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2014 Curitiba Coleção CONPEDI/UNICURITIBA Organizadores PROF. DR. ORIDES MEZZAROBA PROF. DR. RAYMUNDO JULIANO REGO FEITOSA PROF. DR. VLADMIR OLIVEIRA DA SILVEIRA PROFª. DRª. VIVIANE COÊLHO DE SÉLLOS-KNOERR Vol. 24 DIREITOS FUNDAMENTAIS E DEMOCRACIA II Coordenadores PROF. DR. JONATHAN BARROS VITA PROFª. DRª. VALÉRIA RIBAS DO NASCIMENTO PROFª. DRª. DANIELA MENENGOTI RIBEIRO 2014 Curitiba

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2014 Curitiba

Coleção CONPEDI/UNICURITIBA

Organizadores

Prof. Dr. oriDes Mezzaroba

Prof. Dr. rayMunDo Juliano rego feitosa

Prof. Dr. VlaDMir oliVeira Da silVeira

Profª. Drª. ViViane Coêlho De séllos-Knoerr

Vol. 24

DIREITOS FUNDAMENTAIS E DEMOCRACIA II

Coordenadores

Prof. Dr. Jonathan Barros vita

Profª. Drª. valéria riBas Do nasciMento

Profª. Drª. Daniela Menengoti riBeiro

2014 Curitiba

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

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São Paulo Rua José Bonifácio, n. 209, cj. 603, Centro, São Paulo – SP CEP: 01.003-001 Acesse: www. editoraclassica.com.brRedes Sociais Facebook: http://www.facebook.com/EditoraClassica Twittter: https://twitter.com/EditoraClassica

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE

Equipe Editorial

EDITORA CLÁSSICA

Allessandra Neves FerreiraAlexandre Walmott Borges Daniel Ferreira Elizabeth Accioly Everton Gonçalves Fernando Knoerr Francisco Cardozo de Oliveira Francisval Mendes Ilton Garcia da Costa Ivan Motta Ivo Dantas Jonathan Barros VitaJosé Edmilson Lima Juliana Cristina Busnardo de Araujo Lafayete PozzoliLeonardo Rabelo Lívia Gaigher Bósio Campello Lucimeiry Galvão

Luiz Eduardo GuntherLuisa Moura Mara Darcanchy Massako Shirai Mateus Eduardo Nunes Bertoncini Nilson Araújo de Souza Norma Padilha Paulo Ricardo Opuszka Roberto Genofre Salim Reis Valesca Raizer Borges Moschen Vanessa Caporlingua Viviane Coelho de Séllos-Knoerr Vladmir Silveira Wagner Ginotti Wagner Menezes Willians Franklin Lira dos Santos

Conselho Editorial

D597Direitos fundamentais e democracia II

Coleção Conpedi/Unicuritiba.Organizadores : Orides Mezzaroba / Raymundo Juliano Rego Feitosa / Vladmir Oliveira da Silveira / Viviane Coêlho Séllos-Knoerr.Coordenadores : Jonathan Barros Vita/Valéria Ribas do Nascimento / Daniela Menegoti Ribeiro.Título independente - Curitiba - PR . : vol.24 - 1ª ed. Clássica Editora, 2014.456p. :

ISBN 978-85-8433-012-6

1. Ativismo judicial. 2. Direitos humanos. 3. Eleição.I. Título. CDD 341.28

Editora Responsável: Verônica GottgtroyCapa: Editora Clássica

Editora Responsável: Verônica GottgtroyCapa: Editora Clássica

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MEMBROS DA DIRETORIA Vladmir Oliveira da Silveira

Presidente Cesar Augusto de Castro Fiuza

Vice-Presidente Aires José Rover

Secretário Executivo Gina Vidal Marcílio Pompeu

Secretário-Adjunto

Conselho Fiscal Valesca Borges Raizer Moschen

Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer Feitosa João Marcelo Assafim

Antonio Carlos Diniz Murta (suplente) Felipe Chiarello de Souza Pinto (suplente)

Representante Discente Ilton Norberto Robl Filho (titular)

Pablo Malheiros da Cunha Frota (suplente)

Colaboradores

Elisangela Pruencio Graduanda em Administração - Faculdade Decisão

Maria Eduarda Basilio de Araujo Oliveira Graduada em Administração - UFSC

Rafaela Goulart de Andrade Graduanda em Ciências da Computação – UFSC

DiagramadorMarcus Souza Rodrigues

XXII ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI/ UNICURITIBACentro Universitário Curitiba / Curitiba – PR

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Sumário

APRESENTAÇÃO ........................................................................................................................................

A INSTÂNCIA PRIMORDIAL DE PODER NA CONSTITUIÇÃO NA PESPECTIVA DE UM DISCURSO CONSTITUCIONAL CONTEMPORÂNEO E O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO (Augusto Carlos Cavalcante Melo e Daniela Lima Barreto) ...................................................................................................

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

O PODER E A SUA INSTÂNCIA PRIMORDIAL ............................................................................................

O POVO NA ANÁLISE DE FRIEDRICH MÜLLER .........................................................................................

O POVO AUTÊNTICO E PLURAL. TEORIAS DO RECONHECIMENTO COMO APORTES TEÓRICOS A UMA REVISÃO DA VISÃO CLÁSSICA DO PODER CONSTITUINTE ............................................................

A QUESTÃO DA PARTICIPAÇÃO DO POVO ...............................................................................................

A QUESTÃO DA LEGITIMAÇÃO POPULAR ................................................................................................

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

REFLEXÕES SOBRE A DEMOCRACIA DE OBER E ROSENFELD E O ATIVISMO JUDICIAL (Gryecos Attom Valente Loureiro) .............................................................................................................................

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

DIREITOS FUNDAMENTAIS NO CONTEXTO CONSTITUCIONAL ..............................................................

DEMOCRACIA E ATIVISMO JUDICIAL .......................................................................................................

CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

CONSTITUCIONALISMO E DEMOCRACIA: A ATUAÇÃO CONTRAMAJORITÁRIA DOS TRIBUNAIS CONSTITUCIONAIS É LEGÍTIMA DO PONTO DE VISTA DEMOCRÁTICO? (Carlos Eduardo Reis Fortes do Rego) ..........................................................................................................................................

A APARENTE CONTRADIÇÃO ....................................................................................................................

AÇÃO COLETIVA ESTATÍSTICA E AÇÃO COLETIVA COMUNITÁRIA ..........................................................

A LEGITIMAÇÃO ARGUMENTATIVA DAS DECISÕES CONTRAMAJORITÁRIAS .......................................

CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

AS REFLEXÕES SOBRE O GOVERNO REPRESENTATIVO DE STUART MILL E A FILOSOFIA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA (Eduardo Seino Wiviurka e Aloísio Cansian Segundo) ...............................................

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INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

SOBRE AS INSTITUIÇÕES POLÍTICAS ........................................................................................................

SOBRE O SUFRÁGIO E O VOTO: O ALCANCE DAS CONSIDERAÇÕES DE MILL NA PROBLEMÁTICA POLÍTICA ATUAL ........................................................................................................................................

O PROBLEMA DA PLURALIDADE ..............................................................................................................

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

O DIREITO DE PETIÇÃO SOB PERSPECTIVA - UMA PROPOSTA PARA A AMPLIAÇÃO DO DEBATE DEMOCRÁTICO NO CONTROLE CONCENTRADO DE CONSTITUCIONALIDADE (Eneida Desiree Salgado e Geisla Aparecida Van Haandel Mendes) .....................................................................................

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

O DIREITO DE PETIÇÃO COMO DIREITO DE ÍNDOLE ESSENCIALMENTE DEMOCRÁTICA .........................

O DIREITO FUNDAMENTAL DE PETIÇÃO COMO DIREITO SUBJETIVO PÚBLICO ...................................

O EXERCÍCIO DO DIREITO DE PETIÇÃO NO CONTROLE CONCENTRADO DE CONSTITUCIONALIDADE

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

OS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS DE DESENVOLVIMENTO E ACESSO À JUSTIÇA SOB O PRISMA DA DIGNIDADE HUMANA (Fabio Antunes Possato e Adriana Silva Maillart) ...............................

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

OS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS DE ACESSO À JUSTIÇA E DESENVOLVIMENTO NO ESTADO DEMOCRÁTICO BRASILEIRO .....................................................................................................................

O DIREITO DE ACESSO À JUSTIÇA E SUAS VICISSITUDES ........................................................................

O DIREITO AO DESENVOLVIMENTO COMO GARANTIA FUNDAMENTAL ..............................................

ACESSO À JUSTIÇA E DESENVOLVIMENTO SOB A ÓTICA DA DIGNIDADE HUMANA ...............................

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

PRINCÍPIOS DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, DA FRATERNIDADE E DA IGUALDADE: SUAS CORRELAÇÕES E ATUAÇÃO NOS FUNDAMENTOS DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS (Rodrigo Espiúca dos Anjos Siqueira e Daniela Menengoti Ribeiro) .......................................................................................

A CORRELAÇÃO ENTRE OS MOVIMENTOS HISTÓRICO-FILOSÓFICOS COM A EVOLUÇÃO/REGRESSÃO DOS DIREITOS HUMANOS ........................................................................................................................

OS PROCESSOS HISTÓRICO-CULTURAIS QUE MARCARAM A CONSTRUÇÃO NO SENSO COMUM DA REPRESENTAÇÃO SOCIAL DOS DIREITOS HUMANOS NO BRASIL ..........................................................

A EFICÁCIA VERTICAL DAS NORMAS DE DIREITOS FUNDAMENTAIS ....................................................

A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS ..........................................

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O DIREITO FUNDAMENTAL DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA .......................................................

CONSIDERAÇÕES ACERCA DAS RELAÇÕES ENTRE A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, A LIBERDADE E A IGUALDADE COMO FUNDAMENTOS DA EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS .......................

EFICÁCIA HORIZONTAL DAS NORMAS DE DIREITOS FUNDAMENTAIS ..................................................

CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

DIREITO À MORADIA NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA – CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DE SUA POSITIVAÇÃO E FUNDAMENTAÇÃO (Maria Amélia da Costa) ................................................................

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

O RECONHECIMENTO EXPRESSO DO DIREITO À MORADIA COMO DIREITO SOCIAL ...............................

DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS: DIREITOS DE IGUALDADES E DIFERENÇAS .................................

A FUNDAMENTAÇÃO DO DIREITO À MORADIA NO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

O ESPAÇO PÚBLICO PRISIONAL – INFLUÊNCIAS NAS SUBJETIVIDADES, IMPACTOS NOS DIREITOS DA PERSONALIDADE E A INCIDÊNCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS (Cristhian Magnus De Marco e André Luiz Alves) ......................................................................................................................................

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

O ESPAÇO PÚBLICO PRISÃO E SUAS INFLUÊNCIAS NAS SUBJETIVIDADES DOS INTERNOS .....................

O ESPAÇO PÚBLICO PRISÃO E SUAS INFLUÊNCIAS NAS SUBJETIVIDADES DOS FUNCIONÁRIOS QUE AS OPERACIONALIZAM ............................................................................................................................

IMPACTOS NOS DIREITOS DA PERSONALIDADE GERADOS PELAS INFLUÊNCIAS NAS SUBJETIVIDADES QUE TENDEM SER PRODUZIDAS NO ESPAÇO PÚBLICO PRISÃO ............................................................

INCIDÊNCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS SOBRE AS SUBJETIVIDADES DOS ORBITANTES DO ESPAÇO PÚBLICO PRISÃO E IRRADIAÇÕES DESSA INCIDÊNCIA NA LEGISLAÇÃO VIGENTE ....................

OPERACIONALIZAÇÃO PRISIONAL COM ABORDAGEM INTERDISCIPLINAR, NORTEADA ESTRATÉGI-CA CIENTIFICAMENTE E FOCALIZADA NO DESENVOLVIMENTO HUMANO .........................................

CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

FUNDAMENTABILIDADE E INTERDEPENDÊNCIA DOS DIREITOS À IGUALDADE E AO AMBIENTE EQUILIBRADO (Nubya Cirqueira de Castro) ..............................................................................................

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

O DIREITO AO AMBIENTE EQUILIBRADO COMO DIREITO FUNDAMENTAL ..........................................

O DIREITO À IGUALDADE COMO DIREITO FUNDAMENTAL ....................................................................

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INTERDEPENDÊNCIA DOS DOIS DIREITOS E O PAPEL DO ESTADO .........................................................

CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................

REFERÊNCIAS ...........................................................................................................................................

O DIREITO À EDUCAÇÃO E O DIREITO AO TRABALHO À LUZ DO MULTICULTURALISMO (Vanessa Vieira Pessanha) .........................................................................................................................................

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

BREVES LINHAS ACERCA DO MULTICULTURALISMO ..............................................................................

DIREITOS FUNDAMENTAIS À EDUCAÇÃO E AO TRABALHO ...................................................................

DIREITO À EDUCAÇÃO E DIREITO AO TRABALHO À LUZ DO MULTICULTURALISMO ...............................

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................

REFERÊNCIAS.............................................................................................................................................

DA NECESSIDADE DE EFETIVAÇÃO DO DIREITO À EDUCAÇÃO POR MEIO DE POLÍTICAS PÚBLICAS (Ivan Dias da Motta e Tatiana Richetti) ........................................................................................................

CONSIDERAÇÕES INICIAIS ACERCA DO DIREITO À EDUCAÇÃO .............................................................

DA NECESSIDADE DE EFETIVAÇÃO DO DIREITO À EDUCAÇÃO POR MEIO DE POLÍTICAS PÚBLICAS E POR MEIO DE TUTELA JURISDICIONAL ...................................................................................................

CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

UMA ANÁLISE CRÍTICA SOBRE OS MECANISMOS JURÍDICOS DE EFETIVIDADE DO DIREITO FUNDAMENTAL À INFORMAÇÃO PÚBLICA NO BRASIL (Ana Maria D´Ávila Lopes e Isabelle Maria Campos Vasconcelos Chehab)....................................................................................................................................

INTRODUÇÃO.............................................................................................................................................

DELIMITAÇÃO HISTÓRICA-CONCEITUAL .................................................................................................

MECANISMOS JURÍDICOS PARA A EFETIVIDADE DO DIREITO FUNDAMENTAL À INFORMAÇÃO ......

CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

TITULAÇÃO DAS TERRAS QUILOMBOLAS: EFETIVIDADE E (IN)CONSTITUCIONALIDADE DA REGULAMENTAÇÃO (Germene Mallmann) ..............................................................................................

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

ASPECTOS FORMAIS E MATERIAIS DA REGULAMENTAÇÃO DO ARTIGO 68 DO ATO DAS DISPOSIÇÕES CONSTITUCIONAIS TRANSITÓRIAS .........................................................................................................

A IDENTIFICAÇÃO DOS REMANESCENTES DE QUILOMBO NA ATUALIDADE ........................................

FUNÇÃO SOCIAL DA POSSE E DA PROPRIEDADE: O SIGNIFICADO DOS TERRITÓRIOS PARA AS CULTURAS TRADICIONAIS ........................................................................................................................

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INTERPRETAÇÃO E EFETIVIDADE DA TITULAÇÃO DE TERRAS ÀS COMUNIDADES REMANESCENTES DE QUILOMBO ..........................................................................................................................................

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................

BIBLIOGRAFIA ...........................................................................................................................................

SOBREPOSIÇÃO DE UNIDADES DE CONSERVAÇÃO EM TERRAS INDÍGENAS NO ESTADO DE RORAIMA (Priscilla Cardoso Rodrigues e Rafael Reis Ferreira) ..................................................................

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

SISTEMA NACIONAL DE UNIDADES DE CONSERVAÇÃO E POVOS INDÍGENAS .....................................

SITUAÇÃO ATUAL DAS TERRAS INDÍGENAS E DAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO EM RORAIMA .......

DIREITOS FUNDAMENTAIS AMBIENTAIS E INDÍGENAS E A (IN)COMPATIBILIDADE JURÍDICA DA SOBREPOSIÇÃO ........................................................................................................................................

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

COMPONENTES PARA UM PADRÃO AVANÇADO DE DEMOCRACIA (Gabriel Lima Marques e Fernanda Bragança) ....................................................................................................................................

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

O REPUBLICANISMO DE PHILIP PETTIT: A CONTESTAÇÃO COMO INSTRUMENTO PARA O ALCANCE DE UM PADRÃO AVANÇADO DE DEMOCRACIA ......................................................................................

A VIRTUDE CÍVICA DE RICHARD DAGGER: REFORMULAÇÃO E CIDADANIA ATIVA ...............................

O REPUBLICANISMO DELIBERATIVO DE CASS SUNSTEIN: DELIBERAÇÃO E MINIMALISMO JUDICIAL

CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

PRINCÍPIO DA PARTICIPAÇÃO, CONSENSUALISMO E AUDIÊNCIAS PÚBLICAS (Janaína Rigo Santin e Vinícius Francisco Toazza) ...........................................................................................................................

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

DEMOCRACIA, PARTICIPAÇÃO E SOCIEDADE CIVIL ................................................................................

PODER LOCAL, GOVERNAÇÃO E CONTROLE SOCIAL ..............................................................................

O PRINCÍPIO DA PARTICIPAÇÃO E O CONSENSUALISMO .......................................................................

AUDIÊNCIAS PÚBLICAS .............................................................................................................................

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

DEMOCRACIA COMO FUNDAMENTO PARA AS ELEIÇÕES SINDICAIS (Clovis Renato Costa Farias) .....

A NECESSIDADE DA REPRESENTAÇÃO SINDICAL DEMOCRATICAMENTE CONSTITUÍDA E MANTIDA

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ELEIÇÕES SINDICAIS E OS DESCOMPASSOS PARA A PERPETUAÇÃO DO PODER ..................................

CASOS CONFLITUOSOS DE ELEIÇÕES SINDICAIS COM ÊNFASE NO ESTADO DO CEARÁ ...........................

CONCLUSÕES ............................................................................................................................................

BIBLIOGRAFIA ..........................................................................................................................................

A INFIDELIDADE PARTIDÁRIA DEPOIS DAS CONSULTAS N. 1.369 E N. 1.407 AO TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL E O ATUAL POSICIONAMENTO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (Filomeno Moraes e Marcus Pinto Aguiar) ..................................................................................................................................

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL E A EVOLUÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA DO STF NO JULGAMENTO DO MANDADO DE SEGURANÇA N. 26.602 DE 2007 .......................................................................................

A INFIDELIDADE PARTIDÁRIA A PARTIR DA CONSULTA N. 1.398 AO TSE ...............................................

A AMPLIAÇÃO DA PERDA DE MANDATO POR INFIDELIDADE PARTIDÁRIA PARA AS ELEIÇÕES MAJORITÁRIAS ..........................................................................................................................................

CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

BANALIZAÇÃO DAS CAMPANHAS ELEITORAIS: UMA ANÁLISE CRÍTICA DA PROPAGANDA POLÍTICA DIANTE DO SISTEMA DEMOCRÁTICO (Felipe Braga Albuquerque) .......................................

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

O OBJETIVO DA PROPAGANDA POLÍTICA – LEGITIMIDADE NO PROCESSO ELEITORAL ...........................

OS CIDADÃOS TÊM CAPACIDADE DE FAZEREM JUÍZOS AUTÔNOMOS ACERCA DO PROCESSO ELEI-TORAL? ......................................................................................................................................................

VEDAÇÃO JURÍDICA À BANALIZAÇÃO DAS CAMPANHAS ELEITORAIS ..................................................

CONCEITO DE PROPAGANDA ELEITORAL ................................................................................................

CASOS DE BANALIZAÇÃO DAS CAMPANHAS ELEITORAIS ......................................................................

IMPUGNAÇÃO DA PROPAGANDA ELEITORAL BANAL NO HORÁRIO ELEITORAL GRATUITO ..................

CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

PRESTAÇÃO DE CONTAS DE CAMPANHAS ELEITORAIS: (IN)DIFERENÇAS PRÁTICAS ENTRE A APROVAÇÃO, APROVAÇÃO COM RESSALVAS, REJEIÇÃO E NÃO PRESTAÇÃO DE CONTAS ELEITORAIS (Lucas de Oliveira Gelape e Luísa Ferreira Vidal) ....................................................................

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

DEMOCRACIA, ELEIÇÕES, FINANCIAMENTO DE CAMPANHAS E REFORMA POLÍTICA ............................

FINANCIAMENTO DE CAMPANHAS ELEITORAIS: DISPOSIÇÕES LEGAIS ...............................................

O PROCESSO DE PRESTAÇÃO DE CONTAS DE CAMPANHAS ELEITORAIS ...............................................

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DECISÕES QUANTO À PRESTAÇÃO DE CONTAS: APROVAÇÃO, APROVAÇÃO COM RESSALVAS, DESAPROVAÇÃO E NÃO PRESTAÇÃO DE CONTAS ...................................................................................

DIFERENÇAS PRÁTICAS DAS DIVERSAS DECISÕES SOBRE CONTAS ELEITORAIS ...................................

CRÍTICAS À APLICAÇÃO DAS DECISÕES QUANTO A PRESTAÇÃO DE CONTAS .......................................

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................

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Caríssimo(a) Associado(a),

Apresento o livro do Grupo de Trabalho Direitos Fundamentais e Democracia II, do

XXII Encontro Nacional do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Direito

(CONPEDI), realizado no Centro Universitário Curitiba (UNICURUTIBA/PR), entre os dias

29 de maio e 1º de junho de 2013.

O evento propôs uma análise da atual Constituição brasileira e ocorreu num ambiente

de balanço dos programas, dada a iminência da trienal CAPES-MEC. Passados quase 25 anos

da promulgação da Carta Magna de 1988, a chamada Constituição Cidadã necessita uma

reavaliação. Desde seus objetivos e desafios até novos mecanismos e concepções do direito,

nossa Constituição demanda reflexões. Se o acesso à Justiça foi conquistado por parcela

tradicionalmente excluída da cidadania, esses e outros brasileiros exigem hoje o ponto final do

processo. Para tanto, basta observar as recorrentes emendas e consequentes novos

parcelamentos das dívidas dos entes federativos, bem como o julgamento da chamada ADIN

do calote dos precatórios. Cito apenas um dentre inúmeros casos que expõem os limites da

Constituição de 1988. Sem dúvida, muitos debates e mesas realizados no XXII Encontro

Nacional já antecipavam demandas que semanas mais tarde levariam milhões às ruas.

Com relação ao CONPEDI, consolidamos a marca de mais de 1.500 artigos submetidos,

tanto nos encontros como em nossos congressos. Nesse sentido é evidente o aumento da

produção na área, comprovável inclusive por outros indicadores. Vale salientar que apenas no

âmbito desse encontro serão publicados 36 livros, num total de 784 artigos. Definimos a

mudança dos Anais do CONPEDI para os atuais livros dos GTs – o que tem contribuído não

apenas para o propósito de aumentar a pontuação dos programas, mas de reforçar as

especificidades de nossa área, conforme amplamente debatido nos eventos.

Por outro lado, com o crescimento do número de artigos, surgem novos desafios a

enfrentar, como o de (1) estudar novos modelos de apresentação dos trabalhos e o de (2)

aumentar o número de avaliadores, comprometidos e pontuais. Nesse passo, quero agradecer a

todos os 186 avaliadores que participaram deste processo e que, com competência, permitiram-

nos entregar no prazo a avaliação aos associados. Também gostaria de parabenizar os autores

COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 24 - Direitos Fundamentais e Democracia II

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selecionados para apresentar seus trabalhos nos 36 GTs, pois a cada evento a escolha tem sido

mais difícil.

Nosso PUBLICA DIREITO é uma ferramenta importante que vem sendo aperfeiçoada

em pleno funcionamento, haja vista os raros momentos de que dispomos, ao longo do ano, para

seu desenvolvimento. Não obstante, já está em fase de testes uma nova versão, melhorada, e

que possibilitará sua utilização por nossos associados institucionais, tanto para revistas quanto

para eventos.

