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O DIREITO PENAL EM DEBATE:A eficácia do sistema criminal na

sociedade contemporânea

2014 Minas Gerais

Marcus Vinícius ribeiro cunha

bernardo Morais caValcanti

Organizadores

O DIREITO PENAL EM DEBATE:A eficácia do sistema criminal na

sociedade contemporânea

lorrany Kesther diniz

Patrícia Martins de aguiar Priscilla aMaral

brunna Patrícia Moraes Peres

Juliana aParecida

carolinne aParecida naVes da Motta

Pedro lucas silVa Fernandes

barbara bruna deMostenes ghelli

dienniFer de oliVeira Pena

odilon Martins raMos Junior

O DIREITO PENAL EM DEBATE:A eficácia do sistema criminal na

sociedade contemporânealuciana argenton

luiz Paulo alVes dos santos

thiago chaVes de Melo

iValdeVino carlos Magalhães

Kleber rogério leocádio

Pedro henrique Vieira

Vanusa aParecida alVes

renê luiz da costa

arinos Fonseca

Maria aParecida aMaral

Apoio:

Nossos Contatos São Paulo Rua José Bonifácio, n. 209, cj. 603, Centro, São Paulo – SP CEP: 01.003-001 Acesse: www. editoraclassica.com.brRedes Sociais Facebook: http://www.facebook.com/EditoraClassica Twittter: https://twitter.com/EditoraClassica

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE

D597 Cunha, Marcus Vinícius Ribeiro – Organizador.Cavalcanti, Bernardo Moraes – Organizador.O direito penal em debate : A eficácia do sistemacriminal na sociedade contemporânea.Título independente.Minas Gerais : 1ª. ed. Clássica Editora, 2014.

ISBN 978-85-99651-86-5 1. Direito penal.I. Título.

CDD 341.5

Editora Responsável: Verônica GottgtroyProdução Editorial: Editora Clássica Capa: Editora Clássica

Equipe Editorial

EDITORA CLÁSSICA

Allessandra Neves FerreiraAlexandre Walmott Borges Daniel Ferreira Elizabeth Accioly Everton Gonçalves Fernando Knoerr Francisco Cardozo de Oliveira Francisval Mendes Ilton Garcia da Costa Ivan Motta Ivo Dantas Jonathan Barros VitaJosé Edmilson Lima Juliana Cristina Busnardo de Araujo Lafayete PozzoliLeonardo Rabelo Lívia Gaigher Bósio Campello Lucimeiry Galvão

Luiz Eduardo GuntherLuisa Moura Mara Darcanchy Massako Shirai Mateus Eduardo Nunes Bertoncini Nilson Araújo de Souza Norma Padilha Paulo Ricardo Opuszka Roberto Genofre Salim Reis Valesca Raizer Borges Moschen Vanessa Caporlingua Viviane Coelho de Séllos-Knoerr Vladmir Silveira Wagner Ginotti Wagner Menezes Willians Franklin Lira dos Santos

Conselho Editorial

APRESENTAÇÃO

É com imensa satisfação que apresentamos à comunidade jurídica a presente obra, composta por artigos de cunho científico elaborados por discentes do Curso de Direito da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais – FACIHUS, da Fundação Carmelitana Mário Palmério (FUCAMP), situada em Monte Carmelo-MG.

Trata-se da concretização de um sonho compartilhado por discentes, docentes, coordenadores e direção da nossa querida FUCAMP, voltado a incentivar a pesquisa dentro do curso e a divulgar o trabalho que vem sendo desenvolvido na instituição.

Neste momento de euforia e entusiasmo, não podemos deixar de agradecer ao apoio incondicional oferecido pela Direção da FUCAMP, na pessoa do Prof. Ms. Guilherme Marcos Ghelli, à Coordenadora Geral de Ensino da instituição, Profª. Kelma Gomes Mendonça Ghelli e ao Coordenador do Curso de Direito, Prof. Dr. Leosino Bizinoto Macedo, que aceitou – para nossa honra – prefaciar o presente trabalho.

Por fim, agradecemos e parabenizamos a todos os autores, alunos da FUCAMP, pela dedicação nesta nobre tarefa de produção de conhecimento, difundindo à sociedade jurídica a cultura e o pensamento sob a perspectiva do aluno de graduação.

Esperamos que as ideias apresentadas na presente obra possam contribuir de alguma forma ao meio acadêmico e a todos aqueles que dedicarem seu tempo para sua leitura.

Alto Paranaíba, março de 2014

Marcus Vinícius ribeiro cunha ebernardo Morais caValcanti

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O DIREITO PENAL EM DEBATE: A eficácia do sistema criminal na sociedade contemporânea

PREFÁCIO

Muito me honra o convite do Professor Marcus Vinícius Ribeiro Cunha e dos 7º e 8º Períodos do Curso de Direito da FUCAMP, para prefaciá-la, o que faço, inclusive, em nome de todos os meus colegas docentes. Com certeza, não há prêmio maior para quem ofereceu alguma contribuição intelectual aos jovens do que vê-los despontar entre aqueles que trilham os caminhos abertos pelo conhecimento adquirido nos bancos da Faculdade.

Motivo de enorme felicidade é, na condição de Coordenador do Curso de Direito da FUCAMP, ver brotar um livro como este, resultante do empenho dos alunos e do trabalho perseverante e cuidadoso do Professor Marcus Vinícius Ribeiro Cunha, inspirador e coorganizador da obra, apoiado pelos demais docentes do Curso.

Rasgados elogios merece a Direção da FUCAMP, representada pelo Diretor Geral Professor Ms Guilherme Marcos Ghelli e pela Coordenadora Geral de Ensino da Instituição, Profª. Kelma Gomes Mendonça Ghelli, por compreenderem e estimularem a produção discente, oferecendo todo apoio necessário à publicação dos trabalhos aqui reproduzidos.

A obra ora prefaciada, que se intitula O Direito Penal em debate: a eficácia do sistema criminal na sociedade contemporânea, foi composta em onze capítulos, voltados à discussão de assuntos candentes da área penal. A abordagem corajosa de temas de tão grande relevância presta-se, sem dúvida, para introduzir e, quiçá, projetar seus autores no cenário jurídico brasileiro. Esse fato é motivo de orgulho para toda a comunidade acadêmica da FUCAMP e servirá de incentivo aos alunos, cujos nomes não aparecem nesta publicação, no sentido de que percebam que é possível produzir com qualidade, desde que haja investimento intelectual sério na execução de uma proposta acadêmica.

A iniciativa de estruturar e publicar a obra resulta de uma perspectiva diferenciada que, aos poucos, se vem implantando no que concerne às pesquisas levadas a efeito no Curso de Direito da FUCAMP. Tem-se procurado mostrar aos discentes do curso a importância de se encarar com a máxima seriedade toda pesquisa como oportunidade para se produzir cientificamente. Os trabalhos acadêmicos, sem sombra de dúvida, não devem estar voltados, apenas, para

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a obtenção de nota; ao contrário, devem ser elaborados na perspectiva de que possam ser úteis na paulatina construção do Curriculum Vitae desejável. Todos sabem das dificuldades que, hoje em dia, se apresentam ao se enfrentar a competividade presente em todas as áreas e que se faz refletir nos processos seletivos e no mercado de trabalho.

Ao parabenizar, mais uma vez, os organizadores da obra, chamo a atenção para o fato de que bem poucas faculdades conseguem uma vitória como esta, o que vem comprovar que o estímulo à pesquisa jurídica por parte do corpo docente traz resultados pessoais e institucionais.

Finalizo manifestando a expectativa de que o leitor tenha bom proveito na leitura e de que, na medida do possível, dê seu feed back para que a proposta seja permanentemente aperfeiçoada. Lembro que o título da obra, O Direito Penal em debate: a eficácia do sistema criminal na sociedade contemporânea, por si, aponta na direção de seu objetivo: estimular a discussão em torno de assuntos relevantes pertencentes ao âmbito do Direito Penal.

Monte Carmelo, 08 de março de 2014.Prof. dr. leosino bizinoto Macedo

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Sumário

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APRESENTAÇÃO ..........................................................................................

PREFÁCIO .....................................................................................................

A (IN)EFICÁCIA DAS MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS NO BRASIL Lorrany Kesther Diniz; Patrícia Martins de Aguiar; Priscilla Amaral ...

SERIAL KILLERS E OS CRIMES HEDIONDOS NO BRASIL: QUAL A SAN-ÇÃO PENAL ADEQUADA?Brunna Patrícia Moraes Peres; Juliana Aparecida ..................................

A (IN)CONSTITUCIONALIDADE DA INFRAÇÃO DO ARTIGO 273 DO CÓDIGO PENAL BRASILEIROCarolinne Aparecida Naves da Motta; Pedro Lucas Silva Fernandes ......

É CABÍVEL A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA AO CRIME DE TRÁFICO DE DROGAS NO BRASIL? Barbara Bruna Demostenes Ghelli; Diennifer de Oliveira Pena .............

A INFRAÇÃO PENAL DO ARTIGO 1º, § 2º DA LEI Nº 9.455 DE 1997 É CONSTITUCIONAL?Odilon Martins Ramos Junior; Renê Luiz Da Costa ..................................

DA NECESSIDADE DE INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA DO ARTIGO 5º, XLIII DA CONSTITUIÇÃO PARA A GARANTIA DE MAIOR RIGOR NO TRATAMENTO DOS CRIMES HEDIONDOS Luciana Argenton; Luiz Paulo Alves dos Santos .......................................

O REFLEXO DO SISTEMA DE PROTEÇÃO INTERNACIONAL DOS DIREI-TOS HUMANOS NA ORDEM JURÍDICA BRASILEIRA Priscilla Amaral; Thiago Chaves de Melo ..................................................

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O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA E O CRIME DO ARTIGO 28 DA LEI DE TÓXICOS Ivaldevino Carlos Magalhães; Kleber Rogério Leocádio; Pedro Henrique Vieira ............................................................................................

DOS DELITOS E DAS PENAS – APLICAÇÃO DA LEI À LUZ DO PENSA-MENTO DE BECCARIA Vanusa Aparecida Alves ...............................................................................

TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL, ESTATUTO DE ROMA E A PENA DE PRISÃO PERPÉTUA Maria Aparecida Amaral; Thiago Chaves de Melo ...................................

A RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA NOS CRIMES AMBIENTAIS NO BRASIL Arinos Fonseca ............................................................................................

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O DIREITO PENAL EM DEBATE: A eficácia do sistema criminal na sociedade contemporânea

A (IN)EFICÁCIA DAS MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS NO BRASIL

lorrany Kesther diniz

Patrícia Martins de aguiar Priscilla aMaral

1. INTRODUÇÃO

Sob o olhar da doutrina da proteção integral, no âmbito internacional, a Convenção sobre os Direitos da Criança foi adotada pelas Nações Unidas em novembro de 1989, entrou em vigor em 1990, tendo sido ratificada pelo Brasil em 24 de setembro do mesmo ano, merecendo destaque o fato de que a referida convenção não aborda expressamente os adolescentes.1

Antes, contudo, precisamente em 05 de outubro de 1988 entrou em vigor a atual Constituição Cidadã de 1988, a qual tratou nos artigos 227, 228 e 229 sobre os direitos das crianças e adolescentes.

Ademais, em outubro de 1990 entrou em vigor o Estatuto da Criança e Adolescente (ECA)2, o qual trouxe uma nova concepção sobre os direitos fundamentais das crianças e adolescentes no país.

Com efeito, o ECA conceitua criança como sendo “a pessoa até doze anos de idade incompletos”, e adolescente “aquela entre doze e dezoito anos de idade”.3

Vale mencionar que antes da Lei 8.069/90, o código que continha as normas sobre crianças e adolescentes não passava de um “Código Penal do Menor”4, haja vista que se preocupava apenas com sancionamentos, esquecendo-se os direitos e às normas protetivas às famílias.

Nesta perspectiva, a Lei 8.069/90 trouxe como eixo principiológico estruturante os seguintes princípios: a) proteção integral aos direitos fundamentais da criança e do adolescente; b) prioridade absoluta (estabelece que os direitos das crianças e adolescentes devem ser protegidos em primeiro lugar em relação a qualquer outro grupo social, inclusive com a possibilidade de tutela judicial de seus direitos fundamentais).

1 FALSARELLA, Christiane. O impacto da Convenção sobre os Direitos da Criança no Direito Brasileiro. Revista de Direito Constitucional e Internacional, ano 21, v. 83, abr.-jun./ 2013, p. 412.2 BRASIL. Lei 8.069, de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. Diário Oficial da União. Brasília, 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm> Acesso em: 17 de novembro de 2013.3 ISHIDA, Válter Kenji. Estatuto da Criança e do Adolescente: Doutrina e Jurisprudência. 8.ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 2.4 CASSANDRE, Andressa Cristina Chiroza. A eficácia das medidas socioeducativas aplicadas ao adolescente infrator. Disponível em: < http://intertemas.unitoledo.br/revista/index.php/Juridica/article/viewFile/876/846 > Acesso em: 03 de out. de 2013.

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O presente artigo abordará inicialmente as medidas socioeducativas previstas na legislação brasileira, como limitação ou consequência ao ato infracional praticado.

A seguir, serão abordadas as medidas socioeducativas em espécie, quais sejam: advertência; obrigação de reparar o dano; prestação de serviços à comunidade; liberdade assistida; inserção em regime de semiliberdade; internação em estabelecimento educacional; encaminhamento aos pais ou responsável, mediante termo de responsabilidade; orientação, apoio e acompanhamento temporários; matricula e frequência obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino fundamental; inclusão em programa comunitário ou oficial de auxilio à família, à criança e ao adolescente; requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial e; inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos.

No último capítulo serão estudados, ainda que de forma sucinta, os princípios específicos que regem as medidas socioeducativas, quais sejam: o princípio da brevidade (a internação tem um tempo determinado e o mais breve possível), o princípio da excepcionalidade (estabelece que uma medida somente se aplicará quando não for mais viável a aplicação das outras medidas ou quando estas não tiverem mais resultado) e, o principio do respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.

Neste diapasão será utilizada como metodologia o tipo de pesquisa bibliográfico, enquanto método dedutivo, realizando a análise textual, temática e interpretativa de obras relacionadas ao tema, assim como o tipo de pesquisa documental, enquanto método indutivo, por meio da análise de legislações relacionadas à pesquisa.

Enfim, o presente ensaio se dedicará a investigar a questão da (in) eficácia das medidas socioeducativas no Brasil, bem como as causas e consequências dessa (in) eficácia.

2. AS MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS NO BRASIL

De início, importante destacar que uma das diferenças jurídicas existentes entre crianças e adolescentes diz respeito às medidas passíveis de serem aplicadas em caso de prática de atos análogos a crimes, ou seja, enquanto às crianças serão atribuídas medidas de proteção, aos adolescentes são cabíveis as medidas socioeducativas.

Outrossim, é possível a aplicação de medidas de proteção aos adolescentes, conforme disposto no artigo 112, inciso VII do ECA,5 excluindo-

5 BRASIL. Lei 8.069, de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. Diário Oficial

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se apenas o acolhimento institucional, a inclusão em programa de acolhimento familiar e a colocação em família substituta.

Nota-se que a imposição de medidas socioeducativas representa uma limitação ou restrição de direitos, ou seja, são consequências à prática de atos infracionais.6

Portanto, para que ocorra a restrição de direitos é necessário que seja observado um artigo fundamental da lei estatutária, que informa que “na interpretação desta lei levar-se-ão em conta os fins sociais e a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento.” 7

Conclui-se que a criança ou o adolescente que comete infração está em desacordo com os princípios que norteiam o Estatuto da Criança e do Adolescente, uma vez que, ao praticar um ato infracional, conflita com os fins sociais a que a lei se destinam as normas de proteção, ou seja, o bem comum, os direitos individuais e coletivos e o que se entende por direitos de pessoas em condição peculiar de desenvolvimento.

Neste viés, é notório que algumas das medidas previstas como socioeducativas possuem certa semelhança com aquelas aplicadas na esfera penal, quais sejam, a advertência, a obrigação de reparar o dano, a prestação de serviços, a liberdade assistida, o regime de semiliberdade, e a internação.8

Exige-se, neste sentido, que a aplicação de medidas socioeducativas seja em consonância com os princípios norteadores do Estatuto da Criança e Adolescente, uma vez que o objetivo precípuo da Lei 8.069/90 é a proteção integral da criança e do adolescente.

Convém ressaltar que o que será discutido no presente trabalho será a qualidade e a eficácia da execução das medidas impostas aos adolescentes autores de atos infracionais, pois enquanto muito se defende a respeito da vanguarda da legislação brasileira, podendo ser vista como legislação do primeiro mundo, no que tange ao sistema de proteção e execução existem muitos questionamentos.

Portanto, pretende-se investigar qual a eficácia das medidas socioeducativas aplicadas no país, analisando se estão atingindo sua finalidade, ou se estão sendo desvirtuadas em punições cruéis a adolescentes autores de atos infracionais.

da União. Brasília, 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm> Acesso em: 17 de novembro de 2013.6 MARINO, Adriana Simões. O ato infracional e as medidas de proteção – Entre garantia e restrição de direitos – Uma reflexão sobre o fundamento da lei em psicanálise. Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 21, v. 103, jul.-ago./ 2013, p. 168.7 MARINO, Adriana Simões. O ato infracional e as medidas de proteção – Entre garantia e restrição de direitos – Uma reflexão sobre o fundamento da lei em psicanálise,p. 169.8 ISHIDA, Válter Kenji. Estatuto da Criança e do Adolescente: Doutrina e Jurisprudência, p. 173.

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As medidas socioeducativas não têm a finalidade de punir o adolescente infrator, mas ressocializar o adolescente para que possa ser reintegrado em sociedade.

Entretanto, muitas vezes o que se percebe é que os infratores acabam restando “presos”, em locais inapropriados, de forma incorreta e totalmente contrária ao esperado pelo Estatuto da Criança e Adolescente.9

3. MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS EM ESPÉCIE

Como anteriormente aduzido, o adolescente que praticar qualquer ato infracional poderá se sujeitar à aplicação de quaisquer das medidas socioeducativas descritas no artigo 112 do ECA,10 quais sejam: de advertência; obrigação de reparar o dano; prestação de serviços à comunidade; liberdade assistida; inserção em regime de semiliberdade; internação em estabelecimento educacional; encaminhamento aos pais ou responsável, mediante termo de responsabilidade; orientação, apoio e acompanhamento temporários; matricula e frequência obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino fundamental; inclusão em programa comunitário ou oficial de auxilio à família, à criança e ao adolescente; requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial e; inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos.

O que se deve ter em mente é que qualquer medida aplicada ao adolescente infrator levará em conta a sua capacidade para cumpri-la, as circunstâncias e a gravidade do ato infracional; e que em hipótese alguma e sob pretexto algum, será admitida a prestação de trabalho forçado e que, por fim, os portadores de doenças ou deficiência mental deverão receber tratamento individual e especializado, em local adequado às suas condições.

Neste sentido, a primeira medida apreciada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente11 é a advertência, consistente na admoestação verbal, com fins de demonstrar ao adolescente que o fato por ele praticado é grave, explicando as consequências que teve ou que poderia ter ocasionado. Será executada em audiência admonitória e reduzida a termo e assinada. Tal medida é uma ameaça de sanção mais severa caso o adolescente volte a delinquir.

9 CASSANDRE, Andressa Cristina Chiroza. A eficácia das medidas socioeducativas aplicadas ao adolescente infrator. Disponível em: < http://intertemas.unitoledo.br/revista/index.php/Juridica/article/viewFile/876/846 > Acesso em: 03 de out. de 2013.10 BRASIL. Lei 8.069, de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. Diário Oficial da União. Brasília, 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm> Acesso em: 17 de novembro de 2013.11 BRASIL. Lei 8.069, de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. Diário Oficial da União. Brasília, 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm> Acesso em: 17 de novembro de 2013.

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O DIREITO PENAL EM DEBATE: A eficácia do sistema criminal na sociedade contemporânea

A obrigação de reparar o dano aplica-se às infrações em que resultar lesão ao patrimônio da vítima. Desta forma, se for o caso, a autoridade competente poderá determinar que o adolescente restitua a coisa, promova o ressarcimento do dano, ou, por outra forma, compense o prejuízo da vítima.

Com relação à medida de prestação de serviços à comunidade, entende-se ser o exercício de tarefas de interesse geral, sem remuneração, por um período que não exceda a seis meses, em entidades assistenciais, escolas, hospitais, com jornada máxima de oito horas semanais, sem prejuízo da frequência à escola ou ao trabalho.12

Já a medida de liberdade assistida, de acordo com os artigos 118 e 119 do ECA13, é aplicada em casos de necessidade de acompanhamento, auxilio e educação, pelo prazo mínimo de seis meses, podendo a qualquer tempo ser prorrogada, revogada ou substituída por outra medida.

Segundo Antônio Chaves, citado por Válter Kenji Ishida, “a liberdade assistida consiste em submeter o menor, após entregue aos responsáveis, ou após liberação do internato, à assistência (inclusive vigilância discreta), com o fim de impedir a reincidência e obter a certeza da reeducação”.14

Outra medida que pode ser aplicada ao adolescente infrator é o regime de semiliberdade, consistente na internação em estabelecimento adequado, possibilitando a realização de atividades externas, de escolarização e profissionalização, independentemente de autorização judicial.15

Em relação àquelas descritas no artigo 112, VII da Lei 8.069/90, serão aplicadas quando verificadas quaisquer das hipóteses previstas no artigo 98 do mesmo instituto, chamadas de situações de risco.

Pode-se dizer que o artigo 98 do ECA será aplicado sempre que os direitos reconhecidos por esse dispositivo forem ameaçados ou violados, por ação ou omissão da sociedade ou do Estado, por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsáveis ou, em razão de sua conduta.

Neste sentido, quando verificadas quaisquer das hipóteses supramencionadas, deve-se aplicar as medidas de proteção elencadas no artigo 101 do Estatuto da Criança e do Adolescente16.

Por fim, as medidas de internação aplicadas ao adolescente serão adaptadas à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, possuindo

12 ALVES, Roberto Barbosa. Direito da Infância e da Juventude. São Paulo: Saraiva, 2005.13 BRASIL. Lei 8.069, de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. Diário Oficial da União. Brasília, 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm> Acesso em: 17 de novembro de 2013.14 ISHIDA, Válter Kenji. Estatuto da Criança e do Adolescente: Doutrina e Jurisprudência, p. 181.15 ISHIDA, Válter Kenji. Estatuto da Criança e do Adolescente: Doutrina e Jurisprudência, p. 173.16 BRASIL. Lei 8.069, de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. Diário Oficial da União. Brasília, 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm> Acesso em: 17 de novembro de 2013.

O DIREITO PENAL EM DEBATE: A eficácia do sistema criminal na sociedade contemporânea

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o objetivo de prevenção e de reestruturação da personalidade para um bom convívio social.

Conforme disposto no artigo 122 do Estatuto da Criança e do Adolescente17, a medida de internação somente poderá ser aplicada quando tratar-se de ato infracional cometido mediante grave ameaça ou violência à pessoa, por reiteração no cometimento de outras infrações graves, ou, ainda, por descumprimento reiterado e injustificável da medida anteriormente imposta. Assim, entende-se ser a internação medida privativa de liberdade, que se submete aos princípios basilares da Lei 8.069/90, que serão abordados a seguir.

4. PRINCÍPIOS REITORES DAS MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS

Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente, com o objetivo de não lesar ou afastar os direitos do adolescente, a imposição de medidas socioeducativas é regida por três princípios basilares, quais sejam: o da brevidade, o da excepcionalidade e o do respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.

A Constituição Federal de 198818 em seu artigo 227, § 3º, inciso V, assim como o artigo 121 do ECA consagram a garantia de obediência aos mencionados princípios.

O princípio da brevidade é aquele que roga pela determinabilidade da medida, ou seja, deve perdurar somente no intrinsecamente necessidade à readaptação do adolescente.

Estabelece o princípio da excepcionalidade, na medida de internação, que seja aplicada apenas quando não for mais viável a aplicação de quaisquer das outras medidas ou quando não mais obtiverem os resultados esperados.

Assim, a excepcionalidade está ligada ao fato de que, havendo outras medidas, a internação será destinada para atos infracionais mais graves, praticados mediante violência à pessoa, ou em casos de reiteração na prática de outras infrações graves, ou ainda, ante o descumprimento injustificável e reiterado de medida anteriormente imposta, como preleciona o artigo 122 do ECA, desde que a liberdade do adolescente constitua notória ameaça à ordem pública, demonstrada a necessidade imperiosa da segregação, visto que o mencionado artigo em seu § 2° estipula que em nenhuma hipótese será aplicada a internação havendo outra medida adequada.19

17 BRASIL. Lei 8.069, de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. Diário Oficial da União. Brasília, 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm> Acesso em: 17 de novembro de 2013.18 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Diário Oficial da União. Brasília, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm> Acesso em: 17 de novembro de 2013.19 PINOTI, Antonio Jurandir. Medidas socioeducativas e garantias constitucionais. Disponível em:

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O DIREITO PENAL EM DEBATE: A eficácia do sistema criminal na sociedade contemporânea

O que convém ressaltar é que se assemelha ao princípio da intervenção mínima que orienta e limita o poder incriminador do Estado na seara penal. Ora, se existirem outras medidas ou formas de controle social suficientes, são essas que devem ser aplicadas, devendo a internação ser a ultima ratio do sistema normativo.

Outro princípio que merece relevo é o do respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, estabelecido no artigo 125 do Estatuto que diz que “é dever do Estado zelar pela integridade física e mental dos internos, cabendo-lhes adotar as medidas adequadas de contenção e segurança”.

Neste viés, ressalta-se o princípio da proteção integral, que trata a criança e o adolescente com prioridade, ampliando o dever de protegê-los à família, à sociedade e ao Estado.

Ocorre que o simples fato de aplicar ao infrator uma medida socioeducativa não será suficiente para ressocializá-lo. É necessário que se preocupe com a qualidade das medidas impostas, bem como com a recuperação do meio em que vive aquele infrator, recuperando não apenas o adolescente, mas todo o seu núcleo familiar.

Além dos princípios abarcados, o artigo 111 do ECA20, assegura algumas garantias ao adolescente, quais sejam: a) pleno e formal conhecimento da atribuição de ato infracional, mediante citação ou meio equivalente; b) igualdade na relação processual, podendo confrontar-se com vítimas e testemunhas e produzir todas as provas necessárias à sua defesa; c) defesa técnica por advogado; e) assistência judiciária gratuita e integral aos necessitados, na forma da lei; f) direito de ser ouvido pessoalmente pela autoridade competente; g) direito de solicitar a presença de seus pais ou responsável em qualquer fase do procedimento.

Tal dispositivo atende aos princípios do devido processo legal e da igualdade entre as partes, do contraditório e da ampla defesa, estabelecendo mecanismos para que o adolescente possa alegar ou provar a sua inocência.21

Entretanto, as normas previstas no Estatuto da Criança e Adolescente para os casos de infrações praticadas por adolescentes somente são aptas a produzir resultado prático se forem aplicadas em local e forma adequadas, mediante rigorosa fiscalização, o que dificilmente ocorre no país.

Sabe-se que faltam unidades adequadas para cumprimento de mandados judiciais de internações, bem como inexistem entidades aptas a executar medidas em meio aberto com a eficiência esperada pelo ECA, o que resulta na aplicação de medidas que são simplesmente descumpridas ou, quando são cumpridas, ocorrem em local e forma inadequadas a produzir eficácia prática.

<www2.mp.pr.gov.br/cpca/telas/ca_igualdade_19_2_1_5.php > Acesso em 17 de nov. de 2013.20 PINOTI, Antonio Jurandir. Medidas socioeducativas e garantias constitucionais. Disponível em: <www2.mp.pr.gov.br/cpca/telas/ca_igualdade_19_2_1_5.php > Acesso em 17 de nov. de 2013.21 ISHIDA, Válter Kenji. Estatuto da Criança e do Adolescente: Doutrina e Jurisprudência, p. 169.

O DIREITO PENAL EM DEBATE: A eficácia do sistema criminal na sociedade contemporânea

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5. CONCLUSÃO

Diante de todo o exposto, o Estatuto da Criança e do Adolescente reconhece a doutrina da proteção integral, com base nos direitos e garantias destinados à criança e ao adolescente, podendo-se assim dizer que um de seus fundamentos é tratá-los como sendo sujeitos de direito frente à família, ao Estado e à sociedade.

Da mesma forma, estão elencadas no Estatuto as medidas socioeducativas com a finalidade de ressocializar o adolescente para que ele possa voltar a viver em sociedade.

Ocorre que se percebe, na realidade, que as medidas socioeducativas estão muito distantes de alcançar os seus objetivos, uma vez que os adolescentes não são tratados da forma como prevista em sua norma protetora (ECA), resultando na imposição de medidas a serem cumpridas em local e forma inadequadas.

Assim, a norma não consegue efetivar o que ela realmente busca, que é a ressocialização do adolescente, acabando por resultar na completa ineficácia da norma.

Conclui-se que para que as medidas socioeducativas provocassem seus efeitos esperados, imprescindível que as instituições de execução e fiscalização dessas medidas fossem mais preparadas e estruturadas.

Caso contrário, de nada adiantará existir no Brasil uma legislação de país desenvolvido, se na prática suas previsões normativas não forem concretizadas.

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REFERÊNCIAS

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BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. 17.ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

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___________. Lei 8.069, de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. Diário Oficial da União. Brasília, 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm> Acesso em: 17 de novembro de 2013.

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SERIAL KILLERS E OS CRIMES HEDIONDOS NO BRASIL: qual a sanção penal adequada?

brunna Patrícia Moraes Peres

Juliana aParecida

1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como objetivo estudar a figura dos serial killers, caracterizados como psicopatas, observando seu grau de periculosidade no convívio social, bem como investigando quais as punições adequadas a esta espécie de criminoso, além de verificar qual a possibilidade de ressocialização.

O estudo do aludido tema necessariamente perpassará pelo estudo dos crimes hediondos, ainda que de forma sucinta, uma vez que são as infrações penais geralmente praticadas pelos serial killers.

O presente ensaio se justifica na medida em que cresce a cada dia o número de casos envolvendo esta espécie de criminoso, sendo que nem sempre as punições aplicadas a eles atingem seu fim esperado, resultando no fenômeno da reincidência.

Assim, inicialmente será exposto o conceito de serial killer, assim como aspectos gerais históricos, além da verificação do meio social em que “surge” esse tipo de criminoso.

A seguir será estudada, ainda que de forma breve, a Lei dos Crimes Hediondos brasileira (Lei 8.072/90), explicitando sua finalidade e principais características.

Ademais, no último capítulo será tratada a questão da identificação e individualização da execução penal quanto aos psicopatas, apresentando qual a sanção penal adequada para tais criminosos.

Utilizar-se-á como metodologia o tipo de pesquisa bibliográfico, enquanto método dedutivo, por meio da análise textual, temática e interpretativa de obras jurídicas, de medicina e de psicologia sobre o tema, na busca de melhor compreender essa figura dos serial killers, enquanto psicopatas, geralmente autores de crimes hediondos.

2. O SERIAL KILLER (ASSASSINO EM SÉRIE)

No intuito de melhor compreender o tema, faz-se importante conhecer o conceito de serial killer, bem como aspectos gerais históricos, além de verificar o meio social em que surgem.

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2.1 CONCEITO

Inicialmente, faz-se necessária a diferenciação entre a figura do serial killer (assassino em série) e do assassino em massa, sendo o primeiro caracterizado pelo fato de cometer homicídios durante algum período de tempo, com pelo menos alguns dias de intervalo entre eles, enquanto o segundo por assassinar várias vítimas em uma única oportunidade, em questão de horas.22

Ademais, salienta Casoy23 que as vítimas do serial killer são escolhidas ao acaso e mortas sem nenhuma razão aparente; raramente tais indivíduos conhecem sua presa, representando um mero símbolo para eles. Acrescenta que são verdadeiros sádicos, pois procuram prazeres perversos ao torturar suas vítimas, chegando até a “ressuscitá-las” para poder “brincar” um pouco mais e disso retirar prazer, tendo necessidade de controlar, dominar e possuir a pessoa escolhida.

Outrossim, no mesmo sentido, ensina o psicólogo canadense Robert Hare24:

Ninguém nasce psicopata. Nasce com tendências para a psicopatia. A psicopatia não é uma categoria descritiva, como ser homem ou mulher, estar vivo ou morto. É uma medida, como altura ou peso, que varia para mais ou para menos. (...) Um psicopata ama alguém da mesma forma como eu, digamos amo meu carro, e não da forma como eu amo minha mulher. Usa o termo amor, mas não o sente da maneira como nós entendemos. Em geral, é um sentimento de posse, de propriedade.

2.2 ASPECTOS HISTÓRICOS

É muito difícil identificar com certeza quando exatamente surgiu o primeiro serial killer no mundo, sendo certo apenas que eles assombram a humanidade já há muito tempo. O termo Serial Killer foi usado pela primeira vez por um agente aposentado do FBI (Departamento Federal de Investigação dos Estados Unidos da América) nos anos 70, Robert Ressler.25

Segundo Casoy26, um dos primeiros a ganhar destaque foi “Jack, o Estripador”, em plena Inglaterra Vitoriana, no final do século XIX. Não se pode deixar de citar também o famoso Adolf Hitler, que atuou na Segunda Guerra

22 CASOY, Ilana. Serial Killer: Louco ou Cruel?. 6 ed. São Paulo: Madras, 2004, p.14.23 CASOY, Ilana. Serial Killer: Louco ou Cruel?, p.15.24 HARE, R. D. Psicopatas no divã. Revista Veja: paginas amarelas, 1º de Abril de 2009, disponível em: http://veja.abril.com.br/010409/entrevista.shtml. Acesso em: 02 de novembro de 2013.25 CASOY, Ilana. Serial Killer: Louco ou Cruel?, p.14.26 CASOY, Ilana. Serial Killer: Louco ou Cruel?, p.11.

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Mundial, matando inúmeras pessoas que ele considerava não ter sangue puro, entre elas judeus, negros e homossexuais.

Portanto, o que se observa é que não se pode precisar um marco histórico ou momento exato para o surgimento da figura dos assassinos em série no mundo, podendo-se deduzir que sempre existiram, contudo eram simplesmente ignorados e/ou desconhecidos. O estudo e preocupação com esse criminoso apenas veio à tona recentemente, em especial a partir dos anos 70, em países como Estados Unidos da América e Canadá.

2.3 O QUE FAZ UMA PESSOA SE TORNAR UM SERIAL KILLER?

Uma questão interessante no estudo deste tema é saber qual o contexto social e pessoal que leva uma pessoa a se tornar um assassino em série.

A bibliografia especializada, dentre as quais se destaca a obra de Casoy, aponta que um dos principais motivos para se tornar um assassino em série deriva do contexto social pelo qual viveu o indivíduo, podendo, em alguns casos, ser decorrente de um trauma vivenciado na infância.

Analisando o passado de um serial killer, pode-se perceber que não há um fato sozinho que transforme determinada pessoa em um assassino em série.

Entretanto, afirma-se que a tríade, a seguir apresentada, encontra-se no histórico da grande maioria deles: a) enurese (inconsistência urinaria sem conhecimento); b) abuso sádico de animais ou de outras crianças; c) destruição de propriedade e piromania (mania de atear fogo)27.

Outrossim, quando adolescentes, demonstram isolamento familiar e social, dificuldade para interagir com outras pessoas, resultando no fato de se tornarem vitimas de bullyng28, o que acentua ainda mais o trauma dessa pessoa29.

Na fase adulta, que é quando os serial killers geralmente começam a matar de fato, eles se tornam pessoas conceituadas como de dupla personalidade, ou seja, em sociedade são pessoas tidas como exemplo social, são educados, possuem uma boa carreira, comportando-se como cidadãos que jamais levantariam suspeitas. De outro lado, quando estão sozinhos com suas vitimas, se comportam como verdadeiros monstros.30

27 CASOY, Ilana. Serial Killer: Louco ou Cruel?, p.18.28 Conjunto de maus-tratos, ameaças, coações ou outros atos de intimidação física ou psicológica exercido de forma continuada sobre uma pessoa considerada fraca ou vulnerável.29 CASOY, Ilana. Serial Killer: Louco ou Cruel?, p.18.30 CASOY, Ilana. Serial Killer: Louco ou Cruel?, p.18.

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2.4 CONCEPÇÃO MÉDICA E JURÍDICA ACERCA DOS SERIAL KILLERS

De início, cabe destacar que a medicina diagnostica os assassinos em série como psicopata e, nesse sentido, preleciona Ballone31:

A maioria dos Assassinos Seriais é diagnosticada como portadora de Transtorno de Personalidade Anti-Social (sinônimo Dissocial, Psicopata, Sociopata). Embora esses assassinos possam não ter pleno domínio no controle dos impulsos, eles distinguem muito bem o certo do errado, tanto que querem sempre satisfazer seus desejos sem correr riscos de serem apanhados.

Assim, a chamada personalidade psicopática foi introduzida no campo da medicina no final do século XVIII, explicando Jorge Trindade que seu surgimento foi “para designar um enorme grupo de patologias de comportamento sugestivas de psicopatologia, mas não classificáveis em qualquer outra categoria de desordem ou transtorno mental”. 32

O motivo que leva um serial killer a cometer homicídios somente faz sentido para ele mesmo. Na maioria dos casos, conforme já referido, percebe-se que eles passaram por algum trauma na infância, tiveram problemas familiares, foram abusados e muitas vezes abandonados por seus genitores.

Entretanto, diversas pessoas passam por esses mesmos conflitos ou até piores e nem por isso se tornam assassinas em série. Por esse fato, muitos estudiosos acreditam que há uma conexão de fatores psicológicos com fatores biológicos. Segundo Dr. Christopher Patrick: “psicopatas tem menor taxa de mudanças cardíacas e de condução elétrica na pele como reação ao medo”.33

Outrossim, para Dr. Paul Bernhardt: “uma taxa alta de testosterona combinada com baixos níveis de serotonina pode causas resultados letais. Quando o equilíbrio entre a testosterona e a serotonina não existe, a frustração pode levar a agressividade e comportamentos sádicos”.34

31 BALLONE, Geraldo José. Da emoção a Lesão, um guia de medicina psicossomática. 2 ed. Manole, apud: SILVA, Melina Pelissari. Serial Killer, um condenado a custodia perpetua. Presidente Prudente, SP, v.1, n.1. 2004, p.75.32 TRINDADE, Jorge. Manual de Psicologia Jurídica para operadores do direito. 6 ed. Livraria do advogado editor: Porto Alegre, 2012, p. 165.33 Dr. Christopher J. Patrick – Artigo “Psycopaths: findings Point ro Brain Differences” – Department of Psychology Florida State University, apud: CASOY, Ilana. Serial Killer: Louco ou Cruel?, p. 33.34 Dr. Paul C. Bernhart – Artigo “High Testosterone. Low Seretonine: Double Problem?’’ – Department of Educacional Psichology, University Utah, apud: CASOY, Ilana. Serial Killer: Louco ou Cruel?, p. 33.

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Ademais, conforme lições do Dr. Dominique La Pierre: “o córtex pré-frontal, área do planejamento em longo prazo, julgamento e controle de impulsos, não funciona normalmente em psicopatas”.35

Além destas evidências científicas, outro ponto importante é a incidência de acidentes na cabeça sofridos por alguns dos conhecidos serial killers, entre eles, por exemplo, Leonard Lake, David Berkowitz, Kenneth Bianchi e John Gacy.36

Assim, resta claro que para a medicina os assassinos em série devem ser vistos como psicopatas, pois segundo estudos realizados sobre o tema, 86,5% dos serial killers preenchem os critérios para a psicopatia.37

Sendo entendido como um psicopata, cabe agora investigar como a psicopatia é entendida para a medicina e para as ciências sociais.

Conforme ensina Jorge Trindade, a personalidade psicopática refere-se a uma individual característica de modelos de pensamento, sentimento e comportamento, sendo uma característica interna da pessoa, mas que se manifesta globalmente, em todas as facetas do indivíduo. Enfim, é um modelo particular de personalidade.38

Quanto à questão da classificação da psicopatia como doença ou transtorno social, existe uma divergência doutrinária em que há estudiosos que entendem a psicopatia como uma doença mental, sendo que, etimologicamente, psicopatia significa doença da mente. Lado outro, parte expressiva dos profissionais da área da psiquiatria forense consideram que a parte cognitiva dos indivíduos psicopatas se encontra preservada, íntegra, tendo plena consciência dos atos que praticam (possuem, inclusive, inteligência acima da média da população), sendo que seu principal problema reside nos sentimentos (afetos) deficitários.39

No âmbito do Direito Penal brasileiro os assassinos em série são tratados, geralmente, como totalmente imputáveis, recebendo assim, quando condenados, uma pena e não uma medida de segurança. Por ser extremamente difícil descobrir se certo individuo é ou não portador de psicopatia, o magistrado deve, portanto, se valer de laudos psiquiátricos, determinando que seja realizado teste de cunho científico para verificar se existem sinais de psicopatia no referido

35 Dr. Dominique LaPierre – Artigo “The Psychopathic Brain: New Findings” – Psychologie UQAM – Montreal, Canada, apud: CASOY, Ilana. Serial Killer: Louco ou Cruel?, p. 34.36 CASOY, Ilana. Serial Killer: Louco ou Cruel?, p.36.37 MORANA, P. C. Hilda, STONE, H. Michael, FILHO, Abdalla Elias. Transtorno de personalidade, psicopatia e Serial killers. Rev Bras Psiquiatr. 2006;28 (Supl II):S74-9, p.5.38 TRINDADE, Jorge. Manual de Psicologia Jurídica para operadores do direito, p 166.39 SILVA, Ana Beatriz B. Mentes perigosas: o psicopata mora ao lado..., 2008. p. 18, apud: PALHARES, Diego de Oliveira e CUNHA, Marcus Vinicius Ribeiro. O psicopata e o Direito Penal Brasileiro, qual a sanção penal adequada? Disponível em:<http://www.fucamp.edu.br/editora/index.php/praxis/article/view/255/214>. Acesso em: 02 de dezembro de 2013.

