bem difícil fazer coisas muito perfeitas trabalhando apen em obras alheias. Assim, imaginei que os povos que foran outrora semi-selvagens, tendo se civilizado apenas pouco pouco, e feito suas leis apenas à medida que o incômodo do; crimes e das querelas a isso os impeliu, não poderiam ser tai bem policiados quanto aqueles que, desde o momento eu que foram reunidos, observaram as constituições de algui prudente legislador.

Eis por que é bem certo que o estado da verdadeira rei gião, cujas regras foram feitas somente por Deus, deve se incomparavelmente melhor regulado do que todos os outros E, para falar de coisas humanas, creio que, se Esparta fo outrora muito florescente, isso não se deveu à excelência d cada uma de suas leis em particular, visto que várias dela eram bem estranhas e até mesmo contrárias aos bons costi mes, mas sim ao fato de, tendo sido concebidas por um st

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tenderem todas a um mesmo fim. E assim pensei que as ciên­cias dos livros, ao menos aquelas cujas razões são apenas pro­váveis, e que não têm nenhuma demonstração, tendo sido compostas e pouco a pouco acrescidas com opiniões de di­versas pessoas, não se aproximam tanto da verdade quanto os raciocínios simples que um homem [13] de bom senso pode fazer naturalmente com respeito às coisas que se lhe apresentam. E pensei ainda que, uma vez que todos fomos crianças antes de sermos homens, e que nos foi preciso du­rante muito tempo sermos governados por nossos apetites e por nossos preceptores, que muitas vezes se opunham uns aos outros, e nem uns nem outros talvez nos aconselhassem sempre o melhor, é quase impossível que nossos juízos sejam tão puros ou tão sólidos quanto seriam caso tivéssemos pleno uso de nossa razão desde o momento de nosso nascimento, e que somente tivéssemos sido guiados por ela.

É verdade que absolutamente não vemos que se joguem por terra todas as casas de uma cidade com o único propósito de reconstruí-las de outro jeito e de tomar suas ruas mais belas; mas vê-se bem que muitos mandam demolir as suas para reconstruí-las, sendo por vezes até mesmo obrigados a fazê-lo, quando estão arriscadas a cair por si próprias, por não terem fundações muito sólidas. Com esse exemplo, fi­quei persuadido de que não seria absolutamente verossímil que um particular tivesse o objetivo de reformar um Estado, mudando tudo nele, desde as fundações, e derrubando-o para reerguê-lo; nem tampouco reformar o corpo das ciências ou a ordem estabelecida nas escolas para ensiná-las; mas que, no que diz respeito a todas as opiniões às quais até então tinha dado fé, não poderia fazer coisa melhor do que tratar, logo de uma vez, de me desembaraçar delas, a fim de substituí-las depois, ou por outras melhores, ou então pelas mesmas, as­sim que as [14] ajustasse ao nível da razão. Acreditava firme­mente que, por essa via, conseguiria conduzir minha vida muito melhor do que se construísse sobre velhas fundações,

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e somente me apoiasse nos princípios de que me deixara per­suadir em minha juventude, sem jamais ter examinado se eram verdadeiros. Pois, não obstante notasse em tudo isso muitas dificuldades, estas não eram no entanto irremediáveis, nem sequer comparáveis às que se encontram na reforma das me­nores coisas relativas ao público. Esses grandes corpos são demasiado difíceis de reerguer, quando postos abaixo, ou mes­mo de sustentar, quando abalados, e sua queda somente pode ser tremenda. Em seguida, quanto às imperfeições, se as têm, como a mera diversidade existente entre eles já confirma que vários as têm, o uso sem dúvida já as atenuou; da mesma for­ma que evitou ou corrigiu insensivelmente outras tantas, as quais não se poderia remediar tão bem pela prudência. E, afi­nal, quase sempre elas são mais suportáveis do que o seria sua mudança; da mesma forma que as grandes estradas, ondulan­do por entre as montanhas, que se tomam pouco a pouco aplai­nadas e tão cômodas de tanto serem percorridas, que é muito melhor segui-las do que tentar avançar em linha reta, subindo por sobre os rochedos e descendo até o fundo dos precipícios.