O INDEXA é outra solução que será muito útil no futuro, na medida em que nosso

comitê de área na CAPES/MEC já sinaliza a relevância do impacto nos critérios da trienal de

2016, assim como do Qualis 2013/2015. Sendo assim, seus benefícios para os programas serão

sentidos já nesta avaliação, uma vez que implicará maior pontuação aos programas que

inserirem seus dados.

Futuramente, o INDEXA permitirá estudos próprios e comparativos entre os

programas, garantindo maior transparência e previsibilidade – em resumo, uma melhor

fotografia da área do Direito. Destarte, tenho certeza de que será compensador o amplo esforço

no preenchimento dos dados dos últimos três anos – principalmente dos grandes programas –,

mesmo porque as falhas já foram catalogadas e sua correção será fundamental na elaboração da

segunda versão, disponível em 2014.

Com relação ao segundo balanço, após inúmeras viagens e visitas a dezenas de

programas neste triênio, estou convicto de que o expressivo resultado alcançado trará

importantes conquistas. Dentre elas pode-se citar o aumento de programas com nota 04 e 05,

além da grande possibilidade dos primeiros programas com nota 07. Em que pese as

dificuldades, não é possível imaginar outro cenário que não o da valorização dos programas do

Direito. Nesse sentido, importa registrar a grande liderança do professor Martônio, que soube

conduzir a área com grande competência, diálogo, presença e honestidade. Com tal conjunto de

elementos, já podemos comparar nossos números e critérios aos das demais áreas, o que será

fundamental para a avaliação dos programas 06 e 07.

COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 24 - Direitos Fundamentais e Democracia II

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Com relação ao IPEA, cumpre ainda ressaltar que participamos, em Brasília, da III

Conferência do Desenvolvimento (CODE), na qual o CONPEDI promoveu uma Mesa sobre o

estado da arte do Direito e Desenvolvimento, além da apresentação de artigos de pesquisadores

do Direito, criteriosamente selecionados. Sendo assim, em São Paulo lançaremos um novo

livro com o resultado deste projeto, além de prosseguir o diálogo com o IPEA para futuras

parcerias e editais para a área do Direito.

Não poderia concluir sem destacar o grande esforço da professora Viviane Coêlho de

Séllos Knoerr e da equipe de organização do programa de Mestrado em Direito do

UNICURITIBA, que por mais de um ano planejaram e executaram um grandioso encontro.

Não foram poucos os desafios enfrentados e vencidos para a realização de um evento que

agregou tantas pessoas em um cenário de tão elevado padrão de qualidade e sofisticada

logística – e isso tudo sempre com enorme simpatia e procurando avançar ainda mais.

Curitiba, inverno de 2013.

Vladmir Oliveira da Silveira

Presidente do CONPEDI

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Apresentação

O XXII Encontro Nacional do CONPEDI – Conselho Nacional de Pesquisa e

Pós-Graduação em Direito – sob o tema “25 anos da Constituição cidadã: Os atores sociais e a

concretização sustentável dos objetivos da república”, realizado em Curitiba entre os dias 29 de

maio a 1o de junho de 2013, manteve uma série de inovações criadas por sua diretoria

capitaneada pelo Dr. Vladmir Silveira, entre as quais a divisão dos já tradicionais Anais do

Evento em vários livros distintos, cada um para um Grupo de Trabalho.

Neste sentido, muito mais foco e maior possibilidade de difusão dos trabalhos

foram criados, pois um fio condutor dos artigos pode ser (re)produzido através da coordenação

desta obra, realizada pelos coordenadores dos GTs.

No caso concreto do Grupo de Trabalho “Direitos Fundamentais e Democracia

II”, esta experiência se revela como fundamental, pois apresentar a vinculação entre estes dois

temas esta no centro das atuais especulações dos estudiosos do direito da pós-modernidade.

No sentido de organizar a ordem dos 21 artigos apresentados neste grupo de

trabalho, estes foram (re)organizados em três grandes eixos temáticos, sendo que o primeiro

envolveu o ativismo judicial (neoconstitucionalismo x positivismo) e controle de

constitucionalidade, compreendendo os artigos de 1 a 5 da coletânea. O segundo e maior destes

grupos envolve temas de direitos humanos e direitos fundamentais, compreendendo os artigos

6 a 15. Já o terceiro e último destes grupos envolveu os artigos 16 a 21 e tratou da democracia,

dos direitos políticos e das campanhas eleitorais.

Alguns textos se utilizaram de abordagens históricas, outros se preocuparam em

revisitar obras de autores mais conhecidos a partir de uma nova leitura, enquanto terceiros

foram hábeis em alocar tais temas à luz da pragmática contemporânea, incluindo o processo

eleitoral ou as decisões judiciais.

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Conclusivamente, reitera-se que é um prazer apresentar tal obra que, sem dúvida,

colaborará para a propagação de novas pesquisas no Brasil com a grande colaboração e

organização do CONPEDI e das entidades apoiadoras do evento.

Coordenadores do Grupo de Trabalho

Professor Doutor Jonathan Barros Vita – UNIMAR

Professora Doutora Valéria Ribas do Nascimento – UFSM

Professora Doutora Daniela Menengoti Ribeiro – UNOESC

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A INSTÂNCIA PRIMORDIAL DE PODER NA CONSTITUIÇÃO NA

PESPECTIVA DE UM DISCURSO CONSTITUCIONAL CONTEMPORÂNEO E O

ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

Augusto Carlos Cavalcante Melo*

Daniela Lima Barreto

RESUMO

O presente estudo faz uma análise do tema “poder”, partindo da premissa do texto constitucional brasileiro, das discussões filosóficas a este respeito, e das características históricas do exercício do poder e da sua atribuição ao povo. Descreve a análise feita por Friedrich Müller acerca do que seja o povo como uma simples metáfora em uma retórica ideológica, a utilização icônica do conceito de povo, o conceito de povo enquanto instância de atribuição, o povo enquanto destinatário de prestações civilizatórias do Estado, e o problema da exclusão de grupos populacionais inteiros de todos os sistemas funcionais da sociedade. Analisa, com base nos fundamentos teóricos do reconhecimento desenvolvidos por Axell Honneth e Nancy Fraser, a necessidade de reenquadramento do “povo” titular do poder constituinte, afastando-o de uma perspectiva abstrata e homogeneizante e aproximando-o de um “povo” autêntico e plural capaz de conter toda a diversidade de grupos e indivíduos. Examina as características da participação popular e a contribuição de Hannah Arendt para o exercício pleno da liberdade política enquanto questão essencial da democracia. Por fim, discute a questão da legitimação popular na perspectiva da teoria discursiva do Direito proposta por Habermas e o exercício do Poder Constituinte. PALAVRAS-CHAVE: Poder; Povo; Poder Constituinte; Reconhecimento, Identidade,

Democracia; Participação Popular.

*Mestrando em Direito pela Universidade Federal de Sergipe, na linha de pesquisa “Concretização dos Direitos Fundamentais e seus Reflexos nas Relações Sociais e Empresariais” Mestranda em Direito pela Universidade Federal de Sergipe, vinculada à linha de pesquisa “Violência e Criminalidade na Contemporaneidade”

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LA PRINCIPAL INSTANCIA DE PODER EN LA CONSTITUCIÓN EN LA

PERSPECTIVA DE UN DISCURSO CONSTITUCIONAL CONTEMPORÁNEO Y EL

ESTADO DEMOCRÁTICO DE DERECHO

RESUMEN Este estudio es un análisis del tema “poder”, a partir de la premisa de que el texto constitucional brasileño y las discusiones filosóficas y características históricas del ejercicio del poder y la asignación a el pueblo. Describe el análisis realizado por Friedrich Müller sobre el pueblo como una simple metáfora en retórica ideológica, el uso icónico del concepto de el pueblo, el concepto de el pueblo mientras la instancia de asignación, el pueblo como receptor de beneficios civilizadoras del estado, y el problema de la exclusión de grupos de población de todos los sistemas funcionales de la sociedad. Analiza, sobre la base de los fundamentos teóricos de reconocimiento desarrolladas por Axel Honneth e Nancy Fraser, la necessidad de replantear la gente titular del poder constituyente, lo diferencia de um punto de vista abstracto e homogeinizante y lo próxima a lo de um “pueblo” atentico y plural capaz de contener em si toda la diversidad de grupos e indivíduos. Examina las características de participación popular y la contribución de Hannah Arendt al ejercicio de la libertad política plena mientras la cuestión esencial de la democracia. Finalmente, aborda la cuestión de la legitimidad popular en la perspectiva de la teoría discursiva del derecho propuesta por Habermas y el ejercicio del poder constituyente. PALABRAS CLAVE: Poder; El pueblo; Poder constituyente; Reconocimiento, Identidad,

Democracia; Participación popular.

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Introdução

O Direito vem passando por uma revolução paradigmática na qual, pressupostos

teóricos de natureza dogmática e filosófica vêm sendo rediscutidos, visando o encontro de

soluções para diversos problemas contemporâneos, dentre alguns, a denominada crise do

positivismo jurídico e a legitimação do poder.

Essa e outras crises exigem que temas primordiais sejam rediscutidos para que novos

parâmetros teóricos sejam estabelecidos, visando uma compreensão ampliada e

contextualizada do sistema jurídico, social e político. Essa compreensão exige que as bases

teóricas elaboradas tenham pontos de contato com outras áreas do conhecimento. Para tanto,

faz-se necessário abordar o tema proposto numa perspectiva sistêmica1.

A interpretação dos fatos, dos textos, da realidade que se apresenta é um fenômeno

inevitável. Um dos ramos do Direito de importância fundamental para a interpretação dos

textos é a hermenêutica jurídica, em especial a constitucional. Essa nova hermenêutica como

uma nova maneira de se compreender o Direito está associada a uma necessária quebra de

paradigmas de interpretação de textos e postulados jurídicos, principalmente em função do que

se tem como um dos novos postulados, a normatividade dos princípios.

Essa quebra de paradigmas ocorre em meio a alguns fatos determinantes, a exemplo

da constitucionalização dos direitos e das elaborações teóricas, no sentido da centralidade da

dignidade da pessoa humana, que é um dos pilares do Direito Constitucional nessa era

denominada de pós-positivismo.

A perspectiva do Direito e de todos os elementos que o compõem, a exemplo do

poder, do povo, do Estado e da nação, que são os elementos diretamente relacionados com o

propósito desse estudo, necessariamente, devem passar por reelaborações teóricas, devido às

transformações sociais que ocorrem no tempo, e para que se concretizem e se efetivem

práticas democráticas que atendam às necessidades da população.

1 O pensamento "sistêmico" é uma maneira de abordagem da realidade que surgiu no século XX, em contraposição ao pensamento "reducionista-mecanicista" herdado dos filósofos da Revolução Científica do século XVII, como Descartes, Bacon e Newton. O pensamento sistêmico aceita a racionalidade científica, mas aduz que seus parâmetros são insuficientes para o desenvolvimento humano. A interdisciplinaridade faz parte do conceito de pensamento sistêmico. É visto como componente do paradigma emergente, que tem como representantes cientistas, pesquisadores, filósofos e intelectuais de vários ramos do conhecimento. Ver CAPRA, Fritjof. O Ponto de Mutação – A Ciência, a Sociedade e a Cultura emergente. São Paulo: Cultrix, 1995, p. 259-261.

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O projeto Constitucional brasileiro traz em seu seio todas as propostas emancipatórias

da modernidade, substratos de onde brota a noção de cidadania, tais como: a ideia de

liberdade, igualdade entre os homens, sociedade centrada no indivíduo e, por via de

consequência, na dignidade da pessoa humana e no poder popular. Mas, como se observa nos

países de modernização tardia, não logrou a implementação de todas essas promessas. A vida

como ela é, para uma grande parcela da população brasileira, não tem passado de uma cópia

em cores esmaecidas do admirável mundo de direitos descritos na Constituição.

Levando em conta essa realidade, o presente artigo tem por objetivo abordar o tema

“poder” e seus desdobramentos e implicações, numa perspectiva histórica, filosófica, política,

jurídica e sociológica, de maneira que proporcione uma releitura do fenômeno constitucional

que alcance as expectativas que a sociedade atual na sua complexidade e diversidade nos

apresenta.

Nesse sentido, os referenciais teóricos sobre o tema “poder” serão as reflexões de

Michael Foucault, sobre o tema “povo” serão as lições de Friedrich Müller, sobre a diversidade

dos grupos populacionais e a necessidade de atendimento dos reclamos pela promoção de

igualdade e aceitação de diferenças serão as contribuições de Charles Taylor e Nancy Fraser

em suas produções situadas no campo de reflexões denominado teoria do reconhecimento,

sobre o tema democracia serão os estudos de Jürgen Habermas, além de outros, cujos textos

tenham dado uma contribuição para análise e discussão aqui propostas.

O Poder e a sua instância primordial

A Constituição da República Federativa do Brasil inaugura o seu texto,

preambularmente, estabelecendo que o povo, por meio dos seus representantes, instituiu um

Estado Democrático destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a

liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores

supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social

e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias.

Partindo dessa premissa, e como opção metodológica, todo e qualquer problema ou

questão a serem analisados, devem passar pelas seguintes indagações primordiais: o “que”,

“quem”, “quando”, e “como”. Assim, diante do tema proposto, o “que” da análise será o

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poder; o “quem” será o povo; o “quando”’ ao ser instituída uma nova ordem constitucional; e

o “como” será mediante a democracia.

No contexto preambular da Lei Fundamental da República podem ser encontradas

algumas das funções primordiais que o Direito tem na sociedade, a exemplo de se buscar a

solução pacífica das controvérsias. No exercício das suas funções, o Direito sempre esteve

vinculado ao poder, e este foi exercido das mais diversas maneiras, ao longo da história, desde

a mais autoritária até algumas mais democráticas.

Segundo o dicionário de filosofia, o termo poder, na esfera social, seja pelo indivíduo

ou instituição é conceituado como “a capacidade de este conseguir algo, quer seja por direito,

por controle ou por influência. Poder é a capacidade de se mobilizar forças econômicas, sociais

ou políticas para obter certo resultado [...]” (BLACKBURN, 1997:301).

Já no dicionário de política, encontra-se a conceituação de poder de maneira

extensiva, ainda que exista a colocação em esferas distintas, como poder social, poder político,

poder constituinte, poder moderador, poder potencial, poder coordenador, entre outros, o que

se vê é termo associado à autoridade. Assim, pode-se encontrar em Bobbio, (2000, p.933) que

poder social é a capacidade que um pai tem para dar ordens a seus filhos ou a capacidade de

um governo de dar ordens aos cidadãos.

Entretanto, para Foucault, o que interessava era a análise do poder como prática

social, historicamente constituída, e as múltiplas formas do seu exercício na sociedade, e não a

construção de um novo conceito. Assim, mais do que responder a pergunta “o que é o

poder?”, para o filósofo, o mais importante era questionar “[...] quais são, em seus

mecanismos, em seus efeitos, em suas relações, os diversos mecanismos de poder que se

exercem a níveis diferentes da sociedade, em domínios e com extensões tão variados”?

(FOUCAULT, 1981, p.174).

Nessa perspectiva, Ost (1999, p.90) aduz que, no Direito e na relação com o poder,

antes de regular o comportamento dos agentes ou de resolver os seus conflitos é preciso, com

efeito, definir o jogo em que se inscreve a sua ação. Assim, utilizando-se da metáfora do jogo,

assevera que o mais importante não é definir as regras proibitivas e permissivas dos jogadores,

mas sim as regras estruturantes desse jogo.

Sobre essa temática, a contribuição de Bobbio é feita nos seguintes termos:

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Quando se põe o problema do "novo modo de fazer política" [...] não se deve dirigir a atenção apenas para os eventuais novos sujeitos e para os eventuais novos instrumentos de intervenção, mas também, e acima de tudo, para as regras do jogo com as quais se desenrola a luta política num determinado contexto histórico. (BOBBIO, 1989, p.65).

Historicamente, o exercício do poder foi realizado por muitos soberanos de maneira

arbitrária, cuja característica predominante era de conquista e dominação de povos e de

territórios. Na era moderna, estabelecida historicamente do século XV ao século XVIII, os

povos nativos do continente americano e os trazidos da Europa como escravos, não eram

considerados do povo, para efeitos políticos e jurídicos, e no que diz respeito à titularização de

direitos, mas, tão somente, para imputação de deveres e responsabilidades. Nesse cenário, a

condição de cidadãos, para o exercício de direitos de cidadania, estava ainda longe de ser

conseguida, como ocorre ainda hoje em países os quais já têm regime democrático previsto no

texto constitucional, porém, na práxis política ficam distantes da democracia.

Prefaciando a obra de Friedrich Müller, Comparato ressalta que a noção de povo não

tinha a importância decisiva que adquiriu na era moderna, com o ressurgimento da ideia

democrática. Acrescenta ainda que, nos tempos modernos, a primeira utilização consequente

do conceito de povo como titular da soberania democrática surge com os norte-americanos.

Em 1787, quando entrou em discussão a criação do Senado, as primeiras manifestações foram

no sentido de que o povo norte-americano dividia-se em três classes: a de profissionais liberais,

a dos comerciantes, e a dos proprietários rurais. Foi esquecida a numerosa população de

escravos que viviam nos Estados do Sul cujo modelo de sociedade era escravocrata. Como o

critério adotado para se estabelecer o número de representantes estatais na Câmara Federal, foi

o da população de cada Estado, os sulistas retomaram a discussão para incluir os escravos

como membros do povo a serem representados pelos Senadores. Nessa ocasião, não houve

maiores dificuldades na sociedade norte-americana para aceitação da inclusão dos escravos na

contagem numérica do povo, devido inexistir tradição de divisão em estamentos sociais,

especialmente de vínculos aristocráticos.

Diferentemente ocorreu na sociedade francesa. Em 1789, os dois primeiros

estamentos do reino – os clérigos e os nobres – recusaram-se a comparecer às sessões, devido

à discussão sobre a ambiguidade que o termo “povo” tinha nos escritos enciclopédicos da

França. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão previa que toda soberania residia

na Nação. Após a queda da monarquia, os jacobinos interferiram para que o termo “povo”

fosse incluído na Constituição do Ano I, e assim ficou previsto no art. 25: “A soberania reside

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no povo; ela é una e indivisível”. Como leciona Miranda (2002, p.107), o constitucionalismo

francês foi de prevalecente influência nos países europeus, apesar de o constitucionalismo

britânico ter influenciado significativamente na Europa.

Segundo Ferreira Filho (1999, p.3) “a ideia da existência de um poder que estabelece

a Constituição, enquanto organização fundamental de um Estado, não obstante encontre raízes

remotas na antiguidade, surge tão só no século XVIII, associada à ideia de Constituição

escrita”. Nesse patamar, vale ressaltar a contribuição do Abade Emmanuel Joseph Sieyés, ao

publicar nos últimos meses de 1788 e os primeiros de 1789, sua obra "Qu’est-ce que le tiers

état?” (O que é o Terceiro Estado), na qual sistematizou a ideia de Poder Constituinte. Tal

obra foi cognominada “o manifesto da Revolução Francesa”, tendo em vista que expõe

reivindicações da burguesia, definindo-a como a nação e, consequentemente, titular do poder

constituinte. Há um consenso generalizado na doutrina pátria e no direito comparado que foi

Sieyés quem primeiro sistematizou a ideia de poder constituinte.

Para Sieyés, o Poder Constituinte é um poder permanente, ilimitado, incondicionado e

não subordinado ao Direito preexistente. É o “poder que tudo pode” (AYRES BRITO, 2002,

p.12) consistente na capacidade de instituir a qualquer momento uma nova ordem,

encontrando-se, portanto, fora e acima do sistema jurídico.

O titular desse poder, para o autor francês, se encontra corporificado na ideia de

nação que encontrava correspondência com a noção de povo. A concepção de povo por sua

vez, contemplava justamente aqueles que não usufruíam do sistema de privilégios no qual se

fundava o absolutismo.

Ainda sobre a titularidade do Poder Constituinte, enfatize-se que a nação em Sieyés

significa a totalidade abstrata do povo de um país, e implica uma identidade entre o povo e os

seus representantes. Neste sentido, o povo significaria um conjunto homogêneo em que os

indivíduos compartilhariam as mesmas ideias, professariam a mesma fé, falariam o mesmo

idioma e vivenciariam uma mesma cultura.

Observe-se que a leitura da doutrina do poder constituinte, elaborada por Sieyés, deve

ser feita a partir do horizonte histórico no qual o autor se encontrava. Assim, é necessário

registrar que a sua contribuição em "Qu’est-ce que le tiers état?” procura deslocar o conceito

de soberania até então atribuída ao monarca por Deus, na forma em que foi o conceito

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originalmente insculpido por Jean Bodin (SOARES, 2010), para uma soberania popular

atribuída à nação corporificada no povo.

Propagando-se os ideais burgueses de Estado e de sociedade, no período moderno,

inicia-se a concepção de cidadania, e esta retirou do homem a condição de súdito de um tirano

absolutista, colocando-o na condição de indivíduo capaz de adquirir e exercer direitos perante

o Estado. Por outro lado, “a formação de identidades (...) como a nacional e a de classe exigiu

a abdicação de outras formas de identificação. Foi necessário despir-se das referências de

gênero, raça religião, orientação sexual” (MELO, 2005, p.119).

O conceito de povo, titular do poder constituinte, colocado com uma homogeneidade,

pode muito facilmente ser reduzido a uma noção abstrata e fluida, dotada de incapacidade de

expressar os anseios de toda uma população de outsiders, excluídos e invisíveis sociais, os

quais anseiam por participação política e reconhecimento de direitos. Nessa perspectiva,

impõe-se a necessidade de melhor situar a categoria “povo”, ante as complexidades e

disparidades existentes nas sociedades contemporâneas, em especial a brasileira.

O Povo na análise de Friedrich Müller

Conforme ressaltado inicialmente, a Constituição da República Federativa do Brasil

estabelece que todo poder emana do povo, o qual será exercido diretamente ou por meio dos

representantes, da maneira como estabelecida na Constituição.

Nesse sentido, buscando no texto constitucional o comando previsto para entender a

regra estruturante do sistema, encontra-se que todo poder emana do povo. Mas, quem é esse

povo? Para responder essa indagação, é necessário recorrer ao que teorizou Friedrich Müller2.

Destaca Müller (2003, p.20) que se trata de um termo plurívoco e que está em pauta levar o

povo a sério como uma realidade, e não trabalhar o “conceito” como tal. O autor analisa

quatro maneiras de utilização do conceito de povo. A primeira como uma simples metáfora em

uma retórica ideológica, denominando isso como utilização icônica do conceito de povo. Os

demais modos ultrapassam a dimensão metafórica e alcançam a práxis. Assim, a segunda

utiliza o conceito de povo enquanto instância de atribuição, onde se mede nele, o povo, se a

2 Quem é o Povo?– A questão fundamental da democracia

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decisão do titular de um cargo pode ser atribuída ao texto da norma instituída

democraticamente como vigente, enquanto “direito popular”, ou se diante de um direito

ilegítimo porque pretoriano. Na terceira e quarta tem-se a utilização dos termos povo ativo e

povo-destinatário, os quais se referem ao nexo de instituição e preservação de uma

constituição democrática. Nesse modo, aponta o autor que o problema central é o fato de que

o povo, enquanto destinatário de prestações civilizatórias do Estado, deve poder ser posto em

condições de perceber e defender a preservação de uma constituição democrática por meio de

sua instituição permanentemente renovada.

Müller ainda acrescenta ao debate o problema da exclusão de grupos populacionais

inteiros de todos os sistemas funcionais da sociedade, e o “povo” como combate, resultando a

positividade da democracia.