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criminoso, com o objetivo de se definir o diagnóstico do infrator, como também o grau da possível psicopatia, sendo que o exame mais indicado nesse caso é denominado PCL, psychopathy checklist, porém ainda muito pouco usado no meio jurídico.40

3. DOS CRIMES HEDIONDOS NO BRASIL

Importante destacar que o Legislativo brasileiro não adotou o sistema conceitual para a definição do que seja crime hediondo, mas sim o sistema enumerativo, onde será considerada hedionda a infração penal que assim for concebida pela Lei 8072/9041.

Deste modo, veja-se:

Não é hediondo o delito que se mostre repugnante, asqueroso, sórdido, depravado, abjeto, horroroso, horrível, por sua gravidade objetiva, ou por seu modo ou meio de sua execução, ou pela finalidade que presidiu ou iluminou a ação criminosa, ou pela adoção de qualquer outro critério valido, mas sim aquele crime que, por um verdadeiro processo de colagem, foi rotulado como tal pelo legislador. 42

A lei 8.072, de 25 de julho de 199043, enumerou taxativamente, em seu art. 1°, todos os crimes hediondos no Brasil. No entanto, sofreu algumas modificações44 operadas pelo art. 1° da Lei n. 8.930, de 6 de setembro de 1994, bem como sofreu acréscimos, determinados pela Lei n. 9.695, de 20 de agosto de 1998, e 12.015, de 7 de agosto de 2009.

Assim, os crimes hediondos atualmente previstos na legislação pátria são: Homicídio, quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente e Homicídio qualificado, Latrocínio, Extorsão qualificada pela morte, Extorsão mediante sequestro e na forma qualificada, Estupro, Estupro de vulnerável, Epidemia com resultado morte,

40 PALHARES, Diego de Oliveira e CUNHA, Marcus Vinicius Ribeiro. O psicopata e o Direito Penal Brasileiro, qual a sanção penal adequada? Disponível em:<http://www.fucamp.edu.br/editora/index.php/praxis/article/view/255/214>. Acesso em: 02 de dezembro de 2013.41 BRASIL. Lei n° 8072, de 25 de julho de 1990. Diário Oficial da União. Brasília, 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8072.htm>. Acesso em: 27 de novembro de 2013.42 FRANCO, Aberto Silva. Crimes Hediondos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994, p.45, apud: CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: legislação penal especial, volume 4. 7 ed. São Paulo. Saraiva, 2012. p,198.43 BRASIL. Lei n° 8072, de 25 de julho de 1990. Diário Oficial da União. Brasília, 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8072.htm>. Acesso em: 27 de novembro de 2013.44 CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: legislação penal especial, p,195

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Falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produtos destinados a fins terapêuticos ou medicinais e o Crime de genocídio45.

A Lei dos crimes hediondos46 surgiu com a finalidade de conter a imensa onda de criminalidade que pairava sobre a sociedade brasileira à época, fazendo assim com que o legislador criasse, às pressas, atendendo ao clamor da população, a referida lei, que define os crimes classificados como desta natureza e determina outras medidas de natureza penal, processual penal e de execução da pena, bem como da tortura, do tráfico de entorpecentes e do terrorismo, considerados como equiparados aos hediondos.47

Observando-se o rol dos crimes hediondos e a figura dos assassinos em série pode-se concluir que os homicídios por eles geralmente praticados, quase sempre capitulados como qualificados, são infrações classificadas como hediondas para a legislação brasileira, submetendo-os às suas disposições legais mais restritivas ao infrator.48

4. DA IDENTIFICAÇÃO E INDIVIDUALIZAÇÃO DA EXECUÇÃO PENAL AOS SERIAL KILLERS

Sabe-se que um dos mais relevantes princípios reitores do direito penal brasileiro é o da individualização das penas, o qual se revela primeiramente, quando o legislador elenca os fatos puníveis em suas respectivas sanções, estabelecendo seus limites e critérios de fixação da pena, seguida pela individualização judicial, elaborada pelo juiz na sentença condenatória, e por fim, a fase executória, a qual ocorre o cumprimento da pena.49

45 BRASIL. Lei n° 8072, de 25 de julho de 1990. Diário Oficial da União. Brasília, 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8072.htm>. Acesso em: 27 de novembro de 2013.46 BRASIL. Lei n° 8072, de 25 de julho de 1990. Diário Oficial da União. Brasília, 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8072.htm>. Acesso em: 27 de novembro de 2013.47 SANTOS, Simone Moraes. A coerção penal no âmbito da Lei dos Crimes Hediondos. Jus Navegandi, 12/2013. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/4690/a-coercao-penal-no-ambito-da-lei-dos-crimes-hediondos>. Acesso em: 27 de outubro de 2013.48 Citam-se, como exemplos de restrições existentes na Lei 8072/90, o (art. 2°, I) que veda a anistia, graça e indulto; (art. 2° II) fiança; (§ 1o)   A pena por crime previsto neste artigo será cumprida inicialmente em regime fechado; (§ 2o)  A progressão de regime, no caso dos condenados aos crimes previstos neste artigo, dar-se-á após o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena, se o apenado for primário, e de 3/5 (três quintos), se reincidente; (§ 3o) Em caso de sentença condenatória, o juiz decidirá fundamentadamente se o réu poderá apelar em liberdade; (§ 4o) A prisão temporária, nos crimes previstos neste artigo, terá o prazo de 30 (trinta) dias, prorrogável por igual período em caso de extrema e comprovada necessidade; (Art. 3)  A União manterá estabelecimentos penais, de segurança máxima, destinados ao cumprimento de penas impostas a condenados de alta periculosidade, cuja permanência em presídios estaduais ponha em risco a ordem ou incolumidade pública.49 SANTOS, Nildo Nery dos. Aplicação da pena. Revista Jus et Fides. Julho 2003-2004. Acesso

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Segundo Francisco de Assis Toledo50:

As formas de execução da pena privativa da liberdade, quando esta tiver de ser aplicada, deverá desdobrar-se em etapas progressivas e regressivas, para ensejar maior ou menor intensidade na sua aplicação, bem como maior ou menor velocidade na caminhada do condenado rumo a liberdade. E assim terá que ser para cumprirem-se as diretrizes da individualização.

Sobre o principio da individualização das penas, Rogério Greco51 ensina:

Tendo o julgador chegado à conclusão de que o fato praticado é típico, ilícito e culpável, dirá qual a infração penal praticada pelo agente e começará, agora, a individualizar a pena a ele correspondente. Inicialmente, fixará a pena base de acordo com o critério trifásico determinado pelo art. 68 do Código Penal, atendendo as chamadas circunstâncias judiciais; em seguida, levará em consideração as circunstâncias atenuantes e agravantes; por ultimo, as causas de diminuição e de aumento de pena.

A questão se torna mais complicada quando se pretende concretizar a aplicação do princípio da individualização das penas quanto às sanções aplicadas em sentenças proferidas em face dos assassinos em série. Isso porque é bastante difícil para a medicina averiguar se determinada pessoa é ou não portadora de psicopatia, ainda mais se somando o fato de que no Brasil não existe um sistema eficaz para fazer essa distinção.

O problema existe e não é recente, exigindo a criação de uma política criminal exclusivamente voltada para os indivíduos acometidos por esse transtorno de personalidade, como é o caso dos assassinos em série.52

Assim, pode-se entender que cada criminoso deve ser julgado de acordo com seu crime e receber a sanção especifica que atenda a gravidade do seu delito. Porém, uma pessoa inimputável não pode receber a mesma sanção de uma pessoa imputável, mesmo que tenham praticado a mesma espécie de infração penal. Resta averiguar, portanto, se o assassino em série é ou não inimputável.

em: 5 de dezembro de 2013.50 TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. 5. Ed. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 7151 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal - Parte Geral. 14. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2012, p.70.52 MILHOMEM, Mateus. Um grau acima da maldade – Estado x Psicopatas Brasileiros. Disponível em: <http://www.amb.com.br/portal/docs/artigos/Artigo%20Mateus%20Milhomem.pdf.> Acesso em: 03 de novembro de 2013.

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Ocorre que, conforme já referido linhas atrás, existe uma enorme dificuldade em se diagnosticar um infrator como psicopata ou não, até mesmo por não existirem testes hábeis sendo utilizados no Brasil53.

Nesse sentido faz-se difícil o reconhecimento do assassino em série até mesmo pela sociedade, pois eles sabem muito bem como atrair suas vitimas, usam sua inteligência, possuem uma grande habilidade de mentir e sequer apresentam algum sentimento de culpa, senão veja-se:

São sádicos por natureza e procuram prazeres perversos ao torturar suas presas, chegando até ressuscitá-las para brincar um pouco mais. Tem necessidade de dominar, controlar e possuir a pessoa. Quando a vitima morre, eles novamente são abandonados à sua misteriosa fúria e ódio por si mesmos 54

Fisicamente os assassinos em série não têm nenhuma característica física que possa nos permitir distingui-los das demais pessoas.

A maioria tem um emprego, boa aparência e mostra ser uma pessoa educada e um exemplo social. Isso se dá porque esse tipo de assassino tem o que pode ser chamado de dissociação. Eles criam uma personalidade para viver em sociedade e outra para cometer seus terríveis crimes. Alguns deles, inclusive, quando são descobertos, mentem e juram com convicção que jamais fariam aquilo.55

Outra característica importante é o controle que necessitam ter sobre suas vitimas. Segundo Ilana Casoy: “um dos meios de o serial killer estabelecer o controle é degradar e desvalorizar a vitima por longos períodos de tempo”.

56Alguns veem esse momento como o auge de seu prazer e outros só encontram a verdadeira satisfação, quando matam.

Ao contrário do que muitas pessoas acreditam, o serial killer sabe ter empatia com outro ser humano e é através desse fator que ele determina o que realmente é considerado humilhante e degradante para si mesmo, para poder justamente usar contra o próximo.57

Existe, contudo, uma tendência em considerar o psicopata e, portanto, o assassino em série, como imputável, ou seja, individuo não portador de doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, que era ao tempo da ação ou omissão, inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento58.

53 Vide explicação à página 07 do presente artigo.54 CASOY, Ilana. Serial Killer: Louco ou Cruel?, p.16.55 CASOY, Ilana. Serial Killer: Louco ou Cruel?, p.21.56 CASOY, Ilana. Serial Killer: Louco ou Cruel?, p.19.57 CASOY, Ilana. Serial Killer: Louco ou Cruel?, p.24.58 Conforme art. 26 do Código Penal brasileiro.

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Nesse sentido, ensina Jorge Trindade59:

Mesmo que a psicopatia seja considerada uma patologia social (pelo sociólogo), ética (pelo filósofo), de personalidade (pelo psicólogo), educacional (pelo professor), do ponto de vista médico (psiquiátrico) ela não parece configurar uma doença no sentido clássico, sendo que atualmente há uma tendência universal de considerar os psicopatas como plenamente capazes de entender o caráter lícito ou ilícito dos atos que pratica e de dirigir suas ações.

Portanto, considerando o assassino em série (enquanto psicopata) como imputável, a sanção penal adequada em caso de condenação é a pena, caracterizada por reprovar o mal causado pelo agente, bem como prevenir futuras infrações penais. Nesse sentido, a pena se divide em três espécies, quais sejam: a) privativa de liberdade; b) restritivas de direitos; c) multa. 60

Lado outro, a medida de segurança, conforme destaca Basileu Garcia, “têm uma finalidade diversa da pena, pois se destina a cura, ou, pelo menos, ao tratamento daquele que praticou um fato típico e ilícito.” 61

Neste sentido, Rogério Greco62 explica:

Assim sendo, aquele que for reconhecidamente declarado inimputável, deverá ser absolvido, pois o art. 26, caput, do Código Penal diz ser isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.

Portanto, enquanto infrator imputável verifica-se que a sanção penal adequada aos assassinos em série é a pena, com todas as suas características, fundamentos e finalidades.

5. CONCLUSÃO

Os serial killers sempre desafiaram a justiça, principalmente devido a dificuldade em descobrir a psicopatia em determinada pessoa, o que atrapalha na aplicação da sanção penal adequada a estes criminosos.

59 TRINDADE, Jorge. Manual de Psicologia Jurídica para operadores do direito, p179.60 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal, p.473.61 GARCIA, Basileu. Instituições de direito penal, v. L, t. II, p. 593-594. apud: GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal, p.664. 62 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal Parte Geral, p.385.

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O presente trabalho defende que o psicopata não deve ser considerado como inimputável, pois é certo que na prática do crime possuem conhecimento de sua conduta ilícita, devendo ser tratados como imputáveis.

Ocorre que em razão da dificuldade em se diagnosticar casos de psicopatia em criminosos, existem muitos recebendo sanções penais inadequadas, bem como ganhando benefícios na execução de suas sanções sem o devido merecimento, haja vista a ausência de demonstração cabal de suas ressocializações.

Desta forma, deveriam existir testes aptos a identificação da natureza do criminoso antes da imposição da sanção penal, permitido a aplicação da sanção penal adequada, a ser executada de acordo com as especificidades do sentenciado.

Concluindo, necessita-se no Brasil de uma maior atenção aos casos de criminosos psicopatas, como os assassinos em série, por exemplo, no intuito de que esses infratores não retornem ao convívio social sem a esperada ressocialização, diminuindo a chance de que volte a delinquir, garantindo que a sanção cumpra seu objetivo principal que é preparar o sentenciado para o retorno do convívio social.

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REFERÊNCIAS

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O DIREITO PENAL EM DEBATE: A eficácia do sistema criminal na sociedade contemporânea

A (IN)CONSTITUCIONALIDADE DA INFRAÇÃO DO ART. 273 DO CÓDIGO PENAL BRASILEIRO

carolinne aParecida naVes da Motta

Pedro lucas silVa fernandes

1. INTRODUÇÃO

A falsificação de medicamentos atingiu seu ápice no Brasil no ano de 1997, após a ocorrência de inúmeras denúncias por meio da mídia, relatando principalmente a falta de políticas de apoio financeiro às vigilâncias sanitárias no país. Naquele momento existiam várias associações criminosas voltadas à falsificação de medicamentos, sendo que, de outro lado, as vigilâncias sanitárias eram órgãos desprestigiados pelos governos municipais, estaduais e federal.

Com o grande clamor da sociedade, a qual era influenciada pela mídia nacional, buscava-se uma solução rápida para tal situação, motivo pelo qual o Congresso Nacional editou a Lei nº 9.695, de agosto 1998, que modificou o art. 273 e seus parágrafos do Código Penal brasileiro, trazendo para esse delito o status de crime hediondo (Lei 8.072/90).

Torna-se relevante ressaltar que a vontade de sanar os conflitos da época de uma forma rápida resultou em imperfeições legislativas e rigor desproporcional, resultado da falta de discussão propícia e de uma análise específica da conduta punível.

A presente pesquisa, portanto, tem como objetivo realizar uma análise sobre a (in) constitucionalidade do art. 273 do Código Penal brasileiro, fazendo uma leitura à luz dos princípios penais fundamentais, destacando-se os princípios da intervenção mínima do direito penal, da proporcionalidade e da individualização das penas.

Nesta perspectiva, foi utilizada como metodologia a pesquisa bibliográfica por meio de análises e interpretações de obras doutrinárias, enquanto típico método dedutivo.

2. PRINCÍPIOS PENAIS FUNDAMENTAIS

A palavra princípio tem origem do latim principiu e tem como significado a ideia de começo, origem e início.

Entretanto, no meio jurídico, destaca-se a definição de Celso Antonio Bandeira de Mello sobre princípio, qual seja:

Princípio é por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que irradia sobre

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diferentes normas compondo-lhes o espírito e serviço de critério para a sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe da sentido harmônico.63

Assim, pode-se conceber os princípios como pontos centrais do sistema, uma vez que orientam toda interpretação jurídica, atribuindo a ele uma explicação lógica e coerente. Estabelece, portanto, o alcance em sentido amplo das normas existentes no ordenamento jurídico.

No direito penal não é diferente, pois os princípios são elementos extremamente relevantes, servindo de norte de orientação no processo de interpretação da norma e dos institutos jurídicos.

Nesta perspectiva, pode-se concluir que o direito penal é estruturado com base em seus princípios fundamentais, os quais legitimam suas normas e direcionam o processo de interpretação e aplicação dessas normas.

Luiz Regis Prado descreve a força normativa dos princípios penais da seguinte forma:

Os princípios penais constituem um núcleo essencial da matéria penal, alicerçando o edifício conceitual do delito- suas categorias teoréticas -, limitando o poder punitivo do Estado, salvaguardando as liberdades e os direitos fundamentais do indivíduo, orientando a política legislativa criminal, oferecendo pautas de interpretação e aplicação da lei penal conforme a Constituição e as exigências próprias de um estado democrático e social de direito. Em síntese servem de fundamento e limite a responsabilidade penal.64

Os princípios penais fundamentais podem ser classificados em explícitos e implícitos, sendo que ambos possuem idêntica força normativa, além de que similar função de limitar o ius puniendi,conforme ensina Luiz Regis Prado65.

Dentre os princípios mais conhecidos, destacam-se: princípio da reserva legal ou legalidade, princípio da dignidade, princípio da igualdade, princípio da anterioridade da lei penal, princípio da irretroatividade da lei penal prejudicial, princípio da responsabilidade pessoal, princípio da humanidade,

63 MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Elementos do Direito Administrativo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1991, p. 230.64 PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. 4ªed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 146.65 PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro.

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princípio da individualização da pena, princípio da taxatividade, princípio da materialização do fato, princípio da exclusiva proteção dos bens jurídicos, princípio da intervenção mínima, princípio da insignificância, princípio da adequação social, princípio da ofensividade, princípio da responsabilidade subjetiva, princípio da culpabilidade, princípio da proporcionalidade e princípio da vedação da dupla punição pelo mesmo fato.

3. PRINCÍPIOS PENAIS FUNDAMENTAIS E O CRIME HEDIONDO DO ART. 273 DO CÓDIGO PENAL

Conforme anteriormente já aduzido, pretende-se no presente trabalho realizar uma análise sobre a (in) constitucionalidade do art. 273 do Código Penal brasileiro, fazendo uma leitura à luz dos princípios penais fundamentais, destacando-se os princípios da intervenção mínima do direito penal, da proporcionalidade e da individualização das penas.

3.1 PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA

Aduz o princípio da intervenção mínima que o direito penal não deve se ocupar com a missão de tutelar todo e qualquer bem jurídico, mas apenas os mais relevantes, desde que outros ramos do ordenamento se mostrem incapazes de tutela-los satisfatoriamente, conforme dispõe Muñoz Conde, citado por Greco:

O poder punitivo do Estado deve estar regido limitado pelo princípio da intervenção mínima. Com isso, quero dizer que o Direito Penal somente deve intervir nos casos de ataque muito grave aos bens jurídicos mais importantes. As perturbações mais leves no ordenamento jurídico são objetos de outros ramos do direito. 66

O presente princípio decorre do Estado Democrático de Direito, uma vez que não se encontra explicito na Constituição Federal e nem no estatuto criminal brasileiro.

Pode-se dizer que a intervenção mínima pregada por este princípio tem dois principais destinatários. O primeiro seria o legislador, que tem como função caracterizar as condutas que recebem punição criminal, bem como a descriminalização sobre os bens que não necessitam de sua intervenção. Ademais, o segundo destinatário é o próprio operador do direito, o qual deverá verificar, de forma proporcional, qual o ramo do ordenamento jurídico que deverá incidir para a proteção do bem jurídico em debate.

66 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 4ª ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2004, p. 52.

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Neste diapasão, o direito penal somente deverá intervir em último caso, quando não se mostrarem eficazes os controles sociais e os demais ramos do sistema jurídico, mantendo com isso a credibilidade do direito penal e evitando sua incidência em todo e qualquer caso, haja vista a gravidade de suas sanções.

A questão a ser verificada no presente caso é se deve ser considerada legítima e adequada a intervenção do direito penal, com tamanha severidade, haja vista a pena prevista ao crime do art. 273 do Código Penal67, quanto a falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais. Será que não existem outros ramos do ordenamento, por exemplo, o direito administrativo e o direito civil, aptos a defender esse bem jurídico, seja por meio de fiscalizações e autuações de cunho administrativo, seja por meio de responsabilização civil dos responsáveis?

O que se defende, portanto, não é a abolitio criminis, mas uma maior proporcionalidade da sanção penal em relação à importância do bem jurídico tutelado por este delito, bem como a utilização de outros ramos do sistema como meios mais adequados.

3.2 PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE

O princípio da proporcionalidade é considerado um dos princípios mais importantes para o Direito como um todo, inclusive para o direito penal, consistindo em uma proteção do individuo contra intervenções estatais desnecessárias e/ou excessivas.

Ademais, no âmbito penal, representa a exigência de proporcionalidade entre a sanção penal e a importância do bem jurídico tutelado, evitando a utilização do direito penal de forma excessivamente desmedida, como meio de proteção, em última análise, da dignidade da pessoa.

No que tange especificamente ao objeto em debate no presente ensaio, busca-se verificar se a sanção prevista ao delito do art. 273 do Código Penal, bem como sua previsão no rol dos crimes hediondos, são proporcionais à relevância do bem jurídico tutelado. Ora, concebendo-se que para o crime de homicídio simples, o qual tutela o bem jurídico mais importante à sociedade, ou seja, a vida, a sanção penal varia de seis a vinte anos, é legítimo e proporcional prever sanção de dez a quinze anos para a infração do art. 273 do Código Penal?

67 “Art. 273 - Falsificar, corromper, adulterar ou alterar produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais: Pena - reclusão, de 10 (dez) a 15 (quinze) anos, e multa”. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm>. Acesso em: 10 de fevereiro de 2014.

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3.3 PRINCÍPIO DA INDIVIDUALIZAÇÃO DA PENA

O princípio da individualização da pena consiste em um direito fundamental do cidadão em face do Estado, no sentido de impedir a fixação de sanções penais padronizadas e indiferentes às especificidades do caso concreto.

Assim, de acordo com este princípio, a sanção penal deve ser individualizada tanto quanto à relevância do bem jurídico protegido pela norma, como no que se refere ao juízo de reprovabilidade em relação à conduta infracional cometida pelo agente.

O princípio da individualização das penas está expresso no art. 5º, inciso XLVI, da Constituição Federal.

Alexandre de Moraes, escrevendo sobre referido princípio, explica que:

O princípio da individualização das penas exige estreita correspon-dência entre a responsabilidade da conduta do agente e a sanção a ser aplicada, de maneira que a pena atinja suas finalidades de prevenção e repressão. Assim, a imposição da pena depende do juízo individua-lizado da culpabilidade do agente.68

Outrossim, ainda sobre referido princípio, importante registrar as palavras de Guilherme de Souza Nucci:

Individualização das penas tem o significado de eleger a justa e adequada sanção penal, quanto ao montante, ao perfil e os efeitos pendentes sobre o sentenciado, tornando o único e distinto dos demais infratores, ainda que coautores ou mesmo co-réus.69

A individualização das penas é um processo que ocorre em três momentos jurídicos bastante distintos, quais sejam: legislativo, judiciário e executório.

A fase legislativa ocorre quando o legislador fixa os parâmetros para a fixação das penas, elaborando o tipo penal incriminador e fixando as penas mínimas e máximas suficientes e necessárias para a reprovação e prevenção daquele crime. Nesta fase, como antes já apresentado, deverá o legislador se valer do princípio da intervenção mínima e da proporcionalidade.

A segunda fase ocorre quando do julgamento processual penal, onde o magistrado fixa a pena concreta ao infrator, devendo para isso considerar a gravidade da infração, bem como as características e condições pessoais do agente que praticou o crime.

68 MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional. São Paulo: Atlas, 2003, p. 326.69 NUCCI, Guilherme de Souza. Individualização da Pena. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p 31.

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Por fim, na etapa da execução da pena cabe ao magistrado fiscalizar o cumprimento da sanção imposta ao condenado, além de analisar os possíveis benefícios cabíveis quando da execução da pena, individualizando essa fase, visando à ressocialização do sentenciado.

4. O CRIME DO ART. 273 DO CÓDIGO PENAL E SUA (IN)CONSTITUCIONALIDADE

Com a promulgação da Lei 9.677/98, foi alterada substancialmente a pena do art. 273 do Código Penal, passando para dez a quinze anos de reclusão, mantendo-se a multa, sendo que com a Lei 9.695/98 esse delito foi classificado como hediondo ao ser incluído no rol do art. 1° da Lei 8.072/90.

Cabe ressaltar que no Brasil somente é hediondo o delito que a lei assim considerar, ou seja, optou-se não por conceituar o que seria crime hediondo, mas por detalhar quais são os delitos hediondos.

Segundo a Carta Magna, os crimes hediondos são inafiançáveis e insuscetíveis de graça e anistia. Ademais, por eles, assim como para a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo, por eles respondem os mandantes, os executores e os que podendo evitá-los, se omitirem.

Torna-se relevante investigar a proporcionalidade entre o fato descrito no tipo e a sanção penal prevista para o crime do art. 273 do estatuto criminal. Neste sentido, discorre Antonio Lopes Monteiro:

O mais grave é que um governo tido como democrático tenha lançado mão do Direito Penal para equipar a potencialidade ofensiva a saúde pública de produtos com fins terapêuticos e medicinais, como outros que nada ou pouco têm que ver com saúde e a vida da pessoa humana.70

O Direito Penal brasileiro, com o objetivo de tutelar a saúde pública, incrimou diversas condutas no art. 273 do Código Penal, que trata da falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais, incluindo-se nos produtos a que se refere esse artigo os medicamentos, as matérias-primas, os insumos farmacêuticos, os cosméticos, os saneantes e os de uso em diagnóstico.

Assim, é possível que um agente seja condenado a crime hediondo, com pena mínima de dez anos, porque falsificou um simples esmalte, por exemplo, resultando em uma sanção superior, muitas vezes, a de quem comete um homicídio contra outrem.

Nesta perspectiva, defende-se a inconstitucionalidade do referido dispositivo penal, da forma como se encontra, haja vista que viola gravemente

70 MONTEIRO, Antônio Lopes. Crimes Hediondos: Texto, Comentários e Aspectos Polêmicos. 8ª edição. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 142.

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o principio da intervenção mínima, o da proporcionalidade e o princípio da individualização das penas.

Como já visto, o direito penal somente deverá intervir quando os demais ramos do direito não se mostrarem suficientes, ficando claramente exposto o seu caráter subsidiário, uma vez que sua intervenção será considerada legítima se ocorrer em ultima ratio.

Neste sentido, enfatiza Capez:

Quando a comprovada demonstração empírica revelar que o tipo não precisava tutelar aquele interesse, dado que outros campos do direito ou mesmo de outras ciências têm plenas condições de fazê-lo com sucesso, ou ainda quando a descrição for inadequada, ou ainda quan-do o rigor for excessivo, sem trazer em contrapartida a eficácia pre-tendida, o dispositivo incriminador padecerá de insuperável vício de incompatibilidade vertical com os princípios constitucionais regentes do sistema penal.71

Outro princípio de grande importância para o Direito Penal é o da proporcionalidade, o qual encontra fundamento no princípio da dignidade da pessoa. Assim, por meio deste princípio, deve existir proporcionalidade entre a necessidade de preservação dos direitos individuais dos cidadãos e o interesse da sociedade na manutenção da ordem.

Quanto ao delito do art. 273 do Código Penal, pode-se verificar que houve enorme exagero do legislador na sanção penal aplicada em razão da conduta prevista no tipo, havendo nítida desproporção, o que leva a inconstitucionalidade do referido dispositivo.

Ao comparar o crime previsto no art. 121 do Código Penal, que versa sobre o homicídio, cujo bem jurídico tutelado é a vida, nota-se que para a infração do caput a pena é de reclusão de seis anos a vinte anos, ou seja, quase a metade da pena mínima prevista para o crime do art. 273 do Código Penal. Evidente, portanto, a desproporcionalidade.

A Constituição Federal também prevê o princípio da individualização da pena, conforme já aduzido, o qual se verifica em três diferentes momentos.

Entende-se inconstitucional o delito do art. 273 do Código Penal por ferir, também, a individualização em suas três fases, haja vista a falta de proporcionalidade na pena cominada, bem como a sanção a ser fixada pelo magistrado, pelo menos dez anos, o que também é desarrazoado, bem como na terceira etapa, qual seja, da execução penal, posto que será imposto o regime fechado inicial, obrigatoriamente, por se tratar de infração hedionda, embora a conduta praticada, por vezes, merecesse outro regime prisional.

71 CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal - parte geral. 15.ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 24-25.

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5. CONCLUSÃO

Não se pode negar a grande importância da proteção da saúde pública pelo Estado, enquanto bem jurídico extremamente relevante à sociedade, tratando-se de um verdadeiro bem jurídico difuso.

Ocorre que no presente caso, no que tange ao crime do art. 273 do Código Penal, essa proteção foi feita afrontando princípios penais fundamentais, de índole constitucional.

Assim, a inserção do delito do art. 273 do Código Penal como hediondo, bem como a sanção penal prevista ferem frontalmente os princípios acima trabalhados, o que resulta na patente inconstitucionalidade do disposto no art. 273 do estatuto criminal.

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É CABÍVEL A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA AO CRIME DE TRÁFICO DE DROGAS NO BRASIL?

barbara bruna deMostenes ghelli

diennifer de oliVeira Pena

1. INTRODUÇÃO

Com o passar do tempo, cada vez mais se torna evidente que a guerra contra as drogas está sendo perdida, tanto no que diz respeito ao enfraquecimento ao tráfico de drogas, quanto ao desestímulo ao uso de entorpecentes no Brasil.

Sabe-se que o crime e os criminosos se adaptam ao meio e aos novos posicionamentos da Justiça, sendo que em relação ao crime de tráfico, à medida que foi difundido o princípio da insignificância e sua admissibilidade pela jurisprudência pátria, passou-se a traficar drogas em pequenas porções, no intuito de afastar possível responsabilização criminal em razão da incidência do famigerado princípio.

Nesta perspectiva, o presente trabalho se propõe a investigar a questão acerca da incidência ou não do princípio da insignificância ao crime de tráfico de drogas.

Assim, inicialmente será dedicado um capítulo à evolução histórica da repressão às drogas, sendo que no capítulo seguinte serão abordados os principais aspectos do crime de tráfico de entorpecentes, como sua natureza, objeto e características principais.

No último capítulo será analisado o princípio da insignificância, abordando seu conceito, sua história, sua finalidade e seu fundamento de aplicabilidade, debatendo a possibilidade de incidência e aplicabilidade do princípio da insignificância no tráfico de drogas.

Utilizar-se-á como metodologia o tipo de pesquisa bibliográfica e como método o dedutivo, por meio da análise textual, temática e interpretativa de obras doutrinárias sobre o tema, assim como o tipo de pesquisa documental, enquanto método indutivo, por meio da análise de jurisprudências relacionadas à pesquisa.

2. CONSIDERAÇÕES HISTÓRICAS SOBRE A REPRESSÃO ÀS DROGAS

A primeira legislação criminal que puniu o consumo de substâncias tóxicas foi instituída nas Ordenações Filipinas (1603), com as Grandes Navegações no século XVI, quando os europeus entraram em contato com uma série de substâncias psicoativas, inserindo-as na sociedade com finalidades diversas72.

72 SILVA, Antônio Fernando de Lima Moreira da. Histórico das drogas na legislação brasileira e

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Diante deste fato, houve inúmeros problemas como doenças e complicações crônicas que começaram a aparecer. Assim, em 1830, foi criado o Código Criminal do Império, em seguida o Código Penal de 1890 e em 1940 o Código Penal, com a tentativa de minimizar os prejuízos causados pela exacerbação do consumo dessas substâncias73.

Realizou-se em 1911 a Primeira Conferência Internacional do Ópio, em Haia. Desta conferência resultou a “Convenção do Ópio”, em 1912, pela qual os países signatários criaram o compromisso de adotar medidas de controle da comercialização da morfina, heroína e cocaína nos seus próprios sistemas legais. Vale ressaltar que outras substâncias, como a cocaína, foram adicionadas devido a uma pressão inglesa, para que o ônus econômico da proibição recaísse também sobre outros países (França, Holanda, Alemanha), que estavam tendo lucros com o comércio de cocaína através da emergente indústria farmacêutica.74

As leis 5.726/1971 e 6.368/1976 também continuaram a reprimir o consumo destas substâncias. Em 1988 a Convenção de Viena elaborou medidas contra o tráfico de drogas e previu a cooperação internacional como ponto de enfrentamento75.

No mesmo ano, em harmonia com a citada Convenção, foi promulgada a Constituição Federal de 1988. Nela encontram-se, no título dos direitos fundamentais, art. 5°, inciso XLIII, a equiparação do tráfico de drogas aos crimes hediondos, prevendo a inafiançabilidade e a proibição de graça e anistia. Outrossim, o inciso LI do mesmo artigo autoriza a extradição do brasileiro naturalizado se “comprovado envolvimento com tráfico ilícito ou drogas afins”. Ademais, o artigo 144, parágrafo1°, II, confere à Policial Federal atribuição de prevenir e reprimir o tráfico de drogas, bem como o artigo 243 previu a expropriação das terras e confisco dos bens decorrentes do tráfico de drogas.76

nas convenções internacionais. Disponível em: <  http://jus.com.br/artigos/19551/historico-das-drogas-na-legislacao-brasileira-e-nas-convencoes-internacionais>. Acesso em 01 de novembro de 2013.73 SILVA, Antônio Fernando de Lima Moreira da. Histórico das drogas na legislação brasileira e nas convenções internacionais. Disponível em: <  http://jus.com.br/artigos/19551/historico-das-drogas-na-legislacao-brasileira-e-nas-convencoes-internacionais>. Acesso em 01 de novembro de 2013.74 BATISTA, Nilo. Política criminal com derramamento de Sangue. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 5, n.º 20, p. 129, outubro-dezembro de 1997.75 SILVA, Antônio Fernando de Lima Moreira da. Histórico das drogas na legislação brasileira e nas convenções internacionais. Disponível em: <  http://jus.com.br/artigos/19551/historico-das-drogas-na-legislacao-brasileira-e-nas-convencoes-internacionais>. Acesso em 01 de novembro de 2013.76 SILVA, Antônio Fernando de Lima Moreira da. Histórico das drogas na legislação brasileira e nas convenções internacionais. Disponível em: <  http://jus.com.br/artigos/19551/historico-

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No dia 23 de agosto de 2006 foi promulgada a lei n° 11.343, que criou o SISNAD – Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas, que apresenta a distinção entre usuários e traficantes de drogas, sendo tratados de maneira diferenciada na lei e ocupando até mesmo capítulos diversos77.

O usuário e dependentes de drogas agora são atendidos nos Juizados Especiais Criminais, onde devem ser orientados quanto a reinserção social, quanto à participação em programas comunitários de tratamento, além de poderem ser encaminhados para prestação de serviços a comunidade.

Com o advento da Lei nº 11.343/06 houve a unificação das matérias tratadas nas Leis nº 6.368, de 21 de outubro de 1976, e nº 10.409, de 11 de janeiro de 2002, que foram expressamente revogadas, adotando-se no ordenamento jurídico brasileiro a política criminal da justiça terapêutica em relação ao tratamento conferido ao usuário e dependente de drogas, constituindo-se em uma das principais inovações da novel legislação. No tocante ao traficante de drogas, diferentemente, o tratamento penal mostrou-se mais gravoso.

3. O CRIME DE TRÁFICO DE DROGAS: aspectos gerais normativos

De início, importante registrar que para fins da lei 11.343/06, droga é a substância entorpecente definida e incluída na portaria 344/98 da ANVISA, lista F1, ou seja, aquilo que for previsto como droga assim deve ser entendido, e vice-versa.

Ademais, uma vez apreendida a substância entorpecente, competirá ao magistrado, em palavra final, reconhecer, com fundamento nos critérios legais, se a droga encontrada destina-se ao consumo pessoal ou ao tráfico.

Luiz Flávio Gomes, sobre o tema, expõe categoricamente que:

Há dois sistemas legais para se decidir sobre se o agente (que está envolvido com a posse ou porte de droga) é usuário ou traficante: (a) sistema da quantificação legal (fixa-se, nesse caso, um quantum diário para o consumo pessoal; até esse limite legal não há que se falar em tráfico); (b) sistema do reconhecimento judicial ou policial (cabe ao juiz ou à autoridade policial analisar cada caso concreto e decidir sobre o correto enquadramento típico). A última palavra

das-drogas-na-legislacao-brasileira-e-nas-convencoes-internacionais>. Acesso em 01 de novembro de 2013.77 SILVA, Antônio Fernando de Lima Moreira da. Histórico das drogas na legislação brasileira e nas convenções internacionais. Disponível em: <  http://jus.com.br/artigos/19551/historico-das-drogas-na-legislacao-brasileira-e-nas-convencoes-internacionais>. Acesso em 01 de novembro de 2013.

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é a judicial, de qualquer modo, é certo que a autoridade policial (quando o fato chega ao seu conhecimento) deve fazer a distinção entre o usuário e o traficante. 78

Outrossim, calha destacar que a Constituição Federal prevê que “a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática de tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos.”79

A lei 8.072/90, de 25 de julho, que regulamentou o acima referido dispositivo constitucional, definiu o regime inicialmente fechado para cumprimento de pena, bem como diferenciou diversos benefícios da execução penal aos condenados por tráfico de drogas, crimes hediondos e os demais crimes equiparados a hediondos.

Na antiga Lei n° 6.368/76 o crime de tráfico era mencionado em seu art. 12, sendo que na atual lei está no art.33. A frase “substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica” foi alterada para “drogas”. Ademais, a pena privativa de liberdade que era de reclusão de 3 (três) a 15 (quinze) anos, agora é de reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos, sendo que a multa de 50 (cinquenta) a 360 (trezentos e sessenta) dias, atualmente é de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias- multa80.

Na lei atual, registre-se, “induzir, instigar ou auxiliar alguém ao uso indevido de droga”, que sujeitava o agente às mesmas penas do tráfico, tem pena mais branda, sendo de detenção de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa de 100 (cem) a 300 (trezentos) dias- multa81.

Como ressalta Renato Marcão82:

Na conduta praticada para “contribuir”, “incentivar”, ou “difundir” não de ajuste a qualquer outra figura típica regulada na Lei de Drogas, pois, conforme já se decidiu: “Com a edição da Lei n° 11.343/2006, o art, 12,§ 2°, III, da antiga Lei de Drogas não foi repetido literalmente, mas o legislador infraconstitucional criou os crimes de financiamento e custeio para o tráfico (art. 36), o de colaboração como informante

78 GOMES, Luiz Flávio; BIANCHINI, Alice; CUNHA, Rogério Sanches da; OLIVEIRA, William Terra de. Nova lei de drogas comentada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p.108-113.79 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Diário Oficial da União. Brasília, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/cci vil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm. Acesso em: 5 de dezembro de 2013.80 CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 770.81 CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal, p. 788.82 MARCÃO, Renato. Tóxicos, lei n. 11.343, de 23 de agosto de 2006: lei de drogas. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 136.

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(art. 37) e, ainda, modificou a concepção do art. 12, §2°, II, da Lei n° 6.368/76, de forma a introduzir, no novo art. 33, § 1°, III, a ideia de que incorre nas mesmas penas do art.33, caput, aquele que consente que outrem se utilize de bem de qualquer natureza, de que tem a propriedade, posse, administração, guarda, ou vigilância, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, ainda que gratuitamente, para o tráfico ilícito de drogas. Assim, o art. 12, § 2°, III, da Lei n° 6.368/76, ainda vige na atual Lei 11.343/2006, mesmo que desdobrado em outros artigos, e, no presente caso, não houve abolitio criminis, motivo pelo qual a condenação deve permanecer como se encontra’ (HC 76.538/RJ, 5a T, rela. Mina. Jane Silva, desembargadora convocada do TJMG, DJU de 5-11-2007), Habeas corpus denegado” (STJ, HC 87.171/RJ, 5 a T., rel. Min. Felix Fischer, DJU de 18-2-2008, Revista Jurídica, n. 364, p 194).

Quem oferece drogas, sem o intuito de lucro, para consumir com terceiro, que não seja traficante, possui pena de 6 (seis) meses a 1 (um) ano e pagamento de 700 (setecentos) a 1.500 (um mil e quinhentos) dias- multa, tendo todos os benefícios da lei, visto que não é tido como tráfico propriamente dito83.

Seguindo a mesma análise, o médico ou operador do Sistema de Saúde que erra na quantidade de drogas também tem uma pena de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos de detenção e pagamento de 50 (cinquenta) a 200 (duzentos) dias- multa, e também não se enquadra como traficante propriamente dito84.

O quadro mais preocupante no tráfico de drogas é daquele que tem poder econômico e custeia o tráfico, sendo o grande traficante ou chefe do narcotráfico. Neste caso a pena mínima é de 8 (oito) anos de reclusão, podendo chegar a 20 (vinte) anos, e a multa varia de 1.500 (um mil e quinhentos) a 4.000 (quatro mil) dias-multa. O número de dias-multa poderá ser multiplicado por cinco, iniciando em um trinta avos do maior salário mínimo, conforme o art. 43, caput, da lei 11.343/0685.