Eis por que de modo algum poderia aprovar esses tempe­ramentos turbulentos e inquietos que, não sendo chamados ao exercício dos negócios públicos nem por seu nascimento, nem por sua fortuna, não cessam de produzir neles continuamente, em idéia, alguma nova reforma. [15] E caso eu pensasse haver a mínima coisa no presente escrito pela qual se pudesse suspei­tar haver em mim esta loucura, teria remorsos por ter permiti­do sua publicação. Meu objetivo jamais esteve além de procu­rar reformar meus próprios pensamentos e construir sobre um terreno todo meu. De modo que, se, tendo minha obra me agradado bastante, lhes mostro aqui seu modelo, não é que com isso eu queira aconselhar alguém a imitá-la. Aqueles com quem Deus melhor partilhou suas graças terão talvez desíg­nios mais elevados; mas temo que este já seja bem ousado para muitos. A própria resolução de se desfazer de todas as opi­niões às quais se deu crédito anteriormente não é um exemplo

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per- :ram jitas nem me- são

nes- )ode têm, que for- >, as afi- sua lan- )lai- uito ndo ios. tpe- 5 ao iem ite, ver 3ei- iiti- cu- um me iue om !íg- ara ■pi­pio

que cada um deva seguir; e o mundo é composto quase que exclusivamente de dois tipos de espírito aos quais ele absoluta­mente não convém. A saber, daqueles que, acreditando-se mais capazes do que de fato são, não conseguem evitar precipitar seus juízos, nem ter paciência suficiente para conduzir com ordem todos os seus pensamentos: daí decorre que, se tives­sem tomado um vez a liberdade de duvidar dos princípios que receberam e de se afastar do caminho comum, jamais conse­guiriam percorrer a senda que é preciso tomar para ir mais direito, e ficariam perdidos por toda a vida. Depois, daqueles que, por disporem de razão ou modéstia o bastante para julga­rem ser menos capazes de distinguir o verdadeiro do falso do que outros, que poderiam instruí-los, devem antes se conten­tar em seguir as opiniões destes últimos, em vez de procurar por si mesmos outras melhores.

[16] Quanto a mim, estaria sem dúvida no número des­tes últimos, caso tivera apenas um mestre, ou caso não sou­besse as diferenças que sempre existiram entre as opiniões dos mais doutos. Tendo, no entanto, aprendido desde o colé­gio que não se poderia imaginar nada tão estranho nem tão pouco crível que já não tivesse sido sustentado por algum filósofo;10 e em seguida, ao viajar, tendo reconhecido que to­dos aqueles que têm sentimentos totalmente contrários aos nossos nem por isso são bárbaros nem selvagens, mas que muitos se utilizam, tanto ou mais do que nós, da razão; e tendo assim considerado o quanto um mesmo homem, com seu mesmo espírito, caso seja criado desde sua infância entre os franceses ou entre os alemães, torna-se diferente daquele que seria se sempre vivesse entre os chineses ou entre os ca­nibais; e como, até no nosso modo de vestir, aquilo mesmo que nos agradava dez anos atrás, e que talvez nos agradará de novo daqui a menos de outros dez, hoje nos parece extra -

10Descartes cita aqui quase literalmente um trecho de Cícero, De divinadone, II, 58, 119: “Sed nescio quom odo nihil tam absurde dici potest, quod non dicatur ab aliquo Philosophorum ”.

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vagante e ridículo: de maneira que são bem mais o costume e o exemplo que nos persuadem do que qualquer conhecimen­to certo; e que, entretanto, a pluralidade de vozes não é pro­va que valha algo para as verdades um pouco difíceis de des­cobrir, porque é muito mais verossímil que um único homem as tenha encontrado do que todo um povo: eu não podia escolher ninguém cujas opiniões me parecessem dever ser preferidas às dos outros, e me senti como que constrangido a empreender por mim mesmo minha orientação.

Mas, assim como um homem que anda só e na escuri­dão, decidi caminhar tão lentamente e usar [17] de tamanha circunspeção em todas as coisas, que, mesmo se não avanças­se senão muito pouco, evitaria ao menos as quedas. Igual­mente não quis começar a rejeitar inteiramente nenhuma das opiniões que em outros tempos poderiam se insinuar naquilo em que eu acreditava, sem terem sido introduzidas pela ra­zão, antes de ter passado tempo suficiente a elaborar o proje­to da obra que estava empreendendo e a buscar o verdadeiro método para chegar ao conhecimento de todas as coisas de que meu espírito fosse capaz.