Diante dessas premissas, serão destacadas observações feitas pelo autor acerca da

compreensão histórica do que seja o povo. Este é invocado nos documentos constitucionais,

porém seu papel fundamental não é tematizado, sendo considerado mais um símbolo do que

uma realidade.

Acerca da iconização do povo, Müller (2003, p.70) pontua que para Bodin e

Althusius o “povo” tinha características da universitas cuidadosamente hierarquizada. Para

Locke e Hobbes, a noção de povo parte do indivíduo burguesmente isolado, porém em Locke

a hierarquia é determinada pela economia, e em Hobbes é o rei que faz com que a “multidão”

existente seja o povo. Acentua ainda que em Rousseau o discurso icônico sobre o povo é

abandonado, porque entende que a exclusão coletiva de algum grupo do conceito normativo

de “povo” segmenta a sociedade e cria privilégios.

Analisando o “povo” como povo ativo, as prescrições jurídicas o consideram

geralmente, e somente como a totalidade dos eleitores. Porém, observa que os estrangeiros,

por exemplo, são efetivamente atingidos cidadãos de direito e sua exclusão do povo ativo

restringe a amplitude e a coerência da justificação democrática, inexistido qualquer razão

democrática para não se adotar uma compreensão de povo numa perspectiva mais abrangente.

Quando analisa o “povo” como instância global de atribuição de legitimidade ressalta

que este não é apenas a fonte ativa da instituição de normas por meio de eleições ou referendos

legislativos, é de qualquer maneira o destinatário das prescrições em conexão com deveres,

direitos e funções de proteção. Ressalta que só se pode referir enfaticamente ao povo ativo

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quando vigem, se praticam e são respeitados os direitos fundamentais individuais e políticos.

Acrescenta ainda que esses direitos fundamentais são normas que habilitam os cidadãos a uma

participação ativa. Por fim, arremata que sem a efetivação dos direitos do homem e do

cidadão, o “povo” permanece uma metáfora ideologicamente abstrata de má qualidade.

Comentando sobre o “povo” como destinatário de prestações civilizatórias do Estado,

destaca que a condição de ser humano deve ter sua dignidade tutelada, sendo irrelevante o fato

de estarem no território de um determinado Estado. O fundamental é a ideia de “povo” como a

totalidade dos efetivamente atingidos pelo direito e pelos atos decisórios do poder estatal.

Quanto à abordagem do “povo” em combate e a positividade da democracia, deixa

acentuado que é de suma importância em que campos e graus essas pretensões são cumpridas

ou descumpridas quando do funcionamento do ordenamento. Nesse contexto, observa que é

importante não só a atuação dos políticos, mas também o trabalho prático da docência, da

pesquisa e, sobretudo, a produção dos juristas, porque seu produto é operacionalizado pelas

instituições Legislativas, Executivas e Judiciárias.

Partido desse cenário aduz Müller (2003, p.55) que a doutrina majoritária propala que

o povo exercita seu poder por intermédio da eleição de uma assembleia constituinte e/ou da

votação sobre o texto de uma nova constituição; por meio de eleições e, parcialmente, por

meio da iniciativa popular e do referendo; e se for o caso, por meio de eleições para instâncias

de autogestão, e até de servidores públicos. Porém, nem a todos os cidadãos é permitido votar

e nem todos votam efetivamente. Assim, a questão da legitimidade é posta em dúvida, quando

há uma minoria sempre vencida pelo voto da maioria, e que tipo de “povo” está por trás dos

efeitos informais na formação da opinião pública e da sua vontade política.

Acerca da preparação do povo para um debate amplo no seio da população, sobre a

formação de uma Constituição, adverte que a situação fica restrita à estrutura da

representação, tendo em vista a propositada inércia do povo para essas questões. Porém, é

importante a observação feita por Comparato (2003, p.24) ao afirmar que a democratização

substancial das sociedades desigualitárias não decorre da simples ampliação do sufrágio

popular, mas de questionar as fontes de poder oligárquico, as quais são encontradas na própria

estrutura das relações econômicas e sociais.

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O povo autêntico e plural. Teorias do reconhecimento como aportes teóricos

a uma revisão da visão clássica do poder constituinte

Antes, todavia, de analisar as questões cruciais em que consistem a participação e a

legitimidade popular para a transformação de um povo meramente icônico em verdadeiro

destinatário do discurso constitucional, convém visitar, na tentativa de superar uma certa

limitação da visão clássica acerca do poder constituinte, o debate político cada vez mais

presente nas sociedades contemporâneas, o qual diz respeito a reconhecer o “povo

destinatário” como diverso e plural e administrar na persecução dos fins constitucionais, a

tensão sempre presente entre as dicotomias igualdade/desigualdade e igualdade/diferença, para

tanto, será necessário olhar o “povo” pelas lentes da teoria do reconhecimento.

O conceito de reconhecimento encontra-se no epicentro do debate político

contemporâneo, a expressão ganha relevância no discurso de sociólogos, cientistas políticos,

filósofos e juristas, pois acaba por refletir um grande desafio dos nossos tempos: como eleger

um princípio de justiça e elaborar uma ordem constitucional que garanta a liberdade e a vida

digna a todos em meio aos reclamos da diferença que a todo tempo afloram da complexidade

das hodiernas sociedades. Habermas, em trabalho intitulado “Lutas pelo reconhecimento no

Estado Democrático Constitucional”, descreveu esta perplexidade e este desafio à ordem

constitucional em nossos tempos:

As constituições modernas devem a sua existência a um conceito encontrado na lei natural moderna de acordo com o qual todos os cidadãos formam voluntariamente uma comunidade legal de associados livres e iguais. A Constituição oferece precisamente os direitos que estes indivíduos devem garantir uns aos outros se querem ordenar as sua vida juntos recorrendo legitimamente à lei. Este conceito pressupõe a noção de direitos (subjectivos) individuais e de pessoas individuais legais enquanto suportes dos direitos. Enquanto a lei moderna determina uma base para as relações sancionadas pelo estado de reconhecimento intersubjectivo, os direitos dela advindos protegem a integridade vulnerável dos sujeitos legais que são em todos os casos indivíduos. Numa análise final, é uma questão de proteger estas pessoas individuais legais, mesmo se a integridade do indivíduo – tanto na lei como na moralidade- depende de as relações de reconhecimento mútuo se manterem intactas. Poderá uma teoria dos direitos, que é construída tão individualisticamente, lidar adequadamente com as lutas pelo reconhecimento nas quais é a articulação e a asserção de identidades coletivas que parecem esta em jogo? (HABERMAS, 1994. p. 125).

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Em que pese a questão suscitada por Habermas, ser de difícil solução, não se poder

evitá-la. É necessário assumir que o povo titular do poder constituinte não é uma massa

uniforme, e sim, uma pluralidade de sujeitos e grupos diversos, os quais devem ter os seus

direitos e anseios repercutidos na ordem constitucional, sob pena de admitir-se, e naturalizar-se

uma noção vazia de povo, uma participação popular inexistente e uma Constituição inefetiva.

O “reconhecimento” é a palavra na ordem do dia do debate político. Atualmente, a

expressão está ligada à aceitação da existência de identidades e exprime a noção de

consideração social a um dado segmento. Em seu bojo, estão inseridos o autorrespeito, a

autoestima e a estima social dedicada a um certo grupo ou a uma certa identidade, porém, a

expressão é inaugurada enquanto filosofema, por Hegel, que em seus estudos em Jena, inicia a

elaboração teórica acerca do reconhecimento intersubjetivo, ou seja, acerca de como nossa

subjetividade, somente se torna plenamente desenvolvida, fundada na experiência com o outro.

Hegel afirma que a base do contrato social não seria uma luta pela autoconservação

dos homens, mas, uma luta por reconhecimento (HONNETH, 2003). Em seus primeiros

estudos, Hegel explora a categoria do reconhecimento intersubjetivo, colocando-o como

condição de pleno desenvolvimento das potencialidades humanas, analisando-o em três

dimensões: o amor, o direito e a solidariedade. O conceito original de reconhecimento de

Hegel foi expressado no vocábulo “anerkennung”.

Nessa perspectiva, serão aqui apresentadas de forma sucinta, as teorizações de

Charles Taylor e Nancy Fraser, destacando os pontos que nos sejam úteis a uma

fundamentação teórica da pluralidade de um povo destinatário do discurso constitucional e a

leitura crítica do poder na Constituição.

Charles Taylor registra em seus escritos uma preocupação multiculturalista e retrata a

fragmentação das atuais sociedades as quais são caracterizadas por um pluralismo identitário.

Para o autor, a intersubjetividade é formada a partir das sucessivas interações de cada

indivíduo com o outro e com uma “comunidade de valores” de um determinado tempo e de

uma determinada sociedade. Isto porque, no sentido hegeliano, reconhecimento significaria a

aceitação das qualidades e demais características de um dado indivíduo pelos demais; e este,

sentindo-se assim, acolhido, se predisporia a reconhecer também o outro em sua

especificidade, gerando dessa forma, “uma dinâmica de reconhecimento em espiral, onde a

cada nova interação, e a cada nova experiência de reconhecimento, o individuo experimentaria

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e tomaria consciência de uma nova dimensão de sua subjetividade” (SOUZA, 2012, p. 135).

Conflito e reconhecimento se condicionariam mutuamente, pois a lógica de reconhecimentos

progressivos estimularia cada vez mais lutas e reivindicações por novos reconhecimentos.

Desse modo, para este autor, identidade é a compreensão de quem se é, ou a

descoberta de sua diferença e autenticidade, que se dá em razão de interações dialógicas. A

identidade é moldada pelo reconhecimento por parte dos outros. O processo de

reconhecimento seria mediado por um pré-existente ético, materializado em alguma forma de

aceitação recíproca e intersubjetiva elementar que importaria em admitir, que o contrato social

fosse uma realização refletida de direitos previamente reconhecidos e que os indivíduos se

autodeterminassem tomando como referência a articulação reflexiva dos valores.

Nessa perspectiva, para Taylor, o homem se autointerpreta com base nas idéias-guia e

valores que ele colhe de sua época e de seu tempo. E isto se dá por meio da linguagem, posto

que, é exatamente a linguagem que constitui o mundo de ideias em que o individuo está

inserido. O lugar da linguagem na teoria de Taylor é crucial, pois é justamente a sua

anterioridade ao indivíduo e à formação de sua identidade, que é a base da argumentação

comunitarista, uma vez que, é a linguagem que permite aos homens compartilharem uma

comunidade de sentidos.

O reconhecimento em Taylor traduz-se na luta pela sobrevivência da autenticidade,

daquilo que é único. É, antes de tudo, a busca de cada indivíduo por sua identidade. Taylor se

aproxima de Heidegger, ao nos apresentar um homem moderno que precisa conhecer-se,

desvelar a sua própria verdade, que não é outra senão aquela que nasce da sua própria

confrontação com a sua historicidade, sua faticidade. Para Taylor, a identidade é definida “a

partir do horizonte em cujo âmbito posso tentar determinar, caso a caso o que é bom ou

valioso (...) trata-se do horizonte dentro do qual sou capaz de tomar uma posição” (TAYLOR,

1997, p.43-44).

A construção teórica de Taylor demonstra a superação do ideal de homogeneidade,

que num primeiro momento, foi fundamental para a formação dos estados nacionais e para a

justificação das ordens constitucionais, por um pensamento diverso, que exalta a

heterogeneidade dos grupos sociais, os quais, em que pese a grande força unificadora do

Estado e do Direito, permanecem existindo.

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Taylor nos permite fazer a seguinte constatação: o fato de um indivíduo ser de um

determinado gênero, de uma dada etnia define, em boa medida, que bens serão por ele

buscados, suas necessidades, seus anseios, seu ideal de vida digna. Esses bens, no caso do

povo enquanto comunidade política, acabam por consubstanciar o “ideal de bem” de todos os

membros do povo (STRECK, 2004). Em uma comunidade política organizada em torno do

Estado, essa meta deve aflorar da construção de consensos onde todos tenham voz e

possibilidade de serem ouvidos com a mesma consideração, o que deverá ser materializado em

forma de norma na Constituição.

Já Nancy Fraser (2009) observa que na era pós-socialista, como ela chama o

momento atual após a reconfiguração da ordem mundial, as lutas por redistribuição e contra a

espoliação da classe trabalhadora, vão sendo substituídas gradativamente por lutas por

reconhecimento e, embora registre esse movimento de crescimento da atenção dada às

diferenças culturais e às demandas por reconhecimento, deixa bem claro, que mesmo nos

países centrais, as demandas por redistribuição não foram ainda superadas.

Para ela, reconhecimento e redistribuição são realidades distintas, mas indissociáveis,

diferentemente de outros autores, que resumem a natureza primária de todos os conflitos

sociais à luta por reconhecimento, acreditando que a lutas por redistribuição de renda estejam

subsumidas às questões do reconhecimento, a autora apresenta uma análise dualista dos

conflitos sociais que permite elaborar um conceito de justiça social que agregue as duas

dimensões: redistribuição e reconhecimento (FRASER, 2003).

Enfatiza que a questão de fundo do reconhecimento não é a afirmação de uma

identidade, mas é o “status social”, não somente a consideração e a estima social dedicada ao

grupo, mas a sua capacidade de autodeterminação política e capacidade de participação. A

conseqüência do não reconhecimento, para a autora, não é a depreciação da identidade do

grupo ou a subjetividade prejudicada do individuo, antes, é a subordinação política que lhes

determina violação de direitos e lhes impede de participar como um par na sociedade. O que

está em jogo não é somente a identidade (FRASER, 2007), é também ela. Propõe o critério da

paridade participativa, para identificar as reivindicações de redistribuição e reconhecimento

defensáveis como somente aquelas necessárias à superação da situação de subordinação.

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Paridade participativa é a condição daquele que ocupa um status social de não

subordinação. É condição de estar no palco das decisões públicas e ter a capacidade de falar e

ser ouvido com a mesma consideração que os demais.

Nancy Fraser registra que alguns segmentos apresentam-se deficientes, tanto quanto

à redistribuição, como quanto ao reconhecimento, seriam as “comunidades bivalentes” para

quem seriam necessárias estratégias nas duas áreas. Fraser (2009) distingue as estratégias em

ações afirmativas, que têm por objetivo, modificar os efeitos indesejados da não-distribuição

ou do não-reconhecimento, sem, no entanto, atacar as suas origens; e as ações transformativas,

que objetivam à correção dos resultados, pela modificação das estruturas que os produzem.

Fraser traz a noção de reconhecimento como pressuposto de uma efetivação da

justiça, e lembra que o fortalecimento simbólico de identidades ou grupos não se fará, ou nada

significará se não vier acompanhado de uma efetiva redistribuição, e, ao ressaltar a noção de

status e a paridade participativa, indica que a condição de invisibilidade e subalternização que

alguns indivíduos vivenciam nasce da sua incapacidade de figurar com protagonista de decisões

políticas.

Importa para nós, observar que a invisibilidade de uma grande parcela da população

brasileira encontra-se comodamente disfarçada a partir da utilização do conceito

homogeinizante de povo admitido na leitura clássica do poder constituinte. Tem-se que a partir

do conceito clássico de “povo”, toda e qualquer ordem constitucional, ainda que injusta e

excludente, estaria legitimada porque “construída pelo povo”.

Tomando como ponto de partida essa constatação, a questão da participação toma

dimensões determinantes. Uma vez identificado o povo como uma pluralidade de sujeitos,

todos eles titulares de direitos e com anseios e necessidades diversas, torna-se imprescindível

para garantir que todos eles possam ser ouvidos com igual consideração, a construção de

critérios amplos de participação popular condizentes com uma democracia efetiva, portanto, a

questão da participação do povo também deve ser problematizada.

A questão da participação do Povo

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Nessa perspectiva, faz-se necessário elaborar o seguinte questionamento: Na prática, a

política praticada pelo povo na sua acepção mais ampla, na República Federativa do Brasil é

feita de maneira comprometida com objetivos previstos na Constituição, a qual foi promulgada

para se instituir um regime democrático de direito?

Difunde-se a ideia de que o povo deve exercer seu poder previsto

constitucionalmente, por meio do processo de escolha dos seus representantes e daí por diante

nada mais lhe cabe, somente esperar que tais representantes realizem os projetos em benefício

de toda a população, principalmente a mais necessitada.

Acerca dessa situação, observa Ralph Christensen3 na introdução da obra de Müller

que o povo e o seu poder, sem os quais a sociedade nem seria capaz de receber uma

Constituição, não pode permanecer uma metáfora citada em discursos, aparentemente

inofensivos, porque o poder constituinte do povo deve tornar-se práxis efetiva. Por isso que tal

poder permanece um problema não solucionado na teoria, principalmente por ainda não ser

uma promessa realizada na prática. Assim, faz-se necessário distinguir a simples teorização

ideológica da democracia efetiva.

O regime político democrático tem como pressuposto ontológico a vontade do povo,

mas, no cenário que se tem na história e nos dias atuais é a existência de um paradoxo, ao se

observar as dificuldades e limitações que o povo enfrenta para a expressão dessa vontade.

Outro aspecto importante acerca da democracia para sua caracterização é a manutenção

constante de uma elevada taxa de complexidade social, de uma elevada taxa de opções de

escolha porque, quanto mais amplas as opções de escolha, maiores as possibilidades de

democracia.

Porém, não obstante essa complexidade, o modelo de sistema representativo e a sua

operacionalização tem se mostrado como um simulacro da participação do povo que, em

muitos casos se preocupa apenas com as benesses imediatas que os candidatos oferecem para

que recebam aprovação pelo voto. Após esse ato de escolha do representante, seja no âmbito

legislativo, seja no âmbito executivo, a população votante e os demais do povo permanecem

alheios aos rumos da política.

3 Jurista, Sociólogo, Filósofo e Linguístico, doutor em Filosofia e Direito, editor de várias obras de Friedrich Müller.

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Diante desse cenário, o referencial teórico de Hannah Arendt permite questionar esta

omissão e reivindicar por uma nova “política”, na qual o cidadão possa efetivamente exercer

esse “poder”. Para uma melhor compreensão do que seja a política, a autora resgata a antiga

Grécia, que foi o berço da concepção da política, a qual se encontra num passado esquecido,

com o propósito de obter uma reflexão sobre os dias atuais e auxilie no processo de

compreensão dos eventos políticos hodiernos.

Segundo a autora, o mundo social é instituído de acordo com o princípio da partilha

do poder político entre todos os cidadãos, corolário da pluralidade, que se revela

fundamentalmente pela intersubjetividade. O fato de serem plurais decorre a condição de serem

seres políticos. Para Arendt (1998, p.34) “o sentido da política é a liberdade.” Nesse âmbito, a

liberdade se manifesta como ação política. Essa surge de uma relação decorrente da premissa

da igualdade, onde não há dominação e sua contraparte, a submissão, prescindindo do uso da

força, como historicamente ocorreu nas conquistas de territórios e povos.

Afirma ainda a autora que o principal problema nesse cenário é o completo descaso

pelos titulares, com o exercício do poder no espaço político. Para entendê-lo, resgatou a

tradição do pensamento ocidental, com o propósito de encontrar elementos que possibilitassem

recriar categorias políticas renovadas, tendo em vista a reconstrução de um mundo assinalado

pela pluralidade e pela diversidade, onde o pleno exercício da liberdade favoreça o novo

acontecer. Nesse sentido, vale lembrar que para Bobbio (1989, p.9), a democracia é dinâmica.

O estado natural de um regime democrático é um estar em permanente transformação, e

contínua reinvenção, e por assim ser, torna-se evolutiva e qualitativa, porque se supera.

Nesse patamar, imprescindível rememorar que a liberdade foi um dos valores que

compuseram o lema da Revolução Francesa, e foi o primeiro valor que serviu de justificativa

de luta social para saída dos regimes absolutistas, visando adentrar em regimes políticos que

possibilitassem a liberdade. Tal fato ocorreu no século XVIII, assim, passados mais de dois

séculos nos quais o valor igualdade também foi enfatizado nas lutas sociais para

implementação da democracia.

Mas essa vontade que prepondera é exercida livremente pelo povo? E esse povo que

tem a capacidade eleitoral ativa são todos que estão subordinados a essa Constituição? Nesse

panorama, destaca Müller que existe uma diferença entre povo enquanto fonte de legitimação e

povo enquanto objeto de dominação.

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Porém, o exercício desse poder, diretamente ou por meio dos representantes eleitos,

tem problemáticas que são levantadas desde a antiguidade quando Aristóteles4 observava que

se atribuir soberania à lei e não a determinados homens, como forma de limitação do poder do

soberano, não mudaria substancialmente o problema, porque tais leis seriam o resultado do

regime político adotado. Se adotado regime político oligárquico, as leis não seriam

democráticas.

Assim, diante do constitucionalismo nessa era de pós-positivismo, com a chamada

normatização dos princípios e a busca da efetividade das normas constitucionais, tem-se como

consequência o impedimento de se continuar tratando a “democracia” exclusivamente como

técnica de representação e legislação. Por isso leciona Barroso (2003, p.85) que a efetividade o

desempenho do Direito para alcançar sua função social, simbolizando o quanto possível uma

íntima aproximação entre o dever-ser normativo e o ser da realidade social. Diante desse

cenário, Christensen na introdução da referida obra de Friedrich Müller, com precisão, aduz

que as constituições frequentemente trazem a previsão de povo devido à necessidade de

legitimar-se.

A Questão da legitimação popular

Um dos mais relevantes aspectos da democracia, numa perspectiva contemporânea, é

ir além da prevalência da vontade da maioria, mas também o respeito às minorias, que numa

determinada circunstância social, pode ser a maioria em termos numéricos. Müller (2003,

p.75), faz ainda uma distinção do que seja a totalidade do povo enquanto centro de imputação

das decisões coletivas, do que seja uma fração dominante, cuja vontade efetivamente

prepondera nas eleições, referendos e plebiscitos. Com efeito, essa fração dominante nem

sempre representa a vontade da maioria e se aparentemente representar, como é o caso do

regime dito democrático existente no Brasil, essa parcela majoritária é manipulada pelos mais

diversos segmentos sociais interessados na manutenção do status quo que favorece a política

de alienação e omissão da população na dinâmica política do país.

Importante destacar que se os poderes institucionalizados, de um lado o Poder

Judiciário com dificuldades de efetivar o comando estabelecido nas decisões que condenaram

4 A Política, 3, VI; p.46. texto disponível em:

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os réus do mensalão do partido dos trabalhadores, e de outro o Poder Legislativo com o

discurso da autonomia e a tendência em ter uma postura que comprometa a efetividade da

decisão judicial5, como acreditar que tais representantes do povo e sujeitos da democracia

trabalham para alcançar os objetivos estabelecidos no capítulo inaugural da Constituição da

República?

Esse modelo de representatividade do poder do povo precisa ser rediscutido, como

vem sendo, na perspectiva da legitimação popular de determinados atos do poder público.

Como leciona Bonavides (2012, p.168), a legitimidade de um poder constituinte, tendo por

base o princípio democrático da participação, apresenta uma dimensão tanto horizontal quanto

vertical, donde se permite estabelecer a intensidade com que tal princípio ampara o exercício

da autoridade. A dimensão horizontal se afere pela maior ou menor amplitude do colégio de

cidadãos que decide sobre matéria constituinte ou elegem representantes a uma assembleia

constituinte. A dimensão vertical é que permite aferir os distintos graus de participação dos

governados, seja mediante referendum, ou outros meios plebiscitários, seja pela atribuição de

poder escolha dos membros de uma Assembleia Constituinte, ou de um Congresso ordinário

com competência constituinte latente.

A Teoria Discursiva do Direito elaborada por Habermas é que traz os aportes teóricos

para análise desse cenário, no qual o povo deixa de ser um mero espectador dos atos dos seus

representantes escolhidos ou legitimados pelo ordenamento, mediante algum procedimento

eletivo, para realizarem uma avaliação do desempenho dos seus atos, seja em que âmbito for.