83 MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO, PROCURADORIA-GERAL DE JUSTIÇA, CENTRO DE APOIO OPERACIONAL CRIMINAL. O usuário e traficante à luz da nova lei de drogas. Disponível em: <http://issuu.com/armandomendonca/docs/usuarioetraficantededrogas >. Acesso em: 01 de novembro de 2013.84 MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO, PROCURADORIA-GERAL DE JUSTIÇA, CENTRO DE APOIO OPERACIONAL CRIMINAL. O usuário e traficante à luz da nova lei de drogas. Disponível em: <http://issuu.com/armandomendonca/docs/usuarioetraficantededrogas >. Acesso em: 01 de novembro de 2013.85 MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO, PROCURADORIA-GERAL DE JUSTIÇA, CENTRO DE APOIO OPERACIONAL CRIMINAL. O usuário e traficante à luz da nova lei de drogas. Disponível em: <http://issuu.com/armandomendonca/docs/usuarioetraficantededrogas

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Caso o tráfico envolva dois ou mais países, quando visar a atingir criança ou adolescente, ou sendo a infração praticada nas imediações de estabelecimentos prisionais, de ensino ou hospitalares, de sede de entidades estudantis de locais de trabalho coletivo e quando o traficante prevalecer-se para tal da função pública, a pena será aumentada de um sexto a dois terços86.

Ressalta-se que para a existência do delito em comento não há necessidade de ocorrência do dano. O próprio perigo é presumido em caráter absoluto, bastando para a configuração do crime que a conduta seja subsumida em um dos verbos previstos.87

A objetividade jurídica é o bem jurídico tutelado, sendo nos crimes da lei de tóxicos a proteção da saúde pública, pertencente à coletividade e as gerações futuras. A disseminação ilícita da droga além de destruir a sociedade, coloca em risco um número indeterminado de pessoas, pois tem alta potencialidade de causar riscos à saúde, não exigindo a ocorrência de um dano concreto, mas a uma situação de perigo, sendo pois um crime de perigo abstrato88.

Neste sentido, alerta Capez:

Nada impede que, visando a uma proteção mais ampla do bem jurídico, o Estado procure coibir o crime em sua forma ainda embrionária. Desse modo há três maneiras de proteger o interesse, punindo: 1) a agressão; 2) o perigo de agressão; 3) a mera conduta da qual, mais tarde, poderão advir consequências maléficas. A tipificação do perigo abstrato ou presumido implica proteger o bem jurídico do mal, ainda em seu estágio inicial, evitando que se transforme, mais adiante, em um perigo real e, depois, em um dano efetivo. Quando se tipifica um crime de perigo abstrato ou presumido, pretende-se abortar o mal, antes que ele cresça e se transforme em agressão concreta contra o interesse penalmente tutelado.89

O sujeito passivo é a coletividade, ou seja, um número indeterminado de pessoas que se veem expostas a perigo pela prática de uma das condutas

>. Acesso em: 01 de novembro de 2013.86 MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO, PROCURADORIA-GERAL DE JUSTIÇA, CENTRO DE APOIO OPERACIONAL CRIMINAL. O usuário e traficante à luz da nova lei de drogas. Disponível em: <http://issuu.com/armandomendonca/docs/usuarioetraficantededrogas >. Acesso em: 01 de novembro de 2013.87 CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal, p. 771.88 MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO, PROCURADORIA-GERAL DE JUSTIÇA, CENTRO DE APOIO OPERACIONAL CRIMINAL. O usuário e traficante à luz da nova lei de drogas. Disponível em: <http://issuu.com/armandomendonca/docs/usuarioetraficantededrogas >. Acesso em: 01 de novembro de 2013.89 CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal, p. 773.

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típicas. Assim, conforme Fernando Capez90, é possível perceber que: A coletividade é, assim, um sujeito passivo direto, permanente, que está

presente em todos os delitos do art. 33, enquanto o viciado ou consumidor é um sujeito passivo eventual, mediato, de acordo com a modalidade da conduta praticada.

Segundo Nucci91, trata-se de um “crime comum (pode ser praticado por qualquer pessoa); formal (não exige resultado naturalístico para a consumação, consiste na efetiva lesão à saúde de alguém); de forma livre (pode ser cometido por qualquer meio eleito pelo agente).”

4. PRINCÍPIOS PENAIS FUNDAMENTAIS: o princípio da insignificância e sua possível incidência no crime de tráfico de drogas

Quanto à origem do princípio da insignificância tem-se divergência dentre duas correntes doutrinárias, conforme apresenta Maurício Antônio Ribeiro Lopes92, sendo que uma defende que este princípio surgiu na Europa, devido às crises sociais decorrentes das duas grandes guerras mundiais, onde o excesso de desemprego e a falta de mantimentos, dentre vários outros fatores, provocou impulsos na criminalidade, especialmente pequenos furtos e subtrações de mínima relevância, que receberam a denominação de “crime de bagatela”.

Lado outro, de acordo com a outra corrente, o princípio originou-se do Direito Romano antigo, que tem como base minimis non curatpraetor, cujo significado é “o pretor não cura das questões mínimas”, ou seja, não há necessidade de aplicação de pena, pois apesar de se tratar de um fato punível, este delito é insignificante.

Fato é que o princípio da insignificância foi introduzido no sistema penal na Alemanha no ano de 1964, por Claus Roxin, um jurista alemão que tinha muita influência no âmbito do Direito Penal, com o intuito de excluir do tipo os fatos considerados irrelevantes, conforme ensinamentos de Rocha, que diz93:

O princípio da insignificância é originário do Direito Romano, e foi reintroduzido no sistema penal por Claus Roxin, na Alemanha, no ano de 1964. Fundado no brocardo minimis non curat praetor, sustenta que quando a lesão é insignificante, não há necessidade de aplicação de uma pena, pois não se trata de fato punível.

90 CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal, p. 773.91 NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2012, p. 249.92 LOPES, Mauricio Antônio Ribeiro. Princípio da Insignificância no Direito Penal. 2° ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p.42.93 ROCHA, Fernando A. N. Galvão da. Direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Impetus, 2004, p.198.

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Embora este princípio tenha-se originado da Alemanha, ele rapidamente ganhou uma relevância no ordenamento jurídico brasileiro, sendo atualmente aceito de forma majoritária tanto pela doutrina quanto pela jurisprudência, porque se trata de um instrumento de interpretação essencial para a limitação da abrangência do tipo penal para as condutas que causam realmente uma nociva perturbação à sociedade, resguardando o ideal de proporcionalidade que a pena deve guardar em relação à gravidade do crime.

O princípio da insignificância ou delito de bagatela não está explícito na Carta Magna brasileira, entretanto tem sido feito uma interpretação doutrinária e jurisprudencial no sentido de guardar relação com o princípio da dignidade da pessoa humana e da proporcionalidade na aplicação de uma pena, posto que certos fatos, embora sejam formalmente típicos, não causam relevância social, por não representarem uma violação de grande importância ao bem jurídico tutelado.

Sendo assim, segundo Diomar Ackel Filho94:

O princípio da insignificância pode ser conceituado como aquele que permite infirmar a tipicidade de fatos que, por sua inexpressividade constituem ações de bagatela, despidas de reprovabilidade, de modo a não merecerem valoração da norma penal, exsurgindo, pois como irrelevantes.

De forma semelhante, o doutrinador Bitencourt ensina que95:

É imperativa uma efetiva proporcionalidade entre a gravidade da conduta que se pretende punir e a drasticidade da intervenção estatal. Amiúde, condutas que se amoldam a determinado tipo penal, sob ponto de vista formal, não apresenta nenhuma relevância material. Nessas circunstâncias, pode-se afastar liminarmente a tipicidade penal porque em verdade o bem jurídico não chegou a ser lesado.

Assim sendo, os crimes de bagatela são delitos que, em um primeiro momento, se amoldam à conduta típica, mas que tem sua tipicidade desconsiderada por tratar-se de ofensas a bens jurídicos que não causam uma reprovação social, de maneira que não faz necessária a atuação do direito penal.

O fundamento do ordenamento jurídico brasileiro é de solucionar os conflitos da coletividade, com o objetivo de concretizar a paz social, recompondo a segurança e harmonia no seio da sociedade.

94 ACKEL FILHO, Diomar.  O princípio da insignificância no Direito Penal.  Revista de Jurisprudência do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, 1988, p. 73.95 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. v. 1. p. 21.

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Dessa forma, o princípio da insignificância no direito penal tem como fundamento uma mínima intervenção com a finalidade de estabelecer uma adequação de proporcionalidade entre o delito e a pena. Sendo assim, tem que se fazer uma espécie de interpretação para que possa ser aplicada uma norma a um delito.

Outrossim, para a aplicação do princípio da insignificância nos crimes chamados de bagatela, para que possa ser afastada a tipicidade penal, é fundamental um estudo sobre os requisitos que o próprio Supremo Tribunal Federal estabeleceu, quais sejam: a) a mínima ofensividade da conduta, b) total ausência de periculosidade social da ação, c) reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento, d) inexpressiva lesão jurídica. Assim, somente deve ser aplicado o princípio da insignificância quando estiverem presentes todos os quatros requisitos de forma cumulativa.96

Quanto ao crime de tráfico de drogas, previsto no art. 33 da lei de tóxicos, trata-se de questão polêmica a incidência ou não de dito princípio como excludente da tipicidade material.

De início, cabe registra a posição daqueles que aceitam a incidência do princípio da insignificância ao crime de tráfico de drogas, como, por exemplo, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça:

Sendo ínfima a pequena quantidade de droga encontrada em poder do réu, o fato não tem repercussão na seara penal, à míngua de efetiva lesão do bem jurídico tutelado, enquadrando-se a hipótese no princípio da insignificância. (STJ HC 17956 SP 2001/0096779-7).97

Embora existam decisões admitindo a aplicação do princípio da insignificância ao tráfico de drogas, entende-se que, por se tratar de um crime de perigo abstrato, bem como em razão da natureza difusa do bem jurídico tutelado, não deve ser admitida a incidência de tal princípio despenalizador nesta figura delitiva específica.

Sobre o tema, no sentido contrário à aplicação do princípio ao tráfico, o julgado que se segue:

1. Percebe-se que a consumação do delito de tráfico de drogas, na modalidade trazer consigo, preexistiu à atuação policial, posto ser

96 Disponível em: <http://www.stj.jus.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area= 398&tmp.texto=109585>. Acesso em 01 novembro 2012.97 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HABEAS CORPUS N°17.956-SP (2001/0096779-7). Cristiano Ávila Maronna versus Quinta Câmara Criminal Do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Relator Ministro Hamilton Carvalhido. Acórdão de 03 de dezembro de 2001. JusBrasil. 19.08.2002 p. 194 Disponível em:<http://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/286769/habeas-corpus-hc-17956-sp-2001-0096779-7> Acesso em: 18 de novembro de 2013.

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este um dos verbos núcleos do tipo que demonstra a permanência, não restando caracterizado, assim, o flagrante preparado. 2. Mesmo tratando-se de pequena quantidade de droga apreendida, tal fato não autorizaria a aplicação do princípio da insignificância ao delito de tráfico de drogas. Isto porque a conduta praticada pelo sentenciado expôs abstratamente em perigo o bem jurídico tutelado no art. 33 da Lei nº 11.343, ou seja, a saúde pública, sendo tal fato suficiente e eficiente para configurar o injusto típico.98

Assim, apesar de ser uma pequena quantidade de droga, não se deve aplicar o princípio da insignificância ao tráfico de entorpecentes, uma vez que está sendo lesado um bem jurídico indisponível e difuso, qual seja, a saúde pública. Ademais, o crime de tóxico é de perigo abstrato, motivo pelo qual a quantidade de drogas é indiferente para a configuração delitiva.

5. CONCLUSÃO

Não se nega a importância do princípio da insignificância como instrumento concretizador de justiça no caso concreto, em especial nas infrações patrimoniais, nem se pretende com o presente trabalho desestimular sua aplicação na interpretação e aplicação da lei penal na contemporaneidade.

O objeto do presente estudo, com as limitações de um artigo científico, foi demonstrar que no que tange ao crime de tráfico de drogas tal princípio não deve incidir, haja vista se tratar de uma infração de perigo abstrato, que se consuma com a simples conduta do agente, independentemente da ocorrência de resultado naturalístico, bem como pelo fato de que o bem jurídico protegido pelo tipo é a saúde pública, considerado como um bem difuso e indisponível, razão pela qual não se concebe a possibilidade do magistrado mensurar qual lesão à saúde pública seria ou não significante, dispondo no caso concreto da responsabilização do agente.

Talvez a medida mais indicada seja a proporcional dosimetria da sanção penal, de forma a individualizar a pena o máximo possível, podendo até substituir a pena privativa de liberdade por restritiva de direito, bem como aplicar a minorante do artigo 33, § 4º da lei 11.343/06, mas não utilizar o princípio da insignificância para afastar a tipicidade em razão da quantidade de drogas apreendida.

98 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. APELAÇÃO CRIMINAL Nº 698.173-9. João Edemilson Giovaneti versus Ministério Publico do Estado Do Paraná. Relator Des. Antônio Martelozzo. Acórdão de 13 de janeiro de 2011. JusBrasil. Disponível em: <http://tj-pr.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/19369843/apelacao-crime-acr-6981739-pr-0698173-9> Acesso em: 18 de novembro de 2013.

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REFERÊNCIAS

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GUIMARÃES, Isaac Sabbá. Nova lei antidrogas comentada: crimes e regime processual penal. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2007.

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A INFRAÇÃO PENAL DO ART. 1º, §2º DA LEI Nº 9.455 DE 1997 É CONSTITUCIONAL?

odilon Martins raMos Junior

renê luiz da costa

1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho busca realizar uma análise crítica, sob a ótica constitucional, acerca das disposições normativas da Lei de Tortura brasileira (Lei 9.455/97)99, verificando se os princípios constitucionais fundamentais estão sendo observados na referida legislação, bem como refletir sobre a melhor forma de interpretar e aplicar seus dispositivos respeitando a Constituição da República Federativa do Brasil100.

Assim, dedicar-se-á, inicialmente, numa abordagem histórico-sociológico da tortura, desde a idade média até os dias atuais. A seguir, abordar-se-á as vedações à tortura no plano normativo brasileiro, abordando os principais dispositivos legais que regem o tema no país.

No último capítulo será realizada uma análise mais detida sobre as disposições da atual Lei de Tortura brasileira, Lei 9.455/97101, verificando a (in) constitucionalidade do §2º, do art. 1º, da referida lei em estudo, confrontando essas normas com os princípios constitucionais fundamentais, em especial o princípio da proporcionalidade e o principio da igualdade.

Nesta perspectiva, será dedicada especial atenção ao confronto, à luz dos princípios fundamentais, dos delitos comissivos e omissivos previstos na referida legislação.

Sabe-se da destacada importância da Lei 9.455/97 na defesa dos direitos humanos e fundamentais do indivíduo, entretanto sua interpretação e aplicação não podem restar dissociadas dos preceitos constitucionais, em especial dos princípios fundamentais, sob o risco de incorrer em flagrantes inconstitucionalidades.

Por fim, a metodologia a ser empregada será a pesquisa bibliográfica em obras afins ao tema, enquanto método dedutivo, bem como a pesquisa

99 BRASIL. Lei nº 9455, de 07 de abril de 1997. Lei de tortura. Diário Oficial da União. Brasília, 1997. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9455.htm>. Acesso em: 03 de dezembro de 2013.100 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Di-ário Oficial da União. Brasília, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituição/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em: 03 de dezembro de 2013.101 BRASIL. Lei nº 9455, de 07 de abril de 1997. Lei de tortura. Diário Oficial da União. Brasília, 1997. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9455.htm>. Acesso em: 03 de dezembro de 2013.

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documental, por meio da análise de jurisprudências relacionadas à pesquisa, utilizando, nesse diapasão, também o método indutivo.

2. CONSIDERAÇÕES HISTORICO-SOCIOLÓGICAS SOBRE A TORTURA

Sabe-se que a prática da tortura está arraigada no meio social da humanidade desde a antiguidade, ou seja, época na qual era estabelecido o regime da escravidão, onde os escravos eram tratados como coisas e não pessoas, submetidos as mais bárbaras punições.

A tortura também era considerada uma forma de castigo aos delinquentes daquela época, os quais quando não eram punidos com a morte, eram submetidos a grandes suplícios.

Na idade média a justiça era interpretada de acordo com o que os religiosos diziam, ou seja, o poder era teocêntrico, pois todo o poder emanava de Deus.

Assim, a justiça na idade média não se via no costume, isto é, nas ações do homem na terra, via-se nas leis de Deus, omini potestas nisi a deo102.

Os governantes eram escolhidos pela Igreja, a qual representava o poder direto de Deus, com isso tais governantes possuíam todo o poder para governar a sociedade e somente eles poderiam manifestar o poder de Deus e, portanto, do justo.103

Sendo a justiça uma expressão divina e os homens tidos como pecadores, as ações do homem na terra eram tidas como injustas. Neste pensamento, os juízes da época eram ligados diretamente à Igreja e, na maioria das vezes, eram “inquisidores”, ou seja, sacerdotes da Igreja, que para punir o delituoso usavam de medidas extremas como a morte e, principalmente, a tortura.104

A tortura naqueles tempos já era considerada uma barbaridade, no entanto, os religiosos daquela época diziam ser necessária sua prática, pois a tortura era uma ferramenta necessária para a manutenção da ordem social.105

Neste sentido, dizia Santo Agostinho:

[...] O juiz sábio não se julga culpado de tantos pecados e de tão enormes males, porque não os pratica com vontade perversa, mas por invencível ignorância, e, como a isso o força a sociedade humana, também por ofício se vê obrigado a praticá-los. No caso há, por conseguinte, miséria do homem e não malignidade do juiz.106

102 MASCARO, Alysson Leandro. Lições de sociologia do direito. 2º ed. São Paulo: Quatierlatin, 2009, p.55.103 MASCARO, Alysson Leandro. Lições de sociologia do direito, p.55.104 MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do direito. São Paulo: Atlas, 2010, p. 106.105 MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do Direito, p. 106.106 MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do Direito, p. 394.

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Portanto, pode-se concluir que a tortura era considerada um mal necessário, haja vista que o próprio homem dava causa, e, assim, teria que suportar, pois era um pecador por natureza e, consequentemente, no pensamento dos religiosos daquela época, Deus permitia a tortura para conservar a paz social e para corrigir os atos dos desobedientes, sendo a tortura parte da justiça.107

O pensamento acima apresentado prevaleceu até meados do século XII, século no qual começaram a surgir às ideias iluministas, “na qual a justiça na terra começou a ser entendida não por fundamento direto em Deus, mas pelos fundamentos teóricos do próprio homem”.108

O Brasil, desde a descoberta em 1500 até meados de 1820, permaneceu sobre o domínio de Portugal. Neste contexto, o Brasil, enquanto colônia, era governado pelo rei de Portugal, o qual tinha a compreensão de ser representante de Deus, ou seja, o poder concentrava-se todo na mão do rei.109

Neste período em que o Brasil foi colônia a tortura era muito utilizada nas prisões e nas punições em geral, “e isso só começou a mudar com a proclamação da independência em 1822 quando o Brasil deixou de ser colônia de Portugal e se transformou em Império”.110

Com a proclamação da independência, o Brasil (em 1824) elaborou sua primeira Constituição, a qual em seu artigo 179, inciso XIX, continha o intuito de suprimir as formas de tratamentos bárbaros que vigoravam durante a colônia. Dentre os comportamentos que ela abolia se encontravam: “os açoites, a tortura, a marca de ferro quente e as demais penas cruéis utilizadas naquela época; o que mais tarde foi incrementado pelo art. 72, §20, da Constituição de 1891”. 111

No entanto simplesmente abolir não foi suficiente, era preciso que se vedasse expressamente tais condutas. As práticas da tortura ainda permaneciam arraigadas nas condutas dos agentes, os quais raramente eram punidos, além de que as legislações constitucionais ainda não tinham conseguido vedar tais condutas, haja vista as barbáries cometidas pelas autoridades durante o período do regime militar, ocorrido de 1964 até 1985.112

No intuito de extirpar com tais condutas, a atual Constituição, além de garantir a dignidade da pessoa humana e o respeito à integridade física e moral, previu outras garantias como: o dever de comunicar imediatamente ao juiz competente e a família ou pessoa indicada acerca da prisão de qualquer pessoa

107 MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do Direito, p. 106.108 MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do Direito, p. 128.109 Disponível em: <www.historiadobrasil.net>. Acesso em: 29 de novembro de 2013.110 Disponível em: <www.historiadobrasil.net>. Acesso em: 29 de novembro de 2013.111 SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 8° ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2012, p. 89.112 SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição, p. 89.

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e o local onde se encontre; o dever de a autoridade policial informar ao preso seus direitos, “entre os quais de permanecer calado, assegurada a assistência da família e de advogado; e o direito do preso à identificação dos responsáveis por sua prisão e interrogatório policial”.113

Tais garantias trazidas pela atual Carta Magna servem para que o suspeito preso não fique a mercê dos mandos e desmandos das autoridades, configurando uma ferramenta importante para coibir práticas abusivas.114

3. A VEDAÇÃO À TORTURA NO PLANO NORMATIVO BRASILEIRO

O art. 5º da Constituição Federal, intitulado “Dos direitos e Garantias Fundamentais”115, prevê os direitos fundamentais da pessoa, ressaltando que tais direitos são insusceptíveis de disposição ou suprimento.

Dentre esses direitos, encontra-se em seu inciso III, a premissa de que “ninguém será submetido à tortura e nem a tratamento desumano ou degradante”.116

Encontra-se, portanto, desde o início do importante art. 5º da Constituição, vedação à prática da tortura, crime que Guilherme de Souza Nucci descreve suscintamente como: “tortura é qualquer método de submissão de uma pessoa a sofrimento atroz, físico ou mental, contínuo e ilícito, para a obtenção de qualquer coisa ou para servir de castigo por qualquer razão”.117

Alexandre de Moraes, em comentários à Constituição Federal de 1988, menciona o brilhante conceito elaborado pela Segunda Turma do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em julgamento de apelação criminal, onde se entendeu o crime de tortura como sendo:

[...] a composição de ações empregadas por uma ou mais pessoas, com relação a outra ou outras,pelo modo violento e desgastante,quer no aspecto físico,quer psíquico,com o perdurar do tempo,acaba por derrotar toda a resistência natural inerente ao ser humano,tornando-o desorientado,depressivo e sujeito as mais várias reações,dentre elas, aquela que mais interessa a quem tortura o irremediável medo.118

113 SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição, p. 90.114 SILVA, José Afonso da, Comentário Contextual à Constituição, p. 89.115 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Di-ário Oficial da União. Brasília, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituição/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em: 03 de dezembro de 2013.116 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Di-ário Oficial da União. Brasília, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituição/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em: 03 de dezembro de 2013.117 NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. 6ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 684.118 MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional. São Paulo: Atlas, 2007, p. 137.

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Há que se registrar, também, o inciso XLIII do supracitado artigo constitucional119, o qual prevê a inafiançabilidade e insusceptibilidade de graça e indulto ao crime de tortura.

Ocorre que mesmo com essas previsões supremas vedando a prática de tortura, ainda era necessário um tipo penal específico para conferir uma maior punibilidade à tortura, razão pela qual, em 1997, após o episódio da Favela Naval, evento nefasto com muita repercussão na mídia nacional e internacional, o projeto da lei de tortura foi aprovado no Congresso Nacional.

Entretanto, apesar do avanço de nossas previsões normativas consti-tucionais e infraconstitucionais contra a prática da tortura, sabe-se que, infeliz-mente, ainda é comum seu cometimento nos presídios, nas casas de detenção, nas delegacias, nas ruas pelas polícias, entre outros.

No presente trabalho, portanto, busca-se compreender se a figura delitiva do art. 1º, § 2º da Lei de Tortura (Lei 9455/97) é constitucional, haja vista a sanção penal prevista em comparação ao cometimento da tortura pela via comissiva, realizando a análise com a ajuda dos princípios da proporcionalidade e da igualdade.

4. A LEI DE TORTURA BRASILIERA (LEI 9.455/97) E PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS: princípio da proporcionalidade e princípio da igualdade

Antes de adentrar no objeto do trabalho propriamente dito, faz-se relevante distinguir crimes omissivos próprios e impróprios.

Neste sentido, segundo o doutrinador Luiz Regis Prado, enquanto nos crimes omissivos próprios a consumação ocorre com a simples desobediência a ordem ou ao comando de agir, independentemente do resultado, ou seja, afere-se uma mera conduta de atividade, não se exigindo um resultado como elemento caracterizador do tipo, nos delitos comissivo por omissão ou omissivos impróprios o omitente possui uma posição de garantidor anteriormente ao fato típico, ou seja, ele podia e devia impedir o resultado, mas não o faz, exigindo, nesta segunda hipótese, para sua consumação, o resultado da conduta típica.120

Analisando o §2º do art. 1º da Lei de Tortura121, constata-se que se trata de crime omissivo próprio, ou seja, há uma norma preceptiva, onde o

119 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Di-ário Oficial da União. Brasília, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituição/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em: 03 de dezembro de 2013.120 PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro: parte geral. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, p. 297.121 BRASIL. Lei nº 9455, de 07 de abril de 1997. Lei de tortura. Diário Oficial da União. Brasília, 1997. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9455.htm>. Acesso em: 03 de dezembro de 2013.

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verbo-núcleo do tipo prevê uma conduta omissiva, na qual o agente pratica essa omissão. Ademais, a sanção penal é simplesmente a metade da sanção para o torturador-executor.

Ocorre que se não existisse esse delito em específico, e a omissão ocorresse por parte de um garantidor em qualquer dos crimes comissivos previstos na Lei de Tortura, a punição ao autor da omissão seria a mesma a que estaria sujeito o autor da tortura comissiva, logicamente na medida de sua culpabilidade (art. 29 do Código Penal).

Diante da diferença de pena do § 2º e do caput do art. 1º da Lei de Tortura, Nucci anuncia que: “é incompreensível a condescendência do legislador justamente com a pessoa (normalmente autoridade) que tem poder para fazer cessar a tortura e se omite, ou que pode apurar os responsáveis pelo ato repugnante e silencia”.122

A questão a se perquirir, portanto, é se deve ser admitida como legítima e constitucional a benesse conferira pelo legislador ao omitente, ou seja, justamente àquele a quem cabia impedir ou evitar a tortura.

À luz dos princípios fundamentais da isonomia, igualdade e proporcionalidade, reconhece-se inconstitucional essa diferença de sanção penal ao executor e ao garantidor.

De acordo com o principio da proporcionalidade, “o poder punitivo, ao considerar o fato delituoso, deve ser proporcional na imputação da conduta incriminada e na aplicação da respectiva sanção123”.

Ainda sobre o princípio da proporcionalidade, assim aduz Luiz Regis Prado:

[...] Com relação à proporcionalidade entre os delitos e as penas (poena debet commensurari delicto), deve existir sempre uma medida de justo equilíbrio- abstrata (legislador) e concreta (juiz)- entre a gravidade do fato ilícito praticado, do injusto penal (desvalor da ação e desvalor do resultado), e a pena cominada ou imposta. A pena deve estar proporcionada ou adequada à intensidade ou magnitude da lesão ao bem jurídico representada pelo delito e a medida de segurança à periculosidade criminal do agente. A noção de proporcionalidade vem a ser uma exigência de justiça e não somente de prevenção (geral/especial).124

122 NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas, p.690.123 ZEIDAN, Rogério. Ius puniend, Estado e direitos fundamentais. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 2002, p. 69.124 PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro: parte geral, p. 163.

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Neste sentido, correto dizer que o § 2º do art.1º, da Lei de Tortura fere o principio da igualdade e da proporcionalidade, ao estabelecer penas desiguais de forma não razoável, bem como diferenciando de forma não legítima, pois se alguém deve receber uma pena maior esse deve ser o garantidor, enquanto autoridade responsável por coibir, evitar e punir essas práticas.

Ora, tomando por base a teoria monista, deveriam executor e garantidor responder igualmente pela prática do crime de tortura, tanto o agente que pratica a conduta de forma comissiva, quanto àquele que pratica de forma omissiva na figura de garantidor. Lembre-se que o bem jurídico protegido pelos referidos tipos é o mesmo.

Sobre a teoria monista, segundo lição de Rogério Greco:

[...] todos aqueles que concorrem para o crime incidem nas penas a estes cominadas, na medida de sua culpabilidade. Para a teoria monista existe um crime único, atribuído a todos aqueles que para ele concorrem, autores ou participes. Embora o crime seja praticado por diversas pessoas, permanece único e indivisível.125

Neste diapasão, entende-se por teoria monista ou unitária quando o crime é cometido em concurso de pessoa (autor, coautor, partícipe) e os mesmos responderão pelo mesmo delito.

Igualmente, preleciona Júlio Fabbrini Mirabete:

[...] Na teoria monista, unitária ou igualitária, o crime, ainda quando tenha sido praticado em concurso de várias pessoas, permanece único e indivisível. Não se distingue entre as várias categorias de pessoas (autor, partícipe, instigador, cúmplice etc.) sendo todos autores (ou coautores) do crime.126

Ocorre que optou o legislador por criar uma exceção pluralística à teoria monista, criando um delito ao executor e um delito específico ao garantidor omitente.

Assim, defende-se no presente estudo que a exceção pluralista prevista no art. 1º, § 2º, da Lei de Tortura é inconstitucional, por ferir frontalmente os princípios fundamentais e de índole constitucional que são os princípios da isonomia e o princípio da proporcionalidade.

125 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 7ª ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2006, p. 460.126 MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal. Parte Geral, arts. 1º a 120 do CP. São Paulo: Atlas, 2008, p. 224.

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Embora o Brasil admita a aplicação da teoria pluralista, entende-se ser inconstitucional a exceção do §2º, art. 1°, da Lei de Tortura, pois contrária ao princípio da proporcionalidade e também ao principio da igualdade.

5. CONCLUSÃO

A tortura, conforme acima exposto, é uma conduta infelizmente ainda arraigada na sociedade brasileira, apesar das disposições normativas, constitucionais e infraconstitucionais, que vedam sua prática.

Os avanços da legislação, no que tange à tortura, não podem ser desconsiderados, seja pela equiparação da tortura a crimes hediondos, recrudescendo seu tratamento, seja pela forma com que os crimes de tortura no Brasil foram previstos, em sua grande maioria como crime comum, ou seja, passíveis de serem praticados por qualquer pessoa.

Entretanto, igualmente não se pode negar a enorme infelicidade do legislador ao diferenciar a sanção penal do torturador executor com a sanção penal do torturador garantidor, ferindo os princípios constitucionais da isonomia e da proporcionalidade, o que, consequentemente, resulta na inconstitucionalidade do mencionado dispositivo legal.

Conclui-se, portanto, ser necessário que ocorra uma revisão do referido dispositivo penal, a fim de estabelecer uma igualdade na sanção penal do executor e do garantidor, uma vez que a reprovabilidade é semelhante a ambos, defendendo que, se for para existir diferenciação de pena, que seja em desfavor do garantidor, pessoa responsável por coibir, evitar e punir a odiosa prática da tortura no país.

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REFERÊNCIAS

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ZEIDAN, Rogério. Ius puniendi, Estado e direitos fundamentais. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 2002.

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DA NECESSIDADE DE INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA DO ART. 5º, XLIII DA CONSTITUIÇÃO PARA A GARANTIA DE MAIOR RIGOR

NO TRATAMENTO DOS CRIMES HEDIONDOS

luciana argenton

luiz Paulo alVes dos santos

1. INTRODUÇÃO

Este artigo aborda a evolução legislativa sobre crimes hediondos no Brasil e ainda, diante da comprovada ineficácia da atual legislação, discute sobre a necessidade de interpretação extensiva pelo legislador ordinário do art. 5º, inc. XLIII da Constituição Federal de 1988 para a garantia de efetivo rigor no tratamento de tais crimes, especialmente considerada a alta criminalidade que assola o país.

A importância e relevância do tema, considerando que o modelo punitivo clássico do Estado encontra-se saturado, residem na necessidade de dimensionar e discutir a atuação estatal nesta área.

Trata-se de uma pesquisa bibliográfica e documental, de método dedutivo.

No primeiro capítulo, é analisada a figura do crime hediondo e evolução legislativa sobre o tema, desde a introdução do termo hediondo pela CF/88 até os dias atuais.

No segundo capítulo, à luz dos ensinamentos de Guilherme de Souza Nucci, analisa-se a necessidade de interpretação extensiva pelo legislador infraconstitucional do art. 5º inc. XLIII DA Carta Magna de 1988, para a garantia de maior rigor na penalização por crimes hediondos.

2. CRIMES HEDIONDOS NO BRASIL

2.1 CONCEITO E CLASSIFICAÇÃO DE CRIMES HEDIONDOS

Antes de iniciar a discussão sobre os crimes considerados hediondos, vale trazer o conceito geral de crime:

Sub specie juris, e em sentido amplo, crime é o ilícito penal. Mais precisamente: é o fato (humano) típico (isto é, objetivamente correspondente ao descrito in abstracto pela lei), contrário ao direito, imputável a título de dolo ou culpa e a que a lei contrapõe a pena (em sentido estrito) como sanção específica127.

127 HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 09.

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Em sentido formal, crime é o fato que aparentemente contradiz a norma penal, ou seja, toda conduta humana (ação ou omissão) contrária a lei penal128. É toda ação ou omissão proibida por lei, sob ameaça de pena129.

E, ainda, segundo Luiz Regis Prado130 “o fato ao qual a ordem jurídica associa a pena como legítima consequência, ação ou omissão inimputável ao seu autor, prevista e punida pela lei como uma sanção penal, ou, ainda, todo fato humano proibido pela lei penal”.

Revisto o conceito geral de crime, tem-se a conceituação de crime hediondo, que seria “o crime que, pela forma de execução ou pela gravidade objetiva do resultado, provoca intensa repulsa”131.

Para sua conceituação, “deve-se levar em consideração o próprio sentido semântico do termo hediondo, que tem o significado de um ato profundamente repugnante, imundo, horrendo, sórdido, ou seja, um ato indiscutivelmente nojento, segundo os padrões da moral vigente. Com base nisso, podemos dizer que hediondo é o crime que causa profunda e consensual repugnância por ofender, de forma acentuadamente grave, valores morais de indiscutível legitimidade, como o sentimento comum de piedade, de fraternidade, de solidariedade e de respeito à dignidade da pessoa humana”132.

Conforme se vê, o conceito ético-jurídico de crime hediondo é diretamente relacionado aos padrões morais de uma sociedade, e com os interesses de grupos vigentes num momento histórico determinado133.

Assim, tem-se um crime hediondo cada vez que ocorre uma ação delituosa excepcionalmente grave, tanto em sua execução, quando o agente revela total desprezo por sua vítima, pouco se importando com seu sofrimento físico ou moral, quanto à natureza do bem jurídico ofendido, ou ainda, pela condição especial da vítima134.

Porém, crime hediondo não é aquele que no caso concreto, se mostra repugnante, asqueroso, depravado, horrível, sádico ou cruel, por sua gravidade objetiva, ou por seu modo ou meio de execução, ou pela finalidade do agente, mas sim aquele definido de forma taxativa pelo legislador ordinário135.

128 MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de Direito Penal. 19.ed. São Paulo: Atlas, 2004, , p. 95.129 BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de direito penal. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.130 PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. 4.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.131 JESUS, Damásio Evangelista de. Código Penal Anotado. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 28132 LEAL, João José. Crimes Hediondos. A Lei 8.072/90, como Expressão do Direito Penal da Severidade. Curitiba: Juruá, 2003, p. 37.133 LEAL, João José. Crimes Hediondos. A Lei 8.072/90, como Expressão do Direito Penal da Severidade, p. 37.134 MONTEIRO, Antônio Lopes. Crimes hediondos: texto, comentários e aspectos polêmicos. São Paulo: Saraiva, 1999.135 MORAES, Alexandre; SMANIO, Giampaolo Poggio. Legislação Penal Especial. São Paulo:

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Isto porque os crimes hediondos foram elencados de forma absolutamente taxativa, o que significa que não se pode retirar ou incluir crimes, que não sejam conforme especificado na lei ordinária. De forma que, por mais repugnante que seja determinado crime, se não foi especificado como crime hediondo pela lei ordinária, não poderá ser assim considerado.

Em conformidade com nosso sistema legal, somente a lei pode indicar, em rol taxativo, quais são os crimes considerados hediondos. O juiz não dispõe de discricionariedade para deixar de considerar hediondo um delito classificado na lei infraconstitucional como tal, do mesmo modo que um delito não classificado como hediondo pela lei jamais poderá assim ser considerado pelo juiz136.

Por isso, é de bom alvitre esclarecer que crime hediondo é “aquele que independentemente das características de seu cometimento, da brutalidade do agente, ou do bem jurídico ofendido, estiver enumerado no art. 1º da Lei n. 8.072/90”137.

A Lei dos Crimes Hediondos se origina da Constituição Federal, a qual determinou que fosse criada lei, prevendo penas mais severas aos crimes de tortura, terrorismo, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e aos crimes hediondos. De fato, a lei ordinária, criada a partir daquela determinação, foi a Lei nº 8.072/90 que, taxativamente, considerou em seu art. 1º quais seriam os crimes classificados como hediondos e que, após as alterações legislativas sofridas, restaram taxativamente os seguintes: a) homicídio (art. 121), quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente, e homicídio qualificado (art. 121, § 2º, I, II, III, IV e V); b) latrocínio (art. 157, § 3º, in fine); c) extorsão qualificada pela morte (art. 158, § 2º); d) estupro (art. 213, caput, §§ 1º e 2º); e) estupro de vulnerável (art.217-A, caput, §§ 1º, 2º, 3º e 4º); f) epidemia com resultado morte (art. 267, § 1º); g) falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais (art. 273, caput e § 1º, 1º-B, com redação dada pela Lei 9.677, de 2 de julho de 1998); h) o crime de genocídio previsto nos artigos 1º, 2º e 3º da Lei 2.889, de 1º de outubro de 1956, tentado ou consumado.

O terrorismo e o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins equiparam-se aos crimes hediondos.

2.2 CONTEXTO HISTÓRICO DE CRIAÇÃO E FINALIDADE DA LEI N. 8.072/90

Conforme se viu, a Lei de Crimes hediondos fora preconizada por dispositivo constitucional (e nem poderia ter sido diferente). No entanto, embora tenha sido instituída a criação da “Lei de Crimes Hediondos” na Carta

Atlas, 2007.136 CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. 9.ed. São Paulo: Saraiva, 2005.137 MONTEIRO, Antônio Lopes. Crimes hediondos. 9.ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

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Magna de 88, esta foi recepcionada com muitas críticas pelo fato de os trâmites legislativos terem sido extremamente acelerados, tendo como propulsores crimes que ganharam enorme repercussão social à época, notadamente o sequestro de dois empresários, Abílio Diniz e Roberto Medina, em 1989.

A repercussão de tais crimes, somados às altas ondas de criminalidade enfrentadas pela sociedade, resultaram na promulgação da Lei nº 8.072/90. Ou seja, “menos de 2 anos após a Constituição Federal de 1988, o legislador ordinário, pressionado por uma arquitetada atuação dos meios de comunicação social, formulava a lei 8072/90. Um sentimento de pânico e de insegurança – muito mais produto de comunicação do que realidade – tinha tomado conta do meio social e acarretava como consequência imediatas a dramatização da violência e sua politização”.138

Assim, esta lei que veio a ser verdadeiro divisor de águas na história do Direito Penal brasileiro, passando a tratar com muito mais rigor a forma de punição estatal de crimes mais graves139, teve sua aprovação pelo Senado em apenas 34 dias, desde a apresentação do projeto. A Câmara, por seu turno, aprovou um substitutivo em apenas dois dias.

Para tentar explicar essa pressa, o que não justifica de forma alguma as imprecisões contidas e os conflitos gerados, devemos entender o momento de pânico que atingia alguns setores da sociedade brasileira, sobretudo por causa da onda de seqüestros no Rio de Janeiro, culminando com o do empresário Roberto Medina, irmão do deputado federal pelo Estado do Rio de Janeiro, Rubens Medina, considerado a gota d’água para a edição da lei140

Nos momentos de votação neste processo legislativo sumaríssimo, os parlamentares sequer disfarçavam sua insegurança e desconhecimento da matéria, claramente exposto nos seguintes excertos141:

a) Voto do Deputado Érico Pegoraro (PFL):

Sr. Presidente, parece-me que seria melhor se tivéssemos possibilidade de ler o substitutivo. Estamos votando uma proposição da qual tomo conhecimento através de uma leitura dinâmica. Estou sendo consciente. Pelo menos gostaria de tomar conhecimento da matéria. (...) quero que me dêem, pelo menos, um avulso, para que possa saber o que vamos votar.

138 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.139 TOVIL, Joel. A (nova) Lei dos Crimes Hediondos Comentada: aspectos penais, processuais e jurisprudenciais (na forma das Leis 8.930/94, 9.677/98, 9.695/98 e 11.464/2007). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 3.140 MONTEIRO, Antônio Lopes. Crimes hediondos, p. 38.141 Diário do Congresso Nacional. Edições de 29/06/1990 e 11/07/1990.