Quando mais jovem, havia estudado, entre as partes da filosofia, a lógica, e, entre as matemáticas, a análise dos geômetras e a álgebra, três artes ou ciências que pareciam dever contribuir para meu objetivo. Mas, ao examiná-las, dei- me conta de que, quanto à lógica, seus silogismos e a maior parte de suas outras instruções servem mais para explicar aos outros as coisas que já se sabem,11 ou até mesmo, como a arte de Lúlio,12para falar, sem julgamento, daquelas que se

"Descartes critica aqui a silogística, com suas regras de raciocínio puramente formais.12Raimundo Lullo (12327-1315), filósofo catalão, escreveu u m a/lrs brevis na qual

ensinava um m étodo combinatório para resolver qualquer problem a. Foi provavelmen­te Beeckman quem chamou a atenção de Descartes para a Ars brevis, que Descartes não deve ter lido. Do encontro com um seguidor do filósofo e do resum o que Beeckman lhe fez do texto, Descartes convenceu-se de que a arte de Lulo era um exercício de m alaba­rismo verbal para fascinar o auditório e que, quanto ao conteúdo, não ia além dos lugares-comuns.

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ignoram, do que para aprendê-las. E muito embora ela conte­nha, com efeito, grande número de preceitos muito verdadei­ros e muito bons, existem, no entanto, tantos outros mescla­dos a eles que são ou nocivos, ou supérfluos,13 que é quase tão difícil separá-los quanto extrair uma Diana ou uma Minerva de um bloco de mármore que ainda não está esboça­do. Em seguida, quanto à análise dos antigos14 e à álgebra dos modernos,15 além do fato de se estenderem apenas a matérias muito abstratas, e que parecem não ter qualquer utilidade, a primeira está sempre tão restrita à consideração das figuras, que não consegue exercitar o entendimento [18] sem fatigar muito a imaginação; e, na segunda, se está de tal modo sujeito a certas regras e a certas cifras, que se fez dela uma arte confusa e obscura que embaraça o espírito, em vez de uma ciência que o cultive. Por isso, pensei ser necessário procurar outro método que, englobando as vantagens desses três, estivesse isento de seus defeitos. E como a multiplicidade de leis freqüentemente fornece escusas aos vícios, de sorte que um Estado é bem melhor regulado quando, tendo ainda

l3Nocivos, porque a atenção exclusiva da silogística à correção formal induz a negli­genciar completamente a validade material do conteúdo; supérfluos, porque não aju­dam a colher a verdade do conteúdo.

14Descartes refere-se à análise geométrica antiga, de Euclides, Apolônio de Pérgamo e Aristeu, o velho, que ele conhecia na codificação datada de Papus, do século 111 d.C. Esse método consiste na análise das condições necessárias para resolver um problema, conside­rando o problema como já resolvido, tom ando a percorrer a série de condições até chegar a uma verdade conhecida. Ou seja, o método segue as etapas inventivas por meio das quais foi encontrada a solução do problema a partir da solução, retrocedendo até as premissas. Se, por exemplo, o problema a ser resolvido for a trissecção do ângulo, é necessário partir de um ângulo já dividido em três partes iguais, traçando seu desenho num plano e, em seguida, se perguntar em que condição foi possível a trissecção. Encontrar tais condições é percorrer o caminho inventivo que leva à solução do problema. Os geômetras antigos trabalhavam na solução do problema raciocinando diretamente sobre as figuras, e isso explica a observação de Descartes, logo a seguir, de que o método deles cansa a imaginação.

15A álgebra fizera grandes progressos nos séculos XVI e XVII, e Descartes a conhe­cera por interm édio da notação de Clavius, jesuíta autor de um texto de Álgebra existen­te na biblioteca de La Flèche. A notação de Clavius, m uito complicada, empregava caracteres cósicos (isto é, que estavam no lugar das coisas matemáticas, tais como o número, a raiz, o quadrado etc.) A nom enclatura dessas cifras cósicas variava segundo os autores, e isso explica a crítica de Descartes, que reprovava a álgebra pelo fato de ela ser obscura e confusa.

que poucas, são estritamente observadas; assim, em vez des­se grande número de preceitos de que se compõe a lógica, julguei que os quatro seguintes seriam suficientes, contanto que eu tomasse a firme e constante resolução de não falhar nem uma única vez em observá-lo.

O primeiro era o de jamais aceitar alguma coisa como verdadeira que eu não reconhecesse evidentemente como tal; isto é, o de evitar cuidadosamente a precipitação e a preven­ção; e de compreender em meus juízos somente aquilo que se apresentasse de maneira tão clara e distinta ao meu espírito que eu não tivesse nenhuma ocasião de pô-lo em dúvida.

O segundo, o de dividir cada uma das dificuldades que eu examinasse em tantas pequenas partes quanto fosse possí­vel e necessário para melhor resolvê-las.

O terceiro, o de conduzir meus pensamentos com or­dem, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para pouco a pouco me elevar, como por degraus, até o conhecimento dos mais complexos; e supondo mesmo uma ordem, entre aqueles [ 19] que não se precedem natural­mente uns aos outros.