Essa teoria concebe o pluralismo partindo de várias concepções individuais e grupais, e a

necessidade de um procedimentalismo que favoreça a participação popular. Nesse cenário

plural, e utilizando o aporte teórico dessa teoria, Freitas (2010, p.83) discutindo sobre a visão

contemporânea de poder constituinte, observa que as mais variadas questões como valores

individuais, concepções éticas intragrupais, tradições, crenças, culturas, pontos de vista

econômicos e políticos, acerca do que seja bom para o bem comum, precisam ser

discursivamente debatidas.

Sinteticamente, as premissas teóricas acerca dessa teorização do discurso ou teoria

discursiva, apontadas por Freitas (2010, p.85-91) são o agir comunicativo que ocorre

http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bk000426.pdf 5 Ver matéria acerca do tema em: http://g1.globo.com/politica/mensalao/noticia/2012/12/para-celso-de-mello-e-irresponsavel-fala-sobre-descumprir-decisao-do-stf.html

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intersubjetivamente, onde os sujeitos, falantes ou participantes, a utilização da linguagem de

maneira que se tornem receptivos ao diálogo, com vistas ao entendimento por meio de um

consenso e ser formado pelo melhor argumento. Isso somente ocorre quando os sujeitos

encontram-se em situação ideal de fala, que ocorre quando todos possuem capacidade de fala

e de racionalização, inexiste uma coerção interna ou externa, de maneira que todos possam se

manifestar livremente de modo a expor sinceramente suas ideias. Porém, observa ainda que

ocorre um agir estratégico realizado por um dos sujeitos, cuja finalidade é o alcance de

objetivo exclusivamente pessoal. Ainda nesse propósito, existe um agir instrumental que ocorre

com a utilização do outro sujeito como instrumento. Assim, os agires estratégico e

instrumental são utilizados conjuntamente. Porém, a situação ideal de fala proposta por

Habermas é a de uma forma especial de comunicação mediante a implementação de um agir

comunicativo, onde os agires estratégico e instrumental sejam filtrados.

A título de acréscimo importante transcrever o que Cruz (2006, p.90) observa acerca

da teoria proposta por Habermas: “o agir comunicativo é voltado para o entendimento

mediado pela linguagem em busca de normas que possam valer obrigatoriamente e que

preencham legitimamente as expectativas recíprocas de comportamento aceitas por no mínimo

dois interlocutores”.

Esse debate passa pelo que hoje vem sendo difundido como as tendências do

constitucionalismo latino americano, onde recentes Constituições de alguns países desse

continente trazem previsões que grupos étnicos historicamente subjugados e excluídos de

muitas políticas públicas possam ter capacidade de participação nas mais diversas instâncias de

poder estatal. Como bem observa Wolkmer (1989, p.14) que a Constituição, enquanto pacto

político, se legitima pela convivência e coexistência de concepções divergentes, diversas e

participativas, daí não ser concebível uma Constituição como mero documento que expressa

um formalismo normativo ou um reflexo de um ordenamento hierárquico porque jurídico

estatal. Para tanto, Wolkmer (2001, p.175-177) destaca alguns princípios valorativos do

pluralismo, como a autonomia, a descentralização, a participação, o localismo, a diversidade e

a tolerância.

Tais princípios fazem com que haja uma reconstrução da noção de titularidade de

Poder Constituinte, criando-se uma ideia de patriotismo constitucional, deixando de ser

considerados titulares de tal poder, exclusivamente os cidadãos/nacionais para serem incluídos

todos e quaisquer interessados/afetados pelo jogo constitucional como os estrangeiros, as

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minorias, os excluídos. Como bem observa Freitas (2010, p.85-91) “em um mundo

globalizado, formado por sociedades pós-convencionais marcadas pelo pluralismo, […] além

do sentimento de pertença a um dado país, ou a um grupo étnico local, também já se conforma

outro sentimento, o de pertencer a uma mesma humanidade.” Observe-se que essa noção passa

a ter dimensões planetárias.

Portanto, essa e outras questões cruciais para que a sociedade evolua em vários

aspectos, mediante o exercício do poder que emana do povo de maneira plenamente

democrática, respeitando-se a diversidade cultural e social, é necessário que os valores

liberdade, igualdade e fraternidade previstos na Constituição da República, e ressaltados desde

a Revolução Francesa, sejam uma tônica constante na prática educacional, social, política,

econômica e jurídica deste país.

Considerações finais

O poder e seu exercício ainda são tratados numa perspectiva de jogo estratégico, no

qual os seus titulares são colocados no jogo mediante regras previamente elaboradas, das quais

não se questiona a essência. O povo como um dos titulares desse poder político também ainda

é tratado como uma instância legitimadora da transferência de poder para os seus

representantes que exercem por mandato.

O povo permanece alheio aos destinos da política e ao poder político que dispõe

devido a aspectos históricos, culturais, ontológicos, dentre inúmeros outros. Nesse quadro,

interessa notar a precária cidadania ostentada por alguns individuos ou grupos que ainda

protagonizam lutas por reconhecimento de suas identidades e pela afirmação e efetivação de

seus direitos, por isso, se faz necessário, ver o povo titular do poder e destinatário do discurso

constitucional em toda a sua diversidade e em uma perspectiva cada vez mais universalizante

quanto aos critérios de participação e protagonismo de decisões políticas.

O reconhecimento como categoria da filosofia política revela-nos uma complexidade e

riqueza de conflitos e interações sociais presentes nas modernas sociedades e, se nos apresenta,

de fato, como um antecedente de qualquer pretensão de justiça, fundada, por óbvio, em uma

dignidade igual para todos os seres humanos. Deve, portanto, uma experiência constitucional

que se apresente humanista ser capaz de permitir repercutir em seu interior as lutas por

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reconhecimento das mais variadas formas de vida e identidades passíveis de aflorar em

ambiente democrático.

Propõe-se um povo titular do poder constituinte que inclua a todos e se inclua como

protagonista da experiência constitucional. Evidentemente, este povo, não é um, e sim, vários,

com os mais variados matizes, interesses, necessidades, ideais de justiça e de vida boa, o que,

por si só, já anuncia que a assunção dessa nova perspectiva de povo somente se apresenta

factível para além do exercício teórico, se fundada ao mesmo tempo, na ênfase aos

procedimentos de participação próprios de uma democracia desenvolvida e consolidada e na

dignidade da pessoa humana, via convergente de todos os direitos fundamentais e dos anseios

de reconhecimento.

Entretanto, em matéria de participação, verifica-se que o modelo de sistema

representativo do poder político e a sua operacionalização tem se mostrado como um

simulacro da participação do povo que, em muitos casos se preocupa apenas com as benesses

imediatas que os candidatos oferecem para que recebam aprovação pelo voto. Constata-se que

esse descaso com a necessidade de participação se deve também pela ausência de uma

liberdade e estímulo na participação política nas mais diversas instâncias sociais, desde as mais

iniciais como as domiciliares e educacionais.

Assim como de tempos em tempos novos paradigmas do conhecimento são

rediscutidos, por uma necessidade constante da evolução social, o modelo de

representatividade do poder do povo precisa ser rediscutido, como vem sendo, na perspectiva

da legitimação popular de determinados atos do poder público. Nessa perspectiva, o

reconhecimento proporciona no povo a capacidade de autodeterminação política e capacidade

de participação. Portanto, torna-se imprescindível a construção de critérios de participação

popular condizentes com uma democracia efetiva, para garantir que todos possam ser ouvidos

com igual consideração.

Exemplo dessas mudanças tem sido, ainda que somente no texto das recentes

Constituições de alguns países latino-americanos, a atribuição de poderes constituintes mais

amplos ao povo do país, principalmente nas instâncias de poder institucionalizadas, observadas

as características históricas, antropológicas, políticas e sociais de cada país.

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REFERÊNCIAS

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REFLEXÕES SOBRE A DEMOCRACIA DE OBER E ROSENFELD E O ATIVISMO

JUDICIAL.

REFLECTIONS ABOUT OBER’S AND ROSENFELD’S DEMOCRACY AND

JUDICIAL ACTIVISM.

Gryecos Attom Valente Loureiro

RESUMO

A democracia é ofendida quando o Poder Judiciário atua como efetivador dos direitos fundamentais? Para pensar sobre esta indagação, este estudo parte da premissa de que o Poder Judiciário pode assim atuar de mais de uma forma. Admitida a existência de mais de uma destas formas de atuação, a presente pesquisa visa isolar uma delas e analisá-la segundo a ótica da democracia. Por sua vez, a democracia é apresentada segundo as diferentes visões propostas por Ober e por Rosenfeld. No que tange à linha de raciocínio, o caminho trilhado nesta pesquisa, parte da consideração de haver uma atual necessidade de efetivação dos direitos fundamentais, tendo esta necessidade contribuído para o aumento do fenômeno denominado ativismo judicial. O ativismo judicial se caracteriza por uma atuação direta do Estado-Juiz, na figura do Poder Judiciário, no sentido de assegurar a realização de um direito fundamental estabelecido na constituição. O âmbito de abrangência do presente estudo está restrito às situações nas quais o Poder Executivo houver elaborado uma política pública com pretensão de efetivar determinado direito, mas nas quais o Poder Judiciário intervenha com o fundamento de que aquela política seja ineficiente para uma determinada situação concreta. O objetivo com a pesquisa é refletir se esta atuação do Poder Judiciário subtrai, ou tem o potencial de subtrair, alguma das atribuições do Poder Executivo ou do Legislativo, ofendendo, em última análise, a própria democracia. Para o presente estudo, utiliza-se a metodologia de pesquisa bibliográfica que consiste, basicamente, na leitura, fichamento e comparação das teorias dos principais autores do Direito que tratam desse problema. Partindo-se do pressuposto de que a atuação do Poder Judiciário tem o potencial de subtrair competência de outro Poder da República, flertando com a possibilidade de ofender o postulado democrático, “Reflexões Sobre a Democracia de Ober e Rosenfeld e o Ativismo Judicial” é um tema que se apresenta como de relevância para todo estudante do direito.

Palavras-chave: Democracia; Ativismo Judicial; Direitos Fundamentais.

ABSTRACT

Is the democracy offended when Judiciary Power acts as fundamental rights effectivener? To think about this question, this study starts by the premise of the Judiciary Power is able to actuate on this form. Admitted the existence of more than one of this forms of actuation, this research aims to isolate one of them and analysis it by the glasses of democracy. On the other

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hand, the democracy is presented accord the different views of Ober and Rosenfeld. About the rational course, the track of this research, starts with the actual need for enforcement of fundamental rights has contributed to the increase in the phenomenon called judicial activism. The judicial activism is characterized by a direct action of the State-Judge, in the figure of the judiciary, to ensure the realization of a fundamental right laid down in the constitution. The scope of coverage of this study is restricted to situations in which the executive branch there is a public policy designed to accomplish specific claim of right, but in which the judiciary to intervene on the ground that the policy is inefficient for a given situation. The aim of the research is to reflect whether this action of the Judiciary subtracts, or has the potential to subtract some of the powers of the Executive or the Legislature, offending, ultimately, democracy itself. For the present study, we use the methodology of literature that basically consists in reading, cataloging and comparison of the theories of the principal authors of the law that deal with this problem. Starting from the assumption that the judicial power has the potential to subtract jurisdiction of another branch of the Republic, flirting with the possibility of offending the democratic postulate, "Reflections About Ober’s and Rosenfeld’s Democracy and Judicial Activism" is a theme that presents itself as relevant to every student of law.

Keywords: Democracy, Judicial Activism; Fundamental Rights.

Introdução

A democracia é ofendida quando o Poder Judiciário atua como efetivador dos direitos

fundamentais? Para pensar sobre esta indagação, este estudo parte da premissa de que o Poder

Judiciário pode assim atuar de mais de uma forma. Admitida a existência de mais de uma

destas formas de atuação, a presente pesquisa visa isolar uma delas e analisá-la segundo a

ótica da democracia.

Por sua vez, a democracia será aqui apresentada segundo as diferentes visões

propostas por Ober e por Rosenfeld, sendo, portanto, ora vista como a capacidade de fazer

coisas e ora vista como o governo da maioria.

Nesta perspectiva, é de se reconhecer que a crescente necessidade de efetivação dos

direitos fundamentais encartulados na constituição brasileira, tem contribuído para a geração

do fenômeno que parece ter se convencionado chamar de ativismo judicial.

Em linhas gerais, o ativismo judicial se caracteriza por uma atuação direta do Estado-

Juiz, na figura do Poder Judiciário, no sentido de assegurar a realização de um direito

fundamental estabelecido na constituição, diante de uma situação concreta na qual uma pessoa

seja privada deste direito.

Esta atuação costuma ser verificada em três esferas de ausência, sempre relacionadas a

inércia, em alguma medida, dos Poderes Legislativo ou Executivo. O primeiro bolsão de

ausência ocorre diante da inexistência de norma infraconstitucional reguladora do direito que

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se pretende resguardar. O segundo é verificado quando inexistir política pública hábil à

consecução dos objetivos e programas idealizados pelo legislador constitucional. E, por fim, o

terceiro ocorrerá quando houver política pública sobre determinada matéria, mas esta política

se mostrar ineficiente diante do caso concreto apresentado ao Poder Judiciário.

Delimitando o âmbito de abrangência do presente estudo, a pesquisa foca sua mira

apenas no terceiro bolsão de ausência acima citado, sendo esta a hipótese investigada, ou seja,

as situações nas quais o Poder Executivo houver elaborado uma política pública com

pretensão de efetivar determinado direito, mas nas quais o Poder Judiciário intervenha com o

fundamento de que aquela política seja ineficiente para uma determinada situação concreta.

Frise-se, desde logo, que o presente estudo não objetiva, em nenhuma medida, analisar

casos concretos. Esta análise não é o mote desta pesquisa, nem mesmo an passant. A

pretensão deste paper é analisar, em tese, se ao agir assim o Poder Judiciário estaria atuando

de forma democrática.

Delimitada a hipótese de investigação, o estudo objetiva refletir se esta atuação do

Poder Judiciário subtrai, ou tem o potencial de subtrair, alguma das atribuições do Poder

Executivo ou do Legislativo.

Em outras palavras, pretende-se analisar se esta atuação do Poder Judiciário se reveste

de uma das características que o define como instância de poder julgadora, ou seja, se é

legítima, ou se está ocorrendo invasão de uma das atribuições do Poder Executivo ou do

Legislativo, ofendendo, em última análise, a própria democracia.

1 Direitos Fundamentais no contexto constitucional

Moraes1 classifica os direitos fundamentais como de primeira, segunda e terceira

gerações, baseando-se na ordem histórica cronológica em que passaram a ser

constitucionalmente reconhecidos. Assim, os direitos fundamentais de primeira geração são

os direitos e garantias individuais e políticos clássicos (liberdades públicas), os de segunda

geração são os direitos sociais, econômicos e culturais, surgidos no início do século XX

(trabalho, previdência, saúde, etc.). Já os de terceira geração são os chamados direitos de

solidariedade ou fraternidade, que englobam o direito a um meio ambiente equilibrado, uma

saudável qualidade de vida entre outros direitos difusos.

1 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. São Paulo: Atlas S/A, 2001, p.57-58.

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O tema que será tratado no presente estudo é um pouco mais restrito e em Barroso é

possível encontrar uma delimitação do ponto que se quer investigar, mais precisamente

quando fala em

Âmbito dos direitos individuais, cuja origem se encontra ligada às revoluções liberais e às declarações dela resultantes. Os direitos individuais, freqüentemente referidos como liberdades públicas, são a afirmação da personalidade humana. Talhados no individualismo liberal e dirigidos à proteção de valores relativos à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, contêm limitações ao poder político, traçando a esfera de proteção jurídica do indivíduo em face do Estado. Os direitos individuais impõem, em essência, deveres de abstenção aos órgãos públicos, preservando a iniciativa e a autonomia dos particulares. Na Constituição brasileira em vigor, eles se concentram na extensa enunciação dos 77 incisos do art. 5º” 2.3

Esse olhar da constituição para o indivíduo, sendo os direitos deste indivíduo

encarados como liberdades públicas, é também encontrado em Nogueira

Do direito Constitucional clássico, que atingiu seu ponto culminante com o modelo do Estado Democrático de Direito, passa-se a um plano ainda mais elevado, o supradireito das Liberdades Públicas moldado no Estado Democrático dos Direitos Humanos.[...] O ocaso de uma era é a aurora de outra moldada na experiência passada, mas modelada em um mundo completamente renovado.Um Direito outra vez humanizado para o “homem do terceiro milênio” pós-burguês. É nessa perspectiva que na incessante busca de uma Ordem Jurídica Justa (dever de todo jurista e também de cada cidadão, cada ser humano, mas especialmente do jurista...), o objetivo fundamental, senão o único, é alçar o Direito [...] como a matriz, ou centro gravitacional, dos demais sistemas ou ordens.4

Além de estarem razoavelmente delimitados no texto constitucional, Ferraz chama a

atenção para o fato de que não se apresentam apenas como um enumerado de direitos, mas

sim que constituem um verdadeiro sistema

2 BARROSO, Luís Roberto. Temas de direito constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p.82.3 A Emenda constitucional nº 45, de 30 de dezembro de 2004, introduziu o inciso LXXVIII ao art. 5º da CRFB. N.A.4 NOGUEIRA, Alberto. Jurisdição das liberdades públicas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p.415-420.

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Impulsionada pela evolução histórica do mundo atual, pela reação à ordem constitucional anteriores e pela enorme repercussão internacional do novo tratamento dos direitos da pessoa humana, cuja idéia central é não apenas reconhecer, declarar, proteger, mas, sobretudo concretizar direitos fundamentais de todos os “cidadãos” do mundo, a Constituição de 1988 avança, ainda, de modo absolutamente inovador nesse campo, e leva à percepção do que se pode chamar de um “sistema” constitucional de direitos fundamentais”, ou seja de um conjunto normativo ordenado e coordenado, informado por um núcleo de princípios e valores jurídicos fundamentais dominantes, dotado de unidade de sentido, completude e coerência e de um caráter de fundamentalidade5.

Estabelecidos estes esclarecimentos acerca do entendimento doutrinário sobre os

direitos fundamentais, faz-se necessário tecer alguns breves comentários acerca da titularidade

da efetivação desta espécie de garantia do indivíduo.

Esta problemática sempre foi tema de discussão no âmbito acadêmico, sendo um

conceito em constante evolução diante das próprias mudanças históricas que afetaram o

instituto.

O processo evolutivo da relação do Estado com os jurisdicionados tem por início a

titularidade inicial quase que exclusiva em mãos do poder legislativo, através da elaboração

de leis que garantissem tais direitos. Passado o tempo, o foco migrou para o poder executivo,

pela possibilidade de realizar tais direitos através de políticas públicas específicas. Tempos

depois, seja pela inércia do poder legislativo, seja pela ineficiência ou inexistência de políticas

públicas adequadas, a titularidade muda para o Poder Judiciário, sendo hoje o atual guardião

dos direitos desta envergadura.

Abordando este contexto histórico, especialmente a passagem de titularidade do

legislativo para o executivo, Alves afirma que

Mais adiante [...] o protagonismo passou a ser exercido pelo Poder Executivo. Do “governo” se esperava que tomasse medidas concretas mediante programas e serviços bem estruturados, capazes de assegurar condições suficientes de qualidade de vida, especialmente no campo da saúde, educação e previdência social. Tal fase [...] o chamado Estado Social de Direito [...] passou a ser designado Estado do Bem-Estar Social (do inglês Welfare State), ou Estado Providência (do francês État Providence)6.

5 FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Aspectos da positivação dos direitos fundamentais na constituição de 1988, p. 125.6 ALVES, Cleber Francisco. Justiça para todos! Assistência jurídica gratuita nos Estados Unidos, na França e no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p.21-23.

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Ocorre que no mundo contemporâneo, no mundo das sociedades de massa, as políticas

públicas têm se mostrado muito precárias quanto à efetivação dos direitos fundamentais. Não

interessa para o presente estudo discutir a gênese da falência da maioria destas políticas, mas

sim constatar que o Poder Executivo, por si só, se mostrou ineficaz neste particular.

Por outro lado, não se pode admitir, ao menos sem rediscutir o princípio da separação

de poderes, que o Poder Judiciário assuma integralmente esta competência. Permitir que a

bandeira da efetividade dos direitos fundamentais seja o salvo conduto para dotar de

superpoderes quaisquer dos Poderes da República, é possibilidade perigosa e que flerta com a

subtração da própria democracia.

2 Democracia e Ativismo Judicial

Conforme destaca Ober, democracia é uma palavra que pode gerar significados

diferentes, para pessoas diferentes. Sua origem, do grego antigo, remete a uma definição

análoga a poder do povo7.

Dentro do arcabouço jurídico brasileiro, logo no primeiro artigo da constituição a

democracia está assegurada como princípio fundamental, ficando estabelecido mais adiante,

que todo o poder emanará do povo e que ele o exercerá por meio de seus representantes

eleitos, ou até mesmo diretamente8.

Uma das críticas mais comuns à democracia, reside na possibilidade de que o sistema

se constitua em uma forma de opressão da maioria, que falsamente atribuiria sua legitimidade

à sua vitória nas urnas. Esta crítica parece tentar ser respondida com os sistemas hoje

existentes, como, por exemplo, no caso brasileiro, o sistema do voto proporcional. Tais

tentativas de resposta pretendem garantir, em última análise, que algumas minorias alcem

seus representantes às instâncias legislativas, participando de forma paritária no processo de

elaboração das leis.

Ocorre que essa discussão não se esgota neste ambiente ainda raso, sendo necessário

mergulhar um pouco mais profundamente, especialmente quando se considera que ainda é

muito comum não se identificar o funcionamento adequado do sistema democrático, na

7 OBER, Josiah. The original meaning of “democracy”: capacity to do things, not majority rule. Constellations, vol. 15, No. 1, 2008, p. 1.8 Brasil. Constituição. “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.”

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medida em que possibilita hiatos de representatividade para determinados setores da

sociedade.

Veja-se, por exemplo, os reflexos patrimoniais oriundos de uma relação homo afetiva,

que é tema já idoso quanto ao ineditismo, mas ainda plenamente atual na ordem das instâncias

legislativas de diversos países.

Nesta perspectiva, Ober sustenta que a democracia seria mais bem definida se fosse

considerada como a capacidade de fazer coisas, do que se o fosse como o governo da

maioria9. A construção intelectual do autor parte de uma investigação etimológica, que não é

o objeto do presente estudo, mas sua conclusão apresenta pontos de contato com a linha de

raciocínio aqui apresentada.

Assim, Ober propõe que a democracia, normalmente vista como o governo, o poder da

maioria, vista como o verdadeiro controle monopolístico de uma autoridade constitucional

pré-existente, passe a ser entendida como o poder que a população detém de efetivamente

participar da gestão pública, não apenas como controlador da atuação dos titulares do poder,

mas, inclusive, com capacidade de promover mudanças efetivas no cenário público10.

Como se percebe, o cerne foi profundamente modificado, pois a capacidade de

influenciar diretamente na gestão da coisa pública, é bem diferente do que ser o detentor, o

titular do poder estatal, sendo este considerado como idéia e não como resultado de um

sistema político-jurídico.

Resta saber, entretanto, se esta proposição se conjuga com o texto da constituição

brasileira antes mencionado, que expressamente determina que todo o poder emana do povo.

Em princípio, parece não haver incompatibilidade ontológica com a proposição e o

texto constitucional, na medida em que Ober não subtrai o poder advindo do povo. Sua

proposição apresenta uma interpretação diferente do fenômeno político, um olhar externo que

parece não alterar a essência deste fenômeno em nenhuma medida.