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b) Deputado Plínio de Arruda Sampaio (PT):

Por uma questão de consciência, fico um pouco preocupado em dar meu voto a uma legislação que não pude examinar. Tenho todo o interesse em votar a proposição, mas não quero fazê-lo sob a ameaça de, hoje à noite, na TV Globo, ser acusado de estar a favor do seqüestro. Isso certamente acontecerá se eu pedir adiamento da votação.

c) Senador Jutahy Magalhães (PSDB):

Eu gostaria apenas, em nome do PSDB e principalmente em meu nome, de declarar que mais uma vez, infelizmente, estaremos votando aqui, neste instante, matéria da maior importância sem termos tido a oportunidade de um exame completo dos seus efeitos.

d) Senador Cid Sabóia de Carvalho (PMDB):

Eu estou com graves dúvidas sobre a parte técnica desta matéria. Pergunto a V. Exª, Sr. Presidente, não pode haver uma pausa, pelo menos de cinco minutos, para examinarmos isso? Porque, do contrário, vou me negar a votar. (...) quero que conste dos Anais da Casa que considero um mau trabalho, que considero isso que acabamos de aprovar uma má solução, principalmente sob o aspecto do Direito Penal Brasileiro e do Direito processual penal. São emendas que aqui ocorrem e que vão alterar a legislação nacional, quer no processo penal, quer no Direito Penal, com muita emotividade que, de certo modo, prejudica os princípios mais sérios, os princípios mais gerais do Direito.

Em razão dos meios de comunicação em massa, o grande número de extorsões mediante sequestro atuou “como um mecanismo de pressão ao qual o legislador não soube resistir”142.

Também considerando a Lei 8.072/90 como uma “lei de emergência”: “a lei de crimes hediondos, aprovada de afogadilho, foi uma resposta penal de ocasião, para dar satisfação diante do sequestro de Roberto Medina143”

Enfim, diante de crimes de grande repercussão social, sem estudo e elaboração adequada, o legislador, que se mantivera inerte quanto á regulamentação do dispositivo constitucional, de um momento para outro, em poucos dias aprovou a lei em comento144.

142 FRANCO, A. S. Crimes hediondos. 4.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. 143 REALE JÚNIOR, Miguel. Direito Penal aplicado. 2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992.144 MIRABETE, Júlio Fabbrini. Crimes hediondos, a Constituição Federal e a Lei. In: Justiça Penal.

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De forma que fica evidente que a finalidade da lei era tratar com mais rigor determinados crimes, buscando servir de desestímulo aos infratores.

2.3 DA POSSIBILIDADE DE PROGRESSÃO DE REGIME PARA AUTORES DE CRIMES HEDIONDOS

O artigo 2º, §1º, da Lei nº. 8.072/90 dispõe que as penas decorrentes de condenações por crimes hediondos e seus equiparados, sejam cumpridas em regime integralmente fechado. No entanto, o dispositivo foi declarado inconstitucional pelo STF em fevereiro de 2006, quando do julgamento do HC 82.959/SP. Ficou a critério dos magistrados, a partir daquela data, a decisão em relação a pedidos de progressão, que deveriam partir da análise dos pressupostos subjetivos e objetivos para a individualização da pena, criando acirradas discussões. Em outras palavras:

A pena aplicada em razão da prática de crimes hediondos e assemelhados, segundo a redação originária da Lei 8.072/90 deveria ser cumprida integralmente em regime fechado, vedando-se qualquer espécie de progressão. Essa previsão, tal como ocorreu com outros dispositivos legais, instalou interessante celeuma doutrinária e jurisprudencial, que havia sido, de certo modo, pacificada, com recente decisão do Supremo Tribunal Federal entendendo pela inconstitucionalidade do dispositivo.

A decisão do STF se baseou no argumento de que o dispositivo colidia com a garantia da individualização da pena prevista no art. 5º, XLVI, CF/88, a qual dispõe in litteris: Art. 5º [...]: XLVI - a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: a) privação ou restrição da liberdade; b) perda de bens; c) multa; d) prestação social alternativa; e) suspensão ou interdição de direitos.

Sobre o tema:

[...] a execução penal não pode ser igual para todos os presos – justamente porque nem todos são iguais, mas sumamente diferentes – e que tampouco a execução pode ser homogênea durante todo o período de seu cumprimento. Não há mais dúvida de que nem todo preso deve ser submetido ao mesmo programa de execução e que, durante a fase executória da pena, se exige um ajustamento desse programa conforme a reação observada no condenado, só assim se

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podendo falar em verdadeira individualização no momento executivo [...]145.

Por fim, a Lei 11.464/07 alterou a referida Lei 8.072/90, para expressamente prever o cumprimento de pena em regime inicialmente fechado e, portanto, adotando a progressão de regime.

Nosso Código Penal Brasileiro (artigo 33, § 2º) e a Lei de Execução Penal (artigo 112) consagraramo sistema penitenciário progressivo, permitindo a transferência do regime fechado para o semi-aberto e do semi-aberto para o aberto, se demonstrado bom comportamento carcerário e tiver sido cumprido 1/6 da pena.

Além disso, nosso sistema penal reconhece como última fase da execução penal o livramento condicional. De forma que cria a possibilidade de uma execução da pena, sujeita a alterações conforme a resposta dada pelo condenado ao tratamento penitenciário, permitindo sua gradual integração e reinserção social.

Enfim, além da progressão de regime, a LEP apresenta vários institutos, entre os quais, o livramento condicional, a remição, a detração penal e as saídas temporárias. Estes institutos buscam o cumprimento do fim ressocializador da referida lei.

Ao beneficiar os autores de crimes hediondos com a possibilidade de progressão de regime, a lei ordinária tornou praticamente inócuo o dispositivo constitucional que determina maior rigor no tratamento dos crimes em comento.

Entre os institutos previstos no sistema clássico da pena, coerente com a progressão de regime e, portanto, um dos benefícios atualmente assegurados ao autor de crimes hediondos e equiparados encontra-se o livramento Condicional, que “é a liberdade provisória concedida, sob certas condições, ao condenado que não revele periculosidade, depois de cumprida uma parte da pena que lhe foi imposta146”. “É a antecipação da liberdade para quem cumpre pena privativa de liberdade, desde que cumpridos determinados requisitos, alguns objetivos, outros subjetivos, conforme dispõe o art. 83 do Código Penal”147.

Conforme se vê, o referido artigo 83 estabelece que o juiz poderá conceder ao condenado a pena privativa de liberdade igual ou superior a 02 (dois) anos se: a) cumprida mais de um terço da pena se o condenado não for reincidente em crime doloso e tiver bons antecedentes; b) cumprida mais da metade se o condenado for reincidente em crime doloso; c) comprovado comportamento satisfatório durante a execução da pena, bom desempenho

145 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 10.ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2008, p. 72.146 MARCÃO, Renato. Curso de Execução Penal. 7.ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 185.147 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 5.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 1043.

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no trabalho que lhe foi atribuído e aptidão para prover à própria subsistência mediante trabalho honesto; d) tenha reparado, salvo efetiva impossibilidade de fazê-lo, o dano causado pela infração; e) cumprido mais de dois terços da pena, nos casos de condenação por crime hediondo, prática da tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, e terrorismo, se o apenado não for reincidente específico em crimes dessa natureza.; sendo que para o condenado por crime doloso, cometido com violência ou grave ameaça à pessoa, a concessão do livramento ficará também subordinada à constatação de condições pessoais que façam presumir que o liberado não voltará a delinquir.

Para conseguir o benefício do livramento condicional, o apenado deverá também, obrigatoriamente, comprovar que possui uma ocupação lícita, se for apto ao trabalho; comunicar periodicamente ao juiz sua ocupação; não mudar do território da comarca do Juízo da Execução, sem prévia autorização deste (art. 132, §1º, da Lei de Execuções Penais). E, ainda, de modo facultativo.

Por seu turno, a remição é outro benefício previsto que consiste em que a pena do preso que trabalha possa ser abatida, para abreviar o tempo de duração da sentença e também para outros efeitos, como a progressão de regime (art. 111 da LEP), livramento condicional e indulto (art. 128 da LEP). De acordo com art.126 da LEP, a contagem do tempo para fim será à razão de um dia de pena por três de trabalho148

Já a detração é o abatimento na pena privativa de liberdade e na medida de segurança, do tempo em que o sentenciado esteve em prisão provisória, prisão administrativa ou internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico, ou mesmo em outro estabelecimento similar. Ou seja, o tempo durante o qual o apenadoesteve preso durante o processo, por prisão em flagrante, preventiva ou temporária, ou internado em hospital de custódia ou em tratamento psiquiátrico, será descontado do tempo da pena (ou medida de segurança) imposta no final da sentença149.

É o que dispõe o artigo 42 do Código Penal:

Art. 42. Computam-se, na pena privativa de liberdade e na medida de segurança, o tempo de prisão provisória, no Brasil ou no estrangeiro, o de prisão administrativa e o de internação em qualquer dos estabelecimentos referidos no artigo anterior.

Enfim, a edição da Lei 7.210, de 11.07.84, baseou-se no mito da “integração social”, com o sentido de ressocialização, recuperação ou

148 GRECO, Rogério. Curso de direito penal.5.ed. Rio de Janeiro: Imperius, 2005, p.580.149 BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da Pena de Prisão. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p.9.

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reinserção do preso na sociedade150. Tanto que, em seu art. 1º traz: “A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”.

3. DA INEFICÁCIA DO SISTEMA PENAL CLÁSSICO E DA NECESSIDADE DE IN-TERPRETAÇÃO EXTENSIVA DO INCISO XLIII DO ART. 5º DA CONSTITUIÇÃO EM FACE DA CRIMINALIDADE NO BRASIL

Conforme se viu, o Brasil adota o sistema de progressão de regime na execução da pena privativa de liberdade no tratamento dos crimes hediondos. Busca-se, assim, a ressocialização do apenado, baseando-se os benefícios em seu merecimento. Iniciando o cumprimento da pena em regime fechado ou semiaberto, o condenado vai progredindo para o regime mais brando, quando apresenta bom comportamento e outros requisitos e após o cumprimento de certo tempo de pena.

O que se percebe é que a Lei dos Crimes Hediondos não provocou a redução dos índices de criminalidade, mas apenas exacerbou a população prisional.

De fato, tem-se que reconhecer que a criminalidade, sob qualquer política, jamais irá desaparecer completamente, já que o crime é um fenômeno social, inerente à condição humana. Destarte, não se pode também fechar os olhos para a ineficácia de nossa política atual, que permite o acirramento de todas as formas de violência ou, até mesmo, o estimula, pela garantia de impunidade.

O Mapa da Violência 2013 - Mortes Matadas por Armas de Fogo, divulgado em março/2013, informa que 36.792 pessoas foram assassinadas a tiros em 2010. O número é superior aos 36.624 assassinatos anotados em 2009 e mantém o país com uma taxa de 20,4 homicídios por 100 mil habitantes, a oitava pior marca entre 100 nações com estatísticas consideradas relativamente confiáveis sobre o assunto151.

É evidente que o atual modelo punitivo fracassou completamente e não consegue satisfazer aos anseios da sociedade, que espera pela redução da criminalidade; ou das vítimas que esperam reparação; e nem mesmo do infrator, que não é recuperado, com chances de se reintegrar à sociedade.

Uma das falhas deste modelo atual é que se cria um grande leque de normas que, na prática, quase nada representam, prevalecendo o sentimento de que os criminosos são impunes. A certeza de que a pena será aplicada

150 GOMES, Luis Flávio. Sistema Carcerário Brasileiro: a latrina da justiça criminal. Disponível em: <www.twitter.com/ProfessorLFG> Acesso em 28 de novembro de 2013.151 Disponível em: http://oglobo.globo.com/pais/mapa-da-violencia-2013-brasil-mantem-taxa-de-204-homicidios-por-100-mil-habitantes-7755783.

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efetivamente pode reduzir os índices de criminalidade, pois enquanto só se pensar em benefícios para o criminoso, ele continuará com suas práticas152.

Nesse sentido, surge a proposta de Nucci (2006) de que o legislador ordinário dê interpretação extensiva ao art. 5º, inc. XLIII, o qual dispõe, a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem.

Por interpretação extensiva, entende-se “ampliação do conceito da lei, efetivada pelo aplicador do direito, quando a norma disse menos do que deveria. Tem por fim dar-lhe sentido razoável, conforme os motivos para que foi criada153.” Ou “o processo de extração do autêntico significado da norma, ampliando-se o alcance das palavras legais, a fim de se atender a real finalidade do texto154.”

De fato, o inciso em comento do art. 5º pode ser interpretado tanto restritiva quanto extensivamente. “Vislumbra-se que o constituinte, ao inserir no título de direitos e garantias fundamentais, uma expressa recomendação para que a lei considere determinados tipos de delitos mais graves, tratando-os com maior rigor, teve a preocupação de salvaguardar com evidente zelo certos bens jurídicos, como a vida, a saúde pública, a dignidade humana e sexual, entre outros155.”

Sob esta ótica, é necessário que se dê às vedações constitucionais de inafiançabilidade e de insuscetibilidade de perdão estatal uma interpretação extensiva, para se concluir que o apenado por crime hediondo não pode ficar, como regra, em liberdade, nem pode ter sua pena perdoada ou comutada de qualquer modo. Por conseguinte, as leis infraconstitucionais que tratam da tortura, terrorismo, do tráfico ilícito de entorpecentes e de crimes hediondos devem ser rígidas, trazendo outras vedações compatíveis com a visão constitucional156.

Por outro lado, como observa Greco (2007), a corrente que defende a constitucionalidade da vedação à progressão de regime, alega que tal

Esta interpretação extensiva do dispositivo constitucional, que viria a permitir o cumprimento da pena por crimes hediondos em regime integralmente fechado nem mesmo conflitaria com o princípio da individualização, o qual foi utilizado como argumento pelos defensores da inconstitucionalidade da disciplina. É que o juiz, de qualquer forma, pode tratar individualmente da fixação da pena, especialmente em relação à intensidade da mesma157. Este foi, inclusive,

152 BITTENCOURT, Cézar Roberto. Falência da Pena de Prisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993.153 Nucci, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.154 NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado, p. 50.155 Nucci, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. 156 Nucci, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas.157 Nucci, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas.

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o posicionamento inicial adotado pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Afinal, a individualização da pena não ocorre apenas no momento de

sua aplicação. No plano legislativo, quando se estabelecem e disciplinam-se as

sanções cabíveis nas várias espécies delituosas (individualização in abstracto), no plano judicial, consagrada no emprego do prudente arbítrio e discrição do juiz, e no momento executório, processada no período de cumprimento da pena e que abrange medidas judiciais e administrativas, ligadas ao regime penitenciário, à suspensão da pena, ao livramento condicional, etc158.

Ainda que se possa entender desacertado o entendimento do legislador, não se poderia dizer ilegítimo ou contrário à Constituição. A mesma não legitima a ação do juiz que nega aplicação da norma, salvo quando conflite com a própria Constituição159.

De outra sorte, há que se entender que a interpretação restritiva do dispositivo em comento o torna totalmente inócuo, ou seja, uma interpretação literal que não capte a intenção do legislador infraconstitucional de aumentar o rigor no contexto dos crimes hediondos destitui todo o sentido de se fazer constar do texto constitucional a vedação à concessão de fiança e a insuscetibilidade de graça e anistia. No caso da fiança para crimes gravíssimos, como aqueles a que se refere, é um instituto já morto há muitos anos. Quanto à proibição de graça e anistia, com autorização de indulto é “chover no molhado”.

Ora, “se não podem sair do cárcere pagando fiança, seria natural supor que outro tipo de liberdade provisória também é inadequado” “Se o perdão estatal está vedado (graça e anistia), também o indulto, que nada mais é do que uma graça coletiva, também é proibido160”.

4. CONCLUSÃO

O Direito Penal tem como objetivo último assegurar a convivência pacífica entre os membros da sociedade. Entretanto, o modelo punitivo adotado pelo Brasil não tem conseguido responder com eficiência aos anseios da sociedade, com medidas capazes de reduzir a criminalidade. Pelo contrário, a criminalidade aumenta a cada dia e a sensação da população é de que nossas

158 MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de Direito Penal. 19. ed. São Paulo: Atlas, 2004.159 GALLO, Ronaldo Guimarães. Mutação Constitucional. Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 63, mar.2003. Disponível em: <http://www.datavenia.net/opiniao/adecisaodostfnohc829597sp_crimeshediondos.html> Acesso em: 07 de dezembro de 2013.160 Nucci, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas, p. 388.

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leis preveem penas tão leves e tantos benefícios aos acusados e apenados, que acabam servindo mais como estímulo à continuidade de práticas criminosas.

Partindo de estudo realizado, observa-se o despreparo do Estado na elaboração de suas políticas, dando azo à criação de um Direito Penal de emergência, totalmente ineficaz. A alta criminalidade no Brasil exige uma nova racionalidade penal, que redefina o Direito Penal e, neste sentido, temos que a preocupação exacerbada em continuamente se criarem novos benefícios para os apenados, no caso por crimes hediondos, não é o caminho mais acertado.

Ora, a criação da Lei de Crimes hediondos, em que pese a possibilidade de ter tido suas falhas, que não são objeto do presente estudo, era vista pela população como a única “trincheira”, o único mecanismo na tentativa de redução da criminalidade, em razão de seu maior rigor.

A revogação daquela lei, concedendo aos presos por crimes hediondos, benefícios semelhantes aos apenados por crimes de menor gravidade derrubou esta última trincheira. O argumento de que a determinação contida naquela Lei conflitaria com o princípio constitucional da individualização da pena não se mantém, eis que o juiz continuaria podendo estabelecer a pena que entendesse cabível ao caso concreto e individual, embora tal pena devesse ser cumprida em regime integralmente fechado.

Por outra, de fato, a revogação da referida lei baseou-se na interpretação restritiva do art. 5º, inc. XLIII, transformando a norma constitucional em um comando supérfluo e sem valor. Logo, temos que, em uma ótica extensiva, a Lei n. 8.072/90 era perfeitamente afinada com a Constituição Federal sob o aspecto analisado, mas que a Lei 11.464/07 é inconstitucional por não atender à clara intenção do legislador de conferir maior rigor ao tratamento dos crimes hediondos.

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O DIREITO PENAL EM DEBATE: A eficácia do sistema criminal na sociedade contemporânea

O REFLEXO DO SISTEMA DE PROTEÇÃO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS NA ORDEM JURÍDICA BRASILEIRA

Priscilla aMaral

thiago chaVes de Melo

1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como escopo principal tecer algumas considerações sobre os reflexos produzidos pelos Tratados de Direitos Humanos quando incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro.

Contudo, é de suma importância realizar e demonstrar a alocação deste tema. Para tanto, inicialmente, buscou-se conceituar, mesmo que sucintamente, o que são os direitos humanos, suas características, as teorias que buscam explicar a sua origem bem como suas fontes.

Num segundo momento, depois da noção básica de Direitos Humanos, ingressaremos no estudo do Direito Internacional dos Direitos Humanos, abordando o seu conceito, o objeto e fundamentos. Será também abordado um fator importantíssimo que levou à concepção contemporânea dos Direitos Humanos, qual seja, a Internacionalização dos Direitos Humanos.

Na terceira e última parte do presente artigo, após ter feito um relato histórico sobre os Direitos Humanos, inicia-se o embasamento principal deste estudo, qual seja, os reflexos advindos do Direito Internacional dos Direitos Humanos quando incorporados na ordem jurídica nacional.

Para tanto, foi feita uma análise da internacionalização dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos, elencando o princípio da primazia dos Direitos Humanos nas relações internacionais do Brasil. Além da abordagem desse importante princípio, serão analisados quais e o que são os mencionados reflexos do Direito Internacional dos Direitos Humanos na ordem jurídica brasileira. Ao final, será abordada a competência para julgar as causas relativas aos Tratados de Direitos Humanos.

2. NOÇÕES BÁSICAS SOBRE OS DIREITOS FUNDAMENTAIS HUMANOS

O conceito de Direitos Humanos não só não é sereno, como também é influenciado por pontos de vista de cunho político e ideológico. No entanto, é claro que a proteção e a promoção dos direitos humanos estão dispostos entre os principais temas das relações internacionais na atualidade e, entre as preferências dos Estados.

Desta forma, não se pode atribuir aos direitos humanos noção que distancie seu caráter de prerrogativas a serem efetivamente protegidas.

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Isto posto, podemos definir os Direitos Humanos como aqueles direitos e liberdades a que todos têm direito, não importando quem sejam e nem onde vivam. Para viver com dignidade, os seres humanos tem o direito de viver com liberdade, segurança e um padrão de vida decente.

Não é diferente o posicionamento de Flávia Piovesan161 quando afirma que:

Se os direitos humanos não são um dado, mas um construído, há que se ressaltar que as violações a estes direitos também o são. Isto é, as violações, as exclusões, as discriminações e as intolerâncias são um construído histórico, a ser urgentemente desconstruído. Há que se assumir o risco de romper com a cultura da naturalização e da banalização, das desigualdades e das exclusões, que, enquanto construídos históricos, não compõem de forma inexorável o destino da humanidade. Há que se enfrentar essas amarras, mutiladoras do protagonismo, da dignidade e da potencialidade de seres humanos. Neste cenário, emerge o desafio de fortalecer o Estado de Direito e a construção da paz nas esferas global, regional e local, mediante uma cultura de direitos humanos, enquanto racionalidade de resistência e única plataforma emancipatória de nosso tempo.

Por fim, afirma Norberto Bobbio162 que “os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas”.

Uma vez que já conceituamos os Direitos Humanos, é mister desvendar os fundamentos dos aludidos direitos, isto é, aos motivos pelos quais todas as pessoas, sem distinção de qualquer espécie, são titulares do mesmo rol de direitos.

Diante desta constatação, o conceito de fundamento tem por objetivo, também, relevar a importância, o valor e a precisão desses direitos.

Assim, as principais teorias que surgiram para explicar a origem, o fundamento dos direitos humanos são a jusnaturalista, a positivista e a moralista.

O jusnaturalismo é a doutrina que acoberta a existência de um direito natural que deve sobrepor ao direito positivo em caso de conflitos de normas.

161 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça Internacional: um estudo comparativo dos sistemas regionais europeu, interamericano e africano. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 07/08.162 BOBBIO, Norberto. A era dos Direitos. Carlos Nelson Coutinho (trad.). Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 05.

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A professora Maria Helena Diniz163 diz que:

A concepção do direito natural objetivo e material (século XIII) foi, paulatinamente, substituída, a partir do século XVII, pela doutrina jusnaturalista do tipo subjetivo e formal, devido ao processo de secularização da vida que levou o jusnaturalismo a arredar suas raízes teológicas, buscando os seus fundamentos de validade na identidade da razão humana. O direito natural tornou-se subjetivo enquanto radicado na regulação do sujeito humano, individualmente considerado, cuja vontade cada vez mais assume o sentido de vontade subjetiva e absolutamente autônoma. Nesta concepção jusnaturalista a natureza do homem é uma realidade imutável e abstrata, por ser-lhe a forma inata, independente das variações materiais da conduta.

Assim, para a teoria jusnaturalista os direitos humanos fundamentais estão em uma ordem superior, imutável e universal.

Nesta conformidade, verificou-se nos termos da Declaração de Viena de 1993, a aplicação desta teoria quando dispôs que “os direitos humanos e as liberdades fundamentais são direitos naturais de todos os seres humanos: sua proteção e promoção são responsabilidades primordiais dos Governos”.

A segunda teoria que busca explicar os fundamentos dos Direitos Humanos é a chamada teoria positivista, cuja ideia central é que os direitos naturais não tem fundamento, pois a ideia de direito implica sua positivação, ou seja, aceitar qualquer norma válida antecedente ao aparecimento do direito seria, pois, inadmissível.

O positivismo visa fundamentar os direitos humanos na ordem jurídica posta, pelo que somente seriam reconhecidos como direitos humanos aqueles expressamente previstos em norma positivada.

Não é diferente o posicionamento de André Ramos Tavares164, que afirma:

Para os positivistas, os direitos naturais não integram propriamente o direito, consistindo sim em uma categoria de regras morais, filosóficas ou ideológicas que, no máximo, influenciam o Direito. Só quando a este incorporadas é que – pela visão positivista - podem-se considerar regras cogentes. Partindo de tais premissas, concebe-se a positivação não mais com cunho declaratório, mas como ato de criação e, pois, constitutivo [...].

163 DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à Ciência do Direito. 17.ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p.39.164 TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 445.

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Para o positivismo jurídico, na concepção de Bobbio165, o direito é definido como um conjunto de comandos emanados pelo Estado Soberano introduzindo na definição apenas o elemento validade:

O positivismo jurídico, definindo o direito como um conjunto de comandos emanados pelo soberano, introduz na definição o elemento único da validade, considerando, portanto, como normas jurídicas todas as normas emanadas num determinado modo estabelecido pelo próprio ordenamento, prescindindo do fato de estas normas serem ou não efetivamente aplicadas na sociedade: na definição do direito não se introduz assim o requisito da eficácia.

Por fim, a última teoria é a chamada teoria moralista (ou de Perelman), cuja base filosófica está em afirmar que os direitos humanos se concretizam no campo da consciência moral e da experiência de determinada sociedade, no convívio e na experiência do convívio no seio social, ou seja, na convicção social acerca da necessidade da proteção de determinado valor.166

Na época atual, está também expandida a visão de que os direitos humanos se fundamentam no reconhecimento e aceitação da dignidade inerente a todos os integrantes da espécie humana, entendidos como iguais em sua essência, em que pese às peculiaridades físicas, mental ou qualquer outro ponto peculiar de sua existência.

Diante do que foi explanado, verifica-se que parte da doutrina entende que os direitos humanos não necessitam ser codificados para serem perfilhados como tais.

No entanto, é manifesto que a positivação atende melhor aos objetivos de asseverar o amparo da dignidade humana, como bem aceita e reconhece a própria Declaração Universal dos Direitos Humanos que apregoa “ser essencial que os direitos do homem sejam protegidos pelo império da lei, para que o homem não seja compelido, como último recurso, à rebelião contra a tirania e a opressão”.167

Mas, segundo Tércio Sampaio Ferraz Júnior168 a dicotomia Direito Natural versus Direito Positivo perdeu força gradativamente, vez que:

[...] sua importância mantém-se mais nas discussões sobre a política jurídica, na defesa dos direitos fundamentais do homem, como meio

165 BOBBIO, Norberto. O Positivismo jurídico: Lições de Filosofia do Direito. São Paulo: Ícone, 1995, p.142.166 MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais. 4.ed. São Paulo: Atlas, 2002, p. 35.167 DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS. Disponível em: < http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm> Acesso em 15 de dezembro de 2013.168 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. São Paulo: Atlas, 1993, p. 161.

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de argumentação contra a ingerência avassaladora do Estado na vida privada ou como freio às diferentes formas de totalitarismo. Uma das razões do enfraquecimento operacional da dicotomia pode ser localizada na promulgação constitucional dos direitos fundamentais. Esta promulgação, o estabelecimento do direito natural na forma de normas postas na Constituição, de algum modo ‘positivou-o’. E, depois, a proliferação dos direitos fundamentais, a princípio, conjunto de supremos direitos individuais e, posteriormente, de direitos sociais, políticos, econômicos aos quais se acrescem hoje direitos ecológicos, direitos especiais das crianças, das mulheres etc. provocou, progressivamente, a sua trivialização.

Nesse mesmo sentido, as características dos direitos humanos são um assunto de grande debate entre os estudiosos, uma vez que, ao entabular um rol mais abrangente de características, sempre existirão divergências de posicionamento entre eles.

Assim, de acordo com a doutrina majoritária podemos citar como características dos direitos humanos, dentre outras, a universalidade, indivisibilidade, interdependência, inter-relacionaridade, imprescritibilidade, historicidade.169

A universalidade como característica dos direitos humanos significa dizer que tais direitos pertencem a todos os membros da espécie humana, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, sexo, cor, origem étnica, nacional ou social ou qualquer outra condição, podendo pleiteá-los em qualquer sistema jurídico, político, econômico e cultural, seja nacional ou internacional, conforme expressamente previsto no §5º na Declaração e Programa de Ação de Viena de 1993, in verbis:

Todos os direitos humanos são universais, indivisíveis interdepen-dentes e inter-relacionados. A comunidade internacional deve tratar os direitos humanos de forma global, justa e equitativa, em pé de igualdade e com a mesma ênfase. Embora particularidades nacio-nais e regionais devam ser levadas em consideração, assim como diversos contextos históricos, culturais e religiosos, é dever dos Es-tados promover e proteger todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, sejam quais forem seus sistemas políticos, econômi-cos e culturais. (grifamos)170

169 MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos fundamentais. 17.ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 23.170 SILVA, Luzia Gomes da; CASTRO, Júlio Cezar da Silva. Dos direitos Humanos aos direitos fundamentais no Brasil: Passeio Histórico-Político. São Paulo:Baraúna, 2011.

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Com relação à indivisibilidade como uma das características dos Direitos Humanos, podemos afirmar que os aludidos direitos integram um único conjunto, haja vista que não podem ser analisados de maneira fechada, apartada. Em razão disso, afirma-se que o desrespeito a um deles constitui a transgressão de todos ao mesmo tempo, isto é, caso seja infringido seria com relação a todos.171

A interdependência dos direitos humanos como característica, significa dizer que esses direitos estão atrelados uns aos outros, não podendo ser vistos como elementos simples, e sim como um todo composto, apresentando interpenetrações.

Em que pese serem autônomas as várias previsões constitucionais, possuem diversas intersecções para atingirem seus principais objetivos.

Dessa forma, com a evolução da proteção nacional e internacional dos direitos fundamentais, em virtude das grandes guerras e revoluções, é possível afirmar que atualmente os instrumentos para assegurar a inviolabilidade dos direitos humanos passaram a ter alcance regional e mundial.

Trata-se da característica denominada inter-relacionaridade, em que a pessoa poderá escolher por qual setor de proteção almeja assegurar a inviolabilidade do seu direito fundamental, global ou regional.

O professor José Afonso da Silva172, quando ensinava em seu livro as características dos direitos humanos, em especial sobre a imprescritibilidade fizera a seguinte afirmação:

[...] prescrição é um instituto jurídico que somente atinge coarctando, a exigibilidade dos direitos de caráter patrimonial, não a exigibilidade dos direitos personalíssimos, ainda que não individualistas, como é o caso. Se são sempre exercíveis e exercidos, não há intercorrência temporal de não exercício que fundamente a perda da exigibilidade pela prescrição.

Em conformidade com os ensinamentos acima, pode-se afirmar que, a característica da imprescritibilidade dos direitos fundamentais, em que pese serem usados concomitantemente, não implicam no afastamento pelo lapso temporal, haja vista que os mesmos estão em fiel processo de associação avançando no sentido de aumentar seu âmbito de incidência entre os seres humanos.

171 CAVALCANTE FILHO, João Trindade. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/repositorio/cms/portalTvJustica/portalTvJusticaNoticia/anexo/Joao_Trindadade__Teoria_Geral_dos_direitos_fundamentais.pdf > Acesso em 25 de outubro de 2013.172 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 9 ed. São Paulo: Malheiros, 1992.

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Por fim, a característica da historicidade mostra que os direitos humanos não apareceram de uma só vez, sendo obra de um desenvolvimento cultural e histórico, que emergiu com o Cristianismo, passando por várias revoluções e até chegar aos dias hodiernos.

Gilmar Ferreira Mendes173 afirma o seguinte:

A ilustração de interesse prático acerca do aspecto da historicidade dos direitos fundamentais é dada pela evolução que se observa no direito a não receber pena de caráter perpétuo. Tanto a Constituição atual quanto a anterior estabeleceu vedação à pena de caráter perpétuo. Esse direito, que antes de 1988 se circunscrevia à esfera das reprimendas penais, passou a ser também aplicável a outras espécies de sanções. Em fins de 1988, o STF, confirmando acórdão do STJ, estendeu a garantia ao âmbito das sanções administrativas. A confirmar o caráter histórico-evolutivo – e, portanto, não necessariamente uniforme – da proteção aos direitos fundamentais, nota-se, às vezes, descompasso na compreensão de um mesmo direito diante de casos concretos diversos. Assim, não obstante o entendimento do STF acima mencionado, a Corte durante bom tempo continuou a admitir a extradição para o cumprimento de penas de caráter perpétuo, jurisprudência somente revista em 2004.

Da mesma forma, Norberto Bobbio174 diz que:

Os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas. (...) o que parece fundamental numa época histórica e numa determinada civilização não é fundamental em outras épocas e em outras culturas.

Nesse diapasão, para que possamos enfrentar o tema denominado Fontes dos Direitos Humanos, é mister primeiramente saber o que vem a ser a expressão Fonte do Direito.

Por fonte do direito entende-se que são as origens do direito, ou seja, o lugar ou a matéria prima pela qual nasce o direito. Estas fontes podem ser materiais ou formais.

173 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 3.ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 242.174 BOBBIO, Norberto. A era dos Direitos. Carlos Nelson Coutinho (trad.), p. 05-19.

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A fonte material refere-se ao organismo que tem poderes para sua elaboração e criação. As fontes formais são aquelas pelas quais o direito se manifesta e podendo ser imediatas ou mediatas. As primeiras são as normas legais e, as segundas são os costumes, os princípios gerais do direito, a jurisprudência e a doutrina.175

No que diz respeito às Fontes dos Direitos Humanos, propriamente dita, têm-se as fontes materiais que são os fatos sociais e ideias que formam a convicção da necessidade de proteger um valor entendido como fundamental para a promoção da dignidade da pessoa humana.

Podem ser diretas, que são a sociedade humana e os órgãos do poder político ou estatal ou; indiretas, que são a razão, a natureza humana, as crenças religiosas, o pensamento dos filósofos e ideólogos, os fatores morais e sociais, o progresso técnico, as revoluções e as guerras.176

As fontes formais dos direitos humanos são as formas de expressão da norma jurídica que consagra direitos inerentes à dignidade humana. Em regra, correspondem às fontes do Direito em geral e às do Direito Internacional Público.

No entanto, em sede internacional, destacam-se como fontes dos direitos humanos os tratados, o costume, a jurisprudência, as resoluções das organizações internacionais, entre outras.

Em virtude dos Direitos Humanos terem adquirido relevante importância, passaram a serem admitidos como parte do chamado jus cogens (direito cogente – normas imperativas), dos princípios gerais do Direito e dos princípios gerais do Direito Internacional.

As leis Antigas como o Código de Hamurabi (séc. XIX a.C.), de Manu, as Leis Mosaicas, o Direito Romano, são fontes valiosas do direito ocidental. O estudo dessas leis antigas nos revela como se formaram e como evoluíram muitos dos institutos jurídicos que ainda alicerçam as sociedades de nossos tempos, tais como a proteção à vida, o matrimônio, a sucessão, a propriedade, o contrato, a remuneração do trabalho, a reputação e vários outros. Trata-se, portanto, da denominada Fonte Histórica dos Direitos Humanos.177

Por fim, cabe ressaltar que a Ordem Constitucional é, também, o lugar ideal para a consagração dos Direitos Humanos, pelo papel essencial de tais direitos para a regulamentação da forma de exercício do poder estatal, que inclui a limitação desse poder.

175 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 14.ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2012, p. 14/15.176 PINHEIRO, Tertuliano C. Fundamentos e fontes dos direitos humanos. Disponível em: < http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/tertuliano/apostila01.html> Acesso em 15 de dezembro de 2013.177 PINHEIRO, Tertuliano C. Fundamentos e fontes dos direitos humanos. Disponível em: < http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/tertuliano/apostila01.html> Acesso em 15 de dezembro de 2013.

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Nesse sentido, Alexandre de Moraes178 lembra ainda que os direitos humanos “colocam-se como uma das previsões absolutamente necessárias a todas as Constituições no sentido de consagrar o respeito à dignidade humana, garantir a limitação de poder e visar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana”.

Com relação à classificação dos Direitos Humanos, no presente artigo, este tema será abordado no estudo sobre a classificação na ótica do Direito Internacional dos Direitos Humanos.

3. O DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS

3.1 CONCEITO, OBJETO E FUNDAMENTO

O Direito Internacional dos Direitos Humanos nasce com a promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948. A partir de então, todos assistem a um constante progresso de incremento de diversos mecanismos e uma vasta gama de tratados internacionais que vêm integrar um sistema internacional de defesa aos Direitos Humanos.

A internacionalização dos Direitos Humanos deve-se às suas características de universalidade e transcendência; e para conhecer suas origens e seu progresso, é necessário ter em mente que:

O moderno Direito Internacional dos Direitos Humanos é um fenômeno do pós Segunda Guerra Mundial. Seu desenvolvimento pode ser atribuído às monstruosas violações de direitos humanos da era Hitler e à crença de que parte dessas violações poderiam ser prevenidas se um efetivo sistema de proteção internacional dos Direitos Humanos existisse.179

É o ramo do Direito Internacional que tem por objetivo defender e promover a dignidade da pessoa em todo o mundo, dedicando-se uma vasta gama de direitos conduzidos a todos os indivíduos sem distinção de qualquer natureza, inclusive de nacionalidade ou do Estado onde a pessoa esteja.

A relevância do Direito Internacional dos Direitos Humanos no panorama internacional parte do atilamento de que, o amparo da dignidade da pessoa humana foi erguido a interesse comum superior de todos os Estados, passando a ter a primazia diante de outros valores jurídicos.

178 MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos fundamentais, p. 02.179 PIOVESAN, Flávia. Declaração Universal dos Direitos Humanos: desafios e perspectivas. Política Externa, São Paulo, v. 17, n.2, set/out/nov, 2008, p. 42.

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Por isso, Antônio Augusto Cançado Trindade180 afirma que “as normas internacionais de direitos humanos assumem status de prevalência, devendo ser aplicadas antes de qualquer outra, limitando a própria soberania nacional, e passando a ser incluídas dentro de preceitos de jus cogens”.

A promoção e a proteção da dignidade da pessoa humana em caráter universal constituem o objeto central do Direito Internacional dos Direitos Humanos, sendo que o seu fundamento é, essencialmente, a convicção, largamente difundida na comunidade internacional, quanto à importância de proteger e resguardar a dignidade da pessoa humana, não só pelo valor que é inerente à pessoa, mas também pelo conhecimento de que a paz requer o respeito aos direitos humanos.

3.2 CLASSIFICAÇÃO

Com a promulgação do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais no ano de 1966, a doutrina passou a classificar os direitos humanos em “civis e políticos”, de um lado, e “econômicos, sociais e culturais”, de outro, formando as denominadas Dimensões dos Direitos Humanos.

Assim, a classificação dos Direitos Humanos conforme o Direito Internacional dos Direitos Humanos podem ser da seguinte ordem: os direitos civis e políticos que correspondem aos direitos de liberdade da denominada “primeira geração” dos Direitos Humanos.

Para Jorge Miranda181 os direitos civis são os direitos de liberdade, que têm por objeto “a expansão da personalidade sem interferência do Estado e a proteção dos atributos que caracterizam a personalidade moral e física do indivíduo”.

Os direitos políticos seriam aqueles exercidos frente ao Estado ou no Estado, consistindo em poderes da pessoa de tomar parte na vida política e na direção dos assuntos políticos de seu país.

Já os chamados direitos econômicos, sociais e culturais estariam vinculados aos direitos de segunda geração.

Neste ponto, ensina José Afonso da Silva182 que:

Os direitos econômicos têm uma dimensão institucional, baseada no poder estatal de regular o mercado, em vista do interesse público. Já os direitos sociais teriam a ver com prestações positivas proporcionadas

180 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Tratado de Direito Internacional de Direitos Humanos. Porto Alegre: Sergio Fabris, 1997, p. 415/416.181 MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. 9.ed. Coimbra: Coimbra, 2012, p. 85.182 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 36.ed. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 289.

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pelo Estado (...) que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais. Por fim, os direitos culturais são aqueles que se relacionam aos elementos portadores de referencias à identidade, à ação e à memória de uma sociedade, sendo compostos por bens físicos e espirituais.

Há ainda uma dimensão adicional dos direitos humanos, os denominados Direitos Globais que corresponderiam aos direitos de terceira geração.

3.3 DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO

Inicialmente é importante ressaltar que o Direito Internacional clássico desconhecia a condição da pessoa humana como sujeito de direito, ao contrário, reconhecia esta condição tão somente aos Estados, possuindo, desta forma, uma visão puramente restritiva.

A partir de determinado ponto na história, desenvolve-se a ideia de que todas as pessoas humanas, indistintamente de quem sejam ou do lugar onde vivam, são destinatários de um rol comum de direitos, configurando a noção de universalidade, indissociável de direitos humanos como um todo e de Direito Internacional dos Direitos Humanos em particular.

Mas, para que se chegasse ao ponto de defesa internacional da pessoa humana, como atualmente, foi necessário percorrer um longo caminho. No entanto, embora já se possa aceitar o ser humano como sujeito de direito internacional e reconhecendo o progresso na matéria, é importante ressaltar que muito ainda deve fazer, demonstrando-se o importante papel da doutrina nesse sentido.

Antes de tudo, salienta-se que não serão abordados, especificamente, todas as causas e fatores que influenciaram na construção da ideia hodierna de direitos humanos, tendo em vista as limitações do presente trabalho.

Destarte, serão explicitados os principais marcos históricos relevantes para a compreensão do tema.

3.3.1 A LIGA DAS NAÇÕES OU SOCIEDADE DAS NAÇÕES

O Século XX teve o começo muito conturbado, vez que os Estados europeus pleiteavam novos territórios, em especial no continente africano, delimitando os novos marcos de fronteiras.

Como se sabe, várias causas e fatores foram suficientes para a eclosão da Primeira Guerra Mundial; entretanto, pode-se afirmar que o assassinato do

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arquiduque Ferdinando da Áustria na capital da Bósnia Herzegovina foi o seu estopim.183

Assim, o ano de 1914 entrou para a triste história mundial com o início da Primeira Grande Guerra, o que sem dúvida serviu, de certo modo, como elemento predecessor da Segunda Grande Guerra.