E o último, o de fazer em toda a parte enumerações tão completas e revisões tão gerais, que me sentisse seguro de nada omitir.

Esses longos encadeamentos de razões simples e fáceis, que os geômetras têm o hábito de utilizar para chegar a suas mais difíceis demonstrações, tinham-me dado a oportunida­de de imaginar que todas as coisas que possam cair no conhe­cimento dos homens se sucedem da mesma maneira, e que, contanto que apenas nos abstenhamos de tomar alguma por verdadeira quando não o é, e que mantenhamos sempre a ordem necessária, a fim de deduzi-las umas das outras, não pode haver tão longínquas às quais não se possa chegar en­fim, nem tão escondidas que não se consiga descobrir. E não me foi complicado procurar por quais deveria começar: pois já sabia que seria pelas mais simples e mais fáceis de conhe­

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cer; e considerando o fato de que, entre todos aqueles que até agora pesquisaram a verdade nas ciências, somente os mate­máticos puderam encontrar algumas demonstrações, isto é, algumas razões certas e evidentes, não duvidei de que o tives­sem feito por intermédio das mesmas que eles examinaram; muito embora eu não esperasse disso nenhuma outra utilida­de além de habituarem meu espírito a se nutrir de verdades e a não se contentar com falsas razões. Para tanto, porém, não tive como meta aprender todas essas ciências particulares que comumente são chamadas matemáticas;16 [20] vendo que, apesar de seus objetos serem diferentes, não deixam de con­cordar todas em considerar apenas as diferentes relações ou proporções que lá se encontram, pensei que seria melhor exa­minar somente essas proporções em geral, supondo-as ape­nas nos objetos que serviriam para me tomar mais fácil o seu conhecimento; mesmo assim, sem as restringir a eles de modo algum, a fim de poder depois aplicá-las melhor a todos os outros objetos aos quais conviessem. Em seguida, tendo-me dado conta de que, para conhecê-las, teria por vezes a neces­sidade de considerá-las cada uma em particular, e outras ve­zes somente de as recordar, ou compreender várias delas jun­tas, pensei que, para melhor considerá-las em particular, deveria supô-las em linhas, porque nada encontrei de mais simples, nem que pudesse representar mais distintamente à minha imaginação e aos meus sentidos; mas que, para as re­cordar, ou compreender várias delas juntas, seria preciso que as exprimisse por algumas cifras, as mais breves possíveis; e que, por esse meio, empregaria tudo o que de melhor haveria na análise geométrica e na álgebra, e corrigiria todos os de­feitos de uma por intermédio da outra.17

l6No século XVII, a m atem ática , segundo o uso esco lástico , divide-se em M athem aticae purae (“matemáticas puras”) e M athem aticae m ixtae (“m atemáticas m istas”), de acordo com seu objeto. As primeiras dividem-se em aritmética e geometria, e as últimas em astronomia, música, óptica, mecânica e outras.

I7Descartes acena para a gênese de sua descoberta da geometria analítica, que pou-

Como, de fato, ouso afirmar que a exata observação desses poucos preceitos que escolhi me propiciou tal facilida­de para resolver todas as questões sobre as quais essas duas ciências se estendem, que, nos dois ou três meses que empre­guei em examiná-las,18 tendo começado pelas mais simples e gerais — cada verdade que encontrava sendo uma regra que me [21] servia depois para encontrar outras —, não somente resolvi algumas que outrora havia julgado muito difíceis,19 como também, ao final, pareceu-me poder determinar, mes­mo naquelas que ignorava, por que meios e até onde seria possível resolvê-las. Nisso talvez eu lhes possa parecer não muito vaidoso, se considerarem que havendo apenas uma verdade para cada coisa, quem quer que a encontre saberá sobre ela tanto quanto se pode saber; e que, por exemplo, uma criança instruída em aritmética, tendo feito uma adição de acordo com as regras, pode estar segura de ter encontra­do, com respeito à soma que examinava, tudo o que o espíri­to humano poderia encontrar. Pois, afinal, o método que en­sina a seguir a ordem verdadeira e a enumerar exatamente todas as circunstâncias daquilo que se procura contém tudo o que dá certeza às regras da aritmética.