A conclusão que se chega em Ober, é que ao modificar esta concepção sobre o que

seria a democracia, foi retirada a possibilidade de opressão da maioria, possibilitando que

setores menos favorecidos da sociedade recebam vantagens em termos de participação no

cenário público, a fim de que sejam tratados com efetiva isonomia11. Do contrário, conclui

Ober, seria o equivalente a dar razão aos que já definiram a democracia como se fosse um

sistema caracterizado como uma espécie de tirania da maioria12.9 Op.cit., p. 3.10 Idem, p. 7.11 Ibidem.12 Op.cit., p. 8. “[...] so suffice it to say that anciente critics of popular rule sought to rebrand demokratia as the equivalent of a tyrannical “polloi-archia” – as the monopolistic domination of government apparatus by the

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Mas sendo a democracia a possibilidade de fazer coisas, seria interessante saber qual o

equilíbrio desta atuação. Em outras palavras, restaria saber se com esta perspectiva apenas não

haveria a mudança no foco da opressão, ou seja, da tirania da maioria para a tirania de uma

minoria qualquer. Esta investigação, entretanto, também transborda ao objeto do presente

estudo.

O passo seguinte a esta capacidade de fazer coisas, considerando que elas realmente

tenham sido feitas, ao menos no que pertine ao processo legislativo constitucional, surge a

necessidade de implementação das garantias que se tenha conseguido estabelecer no texto da

constituição.

Oportunidades haverá, neste viés, nas quais estas garantias não serão efetivadas e nas

quais o indivíduo, ainda imbuído desta possibilidade democrática de fazer as coisas, terá a

possibilidade de alçar sua pretensão a um Órgão diferente daquele elaborador da lei e daquele

gestor da coisa pública, surgindo daí a chamada jurisdição constitucional.

Para Lima, a jurisdição constitucional, ou seja, a possibilidade de se discutir direitos

constitucionais em sede de um processo promovido sob a tutela do poder judiciário, é um

elemento facilitador do fortalecimento da democracia13.

E pensar em jurisdição constitucional é, inexoravelmente, pensar em estado de direito.

No caso específico da linha de pensamento apresentada neste trabalho, será estado

democrático de direito.

Ocorre que Rosenfeld faz um prudente alerta sobre a possibilidade de haver hipóteses

nas quais o estado de direito poderá se chocar com a democracia14.

E grande parte do problema, em sua visão, residiria na própria definição do que seria o

estado de direito, chegando Rosenfeld mesmo a afirmar que este seria um conceito

essencialmente contestável15.

Ademais, prossegue Rosenfeld, mesmo num contexto de democracia constitucional, o

estado de direito pode ser invocado pelo Estado contra os cidadãos, no sentido de preservar a

lei - sendo esta considerada como manifestação da vontade da maioria - tanto quanto poderia

ser invocada pelos cidadãos em face do Estado, com o objetivo de assegurar direitos

fundamentais que tenham sido violados por leis ou determinadas políticas públicas16.

many who were poor […]”.13 LIMA, Martônio Mont’Alverne Barreto. A guarda da constituição em Hans Kelsen. p. 10, disponível na internet: < http://sisnet.aduaneiras.com.br/lex/doutrinas/arquivos/031007.pdf>, acesso em: 24 de junho de 2012.14 ROSENFELD, Michel. The rule of Law and the legitimaty of constitucional democracy. Cardozo Law School, Public Law Research Paper, No. 36, 2001, p. 3, disponível na internet: <http://ssrn.com/abstract=262350> ou http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.262350, acesso em: 24 de junho de 2012.15 Idem, p. 4.16 Idem, p. 5.

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Rosenfeld apresenta este pensamento de forma inequívoca, por ocasião da Conferência

proferida na Assembléia Legislativa de Belo Horizonte/MG, deixando evidente que a

democracia é a regra da maioria, a regra majoritária, a contrapondo, portanto, com o

constitucionalismo:

De fato, há uma tensão importante entre constitucionalismo e democracia. Não é óbvio que os dois devam caminhar juntos. Há muitas definições de democracia. Eu adotarei aqui uma definição que considero uma versão simplificada: democracia é a regra da maioria, a regra majoritária. É uma forma política de organização, um sistema político em que as decisões que são contestadas resultam do voto da maioria. Dessa forma, constitucionalismo e democracia estão em lados opostos. Numa democracia, os direitos constitucionais vão diretamente contra a vontade democrática. A liberdade de pensamento ou de expressão - e aqui pode-se comparar uma monarquia a uma democracia - realmente significa proteger os pontos de vista com os quais a maioria não está de acordo, porque os pontos de vista com os quais a maioria concorda não precisam de proteção constitucional. A maioria tomará conta de si mesma, por meio do processo legislativo e do devido governo17.

Neste sentido, Rosenfeld entende que os direitos constitucionais seriam, em alguma

medida, antidemocráticos, antimajoritários, na perspectiva na qual os direitos encartulados na

constituição existem especificamente para a proteção do indivíduo contra a vontade da

maioria18.

Veja-se que Rosenfeld considera a democracia como a exteriorização da vontade da

maioria, no que diverge de Ober, quando a define como a capacidade de fazer coisas. Poder-

se-ia dizer, em defesa de ambas as posições, que a perspectiva de Rosenfeld foca na razão

prática, enquanto a de Ober prima pela razão pura.

Em um ou em outro caso, entretanto, saber o que é a democracia será uma constatação

mais empírica do que dogmática. Se a forma de exercício da democracia possibilitar que todos

os setores da sociedade tenham a capacidade de atuar efetivamente no âmbito das definições

da coisa pública, a correção residirá no pensamento de Ober. Se, por outro lado, a ineficiência

da máquina administrativa estatal conduzir a uma realidade, na qual as decisões públicas

sejam a expressão de um discurso majoritário advindo das massas – sejam elas de qualquer

origem, bastando que sejam a maioria – a resposta correta estará em Rosenfeld.

17 ROSENFELD, Michel. A identidade do sujeito constitucional e o estado democrático de direito. Cadernos da Escola do Legislativo, Belo Horizonte, v. 7, n. 12, jan/jul 2004, p. 12, disponível na internet: <http://mediaserver.almg.gov.br/acervo/127/688127.pdf>, acesso em 24 de junho de 2012.18 Idem, p. 13.

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Ocorre que em sede de jurisdição constitucional, ou seja, de atuação do juiz

diretamente perante um caso concreto, parece necessário saber qual o impacto da decisão

judicial no que pertine à própria manutenção da democracia. Em outras palavras, é necessário

saber em que medida o tribunal constitucional teria competência democrática para decidir

desta ou daquela maneira.

A proposição de Lima, por seu turno, considera como necessária a presença do

elemento político no contexto de jurisdição constitucional:

Duas reflexões teóricas parecem possíveis. A primeira delas foi aqui

anteriormente lembrada: o constitucionalismo necessita da teoria

política – e de uma teoria política da democracia, após as experiências

catastróficas do século XX – para garantir consistência empírica aos

textos que produz (e que significam, em sociedade como as oriundas da

redemocratização dos anos 80 na América Latina, a sua razão de ser).

Sem o componente da análise política, a aplicação das constituições e a

visão possível de seus direitos, garantias e instituições pouco

contribuirão para sua própria existência, enquanto referência

democrática a ser efetivada19.

Lima, entretanto, aborda um aspecto ainda pouco analisado na literatura nacional, que

se cinge à questão do papel preponderantemente político dos tribunais no arco do poder do

Estado, chegando mesmo a mencionar uma possível usurpação do político por tribunais que

não se submetem a qualquer tipo de controle direto por parte do povo20.

Perceba-se, portanto, que a possibilidade de carência democrática em uma decisão do

tribunal constitucional já é uma preocupação da comunidade científica, diante da

possibilidade – e mesmo diante de resultados práticos já conhecidos – de que o controlador

não seja controlado por ninguém, tornando-se um verdadeiro tirano.

E se mesmo em sede de um tribunal constitucional essa possibilidade já se verifica,

inclusive podendo ser pensada como uma fissura no sistema, com maior razão se apresentará

a necessidade de enfrentar a questão quando se tratar de decisão proferida por qualquer

membro do Poder Judiciário.

19 Op.cit., p. 7.20 Idem, p. 10-11.

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Vale aqui abrir um parêntese, portanto, para destacar que o sistema de controle de

constitucionalidade existente no Brasil, possui as duas vertentes praticadas no mundo

ocidental.

Aqui se controla a constitucionalidade pela forma abstrata – na qual a matéria é

analisada em tese, por um único Órgão julgador21 - e pela forma concreta, quando a discussão

sobre a constitucionalidade não for o objeto do processo, mas sim o fundamento para se

alcançar a pretensão deduzida naquela demanda específica22.

Fechando o parêntese, parece ficar claro que uma decisão judicial proferida em sede

de controle concentrado, tem potencialmente maior possibilidade de lesão à democracia, do

que aquela proferida em sede de controle abstrato.

A decisão em controle abstrato, portanto, tem em seu favor ao menos o fato de analisar

a hipótese em tese, possibilitando que os efeitos da decisão final atinjam todas as pessoas. No

controle concentrado, todavia, e considerando-se a doutrina tradicional, a decisão só terá valor

entre as partes do processo.

Frise-se, por oportuno, que esta digressão foi necessária para que fosse evidenciada a

amplitude à qual poderia chegar o estudo, se a hipótese fosse de cognição exauriente acerca

da própria jurisdição constitucional. O objeto da pesquisa deste trabalho, como se pode

perceber, é um pouco mais específico.

Consoante adiantado na introdução, a hipótese investigada é a de atuação do Poder

Judiciário contra uma política pública existente, mas que no entender do tribunal seja

insuficiente para atendimento de um determinado caso concreto.

O que ocorre na hipótese de ativismo judicial ora investigada, é a prolação de uma

sentença judicial que tem o objetivo de fazer valer uma norma programática, ou, com maior

freqüência, de um princípio de direito esculpido na constituição. Desta sentença advirá uma

ordem que determine ao Poder Executivo proceder desta ou daquela maneira.

Sintetizando o raciocínio, para que a hipótese não se perca na profusão de termos

técnicos, impossibilitando a leitura por outros ramos das ciências humanas, faz-se necessário

esclarecer um pouco mais o objeto do estudo, agora já de posse das informações tratadas até o

momento.

21 O controle abstrato será exercido pelo STF quando o controle da constitucionalidade tiver por parâmetro a constituição federal e, pelos Tribunais de Justiça estaduais, quando o parâmetro for a constituição daquele estado especificamente.22 O controle concreto, no Brasil, é exercido por todos os Órgãos do Poder Judiciário. No controle abstrato o pedido da ação é a declaração da inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, enquanto que no controle concreto o fundamento para se formular o pedido, sendo este qualquer um juridicamente possível, é que será a inconstitucionalidade de determinada lei ou ato normativo.

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O caso em apreço ocorre quando um juiz – qualquer um, de qualquer instância ou

tribunal – decide que para a efetivação de um direito fundamental pleiteado pela parte

supostamente lesada, o Poder Executivo deverá agir da forma que ele (juiz) determinar, sem

que para isso necessite sequer abordar, nem mesmo an passant, se a política pública analisada

é ou não ofensiva ao texto constitucional. Basta, portanto, que o indivíduo demonstre que o

exercício de determinado direito fundamental não lhe seja garantido por aquela política.

A síntese da síntese, portanto, é que a hipótese de ativismo judicial analisada neste

estudo, é aquela na qual o juiz decide o quê o Poder Executivo deverá fazer para efetivar o

direito fundamental em um determinado caso concreto.

Necessário lembrar que o tema deve ser pensado no contexto da realidade do Estado

brasileiro, o que forçará levar em consideração a existência de um hiato entre o querido e o

possível, na perspectiva de um país ainda em processo de desenvolvimento.

A pergunta que se formula, portanto, é a seguinte: agindo assim, o Poder Judiciário

garante à pessoa (como espécie humana) a democracia, sendo esta considerada como a

capacidade de fazer coisas, ou promove o desvirtuamento do sistema democrático, ao obrigar

que o Estado privilegie a pessoa (indivíduo específico) em detrimento de todos os demais?

Ávila já se dedicou a questão e suas ponderações são pertinentes ao pensamento

apresentado até este momento:

Não é correto [...] asseverar que o Poder Judiciário deve preponderar sobre o Poder Legislativo (ou Executivo). Numa sociedade complexa e plural, é o Poder Legislativo o Poder onde, por meio do debate, se pode respeitar e levar em consideração a pluralidade de concepções de mundo e de valores, e o modo de sua realização. Em matérias para as quais não há uma solução justa para os conflitos de interesses, mas várias, não um só caminho para a realização de uma finalidade, mas vários, é por meio do Poder Legislativo que se pode melhor obter a participação e a consideração da opinião de todos. Num ordenamento constitucional que privilegia a participação democrática e reserva ao Poder Legislativo a competência para regular, por lei, um sem número de matérias, não se afigura adequado sustentar se passou do Poder Legislativo para o Poder Judiciário, nem que se deve passar ou é necessariamente bom que se passe de um para outro23.

23 ÁVILA, Humberto. “Neoconstitucionalismo”: entre a “ciência do direito” e o “direito da ciência” . Revista eletrônica de Direito do Estado (REDE), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, nº. 17, janeiro/fevereiro/março, 2009, p. 18-19, disponível na Internet: <http://www.direitodoestado.com.br/rede.asp>, acesso em 27 de outubro de 2011.

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O ativismo, da forma como pintado com as pesadas cores utilizadas neste estudo, ruma

para o autoritarismo, na medida em que o Poder Judiciário, ao invés de guardião da legalidade

constitucional, flerta perigosamente com teorias totalitárias.

Pretender retirar a legitimidade do Poder Legislativo para decidir o que é melhor ou

pior para a sociedade, é retirar a voz do povo, é subtrair a democracia e dedicar sua análise a

um grupo seleto de iluminados, como já alertava Kelsen a quase um século:

Permitir que uma maioria de homens ignorantes decida, em vez de reservar a decisão ao único que, em virtude de sua origem ou inspiração divina, tem o conhecimento exclusivo do bem absoluto – não é esse o método mais absurdo quando se acredita que tal conhecimento é impossível e que, consequentemente, nenhum indivíduo isolado tem o direito de impor sua vontade aos outros. O fato de os juízos de valor terem apenas uma validade relativa – um dos princípios básicos do relativismo filosófico – implica em que os juízos de valor opostos não estão nem lógica nem moralmente excluídos. Um dos princípios fundamentais da democracia é o de que todos têm de respeitar a opinião política dos outros, uma vez que todos são iguais e livres. A tolerância, os direitos das minorias, a liberdade de expressão e de pensamento, componentes tão característicos de uma democracia, não têm lugar em um sistema político baseado na crença em valores absolutos. Tal crença leva irresistivelmente – e sempre tem levado – a uma situação na qual aquele que pretende possuir o segredo do bem absoluto reivindica o direito de impor sua opinião e sua vontade aos outros, que estarão incorrendo em erro se com ele não concordarem. E errar, segundo essa concepção, é uma falta e, portanto, passível de punição24.

E neste sentido, já que é necessário que o povo seja representado e que sua vontade

seja exteriorizada por um discurso único, não há como vislumbrar que uma única pessoa,

investida de jurisdição, possa subtrair o que a vontade da maioria estabeleceu.

Antes disso, é de reconhecer, todavia, que o primeiro passo é identificar o que seria a

manifestação volitiva do povo. A questão é tormentosa e toca apenas tangencialmente o

presente estudo. De toda sorte, em Korsgaard esta celeuma também foi identificada e a saída é

apontada em Kant, especificamente quanto aos estudos afetos ao direito (ou a ausência de

direito) à revolução

O problema surge porque a vontade do povo deve ser representada. Um povo não pode literalmente falar com uma só voz. Ele deve falar através de um representante que tenha seu mandato. O que torna o problema da revolução tão agudo é que o que está em questão aqui é quem representa o povo. E o povo não pode literalmente falar com uma só voz sobre isso, não mais do que

24 KELSEN, Hans. A democracia. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 202.

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pode fazê-lo em relação a qualquer outra coisa. Até que resolvamos a questão de quem representa o povo, a vontade geral não tem uma voz com a qual falar. Então não podemos começar com a vontade do povo; para saber o que é a vontade do povo, devemos começar com alguém que foi designado como seu representante, sua voz. Isso pode fazer com que pareça estranhamente arbitrário quem nós escolhemos para representá-lo. A solução de Kant para esse problema é dizer que o representante do povo é apenas o governo existente, qualquer que seja ele. 25

Por outro lado, e ainda que a análise não estivesse escudada numa perspectiva

kantiana, Korsgaard persiste no ponto acerca da necessidade inafastável de se identificar a voz

do povo

[...] Suponha que nós aceitemos, ao invés, que exista algo como a vontade geral, independentemente de nossos procedimentos, e que nossos procedimentos deveriam ser vistos como dispositivos falíveis para determiná-la. Então, podemos admitir, contrariamente a Kant, que o regime existente pode não representar a vontade do povo e pode, portanto, falhar em ser legítimo. Mesmo assim, temos o problema. Ainda é verdade que o povo não pode falar como povo até que tenha uma voz. Um revolucionário que alega ser o representante do povo meramente por causa do espírito que ele capta entre o povo, ou mesmo porque ele teve um voto favorável, está descrevendo erroneamente a situação. O povo só pode conferir o seu mandato através de alguma voz devidamente constituída, através de alguém que tenha o direito de representá-lo. Se admitirmos a possibilidade de que o regime existente não representa a vontade geral, então não há qualquer forma de dizer o que é a vontade geral.26

Portanto, denota-se que em nenhum momento a decisão final é relegada aos

acadêmicos ou aos técnicos do direito. Parece, sem sombra de dúvida, que a voz do povo é

escutada diretamente da boca de seus representantes, ao menos para que se obtenha uma

unicidade no regramento ou em sua interpretação.

O que é ainda mais curioso na proposição de Korsgaard, é a sua fundamentação em

Kant para citar a legitimidade advinda da voz do povo. A curiosidade, neste ponto, está

relacionada ao fato de que a crítica ao modelo de separação de poderes em Kant aponta para a

formação de um Estado despótico, com o soberano praticamente concentrando os poderes

legislativo e executivo, e um judiciário mais autônomo. Acerca desta crítica, vale observar o

que pontua Westphal

A teoria constitucional publicada em Kant é incompleta e internamente inconsistente. Apesar de ele não ter percebido essa inconsistência, ele expressamente indicou sua incompletude. Assim, é especialmente importante notar que a maioria dos princípios requeridos pelas necessárias revisões já

25 KORSGAARD, Christine M. Tomando a lei em nossas próprias mãos: Kant e o direito à revolução. In: TRAVESSONI, Alexandre. (Coord.). Kant e o direito. Belo Horizonte: Mandamentos, 2009. p. 545.26 Idem. p. 546-547.

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estão explicitamente contidos em sua Rechtslehre (Doutrina do Direito). Também merece ser ressaltado que a divisão na teoria de Kant entre uma divisão de poderes republicana e um governante executivo absolutista é a principal divisão constitucional entre o que até muito recentemente eram os Blocos Oeste e Leste.27

Crítica similar se verifica em Travessoni, em que pese divergir, ainda que em pouca

medida, de Westphal

Westphal chega a uma interessante conclusão em seu ensaio: ele aponta o caráter rígido da divisão de poderes e a falta de um sistema de freios e contrapesos na teoria política de Kant. Eu aponto aqui a falta de um critério para fixar um mínimo de legitimidade para o sistema jurídico. Esses são dois frontes na mesma batalha. Existe um problema: como harmonizar obediência e legitimidade? Podemos tentar resolvê-lo (i) criando meios para assegurar que o sistema jurídico seja legítimo ou (ii) fazendo a desobediência, pelo menos em alguns casos, legítima. Westphal defende a primeira solução, enquanto eu defendo, aqui, a segunda. Parece-me que uma não exclui a outra. De qualquer forma, ambos pensamos que, quando Kant tratou dessa matéria, ele poderia ter extraído mais de seus princípios do que fez.28

Veja-se, neste diapasão, que independentemente do foco da crítica, o que é uníssono é

que a concentração de poderes republicanos é algo frequentemente repudiado pela

comunidade acadêmica. E se a concentração de quaisquer dos poderes republicanos é ruim

quando se localiza nas mãos do soberano, também o será se sua moradia residir nas mãos de

um único magistrado ou tribunal.

A constituição, como corolário máximo da manifestação democrática e norte para todo

o ordenamento jurídico, entretanto, carece de regulamentação amiúde, o que é relegado às leis

infraconstitucionais, que também se submetem a um processo legislativo democrático

estabelecido pela própria constituição.

A proposta do presente estudo parte de outra racionalidade. Considerando, por

conseguinte, que o processo democrático também delega ao Poder Executivo a competência

para estabelecer as políticas públicas – que darão vida aos direitos fundamentais esculpidos na

constituição – o Poder Judiciário só poderia se manifestar contra a integralidade da política

pública. De outra forma, a efetivação do direito só seria garantida para aqueles que pudessem

pleitear a proteção jurisdicional.

27 WESTPHAL, Kenneth R. Republicanismo, despotismo e obediência ao Estado: a inadequação da divisão de poderes em Kant. In: TRAVESSONI, Alexandre. (Coord.). Kant e o direito. Belo Horizonte: Mandamentos, 2009. p. 516.28 TRAVESSONI, Alexandre. É consistente a defesa de Kant da obediência absoluta à autoridade?In: TRAVESSONI, Alexandre. (Coord.). Kant e o direito. Belo Horizonte: Mandamentos, 2009. p. 578-579.

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Esta proposição pressupõe a constatação irrefutável de que o acesso ao Poder

Judiciário não é amplo, irrestrito e plural em todo o país. Apesar desta questão não ser aqui

aprofundada empiricamente, é utilizada como um paradigma lógico, diante de sua

notoriedade.

Ao que o estudo indica, pensar diferente é permitir que o Poder Judiciário feche os

olhos para a sua condição de membro do Estado e ignore o fato de que somente algumas

pessoas conseguem apresentar suas queixas para apreciação judicial. Se a política é ofensiva à

efetivação de direitos fundamentais, o será para todos e não somente para aqueles que

puderem chegar aos seus gélidos corredores marmoreados.

Não poderia o Poder Judiciário, portanto, em um momento atuar como Estado-juiz e

obrigar outro Poder da República a proceder desta ou daquela forma, e em outro momento se

esconder em regras processuais para somente fazer valer sua decisão para quem puder – e for

representado por um bom advogado – submeter-lhe sua pretensão.

O pensamento apresentado, pretende conjugar as necessárias racionalidade e coerência

do sistema, preservando a chave da lógica da ordem jurídica, como diria Goyard-Fabre

A superlegalidade constitucional significa que, no Estado, a Constituição é a chave da lei e da regularidade das decisões de direito. Entenda-se por isso que ela se impõe de modo coercitivo como fonte da legalidade e que, por essa razão, torna inteligível, desde seus princípios primeiros, todo o sistema jurídico do Estado. Em outras palavras, ela permite pensar o sistema do direito segundo as categorias da razão. A doutrina constitucionalista corresponde, com efeito, a uma preocupação de racionalização da ordem jurídica29.

Nesta perspectiva, não haveria nenhuma racionalidade democrática que sobrevivesse à

coexistência de políticas públicas diversas para pessoas iguais, especialmente se esta

diferença fosse imposta pelo Poder Judiciário.

Não se pode olvidar, por outro turno, que a democracia, seja a considerada como o

governo da maioria, seja a considerada como a capacidade de fazer coisas, deve primar pelo

foco no que for coletivo, naquilo em que o coletivo for igual. Em outras palavras, se a política

pública ofende determinada pessoa, é desdobramento lógico que ofenderá a todas as pessoas

que forem iguais a ela.

29 GOYARD-FABRE, Simone. Os fundamentos da ordem jurídica. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 122.

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Por conseguinte, não há que se falar em superioridade ou legitimidade de determinado

poder da república, especialmente se esta pretensa superioridade estiver lastreada em critérios

de conhecimento científico-acadêmico e, portanto, mais distante da massa.