A guerra chega ao seu fim com a efetiva atuação dos Estados Unidos da América, junto com os Estados que integravam a Tríplice Entente, sendo que em 11 de novembro de 1918, a Alemanha assina os termos do Armistício, aceitando todas as condições apresentadas pelos vencedores.

Nesse cenário do pós-guerra, iniciou-se o projeto de criação da Liga das Nações que correspondia a uma organização intergovernamental de natureza permanente, baseada nos princípios da segurança coletiva e da igualdade entre os Estados.

Esta organização internacional criada em 1919 e autodissolvida em 1946, tinha como objetivo reunir todas as nações da Terra e, através da mediação e arbitragem entre as mesmas em uma organização, manter a paz e a ordem no mundo inteiro, evitando assim conflitos desastrosos como o da guerra que recentemente devastara a Europa.184

Sua sede fora instalada em janeiro de 1919, pelo Tratado de Versalhes, o mesmo que colocava termo à Primeira Guerra, na Genebra, cidade suíça.

A Liga das Nações era organizada de uma maneira bem semelhante à da atual ONU, sendo composta de um Secretariado, Assembleia Geral, e um Conselho Executivo (semelhante ao Conselho de Segurança atual da ONU).

A Liga das Nações constituiu alguns pressupostos convenientes para a valorização dos direitos humanos em âmbito internacional.

Inicialmente, em seu preâmbulo, estabelecia que os Estados não devessem recorrer à guerra e pautando-se as relações internacionais ancoradas na justiça e na honra, demonstrando a finalidade de estabelecer proteção ao indivíduo.

Além disso, a Liga das Nações propôs mecanismos para manutenção da paz e segurança coletiva, indicando ainda os instrumentos para solução de controvérsia de forma pacífica, em especial a arbitragem.

Entretanto, estes mecanismos não foram tão importantes como a relativização da soberania estatal, uma vez que os dispositivos constantes da Convenção da Liga das Nações representavam um limite à concepção da

183 Primeira Guerra Mundial. Estopim foi assassinato de arquiduque. Disponível em <http://educacao.uol.com.br/historia/primeira-guerra-mundial-estopim-foi-assassinato-de-arquiduque.jhtm>. Acesso em: 20 de dezembro de 2013.

184 Organismos Internacionais E Declaração Universal Dos Direitos Humanos. Disponível em: <http://www.trabalhosfeitos.com/ensaios/Organismos-Internacionais-e-Declara%C3%A7%C3%A3o-Universal-Dos/494439.html> Acesso em: 25 de dezembro de 2013.

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soberania estatal absoluta. Vejamos o que diz Flavia Piovesan185:

Representavam um limite à concepção de soberania estatal absoluta, na medida em que a Convenção da Liga estabelecia sanções econômicas e militares a serem impostas pela comunidade internacional contra os Estados que violassem suas obrigações fazendo com que houvesse uma redefinição da noção de soberania absoluta dos Estados que passavam a incorporar compromissos e obrigações de alcance internacional no que pertine aos direitos humanos.

No rápido período de existência da Liga das Nações, pode-se indicar outros avanços em matéria de direitos humanos, como por exemplo, a criação interna de órgão subsidiário e político denominado Alto Comissariado, cuja incumbência era a proteção dos refugiados e a confecção da Declaração relativa às minorias raciais e religiosas, que deveriam ser garantidas pelo Conselho da Liga.

Os Estados Unidos não participaram da Liga das Nações durante toda a existência da organização, apesar do presidente norte-americano Woodrow Wilson (de 1913 a 1921) ter alimentado fortemente a ideia de sua criação. 186

Esse fato se deu em razão de o Congresso norte-americano, entender que os EUA, ao aderir à Liga das Nações estaria desviando de sua política externa tradicional, e por isso, vetou a entrada de seu país na organização.187

Infelizmente, com a eclosão da Segunda Grande Guerra Mundial, fica evidente o fracasso da Liga das Nações, vindo a desaparecer formalmente em 31 de julho de 1947, quando encerra suas atividades.188

A Liga das Nações acabou por ser dissolvida e reformada naquilo que hoje vemos como a ONU, com os princípios básicos mantidos, porém com o cuidado de evitar os equívocos que levaram à inefetividade da Liga.189

3.3.2 A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL

Acrescentado aos fatos alhures citados, pode-se afirmar que as barbaridades praticadas no Século XX atinente à dignidade da pessoa humana foram o grande estopim para que pudessem trazer mudanças de grande

185 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça Internacional, p. 111.186 VIANNA, Regina Cesere. Direito Internacional Público. Apostila do Curso de Direito do Departamento de Ciências Jurídicas, FURG, Rio Grande, 1999. p.02.187 VIANNA, Regina Cesere. Direito Internacional Público, p.03.188 Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil. A Era Vargas: Dos Anos 20 a 1945. Disponível em: < http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas1/anos20/CentenarioIndependencia/LigaDasNacoes > Último acesso em 25 de out. de 2013.189 Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil. A Era Vargas: Dos Anos 20 a 1945. Disponível em: <http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas1/anos20/CentenarioIndependencia/LigaDasNacoes> Último acesso em 25 de out. de 2013.

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relevância na seara das relações internacionais190.O marco mais significativo da formação do Direito Internacional

dos Direitos Humanos é a Segunda Guerra Mundial, a partir da qual o tema entrou definitivamente na agenda internacional e se tornou objeto de vasta regulamentação no Direito Internacional e da atenção de vários foros internacionais e internos.

De fato, o século XX foi marcado pelas nefastas sequelas para a humanidade advindas de grandes conflitos mundiais, sendo certo que numa violação de direitos humanos sem precedentes, a Segunda Guerra tornou-se um marco de afronta à dignidade da pessoa humana.

Ao mesmo tempo, esse período da história foi também caracterizado pela abundância de regimes totalitários, que minimizavam a importância da pessoa dentro do Estado, a exemplo do nazismo, que almejava condicionar o gozo de direitos à pertinência de uma determinada raça.

Na medida em que a Segunda Guerra progredia, as negociações que os Aliados promoviam para reorganizar o mundo após o conflito eram pautadas por percepções como a de que o desrespeito aos direitos humanos estava na raiz dos conflitos, bem como a de que a cooperação internacional era instrumento fundamental para a realização dos interesses da humanidade.

A Segunda Grande Guerra Mundial havia largado um trilho colossal de aniquilamento e ultraje às estimações mais efetivas do ser humano. A vileza à dignidade humana havia chegado a níveis que jamais poderiam ser imaginados.

Autenticando a afirmativa acima, René Rémond191 exibiu um balanço das implicações da Segunda Guerra Mundial atinente às baixas humanas:

Não, sabemos, por exemplo, com certeza, a quanto montam as perdas da União Soviética: 17 ou 20 milhões? Em certo sentido, isso pouco importa. O que conta e deve estar presente ao espírito é que um décimo, mais ou menos, da população russa pereceu entre 1940 e 1945. Se adicionarmos as perdas civis produzidas pelos bombardeios, pelas execuções, pela deportação, pela fome e pela perseguição racial às baixas militares, a Polônia perdeu, aproximadamente, um quarto de sua população, obra de 6 a 7 milhões de habitantes. Na Iugoslávia, é também por milhões que se enumeram as vítimas da guerra. Ao todo, uns 50 ou 60 milhões de seres vivos desapareceram durante a guerra de 1939-1945.Interessante e bastante esclarecedora é a manifestação de Flávia

190 SCHAFRANSKI, Silvia Maria Derbli. Direitos Humanos & seu processo de universalização: Análise da convenção americana. Curitiba: Juruá, 2003. p. 40.191 RÉMOND, René. O Século XX: de 1914 aos nossos dias. 9.ed. São Paulo: Cultrix, 1993, p. 128.

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Piovesan192 sobre esse triste período:

O legado do nazismo foi condicionar a titularidade de direitos, ou seja, a condição de sujeito de direitos, à pertinência a determinada raça – a raça pura ariana. O século XX foi marcado por duas guerras mundiais e pelo horror absoluto do genocídio concebido como projeto político e industrial. No momento em que os seres humanos se tornam supérfluos e descartáveis, no momento em que vige a lógica da destruição, em que cruelmente se abole o valor da pessoa humana, torna-se necessária a reconstrução dos direitos humanos, como paradigma ético capaz de restaurar a lógica do razoável (...). Se a Segunda Guerra significou a ruptura com os direitos humanos, o Pós-Guerra deveria significar a sua reconstrução.

Foi no pós-guerra que os direitos da pessoa humana ganharam extraordinária importância, consagrando-se internacionalmente, e aparecendo como rebate às brutalidades empreendidas durante a Segunda Guerra Mundial, especialmente às odiosidades praticadas nos campos de concentração da Alemanha Nazista.193

O fim da Segunda Guerra foi apontado pelo surgimento da Organização das Nações Unidas (ONU), voltada a agenciar a paz, a segurança internacional e a cooperação entre os povos para solucionar os problemas da humanidade, como a proteção dos direitos humanos, que a partir daí apanha caráter de tema de suma importância.

É importante salientar que, ainda no vácuo da Segunda Guerra, surgem os chamados Tribunais Internacionais voltados a julgar as pessoas envolvidas em violações de normas internacionais de direitos humanos, cujo maior exemplo é o Tribunal Militar Internacional (Tribunal de Nuremberg), precedente do Tribunal Penal Internacional.

3.4 DIREITOS HUMANOS E A SUA INTERNACIONALIZAÇÃO

Relevando os fatos históricos atinentes aos direitos, aponta-se a denominada concepção contemporânea de direitos humanos, que veio a ser introduzida pela Declaração Universal de 1948 e repetida pela Declaração de Direitos Humanos de Viena de 1993.

Essa visão contemporânea é fruto da internacionalização dos direitos

192 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. São Paulo: Max Limonad, 1996, p. 131/132.193 COSTA, Helena Regina Lobo da. A dignidade humana: teorias de prevenção geral positiva. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 30.

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humanos, que constitui a formação de um sistema internacional voltado a sua proteção relacionando-se diretamente com fatos relativamente recentes, que vieram a alterar concepções tradicionais, além de responder veementemente às atrocidades e aos horrores cometidos durante o nazismo.

É neste panorama histórico que se visualiza o empenho de reconstrução dos direitos humanos, como modelo e referencial ético a nortear a ordem internacional moderna.

Nesse sentido, Flávia Piovesan194 afirma que:

O movimento internacional de direitos humanos e a criação de sistemas normativos de implementação desses direitos passam, assim, a ocupar uma posição de destaque na agenda da comunidade internacional, estimulando o surgimento de inúmeros tratados de direitos humanos, bem como de organizações governamentais e não-governamentais comprometidas com a defesa, proteção e promoção desses direitos.

Desta forma, vê-se que os direitos humanos passaram a compor elemento de um ramo autônomo do Direito Internacional Público, com mecanismos, órgãos e procedimentos de aplicação próprios caracterizando-se fundamentalmente como um direito de proteção.

Nesse mesmo sentido, Antônio Augusto Cançado Trindade195 assevera que:

O Direito Internacional dos Direitos Humanos afirma-se em nossos dias, com inegável vigor, como um ramo autônomo da ciência jurídica contemporânea, dotado de especificidade própria. Trata-se essencialmente de um direito de proteção, marcado por uma lógica própria, e voltado à salvaguarda dos direitos dos seres humanos e não dos Estados. (...) e que o reconhecimento de que os direitos humanos permeiam todas as áreas da atividade humana corresponde a um novo ‘ethos’ de nossos tempos.

Assim sendo, pode-se afirmar que no plano do Direito Internacional, inicia-se o delineamento do sistema normativo internacional de salvaguarda dos direitos humanos. É como se fosse cogitada a vertente de um constitucionalismo mundial, vocacionado a resguardar direitos fundamentais e a cingir-se o poder do Estado, mediante a criação de um mecanismo internacional de proteção de direitos

194 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional, p. 173.195 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Tratado de Direito Internacional de Direitos Humanos, p. 20/21.

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3.5 O UNIVERSALISMO COMO CARACTERÍSTICA DO DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS

A Resolução n. 32/130 da Assembleia Geral da ONU situou que todos os direitos humanos, qualquer que seja o tipo a que pertençam, se inter-relacionam necessariamente entre si, são interdependentes e indivisíveis, além de universais.196

Os direitos consagrados nos tratados dirigem-se a todos os membros da espécie humana, sem distinção de qualquer espécie, nos termos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que determina que “Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos” e que “Todo o homem tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração sem distinção de qualquer espécie”.197

Em vista do caráter universal dos direitos humanos, afirma-se que o Direito Internacional dos Direitos Humanos também se caracteriza pela transnacionalidade, visto que os direitos consagrados nas normas internacionais se referem a todas as pessoas humanas, independentemente de sua nacionalidade ou de serem apátridas.

No entanto, é importante ressaltar que a noção de universalidade dos direitos humanos não é absoluta, pois contrapõe-se ao relativismo cultural, que especialmente defende que os diferentes povos do mundo possuem valores distintos e que, por isso, não seria possível estabelecer uma moral universal única, válida indistintamente para todas as sociedades.

Aliás, para o relativismo cultural, o universalismo implicaria numa imposição de ideias e concepções que, na realidade, pertenceriam ao universo cultural ocidental.

Nesta senda, Flávia Piovesan198 afirma que:

Na prática, porém, foram concebidas formas de administrar essa questão, que é vista sobretudo como política, por meio da adoção do gradualismo na vinculação total de certos países aos tratados de direitos humanos e da formação de sistemas regionais de direitos humanos, que permitam a progressiva incorporação a certas sociedades de

196 BRASIL. Conselho Nacional de Assistência Social. Resolução n° 32, de 8 de outubro de 2010. Diário Oficial da União. Brasilia, 2010. Disponível em: <http://www.mds.gov.br/acesso-a-informacao/legislacao/assistenciasocial/resolucoes/2010/CNAS%202010%20-%20032%20-%2008.10.2010.pdf> Acesso em 24 de dezembro de 2012.197 DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS. Disponível em: <http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm> Acesso em 15 de dezembro de 2013.198 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça Internacional: um estudo comparativo dos sistemas regionais europeu, interamericano e africano.

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valores aceitos globalmente e a consagração de normas que tutelem valores mais caros a universos culturais específicos.

4. OS EFEITOS DA PROTEÇÃO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS NA ORDEM JURÍDICA NACIONAL

4.1 O PRINCÍPIO DA PRIMAZIA DOS DIREITOS HUMANOS NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS DO BRASIL

Nos últimos anos, o Estado brasileiro passou por um processo de grande transformação em vários assuntos, como por exemplo, social, político e econômico.

Com efeito, após um período conturbado da história brasileira onde diversas liberdades foram cerceadas, a Constituição de 1988 decreta o fim de uma longa era sob regime militar, tendo a Lei Maior sido muito liberal na concessão de novos direitos e liberdades, bem como na ampliação do conceito de clássicas garantias constitucionais.

Diante destes fatos, a Constituição Federal de 1988, no artigo 4º, inciso II, consagra, dentre os princípios que devem nortear o Brasil nas relações internacionais o da primazia dos direitos humanos.

A admissão dessa norma no texto Maior é oriunda da afirmação da dignidade da pessoa humana com um dos princípios fundamentais da República Federativa do Brasil, refletindo a crescente relevância que a defesa dos direitos humanos vem possuindo desde a Segunda Grande Guerra Mundial.

Nesse sentido, Cançado Trindade199 lembra que uma das grandes preocupações de nossos tempos é “assegurar a proteção do ser humano, nos planos nacional e internacional, em toda e qualquer circunstância”.

Como visto acima, o princípio da primazia dos Direitos Humanos nas relações internacionais tem consequências tanto na esfera internacional como no plano interno. Realmente, atos de relações exteriores habituam refletir no contexto nacional, e desse modo, os compromissos internacionais do Estado normalmente regulam não só o comportamento das autoridades nacionais como também implicam em ações a serem executadas dentro dos respectivos territórios.

O Brasil, na seara internacional, tem o dever de dominar todos os ânimos necessários na construção de um sistema internacional de proteção dos direitos humanos e na solidificação de suas normas.

Nesta direção, Henrique Gonçalves Portela200 afirma que “o Estado

199 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Tratado de Direito Internacional de Direitos Humanos, p. 21.200 PORTELA, Henrique Gonçalves. Direito Internacional Público e Privado: incluindo noções de Direitos Humanos e de Direito Comunitário. 2.ed. Salvador: Jus Podivm, 2010, p. 634.

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brasileiro tem o dever de participar das negociações de tratados de direitos humanos, bem como, da criação e fortalecimento de estruturas internacionais voltadas a monitorar e aplicar as normas protetivas da dignidade humana em todo mundo”.

O princípio da primazia dos Direitos Humanos no plano internacional força a política externa brasileira a abarcar a promoção da dignidade humana no mundo como uma de suas prioridades.

Nesse sentido, esta norma implicará em dizer, por exemplo, que o Brasil deve se comprometer na construção de um sistema internacional de defesa dos direitos humanos e na realização de suas normas.

Portanto, deve o Estado brasileiro, participar de negociações de tratados de direitos humanos e da criação e fortalecimento de estruturas internacionais voltadas a monitorar e aplicar as normas protetivas da dignidade humana em todo o mundo.

Além disso, deve o Brasil tornar-se parte desses tratados, integrar efetivamente essas entidades e submeter-se a sua jurisdição, pugnando, por fim, pela defesa dos direitos humanos em situações concretas.

Segundo o magistério de Carol Proner201:

Os reflexos do princípio da primazia dos direitos humanos nas relações internacionais do Brasil podem ser vistos na ratificação, pelo Estado brasileiro, após a Constituição de 1988, dos principais tratados de direitos humanos e pela submissão do Brasil a alguns dos mais notórios foros internacionais voltados à proteção desses direitos, como o Tribunal Penal Internacional e a Corte Interamericana de Direitos Humanos, bem como pela admissão de inspeções por comissões internacionais de verificação do cumprimento dos compromissos internacionais assumidos pelo país.

Com a admissão deste importante princípio no ordenamento jurídico, o Brasil consagra o primado dos direitos humanos como protótipo propugnado para a ordem internacional.

Fábio Konder Comparato202 afirmando sobre a importância deste princípio ressalta que:

Fica ainda estabelecida a prevalência das normas protetivas da dignidade humana sobre as regras decorrentes da soberania nacional,

201 PRONER, Carol. Os direitos humanos e seus paradoxos: análise do sistema interamericano de proteção. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2002, p. 156.202 COMPARATO, Fábio Konder. A proteção aos direitos humanos e a organização federal de competências. In: CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto (editor). A incorporação das normas internacionais de direitos humanos no direito brasileiro. Brasília: Instituto Interamericano de Direitos Humanos, 1996, p. 282.

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ficando relativizado, pelo menos em matéria de direitos humanos, o princípio de não-ingerência internacional em assuntos internos, consagrado na própria Carta da ONU (artigo 2º, §7º).

Assim, o princípio da primazia dos Direitos Humanos nas relações internacionais inspira que o Brasil deve congregar os tratados ao ordenamento interno brasileiro e respeitá-los. Implica dizer também, que as normas voltadas à defesa da dignidade da pessoa humana em caráter universal, devem ser aplicadas no Brasil em caráter prioritário em relação a outras normas.

4.2 O PROCESSO LEGISLATIVO DE INCORPORAÇÃO DAS NORMAS DE DIRE�ITOS HUMANOS NA ORDEM JURÍDICA BRASILEIRA

Nas sábias lições de Álvaro Augusto Ribeiro Costa203 tem-se que:

(N)O Brasil de hoje, vivemos um flagrante paradoxo: no plano das normas, não é muito o que se poderia acrescentar às vigentes, no tocante à proteção Teórica dos direitos humanos. A realidade, porém, mostra que a violência contra a cidadania no Pais assume dimensões, formas e alcance nunca dantes verificadas. Por isso, superar a distancia entre o Brasil normativo – o abstrato – e o Brasil real – concreto – é o grande desafio que enfrenta a Nação.

Deste modo, podem os tratados internacionais de Direitos Humanos proporcionar um grande subsídio ao ordenamento jurídico brasileiro, desde que negociados, assinados e ratificados pelo nosso Estado, em consenso com a Constituição Federal de 1988.

Com a ressalva da possibilidade de um procedimento distinto para a admissão parlamentar dos tratados de direitos humanos, consagrado pelo artigo 5º, §3º, da Constituição Federal, o processo de incorporação dos tratados de direitos humanos ao ordenamento jurídico brasileiro não destoa do aceitado para qualquer outro tratado.

A Constituição Federal de 1988 estabelece que o ato internacional necessita da colaboração dos Poderes Executivos e Legislativo para a sua conclusão no Brasil. Deste modo, dispõe o artigo 84, inciso VIII, ser da competência privativa do Presidente da República a celebração de tratados.

203 RIBEIRO COSTA, Álvaro Augusto. Dificuldades Internas para a Aplicação das Normas Internacionais de Proteção aos Direitos Humanos. In: CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. A Incorporação das Normas Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos no Direito Brasileiro. Brasília: Instituto Interamericano de Direitos Humanos, 1996, p. 175.

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No entanto, a conclusão de atos internacionais no Brasil não será possível sem a autorização do Congresso Nacional, que é competente para “resolver definitivamente sobre tratados, acordos e atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional”, conforme dispõe o artigo 49, inciso I, da Constituição Federal de 1988.

Com efeito, são elucidativas as afirmativas do Ministro Celso de Mello:

O exame da vigente Constituição Federal permite constatar que a execução dos tratados internacionais e a sua incorporação à ordem jurídica interna decorrem, no sistema adotado pelo Brasil, de um ato subjetivamente complexo, resultante da conjugação de duas vontades homogêneas: a do Congresso Nacional, que resolve, definitivamente, mediante decreto legislativo, sobre tratados, acordos ou atos internacionais, e a do Presidente da República, que, além de poder celebrar esses atos de direito internacional também dispõe de competência para promulga-los mediante decreto.204

Para a celebração dos tratados internacionais devem ser observadas algumas fases ou etapas em seu processo de elaboração, que pela análise dos dispositivos acima citados, são: negociação, assinatura, ratificação, promulgação, publicação e registro.

No Brasil, delegam-se poderes de negociação de convenções internacionais a pessoas específicas, ou seja, aqueles munidos de ‘plenos poderes’ para negociar em nome do Presidente da República, ou seja, os Chefes de Missões Diplomáticas, sob a responsabilidade do Ministério das Relações Exteriores, eximindo o Chefe de Estado deste tipo de negociação corriqueiro no âmbito das relações internacionais.

A negociação é a fase onde os Estados discutem seus interesses e estabelecem o conteúdo do tratado, podendo ser realizada diretamente de governo ou através dos plenipotenciários (diplomatas).

A assinatura não implica obrigação para o Estado, pois precisa ser confirmada através de ratificação. Se as pessoas que forem assinar este tratado não estiverem com plenos poderes, irão apenas apor a sua rubrica.

O ato de ratificação de tratado internacional é analisado tanto pelo direito interno quanto pelo direito internacional, isto é, um ato de governo e um ato internacional. O Chefe de Estado é o competente para ratificar tratados internacionais, ou seja, aprovar seu vínculo à matéria ventilada no âmbito do ordenamento jurídico internacional, perante outros Estados negociadores.

204 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI-MC 1480/DF. Relator Celso de Mello. Acórdão de 18 de maio de 2001. Diário Oficial da União. Brasília, 2001, p.429.

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A promulgação é o ato jurídico, de natureza interna, pelo qual o governo de um Estado afirma ou atesta a existência de um tratado por ele celebrado e o preenchimento das formalidades exigidas para sua conclusão e, além disso, ordena sua execução dentro dos limites aos quais se estende a competência estatal.

Em relação à publicação vê-se que é a condição necessária para que o tratado seja aplicado na ordem interna do Estado.

E, por fim, o registro nada mais é do que um requisito que vem expresso na Carta da ONU, em seu artigo 102, §2º, que estabelece que “nenhuma parte em qualquer tratado ou acordo internacional que não tenha sido registrado de conformidade com as disposições do §1º deste artigo deverá invocar tal tratado ou acordo perante qualquer órgão das Nações Unidas”.

4.3 A APLICAÇÃO IMEDIATA DAS NORMAS DE TRATADOS DE DIREITOS HUMANOS

Dispõe o artigo 5º, §1º, da Constituição Federal que “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”.

É interessante ressaltar que o aludido dispositivo alcança todos os direitos fundamentais que o Brasil perfilhe. Não só os descritos no artigo 5º, como todos os outros direitos fundamentais, independentemente de sua localização na Constituição Federal, e, inclusive, os previstos fora desta.

Diante destas constatações, verifica-se que a doutrina entende que a emissão do Decreto do Presidente da República, que promulga o tratado e ordena a sua publicação e que é a etapa final do processo de incorporação do tratado à ordem jurídica interna brasileira, não é necessária para que as normas internacionais gerem efeitos em território nacional imediatamente após a sua entrada em vigor no plano internacional e a ratificação pelo Estado brasileiro.

Nesta direção, Flávia Piovesan205 afirma o seguinte:

Basta o ato de ratificação (antecedido da assinatura do tratado e de sua aprovação pelo Poder Legislativo) para que o tratado de direitos humanos tenha aplicabilidade nos âmbitos internacional e interno. O §3º do artigo 5º tão somente veio a fortalecer o entendimento em prol da incorporação automática dos tratados de direitos humanos. Isto é, não parece razoável, a título ilustrativo, que após todo o processo solene e especial de aprovação dos tratados de direitos humanos fique a incorporação do mesmo no âmbito interno condicionada a um Decreto do Presidente da República.

205 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional, p.87.

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Essa, entretanto, não é a posição adotada pelo Supremo Tribunal Federal, que continua entendendo que a emissão do Decreto Presidencial é o ato final do processo de incorporação do tratado ao ordenamento jurídico interno, que assegura sua promulgação e publicação e lhe confere, portanto a devida executoriedade.206

Já a interpretação alvitrada por Eros Grau207 aconselha que os direitos humanos têm aplicabilidade imediata em toda e qualquer situação, independentemente da atuação legislativa ou administrativa.

A aludida exegese atribui ao § 1º do artigo 5º da Constituição força máxima, isto é, as normas configuradoras de direitos e garantias fundamentais teriam imediata exequibilidade e máximo alcance, a despeito de eventual existência de qualquer lacuna ou até mesmo de referência a uma complementação legislativa. Para o Ex-Ministro do STF:

O dever de aplicação imediata autoriza o Poder Judiciário a suprir, no caso concreto, lacunas (falta de norma legislativa ou medida administrativa) que obstaculizam a exequibilidade imediata de direito ou garantia fundamental; autoriza o Poder Judiciário a ‘inovar o ordenamento jurídico’, a ‘produzir direito’, se necessário for.

É importante ressaltar que o Princípio da Aplicabilidade Imediata se alude ao imperativo de que os direitos consagrados no sistema constitucional sejam asseverados independentemente de normas reguladora.

O professor José Joaquim Gomes Canotilho208 relembra que o sentido da aplicabilidade imediata é o de que:

Os direitos, liberdades e garantias são regras e princípios, imediatamente eficazes e atuais, por via direta da Constituição e não através da ‘auctoritas’ interpositivo do legislador (...) não são meras normas para a produção de outras normas, mas sim normas diretamente reguladoras de relações jurídico-materiais.

Assim, o entendimento dominante entre os doutrinadores da área é no sentido de que o princípio da aplicabilidade imediata dispensa o Decreto Presidencial, uma vez que a demora na confecção deste, retardaria a incorporação do tratado no ordenamento jurídico brasileiro.

206 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI-MC 1480/DF. Relator Celso de Mello. Acórdão de 18 de maio de 2001. Diário Oficial da União. Brasília, 2001, p.429.207 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 3.ed. São Paulo: Malheiros, 1997.208 GOMES CANOTILHO, José Joaquim. Direito Constitucional e teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 1998, p. 385.

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4.4 A POSIÇÃO HIERÁRQUICA DOS TRATADOS DE DIREITOS HUMANOS

A Emenda Constitucional n° 45 de 2004, no que diz respeito aos Direitos Humanos, soma um 2º parágrafo ao artigo 5º da Constituição Federal de 1988.

Dispõe o aludido parágrafo que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”209.

Sobre esse tema, verificam-se os eminentes conflitos entre as normas de Direito Internacional dos Direitos Humanos e as de Direito interno, adquirindo um importante relevo pela especial dignidade de que se revestem as normas de direitos humanos, que buscam defender um valor cuja tutela é considerada prioritária pela sociedade internacional.

Diante desta constatação, surgiram algumas correntes que atualmente estão se debatendo na doutrina e na jurisprudência para ensinar sobre qual status se apresentam os tratados de direitos humanos ao serem incorporados no ordenamento jurídico brasileiro.

A primeira delas afirma que os Tratados de Direitos Humanos possuem natureza constitucional, uma vez que, segundo o professor Valério Mazzuoli citado por Roberto Luiz Silva210:

Todos os tratados internacionais de Direitos Humanos ratificados e com vigência no Brasil, deveriam se encontrar no mesmo nível em que se encontram as normas constitucionais, seja por hierarquia material, seja pela material e formal. Não se deve considerar o quorum de aprovação do tratado: tratando-se de instrumento que tange os Direitos Humanos, todos possuem status constitucional. E isto por força da previsão do parágrafo 2º do artigo 5º da CF/88.

Esse posicionamento é também encampado por Flávia Piovesan211 quando assevera que:

A teoria da paridade entre o tratado internacional e a legislação federal não se aplica aos tratados internacionais de direitos humanos, tendo em vista que a Constituição de 1988 assegura a estes garantia de privilégio hierárquico, atribuindo-lhes a natureza de norma constitucional.

209 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Diário Oficial da União. Brasília, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm> Acesso em: 26 de dezembro de 2013.210 SILVA, Roberto Luiz. Direito Internacional Público. 3ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2008, p. 108.211 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional, p.94.

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Em suma, para essa primeira teoria, ao fazer a interpretação do dispositivo constitucional acima citado, entende-se que poderão ser incorporados novos direitos fundamentais a partir do momento que o Brasil tenha ratificado os citados documentos internacionais sobre direitos humanos.

A segunda teoria que se esforça para explicar a natureza jurídica (status) dos Tratados de Direitos Humanos quando incorporados no ordenamento jurídico brasileiro informa que esses tem natureza supraconstitucional.

Para esta teoria, os tratados internacionais de direitos humanos seriam preponderantes mesmo se confrontados com o texto constitucional, isto é, nem mesmo a emenda constitucional teria o condão de suprimir a normativa internacional subscrita pelo Estado quando a matéria versar sobre direitos humanos.

Defendendo essa tese, Celso de Mello212 assevera que:

A própria noção de Estado depende da existência de uma sociedade internacional. Ora, só há Constituição onde há Estado. Assim sendo, a Constituição depende também da sociedade internacional. Ao se falar da soberania do Poder Constituinte se está falando em uma soberania relativa, e quer dizer que tal poder não se encontra subordinado a qualquer norma de Direito Interno, mas ele se encontra subordinado ao Direito Internacional Público de onde advém a própria noção de soberania do Estado.

Assim, no campo específico dos direitos humanos, a supraconstitu-cionalidade parte da premissa de que os tratados de direitos humanos trazem normas que estão diretamente vinculadas à proteção da dignidade humana e que, por isso, tem importância superior no ordenamento jurídico, não podendo ser derrogadas por outras leis ordinárias simplesmente por serem estas mais novas ou especiais.

A terceira teoria que tenta explicar o status dos Tratados de Direitos Humanos quando incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro é a Teoria da Supralegalidade, que teve seu inicio no Brasil no ano 2000 quando o Supremo Tribunal Federal no julgamento do RHC n.º 79785-RJ, na lavra do Ministro Sepúlveda Pertence teorizou sobre a possibilidade dos tratados de direitos humanos, ao serem incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro, terem uma natureza supralegal.213

212 MELLO, Celso de Albuquerque. O parágrafo 2º do artigo 5º da Constituição Federal. In: TORRES, Ricardo Lobo (org.). Teoria dos Direitos Fundamentais. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 20.

213 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC n° 79.785-7. Relator Ministro Sepúlveda Pertence.

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Segundo essa teoria, os tratados internacionais não podem afrontar a supremacia da constitucional, assim, aqueles que versarem sobre direitos humanos devem ocupar um lugar especial no ordenamento jurídico brasileiro, significando dizer que estariam abaixo da Constituição, mas acima das leis ordinárias.

Mais recentemente, no julgamento do HC 90.172, o Ministro Gilmar Mendes afirmou que os tratados de direitos humanos possuem status supralegal, o que torna inaplicável a legislação infraconstitucional conflitante com as normas internacionais na matéria, sejam anteriores ou posteriores à ratificação do tratado.214

Para dirimir todo esse imbróglio, o Poder Constituinte Derivado, por meio da Emenda Constitucional n.º 45/2004, acrescentou ao texto constitucional o §3º, que dispõe que “os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”.

Diante deste dispositivo observou-se que o escopo do legislador foi dirimir esta polêmica ao determinar que as normas internacionais de direitos humanos que forem aprovadas pelo procedimento de aprovação indicado na aludida norma, serão equivalentes às Emendas Constitucionais, adquirindo, portanto, o caráter de normas formalmente constitucionais.

Ante o exposto, verifica-se que a posição majoritária é no sentido da constitucionalidade dos Tratados de Direitos Humanos incorporados no ordenamento jurídico brasileiro.

4.5 A COMPETÊNCIA NAS HIPÓTESES DE GRAVE VIOLAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS

Com a promulgação do artigo 109, §5º, da Constituição Federal215, incluído pela Emenda Constitucional n.º 45/04, a União pode se envolver diretamente nas ações que buscam afiançar o cumprimento das obrigações internacionais no que diz respeito aos direitos humanos, assumidas pelo Brasil.

Constatou-se tal afirmação no julgamento do Incidente de Deslocamento de Competência – IDC – N.º 01, em que restou evidente que a medida busca a garantir o cumprimento de obrigações oriundas de tratados de direitos humanos acordados pelo Brasil e deve ser concedida apenas no caso de

Acórdão de 29 de março de 2000. Diário Oficial da União. Brasília, 2000.214 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC n° 90.172/SP. Relator Gilmar Mendes. Acórdão de 17 de agosto de 2007. Diário oficial da União. Brasília, 2007.

215 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Diário Oficial da União. Brasília, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm> Acesso em: 26 de dezembro de 2013.

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inércia, negligência, falta de vontade política ou de condições reais do Estado-membro, por suas instituições, em proceder à devida persecução penal, não se justificando caso o Estado esteja empenhado em dar solução a uma grave violação dos direitos humanos e quando a medida acabar por dificultar ainda mais o andamento do processo.216

5. CONCLUSÃO

Diante desse estudo, verificou-se que para o seu reconhecimento, os direitos humanos não precisam ser codificados. Entretanto, é manifesto que a positivação atende melhor aos objetivos de asseverar o amparo da dignidade humana, como bem aceita e reconhece a própria Declaração Universal dos Direitos Humanos que apregoa “ser essencial que os direitos do homem sejam protegidos pelo império da lei, para que o homem não seja compelido, como último recurso, à rebelião contra a tirania e a opressão”.

Neste ponto de estudo, pode-se concluir que além das afamadas fontes – tratados, costumes, resoluções das organizações internacionais – a Ordem Constitucional é, também, o lugar ideal para a consagração dos Direitos Humanos, pelo papel essencial desses direitos para a regulamentação da forma de exercício do poder estatal, que inclui a limitação desse poder.

Nesse sentido, verificou-se que a promoção e a proteção da dignidade da pessoa humana em caráter universal constituem o objeto central do Direito Internacional dos Direitos Humanos, sendo que o seu fundamento é, essencialmente, a convicção, largamente difundia na comunidade internacional, quanto à importância de proteger e resguardar a dignidade da pessoa humana, não só pelo valor que é inerente à pessoa, mas também pelo conhecimento de que a paz requer o respeito aos direitos humanos.

Com essa aceitação na Carta Magna, afirmou-se a dignidade da pessoa humana como um dos princípios fundamentais da República Federativa do Brasil, refletindo a crescente relevância que a defesa dos direitos humanos vem possuindo desde a Segunda Grande Guerra Mundial.

Portanto, os reflexos do Direito Internacional dos Direitos Humanos na Ordem Jurídica brasileira estão intimamente ligados ao processo legislativo de incorporação de tais direitos ordem jurídica; à possibilidade de aplicação imediata dos Tratados de Direitos Humanos em nosso ordenamento e, finalmente, em solucionar a tormentosa questão referente à posição hierárquica dos Tratados de Direitos Humanos em relação às Normas nacionais.

216 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. IDC 1/PA. Relator Arnaldo Esteves. Acórdão de 10 de outubro de 2005. Diário Oficial da União. Brasília, 2005.

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Assim, pelo estudo e pesquisas realizados conclui-se que, além de transcorrer todo um processo legislativo complexo (negociação, assinatura, ratificação, promulgação, publicação e registro), para os Tratados de Direitos Humanos serem incorporados em nosso ordenamento jurídico é necessária a soma de duas vontades homogêneas: a do Congresso Nacional e a do Presidente da República.

Dessa forma, o Poder Constituinte Derivado, por meio da Emenda Constitucional n.º 45/2004, acrescentou ao texto constitucional o §3º, que dispõe que “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”.

Diante deste dispositivo, verificou-se que a intenção do legislador foi dirimir a polêmica abordada no decorrer desse estudo, ao determinar que as normas internacionais de direitos humanos que forem aprovadas pelo procedimento de aprovação indicado na aludida norma, serão equivalentes às Emendas Constitucionais, adquirindo, portanto, o caráter de Normas formalmente constitucionais.

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O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA E O CRIME DO ARTIGO 28 DA LEI DE TÓXICOS

iValdeVino carlos Magalhães

Kleber rogério leocádio

Pedro henrique Vieira

1. INTRODUÇÃO

O presente artigo tem por propósito investigar, ainda que de forma sucinta, a possibilidade da incidência do princípio da insignificância à infração penal prevista no artigo 28 da Lei 11.343, de 23 de agosto de 2006, mormente quando a quantidade de substância entorpecente apreendida em poder do usuário for tida como insignificante.

A pesquisa se justifica pelo fato de que atualmente o uso de drogas encontra-se em vertiginoso crescimento no país, sendo compreendido como uma questão de saúde pública, cuja responsabilidade de tutela compete ao Estado, já que o direito à saúde encontra-se previsto no artigo 6º e 196 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, assumindo status de direito fundamental.

Outrossim, no âmbito acadêmico, ganha cada dia mais relevo o estudo dos princípios, inclusive no âmbito penal, razão pela qual se propõe a verificar qual a aplicabilidade do princípio da insignificância nessas infrações.

Assim, no primeiro capítulo será realizado o estudo acerca do uso de entorpecentes e sua responsabilização penal, oportunidade em que será abordada a evolução histórica das leis que regulam a matéria. Ademais, serão realizadas considerações gerais sobre o crime de uso de entorpecentes na atual legislação de tóxicos brasileira (art. 28 da Lei 11343/06).

No segundo capítulo, far-se-á um estudo sobre os princípios penais e, de uma forma mais especifica, sobre o principio da insignificância, abordando suas principais características, a questão envolvendo seu reconhecimento e a sua incidência ou não ao delito previsto no artigo 28 da lei 11.343/2006.

Utilizar-se à no presente ensaio o método dedutivo, por meio do emprego do tipo de pesquisa bibliográfico, realizando análise textual, temática e interpretativa de obras sobre o tema, assim como será utilizado o tipo de pesquisa documental, enquanto método indutivo, por meio da análise de jurisprudências relacionadas à pesquisa.

2. O USO DE ENTORPECENTES E A SUA RESPONSABILIZAÇÃO PENAL

Em face da necessidade de melhor entendimento do atual tratamento dispensado ao dependente químico pela legislação penal brasileira, é oportuno

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proceder a um estudo sistemático da evolução histórica destas normas, desde sua gênese nas Ordenações Filipinas, até os dias atuais.

2.1 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA REPRESSÃO PENAL AO USUÁRIO

Segundo Antônio Fernando de Lima Moreira da Silva217, a primeira legislação criminal no Brasil que puniu o uso e o comércio de substâncias tóxicas vinha contemplada nas Ordenações Filipinas, que tiveram vigência no Brasil de 1603 a 1830, quando entrou em vigor o Código Penal Brasileiro do Império (1830), no qual não existia nenhuma menção sobre a proibição do consumo ou comércio de entorpecentes no país.

Assim, desse período (1830) até 1890 existiam apenas restrições esparsas em códigos de posturas municipais, como a proibição instituída pela Câmara Municipal do Rio de Janeiro sobre a venda e uso do pito de pango e do cachimbo de barro usado para fumar maconha218.

A proibição, conforme Silva219, em nível nacional, voltou no Código Penal de 1890, já sob o modelo republicano. Nesse sentido, o artigo 159 do referido código, incluído no Título III da Parte Especial (Dos Crimes contra a Tranquilidade Pública) previa como crime: “expor à venda, ou ministrar, substâncias venenosas sem legítima autorização e sem as formalidades prescritas nos regulamentos sanitários”, sendo que a pena era de multa. A proibição era destinada aos boticários, para prevenir o uso de veneno para fins criminosos. Nada pronunciava, contudo, a respeito dos usuários.

O quadro começou a mudar com o surgimento das primeiras Convenções Internacionais sobre drogas. Até o início do século passado, o país não tinha adotado nenhuma política pública sobre as drogas, que eram consumidas geralmente por jovens burgueses que frequentavam casas de prostituição da época220.