Mas o que mais me satisfazia neste método era o fato de que, por intermédio dele, estava seguro de utilizar minha ra­zão em tudo, se não de modo perfeito, ao menos o melhor que me era possível; além do que, sentia, com a prática, que meu espírito pouco a pouco se acostumava a conceber mais

co depois é novamente evocada como confirmação da eficácia das regras do método propostas anteriormente. Na geometria analítica cartesiana, as quantidades descontínuas (os números) são representadas por quantidades contínuas (as linhas). Deste modo, Descartes toma a clareza representativa da geometria e a brevidade do simbolismo algé­brico e corrige a dependência da geometria em relação à imaginação, à m edida que a algebriza, ao mesmo tem po que permite um a representação visível da notação algébri­ca, que de outro modo seria constituída apenas de fórmulas.

l8Entre o final de 1619 e os primeiros meses de 1620.19Descartes resolve definitivamente m uitos problem as deixados em aberto pela

geometria clássica: o problema da duplicação do cubo, o da trissecção do ângulo, o chamado problema de Pappus, e outros.

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nítida e distintamente os seus objetos e que, não o tendo sub­metido a nenhuma matéria particular, prometia a mim mes­mo aplicá-lo tão utilmente às dificuldades das outras ciências como havia feito com as da álgebra. Não que, para tanto, ousasse empreender primeiramente o exame de todas as que se apresentassem; pois isso também seria contrário à ordem que ele prescreve. Mas, tendo notado que seus princípios deviam ser todos tirados da [22] filosofia, na qual não encon­trava ainda quaisquer que fossem certos, pensei que me seria preciso, antes de mais nada, tratar de estabelecê-los; e que, sendo essa a coisa mais importante do mundo, e na qual a precipitação e a prevenção eram o que de mais temer, não deveria obstinadamente empreender sua realização sem que tivesse chegado a uma idade bem mais madura do que a de 23 anos, que eu tinha então;20 nem tampouco, sem que tives­se empregado muito tempo em preparar-me para isso, seja desenraizando de meu espírito todas as opiniões falazes que havia recebido antes dessa época, seja acumulando diversas experiências, que depois seriam matéria de meus raciocínios, seja exercitando-me sempre no método que me havia prescri­to, a fim de nele me consolidar cada vez mais.

TERCEIRA PARTE

Finalmente, como não basta, antes de começar a recons­truir a casa onde se mora, limitar-se a derrubá-la e prover-se de materiais e de arquitetos, ou exercitar-se a si próprio na arquitetura, além de ter cuidadosamente traçado o projeto, mas é necessário também se ter procurado outra onde se pos­sa ficar alojado confortavelmente durante o período de tra­balhos; assim, para que eu não permanecesse irresoluto em

20Descartes nasceu em 31 de m arço de 1596 e contava 23 anos no m omento do anode 1619 em que esteve na Alemanha, naquele quarto bem aquecido, a meditar.

com seus próprios negócios do que curioso pelos dos outros, e sem carecer de nenhuma das comodidades que existem nas cidades mais populosas, pude viver tão solitário e retirado quanto nos desertos mais remotos.

QUARTA PARTE

Não sei se devo falar-lhes das primeiras meditações que fiz aí; pois são tão metafísicas e tão pouco comuns, que tal­vez não serão do gosto de todo o mundo. No entanto, para que se possa julgar se os fundamentos que estabeleci são fir­mes o bastante, sou como que obrigado a falar-lhes delas. Havia muito tempo eu reparara que, quanto aos costumes, por vezes é necessário seguir opiniões que sabemos serem muito incertas, tal como se fossem indubitáveis, como já foi dito acima; mas, porque desejava então dedicar-me somente à busca da verdade, pensei que me seria preciso fazer exata­mente o contrário, e rejeitar como absolutamente falso tudo aquilo em que pudesse imaginar a menor dúvida, a fim de verificar se, depois disso, não restaria alguma coisa em mi­nha crença que fosse inteiramente indubitável. Assim, pelo [32] fato de que os sentidos às vezes nos enganam, quis su­por que não havia coisa alguma que fosse da maneira que eles nos fazem imaginar. E porque existem homens que se equivocam ao raciocinar, mesmo no que diz respeito às mais simples matérias de geometria, e aí cometem paralogismos,28 julgando que estava sujeito a falhar tanto quanto qualquer outro, rejeitei como falsas todas as razões que havia tomado anteriormente como demonstrações. E enfim, considerando que todos os mesmos pensamentos que temos quando acor­dados podem também nos ocorrer enquanto dormimos, sem que nenhum deles seja verdadeiro naquele momento, resolvi

28Raciocínios equivocados.

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fingir que todas as coisas que até então haviam entrado em meu espírito eram tão verdadeiras quanto as ilusões de meus sonhos. Mas, desde logo, dei-me conta de que, enquanto que­ria assim pensar que tudo era falso, era preciso necessaria­mente que eu, que o estava pensando, fosse alguma coisa. E notando que essa verdade: penso, logo existo, era tão firme e tão certa que todas as mais extravagantes suposições dos cé­ticos não seriam capazes de abalá-la, julguei poder aceitá-la, sem escrúpulo, como o primeiro princípio da filosofia que procurava.