Nunca é demais lembrar que, como visto acima30, a constituição brasileira estabelece

que todo o poder emana do povo e que este se manifesta, primordialmente, por seus

representantes. Quando estes representantes editam leis, é o próprio povo que estabelece a

cogência destas normas de direito.

A vontade popular, neste sentido, sempre estará acima das instituições, ainda que estas

se apresentem bem intencionadas. Neste sentido Korsgaard exemplifica

[...] Quando estamos julgando as próprias instituições do governo, esse tipo de tensão pode ser levada ao nível do paradoxo, ilustrado por um exemplo simples. Suponha que estejamos convencidos de que a idéia de que o governo deveria representar a vontade geral do povo exige que algum grupo de pessoas, até então irremediavelmente subordinadas a um tirano poderoso, tenha permissão para escolher suas próprias instituições políticas em uma eleição democrática. E suponha que, tendo sido libertadas de seu tirano e tendo lhes sido permitido votar para escolher suas instituições políticas, elas unanimemente rejeitem a democracia, e elejam seu tirano imediatamente de volta. Onde, agora, reside a justiça? Devemos impor a essas pessoas uma forma de governo que elas não escolhem ter, em nome do respeito a sua vontade geral? Podemos estar convencidos, e com boas razões, de que a democracia constitucional é a melhor forma de um povo expressar sua vontade geral. Mas a ausência de instituições democráticas não pode ser tomada como prova ou mesmo como evidência de que um governo não representa a vontade geral de seu povo. 31

Vê-se, portanto, que em Korsgaard a vontade popular é a única absolutamente

soberana, no que coincide ipsis literis com o já citado parágrafo único, do art. 1º, da

constituição brasileira.

Conclusão

Neste caminhar intelectual, conclui-se que a proteção de direitos fundamentais em

sede constitucional é, ou deveria ser, uma proteção para o indivíduo. O indivíduo passa à ter a

garantia de que seus direitos individuais serão respeitados, mesmo quando a vontade da

maioria, ou a vontade estatal, quiserem negar-lhe determinado direito.

30 Nota 8.31 KORSGAARD, Christine M. Tomando a lei em nossas próprias mãos: Kant e o direito à revolução. In: TRAVESSONI, Alexandre. (Coord.). Kant e o direito. Belo Horizonte: Mandamentos, 2009. p. 542.

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Para que essa meta se concretize, faz-se necessária além da preservação dos direitos

fundamentais, a criação de meios efetivos para sua realização, sendo este dever atribuído ao

Estado.

A democracia, considerada como a capacidade de fazer coisas, como a possibilidade

de qualquer indivíduo obrigar o Estado a efetivar um direito que lhe esteja sendo negado ou

violado, compreende a possibilidade de atuar diretamente perante os três poderes estatais.

Nesta mesma linha, no âmbito brasileiro a constituição estabelece que todo o poder

emana do povo. Portanto, tanto a atuação das autoridades públicas, assim como a atuação das

próprias instituições, devem estar preordenadas à ouvir e satisfazer a vontade popular.

O Estado, mesmo como titular do dever de efetivação das garantias individuais, é

composto pelos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, e assume o compromisso de agir

coletivamente na preservação destas garantias.

Para que essa efetivação se verifique em plenitude, o Estado não poderá se esconder

atrás de nenhuma de suas facetas tripartidas, de molde a disfarçar uma espécie de totalitarismo

representado pela concentração destes poderes em um único.

Da mesma forma, a efetivação dos direitos fundamentais, por conseguinte, não pode

ser utilizada como máscara para privilegiar injustificadamente qualquer indivíduo ou grupo

social, culminando por prejudicar toda a coletividade.

De outro ângulo de visada, também não será possível que a vontade da maioria seja

instrumento de opressão contra qualquer indivíduo ou grupo de indivíduos.

A democracia, portanto, considerada como a capacidade de fazer coisas, considerada

como a possibilidade de qualquer indivíduo ou grupo alçar representantes com reais poderes

de atuação em seu nome, pressupõe que a vontade popular não só será ouvida, como também

será o norte maior da atuação do Estado, ainda quando manifestada através do Poder

Judiciário.

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CONSTITUCIONALISMO E DEMOCRACIA: A ATUAÇÃO CONTRAMAJORITÁRIA DOS TRIBUNAIS CONSTITUCIONAIS É LEGÍTIMA DO

PONTO DE VISTA DEMOCRÁTICO?

Carlos Eduardo Reis Fortes do Rego

Resumo

O presente trabalho estuda a função contramajoritária1 dos Tribunais Constitucionais, enfocando o Supremo Tribunal Federal brasileiro, ao procurar relacioná-la ao princípio democrático que norteia o Estado de Direito contemporâneo. Tomando como base os ensinamentos de Ronald Dworkin e Robert Alexy, exporá, inicialmente, o conceito de constitucionalismo e sua aparente oposição a uma noção restritiva de democracia, que Dworkin chama de concepção estatística de democracia. Posteriormente, tentar-se-á legitimar as decisões contramajoritárias através de uma noção mais ampla de democracia, numa concepção comunitária de democracia, ao se ater, fundamentalmente, aos direitos fundamentais, em detrimento do mero fator majoritário.

Ademais, analisará os ensinamentos de Robert Alexy, para quem a legitimação dos Tribunais Constitucionais é dada argumentativamente, através de uma racionalidade argumentativa e procedimental, pela qual o Tribunal representa o cidadão argumentativamente. Por fim, trará as lúcidas palavras de Zagrebelsky, que faz uma excelente metáfora da noção restritiva de democracia com o episódio da crucificação de Jesus Cristo.

Palavras-chave

Jurisdição Constitucional; Função Contramajoritária; Princípio Democrático.

CONSTITUTIONALISM AND DEMOCRACY: IS THE COUNTER-

MAJORITARIAN FUNCTION OF CONSTITUTIONAL COURTS LEGITIMATE OF

DEMOCRATIC POINT OF VIEW?

Abstract

This paper studies the function counter-majoritarian of constitutional courts, focusing on the Brazilian Supreme Court, seeking to relate it to the democratic principle that guides the contemporary rule of law. Based on the teachings of Ronald Dworkin and Robert Alexy, this paper exposes, initially, the concept of constitutionalism and its apparent opposition to a restrictive notion of democracy, which Dworkin calls a statistical conception of democracy.

1 Nesse estudo, usa-se a palavra contramajoritária, obedecendo às novas regras ortográficas da Língua

Portuguesa. Contudo, utilizamos textos anteriores à vigência desta nova Regra e optamos por manter a grafia original nos trechos extraídos desses trabalhos anteriores.

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Later, it will try to legitimize counter-majoritarian decisions through a wider notion of democracy, a communal conception of democracy, based basically to fundamental rights, instead of the mere majoritarianism.

Also, this paper examines the teachings of Robert Alexy, who the legitimation of constitutional courts is given through a rational argument and procedural, in which the Court is representing the citizen by means of rational speech. Finally, this paper brings in the lucid words of Zagrebelsky, who makes an excellent metaphor for the restrictive notion of democracy with the episode of the crucifixion of Jesus Christ.

Key Words

Counter-majoritarian; Democratic Principle; Rule of Law.

1. A aparente contradição

O jurista norte-americano Ronald Dworkin entende constitucionalismo como: Por “constitucionalismo” um sistema que estabelece direitos jurídicos

individuais que o legislador dominante não tem o poder de anular ou comprometer. O constitucionalismo, assim entendido, é um fenômeno político cada vez mais popular. Vem se tornando cada vez mais comum supor que um sistema jurídico respeitável deve incluir a proteção constitucional de direitos individuais. (DWORKIN, p. 2,1995)

Por essa definição, é possível já constatar a alusão que Dworkin faz do

constitucionalismo como um sistema pautado na proteção dos direitos fundamentais,

salvaguarda que é oposta até ao legislador, que seja democraticamente imbuído de suas

atividades.

Daí, no entanto, surge o primeiro embate acerca dessa idéia, que é a da confrontação

do constitucionalismo com a democracia, ou melhor, com a concepção de democracia como a

mera expressão de vontade de uma maioria. Continua Dworkin: Apesar de tudo, uma forte objeção tem sido levantada contra o

constitucionalismo: a de que ele subverte ou compromete a democracia, por que se uma Constituição proíbe o Poder Legislativo de aprovar uma lei limitando a liberdade de expressão, por exemplo, isto limita o direito democrático da maioria ter a lei que quer. Caso respeitemos o constitucionalismo, mas também a democracia, o que deveríamos fazer? Qual é a arranjo apropriado entre esses dois ideais? (DWORKIN, p. 3, 1995)

Logo após esses questionamentos, o mesmo jurista contorna esse imbróglio, ao

propor: Acredito que o conflito há pouco descrito é ilusório, por que é baseado

numa compreensão incorreta do que a democracia é. Devemos começar anotando uma distinção entre democracia e regra de maioria. Democracia quer dizer regra da

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maioria legítima, o que significa que o mero fator majoritário não constitui democracia a menos que condições posteriores sejam satisfeitas. É controverso o que essas condições exatamente são. Mas algum tipo de estrutura constitucional que uma maioria não pode mudar é certamente um pré-requisito para a democracia. Devem ser estabelecidas normas constitucionais estipulando que uma maioria não pode abolir futuras eleições, por exemplo, ou privar uma minoria dos direitos de voto. (Dworkin, p. 3, 2005)

Sugerimos que essas precondições, esses pré-requisitos da democracia, são os

direitos fundamentais consagrados no ordenamento jurídico e as normas de organização do

Estado, visto que são as “regras do jogo” democrático (permitam-me uma expressão mais

coloquial, mas, no meu entender, oportuna e esclarecedora). Para que haja legitimidade

deliberativa da maioria, faz-se mister que sejam obedecidas as “regras do jogo”, sob pena de

tais deliberações sejam eivadas de inconstitucionalidade.

Dworkin prossegue em seu trabalho classificando as normas constitucionais em

possibilitadores e limitadoras: Façamos uma distinção, então, entre normas constitucionais

possibilitadoras, que constroem um governo da maioria estipulando quem deve votar, quando as eleições devem se realizar, como os representantes são designados para os distritos eleitorais, que poderes cada grupo de representantes tem, e assim por diante, e normas constitucionais limitadoras, que restringem os poderes dos representantes que as normas possibilitadoras definiram. Não podemos dizer que apenas as normas possibilitadoras são pré-requisitos da democracia, por que algumas normas constitucionais que possam, aparentemente, ser normas limitadoras são plenamente essenciais à democracia. Uma maioria destruiria a democracia quase que efetivamente retirando de uma minoria o direito de livre expressão do mesmo modo que se negasse voto à mesma, por exemplo. (DWORKIN, p. 3 e 4, 1995)

Essas normas limitadoras, essenciais à democracia e ao constitucionalismo, seriam

a proteção das minorias contra os abusos e arbitrariedades da maioria, se esta utilizasse o

argumento da predominância da vontade de um grupo majoritário para solapar, destruir um

grupo minoritário que possui também direitos de expressar e usufruir de seus direitos

fundamentais. O Ministro Gilmar Mendes, ao proferir seu voto acerca da Ficha Limpa, expõe

preocupação em relação à falta e/ou ao descumprimento dessas normas constitucionais

limitadoras:

Presidente, são tanto os magistérios a propósito dessa questão que ela é, de fato, pacífica entre nós. O artigo 16, nesse sentido, é uma norma especial de reforço, tendo em vista a nossa experiência constitucional, a experiência do nosso constitucionalismo em relação aos abusos tradicionais. Há tentação majoritária de interferir no processo eleitoral. Por isso, o artigo 16 como norma especial neste quadro magno de segurança jurídica.

(...) Eu fico a imaginar que, agora, o legislador será convidado, daqui a pouco não será mais suficiente a condenação em segundo grau. Aí bastará a condenação em primeiro grau. Depois, vai ocorrer um outro sentimento de

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“depuração” do ambiente político. E é bom ver, Presidente, que esse tipo de mensagem começa a namorar com pensamentos autoritários, quando se começa a tentar tutelar a sociedade e o próprio eleitor; nós já temos um namoro com pensamentos que gravitam em torno do nazifacismo. Aí a gente pode pensar: “Ah, quem sabe apenas a denúncia recebida”. O governo militar teve esse ímpeto, não é, Ministro Celso?” 2

2. Ação coletiva estatística e ação coletiva comunitária

Prossegue Dworkin, em seu trabalho “Constitucionalismo e Democracia”,

diferenciando dois tipos de ação coletiva na democracia: a estatística e a comunitária. Em

razão da temática e dos limites desse trabalho, infelizmente, não abordaremos, com

profundidade, essa brilhante distinção. Faremos apenas referências sobre esses conceitos.

A distinção entre ação estatística e comunitária oferece-nos duas concepções de democracia como ação coletiva. A primeira é uma concepção estatística: numa democracia as decisões políticas são tomadas de acordo com alguma função – uma maioria ou uma pluralidade – dos votos, decisões ou desejos de cidadãos individuais. A segunda é uma concepção comunitária: numa democracia as decisões políticas são tomadas por uma entidade distinta – o povo como tal – ao invés de qualquer arranjo de indivíduos um a um. A idéia de Rousseau de um governo pela vontade geral é um exemplo de uma concepção comunitária em lugar de uma estatística da democracia. (DWORKIN, p.5 e 6, 1995)

Ressalte-se o pensamento de Rousseau que distinguia a Vontade da Maioria da

Vontade Geral. Nem sempre a Vontade da Maioria correspondia à Vontade Geral. Rousseau,

assim, expõe:

Há comumente muita diferença entre a vontade de todos e a vontade geral. Esta se pretende somente ao interesse comum; a outra, ao interesse privado e não passa de um soma das vontades particulares. Quando se retiram, porém, dessas mesmas vontades, os excessos e as faltas que nela se destroem mutuamente, resta, como soma das diferenças, a vontade geral.

Se, quando o povo suficientemente informado delibera, não tivessem os cidadãos qualquer comunicação entre si, do grande numero de pequenas diferenças resultaria sempre a vontade geral e a deliberação seria sempre boa. Mas quando se estabelecem facções, associações parciais a expensas da grande, a vontade de cada uma dessas associações torna-se geral em relação a seus membros e particular em relação ao Estado: poder-se-á então dizer não haver mais tantos votantes quantos são os homens, mas somente tantos quantas são as associações. As diferenças tornam-se menos numerosas e dão um resultado menos geral. E, finalmente, quando uma dessas associações for tão grande que se sobreponha a todas as outras, não se terá mais como resultado uma soma das pequenas diferenças, mas uma diferença única. Então, não há mais vontade geral, e a opinião que ela se sobrepõe não passa de uma opinião particular. (ROUSSEAU, P. 41, 2010)

2 BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RE 631.102 / PA – PARÁ. RECURSO EXTRAORDINÁRIO.

Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA. Julgamento: 27/10/2010. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. DJe-117 DIVULG 17-06-2011 PUBLIC 20-06-2011.

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É de notar a semelhança dessas idéias de Rousseau com trechos do voto do Ministro

Gilmar Mendes no RE 631.102/PA:

Aí nós vamos começar a pegar esses atalhos. Daqui a pouco podemos pensar – veja que é livre a imaginação! – um pai que tenha batido no filho, o espancado num tempo. Quer dizer, agora ele fica sem pátrio poder de forma definitiva, para sempre. E a gente poderia até aditar: “E será inclusive esterilizado para não ter mais filhos”. Tudo isso seria legítimo nesse contexto. É livre a imaginação! É um convite para um salão de horrores! É preciso que estejamos atentos a isso.

Por isso, sabedor desse tipo de experiência, é que o Constituinte de 88 quis poupar o Tribunal desse constrangimento. E colocou esta cláusula, que não trata do direito adquirido, uma cláusula específica de segurança jurídica ao processo eleitoral para evitar essas interveniências indevidas, essa tentação que existe por parte da maioria. E que pode existir também, Presidente, por parte de agrupamentos determinados da sociedade.

Eu disse, naquela outra assentada, que sequer um milhão, sequer dois milhões, sequer três milhões de assinaturas me impressionavam. A gente sabe como elas são colhidas; se a gente sabe que por trás estão organizações partidárias, e se consegue assinatura para isso e para aquilo. Isto é apenas um índice para um processamento de uma ação; isto não retira a lei do modelo de controle de constitucionalidade. 3

Percebe-se que o Ministro Mendes quis ressaltar que a força da pressão de uma

maioria, de uma parcela organizada da sociedade, não pode inibir a atuação do Judiciário, não

pode influenciar, como acontece com o Congresso Nacional, nas suas decisões. O Supremo

Tribunal Federal deve zelar pela Constituição, pelo ideal democrático, pelo respeito à

democracia e aos direitos da Minoria, visto que se a Maioria pudesse conduzir o processo e

julgamento dos tribunais, resultaria numa opressão ao grupo minoritário da sociedade, o que

não corresponderia a Vontade Geral da República Federativa do Brasil, apenas a Vontade de

um grupo circunstancialmente majoritário.

Daí, o Supremo Tribunal Federal ocupar uma função proeminente no sistema político

brasileiro. Numa de suas principais atividades, no controle de constitucionalidade, é de notar a

sua função contramajoritária. Ao julgar inconstitucional, por exemplo, uma lei aprovada no

Congresso Nacional, isto é, elaborada por representantes eleitos democraticamente, por

considerá-la incompatível com a Constituição, percebe-se que a Corte Constitucional rejeita

uma decisão soberana de uma maioria, sob o argumento de que tal deliberação não se coaduna

3 BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RE 631.102 / PA – PARÁ. RECURSO EXTRAORDINÁRIO.

Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA. Julgamento: 27/10/2010. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. DJe-117 DIVULG 17-06-2011 PUBLIC 20-06-2011.

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com o sistema jurídico-constitucional vigente. Advertências são feitas pelo Ministro Gilmar

Mendes, em seu voto no RE 630.147/DF – Caso Roriz:

Já se falou muito, aqui e fora, por exemplo, que o fato de ser uma lei de iniciativa popular daria uma grande legitimidade, uma legitimidade diferenciada a esta norma. Não penso assim, Senhor Presidente, Senhores Ministros. Lei está submetida às regras constitucionais. Devemos estar muito atentos a este tipo de fenômeno.

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO – Como o próprio povo também se submete à Constituição.

O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES - E isso é evidente, especialmente na democracia constitucional. É preciso que tenhamos bem essa dimensão. Fosse a lei aprovada por unanimidade do Congresso Nacional, ainda assim estaria submetida à Constituição. A missão da Corte Constitucional é uma missão contramajoritária. Por isso, ela tem as suas garantias. Sua função não é mimetizar decisões de palanques, decisões do Congresso. É uma função pura. Muitas vezes tem que se contrariar aquilo que a opinião pública entende como "a salvação" para, às vezes, salvar a própria opinião pública, porque esse tipo de violência começa com o nosso vizinho e depois chega a nós. É preciso que nós tenhamos, então, essa dimensão. É preciso sempre colocar essa questão, essa tensão existente entre jurisdição constitucional e democracia; jurisdição constitucional e política; pois toda ela se renova e se coloca aqui. Agora, é uma missão contramajoritária. Se fosse para mimetizar, para ser decalque da decisão do Congresso, podia fechar o Supremo Tribunal Federal. Se a iniciativa popular tornar inútil a nossa atividade, melhor fechar o Supremo Tribunal Federal. 4

3. A legitimação argumentativa das decisões contramajoritárias Segundo o pensamento de Robert Alexy, o Tribunal, ao prolatar uma decisão

contramajoritária, utiliza-se de uma legitimação argumentativa. Ou melhor, a fonte de

legitimação de sua prerrogativa contramajoritária advém de uma representação argumentativa,

ao invés da legitimação democrática do legislador ordinário.

Uma das principais questões que permeia a construção deste raciocínio teórico é a relação existente entre democracia e direitos fundamentais. Pergunta-se se a primazia hierárquica dos direitos fundamentais pode torná-los antidemocráticos na medida em que inibe a ação do legislador ordinário, representante popular.

Como início para o enfrentamento desse problema, e considerando que “todo o poder emana do povo”, Robert Alexy supõe a existência não só de uma representação política, mas também de uma representação argumentativa exercida, particularmente, pelo Tribunal Constitucional. Para o autor, o jogo democrático pressupõe uma racionalidade discursiva e o discurso exige a democracia deliberativa. Nela o discurso não é composto tão-somente por interesses e poder, mas abrange também os argumentos dos participantes que lutam por uma solução política correta. Quando as leis respeitam e promovem os direitos fundamentais, a maioria parlamentar atende às exigências da democracia deliberativa. Do contrário, resta recorrer ao remédio da jurisdição constitucional.

Com efeito, o legislador pode praticar atos que provocam colisão entre os direitos fundamentais ou com medidas que assegurem a sua própria efetivação. Como proposta para esse problema, Alexy sugere, desde que respeitados os espaços

4 BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RE 630.147 / DF - DISTRITO FEDERAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. Relator(a): Min. AYRES BRITTO. Relator(a) p/ Acórdão: Min. MARCO AURÉLIO. Julgamento: 29/09/2010. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. DJe-230 DIVULG 02-12-2011 PUBLIC 05-12-2011.

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do legislador, uma jurisdição constitucional fornecedora da última palavra, de forma a proteger os cidadãos de eventuais abusos de seus representantes políticos. Nesta ordem de idéias, o Tribunal Constitucional exerce o importante papel de “instância de reflexão do processo político”.

Segundo Alexy, o fato de os magistrados encontrarem-se vinculados institucionalmente às regras da argumentação jurídica, como também aos princípios da publicidade e da motivação da decisão judicial, permite-nos um maior grau de conhecimento e controle da jurisdição constitucional, decisivo para a distinção do debate judicial e do debate político – este tipicamente marcado pela negociação e pela barganha em torno de interesses específicos. A partir da premissa de que representação significa consonância de idéias entre representante e representado, Alexy procura mostrar que o Tribunal, ao trazer suas razões de decidir, pela lógica da argumentação procura a concordância das pessoas; dos cidadãos em geral, mas principalmente daqueles diretamente ou indiretamente atingidos pela decisão.

(...) Nesse sentido, diz Alexy, o Tribunal Constitucional argumenta com mais seriedade e vigor, do que o legislador. Enquanto este, por força do mandato popular, possui carta branca para decidir sobre a aprovação de projetos de lei (sem ter que fundamentar o seu voto), o juiz, ao contrário, tem que justificar cada ato decisório seu, na constante busca de adesão popular. Com isso se forma e se aprimora a interação existente entre representante e representado. “A representação do povo no Tribunal Constitucional é puramente argumentativa”, diz Alexy, enquanto a representação parlamentar constitui um conjunto, nem sempre coerente, composto por elementos decisionistas e discursivos. Isto confere ao Tribunal Constitucional um discurso possuidor de um viés idealístico mais forte, com uma maior pretensão de correção quanto ao conteúdo. Com efeito, a representação não é algo meramente fático (substituição da vontade) e normativo (previsto em lei), mas contém um fator idealístico, porque é necessariamente orientada para algum ideal (pretensão de correção).

(...) O fenômeno da judicialização da política nos leva a reconhecer o afastamento do debate democrático das vias tradicionais, e o desenho de outros espaços de representação e participação da sociedade civil. Trata-se de novas conformações que brotam em terreno fértil, vez que a superação das democracias majoritárias pelo pluralismo passou a contar com a garantia de um Supremo Tribunal Federal apto a protegê-las com o manto dos Direitos Fundamentais, ainda que legitimando práticas contra-majoritárias.

A recepção da categoria da representação argumentativa pelo discurso do Ministro Gilmar Mendes é, com efeito, estratégica para a legitimação da expansão da competência institucional do Tribunal, verificado por meio de um ativismo jurisdicional e contra-majoritário. A contribuir para o fortalecimento da representação argumentativa nesse processo, encontra-se o aumento da demanda judicial proveniente das omissões legislativas e governamentais garantidoras de direitos. E por que não mencionar também o fato de que não raramente grupos vencidos no jogo político recorrem ao Supremo pela via do controle da constitucionalidade de atos normativos e administrativos?