No ano de 1911, o Brasil se comprometeu, na Primeira Conferência Internacional do Ópio, em Haia, a realizar a fiscalização sobre o consumo da cocaína e do ópio, entretanto seu consumo já acontecia no seio da sociedade, sendo disseminando entre os pardos, negros, imigrantes e pobres, o que, de certa forma, começou a incomodar os governantes221.

217 SILVA, Antônio Fernando de Lima Moreira da. Histórico das drogas na Legislação brasileira e nas convenções internacionais. Jus Navegandi, Teresina, ano 16, n. 2934, 14 jul. 2011. Disponível em: <http://jus.com.br>. Acesso em: 05/11/2013.218 SILVA, Antônio Fernando de Lima Moreira da. Histórico das drogas na Legislação brasileira e nas convenções internacionais. Disponível em: <http://jus.com.br>. Acesso em: 05/11/2013.219 SILVA, Antônio Fernando de Lima Moreira da. Histórico das drogas na Legislação brasileira e nas convenções internacionais. Disponível em: <http://jus.com.br>. Acesso em: 05/11/2013.220 SILVA, Antônio Fernando de Lima Moreira da. Histórico das drogas na Legislação brasileira e nas convenções internacionais. Disponível em: <http://jus.com.br>. Acesso em: 05/11/2013.221 SILVA, Antônio Fernando de Lima Moreira da. Histórico das drogas na Legislação brasileira e

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Naquele mesmo ano, uma onda de drogas invadiu o Brasil e os dispositivos legais existentes eram insuficientes para o combate, o que causou preocupação aos governantes que, por este motivo, criaram o Decreto nº 4.294, de 6 de julho de 1921, que depois foi modificado pelo Decreto nº 15.683, seguindo-se regulamento aprovado pelo Decreto n. 14.969, de 03 de setembro de 1921222.

Com o advento do Decreto-lei n.º 891, de 25 de novembro de 1938, foi prevista, no artigo 35 da citada norma, pena de prisão para quem tivesse consigo qualquer substância, passando a penalizar o usuário que fosse flagrado na posse de drogas com a possibilidade de pena de prisão223.

Ademais, ainda conforme Silva224, em 1940, com o surgimento do Código Penal, a matéria passou a ser tratada no capítulo de crimes contra a saúde pública, art. 281, com o caput sob a rubrica: “Comércio, Posse ou Uso de Entorpecente ou Substância que determine Dependência Física ou Psíquica”. Nesse sentido, foram equiparados o tráfico e o porte para uso próprio (§1º, inciso III), descriminalizando-se o consumo e reduzindo o número de verbos-núcleos.

Em 1961, com a Convenção Única Sobre Entorpecentes de Nova York - ratificada por cerca de cem países, liderados pelos Estados Unidos, unificando e fortalecendo os anteriores tratados sobre drogas. A Convenção estabelece as medidas de controle e fiscalização, disciplina o procedimento para a inclusão de novas substâncias que devam ser controladas e fixa a competência das Nações Unidas em matéria de fiscalização internacional de entorpecentes. Aponta ainda as medidas que devem ser adotadas no plano nacional para a efetiva ação contra o tráfico ilícito, prestando-se aos Estados assistência recíproca em luta coordenada, providenciando que a cooperação internacional entre os serviços se faça de maneira rápida. Trouxe disposições penais, recomendando que todas as formas dolosas de tráfico, produção, posse etc., de entorpecentes, em desacordo com a mesma, fossem punidas adequadamente e recomendou tratamento médico aos toxicômanos e que fossem criadas facilidades à sua reabilitação225.

No Brasil, no ano de 1964, já sob a ditadura, o Decreto nº 54.216 promulgou a Convenção Única sobre Entorpecentes e a Lei 4.451 alterou a redação do artigo 281 do Código Penal, acrescentando o verbo “plantar”226.

nas convenções internacionais. Disponível em: <http://jus.com.br>. Acesso em: 05/11/2013.222 SILVA, Antônio Fernando de Lima Moreira da. Histórico das drogas na Legislação brasileira e nas convenções internacionais. Disponível em: <http://jus.com.br>. Acesso em: 05/11/2013.223 SILVA, Antônio Fernando de Lima Moreira da. Histórico das drogas na Legislação brasileira e nas convenções internacionais. Disponível em: <http://jus.com.br>. Acesso em: 05/11/2013.224 SILVA, Antônio Fernando de Lima Moreira da. Histórico das drogas na Legislação brasileira e nas convenções internacionais. Disponível em: <http://jus.com.br>. Acesso em: 05/11/2013.225 SILVA, Antônio Fernando de Lima Moreira da. Histórico das drogas na Legislação brasileira e nas convenções internacionais. Disponível em: <http://jus.com.br>. Acesso em: 05/11/2013.226 SILVA, Antônio Fernando de Lima Moreira da. Histórico das drogas na Legislação brasileira e

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Importante alteração trouxe o Decreto-lei nº 385, de 26 de dezembro de 1968, que alterou a redação do art. 281 do Código Penal. O entendimento jurisprudencial do STF era que o artigo não abrangia os consumidores, vez que em seu parágrafo 3º previa a punição do induzidor ou o instigador, estando excluído o usuário, visto que bastaria a regra geral do art. 25 (atual art. 29) do Código Penal de 1940 para configurar a co-autoria. Devido à descriminalização via jurisprudência, o Decreto-lei equiparou a pena do usuário, que “traz consigo para uso próprio”, à do traficante, indo contra a orientação internacional, que trazia o discurso de diferenciação227.

Dando grande passo para a completa descodificação da matéria, veio a Lei 5.276 de 29 de outubro de 1971, que manteve, contudo, o art. 281 do Código Penal e a equiparação entre usuário e traficante, aumentando a pena para 01 a 06 anos de reclusão228.

No âmbito processual, criou um procedimento bem célere. A lei trouxe ainda a inimputabilidade do usuário que “em razão do vício, não possui este a capacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento” (art. 10); estaria sujeito a uma medida de recuperação, consistente em internação em estabelecimento hospitalar para tratamento psiquiátrico pelo tempo necessário à sua recuperação. A lei foi regulamentada pelo Decreto nº 69.845, de 27 de dezembro de 1971229.

Em 1976 entra em vigor a Lei 6.368/76, que revogou o art. 281 do Código Penal, marcando a completa descodificação da matéria e instaurou no Brasil “modelo inédito de controle, acompanhando as orientações político-criminais dos países centrais refletidas nos tratados e convenções internacionais”. As condutas criminalizadas não diferiram, havendo apenas aumento das penas. Permaneceu o dever jurídico do art. 1º da lei anterior, mas a palavra combate foi substituída pela expressão “prevenção e repressão”. Mantida a cláusula de inimputabilidade para adictos consoante a lei anterior. O Decreto nº 78.992 de 21 de dezembro de 1976 regulamentou a lei230.

No Brasil, a última mudança legislativa ocorreu em 23 de agosto de 2006, quando foi promulgada a Lei nº 11.343, a qual institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – SISNAD; prescreve medidas para prevenção

nas convenções internacionais. Disponível em: <http://jus.com.br>. Acesso em: 05/11/2013.227 SILVA, Antônio Fernando de Lima Moreira da. Histórico das drogas na Legislação brasileira e nas convenções internacionais. Disponível em: <http://jus.com.br>. Acesso em: 05/11/2013.228 SILVA, Antônio Fernando de Lima Moreira da. Histórico das drogas na Legislação brasileira e nas convenções internacionais. Disponível em: <http://jus.com.br>. Acesso em: 05/11/2013.229 SILVA, Antônio Fernando de Lima Moreira da. Histórico das drogas na Legislação brasileira e nas convenções internacionais. Disponível em: <http://jus.com.br>. Acesso em: 05/11/2013.230 SILVA, Antônio Fernando de Lima Moreira da. Histórico das drogas na Legislação brasileira e nas convenções internacionais. Disponível em: <http://jus.com.br>. Acesso em: 05/11/2013.

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do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências231.

2.2 CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE O CRIME DE USO DE DROGAS

Em que pese haver tido pelos doutrinadores, entendimentos controversos se ocorreu ou não a descriminalização do porte para uso próprio, tipificado no artigo 28, da Lei 11.343/2006, atualmente o assunto já está quase que pacificado, senão vejamos:

2.2.1 CONTROVÉRSIAS DO ARTIGO 28 DA LEI DE TÓXICOS

Com o advento da Lei antitóxico, mais precisamente sobre o art. 28 – Caput e § 1º da nova lei que substituiu o art. 16 da revogada lei n.º 63.68/76, houve, em princípio, controvérsias no entendimento do caráter criminoso da posse de drogas para consumo pessoal, acerca se ocorreu ou não Abolitio criminis. Renato Marcão232, afirma que: “A leitura apressada do art. 28 da Lei n. 11.343/2006 pode levar à conclusão equivocada de que ocorreu abolitio criminis em relação às condutas que eram reguladas no art. 16 da Lei n. 6.368/76”.

Alguns juristas da lavra do notável Luiz Flávio Gomes233 entenderam que: “houve a descriminalização da conduta considerando que o artigo 28 da nova Lei antitóxico não prevê como punição pena de reclusão e detenção, isolada ou cumulativamente com pena de multa, consoante ao art. 1º da Lei de Introdução ao Código Penal Brasileiro”.

Não obstante as lúcidas ponderações acima transcritas, outros juristas, entre eles Renato Marcão234, com não menos conhecimento no campo do direito, cuja tese nos filiamos, diverge do entendimento apresentado por Luiz Flávio Gomes e argumenta que: “O Código Penal brasileiro é de 1940 e, portanto, ao tempo em que foi elaborado sequer existia as denominadas penas alternativas, desta forma o art. 1º da LICP traz uma definição fechada e desatualizada”.

Defende esta corrente que a simples ausência de cominação privativa de liberdade, não afasta, nos tempos de hoje, a possibilidade de a conduta estar listada como crime ou contravenção.

231 SILVA, Antônio Fernando de Lima Moreira da. Histórico das drogas na Legislação brasileira e nas convenções internacionais. Disponível em: <http://jus.com.br>. Acesso em: 05/11/2013.232 MARCAO, Renato. Tóxicos: Lei n. 11.343, de 23 de agosto de 2006 – Lei de Drogas. 8. ed. 2. Tiragem, São Paulo: Saraiva, 2011, p. 68.233 GOMES, Luiz Flávio. Princípio da Insignificância e outras excludentes de tipicidade. 3. ed. Revista atualizada e ampliada, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 19.234 MARCAO, Renato. Tóxicos: Lei n. 11.343, de 23 de agosto de 2006 – Lei de Drogas, p. 70

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Entende MARCÃO235 que:

Em tempos de responsabilidade penal da pessoa jurídica, de novas discussões acerca da responsabilidade objetiva e outros tantos temas, a definição constante do art. 1º da LICP se mostra incompatível com um Direito Penal do século XXI. Há de levar em conta, ainda, que o art. 28 se encontra no Título III (Das atividades de prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas), Capítulo III, que cuida “Dos crimes e das penas”, e que a Lei n.º 11.343/2006, lei federal e especial que é, cuidou de apontar expressamente tratar-se de crimes as figuras do art. 28 (caput e § 1º), não obstante a ausência de cominação de pena de multa ou privativa de liberdade.

Partilhando do mesmo entendimento, o Pretório Excelso, através da 1ª turma, cuidou do assunto pela primeira vez no dia 13 de fevereiro de 2007, ao apreciar o RE 430.105-QO/RJ236, de que foi relator o Min. Sepúlveda Pertence, e se posicionou em conformidade com tal entendimento.

Neste contexto, restou entendido que o art. 28 da Lei n.º 11.343/2006 (Nova Lei de tóxico) não implicou abolitio criminis do delito de posse de drogas para consumo pessoal.

A conduta da posse de drogas para uso próprio continua sendo crime sob a égide da lei nova, tendo ocorrido, isto sim, uma despenalização, cuja característica marcante seria a exclusão de penas privativas de liberdade como sanção principal ou substitutiva da infração penal. Logo, afastou-se também, o entendimento de parte da doutrina de que o fato, agora, constituir-se-ia infração penal sui generis.

2.2.2 CLASSIFICAÇÃO

De acordo com Nucci237, o crime previsto no art. 28 da Lei n.º 11.343/2006, classifica-se da seguinte forma:

Crime comum (que pode ser praticado por qualquer pessoa); formal (não exige resultado naturalístico para a sua consumação, consistente na efetiva lesão à saúde de alguém); de forma livre (pode ser cometido por qualquer meio eleito pelo agente); comissivo (os verbos indicam

235 MARCAO, Renato. Tóxicos: Lei n. 11.343, de 23 de agosto de 2006 – Lei de Drogas, p. 71236 STF, RE 430.105-QO - RJ, Rel. Ministro Sepúlveda Pertence, 1. T., julgado em, DJe de 26/04/2007.237 NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. 2013, p.299.

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ações); instantâneo (a consumação se dá em momento determinado); na forma adquirir, mas permanente (a consumação se arrasta no tempo) nas modalidades guardar, ter em depósito, transportar e trazer consigo; de perigo abstrato (não depende de efetiva lesão ao bem jurídico tutelado); unissubjetivo (pode ser cometido por um só agente); plurissubsistente (cometido por intermédio de vários atos); admite tentativa, embora de difícil configuração.

Quanto a classificação do delito tipificado no art. 28 da Lei de tóxico, consoante ao entendimento do destacado doutrinador Nucci, restou evidenciado que trata-se de crime de perigo abstrato, portanto, não exige, para a sua realização, qualquer resultado naturalístico.

2.2.3 BEM JURÍDICO TUTELADO PELO ART. 28 DA LEI 11.343/2006

Dentre os vários princípios existentes no Direito Penal, existe o princípio da alteridade ou transcendentalidade que obsta a possibilidade de incriminação de atitude simplesmente interna, subjetiva praticada pelo agente, pois essa razão, manifesta-se inapta de lesionar o bem jurídico.

Conforme preleciona o autor Nilo Batista238: “O fato típico pressupõe um comportamento (humano) que ultrapasse a esfera individual do autor e seja capaz de atingir o interesse do outro. Assim, ninguém pode ser punido por haver feito mal a si mesmo”.

Tal principio foi desenvolvido por Claus Roxin239, segundo o qual “só pode ser castigado aquele comportamento que lesione direitos de outras pessoas e não simplesmente pecaminoso e imoral. A conduta puramente interna, seja pecaminosa. Imoral, escandalosa, falta a lesividade que pode legitimar a intervenção penal”.

Eis que o objetivo jurídico tutelado pela lei penal é o bem jurídico, especificamente nos delitos da lei de tóxicos visa à proteção da saúde pública, portanto, direito difuso que pertence à coletividade e as gerações futuras. A propagação ilícita de entorpecentes elimina a sociedade e expõe em risco indeterminado número de pessoas, pois possui potencialidade de causar riscos à saúde; não carecendo a existência de ocorrência de um dano concreto, mas a uma situação de perigo, sendo um crime de perigo abstrato.

Neste sentido, não é crime, se auto lesionar, a menos se houver a intenção de prejudicar terceiros, a exemplo na auto lesão cometida para fraudar ao seguro, onde entende-se que a instituição seguradora figurará como vítima do estelionato.

238 BATISTA, NILO. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 2011, p. 91.239 ROXIN, Claus apud BATISTA, NILO. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 2011, p. 91.

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Em relação às drogas, não será tipificado como crime o “uso de drogas”, levando em conta o princípio da alteridade, “desde que, quem receba a droga para consumo, o faça imediatamente”240. O que não justifica uma intromissão repressiva do Estado, pois a utilização limita-se a prejuízo da própria saúde, sem provocar danos a interesses de terceiros, de modo que o fato é atípico por efeito do princípio da alteridade.

Destarte, a Lei 11.343/2006 (lei de prevenção e combate ao uso de drogas) tipifica como crime, o simples fato de portar drogas para uso futuro, pois o que visa à lei é coibir o “perigo social”, evitando assim, facilitar a circulação de substância entorpecente pela sociedade. Existindo, dessa forma, transcendentalidade na conduta e perigo para a saúde da coletividade.241

O que a norma objetiva tutelar é o interesse de terceiros, pois seria inconcebível provocar a interveniência Estatal repressiva contra alguém que está fazendo mal a si mesmo.

3. PRINCIPIOS PENAIS FUNDAMENTAIS: estudo do princípio da insignificância

Os princípios são ordenações que se irradiam e imantam os sistemas de normas são [como observam Gomes Canotilho e Vital Moreira242] “núcleos de condensações nos quais confluem valores e bens constitucionais”. Mas, como disseram os mesmos autores, “os princípios que começam por ser a base de normas jurídicas podem estar positivamente incorporados, transformando-se em normas-principio e constituindo preceitos básicos da organização constitucional”.

3.1 PRINCÍPIOS PENAIS

No conceito dos renomados professores Fábio Ramazzini Bechara e Pedro Franco de Campos243, os Princípios Penais:

Constituem as ideias fundamentais e informadoras da organização jurídica de uma nação. Os princípios gerais do direito não são meros

240 STF, 1ª Turma, HC 189/SP, j. 12-12-2000, DJU, 9-3-2001, p. 103.241 Disponível em: http://caduchagas.blogspot.com.br/2012/09/principio-penal-principio-da-alteridade.html, acessado em 23/11/2013.242 CANOTILHO, Gomes; MOREIRA, Vital apud SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 32. ed. Revista e atualizada até a Emenda Constitucional n. 57, de 18.12.2008. p. 92243 BECHARA, Fábio Ramazzini; CAMPOS, Pedro Franco de apud GOMES, Luiz Flávio. Princípio da Insignificância e outras excludentes de tipicidade. 3. ed. Revista atualizada e ampliada, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 19.

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critérios diretivos nem juízos de valor simplesmente, são autênticas normas jurídicas em sentido substancial, pois estabelecem modelos de conduta. A maior parte dos princípios encontra expressa previsão legal. Contudo, outros são obtidos a partir de uma análise sistemática do ordenamento jurídico. Apesar de tácitos, esses princípios possuem vigência e aplicabilidade, consoantes aos princípios que se encontram positivados nos diplomas legais. Todos os princípios, internos do direito penal, possuem uma importância de enorme destaque. Não obstante, constituem verdadeiras garantias do cidadão perante o poder punitivo estatal. A maioria desses princípios encontra previsão no Art. 5º da Constituição Federal, recebendo, portanto, status de cláusulas pétreas do ordenamento jurídico nacional.

Neste sentido, afirma o eminente autor Santiago Mir Puig:244

O principio do “Estado de Direito” impõe o postulado da submissão do poder punitivo ao Direito, o que dará lugar aos limites derivados do princípio da legalidade. A ideia de Estado Social serve para legitimar a função de prevenção na medida em que seja necessária para a proteção da sociedade. Isso já implica vários limites que giram em torno do requisito da necessidade social da intervenção penal. Por fim, a concepção do Estado democrático obriga, na medida do possível, a colocar o Direito penal a serviço do cidadão, o que pode ser visto como fonte de certos limites que hoje são associados ao respeito a princípios como da dignidade humana, da igualdade e da participação do cidadão.

Assim extrai-se das definições citadas acima, que a definição de Princípios, defendida pelos autores [Fábio Ramazzini Bechara, Pedro Franco de Campos e Santiago Mir Puig], embora, não serem homogêneos, são coincidentes quando se referem ser tais princípios garantias inerentes ao cidadão, já que, constituem limitações ao direito penal.

Antes de adentrar ao estudo específico do princípio penal da insignificância, é oportuno relembrar a distinção entre as regras e os princípios como postulados normativos.

Virgílio Afonso de Souza245 afirma que:

244 PUIG, Santiago Mir. Direito Penal – Direito Penal – Fundamentos e Teoria dos Delitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 86245 SOUZA, Virgílio Afonso de. Teoria dos Direitos Fundamentais. 2.ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 45.

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O principal traço distintivo entre regras e princípios, segundo a teoria dos princípios, é a estrutura dos direitos que essas normas garantem. No caso das regras, garantem-se direitos (ou se impõem deveres) definitivos, ao passo que no caso dos princípios são garantidos direitos (ou são impostos deveres) prima facie.

Já o Robert Alexy246, entende que:

Princípios são, por conseguinte, mandamentos de otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras colidentes. Já as regras são normas que são sempre ou satisfeitas ou não satisfeitas. Se uma regra vale, então, deve fazer exatamente aquilo que ela exige; nem mais, nem menos. Regras contêm, portanto, determinações no âmbito daquilo que é fática e juridicamente possível. Isso significa que a distinção entre regras e princípios é uma distinção qualitativa, e não uma distinção de grau. Toda norma é ou uma regra ou um princípio.

3.2 O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA

Há controvérsias sobre a origem do princípio da insignificância, se por um lado não se pode duvidar que é muito controvertida a origem histórica da teoria da insignificância, por outro, impõe-se sublinhar que o pensamento penal vem (há tempos) insistindo em sua recuperação (pelo menos desde o século XIX). Nas últimas décadas destaca-se o trabalho de Roxin, surgido em 1964, que postulou o reconhecimento da insignificância como causa de exclusão da tipicidade penal.

Tiedemann247 referenciando à teoria da insignificância chama-a da seguinte forma:

Princípio de bagatela, fundado no princípio da proporcionalidade que deve vigorar entre o delito e a gravidade da intervenção estatal pelo delito. Este autor afirma que se trata de um princípio que somente é aplicável nos casos concretos e que existe a possibilidade de

246 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 90 e 91.247 TIEDEMANN apud GOMES, Luiz Flávio. Princípio da Insignificância e outras excludentes de tipicidade. 3. ed. Revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 54.

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considera-lo como uma questão de antijuridicidade material e, por fim, excludente da tipicidade, ou melhor, como um caso em que, ainda que haja delito, se “prescinde de pena. Já Luiz Flávio Gomes248, conceituando a infração bagatelar, expõe que:

Infração bagatelar ou delito de bagatela ou crime insignificante expressa o fato de ninharia, de pouca relevância (ou seja: insignificante). Em outras palavras é uma conduta ou um ataque ao bem jurídico tão irrelevante que não requer a (ou não necessita da) intervenção penal. Resulta desproporcional a intervenção penal nesse caso. O fato insignificante, destarte, deve ficar reservado para outras áreas do Direito (civil, administrativo, trabalhista, etc.). Não se justifica a incidência do Direito Penal (com todas as suas pesadas armas sancionatórias sobre o fato verdadeiramente insignificante).

É importante frisar que o a infração bagatelar é entendida pela doutrina como gênero, já que são espécies da dita infração, a infração bagatelar própria é a que já nasce sem nenhuma relevância penal, porque não há um relevante desvalor da ação ou um relevante desvalor do resultado e, portanto, em todas as situações de infração bagatelar própria, temos que incidirá o princípio da insignificância; enquanto que uma segunda espécie, a infração bagatelar imprópria é a que nasce relevante para o Direito Penal (porque há desvalor da conduta, bem como desvalor do resultado), mas posteriormente nota-se que a incidência de qualquer pena, no caso concreto, mostra-se totalmente desnecessária vindo a incidir neste caso, o princípio da desnecessidade da pena conjugado com o princípio da irrelevância penal do fato).

A consequência natural da aplicação do critério da insignificância (como critério de interpretação restritiva dos tipos penais ou mesmo como causa de exclusão da tipicidade material) consiste na exclusão da responsabilidade penal dos fatos ofensivos de pouca importância ou de ínfima lesividade. São fatos materialmente atípicos (afasta a tipicidade material). Isso foi reconhecido, pioneiramente no HC84.412-SP do STF (rel. Min. Celso de Mello). Posteriormente, dentre tantos outros, também no RHC 88.880, pelo STF (rel. Min Gilmar Mendes).249

Nesse sentido, Luiz Flávio Gomes:250

O Principio da insignificância, tanto no direito brasileiro como no comparado, a via dogmática mais apropriada para se alcançar o

248 GOMES, Luiz Flávio. Princípio da Insignificância e outras excludentes de tipicidade, p. 19.249 GOMES, Luiz Flávio. Princípio da Insignificância e outras excludentes de tipicidade, p. 51 a 55.250 GOMES, Luiz Flávio. Princípio da Insignificância e outras excludentes de tipicidade, p. 51 e 52.

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reconhecimento da irresponsabilidade penal do fato ofensivo ínfimo ou da conduta banal e sem relevância penal é constituída pelo chamado princípio da insignificância ou de bagatela. O principio da insignificância é o que permite não processar condutas socialmente irrelevantes, assegurando não só que a justiça esteja mais desafogada, ou bem menos assoberbada, senão permitindo também que fatos nímios não se transformem em uma sorte de estigma para seus autores. Do mesmo modo abre-se a porta para uma revalorização do direito constitucional e contribui para que se imponham penas a fatos que merecem ser castigados por seu alto conteúdo criminal, facilitando a redução dos níveis de impunidade. Aplicando-se este princípio a fatos nímios se fortalece a função da Administração da Justiça, porquanto deixa de atender fatos mínimos para cumprir seu verdadeiro papel. Não é um princípio de direito processual, senão de Direito Penal.

Por muitos anos no Brasil, inexistia uma doutrina e/ou jurisprudência bem definida sobre os parâmetros válidos para a ocorrência do princípio da insignificância. Depois de vários julgados, hoje já se pode dizer que o STF, em linhas gerais, acolhe os seguintes vetores: “(a) ausência de periculosidade social da ação, (b) a mínima ofensividade da conduta do agente, isto é, mínima idoneidade ofensiva da conduta, (c) a inexpressividade da lesão jurídica causa e (d) a falta de reprovabilidade da conduta251”.

A regra geral para reconhecimento da insignificância e, em consequência, da infração bagatelar própria, é muito importante à análise do caso concreto, da vítima concreta, das circunstâncias do fato, local, etc.

3.3 O RECONHECIMENTO DOUTRINÁRIO E LEGAL

É certo que grande parte da doutrina reconhece o princípio da insignificância como instrumento de correção do tipo penal. Mas não é unicamente a doutrina, sobretudo, a mais recente, que admite o referido princípio. Em alguns dos sistemas jurídicos (Brasil, por exemplo) há inclusive hipóteses de reconhecimento legal.

No Código Penal Militar, dentre outros artigos, contamos com o art. 209, § 6º que diz: “No caso de lesões levíssimas, o Juiz pode considerar a infração como disciplinar”. O juiz tem a faculdade, na verdade, um poder-dever, de declarar a ausência de tipicidade penal, reconhecendo que a ofensa é insignificante e caracterizadora tão somente de uma infração disciplinar; (...) uma análise da Exposição de Motivos do CPM (n. 17) revela bem a mens

251 HC 84.412-SP, rel. Min. Celso de Mello.

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legis: “Entre os delitos de lesão corporal está a ‘levíssima’, a qual, segundo o ensinamento da vivência militar, pode ser desclassificada pelo Juiz para uma infração meramente disciplinar, evitando-se nesse caso o pesado encargo de um processo penal para um fato de tão pouca relevância”.252

O dispositivo legal mencionado deixa claro que compete ao juiz o reconhecimento da insignificância, que conta com o poder de transladar o caso concreto para o âmbito administrativo (infração disciplinar), quando a lesão é “levíssima” (mínima).

Obviamente, como afirma VITALE:253

É o julgador quem deverá determinar em cada caso concreto se nos encontramos frente a uma hipótese de insignificância – e, em consequência, de impunidade – ou se, pelo contrário, a conduta reveste de entidade suficiente para constituir um ilícito penal (...); O julgador deverá determinar o âmbito da insignificância da mesma forma que faz com qualquer instituto a que se refere o legislador penal, como é o caso da autoria, participação, começo de execução, delito impossível, erro de tipo, obediência devida (...) A lei se refere a eles sem determinar seu alcance, pois isso forma parte da função judicial.

Quis aqui o autor deixar evidenciado que compete ao juiz, decidir quanto a aplicação ou não, no caso concreto, do princípio da insignificância.

3.3.1 RECONHECIMENTO JURISPRUDENCIAL

Firmada a ampla aceitação (doutrinária e inclusive legal) do princípio da insignificância, cabe analisar a posição da jurisprudência. Segundo Luiz Flávio Gomes:254

A brasileira, tanto quanto a argentina e a italiana, vem admitindo-o há anos.

Jurisprudência brasileira: depois daquela primeira decisão do STF (de 1988: cf. RTJ 129/187 e ss. – caso de lesão corporal levíssima em razão de acidente de trânsito), cabe assinalar que praticamente toda a jurisprudência passou a admitir o princípio da insignificância como corretivo da abstração do tipo penal.

252 CELIDONIO, Celso. O princípio da insignificância no Direito Militar, n.16, 1999. p. 9-10.253 GOMES, Luiz Flávio. Princípio da Insignificância e outras excludentes de tipicidade, p. 62.254 GOMES, Luiz Flávio. Princípio da Insignificância e outras excludentes de tipicidade, p. 62.

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3.3.2 INCIDÊNCIA OU NÃO DO PRINCIPIO DA INSIGNIFICÂNCIA NO CRIME DO ARTIGO 28 DA LEI N.º 11.343/2006, DE 23 DE AGOSTO DE 2006

No que tange ao tema de drogas, encontramos nítidas divergências, até mesmo em níveis dos tribunais superiores, conforme pretende-se demonstrar abaixo.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu o principio da insignificância, conforme decisão proferida em 18.12.1997, rel. Luiz Vicente Cernicchiaro, DJU 06.04.1998, p. 175: “Entorpecente. Quantidade ínfima. Atipicidade. O crime, além da conduta, reclama – resultado – no sentido de provocar dano, ou perigo ao bem jurídico. (...) A quantidade ínfima, descrita na denúncia, não projeta o perigo reclamado”.255

No mesmo sentido, decisão de 30.03.1998, rel. Anselmo Santiago: “Sempre é importante demonstrar-se que a substância tinha a possibilidade para afetar o bem jurídico tutelado”.256

E ainda a decisão de 21.04.1998, rel. Luiz Vicente Cernicchiaro, DJU 17.08.1998, p. 96:257

A pena deve ser necessária e suficiente para a reprovação e prevenção do delito. Quando a conduta não seja reprovável, sempre e quando a pena não seja necessária, o juiz pode deixar de aplicar dita pena. O Direito penal moderno não é um puro raciocínio de lógica formal. É necessário considerar o sentido humanístico da norma jurídica. Toda lei tem um sentido teleológico. A pena conta com utilidade.

Entretanto, no entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF), encontra-se divergências jurisprudenciais, acerca da incidência do principio da insignificância, então vejamos:

No caso sob exame, não há falar em ausência de periculosidade social da ação, uma vez que o delito de porte de entorpecente é crime de perigo presumido. É firme a jurisprudência desta Corte no sentido de que não se aplica o princípio da insignificância aos delitos relacionados a entorpecentes (...).258

Em flagrante contradição à regra adotada por aquele tribunal, a primeira turma do Supremo Tribunal Federal, inovou no julgamento do HC 110475/

255 STJ, Rel. Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro, 1. T., julgado em 18/012/1997, DJU de 06/04/1998, p. 175. 256 Cf. decisão de 30.03.1998, rel. Anselmo Santiago, DJU 01.06.1998. p. 191. 257 Cf. decisão de 21.04.1998, rel. Luiz Vicente Cernicchiaro, DJU 17.08.1998. p. 96. 258 STF, HC 102.940 – ES – Espirito Santo – HABEAS CORPUS – Relator Min. Ricardo Lewandowski, Dje 05.04.2011 – Órgão Jugador: Primeira Turma.

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SC259, deliberando que: “A aplicação do princípio da insignificância, de modo a tornar a conduta atípica, exige sejam preenchidos, de forma concomitante, os seguintes requisitos: (i) mínima ofensividade da conduta do agente; (ii) nenhuma periculosidade social da ação; (iii) reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; e (iv) relativa inexpressividade da lesão jurídica”.

Neste cenário temos que o tal assunto não está deveras pacificado nos tribunais superiores (STJ e STF), pois há controvérsias em torno da aplicabilidade, ou não, do princípio da insignificância face ao artigo 28 da Lei 11.343/2006.

3.4 REPERCUSSÃO SOCIAL

A repercussão social é drástica, o usuário ocasional ou mesmo a pessoa tida como viciados são segregados e vistos com discriminação, preconceito e acima de tudo “deixados de lado”, não apenas pela sociedade, mas até mesmo pelo Estado e pelos próprios familiares.

O uso/porte de drogas, ainda que para uso próprio, são vistos no meio social, como o “passaporte” para outros crimes intitulados no Código Penal de maior gravidade, tais como para o tráfico de drogas, roubos, furtos, etc.

Todos os fatos envolvendo “Drogas” saem estampados na mídia, principalmente nas páginas policiais, já que é um assunto que atrai o gosto da população por sempre envolver tragédias entre famílias, amigos e sociedade como um todo.

4. CONCLUSÃO

Com a apreciação bibliográfica que se desenvolveu no decorrer do tema, pode-se concluir que a pesquisa realizada possui várias divergências, entre elas a doutrinária e a jurisprudencial.

Neste diapasão ficou também comprovado que o bem jurídico tutelado pelo artigo 28 da lei de tóxico, trata-se da saúde pública, logo, um direito difuso, pertencente à toda a sociedade e não a um indivíduo isolado, portanto, irrenunciável.

Por outro lado, constatou-se ainda, que o crime em epigrafe é de perigo abstrato, não carecendo para sua tipificação, de qualquer resultado naturalístico.

Contudo, se tem que o porte de substância entorpecente, ainda que em quantidade ínfima, coloca a saúde pública em eminente risco.

259 STF, HC 110475 - SC - SANTA CATARINA HABEAS CORPUS - Relator:  Min. DIAS TOFFOLI Julgamento:  14/02/2012 Órgão Julgador:  Primeira Turma.

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Finalmente, pode-se concluir não é possível a aplicação do princípio da insignificância aos autores do crime de porte de substâncias que cause dependência física e psíquica, capitulado no art. 28 da Lei n.º 11.343, de 23 de agosto de 2006, mesmo que em pequena quantidade.

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REFERÊNCIAS

ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Virgílio Afonso da Silva. 2ª ed. São \Paulo: Malheiros, 2011.

AVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. 11ª ed. Revista, São Paulo: Malheiros, 2010.

BATISTA, NILO. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 12ª ed. Rio de Janeiro: Revan. 2011.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de Direito Penal. vol. 1. 10 ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

GOMES, Luiz Flávio, BIANCHINI, Alice, CUNHA, Rogério Sanches e OLIVEIRA, William Terra de. Nova Lei de Drogas Comentada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.

MARCAO, Renato. Tóxicos, Lei n. 11.343, de 23 de agosto de 2006 – Lei de Drogas. 8. ed. 2. Tiragem, São Paulo: Saraiva, 2011, p.68.

PUIG, Santiago Mir. Direito Penal – Fundamentos e Teoria do Delito. Cláudia Viana Garcia, José Carlos Nobre Porciúncula Neto. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

SILVA, Antônio Fernando de Lima Moreira da. Histórico das drogas na Legislação brasileira e nas convenções internacionais. Jus Navegandi, Teresina, ano 16, N. 2934, 14 jul. 2011. Disponível em: http://jus.com.br. Acesso em: 05/11/2013

SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos Fundamentais. 2ª ed. 2ª tiragem, São Paulo: Malheiros, 2011.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 32ª. ed. Revista e atualizada até a Emenda Constitucional n. 57, de 18.12.2008. São Paulo: Malheiros. 2009.

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DOS DELITOS E DAS PENAS – APLICAÇÃO DA LEI À LUZ DO PENSAMENTO DE BECCARIA

Vanusa aParecida alVes

1. INTRODUÇÃO

É nesse contexto histórico, que Cesare Beccaria em sua obra “Dos delitos e Das penas” criticou as falhas no Direito penal vigorante na época. Suas censuras em suma versavam sobre as penas desproporcionais e sobre as atrocidades que eram empregadas nos julgamentos, e as distinções que esse Direito penal constituía dentre as classes sociais.

As penas deveriam visar à justiça, a prevenção do crime, a recuperação do delinquente e a segurança social, ela abominava a pena de morte, pois o direito deveria ter como foco penal o bem e a defesa da sociedade, ou seja, algo para a coletividade, e não visar vingança e pena de morte, que provavelmente estariam refletindo o interesse de poucos.

É neste diapasão, que Beccaria acarretou um choque com sua obra “Dos Delitos e Das Penas”, no qual defendia que cada crime fazer jus a uma pena proporcional ao dano ocasionado trazendo ao Século das Luzes, aos iluministas, o Princípio da Igualdade.

Assim, inicialmente tratar-se-á do perfil bibliográfico de Beccaria no qual será observado sobre trajetória, até os seus dias mais gloriosos.

No capitulo seguinte abordará a interpretação da Lei segundo Beccaria, ainda, neste contexto, far-se-á uma abordagem sobre sua influência no Direito penal vigente e na promulgação da Constituição vigente.

Já no que tange ao último capitulo abordaremos a origem das penas e seu contexto histórico, e também far-se-á uma analise sobre as práticas de penalização ao interesse público.

Conclui-se que o presente ensaio associa a obra de Beccaria ao surgimento do direto penal e das constituições vigentes e também que tange ao Princípio da Igualdade Jurídica, apresentando elementos para refletir a luz deste clássico da cultura política e jurídica moderna a relevância crítica que insurge contra o Direito Penal vigente na época, pautada pela arbitrariedade e pelo total desrespeito pela dignidade do ser humano.

Por fim, resta consignar que para a realização do presente ensaio será utilizado o método dedutivo, por meio do tipo de pesquisa bibliográfica, com análise textual, temática e interpretativa de obras sobre o tema eleito.

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2. PERFIL BIOGRÁFICO DE CESARE BECCARIA

Nascido aos 15 de março de 1738, em Milão, filho de Giovanni Saverio Bonesana, Marques de Beccaria, homem da alta sociedade, culto, dono de uma biblioteca monumental, estudou no colégio jesuíta de Parma e formou-se em direito na Universidade de Parma em 1758. De 1768 a 1771, ocupou a cátedra de Economia nas Escolas Palatinas de Milão. Foi nomeado conselheiro do Supremo Conselho de Economia, quando supervisionou uma reforma monetária e lutou pelo estabelecimento do ensino público.

Em 1791 participou da junta que elaborou uma reforma no sistema penal, no qual fez introduzir as idéias por ele lançadas em seu livro: Dei Delitti e Delle Pene, escrito em 1763, aos 26 anos, no qual critica as brechas do sistema penal de seu tempo, para os árbitros de juízes, em razão de leis imprecisas e arcaicas.260

Beccaria sofreu uma campanha infamante por parte de seus adversários, que o acusaram de heresia. Em Dos Delitos e das Penas, denuncia a crueldade dos suplícios, os julgamentos secretos, as torturas empregadas como meio de obter a prova do crime, a prática de confiscar os bens do condenado, as penas desproporcionais aos delitos. Pregava a igualdade dos criminosos que cometem o mesmo delito, perante a lei.

À época o sistema penal adotado contemplava a distinção entre as classes sociais. A obra teve uma repercussão extraordinária em todo o mundo, sobretudo entre os filósofos franceses ligados ao movimento iluminista. Escreveu Elementi Di Economia Publica obra publicada só em 1804, na qual analisa a função dos capitais e divisão do trabalho.261

3. A INTERPRETAÇÃO DA LEI SEGUNDO BECARRIA

No pensamento de Becarria as leis eram mantidas em total segredo bem como careceriam ser um instrumento público, para o alcance de todos. Contudo fica evidenciado em seu livro, enfim como ele mesmo averigua quanto mais pessoas tiverem acesso às leis, menos delitos irão ser cometidos.262

Contudo no momento que fica claro que só as leis podem fixar as penas, – este seria o princípio da legalidade, encontrado atualmente em nossa Constituição Federal, no inciso XXXIX, do artigo 5º, e também encontrado

260 PEREIRA, A. Marcos. Cesare Beccaria Precussor do Direito Penal Moderno. 5ª edição, São Paulo: Escala Ltda, 2011.p.14/15.261 PEREIRA, A. Marcos. Cesare Beccaria Precussor do Direito Penal Moderno, p.16/21.262 BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e Das Penas. Trad. Torrieri Guimarães. 6ª edição, São Paulo: Martin Claret, 2009.p.21/25

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em nosso Código Penal, no artigo 1º, temos o primeiro passo para que a “obscuridade” das leis tenha um fim. 263

Fica evidente que as ideias de Beccaria em nosso ordenamento Jurídico são notórias, entretanto a fixação da pena atual em nosso Código Penal ter sofrido influência de seus pensamentos, já que o art. 68, CP, institui que a pena-base será fixada e individualizada, aplicando-se o mesmo formato e adequando à necessidade da retribuição à sociedade e da prevenção de delitos futuros, atendendo-se ao critério do art. 59, de nosso Código Penal.264

Ademais, ao apreciar o conceito do princípio da igualdade na explanação de Paulo Rangel:265

[...] À Constituição Federal de 1.988 adotou o princípio da igualdade de direitos, prevendo a igualdade de aptidão, uma igualdade de possibilidades virtuais, ou seja, todo o cidadão tem o direito de tratamento idêntico pela lei, em consonância com os critérios albergados pelo ordenamento jurídico. Desta forma, o que se veda são as diferenciações arbitrarias, as discriminações absurdas, pois, o tratamento desigual dos casos desiguais, na medida em que se desigualam, é exigência tradicional do conceito de justiça, pois o que realmente protege é certas finalidades, somente se tendo por lesado o princípio constitucional quando o elemento discriminador não se encontra a serviço de uma finalidade acolhida pelo direito, sem que se esqueça, porém, como ressalvado por Fábio Konder Comparato, que as chamadas liberdades materiais têm por objetivo a igualdade de condições sociais, metas a ser alcançadas, não só por meios de lei, mas também por aplicações de política ou programas de ação estatal.