Em seguida, examinando com atenção o que eu era, e vendo que poderia fingir não ter nenhum corpo, e que não havia mundo algum, ou lugar algum onde eu estivesse; mas que nem por isso poderia fingir que eu não existia; e, ao con­trário, do próprio fato de eu pensar em duvidar da verdade das outras coisas, seguia-se muito evidente e muito certamente que eu existia; ao passo que, se tivesse apenas [33] cessado de pensar, embora todo o restante do que havia imaginado fosse verdadeiro, eu não teria qualquer razão para acreditar que eu existisse: disso reconheci que eu era uma substância cuja essência ou natureza é somente pensar,29 e que, para ser, não tem necessidade de nenhum lugar nem depende de ne­nhuma coisa material. De sorte que esse eu, isto é, a alma, pela qual sou o que sou, é inteiramente distinta do corpo, e, antes, é mais fácil de conhecer do que ele, e mesmo que este nada fosse, ela não deixaria de ser tudo aquilo que é.

Depois disso, considerei em geral aquilo que se requer a uma proposição para que seja verdadeira e certa; pois, já que acabara de encontrar uma que eu sabia ser assim, pensei que deveria saber também em que consiste essa certeza. E tendo

29Descartes retom a a terminologia escolástica, para a qual substância é aquilo que não necessita senão de si para subsistir; a essência faz que a coisa seja aquilo que é; a natureza é substância considerada como princípio operacional. Descartes não dá sua definição de essência, substância ou natureza, m uito embora empregue essas expres­sões em sentido diverso do escolástico.

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notado que não há nada no penso, logo existo a me assegurar que estou dizendo a verdade, exceto que vejo muito clara­mente que, para pensar, é preciso existir, julguei poder tomar como regra geral que as coisas que concebemos muito clara e muito distintamente são todas verdadeiras, e que há somente alguma dificuldade em distinguir bem quais são as que con­cebemos distintamente.

Em seguida, ao refletir a respeito daquilo que duvidava, e que, por conseqüência, meu ser não era totalmente perfei­to, pois via claramente que conhecer é perfeição maior do que duvidar, decidi buscar de onde aprendera a pensar em algo mais perfeito do que eu era. E conheci, com evidência, que deveria ser [34] de alguma natureza que fosse de fato mais perfeita. No que dizia respeito aos pensamentos que ti­nha de muitas outras coisas fora de mim, como do céu, da terra, da luz, do calor, e de mil outras, não me era tão difícil saber de onde provinham, pois, não notando neles nada que me parecesse torná-los superiores a mim, podia crer que, se fossem verdadeiros, eram dependências de minha natureza, à medida que esta tinha alguma perfeição; e se não o eram, que eu os derivava do nada, isto é, que estavam em mim pelo que eu tinha de falho. Mas não podia ocorrer o mesmo com a idéia de um ser mais perfeito do que o meu: pois derivá-la do nada é coisa manifestamente impossível; e, visto que não há menos contradição que o mais perfeito seja uma conseqüên­cia e uma dependência do menos perfeito quanto que do nada procede alguma coisa, eu não podia tampouco derivá-la de mim mesmo. De modo que restava apenas que tivesse sido posta em mim por uma natureza que fosse verdadeiramente mais perfeita do que a minha, e que mesmo tivesse em si todas as perfeições de que eu pudesse ter alguma idéia, quer dizer, para explicar-me em uma só palavra, que fosse Deus. A isso acrescentei que, uma vez que conhecia algumas perfei­ções que absolutamente não possuía, eu não era o único ser que existia (utilizarei aqui livremente, se lhes aprouver, os