Pode-se daí perceber o surgimento de novos padrões que merecem ser estudados e explicados, tendo em vista a sua importância para os modelos de jurisdição e democracia atualmente em construção pela via jurisdicional.

O caráter contra-majoritário desses novos padrões cria uma contradição entre a efetivação dos direitos fundamentais e a democracia, vez que o Tribunal Constitucional é quem passa a dar a última palavra em termos do que o legislador pode ou não fazer. Dessa forma, apesar de ser o Legislativo quem elabora as normas, a interpretação final ficará sempre a cargo de um outro Poder, o Judiciário. Neste ponto, Robert Alexy mostra que, em sede de interpretação constitucional, o Tribunal Constitucional consegue transformar a concepção que possui sobre problemas sociais e políticos “em componentes da Constituição”, e, com isso, assume política. À luz desta teoria, só existe contradição entre democracia e direitos fundamentais quando se considera somente uma forma de representação popular, qual seja, a política. Contudo, conforme o autor sustenta, existe também uma outra forma de representação, a argumentativa, que, por também representar uma determinada comunidade, é quem pode autorizar o Tribunal Constitucional a fornecer a última

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palavra. Nesse sentido, a contradição entre direitos fundamentais e democracia se dissolve. (NETTO; CAMARGO, 2010, p. 1346)

Isso justificaria o fato de o Supremo Tribunal Federal ter a legitimidade de dar a

última palavra no sistema político-jurídico. Segundo Alexy, o STF seria uma instituição mais

idônea, porquanto estaria limitada pelas regras da argumentação jurídica, pela racionalidade

argumentativa procedimental, pelo sistema jurídico vigente, pela motivação das suas decisões,

pelo caráter colegiado de suas decisões. Ademais, por ser um órgão sem vinculação partidária,

com Ministros vitalícios que, assim, não são submetidos regularmente ao escrutínio popular,

como acontece com os membros dos Poderes Executivo e Legislativo e, portanto, mais

sujeitos a barganhas, ao lobby, à pressão popular, o Tribunal Constitucional assumiria

legitimamente o papel de intérprete final do ordenamento jurídico nacional.

Constatamos o cerne dessas idéias nos argumentos apresentados pelo Ministro

Gilmar Mendes, no julgamento da autorização de pesquisas envolvendo células-tronco

embrionárias (ADI n° 3.510): Assim, o que posso dizer é que este Tribunal encerra mais um julgamento

que certamente representará um marco em nossa jurisprudência constitucional. Chamado a se pronunciar sobre um tema tão delicado, o da

constitucionalidade das pesquisas científicas com células-tronco embrionárias, um assunto que é ético, jurídico e moralmente conflituoso em qualquer sociedade construída culturalmente com lastro nos valores fundamentais da vida e da dignidade humana, o Supremo Tribunal Federal profere uma decisão que demonstra seu austero compromisso com a defesa dos direitos fundamentais no Estado Democrático de Direito.

O julgamento desta ADI n° 3.510, dedicadamente conduzido pelo Ministro Carlos Britto, constitui uma eloqüente demonstração de que a Jurisdição Constitucional não pode tergiversar diante de assuntos polêmicos envolvidos pelo debate entre religião e ciência.

É em momentos como este que podemos perceber, despidos de qualquer dúvida relevante, que a aparente onipotência ou o caráter contra-majoritário do Tribunal Constitucional em face do legislador democrático não pode configurar subterfúgio para restringir as competências da Jurisdição na resolução de questões socialmente relevantes e axiologicamente carregadas de valores fundamentalmente contrapostos.

Delimitar o âmbito de proteção do direito fundamental à vida e à dignidade humana e decidir questões relacionadas ao aborto, à eutanásia e à utilização de embriões humanos para fins de pesquisa e terapia são, de fato, tarefas que transcendem os limites do jurídico e envolvem argumentos de moral, política e religião que vêm sendo debatidos há séculos sem que se chegue a um consenso mínimo sobre uma resposta supostamente correta para todos.

Apesar dessa constatação, dentro de sua competência de dar a última palavra sobre quais direitos a Constituição protege, as Cortes Constitucionais, quando chamadas a decidir sobre tais controvérsias, têm exercido suas funções com exemplar desenvoltura, sem que isso tenha causado qualquer ruptura do ponto de vista institucional e democrático. Importantes questões nas sociedades contemporâneas têm sido decididas não pelos representantes do povo reunidos no parlamento, mas pelos Tribunais Constitucionais. Cito, a título exemplificativo, a famosa decisão da Suprema Corte norte-americana no caso Roe vs. Wade, assim

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como as decisões do Tribunal Constitucional alemão nos casos sobre o aborto (BVerfGE 39, 1, 1975;BverfGE 88, 203, 1993).

Muito se comentou a respeito do equívoco de um modelo que permite que juízes, influenciados por suas próprias convicções morais e religiosas, dêem a última palavra a respeito de grandes questões filosóficas, como a de quando começa a vida.

Lembro, em contra-argumento, as palavras de Ronald Dworkin que, na realidade norte-americana, ressaltou o fato de que “os Estados Unidos são uma sociedade mais justa do que teriam sido se seus direitos constitucionais tivessem sido confiados à consciência de instituições majoritárias”.

Em nossa realidade, o Supremo Tribunal Federal vem decidindo questões importantes, como a recente afirmação do valor da fidelidade partidária (MS n° 26.602, 26.603 e 26.604), sem que se possa cogitar de que tais questões teriam sido melhor decididas por instituições majoritárias, e que assim teriam maior legitimidade democrática.

Certamente, a alternativa da atitude passiva de self restraint – ou, em certos casos, de greater restraint, utilizando a expressão de García de Enterría - teriam sido mais prejudiciais ou menos benéficas para a nossa democracia.

O Supremo Tribunal Federal demonstra, com este julgamento, que pode, sim, ser uma Casa do povo, tal qual o Parlamento. Um lugar onde os diversos anseios sociais e o pluralismo político, ético e religioso encontram guarida nos debates procedimental e argumentativamente organizados em normas previamente estabelecidas. As audiências públicas, nas quais são ouvidos os expertos sobre a matéria em debate, a intervenção dos amici curiae, com suas contribuições jurídica e socialmente relevantes, assim como a intervenção do Ministério Público, como representante de toda a sociedade perante o Tribunal, e das advocacias pública e privada, na defesa de seus interesses, fazem desta Corte também um espaço democrático. Um espaço aberto à reflexão e à argumentação jurídica e moral, com ampla repercussão na coletividade e nas instituições democráticas.

Ressalto, neste ponto, que, tal como nos ensina Robert Alexy, “o parlamento representa o cidadão politicamente, o tribunal constitucional argumentativamente”. Cito, nesse sentido, a íntegra do raciocínio do filósofo e constitucionalista alemão:

“O princípio fundamental: “Todo poder estatal origina-se do povo” exige compreender não só o parlamento, mas também o tribunal constitucional como representação do povo. A representação ocorre, decerto, de modo diferente. O parlamento representa o cidadão politicamente, o tribunal argumentativamente. Com isso, deve ser dito que a representação do povo pelo tribunal constitucional tem um caráter mais idealístico do que aquela pelo parlamento. A vida cotidiana do funcionamento parlamentar oculta o perigo de que maiorias se imponham desconsideradamente, emoções determinem o acontecimento, dinheiro e relações de poder dominem e simplesmente sejam cometidas faltas graves. Um tribunal constitucional que se dirige contra tal não se dirige contra o povo senão, em nome do povo, contra seus representantes políticos. Ele não só faz valer negativamente que o processo político, segundo critérios jurídico-humanos e jurídico-fundamentais, fracassou, mas também exige positivamente que os cidadãos aprovem os argumentos do tribunal se eles aceitarem um discurso jurídico-constitucional racional. A representação argumentativa dá certo quando o tribunal constitucional é aceito como instância de reflexão do processo político. Isso é o caso, quando os argumentos do tribunal encontram eco na coletividade e nas instituições políticas, conduzem a reflexões e discussões que resultam em convencimentos examinados. Se um processo de reflexão entre coletividade, legislador e tribunal constitucional se estabiliza duradouramente, pode ser falado de uma institucionalização que deu certo dos direitos do homem no estado constitucional democrático. Direitos fundamentais e democracia estão reconciliados.

O debate democrático produzido no Congresso Nacional por ocasião da votação e aprovação da Lei n° 11.105/2005, especificamente de seu artigo 5º, não se encerrou naquela casa parlamentar. Renovado por provocação do Ministério Público, o debate sobre a utilização de células-tronco para fins de pesquisa científica reproduziu-se nesta Corte com intensidade ainda maior, com a nota distintiva da

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racionalidade argumentativa e procedimental própria de uma Jurisdição Constitucional.

Não há como negar, portanto, a legitimidade democrática da decisão que aqui tomamos hoje. 5

E, devido a essa maior resistência a uma suposta maioria organizada, o Judiciário

seria o Poder para que as Minorias pudessem recorrer quando seus direitos fundamentais

fossem violados pela Maioria despótica. O eminente professor titular da Faculdade de Direito

da Universidade de São Paulo, Geraldo Ataliba, assim doutrinava: De nada vale fazer uma Constituição, se ela não for obedecida. Não

adianta haver lei para tudo, se não for respeitada. Daí, a importância do Poder Judiciário. Este merece especial cuidado dos constituintes, porque é a chave de todas as instituições. Elas só funcionam com o virtual ou atual controle do Judiciário, como o demonstra o sábio SEABRA FAGUNDES.

(...) É que os fracos, os pobres, os destituídos, os desamparados, bem como as minorias (raciais, religiosas, econômicas, políticas, étnicas etc.), só têm por arma de defesa o direito. E direito só existe onde haja juízes que obriguem o seu cumprimento.

Na democracia, governam as maiorias. Elas fazem as leis, elas escolhem os governantes. Estes são comprometidos com as maiorias que os elegeram e a elas devem agradar. As minorias não têm força. Não fazem leis, nem designam agentes públicos, políticos ou administrativos.

Sua única proteção está no Judiciário. Este não tem compromisso com a maioria. Não precisa agradá-la, nem cortejá-la. Os membros do Judiciário não são eleitos pelo povo. Não são transitórios, não são periódicos. Sua investidura é vitalícia. Os magistrados não representam a maioria. São A EXPRESSÃO DA CONSCIÊNCIA JURÍDICA NACIONAL (grifos do autor) .

Seu único compromisso é com o direito, com a Constituição e as leis; com os princípios jurídicos encampados pela Constituição e os por ela não repelidos. Com os princípios gerais do direito, que são universais. São dotados de condições objetivas de independência, para serem imparciais; quer dizer: para não serem levados a decidir a favor da parte mais forte, num determinado litígio.

Assim é em todos os países democráticos, que podem ser qualificados como Estados de direito.

A complementação da garantia de que nem as leis feitas pela maioria podem ferir a minoria está no caráter geral e abstrato da lei, por imposição do principio da igualdade. A lei é aplicável a todos que nela se enquadrem. Deve o Judiciário inaplicar lei discriminatória, isto é, a dirigida contra a minoria. Onde se consagra o princípio da isonomia, a lei não pode individualizar situações, não pode dispor sobre caso concreto: deve ser abstrata, sob pena de inconstitucionalidade. E o Judiciário deve declarar inconstitucional tal lei (como ensina CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO). (ATALIBA, p. 189-190, 1987)

Com esses esclarecimentos do prof. Geraldo Ataliba, a preocupação do Ministro

Gilmar Mendes, em seu voto acerca da Ficha Limpa, torna-se muito pertinente: “É

fundamental, portanto, que estejamos atentos a essas conseqüências das decisões que

tomamos: nós podemos estar comprometendo o modelo de democracia constitucional, 5 BRASIL.SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI 3510 / DF - DISTRITO FEDERAL. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Relator(a): Min. AYRES BRITTO. Julgamento: 29/05/2008. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. DJe-096 DIVULG 27-05-2010 PUBLIC 28-05-2010

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estimulando essas aventuras, a feitura das leis de caráter casuístico e oportunístico. É preciso

ter muito cuidado.” 6

Continua Geraldo Ataliba:

É que só há verdadeira República democrática onde se assegure que as minorias possam atuar, erigir-se em oposição institucionalizada e tenham garantidos seus direitos de dissensão, crítica e veiculação de sua pregação. Onde, enfim, as oposições possam usar de todos os meios democráticos para tentar chegar ao governo. (...) Consequentemente, têm as minorias o pleno direito de criticá-la (a maioria), formular propostas alternativas, pregá-las, aliciar adeptos e lutar, por todos os meios legítimos, para obter apoio suficiente, para fazer-se substituir à corrente majoritária. A Constituição verdadeiramente democrática há de garantir todos os direitos das minorias e impedir toda prepotência, todo arbítrio, toda opressão contra elas. Mais que isso – por mecanismos que assegurem representação proporcional -, deve atribuir um relevante papel institucional às correntes minoritárias mais expressivas.

(...) Na democracia, governa a maioria, mas – em virtude do postulado constitucional fundamental da igualdade de todos os cidadãos – ao fazê-lo não pode oprimir a minoria. Esta exerce também uma função política importante, decisiva mesmo: a de oposição institucional, a que cabe relevante papel no funcionamento das instituições republicanas. O principal papel da oposição é o de formular propostas alternativas às idéias e ações do governo da maioria que o sustenta. Correlatamente, critica, fiscaliza, aponta falhas e censura a maioria, propondo-se à opinião pública, como alternativa. Se a maioria governa, entretanto, não é dona do poder, mas age sob os princípios da relação de administração.

Efetivamente, ensina KELSEN, „o princípio da maioria não se identifica de fato com a senhoria absoluta da maioria, a ditadura da maioria sobre a minoria. A maioria pressupõe, por definição, a existência de uma minoria; e o direito da maioria implica, portanto, o direito de existência das minorias. O princípio da maioria é observado em uma democracia, quando se consente a todos os cidadãos a participação na criação da ordenação jurídica, embora seu conteúdo seja determinado pela vontade da maioria. Não é democrático – porque contrário ao princípio da maioria – excluir qualquer minoria da criação da ordenação jurídica, ainda que a exclusão seja decidida pela maioria. Se a minoria não é eliminada do procedimento – mediante o qual é criada a ordenação social -, sempre há a possibilidade de que a minoria influencie a vontade da maioria. É, portanto, possível impedir, nessa medida, que o conteúdo da ordenação social determinado pela maioria se oponha absolutamente aos interesses da minoria. Este é um elemento característico da democracia ‟. Isto é absolutamente essencial à República.

Daí a necessidade de garantias amplas, no próprio texto constitucional, da existência, sobrevivência, liberdade de ação e influência da minoria, para que se tenha verdadeira República. Isso explica que, no Brasil, aos partidos políticos se garanta sempre representação proporcional na atividade legislativa, bem como seja principio constitucional o da pluralidade dos partidos. Por isso, também, a Constituição assegura, no Congresso, representação proporcional dos partidos, na constituição de todas as comissões, inclusive, evidentemente, na Comissão Diretora, configurada pela Mesa de cada Casa legislativa.

6 BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RE 631.102 / PA – PARÁ. RECURSO EXTRAORDINÁRIO.

Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA. Julgamento: 27/10/2010. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. DJe-117 DIVULG 17-06-2011 PUBLIC 20-06-2011.

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Pela proteção e resguardo das minorias e sua necessária participação no processo político, a República faz da oposição instrumento institucional de governo. (ATALIBA, p. 191 – 192, 1987)

Como há de se inferir pelos ensinamentos do prof. Ataliba, o direito de oposição, no

caso parlamentar, deve ser assegurado pela Constituição vigente. No caso de

descumprimento, cabe à oposição recorrer ao Judiciário, para que este intervenha e tutele as

prerrogativas dessa minoria.

Essa vertente da corrente contramajoritária é a mais comum no cenário político-

jurídico brasileiro. Tanto na doutrina, como na jurisprudência, quando se fala de princípio

contramajoritário, quer se referir ao direito das minorias parlamentares, como, por exemplo,

em criar Comissão Parlamentar de Inquérito. Se houver impedimento do exercício dessas

prerrogativas parlamentares pela maioria, cabe a impetração de mandado de segurança contra

a autoridade coatora ao Supremo Tribunal Federal. Veja exemplo:

EMENTA: MANDADO DE SEGURANÇA - QUESTÕES PRELIMINARES REJEITADAS - PRETENDIDA INCOGNOSCIBILIDADE DA AÇÃO MANDAMENTAL, PORQUE DE NATUREZA "INTERNA CORPORIS" O ATO IMPUGNADO - POSSIBILIDADE DE CONTROLE JURISDICIONAL DOS ATOS DE CARÁTER POLÍTICO, SEMPRE QUE SUSCITADA QUESTÃO DE ÍNDOLE CONSTITUCIONAL - O MANDADO DE SEGURANÇA COMO PROCESSO DOCUMENTAL E A NOÇÃO DE DIREITO LÍQUIDO E CERTO - NECESSIDADE DE PROVA PRÉ-CONSTITUÍDA - CONFIGURAÇÃO, NA ESPÉCIE, DA LIQUIDEZ DOS FATOS SUBJACENTES À PRETENSÃO MANDAMENTAL - COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO - DIREITO DE OPOSIÇÃO - PRERROGATIVA DAS MINORIAS PARLAMENTARES - EXPRESSÃO DO POSTULADO DEMOCRÁTICO - DIREITO IMPREGNADO DE ESTATURA CONSTITUCIONAL - INSTAURAÇÃO DE INQUÉRITO PARLAMENTAR E COMPOSIÇÃO DA RESPECTIVA CPI - IMPOSSIBILIDADE DE A MAIORIA PARLAMENTAR FRUSTRAR, NO ÂMBITO DE QUALQUER DAS CASAS DO CONGRESSO NACIONAL, O EXERCÍCIO, PELAS MINORIAS LEGISLATIVAS, DO DIREITO CONSTITUCIONAL À INVESTIGAÇÃO PARLAMENTAR (CF, ART. 58, § 3º) - MANDADO DE SEGURANÇA CONCEDIDO. O ESTATUTO CONSTITUCIONAL DAS MINORIAS PARLAMENTARES: A PARTICIPAÇÃO ATIVA, NO CONGRESSO NACIONAL, DOS GRUPOS MINORITÁRIOS, A QUEM ASSISTE O DIREITO DE FISCALIZAR O EXERCÍCIO DO PODER. - Existe, no sistema político-jurídico brasileiro, um verdadeiro estatuto constitucional das minorias parlamentares, cujas prerrogativas - notadamente aquelas pertinentes ao direito de investigar - devem ser preservadas pelo Poder Judiciário, a quem incumbe proclamar o alto significado que assume, para o regime democrático, a essencialidade da proteção jurisdicional a ser dispensada ao direito de oposição, analisado na perspectiva da prática republicana das instituições parlamentares. - A norma inscrita no art. 58, § 3º, da Constituição da República destina-se a ensejar a participação ativa das minorias parlamentares no processo de investigação legislativa, sem que, para tanto, mostre-se necessária a concordância das agremiações que compõem a maioria parlamentar. - O direito de oposição, especialmente aquele reconhecido às minorias legislativas, para que não se transforme numa prerrogativa constitucional inconseqüente, há de ser aparelhado

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com instrumentos de atuação que viabilizem a sua prática efetiva e concreta no âmbito de cada uma das Casas do Congresso Nacional. - A maioria legislativa não pode frustrar o exercício, pelos grupos minoritários que atuam no Congresso Nacional, do direito público subjetivo que lhes é assegurado pelo art. 58, § 3º, da Constituição e que lhes confere a prerrogativa de ver efetivamente instaurada a investigação parlamentar, por período certo, sobre fato determinado. Precedentes: MS 24.847/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.. - A ofensa ao direito das minorias parlamentares constitui, em essência, um desrespeito ao direito do próprio povo, que também é representado pelos grupos minoritários que atuam nas Casas do Congresso Nacional. REQUISITOS CONSTITUCIONAIS PERTINENTES À CRIAÇÃO DE COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO (CF, ART. 58, § 3º): CLÁUSULA QUE AMPARA DIREITO DE CONTEÚDO EMINENTEMENTE CONTRA-MAJORITÁRIO. - A instauração de inquérito parlamentar, para viabilizar-se no âmbito das Casas legislativas, está vinculada, unicamente, à satisfação de três (03) exigências definidas, de modo taxativo, no texto da Lei Fundamental da República: (1) subscrição do requerimento de constituição da CPI por, no mínimo, 1/3 dos membros da Casa legislativa, (2) indicação de fato determinado a ser objeto da apuração legislativa e (3) temporariedade da comissão parlamentar de inquérito. Precedentes do Supremo Tribunal Federal: MS 24.831/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.. - O requisito constitucional concernente à observância de 1/3 (um terço), no mínimo, para criação de determinada CPI (CF, art. 58, § 3º), refere-se à subscrição do requerimento de instauração da investigação parlamentar, que traduz exigência a ser aferida no momento em que protocolado o pedido junto à Mesa da Casa legislativa, tanto que, "depois de sua apresentação à Mesa", consoante prescreve o próprio Regimento Interno da Câmara dos Deputados (art. 102, § 4º), não mais se revelará possível a retirada de qualquer assinatura. - Preenchidos os requisitos constitucionais (CF, art. 58, § 3º), impõe-se a criação da Comissão Parlamentar de Inquérito, que não depende, por isso mesmo, da vontade aquiescente da maioria legislativa. Atendidas tais exigências (CF, art. 58, § 3º), cumpre, ao Presidente da Casa legislativa, adotar os procedimentos subseqüentes e necessários à efetiva instalação da CPI, não se revestindo de legitimação constitucional o ato que busca submeter, ao Plenário da Casa legislativa, quer por intermédio de formulação de Questão de Ordem, quer mediante interposição de recurso ou utilização de qualquer outro meio regimental, a criação de qualquer comissão parlamentar de inquérito. - A prerrogativa institucional de investigar, deferida ao Parlamento (especialmente aos grupos minoritários que atuam no âmbito dos corpos legislativos), não pode ser comprometida pelo bloco majoritário existente no Congresso Nacional, que não dispõe de qualquer parcela de poder para deslocar, para o Plenário das Casas legislativas, a decisão final sobre a efetiva criação de determinada CPI, sob pena de frustrar e nulificar, de modo inaceitável e arbitrário, o exercício, pelo Legislativo (e pelas minorias que o integram), do poder constitucional de fiscalizar e de investigar o comportamento dos órgãos, agentes e instituições do Estado, notadamente daqueles que se estruturam na esfera orgânica do Poder Executivo. - A rejeição de ato de criação de Comissão Parlamentar de Inquérito, pelo Plenário da Câmara dos Deputados, ainda que por expressiva votação majoritária, proferida em sede de recurso interposto por Líder de partido político que compõe a maioria congressual, não tem o condão de justificar a frustração do direito de investigar que a própria Constituição da República outorga às minorias que atuam nas Casas do Congresso Nacional. 7

Todavia, esse trabalho tem a pretensão de ir um pouco além dessa vertente da

corrente contramajoritária. Já é pacífico o entendimento desse princípio no caso da oposição

7 BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. MS 26441/DF – DISTRITO FEDERAL. MANDANDO DE SEGURANÇA. Relator(a): Min. CELSO DE MELLO. Julgamento: 25/04/2007 Órgão Julgador: Tribunal Pleno

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parlamentar, mesmo que alguns juristas ainda utilizem do argumento ultrapassado da

“natureza interna corporis” da questão, o que impediria o controle jurisdicional dos atos de

caráter político dos Poderes Legislativo e Executivo, sob alegação de invasão, pelo Poder

Judiciário, da competência dos outros poderes da República. Por isso, esse trabalho procura

analisar a corrente contramajoritária sob uma perspectiva mais ampla, ao não se resumir às

minorias parlamentares, e sim realizar um estudo teórico-filosófico cabível em qualquer ramo

do direito.