Beccaria inspirado nos ensinamentos de Aristóteles que propunha tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida de suas desigualdades buscava uma efetivação dos direitos humanos, objetivando uma igualdade mais real perante os bens da vida e, não apenas a igualdade formalizada na lei.

Trazendo a discussão para os momentos, podemos falar sobre o que

263 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Diário Oficial da União. Brasília, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em: 04 de janeiro de 2014.264 BRASIL. Lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União. Brasília, 1990. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/leis/L8069Compilado.htm>. Acesso em: 04 de janeiro de 2014.265 MORAES, Alexandre. Constituição do Brasil Interpretada. 7ª edição, São Paulo: Atlas, 2007.p.66/67.

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se convencionou chamar de “discriminações positivas”, no qual o legislador buscou estabelecer medidas de compensação para viabilizar condições de igualdade e oportunidades a indivíduos que sofrerão alguma espécie de restrição (Ex. Cotas raciais).

3.1 O PRINCÍPIO DA IGUALDADE SEGUNDO O PENSAMENTO DE BECCARIA

Beccaria preocupado com a tirania e as injustiças vigentes à época do Absolutismo buscou propor um novo modelo, não só para a apuração dos crimes, como para aplicação das penas. Defendia penas iguais a crimes iguais e, também, que o processo e julgamento de crimes semelhantes tivessem rito processual equivalente.

Segundo Beccaria, os delitos mais graves seriam os que colocam em risco a existência da sociedade (crimes de lesa-majestade); a seguir viriam os que causam danos aos bens jurídicos particulares e, finalmente os que traduzem mera desobediência à lei.266

Ainda, de acordo com Beccaria: a verdadeira medida do direito é o dano à sociedade. Portanto, aos crimes contrários à sociedade caberiam os castigos mais severos. Desse modo, a noção de proporcionalidade das penas, ajusta-se com perfeição ao utilitarismo e ao humanismo. Assim, a suavização das penas corresponde exatamente à possibilidade de sua graduação em conformidade com o crime.267

Dessa forma, o que se visa não é apenas que se cometam poucos crimes, mas, também, que os crimes mais prejudiciais à sociedade sejam os menos comuns. Para isso, as penas devem ser mais fortes à medida que o crime seja mais contrário ao bem público e possa-se tornar mais frequente.

Este pensamento fica bem explícito nas próprias palavras de Beccaria: 268

[...] se for estabelecido o mesmo castigo, a pena de morte, por exemplo, para aquele que mata um faisão e para quem mata um homem ou falsifica um documento importante, em pouco tempo não se procederá a mais nenhuma diferença entre esses crimes; serão destruídos no coração do homem os sentimentos de moral.

Nessa sua incessante pretensão de buscar a igualdade e a proporcionalidade das penas, Beccaria foi muito criticado e sofreu perseguições de vários opositores, mas, segundo suas palavras, o fim que ele buscava fazia valer a pena seus esforços: 269

266 BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e Das Penas,p.70.267 BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e Das Penas, p.42.268 BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e Das Penas, p.65.269 BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e Das Penas, p.18.

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[...], contudo, se, por sustentar os direitos do gênero humano e da verdade invencível, contribuí para salvar da morte atroz algumas das trêmulas vítimas da tirania ou da ignorância igualmente prejudicial, as bênçãos e as lágrimas de apenas um inocente reconduzido aos sentimentos da alegria e da ventura confortar-me-iam do desprezo do resto dos homens.

Percebe-se de acordo com seu pensamento que Beccaria buscava reestruturar o modelo penal vigente buscando principalmente o Princípio da Igualdade, mas, não tinha a utopia de conseguir a aclamação de todos, pois se satisfazia apenas com o reconhecimento por parte daqueles que estavam oprimidos pelas injustiças da época.

3.2 MOMENTO HISTÓRICO DA PROMULGAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO FEDER�AL DE 1988

Num país assolado pela repressão imposta por vinte e cinco anos de um regime militar extremamente opressivo, após uma vitoriosa campanha popular visando instituir eleições diretas, em 15 de janeiro de 1985, embora ainda através de voto indireto, o colégio eleitoral acabou por eleger um civil: Tancredo Neves, o que culminou no fim da Ditadura Militar.

Embora, não tenha assumido o cargo devido sua morte, o seu vice José Sarney, assumiu o compromisso de instituir uma Comissão Provisória de Estudos Constitucionais, que ficou conhecida como Comissão Afonso Arinos.

Após quase três anos de trabalho, em 05 de outubro de 1988, foi promulgada a nova Constituição Brasileira. Levando-se em conta que o país vinha de um período de opressão e cerceamento dos Direitos e Garantias Individuais, era de se esperar que novo texto constitucional tivesse essa preocupação com os direitos fundamentais, sobretudo o Princípio da Igualdade tão defendido por Beccaria.

Dessa forma, promulgou-se a denominada Constituição Cidadã, pelo então presidente da Assembléia Nacional Constituinte Deputado Ulisses Guimarães, por ter ampla participação popular durante a sua elaboração e a constante busca pela efetivação da cidadania.

O Artigo 5º da CF/88 prevê que: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade [...].270

O ordenamento brasileiro prevê que ninguém será submetido à tortura

270 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.p.8.

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nem a tratamento desumano ou degradante, assim como considera crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem.

Segundo Beccaria, a tortura não era uma pena em si, mas um método utilizado para obter provas ou a confissão do acusado. Não havia a preocupação com a dignidade da pessoa humana, com a legalidade, o que contava era a lei suprema de Deus, a lei do arbítrio.

4. A ORIGEM DA PENA

Todavia com o aumento da população e a constituição de sociedades e enraizadas na formação estatal, existiu uma obrigação de utilizar diversos costumes e ações humanos como delitos e requerer a imposição de penas para estes.

Contudo, o delito, é um procedimento não condizente com a moral e nem com a lei que gere uma sociedade, precisando, por de tal maneira, cominar penas (sanções) que previnam que nenhum individuo da sociedade pratique tais ações.

No princípio das sociedades, notamos a eficácia de leis que continham a reparação privada contra atos sobrevindos destes grupos, partindo para a penalização dos praticantes dos delitos, por intermédio do Estado. A primeira norma que colaborou expressivamente para a humanização da pena foi A Lei de Talião e também é que tentou ratificara sanção penal, no qual expôs a restrição da pena a ser imposta ao transgressor, ou seja, a sanção precisaria equivaler ao dano causado.271

Ademais com a Lei de Talião e dos princípios hebraicos acima descritos, vieram outras normatizações no mesmo rumo, com o Código de Hamurabi, Pentateuco, e a Lei das Doze Tábuas. 272Com estas leis, vemos nascerem os princípios da individualização da pena, proporcionalidade da pena ao dano causado, legalidade, entre outros princípios que norteiam o direito penal em todas as partes do mundo.

No começo da Idade Média, todos os progressos conseguidos pela humanidade no aspecto penal e na execução das penas, foram dizimados, especialmente pela derrocada do Império Romano do Ocidente e as guerras barbáricas, no qual surgiram leis que volvem a humilhar o criminoso, pois estabelecia penas absurdas, como banhos em óleo fervente, caminhos de

271 BIAZEVIC, D. M. H. A História da Tortura. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8505>. Acesso em: 02 de jan. de 2014.272 LOPES, José Reinaldo de Lima. O Direito na História. Lições introdutórias. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2008.p.16.

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brasa, entre outras. 273

Ainda neste contexto histórico, contudo ainda se viam cumprimentos de penas sem que tivesse julgamento, essas aplicações de penas era opostas à dignidade humana, bem como aplicação de procedimentos ínfimos de penas imponentes. 274

Ademais havia vários pensamentos iluministas que delimitavam no significado de tratar o homem com a carecida condição humanitária, porque são seres naturais que merecem o respeito devido. 275

Neste diapasão, abrolha o divisor das águas do direito penal, no qual dar início ao estudo das penas, no período em que o direito penal começa a sua inquietação com o estudo da execução da pena, onde o mestre Cesare Beccaria com sua obra “DOS DELITOS E DAS PENAS”, transformou completamente as procedimentos cominadas para a execução da pena, estabelecendo, sobretudo a utilização da legalidade e da anterioridade como princípios basilares na tipificação penal.

Conforme o pensamento de Beccaria, a prática de penalizar deve se utilizado aquele que melhor convenha ao interesse público máximo, o bem estar social, porque na sua visão a intenção da penalidade é a invenção de uma sociedade cada vez mais perfeita e não, tão apenas, a vingança. Entretanto, a penalização deve ter duas finalidades: evitar que os indivíduos pratiquem crimes e prevenir a reincidência criminal.

Na concepção de Beccaria a prática política ou social de elevar as penas ou instituir novas maneiras senão por eficácia legal, atacaria inteiramente contra a sociedade e também contra o preceito jurídico, insultando, deste modo, a garantia que o cidadão teria seus representantes.276

Entretanto com o contrato social, os indivíduos somente devem abrir mão de um mínimo necessário de direitos imprescindíveis para à efetivação da paz social, o Direito à vida não se inclui neste rol, pois este direito é indisponível.

Deste modo, penalizar, para Beccaria, apenas se explica como elemento de defesa do contrato social, sendo assim maneira de garantir que todos os indivíduos sejam determinados a conservá-lo como tal, já que de acordo com a história averigua que a pena de morte se mostra ineficaz na diminuição e na penalização de crimes e que, para o Beccaria parece aberração que as mesmas leis que zela pelo bem-estar social, que coíbem e castigam o

273 LOPES, José Reinaldo de Lima. O Direito na História. Lições introdutórias, p. 27/32.274 LOPES, José Reinaldo de Lima. O Direito na História. Lições introdutórias, p. 27/32.275 PEREIRA, A. Marcos. Cesare Beccaria Precursor do Direito Penal Moderno. 5ª edição, São Paulo: Escala Ltda, 2011.p.43.276 BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e Das Penas, p.65.

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homicídio, possam permitir como forma de punição. 277

Ademais a teoria da associação de ideias ressalta que o crime assim como ocorre deve ser punido o mais célere possível, afim de que os conceitos de “crime” e “punição” sejam naturalmente arrolados pela mente humana, portanto para se alcançar o fim indicado por tal teoria às leis carece de serem claras e simples em sua acepção, para que seus aplicadores não as tenham que decifrar e, para que todos os indivíduos as possam compreender , de tal maneira que sua a aplicação possa ser igualitária a todos que tenham cometidos delitos da mesma categoria.278

Neste sentido Beccaria com seu pensamento demonstra de forma a veracidade da expressão: “violência gera violência”, senão vejamos: “Os países e os séculos em que se puseram em prática os tormentos mais atrozes, são igualmente aqueles em que se praticaram os crimes mais horrendos”.279

Mesmo que a barbaridade das mesmas não fosse condenada pela filosofia, mãe das virtudes benévolas e, por essa razão, esclarecida, que escolhe administrar homens felizes e livres a dominar covardemente um rebanho de acanhados escravos; mesmo que as punições cruéis não se resistissem inteiramente ao bem público e ao fim que se lhes confere, o de prevenir os crimes bastará provar que tal barbaridade é inútil, para que se deva considerá-la como odiosa, revoltante, adversa a toda justiça e à própria índole do contrato social.280

5. CONCLUSÃO

Ao finalizar a apreciação a respeito do pensamento do Beccaria, fica notório o quanto foi grandiosa a sua influência para o direito penal e também no constitucionalismo brasileiro. Beccaria narrou à urgência de uma modificação na prevenção do delito e do delituoso, em seu pensamento é claro que delito deve ser punido, mais o que assistimos é a ineficiência do Estado, quando não garante a sua aplicação, levando ao cidadão a sensação de impunidade, portanto precisam-se repensar nos dias de hoje, estes mesmos preceitos.

Vive-se em um momento histórico áureo do Iluminismo, da Liberdade e da Razão com a nova visão da dignidade do homem, estabelecendo as verdadeiras relações existentes entre o que é justo e o que é injusto, não considerando somente a materialidade e a atualidade da Lei, mas o exigir que essa mesma lei seja coerente com a realidade em que a sociedade vive.

277 BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e Das Penas, p.21.278 BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e Das Penas, p.65/66.279 BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e Das Penas, p.50.280 MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do Direito. São Paulo: Atlas, 2010, p.164.

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Beccaria influenciou na reformulação da legislação então vigente. Ao versar sobre a questão da justiça, interveio diretamente na política da época e na sociedade. E começou a introduzir a idéia da proporcionalidade entre as penas e os delitos cometidos, de tal forma que, o delito é uma intimidação ao bem comum, sua colisão deve ser medida com uma paridade igual ao grau de ameaça que a comportamento abrolha a sociedade.

E com isso constituindo penas mais severas para aquelas comporta-mentos que apresentam uma maior ameaça ao bem-público e penas menos ri-gorosas para as de menor potencialidade ofensivos tudo isso agindo dentro de um aparato estatal resguardado por leis ordenadas de acordo com a vontade pública, produzindo um efeito muito mais enérgico do que as penas cruéis e extremadas, escolhendo a dimensão entre os delitos e as penas muito indispen-sável para a conservação da Ordem Social.

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REFERÊNCIAS

BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e Das Penas. Trad. Torrieri Guimarães. 6ª edição, São Paulo: Martin Claret, 2009.

________. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Diário Oficial da União. Brasília, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em: 04 de janeiro de 2014.

_________. Lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União. Brasília, 1990. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/leis/L8069Compilado.htm>. Acesso em: 04 de janeiro de 2014.

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COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2005.

COTRIM, Gilberto; FERNANDES, Mirna. Fundamentos de Filosofia. 1ª edição, São Paulo: Saraiva, 2010.

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 13ª edição, São Paulo: Saraiva, 2008.

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MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do Direito. São Paulo: Atlas, 2010.

MEIRELLES, Hely Lopes. Estudo e Pareceres de Direito Público. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1986.

MONTORO, André Franco. Introdução a Ciência do Direito. 25 ed., 2a tiragem – São Paulo – Editora Revista dos Tribunais, 2000.MORAES, Alexandre. Constituição do Brasil Interpretada. 7ª edição, São Paulo: Atlas, 2007.

PEREIRA, A. Marcos. Cesare Beccaria Precussor do Direito Penal Moderno. 5ª edição, São Paulo: Escala Ltda, 2011.

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TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL, ESTATUTO DE ROMA E A PENA DE PRISÃO PERPÉTUA

Maria aParecida aMaral

thiago chaVes de Melo

1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho versa sobre o tema da possibilidade da pena de prisão perpétua pelo Estatuto de Roma ante à vedação desta penalidade pela Constituição Federal brasileira; visa identificar em que medida é possível aplicar a pena de prisão perpétua a cidadãos que devem ser protegidos pelas normas constitucionais de seu país, ao mesmo tempo em que o Brasil deve se submeter às normas internacionais que ratifica; além dos seguintes objetivos específicos: a. abordar o surgimento do Tribunal Penal Internacional; b. destacar a competência do Tribunal Penal Internacional ; c. apontar os crimes por ele abordados.

Justifica-se no sentido de tentar enriquecer e ampliar a produção acadêmica já existente sobre o tema, objetiva contribuir com pesquisadores, para a confecção de futuros artigos, para que este sirva como fonte.

Foi utilizada na pesquisa uma abordagem qualitativa que buscou colocar um rigor que não é o da exatidão numérica, mas objetiva uma compreensão peculiar daquilo que se estuda; o centro de sua atenção tem foco no específico, no individual, busca a compreensão e não a explicação dos acontecimentos estudados281. A pesquisa qualitativa se ocupa com as Ciências Sociais, com um nível de realidade que não pode ou não deveria ser quantificado. Ou seja, ela trabalha com o universo dos significados, dos motivos das aspirações, das crenças, dos valores e das atitudes. Esse conjunto de fenômenos humanos é entendido aqui como parte da realidade social, pois ser humano se distingue não por agir, mas por pensar sobre o que faz e por interpretar suas ações dentro a partir da realidade vivida e partilhada com seus semelhantes. O objeto da pesquisa qualitativa é o universo da produção humana que pode ser resumido no mundo das relações, das representações e da intencionalidade que dificilmente pode ser traduzido em números e indicadores quantitativos282.

A coleta de dados foi feita na tentativa de explicar o problema por meio de material já elaborado e publicado, composto primordialmente de livros283. E, de forma similar, fez-se uso também de pesquisa documental, baseando-se

281 RAMPAZZO, Lino. Metodologia científica. 2.ed. São Paulo: Loyola, 2002, p.58-59.282 MINAYO, Maria Cecília de Souza (org). Pesquisa social: Teoria, método e criatividade. 31.ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012. 283 GIL, Antônio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2006, p.48.

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na Constituição, por exemplo, que constituiu fonte de recolhimento dos dados escritos284. Segundo Laville e Dione (p.166, 2012) “A pesquisa documental baseia-se em toda fonte de informação já existente, nos documentos impressos, como também em tudo que se pode extrair dos recursos audiovisuais, e em todo vestígio deixado pelo homem”.

A pesquisa realizada fita compreender qual a melhor solução para a incompatibilidade da previsão da pena de prisão perpétua pelo Estatuto de Roma ante à vedação desta penalidade pela Constituição brasileira.

2. SURGIMENTO DO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL

Observando-se o histórico das Constituições do Brasil nota-se que houve um processo evolutivo para se alcançar um Estado Democrático de Direito, no qual os direitos humanos fundamentais e as garantias a eles inerentes são expressamente tipificados. Sendo assim a CF/88 acolhe amplamente os direitos humanos, incumbidos por eleger valores universais e essenciais ao homem, reconhecidos com o decorrer do tempo, principalmente no século XX, depois das barbaridades cometidas durante a 2ª Guerra Mundial. 285

“Direitos humanos são aqueles direitos essenciais para que o ser humano seja tratado com a dignidade que lhe é inerente e aos quais fazem jus todos os membros da espécie humana, sem distinção de qualquer espécie.” 286

O Estatuto de Roma originou o Tribunal Penal Internacional (TPI) e este trouxe grande contribuição para o aprimoramento do sistema de proteção da pessoa humana na órbita internacional. Alguns momentos históricos contribuíram para a concretização deste.287

Decorridos os 20 anos entre as duas guerras mundiais, construiu-se um período de ponderação, do qual originaram-se diversos projetos doutrinários que se empenhavam na elaboração e aceitação de um Direito Internacional Penal.288

O Estado racial em que se converteu a Alemanha Nazista no período sombrio do Holocausto- considerado o marco definitivo de desrespeito

284 LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, Maria de Andrade. Metodologia Científica. 7.ed. São Paulo: Atlas, 2011, p.48.285 LIMA, Renata Mantovani; BRINA, Marina Martins da Costa. O Tribunal Penal Internacional. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p.153-154.286 PORTELA, Paulo Henrique Gonçalves. Direitos Humanos: noções gerais. Rio de Janeiro: Juspodivm, 2007, p.619.287 GUERRA, Sidney. Direitos humanos: na ordem jurídica internacional e reflexos na ordem constitucional brasileira. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 86.288 LIMA, Renata Mantovani; BRINA, Marina Martins da Costa. O Tribunal Penal Internacional, p.26.

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e ruptura para com a dignidade da pessoa humana, em virtude das barbaridades e atrocidades cometidas a milhares de seres humanos (principalmente contra os judeus) durante a Segunda Guerra Mundial- acabou dando ensejo aos debates envolvendo a necessidade, mais do que premente, de criação de uma instância penal internacional, com caráter permanente, capaz de processar e punir aqueles criminosos de que a humanidade quer definitivamente se livrar.289

Após a 2ª Guerra Mundial, por meio do Acordo de Londres, instituiu-se o Tribunal Militar Internacional de Nuremberg, com o objetivo de julgar os grandes criminosos de guerra dos países europeus pertencentes ao Eixo. Entretanto tal Tribunal sofreu fortes críticas, dentre elas: violação do princípio nullum crimen, nulla poena sine lege; que os Aliados também tinham cometido crimes de guerra, dentre outras. Em 1950 a Comissão de Direito Internacional, cumprindo determinação da Assembleia Geral, formulou os princípios de Direito Internacional reconhecidos no Tribunal de Nuremberg.290

“O Tribunal Militar Internacional de Nuremberg consistiu em um tribunal fundado pelas quatro potências vitoriosas, pelos aliados vitoriosos, que julgou os mais importantes crimes nazistas”.291

O Tribunal de Nuremberg significou um poderoso impulso no processo de justicialização dos direitos humanos. Ao final da Segunda Guerra e após intensos debates sobre as formas de responsabilização dos alemães pela guerra e pelos bárbaros abusos do período, ao aliados chegaram a um consenso, com o Acordo de Londres de 1945, pelo qual ficava convocado um Tribunal Militar Internacional para julgar os criminosos de guerra.292

De maneira similar também foi criado o Tribunal Militar Internacional para o Extremo Oriente, também conhecido como Tribunal de Tóquio. O trabalho desenvolvido pelos Tribunais de Nuremberg e de Tóquio foi crucial no Direito Internacional Penal.293

289 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Tribunal Penal Internacional e o Direito Brasileiro. 3.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p.28. 290 GUERRA, Sidney.  Direitos humanos:  na ordem jurídica internacional e reflexos na ordem constitucional brasileira, p. 86.291 LIMA, Renata Mantovani; BRINA, Marina Martins da Costa. O Tribunal Penal Internacional, p.28.292 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e justiça internacional. São Paulo: Saraiva, 2006, p.33.293 LIMA, Renata Mantovani; BRINA, Marina Martins da Costa. O Tribunal Penal Internacional, p.29-30.

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Outros Tribunais também podem ser apontados como os Tribunais Ad hoc de Ruanda e o da Iugoslávia, que apesar de pequenos equívocos, também serviram como fonte para a criação do Tribunal Penal Internacional.294

No campo dos precedentes do processo de justicialização dos direitos humanos na ordem internacional, merecem destaque as experiências do Tribunal de Nuremberg, bem como os Tribunais ad hoc para a ex- Iugoslávia e para Ruanda e, posteriormente, a criação do Tribunal Penal Internacional.295

A distinção entre Tribunal Penal Internacional e os Tribunais Ad hoc, como exemplo o Iugoslávia e Ruanda, é que nos Ad hoc a jurisdição encontra-se limitada pelo tempo e ou posição geográfica, enquanto que o TPI não encontra sua jurisdição limitada pelo tempo nem tampouco geograficamente.296

A Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1995 instituiu o Comitê Preparatório do Anteprojeto do Estatuto para um Tribunal Penal Internacional definitivo. O Comitê preparatório ocasionou a Conferência Diplomática que se deu em Roma, quando foi aprovado o Estatuto que compõe o Tribunal Penal Internacional.297

O Estatuto do TPI foi idealizado na data de 17 de julho de 1998 e entrou em vigência no dia 01 de julho de 2002. Sua sede fica em Haia, na Holanda.298

3. COMPETÊNCIA E CRIMES ABORDADOS PELO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL

O Tribunal Penal Internacional tem como objetivo investigar e trazer a julgamento os tipos penais mais relevantes e amplamente reconhecidos pela sociedade internacional, quais sejam: genocídio; crimes contra a humanidade; crimes de guerra, e crime de agressão, conforme disposto no art.5º do Esta-tuto299. Essas infrações penais afetam toda a humanidade, sendo irrelevante o apontamento do direito individual violado.

294 GUERRA, Sidney.  Direitos humanos:  na ordem jurídica internacional e reflexos na ordem constitucional brasileira, p.87.295 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e justiça internacional, p.33.296 GUERRA, Sidney.  Direitos humanos:  na ordem jurídica internacional e reflexos na ordem constitucional brasileira, p. 86.297 GUERRA, Sidney. Direitos humanos: na ordem jurídica internacional e reflexos na ordem constitucional brasileira, p.88.298 GUERRA, Sidney.  Direitos humanos:  na ordem jurídica internacional e reflexos na ordem constitucional brasileira, p.88.299 LIMA, Renata Mantovani; BRINA, Marina Martins da Costa. O Tribunal Penal Internacional, p.106.

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O genocídio ofende de forma objetiva os direitos humanos, e constitui o mais grave atentado contra a paz e segurança da comunidade internacional. De acordo com a Convenção destinada ao genocídio, este pode ser conceituado como a prática de qualquer uma das seguintes infrações, porém tal rol não é taxativo/fechado: assassinato ou dano grave à integridade física e mental de membros de um grupo; submissão do grupo a condições de existência; subordinação do grupo a condições de existência que acarretem a sua destruição física; utilização de medidas responsáveis por impossibilitar a perpetuação do grupo; ou transferência forçada de crianças de um grupo para outro distinto, desde que sejam realizados com o intuito de destruir, total ou parcialmente, grupos nacionais e étnicos, raciais e religiosos. Serão igualmente punidos os atos de genocídio ou o acordo para cometê-lo, o incitamento, a tentativa e a cumplicidade 300

O Estatuto do Tribunal Penal Internacional, em seu art.7º enumera as praticas que lesam a humanidade, sendo eles: extermínio, homicídio, escravidão, deportação ou transferência forçada de população, aprisionamento com violação das normas de direito internacional, tortura, estupro, escravidão sexual, prostituição forçada, violência sexual, perseguição de grupos ou comunidades por motivos políticos, raciais, culturais, religiosos, desaparecimento forçado de uma ou mais pessoas, apartheid, e outros atos que provoquem grave sofrimento. 301

A expressão “crimes contra a humanidade” geralmente conota quaisquer atrocidades e violações de direitos humanos perpetrados no planeta e em larga escala, para cuja punição é possível aplicar-se o princípio da jurisdição universal. Mas a par deste entendimento comum a expressão deve ser compreendida em seu significado histórico e técnico. A origem histórica de tais crimes está ligada ao massacre provocada pelos turcos contra os armênios (...). Mas foi somente no período pós-Segunda Guerra que se voltou a cotejar de tais crimes, em virtude das inúmeras atrocidades cometidas pelo Estado em que se converteu a Alemanha Nazista no Holocausto.302

Quanto aos crimes de guerra, ofensas em tempo de guerra, o Tribunal Penal Internacional abarca em seu art.8º o tratamento dado a esses, sendo o rol disposto neste artigo, meramente exemplificativo. 303

300 LIMA, Renata Mantovani; BRINA, Marina Martins da Costa. O Tribunal Penal Internacional, p.106. 301 LIMA, Renata Mantovani; BRINA, Marina Martins da Costa. O Tribunal Penal Internacional, p.111. 302 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Tribunal Penal Internacional e o Direito Brasileiro, p.64-65.303 LIMA, Renata Mantovani; BRINA, Marina Martins da Costa. O Tribunal Penal Internacional, p.114.

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São também exemplos de crimes de guerra, nos termos do Estatuto, outras violações graves das leis e costumes aplicáveis em conflitos armados internacionais no âmbito do Direito Internacional, a exemplo dos seguintes atos: a) dirigir intencionalmente ataques à população civil em geral ou civis que não participem diretamente nas hostilidades; b) dirigir intencionalmente ataques a bens civis, ou seja, bens que não sejam objetivos militares; c) dirigir intencionalmente ataques ao pessoal, instalações, material, unidades ou veículos que participem numa missão de manutenção da paz ou de assistência humanitária (...); d) lançar intencionalmente um ataque, sabendo que o mesmo causará perdas acidentais de vidas humanas ou ferimentos na população civil, danos em bens de caráter civil ou prejuízos extensos, duradouros e graves no meio ambiente que se revelem claramente excessivos em relação à vantagem militar global concreta e direta que se previa; e) atacar ou bombardear, por qualquer meio, cidades, vilarejos, habitações ou edifícios que não estejam defendidos e que não sejam objetivos militares; f) matar ou ferir um combatente que tenha deposto armas ou que, não tendo mais meios para se defender, se tenha incondicionalmente rendido; g) submeter pessoas que se encontrem sob o domínio de uma parte beligerante a mutilações físicas ou qualquer tipo de experiências médicas ou científicas que não sejam motivadas por um tratamento médico, dentário ou hospitalar, nem sejam efetuadas no interesse dessas pessoas, e que causem a morte ou que coloquem seriamente em perigo a sua saúde; h) matar ou ferir à traição pessoas pertencentes à nação ou ao exército inimigo etc.304

E por fim, no que tange aos crimes de agressão, este caracteriza-se por ser a mais flagrante manifestação do uso ilícito da força, porém é o único delito, entre os de competência do Tribunal que não teve sua definição e elementos previamente estabelecidos. 305

A não existência de uma definição precisa de agressão, suficientemente abrangente para servir como elemento constitutivo do “crime de agressão” e, consequentemente, para fundamentar a responsabilidade penal internacional dos indivíduos, dificultou, portanto, a inclusão dessa espécie de crime no Estatuto de Roma de 1998. Por esse e por outros motivos igualmente relevantes é que, dos quatro crimes

304 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Tribunal Penal Internacional e o Direito Brasileiro, p.69-70.305 LIMA, Renata Mantovani; BRINA, Marina Martins da Costa. O Tribunal Penal Internacional, p.118.

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incluídos na competência do TPI, a definição do crime de agressão foi propositadamente relegada a uma etapa posterior. 306

As penas a serem aplicadas pelo TPI encontram-se dispostas no art. 77 do Estatuto; sendo elas: a) Pena de prisão por um número determinado de anos, até ao limite máximo de 30 anos; e b) Pena de prisão perpétua, se o elevado grau da ilicitude do fato e as condições pessoais do condenado o justificarem; além de multa e perda de produtos, bens e haveres provenientes direta ou indiretamente do crime, sem prejuízo dos direitos de terceiros que tenham agido de boa fé. As penas privativas de liberdade serão cumpridas em um Estado indicado pelo Tribunal a partir de uma lista de Estados que lhe tenham manifestado a sua disponibilidade para receber pessoas condenadas.

4. O ESTATUTO DE ROMA E A PREVISÃO DA PENA DE PRISÃO PERPÉTUA

O Tribunal Penal Internacional determina como uma de suas penalidades a prisão perpétua. Porém, a Constituição Federal, no art. 5º, XLVII, ‘b’, veda a pena de prisão perpétua, daí a incompatibilidade entre o Estatuto e a Constituição Brasileira. Nesse sentido, a Constituição limitou explicitamente o exercício do poder punitivo do TPI, impedindo, internamente, a imposição da pena de prisão perpétua.307

Para Aníbal Bruno:

[...] a prisão perpétua é uma pena de segurança. A sociedade defende-se, afastando definitivamente do seu seio o homem que gravemente delinquiu. Mas é uma pena cruel e injusta. Priva o condenado não só da liberdade, mas da esperança da liberdade, que poderia encorajá-lo e tornar-lhe suportável a servidão penal. Torna impossível qualquer graduação segundo a natureza e circunstâncias do crime e as condições do criminoso, e retira todo objetivo à função atribuída primordialmente à pena, que é o reajustamento social do condenado. É, em geral, excessiva e não atende à necessária determinação no tempo, porque não findará em uma data fiada na sentença, mas durará enquanto o homem exista.308

306 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Tribunal Penal Internacional e o Direito Brasileiro, p.64-65.307 LIMA, Renata Mantovani; BRINA, Marina Martins da Costa. O Tribunal Penal Internacional, p.169.308 BRUNO, Aníbal. Direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 1978. p. 60.

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O Brasil é signatário desse estatuto, além de se submeter à jurisdição desse Tribunal (art.5º, §4º, CF). Porém como se resolve o problema de um cidadão brasileiro que deva ser entregue ao TPI, frente à possibilidade de imposição de pena de prisão perpétua não admitida pelo ordenamento brasileiro? 309

Grande parte da doutrina acredita que a subordinação do Brasil ao Estatuto de Roma não causaria a inconstitucionalidade da Emenda Constitucional nº45, uma vez que se defende que a ordem constitucional pátria encontra-se voltada para o direito interno, não podendo ser projetada para a ordem internacional. Porém, esse posicionamento que afirma existir apenas um conflito aparente entre os dispositivos, defende que o Estatuto de Roma e a Constituição Brasileira atuariam em esferas distintas de competência: o TPI punindo os autores de crimes de importância mundial e a Constituição restringindo o âmbito de poder punitivo estatal interno. 310

Os defensores dessa teoria sustentam suas fundamentações no entendimento do Supremo Tribunal Federal, embasado na premissa de que nada impede a concessão da extradição passiva quando há a hipótese de o extraditado vir a ser penalizado pelo Estado requerente pela pena de prisão perpétua. Entretanto tal entendimento foi reformado. A recente jurisprudência da Suprema Corte retratada no voto do ministro Celso de Mello, afirma que: 311

A extradição somente será deferida pelo Supremo tribunal Federal, tratando-se de fatos delituosos puníveis com prisão perpétua, se o Estado requerente assumir, formalmente quanto a ela, perante o Governo brasileiro, o compromisso de comutá-la em pena não superior à duração máxima admitida na Lei penal do Brasil (CP, art.75), eis que os pedidos extradicionais- considerado o disposto no art. 5º, XLVII, ‘b’ da Constituição da República, que veda as sanções penais de caráter perpétuo- estão necessariamente sujeitos à autoridade hierárquico-normativa da Lei Fundamental. Doutrina. Novo entendimento derivado da revisão, pelo Supremo Tribunal

309 LINO, Clarice Nader Pereira; SILVA, Alice Rocha da. A constitucionalidade da pena de prisão perpétua no tribunal penal internacional frente ao ordenamento jurídico brasileiro. Disponível em: <http://www.publicacoesacademicas.uniceub.br/index.php/rdi/article/view/1964>. Acesso em 21 de dezembro de 2013.310 MENEZES, Fabio Victor de Aguiar. A pena de prisão perpétua e o Tribunal Penal Internacional: Aspectos constitucionais. Disponível em: <http://www.ambitojuridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=6758&revista_caderno=3 >Acesso em 20/12/2013.311 MENEZES, Fabio Victor de Aguiar. A pena de prisão perpétua e o Tribunal Penal Internacional: Aspectos constitucionais. Disponível em: <http://www.ambitojuridico.com.br/site/?n_link= revista_artigos_leitura&artigo_id=6758&revista_caderno=3 >Acesso em 20/12/2013.

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Federal, de sua jurisprudência em tema de extradição passiva. 312

Confirmando o mesmo posicionamento o Ministro Carlos Ayres Brito, assenta que:

[...] votei pela necessidade de o Supremo Tribunal Federal, ao deferir o pedido, condicionar a efetivação do ato de entrega do extraditando ao compromisso formal de o Estado estrangeiro comutar a prisão perpétua em pena privativa de liberdade não superior a trinta anos. 313

Dessa forma, o Supremo só concederá a extradição se o Estado requerente aceitar o que dispõe o art.5º, XLVII, ‘b’, e se subordinar, perante o Estado brasileiro, em comutar a pena de prisão perpétua em pena não superior à duração limite de trinta anos. Nos termos de art.75, CP, sujeitando-se à autoridade hierárquico-normativa da Constituição Brasileira. 314

Fora de hipótese, assim, o argumento de que o ordenamento constitucional brasileiro está voltado somente para o direito interno, haja vista que a norma constitucional, no que tange à teoria do constitucionalismo global, além de disciplinar as relações na esfera interna do país, é a ferramenta que apóia os princípios constitucionais, possibilitando ao Brasil interferir na esfera internacional não apenas para fazer defesa de tais princípios, assim como para dar-lhes efetividade.315

Seguindo-se a mesma linha doutrinária, existem doutrinadores que defendem a adoção do princípio da ponderação dos interesses como a solução, sendo que o argumento de justiça e combate à impunidade devem se sobressair à aplicação da prisão perpétua. Como afirma Flávia Piovesan:316

312 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ext.1201. Relator Ministro Celso de Mello. Acórdão de 17 de fevereiro de 2011. Diário Oficial da União. Brasília, 2011. Disponível em: < http://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/18427046/extradicao-ext-1201> Acesso em 21 de dezembro de 2013.313 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Extradição nº 944. Relator Ministro Ayres Brito. Diário Oficial da União. Brasília, s/d. Disponível em:<www.stf.gov.br/jurisprudencia/nova/pesquisa.asp>. Acesso em 21 de dezembro de 2013.314 MENEZES, Fabio Victor de Aguiar. A pena de prisão perpétua e o Tribunal Penal Internacional: Aspectos constitucionais. Disponível em: <http://www.ambitojuridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=6758&revista_caderno=3>Acesso em 20/12/2013.315 MENEZES, Fabio Victor de Aguiar. A pena de prisão perpétua e o Tribunal Penal Internacional: Aspectos constitucionais. Disponível em: <http://www.ambitojuridico.com.br/site/?n_link= revista_artigos_leitura&artigo_id=6758&revista_caderno=3 >Acesso em 20/12/2013..316 MENEZES, Fabio Victor de Aguiar. A pena de prisão perpétua e o Tribunal Penal Internacional: Aspectos constitucionais. Disponível em: <http://www.ambitojuridico.com.br/site/?n_link = revista_artigos_leitura&artigo_id=6758&revista_caderno=3 >Acesso em 20/12/2013.

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É lógico que grande maioria vai negar a prisão perpétua, ninguém pode ser simpatizante ou defender esse tipo de pena; no entanto, nessa balança tenho de optar, e esse conflito de valores deve ser solucionado à luz da condição, é essa pauta valorativa que nos vai orientar a detectar a racionalidade da dignidade humana, essa é a alma do constitucionalismo de 1988. Portanto, com toda a convicção, entendo que a balança deve pesar em prol do direito à justiça, do combate à impunidade, quando se tratam que crimes que afrontam a humanidade.317

A aplicação da pena de prisão perpétua ofende princípios constitu-cionais. Ao analisar-se o princípio da individualização das penas, nota-se que a penalidade deve ser aplicada de acordo com o caso concreto, devendo estar prevista de modo certo e específico. A individualização se dá em vários níveis dentre na: cominação (feita pelo legislador de forma abstrata), na aplicação (feita pelo juiz do conhecimento, aplicando ao caso concreto), e por fim, na execução (feita pelo juiz da execução, também se analisando cada caso con-creto). Inicialmente o legislador fixa para cada tipo penal a pena proporcional à importância do bem jurídico tutelado, devendo atentar-se para as proibições constitucionais, dentre elas a aplicação da pena de prisão perpétua, fixando o mínimo e o máximo de tempo de cumprimento da sanção.318

O que não foi adotado pelo Tribunal Penal Internacional, uma vez que não houve uma individualização para cada um dos tipos penais previstos no Estatuto, tem-se apenas o mínimo e o máximo da pena, que pode ser aplicada genericamente a todos os tipos abordados, não se leva em consideração cada tipo penal ou a maior ou menor relevância do bem jurídico tutelado.319

A previsão da pena de prisão perpétua fere o princípio da humanização das penas, uma vez que ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante ou punições cruéis. Além do fato de que a previsão que proíbe a prisão perpétua é cláusula pétrea da Constituição Federal, por se tratar de direito e garantia individual, nos termos do art.60, §4º; que dispõe o

317 PIOVESAN, Flávia. Tribunal Penal Internacional: Princípio da complementariedade e soberania. Disponível em: <http://daleth.cjf.jus.br/revista/numero11/PainelVI-2.htm> Acesso em 21 de dezembro de 2013.318 MENEZES, Fabio Victor de Aguiar. A pena de prisão perpétua e o Tribunal Penal Internacional: Aspectos constitucionais. Disponível em:http://www.ambitojuridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=6758&revista_caderno=3 >Acesso em 20 de dezembro de 2013.319 MENEZES, Fabio Victor de Aguiar. A pena de prisão perpétua e o Tribunal Penal Internacional: Aspectos constitucionais. Disponível em: <http://www.ambitojuridico.com.br/site/?n_link= revista_artigos_leitura&artigo_id=6758&revista_caderno=3 >Acesso em 20/12/2013.

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que não pode ser objeto de deliberação a proposta de emenda. Dessa forma a proibição da pena de prisão perpétua só poderia ser relativizada pela Emenda Constitucional 45 se houvesse um rompimento do ordenamento constitucional vigente, por se tratar tal previsão de uma cláusula pétrea, uma garantia do condenado de caráter imutável. Nesse sentido, assenta Luiz Flávio Gomes: 320

A via de emenda constitucional que viabilizaria no nosso país a prisão perpétua acha-se bloqueada pelo que está previsto no art.60, §4º, IV, da CF, que cuida das chamadas cláusulas pétreas. Referida norma constitucional proíbe a deliberação de qualquer proposta de emenda tendente a abolir ‘os direitos e garantias individuais’. A liberdade, indiscutivelmente, constitui direito individual (art.5º, caput, CF), razão pela qual não pode ser afetado por nenhuma emenda constitucional.321

Vale ressaltar que nada impede que a Emenda Constitucional 45, ao condicionar a hipótese de aplicação da prisão perpétua, seja rotulada como inconstitucional, haja vista que esta deve manter certa compatibilidade com a Carta Magna, não podendo o legislador reformador da Constituição ir contra a vontade do legislador constituinte originário.322

Todos os aspectos abordados integram restrições constitucionais à possibilidade da aplicação da pena de prisão perpétua pelo Estatuto de Roma, sendo assim explícita a inconstitucionalidade do §4º do art.5º da CRFB/88, implementado pela Emenda Constitucional 45. 323

A matéria está ligada ao que se denomina no Direito dos Tratados de inconstitucionalidade intrínseca dos tratados internacionais. Esta tem lugar quando o tratado, apesar de formalmente ter respeitado todo o procedimento constitucional de conclusão estabelecido pelo direito interno, contém normas violadoras de dispositivos constitucionais, não

320 MENEZES, Fabio Victor de Aguiar. A pena de prisão perpétua e o Tribunal Penal Internacional: Aspectos constitucionais. Disponível em: <http://www.ambitojuridico.com.br/site/?n_link= revista_artigos_leitura&artigo_id=6758&revista_caderno=3 >Acesso em 20/12/2013.321 MENEZES, Fabio Victor de Aguiar. A pena de prisão perpétua e o Tribunal Penal Internacional: Aspectos constitucionais. Disponível em: <http://www.ambitojuridico.com.br/site/?n_link= revista_artigos_leitura&artigo_id=6758&revista_caderno=3 >Acesso em 20/12/2013.322 MENEZES, Fabio Victor de Aguiar. A pena de prisão perpétua e o Tribunal Penal Internacional: Aspectos constitucionais. Disponível em: <http://www.ambitojuridico.com.br/site/?n_link= revista_artigos_leitura&artigo_id=6758&revista_caderno=3 >Acesso em 20/12/2013.323 MENEZES, Fabio Victor de Aguiar. A pena de prisão perpétua e o Tribunal Penal Internacional: Aspectos constitucionais. Disponível em: <http://www.ambitojuridico.com.br/site/?n_link= revista_artigos_leitura&artigo_id=6758&revista_caderno=3 >Acesso em 20/12/2013.