termos da Escola),30 mas que cumpria necessariamente, ha­ver algum outro mais perfeito, do qual eu dependesse, e do qual tivesse adquirido tudo aquilo que possuía. Pois, se eu fosse só e independente de qualquer outro, de modo que ti­vesse obtido, [35] de mim mesmo, todo esse pouco pelo qual participava do ser perfeito, poderia obter de mim, pela mes­ma razão, tudo o mais que sabia faltar-me, e ser assim eu próprio infinito, eterno, imutável, onisciente, onipotente, e afinal ter todas as perfeições que eu podia notar existirem em Deus. Pois, seguindo os raciocínios que acabo de fazer, para conhecer a natureza de Deus, tanto quanto a minha fosse capaz, bastava que eu considerasse, de todas as coisas das quais eu encontrava em mim qualquer idéia, se era ou não perfeição possuí-las, e estava seguro de que nenhuma das que assinalavam alguma imperfeição existiam nele, mas que to­das as outras existiam. Assim, eu via que a dúvida, a incons­tância, a tristeza e coisas semelhantes não podiam existir nele, visto que eu mesmo ficaria bem contente de estar delas isen­to. Além disso, eu tinha idéias de várias coisas sensíveis e corpóreas; pois, embora supusesse que estava sonhando, e que tudo o que via ou imaginava fosse falso, não podia, en­tretanto, negar que aquelas idéias existissem verdadeiramen­te em meu pensamento; mas, uma vez que já havia reconhe­cido em mim muito claramente que a natureza inteligente é distinta da corpórea, considerando que toda a composição atesta dependência, e que a dependência31 é manifestamente um defeito, julguei a partir disso que não poderia ser uma perfeição em Deus, o ser composto dessas duas naturezas, e que, por conseguinte, ele não o era; mas que, se havia alguns corpos no mundo, ou algumas inteligências, ou outras natu­rezas, que não fossem totalmente [36] perfeitos, o ser deles

30Descartes alude à filosofia escolástica.3‘Princípio da filosofia escolástica pelo qual a composição atesta dependência à

m edida que cada parte do composto depende das outras e o todo depende das partes.

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deveria depender do poder de Deus, de modo que não pudes­sem subsistir sem ele um só momento.

Depois disso, desejei procurar outras verdades, e, ten­do-me proposto o objeto dos geômetras, que eu concebia como um corpo contínuo, ou um espaço indefinidamente extenso em comprimento, largura e altura ou profundidade, divisível em diversas partes, que poderiam ter diversas figuras e tama­nhos, e ser movidas ou transpostas de todas as maneiras, pois os geômetras supõem tudo isso em seu objeto, percorri algu­mas de suas demonstrações mais simples. E, tendo notado que essa grande certeza, que todos lhes atribuem, funda-se apenas no fato de que se as concebem com evidência, de acor­do com a regra que há pouco enunciei, notei também que nada havia nelas que me assegurasse a existência de seu obje­to. Pois, por exemplo, eu bem via que, supondo um triângu­lo, era necessário que seus três ângulos fossem iguais a dois retos; mas nem por isso via algo que me assegurasse haver no mundo algum triângulo. Ao passo que, tornando a examinar a idéia que tinha de um Ser perfeito, considerava que a exis­tência aí estava inclusa, da mesma forma que na de um triân­gulo está incluso que seus três ângulos são iguais a dois retos, ou na de uma esfera que todas as suas partes são eqüidistantes de seu centro, ou mesmo de modo ainda mais evidente; e que, por conseguinte, é pelo menos tão certo que Deus, que é esse ser perfeito, é ou existe, quanto qualquer demonstração de geometria poderia ser.

[37] Mas o que faz com que muitos fiquem persuadidos de que há dificuldade em conhecê-lo, e mesmo também em conhecer o que é a sua alma, é o fato de nunca elevarem seu espírito além das coisas sensíveis e de estarem de tal forma acostumados a considerar tudo apenas imaginando — que é uma maneira particular de pensar as coisas materiais — que tudo o que não é imaginável parece-lhes não ser inteligível. O que é bem manifesto pelo fato de os próprios filósofos terem como máxima, nas escolas, que não há nada no entendimen-

to que não tenha estado primeiramente nos sentidos,32 onde, no entanto, é certo que as idéias de Deus e da alma jamais estiveram. E me parece que aqueles que querem usar a imagi­nação para compreendê-las fazem exatamente como se, para ouvir os sons ou sentir os odores, quisessem servir-se dos olhos: com a diferença, porém, de que o sentido da vista não nos assegura menos a verdade de seus objetos do que os do olfato ou da audição; ao passo que, nem nossa imaginação nem nossos sentidos poderiam jamais nos assegurar de coisa alguma, caso nosso entendimento não interviesse.

Enfim, se existem ainda homens que não estejam persua­didos o bastante da existência de Deus e da alma deles, pelas razões que apresentei, quero que saibam que todas as outras coisas, das quais pensam talvez estar mais seguros, como a de terem um corpo, haver astros e uma terra, e coisas simila­res, são ainda menos certas. Pois, embora haja dessas coisas uma certeza moral de tal ordem que a de tal ordem parece[38] não ser possível dela duvidar, a menos que se seja extra­vagante; no entanto, também, quando se trata de certeza metafísica, a menos que se seja desarrazoado, não se pode negar que seja motivo suficiente para não estar totalmente seguro o fato de notar que, quando dormindo, se pode do mesmo modo imaginar que se tem outro corpo, que se vêem outros astros e outra terra, sem que de modo algum assim o seja. Pois, de onde se sabe que os pensamentos que vêm em sonho são mais falsos do que os outros, visto que com fre­qüência não são menos vivos e explícitos? E ainda que os melhores espíritos estudem isso tanto quanto lhes aprouver, não creio que possam dar nenhuma razão suficiente para eli­minar essa dúvida, se não pressupuserem a existência de Deus. Pois, em primeiro lugar, aquilo mesmo que há pouco tomei como regra, a saber, que as coisas que concebemos muito claramente e muito distintamente são todas verdadeiras, so-