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se confundindo com a inconstitucionalidade chamada extrínseca (ou formal), também reconhecida por ratificação imperfeita, que ocorre quando o Presidente da República, violando norma constitucional de fundamental importância para celebrar tratados, ratifica o acordo sem o assentimento prévio do Congresso Nacional (o que não é o caso do TPI, cuja ratificação se deu em total conformidade com as normas constitucionais de competência para celebrar tratados). 324

Não devendo assim, ser aceitável a submissão do Brasil ao Tribunal Penal Internacional.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A criação do Tribunal Penal Internacional representou um grande avanço no que concerne à proteção dos direitos humanos, entretanto ao prever a possibilidade da aplicação da pena de prisão perpétua, o Estatuto de Roma afronta valores que preconizam a aplicação da estrita e necessária, e que não permitem desrespeito à dignidade humana.

O argumento de que o ordenamento constitucional brasileiro está voltado somente para o direito interno é equivocado, visto que a norma constitucional além de tratar das relações na esfera interna do país, é a ferramenta que apoia os princípios constitucionais, possibilitando ao Brasil interferir na esfera internacional não apenas para fazer defesa de tais princípios, assim como para dar-lhes efetividade.

Tanto é que o Supremo Tribunal Federal só concederá a extradição se o Estado requerente aceitar o que dispõe o art.5º, XLVII, ‘b’, e se subordinar, perante o Estado brasileiro, em comutar a pena de prisão perpétua em pena não superior à duração limite de trinta anos, nos termos de art.75, CP, sujeitando-se à autoridade hierárquico-normativa da Constituição Brasileira. Logo, tal argumento, encontra-se fora de cogitação.

A aplicação da pena de prisão perpétua ofende princípios constitucio-nais. Dentre eles: o princípio da individualização das penas e o princípio da hu-manização das penas. Além do fato de que a previsão que proíbe a prisão perpé-tua é cláusula pétrea da Constituição Federal, por se tratar de direito e garantia individual, nos termos do art.60, §4º, só podendo ser relativizada tal previsão pela Emenda Constitucional 45 se houvesse um rompimento do ordenamento consti-tucional vigente, por se tratar de uma garantia do condenado de caráter imutável.

Todos os aspectos apresentados compõem restrições constitucionais à possibilidade da aplicação da pena de prisão perpétua pelo Estatuto de Roma e sendo assim, diante de todo o exposto, pode-se considerar que a Emenda

324 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Tribunal Penal Internacional e o Direito Brasileiro, p.83-84.

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Constitucional 45, que implementou o §4º do art.5º, CF, que dispõe o Brasil que é signatário do Estatuto de Roma, além de se submeter à jurisdição do Tribunal Internacional deve ser considerada inconstitucional, não podendo ser aceitável a submissão do Brasil à este Tribunal.

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REFERÊNCIAS

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A RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA NOS CRIMES AMBIENTAIS NO BRASIL

arinos fonseca

1. INTRODUÇÃO

Diante das preocupações com a questão ambiental no mundo globalizado o objetivo do presente trabalho é analisar a discussão surgida a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988 quanto à possibilidade de responsabilização da pessoa jurídica no âmbito penal.

O presente estudo se justifica pelo fato da responsabilidade penal da pessoa jurídica ser um tema controvertido no Brasil. Grande parte dos constitucionalistas e ambientalistas terem posicionamento divergentes da maioria dos penalistas. Para o primeiro grupo tal responsabilidade é perfeitamente aplicável ao passo que os últimos defenderem que o Estado não delinque.

Inicialmente faz uma pequena caracterização a respeito do meio ambiente. Destaca o conceito de meio ambiente, além da abordagem dos princípios ferais aplicado ao Direito Ambiental.

Posteriormente no próximo capítulo foi feito um breve estudo mostrando as diferenças básicas entre pessoa física e pessoa jurídica, dando um enfoque relativo à responsabilidade da pessoa jurídica.

Em seguida, no capítulo seguinte são analisadas as premissas básicas estabelecidas na responsabilidade penal, observadas as teorias utilizadas e que serviram de suportes para o posicionamento dos nossos doutrinadores. Também foi analisada a questão da responsabilização penal da pessoa jurídica de direito público e a posição jurisprudencial.

E por último uma breve caracterização da Lei 9.605/98 no que tange à aplicação das penas aplicáveis às pessoas jurídicas.

A metodologia utilizada foi a pesquisa e análise de obras de doutrinadores renomados no país, a análise da legislação pertinente, ou seja Constituição Federal de 1988, Lei específicas que tratam do assunto (6.938/81 e 9.605/98), além de pesquisa jurisprudencial.

2. O BEM JURÍDICO MEIO AMBIENTE

A questão ambiental é tema bastante discutido na sociedade contemporânea, com abordagens nos meios de comunicação, discussões nos meios universitários, manifestações populares, atuação de organizações não governamentais. A discussão passa desde questões locais como coleta de lixo,

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queimadas, uso de agrotóxicos até chegar a nível global como a energia nuclear, buraco da camada de ozônio, efeito estufa, mudanças climáticas, entre outros.

De acordo com Viana325 “é com essa tomada de consciência que a questão ambiental vem sendo objeto de discussão e deliberação em diversas Convenções no cenário mundial”.

Entre essas convenções a que ganhou maior destaque foi a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano, realizada em junho de 1972, em Estocolmo (Suécia). A Declaração produzida estabelece de maneira especial a relação do meio ambiente com a qualidade de vida e com os direitos fundamentais da pessoa humana.

Vieira326 destaca a importância do primeiro e segundo princípios da referida Declaração:

Princípio 1 - O homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao desfrute de condições de vida adequadas, em um meio ambiente de qualidade tal que lhe permita levar uma vida digna, gozar de bem estar e portador somente de obrigações de proteger e melhorar o meio ambiente, para as gerações presentes e futuras.

Princípio 2 – os recursos da Terra, incluídos o ar, a água, o solo, a flora e a fauna e, especialmente as amostras representativas dos ecossistemas naturais, devem ser preservados em benefícios das gerações atuais e futuras, mediante um cuidadoso planejamento ou administração adequados.

É somente desfrutando de um meio ambiente equilibrado que o homem poderá atingir uma vida digna, repleta de qualidade, bem estar e segurança. A importância dos princípios é tamanha que eles acabariam por se materializar em ordem jurídica constitucional como aconteceu com o Brasil e 1988.

2.1 CONCEITO DE MEIO AMBIENTE

A expressão meio ambiente não deve ser restrita ao meio natural ou físico, mas deve abranger as demais esferas que venham a ser objeto de relação entre o homem e o seu meio. É uma relação de interdependência entre o ser humano e os demais seres, em virtude do homem depender da natureza para sua sobrevivência. Para fins didáticos, o meio ambiente pode ser classificado em vários

325 VIANA, José Ricardo Alvarez. Responsabilidade civil por danos ao meio ambiente, 2011, p. 17-18.326 VIEIRA, Germano Luiz Gomes. Proteção ambiental e instrumentos de avaliação do ambiente, 2011, p. 23

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aspectos, de acordo com o âmbito de sua incidência: meio ambiente natural, meio ambiente artificial, meio ambiente cultural e meio ambiente do trabalho.

A expressão meio ambiente foi consagrada no direito brasileiro no art. art. 3º, I, da Lei nº 6.938/81, conhecida como Lei da Política Nacional do Meio ambiente, que define meio ambiente nos seguintes termos:

Art. 3º. Para os fins previstos nesta Lei, entende-se por:

I – Meio ambiente, o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas.

O referido texto normativo buscou dar tratamento integrado às diversas facetas do meio ambiente, articulando um sistema de proteção ambiental votado a um tratamento unitário do tema. Posteriormente, a Carta Constitucional de 1988 ampliou a proteção jurídica ao meio ambiente elevando-o à categoria de direito fundamental.

2.2. PRINCÍPIOS GERAIS DO DIREITO AMBIENTAL

O estudo do Direito e em especial do Direito Ambiental passa primeiramente pela caracterização de seus princípios. Princípio vem do latim principiu, que significa começo, origem, causa primária. Para o Direito, princípio é o seu fundamento, a base que irá informar e inspirar as normas jurídicas.

Para Nucci327

“Princípio jurídico que dizer um postulado que se irradia por todo o sistema de normas, fornecendo um padrão de interpretação, integração, conhecimento e aplicação do direito positivo, estabelecendo uma meta maior a seguir. Cada ramo do Direito possui princípios próprios, que informam todo o sistema, podendo estar expressamente previstos no ordenamento jurídico ou ser implícitos, isto é resultar da conjugação de vários dispositivos legais, de acordo com a cultura jurídica formada com o passar dos anos de estudo de determinada matéria”.

Uma norma pode se originar da aplicação de um ou mais princípios, ou um único princípio pode fundamentar uma ou várias normas. É relevante a utilização dos princípios para o Direito, pois os mesmo, de acordo com Viana328,

327 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal, 2013, p. 88.328 VIANA, José Ricardo Alvares, 54.

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servem como importante instrumento na materialização de uma orientação sensata, eficaz e útil à sociedade por ocasião da subsunção do fim à lei.

MELO329 adverte:

Violar um princípio é mais grave do que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não a apenas um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comando. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra. Isto porque, com ofendê-lo, abatem-se as vigas que o sustem e alui-se toda a estrutura neles esforçada.

Para interpretar e aplicar de forma justa e sensata o Direito são imprescindíveis o conhecimento e a compreensão de seus princípios. São inúmeros os princípios vinculados ao meio ambiente, sendo aqui abordados aqueles que consideramos mais significativos.

É bastante pertinente a observação de Alemar330 quando afirma que a quantidade de princípios ligados ao meio ambiente cresce à medida, que novas técnicas de apropriação dos recursos naturais são desenvolvidas, de acordo com o ambiente que se pretende tutelar ou ainda conforme o enfoque doutrinário que se emprega ao estudo.

Entre os princípios a serem caracterizados o primeiro é o da prevalência do interesse público ou da supremacia do bem ambiental, semelhante ao princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse particular utilizado no Direito Administrativo. Por tal princípio entende-se que em toda situação onde o interesse particular entrar em choque com o interesse público, deve prevalecer este último.

Alemar331 destaca também a importância do princípio da obrigatorie-dade da intervenção do Poder Público quando o Estado tem o dever de atuar, preventiva e repressivamente, em todo empreendimento que tenha por objeto a utilização de recursos ambientais.

O mesmo autor alerta para a importância do princípio do desenvolvimento sustentável que implica a utilização dos recursos naturais para

329 MELLO, 1992 APUD Viana 2011, p. 54.330 ALEMAR, Aguinaldo. Direito e Ambientalismo: fundamentos para o estudo do Direito Ambiental, 2013, p. 68.331 ALEMAR, Aguinaldo. Direito e Ambientalismo: fundamentos para o estudo do Direito Ambiental,p. 74.

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satisfazer as necessidades da geração atual sem comprometer, entretanto, as chances de as gerações futuras satisfazerem as suas.

Pelo princípio do poluidor-pagador não há previsão de “poluo, mas pago” ou o “pago para poder poluir”. Tal princípio encontra sérios adversários, os quais o consideram como uma autorização para poluir. O referido princípio tem como fundamento a obrigação que tem o agente causador do dano de remunerar financeiramente a coletividade pelo impacto ambiental por ele causado.

Viana332 pondera que o objeto do princípio é inserir o caráter preventivo e repressivo quanto à eventuais danos ao meio ambiente, destacando dois momentos de sua incidência. No primeiro impõe ao agente o emprego de técnicas a fim de evitar o dano ambiental. No segundo, após a ocorrência da lesão ao meio ambiente, cumpre-lhe o dever de reparar o dano.

Por este princípio a reparação não deve ser em dinheiro, embora não esteja excluída, deve priorizar a reparação in natura, pois esta melhor atende aos anseios e expectativas de restauração do equilíbrio ambiental.

Derani333 lembra a punição ao poluidor não é exclusiva à reparação do dano, mas numa atuação preventiva que possibilita ao mesmo a mudar o seu comportamento ou adotar medidas de diminuição da atividade danosa.

De acordo com Alemar334

O princípio da precaução também diz respeito a atitudes que visem a minimizar o dano causado ao ser humano ou ao meio ambiente, pelas atividades antrópicas – econômicas ou não. Ocorre que a aplicação do princípio da precaução obedece a argumentos de ordem hipotética, isto é, situa-se no campo das possibilidades, não necessariamente científicas. A precaução flutua no espectro do fato potencialmente danoso, daquilo que a ciência ainda não pode afirmar, com segurança, que não causará dano ambiental. Embora também não se possa afirmar, com certeza, que causará dano.

O princípio da precaução nos remete ao in dubio pro securitate, ou seja na dúvida a favor da sociedade ou do meio ambiente. Ele está ligado aos conceitos de afastamento de perigo e segurança das gerações futuras, bem como a sustentabilidade ambiental das atividades humanas.

No Direito Ambiental a punição por danos ambientais pode não ter eficácia embora tenha uma transcendência moral, mas dificilmente compensará os graves danos ocasionados ao meio ambiente.

332 VIANA, José Ricardo Alvares, P. 60.333 DERANI, Cristiane. Direito ambiental econômico, 2009, p. 147.334 ALEMAR, Aguinaldo, p. 86.

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Alemar335 faz uma distinção entre o princípio da precaução e da prevenção. Neste, busca-se minimizar o dano causado ao meio ambiente, pelas atividades – econômicas ou não – perpetradas pelo homem. Acontece que esse dano que se quer minimizar é, pelo menos, conhecido, ou seja, os efeitos provocados pela ação antrópica já são determinados ou, no mínimo, determináveis.

A CF/88 em seu artigo 225 contempla de forma explícita os seguintes princípios: princípio da supremacia do bem ambiental e desenvolvimento sustentável (caput); princípio do poluidor-pagador (§ 3º); princípio da prevenção (§ 1º, incisos I, II e III); princípio da precaução (§ 1º, incisos IV, V e VI).

3. PESSOA JURÍDICA: CONCEITO E RESPONSABILIDADE

3.1. CONCEITO DE PESSOA JURÍDICA

É inerente à natureza do ser humano viver em grupos, em razão de muitas vezes as necessidades e os interesses do indivíduo não podem ser atendidos sem a participação de outras pessoas devido às suas limitações.

O surgimento da pessoa jurídica está na necessidade ou na conveniência de os outros indivíduos unirem esforços e utilizarem recursos coletivos para a realização de objetivos comuns, que ultrapassam as possibilidades individuais. Surge a necessidade de personificar o grupo com capacidade jurídica, daí termos a origem da pessoa jurídica.

Segundo Gonçalves336

A pessoa jurídica consiste num conjunto de pessoas ou de bens, dotado de personalidade jurídica própria e constituído na forma da lei, para a consecução de fins comuns. Pode-se afirmar que pessoas jurídicas são entidades a que a lei confere personalidade, capacitando-as a serem sujeitos de direito e obrigações. A sua principal característica é a de que atuam na vida jurídica com personalidade diversa dos indivíduos que as compõem.

O Código Civil de 2002 (Lei 10.406/02) define o que são pessoas jurídicas de direito público interno (art. 41) e pessoas jurídicas de direito privado interno (art. 44). Essa caracterização será muito importante por ocasião da abordagem da responsabilidade penal da pessoa jurídica que pode ser de direito público quanto de direito privado.

335 ALEMAR, Aguinaldo, p. 86.336 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, v. I, 2008, p. 183.

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3.2. RESPONSABILIDADE DA PESSOA JURÍDICA

De acordo com Gonçalves337 a palavra responsabilidade origina-se do latim respondere, que nos dá a ideia de segurança ou garantia da restituição ou compensação do bem sacrificado. No direito romano não se distinguia a responsabilidade civil da responsabilidade penal. Tudo se resumia a uma pena imposta ao causador do dano.

No direito atual um evento danoso pode provocar responsabilidade civil ou responsabilidade penal, ou ambas as responsabilidades. Em razão disso, é importante distinguir a responsabilidade civil da responsabilidade penal. Na responsabilidade civil o interesse lesado é privado, ao passo que na responsabilidade penal o interesse lesado é o da sociedade.

Além dessa diferença básica, outras são importantes. A responsabilidade penal é pessoal, intransferível, respondendo o réu com a privação de liberdade, exceto quando se tratar de pessoa jurídica. De outro lado, a responsabilidade civil é patrimonial, onde o patrimônio do devedor responde por suas obrigações, visto que ninguém poderá ser preso por dívida civil, exceto por dívida de alimentos.

A responsabilidade pode ser da pessoa física ou de pessoa jurídica. Aqui será abordada tão somente a responsabilidade da pessoa jurídica, disposta na forma do § 5º, art. 173, CF/88: “A lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-a as punições compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular”.

No mesmo sentido, o legislador constituinte deu nova ênfase conforme disposto no art. 225, § 3º, CF/88: “as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados”.

A responsabilidade penal da pessoa jurídica em crimes ambientais pode ser aplicada, em razão de sua regulamentação prevista no art. 3º da Lei 9.605/98, diferentemente do art. 173, § 5º, CF/88, que ainda não foi regulamentado. Sendo assim não caberá a aplicação da responsabilidade penal da pessoa jurídica nos crimes praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular.

No entendimento de Sakae338 diferentemente das esferas civil e administrativa, a responsabilização penal da Pessoa Jurídica ainda é muito debatida, observando-se a corrente daqueles que não admitem a responsabilização penal das pessoas jurídicas, dos que propõem a aplicação de medidas especiais e os que consideram necessária a responsabilização penal.

337 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, p. 42.338 SAKAE, Lúcia, Reiko, A responsabilidade penal da pessoa jurídica, 2004, p. 48.

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4. A RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA

A responsabilidade penal da pessoa jurídica, talvez o tema mais controvertido dentro do Direito Penal, vem sendo adotada em muitos países nos crimes contra a ordem econômica e o meio ambiente. Nos países que seguem o sistema da common law, tal responsabilidade é aceita sem restrições, ao passo que nos países da chamada família romano-germânica, surge forte movimento em tal sentido.

O interesse pelo tema deve-se principalmente ao papel cada vez mais importante desempenhado pelas pessoas jurídicas na sociedade moderna vinculada ao fenômeno da criminalidade econômica como a ordem econômica, as relações de consumo, ao meio ambiente, etc.

Freitas339 destaca que no Brasil:

A Constituição Federal de 1988 inovou em duas oportunidades. A primeira foi ao tratar dos princípios gerais do sistema econômico, disposto no art. 173, § 5º, que a lei poderá responsabilizar a pessoa jurídica nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular. Até o presente momento não foi editada norma legal. A segunda, de forma mais explicita, refere-se aos crimes ambientais. No art. 225, § 3º, ela estabeleceu que as condutas e atividades lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas e jurídicas, às sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.

Diversos doutrinadores brasileiros ao interpretarem tal dispositivo posicionam no sentido de que ele não atribuía responsabilidade penal às pessoas jurídicas. Para Freitas340 a interpretação da Carta Magna foi clara quando usou o conectivo “e” entre as palavras penais e administrativas, desejou penalizar as pessoas jurídicas das duas formas, cumulativamente.

Em seguida, por ocasião da Lei 9.605/98, art. 3º, o legislador especificou esta reponsabilidade quando atribuiu responsabilidade penal à pessoa jurídica. É impossível a argumentação de que se trata de eventual inconstitucionalidade, uma vez agora há previsão constitucional e na norma legal.

Em que pese a existência de inúmeras teorias para explicar a responsabilização penal da pessoa jurídica, duas teorias merecem destaque especial, quais sejam a teoria da ficção jurídica e a teoria da realidade objetiva ou orgânica.

339 FREITAS, Vladimir Passos de; FREITAS, Gilberto Passos de. Crimes contra a natureza, 2012, p. 69.340 FREITAS, Vladimir Passos de; FREITAS, Gilberto Passos de. Crimes contra a natureza, p.70.

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4.1. TEORIAS DA FICÇÃO E DA REALIDADE OBJETIVA

A teoria da ficção tem fundamento no princípio societas delinquere non potest, expressão em latim que significa “a sociedade não pode delinquir”, onde o direito romano não admitia a responsabilização penal da pessoa jurídica. Seguindo esse fundamento no final do século XVIII foi imposta a teoria da ficção de Feuerbach e Friedrich Karl von Savigny.

Prado341, nesta teoria, afirma que “as pessoas jurídicas tem existência fictícia, irreal ou de pura abstração, devido a um privilégio lícito da autoridade soberana -, sendo, portanto, incapazes de delinquir (carecem de vontade e de ação)”. Somente o ser humano seria capaz de ser titular de relações jurídicas, por ser o único dotado de real vontade e capacidade de ação.

O referido doutrinador esclarece que o Direito Penal considera o homem natural, um ser livre e inteligente, ao passo que a pessoa jurídica é um ser abstrato, não possuindo tais características. Os delitos que podem ser imputados à pessoa jurídica são praticados sempre por seus membros ou dirigentes, ou seja pessoas naturais, pouco importando se o interesse tenha servido de motivo ou de fim para o delito.

Surgiu, com Otto Gierke, na segunda metade do século XIX uma se-gunda - teoria da realidade, da personalidade real ou orgânica - em contraposi-ção à teoria da ficção.

Para Alves342, “A pessoa jurídica é dotada de existência real, porém, sua realidade não é igual a das pessoas naturais”. A pessoa jurídica tem personalidade real, dotada de vontade própria com capacidade de agir e de praticar ilícitos penais. É um ente de direitos e deveres; em consequência, é capaz de dupla responsabilidade: civil e penal.

4.2. POSIÇÕES DOUTRINÁRIAS

A partir dessas duas teorias surgem as três posições doutrinárias manifestando seu entendimento em relação à responsabilização da pessoa jurídica nos crimes ambientais. Apesar de previsão constitucional e infraconstitucional as posições doutrinárias são bastante divergentes.

A primeira corrente é bastante radical, uma vez que afirma categoricamente que pessoa jurídica não tem responsabilidade penal. Os fundamentos utilizados para o não reconhecimento da possibilidade de responsabilização penal da pessoa jurídica são a falta de capacidade de ação e de culpabilidade.

341 PRADO, Luiz Regis. Direito Penal do Ambiente, 2012, p. 133342 ALVES, Rodrigo Ribeiro de Magalhães, p. 24.

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De acordo com e entendimento de Smanio343 os defensores desta corrente apontam três princípios básicos: a) princípio da personalidade das penas, ou seja, somente é punível quem executou materialmente o ato criminoso; b) o princípio da individualidade da responsabilidade criminal, para o qual a responsabilidade criminal recai exclusiva e individualmente sobre os autores das infrações, bastando-lhe apenas a punição por via administrativa; c) princípio da intransmissibilidade da pena e da culpa, para o qual as penas não deverão ultrapassar, em nenhum caso, da pessoa que praticou a conduta, como barreiras insuperáveis para a criminalização dos entes coletivos.

Os defensores dessa corrente afirmam que a CF/88 não criou a responsabilidade penal da pessoa jurídica por dois motivos, O primeiro é que pela interpretação correta do art. 225, § 3º chega se a conclusão de que as condutas são atos das pessoas físicas, tendo, portanto responsabilidade penal, ao passo que as atividades são de pessoas jurídicas tendo estas apenas responsabilidade administrativa, sendo de ambas a responsabilidade civil.

O segundo motivo está previsto no art. 5º, XVL onde a pena não passará da pessoa do condenado. A pessoa jurídica não pode ser responsabilizada por crime cometido pela pessoa física sob pena de violação do princípio da pessoalidade da pena, da incomunicabilidade da pena ou intranscendência da responsabilidade penal. Assim o art. 3º da lei 9.605/98 seria considerado materialmente inconstitucional.

Pela segunda corrente doutrinária os argumentos são de que pessoa jurídica não comete crime. Esta corrente tem a sua base de argumentação na teoria da ficção jurídica em que as pessoas jurídicas são meras ficções jurídicas, puras abstrações legais desprovidas de vontade e finalidade.

Maciel344 justifica que as pessoas jurídicas não tem capacidade de conduta porque não agem com vontade e consciência e, portanto não atuando com dolo ou culpa não podem cometer crime. Além disso, não agem com culpabilidade, pois não tem os elementos da culpabilidade: a) não tem imputabilidade; b) não tem capacidade mental de entender; c) não tem potencial consciência de capacidade de saber que a conduta é proibida, assim não se pode exigir conduta diversa, já que não pratica conduta.

Para essa corrente haveria a necessidade de criação de uma teoria do crime própria para pessoas jurídica, pois a teoria do crime constante do Código Penal é construída em pressupostos exclusivamente humanos.

E por último a terceira corrente argumenta que pessoa jurídica comete crime de acordo com a teoria da realidade ou da personalidade real de Otto Gierke.

343 SMANIO, Gianpaalo Paggio. A responsabilidade penal da pessoa jurídica, 2004, p. 1.344 MACIEL, Sílvio. Responsabilidade penal nos crimes ambientais.

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Para Maciel345 os motivos para justificativa da responsabilização penal da pessoa jurídica são: a) a pessoa jurídica não é mera ficção legal, é uma realidade independente das pessoas que a compõe; b) a pessoa jurídica tem vontade, não no sentido humano, mas no sentido de vontade autônoma de decisões; c) pessoa jurídica tem culpabilidade, não a culpabilidade do finalismo, mas o que o Superior Tribunal de Justiça chama de culpabilidade social, portanto, elas sofrem pena, exceto a de prisão.

Na mesma direção é o entendimento de SANCTIS346

[...] as pessoas jurídicas possuem vontade própria e se exprimem pelos seus órgãos. Essa vontade independe da vontade de seus membros e constitui uma decorrência da atividade orgânica da empresa. Conclui-se, portanto, que diante dessa vontade própria é possível o cometimento de infrações, de forma consciente, visando à satisfação de seus interesses.

A Constituição Federal de 1988, em seu art. 225, § 3º e art. 3º, parágrafo único da Lei 9.605/98 adotam o sistema de dupla imputação ou simultânea. No referido sistema a responsabilidade penal da pessoa jurídica responsabiliza a pessoa jurídica, na pessoa do representante legal e pessoa física que cometeu um delito na esfera ambiental em favor dos interesses da entidade.

4.3. RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA DE DIREITO PÚBLICO

Do ponto de vista da responsabilidade penal do ente privado a aceitação doutrinária e jurisprudencial há uma aceitação crescente, o mesmo não se pode dizer quanto à responsabilização penal do Estado, havendo, portanto duas correntes doutrinárias opostas.

A primeira alega que é possível responsabilizar pessoa jurídica de direito público, uma vez que a CF/88, art. 225, § 3º e a Lei 9.605/98, art. 3º dizem simplesmente pessoa jurídica, não fazendo qualquer distinção entre pessoa jurídica de direito privado ou pessoa jurídica de direito publico. Assim, onde a lei não distingue não caberá ao interprete distinguir.

Alves347 entende que a atuação estatal deva sempre estar pautada na realização de um interesse público para que seja concebida como legítima, buscando-se esse interesse na lei, mas nem sempre a conduta de um ente estatal retratará na prática um interesse público.

345 MACIEL, Sílvio. Responsabilidade penal nos crimes ambientais.346 SANCTIS, Fausto. Responsabilidade penal da pessoa jurídica, 1999, p. 40.347 ALVES, Rodrigo Ribeiro de Magalhães, p. 43

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Mello348 conceitua interesse público como sendo “o interesse resultante do conjunto dos interesses que os indivíduos pessoalmente têm quando considerados em sua qualidade de membros da Sociedade e pelo simples fato de o serem”.

Alves349 também considera clara a possibilidade de uma pessoa jurídica de direito público cometer um ilícito penal na realização de um interesse secundário. Para ele não há incompatibilidade entre a responsabilidade penal do ente público e o requisito do art. 3º da Lei 9.605/98, o qual exige que a infração seja cometida em benefício ou no interesse da pessoa jurídica, tendo em vista a possibilidade de visualização de um interesse privado do Estado.

Em posição oposta a outra corrente diz que a responsabilização dos entes de natureza pública estaria relacionado à soberania estatal. Sendo o detentor exclusivo do jus puniendi, não seria adequado afirmar que o Estado possa punir a si próprio.

Para essa corrente as pessoa jurídicas de direito público existem pera perseguir objetivos lícitos. Quando há um crime ambiental, o desvio é sempre do administrador cabendo a ele ser responsabilizado criminalmente.

As penas restritivas de direito previstas no art. 22, Lei 9.605/98, quais são: suspensão total ou parcial (inciso I) e interdição temporária de estabelecimento, obra ou atividade (inciso II) não se aplicam ao Estado em função do princípio da continuidade do serviço público.

No entendimento de Maciel350 as sanções aplicadas às pessoas jurídicas de direito público recairão, em última instância, sobre os cidadãos que são os contribuintes do Estado por meio de tributos. As penas poderiam ser de prestação de serviços à comunidade ou penas restritivas de direito, o que seria incoerente já que é papel do Estado prestar serviços públicos.

4.4. POSIÇÃO JURISPRUDENCIAL

Mesmo com a Lei 9.605/98 criminalizando a conduta das pessoas jurídicas, o número de julgados decisões judiciais sobre o assunto ainda é reduzido.

Conforme observou Passos351 o que está ocorrendo é que a maioria absoluta dos crimes ambientais, de conformidade com os artigos 76 e 89 da Lei 9.099/95, admite transação ou suspensão do processo. Neste sentido, verifica-se que uma enorme quantidade de acordos vem sendo realizados em varas de todo o Brasil, não estando contempladas nas estatísticas.

As instâncias superiores da justiça federal e da justiça dos Estados tem se posicionado favorável a responsabilização criminal das pessoas jurídicas. Entre as decisões destacamos algumas.

348 MELO, 2007, APUD, ALVES, 2009.349 MELO, 2007, APUD, ALVES, p. 44.350 MACIEL, Sílvio.351 FREITAS, Vladimir Passos de & FREITAS, Gilberto Passos de. Crimes contra a natureza, p. 80.

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Passos352 destaca decisão do TJSC que reformou decisão do Juízo de primeiro grau e recebeu denúncia em caso de crime de poluição de rio:

Recurso criminal. Recurso em sentido estrito. Crime ambiental. Denúncia rejeitada. Reconhecimento da responsabilidade penal das pessoas jurídicas. Possibilidade ante o advento da Lei 9.605/98. Ausência de precedentes jurisprudenciais. Orientação doutrinária. Recurso provido. Completamente cabível a pessoa jurídica figurar no polo passivo da ação penal que tenta apurar a responsabilidade criminal por ela praticada contra o meio ambiente. TJSC, ReCrim 00.020968-6/São Miguel do Oeste, 1ª Câm. Crim. J. 13.03.2001, rel. Des. Solon d’Eça Neves.

No mesmo sentido o TRF - 4ª Reg. proferiu sentença:

Penal. Crime ambiental. Causar poluição ao meio ambiente mediante o lançamento de esgoto em arroio. Materialidade e autoria. Suficiente para configuração da materialidade e autoria do art. 54, caput, § 4º (rectius: § 2º), IV, e V, da Lei 9.605/98 a prova de que dejetos oriundos da atividade de um hotel administrado pelo acusado eram lançados em arroio fluvial apresentando índices de coliformes fetais acima do permitido em Resolução do Conama. TRF-4ª Reg. MAS 2002.04.01.054936-2/SC, 7ª T., j. 25.02.2003, rel. Des. Federal Vladimir Freitas.

Também o TJMG proferiu importante decisão, aceitando a responsabilidade penal das corporações:

Crime contra o ordenamento urbano e o patrimônio cultural. Anula-ção ad initio do processo. Alegação de impossibilidade de responsabi-lização penal da pessoa jurídica. Via inadequada do writ. Inexistência de ofensa a direito de locomoção. Atipicidade da conduta, inocência e causa de extinção da punibilidade não de demonstrada. Análise de matéria fático-probatória. Necessidade de exame acurado e valora-tivo dos autos. Impossibilidade pela estreita via do remédio heroi-co. Ordem denegada. TJMG, HC, 1.0000.05.426448-6/000/BH, j. 22.11.2005, rel. Des., Márcia Milanez.

A posição do Superior Tribunal de Justiça – STJ tem sido no sentido de criminalizar a pessoa jurídica juntamente com os seus dirigentes, de conformidade com o sistema da dupla imputação.

352 FREITAS, Vladimir Passos de; FREITAS, Gilberto Passos de. Crimes contra a natureza, p. 80.

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Assim o STJ decidiu:

EMENTA: Processual pena. Recurso especial. Crimes contra o meio ambiente. Denúncia rejeitada pelo E. Tribunal a quo. Sistema ou teoria da dupla imputação. Admite-se a responsabilidade penal da pessoa jurídica em crimes ambientais desde que que haja a imputação simultânea do ente moral e da pessoa física que atua em seu nome ou em seu benefício, uma vez que “não se pode compreender a responsabilização do ente moral dissociada da atuação de uma pessoa física, que age com elemento subjetivo próprio” cf. Resp 564960/SC, 5ª Turma, rel. Ministro Gilson Dipp, Dj de 13/06/2005 (Precedentes)

Recurso especial provido.

[...] A douta Subprocuradoria-Geral da República manifestou pelo provimento do recurso em parecer assim ementado:

A pessoa jurídica tem existência própria no ordenamento jurídico e pratica atos através da atuação de seus administradores, inclusive ações penalmente relevantes e típicas, sendo, assim, passível de responsabilização penal, nos termos da Lei 9.605/98, que veio regulamentar o art. 225, § 3º, da Constituição Federal.

Noutra vertente, a pessoa jurídica somente pode ser responsabilizada – e figurar no polo passivo da relação processual-penal – quando houver intervenção de uma pessoa física, que atue em nome e em benefício do ente moral, também denunciada; deve ainda, ainda, ser beneficiária direta ou indiretamente pela conduta praticada por decisão do seu representante legal ou contratual ou de seu órgão colegiado, o que ocorreu no caso. Precedentes.

Parecer pelo conhecimento e provimento do recurso, a fim de que seja reconhecida a legitimidade da pessoa jurídica de direito privado para figurar no polo passivo da presente relação processual-penal, retornado os autos ao Tribunal para analise do mérito do recurso de apelação interposto pela recorrida. REsp nº 889.528/SC (2006/0200330-2), rel. Ministro Felix Fischer.

Também o STF, conforme Freitas353 tem reconhecido a possibilidade de

353 FREITAS, Vladimir Passos de; FREITAS, Gilberto Passos de. Crimes contra a natureza, p. 86.

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pessoa jurídica ser processada criminalmente. Eis a ementa do histórico julgado:

Penal. Processual penal. Crime ambiental. Habeas corpus para tutelar pessoa jurídica acusada em ação penal. Admissibilidade. Inépcia da denúncia: inocorrência. Denúncia que relatou a suposta ação criminosa dos agentes, em vínculo direito com a pessoa jurídica coacusada. Característica interestadual do rio poluído que não afasta de todo a competência do Ministério Público Estadual. Ausência de justa causa e bis in idem. Inocorrência. Excepcionalidade da ordem de trancamento da ação penal. Ordem denegada.

I – Responsabilidade penal da pessoa jurídica, para ser aplicada, exige alargamento de alguns conceitos tradicionalmente empregado na seara criminal, a exemplo da culpabilidade, estendendo-se a elas também as medidas assecuratórias, como o habeas corpus.

II – Writ que dever ser havido como instrumento hábil para proteger pessoa jurídica contra ilegalidades ou abuso de poder quando figurar como corre em ação penal que apura a prática de delitos ambientais, para os quais é cominada pena privativa de liberdade.

III – Em crimes societários, a denúncia deve pormenorizar a ação dos denunciados no quanto possível, Não impede a ampla defesa, entretanto, quando se evidencia o vínculo dos denunciados com a ação da empresa denunciada.

IV – Ministério Público Estadual que também é competente para desencadear ação penal por crime ambiental, mesmo no caso de curso d’água transfronteiriços.

V – Em crimes ambientais, o cumprimento do Termo de Ajustamento de Conduta, com consequente extinção de punibilidade, não deve servir de salvo-conduto para que o agente volte a poluir.

VI – O trancamento de ação penal, por via de habeas corpus, é medida excepcional, que somente pode ser concretizada quando o fato narrado evidentemente não constituir crime, estive extinta a punibilidade, for manifesta a ilegitimidade de parte ou faltar condição exigida pela lei para o exercício da ação penal.

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VII – Ordem denegada.STF, HC 92.921/BA, 1ª T. j. 19.08.2009, rel. Min. Ricardo Lewandowski.

5. PENAS APLICÁVEIS AS PESSOAS JURÍDICAS

As penas aplicáveis às pessoas jurídicas estão previstas nos arts. 21 22 e 23 da Lei 9.605/98. No art. 21 as penas aplicáveis às pessoas jurídicas são: multa, restritivas de direito e prestação de serviços à comunidade podem ser isolada, cumulativa ou alternadamente.

Segundo Capez354 a pena de prestação de serviços à comunidade é uma espécie de pena restritiva de direitos. Em relação à multa deverá levar em conta a situação econômica do infrator em conformidade com o art. 6º, III, Lei 9.605/98.

O art. 22 prevê as penas restritivas de direito aplicáveis à pessoa jurídica que são: a) suspensão parcial ou total de atividades (inciso I) devem ser aplicada quando estiverem em desacordo com as disposições legais de proteção ao meio ambiente conforme previsto no § 1º; b) interdição temporária de estabelecimento, obra ou atividade (inciso II), quando estiver funcionando sem a devida autorização ou em desacordo com a concedida ou violando as disposições legais (§ 2º); c) proibição de contratar com o Poder Público, bem como obter doações, subvenções ou subsídios (inciso II), cujo prazo não poderá exceder a 10 anos.

As modalidades de prestação de serviços à comunidade pela pessoa jurídica estão previstas no art. 23 e são: a) custeio de programa e de projetos ambientais; b) execução de obras de recuperação de áreas degradadas; c) manutenção de espaços públicos e; d) contribuições a entidades ambientais ou culturais públicas.

Além disso, quando forem contrárias ao interesse do meio ambiente as pessoas jurídicas poderão ter a sua desconsideração (art. 4º) bem como a sua liquidação (art. 24), Lei 9.605/09.

A Lei 9.605/98 destinou um capítulo para tratar dos crimes contra o meio ambiente (art. 29 a 69-A). Neste capítulo estão caracterizadas as penas para as mais diversas modalidades de crimes: a) contra a fauna (art. 29 a 37); b) crimes contra a flora (art. 38 a 53); d) poluição e outros crimes ambientais (art. 54 a 61) e) crimes contra o ordenamento urbano e o patrimônio cultural (art. 62 a 65) e: f) crimes contra a administração ambiental (art. 66 a 69-A).

É importante destacar que grande parte dos crimes contra o meio ambiente cometidos por pessoas jurídicas, sejam elas privadas ou públicas. Diversas atividades econômicas poluidoras são desempenhadas por grandes

354 CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: legislação especial penal v. 4, 2012, p. 86.

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corporações transnacionais ou multinacionais, a exemplo de uma das atividades mais poluidoras e degradadoras do meio ambiente que é a mineração.

6. CONCLUSÃO

A preocupação com o meio ambiente ganhou dimensões a nível internacional a partir de 1972 com a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano. Esta preocupação no Brasil começou a ser implementada com a Lei 6.938/81 e sendo abordada de forma contundente com a Constituição Federal de 1988. Posteriormente foi regulamentada de forma objetiva com a Lei 9.605/98.

A legislação pátria permitiu a responsabilidade penal das pessoas físicas e jurídicas. Em relação às pessoas físicas há consenso entre doutrina, legislação e jurisprudência. A questão central é relativa a responsabilização das pessoas jurídicas nas esferas civil e administrativa. A divergência encontra-se na responsabilização penal das pessoas jurídicas.

A grande questão está relacionada quanto à responsabilização penal da pessoa jurídica. No aspecto legal tanto a legislação constitucional quanto a infraconstitucional são claras de que é perfeitamente correta tal responsabilização. Também a jurisprudência caminha na mesma direção.

A controvérsia está nas diversas correntes doutrinárias que possuem posições divergentes, em razão de interesses conflitantes entre penalistas e ambientalistas. Parece claro que com o tempo tais divergências serão suplantadas em razão do entendimento jurisprudencial que tem manifestado favoravelmente à punição penal das pessoas jurídicas.

Além disso, há ainda divergências quanto à responsabilização penal da pessoa jurídica de direito público. A legislação não diferencia a pessoa jurídica de direito privado da pessoa jurídica de direito público. Entendemos que ambas deverão ser responsabilizadas penalmente, uma vez que diversas atividades econômicas ou não econômicas causadoras de danos ambientais podem ser desempenhadas por entes da Administração direta nas esferas Federal, Estadual ou Municipal, bem como entidades da Administração indireta.

Assim, espera que tais as divergências doutrinárias possam caminhar na mesma direção, observando a legislação e a jurisprudência.

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