32Alusão ao ditado escolástico: “Nihil est in intellectu quod prius non fuerit in sensu”.

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mente é assegurado porque Deus é ou existe, e é um ser perfei­to, e tudo o que existe em nós provém dele. Donde se segue que nossas idéias ou noções, sendo coisas reais e provenientes de Deus em tudo em que são claras e distintas, não podem ser senão verdadeiras. De sorte que, se temos algumas que muito freqüentemente contêm falsidade, somente podem ser aquelas que têm algo de confuso e de obscuro, porque nisso participam do nada, isto é, são assim confusas em nós pelo motivo de não sermos de todo perfeitos. E é evidente que não é menos contraditório admitir que a falsidade ou a imperfei­ção [39] procedam de Deus, como tais, do que admitir que a verdade ou a perfeição procedam do nada. Mas se absoluta­mente não soubéssemos que tudo o que existe em nós de real e verdadeiro provém de um ser perfeito e infinito, por claras e distintas que fossem nossas idéias não teríamos nenhuma razão que nos assegurasse que elas possuem a perfeição de ser verdadeiras.

Ora, depois que o conhecimento de Deus e da alma nos tinha, assim, dado certeza dessa regra, é muito fácil reconhe­cer que as fantasias que imaginamos quando adormecidos não nos devem, absolutamente, fazer duvidar da verdade dos pensamentos que temos quando despertos. Pois, se aconte­cesse que, mesmo dormindo, tivéssemos alguma idéia muito distinta como, por exemplo, a de que um geômetra inventas­se alguma demonstração nova, seu sono não a impediria de ser verdadeira. E, quanto ao erro mais comum de nossos so­nhos, que consiste em nos representarem vários objetos da mesma maneira que fazem nossos sentidos exteriores, não importa que nos dê ocasião de desconfiar da verdade de tais idéias, uma vez que estas podem também nos enganar, muito freqüentemente, sem que estejamos dormindo: como quan­do aqueles que sofrem de icterícia vêem tudo da cor amarela, ou como os astros ou outros corpos muito distantes nos pare­cem ser bem menores do que de fato são. Pois, enfim, quer estejamos em vigília, quer dormindo, jamais devemos nos

deixar persuadir, a não ser pela evidência de nossa razão. E deve-se notar que digo de nossa razão, e de modo algum de nossa imaginação ou de nossos sentidos. De modo que, em­bora vejamos o sol [40] muito claramente, não devemos jul­gar por isso que ele seja só do tamanho que o vemos; e pode­mos bem im aginar distintam ente uma cabeça de leão enxertada no corpo de uma cabra, sem que seja necessário concluir, por isso, que exista no mundo uma quimera: pois a razão não nos dita que aquilo que vemos ou imaginamos as­sim seja verdadeiro. Ela, em vez, nos dita que todas as nossas idéias ou noções devem ter algum fundamento de verdade; pois não seria possível que Deus, que é sumamente perfeito e verdadeiro, as tivesse posto em nós sem isso. E, pelo fato de nossos raciocínios jamais serem tão evidentes nem tão com­pletos durante o sono como durante a vigília, apesar de se­rem nossas imaginações por vezes tanto ou mais vivas e ex­pressas, a razão nos dita também que, não podendo nossos pensamentos serem inteiramente verdadeiros, porque não somos de todo perfeitos, aquilo que eles contêm de verdade deve infalivelmente encontrar-se naqueles que temos quando acordados, mais do que em nossos sonhos.

QUINTA PARTE

Gostaria muito de continuar e mostrar aqui todo o enca­deamento das outras verdades que deduzi dessas primeiras. Mas, visto que, para tanto, seria agora necessário que falasse de várias questões que causam controvérsias entre os doutos,33 com os quais não desejo polemizar, creio que será melhor me abster e somente dizer, em geral, quais são elas, a fim de dei­xar que os mais sábios julguem se seria útil que o público

“ Descartes refere-se aos eruditos daquela filosofia escolástica, que deduziam a físi­ca daquela filosofia.

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