Em relação ao processo penal, é salutar fazer breves comentários. Nos crimes de

grande repercussão, é expressiva a exorbitante pressão da mídia, da sociedade como um todo,

para a aplicação de punições a autores (ou supostos autores) do delito. Ademais, sabe-se que o

inquérito policial e o processo judicial são lentos e que, por isso, há uma certa morosidade no

julgamento e punição dos envolvidos. Todavia, a mídia e a população em geral não levam em

conta esses fatores, pressionando bastante os delegados, promotores e juízes a punir alguém,

considerando culpados meros suspeitos ou indiciados, que, talvez nunca tenham passado perto

de cometer um crime. Assim, esses indivíduos são pré-julgados pela população, eles têm suas

vidas prejudicadas, destruídas, sem ter direito ao devido processo legal, ao contraditório e à

ampla defesa. Por isso, requer aos operadores do Direito, nesses casos, muita cautela e

diligência para não ceder à pressão e exercer suas funções arbitrariamente, com o mero intuito

de atender às expectativas de uma maioria, que está sob o forte impacto de um crime bárbaro

e de uma imprensa inescrupulosa e irresponsável. A corrente contramajoritária está aí

presente, com o propósito de defender os direitos fundamentais desses indivíduos, contra os

abusos, os excessos e as arbitrariedades de uma maioria. O voto do Ministro Gilmar, no RE

630.147 / DF, sustenta nossos argumentos: Ou defendendo-se o ficha suja. Mas é claro, na guerra retórica que se

estabelece, faz-se essa seleção de maneira absolutamente indevida. Quem está defendendo aplicação da Constituição, especialmente do artigo 16, ou mesmo da concepção sobre ato jurídico perfeito, obviamente, não está defendendo ímprobos, está apenas defendendo a Constituição, o Estado de Direito, que é a missão desta Corte.

Em relação à matéria penal, lembro-me de que o Ministro Sepúlveda Pertence sempre citava uma frase de Frankfurter, célebre Juiz da Corte Suprema norte-americana, que dizia: “as garantias penais, em geral, eram asseguradas não a Madre Teresa de Calcutá, mas a pessoas que haviam cometido, em princípio, delitos”. É esse o contexto que se coloca.

A SENHORA MINISTRA ELLEN GRACIE - E ele afirmou isso exatamente no "caso Miranda".

O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES - No "caso Miranda” que estabelece todas essas regras básicas sobre o processo penal constitucional americano.

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Então, é preciso que essas coisas se estabeleçam, para que nós não sejamos vítimas dessa retórica fácil, desse populismo, que não pode ser populismo judicial. 8

Corroborando nosso posicionamento, traz-se à tona o julgamento do Habeas Corpus

82.959 da Relatoria do Ministro Marco Aurélio, em que o Supremo Tribunal Federal se

posicionou no sentido de declarar a inconstitucionalidade de um dispositivo da Lei de Crimes

Hediondos, que vedava a progressão no regime de cumprimento de pena para os que

cometiam crimes hediondos, por contrariar dispositivos constitucionais. Vale recordar a

circunstância da aprovação desta lei, em 1990, com forte apelo popular (ressalte-se que o

projeto de lei foi de iniciativa popular), que teve forte apoio da mídia, já que foi motivada pela

morte do filho de uma importante personalidade da maior rede de televisão brasileira. Devido

a este estado de comoção, de sentimentos exaltados, aprovou-se, às pressas e sem muito

critério, uma lei dura, que viola, em alguns aspectos, preceitos constitucionais. No caso, a

Suprema Corte emitiu seu posicionamento, exercendo sua prerrogativa contramajoritária, ao

rejeitar determinados dispositivos dissonantes do texto constitucional. Ademais, as cláusulas pétreas da Constituição Federal configuram uma forte

demonstração da preocupação do legislador constituinte com a possibilidade de abusos e

arbitrariedades da Maioria contra uma minoria, ao propugnar que certos valores e direitos

sejam indiscutíveis se tendentes a sua abolição, como os direitos e garantias individuais.

Dessa forma, a Constituição tutela os direitos fundamentais da minoria, passíveis de serem

reivindicados perante o Poder Judiciário, caso haja violação ou cerceamento. O Ministro Dias

Toffoli aborda essa idéia no seu voto no julgamento do RE 603.147/DF: Algumas vezes, deve-se proteger as maiorias contra elas mesmas e muitas

vezes compete ao Poder Judicial o desagradável papel de restringir a vontade popular em nome da proteção do equilíbrio de forças democráticas, contra o esmagamento de minorias ou de pautas axiológicas que transcendem o critério quantitativo do número de votos em um eleição ou plebiscito. São exemplos disso as decisões que abominam a pena de morte, o banimento ou a degradação moral dos presos. No Brasil, em relação a esses três aspectos, convém lembrar, a Constituição privou o Poder Legislativo de sobre eles deliberar, quando redigiu o artigo 60, § 4º, CF/1988. Essa pré-exclusão da capacidade legisferativa, chamada classicamente de “técnicas das cláusulas pétreas”, é o melhor exemplo dessa postura defensiva contra as deliberações majoritárias. Algumas pesquisas de opinião pública indicam grande adesão do povo brasileiro à pena de morte no caso de crimes hediondos. Não fossem as tais “cláusulas pétreas”, o processo legislativo findaria por aprová-la e caberia ao Supremo Tribunal Federal o difícil papel de rejeitar essa potestade do legislador democrático.

Ainda que se diga que não se pode confundir a instituição da pena de morte com a criação de mecanismos de filtragem para o exercício do direito à

8 BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RE 630147 / DF - DISTRITO FEDERAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. Relator(a): Min. AYRES BRITTO. Relator(a) p/ Acórdão: Min. MARCO AURÉLIO. Julgamento: 29/09/2010. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. DJe-230 DIVULG 02-12-2011 PUBLIC 05-12-2011

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candidatura a cargos políticos eletivos, é de se reconhecer que há o mesmo ingrediente da colocação, em posições antagônicas, do consenso social em torno da inelegibilidade de políticos com condenações por órgãos colegiados em face de princípios constitucionais da presunção de inocência e da anualidade. A diferença é que não existem barreiras constitucionais fundadas na pré-exclusão do poder legisferante. Houve o processo legislativo e seu resultado foi a Lei Complementar nº 135/2010, norma que dispõe de significativa legitimidade popular. 9

4. Conclusão

Portanto, fixamos nossa posição ao defender que o princípio contramajoritário não se

opõe ao princípio democrático. Por outro lado, o princípio contramajoritário é uma

conseqüência do princípio democrático. Não existe democracia, se não houver respeito pelas

minorias. A democracia não pode ser restringida apenas à regra da maioria, mas sim à regra

do consenso. A existência e a efetividade dos direitos e garantias das minorias devem ser

respeitadas. E a Jurisdição Constitucional, representada pelo Supremo Tribunal Federal, tem o

dever de zelar por esses direitos e garantias, tendo o controle de constitucionalidade como o

principal instrumento para a efetivação desses direitos, mormente após a promulgação da

Constituição de 1988, com a ampliação do rol de legitimados para a propositura de ação de

controle abstrato de constitucionalidade de leis e atos normativos dos Poderes Públicos. Por

fim, deixamos uma frase do Ministro Gilmar Mendes, no voto do RE 631.102/PA, que não

concordamos integralmente, mas que não deixa de estimular reflexões e discussões sobre a

Democracia e a Jurisdição Constitucional e trechos da belíssima obra do jurista italiano

Gustavo Zagrebelsky, uma retirada do voto do Min. Mendes e outra de nossa leitura: “Em

democracia constitucional, o povo não é soberano.” 10

Isso faz parte da democracia crítica. Sobre esse tema, lembro a fascinante passagem da obra de Zagrebelsky sobre a crucificação e a democracia. Diz Zagrebelsky:

“Para a democracia crítica, nada é tão insensato como a divinização do povo que se expressa pela máxima vox populi, vox dei , autêntica forma de idolatria política. Esta grosseira teologia política democrática corresponde aos conceitos triunfalistas e acríticos do poder do povo que, como já vimos, não passam de adulações interesseiras.

Na democracia crítica, a autoridade do povo não depende de suas supostas qualidades sobre-humanas, como a onipotência e a infalibilidade.

Depende, ao contrário, de fator exatamente oposto, a saber, do fato de se assumir que todos os homens e o povo, em seu conjunto, são necessariamente limitados e falíveis.

9 BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RE 630.147 / DF - DISTRITO FEDERAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. Relator(a): Min. AYRES BRITTO. Relator(a) p/ Acórdão: Min. MARCO AURÉLIO. Julgamento: 29/09/2010. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. DJe-230 DIVULG 02-12-2011 PUBLIC 05-12-2011. 10 BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RE 631102 / PA – PARÁ. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA. Julgamento: 27/10/2010. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. DJe-117 DIVULG 17-06-2011 PUBLIC 20-06-2011.

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Este ponto de vista parece conter uma contradição que é necessário aclarar. Como é possível confiar na decisão de alguém, como atribuir-lhe autoridade quando não se lhe reconhecem méritos e virtudes, e sim vícios e defeitos? A resposta está precisamente no caráter geral dos vícios e defeitos.

A democracia, em geral, e particularmente a democracia crítica, baseia-se em um fator essencial: em que os méritos e defeitos de um são também de todos. Se no valor político essa igualdade é negada, já não teríamos democracia, quer dizer, um governo de todos para todos; teríamos, ao contrário, alguma forma de autocracia, ou seja, o governo de uma parte (os melhores) sobre a outra (os piores).

Portanto, se todos são iguais nos vícios e nas virtudes políticas, ou, o que é a mesma coisa, se não existe nenhum critério geralmente aceito, através do qual possam ser estabelecidas hierarquias de mérito e demérito, não teremos outra possibilidade senão atribuir a autoridade a todos, em seu conjunto. Portanto, para a democracia crítica, a autoridade do povo não depende de suas virtudes, ao contrário, desprende-se – é necessário estar de acordo com isso – de uma insuperável falta de algo melhor.” (Zagrebelsky, Gustavo. La crucifixión y la democracia , trad. espanhola, Ariel, 1996, p. 105 – Título original: II Crucifige! e la democracia , Giulio Einaudi, Torino, 1995).

Zagrebelsky encerra essa passagem notável, esse texto notável, um pequeno texto de cento e vinte páginas, falando do julgamento de Cristo. Dizia: Quem é democrático: Jesus ou Pilatos? , retomando um debate que tinha sido colocado por Kelsen no trabalho sobre a democracia. E ele diz:

“Voltemos, uma vez mais, ao processo contra Jesus. A multidão gritava Crucifica-lhe! Era exatamente o contrário do que se pressupõe na democracia crítica. Tinha pressa, estava atomizada, mas era totalitária, não havia instituições nem procedimentos. Não era estável, era emotiva e, portanto, extremista e manipulável. Uma multidão terrivelmente parecida ao povo, esse povo a que a democracia poderia confiar sua sorte no futuro próximo. Essa turba condenava democraticamente Jesus, e terminava reforçando o dogma do Sanedrim e o poder de Pilatos.

Poderíamos então perguntar quem naquela cena exercia o papel de verdadeiro amigo da democracia. Hans Kelsen contestava: Pilatos. Coisa que equivaleria a dizer: o que obrava pelo poder desnudo. Ante essa repugnante visão da democracia, que a colocava nas mãos de grupos de negociantes sem escrúpulos e até de bandos de gangsters que apontam para o alto – como já ocorreu neste século entre as duas guerras e como pode ocorrer novamente com grandes organizações criminais de dimensões mundiais e potência ilimitada –, dariam vontade de contestar, contrapondo ao poder desnudo a força de uma verdade: o fanatismo do Sanedrim.

Ao concluir essa reconstrução, queremos dizer que o amigo da democracia – da democracia crítica – é Jesus: aquele que, calado, convida, até o final, ao diálogo e à reflexão retrospectiva. Jesus que cala, esperando até o final, é um modelo. Lamentavelmente para nós, sem embargo, nós, diferentemente dele, não estamos tão seguros de ressuscitar ao terceiro dia, e não podemos nos permitir aguardar em silêncio até o final.

Por isso, a democracia da possibilidade e da busca, a democracia crítica, tem que se mobilizar contra quem rechaça o diálogo, nega a tolerância, busca somente o poder e crê ter sempre razão. A mansidão – como atitude do espírito aberto ao diálogo, que não aspira a vencer, senão a convencer, e está disposto a deixar-se convencer - é certamente a virtude capital da democracia crítica. Porém só o filho de Deus pôde ser manso como o cordeiro. A mansidão, na política, a fim de não se expor à irrisão, como imbecilidade, há de ser uma virtude recíproca. Se não é, em determinado momento, antes do final, haverá de romper o silêncio e deixar de agüentar.” 11

11 BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RE 631102 / PA – PARÁ. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA. Julgamento: 27/10/2010. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. DJe-117 DIVULG 17-06-2011 PUBLIC 20-06-2011. Entre nós: ZAGREBELSKY, Gustavo. A Crucificação e a Democracia. Tradução: Monica de Sanctis Viana. São Paulo: Saraiva, 2011. (Série IDP), pag. 151 e 152

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Tínhamos começado estas reflexões dizendo que o processo de Jesus foi

um exemplo de democracia. Sucessivamente, foi possível constatar que, querendo falar em democracia, dever-se-ia acrescentar que o caso de Jesus aconteceu na pior de todas as democracias. Agora, estamos em condição de reconhecer que, independentemente das suas qualidades, quem falar que foi democracia tem de contentar-se com as enganosas e primeiras aparências. Na verdade, não se tratou de um “caso” de democracia, mas de um “caso” de autocracia e da oligarquia em que os protagonistas movem a multidão como uma arma. Nenhum dos sujeitos que conduziam o jogo era amigo da democracia, embora todos adulassem a democracia. Eles queriam tirar proveito dela. Viam na democracia, como todos os aproveitadores, somente uma passagem de ida (não de ida e volta) no caminho de seus próprios interesses e poder. (ZAGREBELSKY, p. 130, 2011)

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Referências

ATALIBA, Geraldo. Judiciário e Minorias. Revista de Informação Legislativa. v.

96, p. 189-194.

DWORKIN, Ronald. Constitucionalismo e Democracia. Traduzido por Emílio

Peluso Neder Meyer. Publicado originalmente no European Journal of Philosophy, nº 3:1, p.

2-11, em 1995.

NETTO, Fernando Gama de Mirando & CAMARGO, Margarida Maria Lacombe.

Representação Argumentativa: fator retórico ou mecanismo de legitimação da atuação

do Supremo Tribunal Federal? Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional

do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010.

ROUSSEAU, J. J. Do Contrato Social. São Paulo: Martin Claret, 2010.

ZAGREBELSKY, Gustavo. A Crucificação e a Democracia. Tradução: Monica de

Sanctis Viana. São Paulo: Saraiva, 2011. (Série IDP)

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AS REFLEXÕES SOBRE O GOVERNO REPRESENTATIVO DE STUART MILL E

A FILOSOFIA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA

REFLECTIONS ON THE REPRESENTATIVE GOVERNMENT OF STUART MILL

AND CONTEMPORARY POLITICAL PHILOSOPHY

Eduardo Seino Wiviurka1

Aloísio Cansian Segundo2

Resumo

Em primeiro plano o presente artigo faz uma revisão de literatura da obra “Considerações

sobre o governo representativo” de John Stuart Mill, destacando suas reflexões que encontram

maior repercussão na política atual, teórica e prática. Com este objetivo, destaca as

proposições sobre a importância da adequada participação dos cidadãos nos processos

democráticos e as conjecturas sobre o dever de votar, sustentando teses sobre o voto como

facultativo, não secreto e por peso. Em um segundo plano aproxima as reflexões de Mill

apresentadas das discussões atuais no âmbito da filosofia política contemporânea. Nisto evita

as discussões que gravitam em torno do utilitarismo, o qual Mill também é marco teórico.

Mantêm-se, na medida do possível, na temática do bem comum e pluralismo – aspecto

importante no governo representativo e que pode ser mediado com proposições de teóricos

como Rawls, Dworkin, Habermas e Taylor.

Palavras-chaves: Governo Representativo; voto; Instituições Políticas; Mill; Filosofia

Política Contemporânea.

Abstract

In the first plane this article is a literature review of the book “Representative Government”

by John Stuart Mill, emphasizing his reflections that have a larger impact on current politics,

both theoretical and practical. In this focus, highlights the propositions on the importance of

adequate participation of citizens in democratic processes and conjectures about the duty to

vote, sustaining theses about the vote as optional, not secret and weight based. In a second

plane approaching the reflections of Mill shown by currently discussions within the

1 Mestrando em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Especialista em Formação Pedagógica do Professor Universitário pela PUCPR. Bacharel em Direito pela UNICURITIBA. Advogado. Membro do Grupo de Pesquisa Direito, Sociedade e Cultura. 2 Acadêmico do 10º período do Curso de Direito pelo UNICURITIBA.

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contemporary political philosophy. So, avoids the discussions revolving around utilitarianism

− which Mill has also a theoretical background. Remain, as far as possible, in the theme of the

common good and pluralism - important aspect of the representative government, and that can

be mediated with theoretical propositions as Rawls, Dworkin, Habermas and Taylor.

Keywords: Representative Government; vote; Political Institutions; Mill; Contemporary

Political Philosophy.

1. INTRODUÇÃO

Este artigo promove o resgate do pensamento de um clássico da filosofia para

analisar questões contemporâneas. Trata-se de John Stuart Mill, que realizou importantes

contribuições para a filosofia política. Notadamente conhecido como reformador do

utilitarismo, linha teórica ainda estudada e com considerável influência na atualidade. Por

outro lado também possui importante contribuição na defesa das instituições democráticas,

sendo precursor em algumas proposições essenciais para a democracia.

Quanto ao utilitarismo, que por sua vez foi preconizado por Jeremy Bentham, Mill é

um marco teórico obrigatório para os teóricos utilitaristas e seus críticos. No âmbito da

filosofia política contemporânea, a defesa de um maior bem geral é uma proposição

transversal que possui inegável força. Por outro lado, uma crítica popularizada por Isaiah

Berlin, a utilidade, não constituiria um valor hábil a nortear as decisões políticas na medida

em que ignora uma pluralidade de valores existentes nas sociedades contemporâneas,

universo no qual a utilidade seria apenas mais um valor entre os demais (RALWS, 2008, p.

XVI) 3.Já na obra “Considerações sobre o governo representativo”, objeto de análise do

presente estudo, Mill centraliza suas considerações sobre a democracia. Mill toma como

referente teórico, em primeiro plano, a sociedade inglesa do século XIX – contudo, em um

segundo plano, tece reflexões gerais o suficiente para abarcar formas de governo de diferentes

períodos históricos, suficientemente abrangentes para que considerável parte de suas

reflexões tenham certa atualidade – rendendo, inclusive, diálogos pontuais em discussões

contemporâneas no âmbito das teorias da justiça.

A obra foi lida através da identificação do objetivo de cada um dos capítulos e a

identificação dos argumentos que sustentam uma resposta. Tal estrutura permite uma

mediação com maior facilidade em questões políticas atuais, através de simples colocação das

3 Extraído da apresentação da edição brasileira feita por Álvaro de Vita da obra “Uma Teoria da Justiça”.

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questões já formuladas por Stuart Mill em outro contexto. Isto não implica que as reflexões

formuladas pelo filósofo sejam atuais, mas permite mensurar a distância temporal.

Destarte, o presente artigo enfocará em um primeiro plano as reflexões de Mill e em

um segundo plano a repercussão destas reflexões com temas da filosofia política

contemporânea, promovendo diálogos pontuais (que cumprem a função de demonstrar a

notoriedade de Mill) com os teóricos Rawls, Dworkin, Habermas e Taylor – dois liberais, um

procedimentalista e um comunitarista.

Ainda nesta breve introdução cumpre apresentar o autor que serve como marco

teórico para esta pesquisa. John Stuart Mill (1806-1873), filho do também filósofo James

Mill, nasceu em Londres. Stuart Mill foi educado em casa pelo seu pai, com ajuda de Jeremy

Bentham e Francis Place, seguindo uma orientação de John Locke, conforme o qual a mente

equiparava-se a uma tabula rasa para ser preenchida pelas experiências. Desta vertente, James

Mill instituiu para o seu filho uma rigorosa educação com o objetivo de proporcionar a Stuart

Mill importantes experiências. Com isso Stuart Mill começou a manifestar a excepcionalidade

pela qual é conhecido, que inclui o domínio de línguas como grego e latim e a leitura de obras

clássicas, bem como o domínio da história, matemática e lógica. Entre 1818 e 1820 esteve na

França com Samuel Bentham, tendo nesta oportunidade aprofundado o conhecimento sobre o

utilitarismo, o que posteriormente repercutirá em sua proposta de reformulá-lo. Ao retornar,

participa ativamente da sociedade utilitarista (que mudou o nome para sociedade de debates),

círculo intelectual no qual começou a ter divergências teóricas com seu pai, divergências que

ficaram explícitas quando Stuart Mill assumiu a diretoria da Westminster Review. Em 1830

conhece Herriet Taylor, uma mulher casada e mãe de dois filhos que impactou a vida de

Stuart Mill e nas reflexões sobre o feminismo, com a qual veio se casar em 1851. De suas

publicações, em 1843 foi publicada “Sistema de lógica dedutiva”, em 1848 o livro “Princípios

de economia política”, em 1851 “O Governo Representativo”, volume objeto deste artigo, em

1859 o ensaio “Sobre a liberdade”, em 1861 sua obra sobre o utilitarismo reformado,

“Utilitarismo” e em 1869 foi publicada a obra “Sujeição das mulheres”, que defendia uma

igualdade política entre homens e mulheres. Em 1865 tem uma participação política ativa,

quando eleito por Westminster para a Câmara dos Comuns, cargo que ocupou até 1868

quando o órgão foi dissolvido.

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2. SOBRE AS INSTITUIÇÕES POLÍTICAS

Toda organização social entre pessoas depende de instituições políticas. Um primeiro

objetivo de Mill é investigar o que são tais instituições políticas. Para tanto identifica duas

respostas dominantes na época de suas reflexões: instituições políticas como arte política, na

qual há a gerência de meios e fins para a persecução de objetivos humanos, na qual é

concedido especial peso para as escolhas tomadas pelos administradores; ou como produto da

história e, portanto sem o poder de escolha, na qual as instituições políticas resultam da

adequação entre governo e povo e pela reação as necessidades de determinado momento e

contexto.

Para Mill, ambas as teorias acertam e erram. Sem dúvida que há um espaço decisivo

para a tomada de decisões, bem como há fatos que demandam uma reação. De todo modo, há

uma constante para a qual o filósofo chama a atenção: as instituições políticas são obra dos

homens e são manejadas por eles.

Disto decorrem três condições para as instituições políticas, nas palavras de Mill:

1) O povo, ao qual se destina a forma de governo, deve consentir em aceitá-la, ou pelo menos não recusá-la ao ponto de opor ao seu estabelecimento um obstáculo intransponível; 2) eles [os homens] devem ter a vontade e a capacidade de falar o necessário para assegurar sua existência; e, 3) eles devem ter a vontade e a capacidade de fazer aquilo que a forma de governo exige deles, sem o qual ele não poderia alcançar seu objetivo (MILL, 1981, p. 7).

Todas as três condições implicam na necessidade da adequação entre povo e

governo. Povos selvagens, seguindo a ilustração de Mill, não estão preparados para serem

governados por formas democráticas. Por outro lado, por mais que um povo não esteja

devidamente preparado para ter instituições melhores, pode almejá-las. Também é acertada

que a organização do governo é uma questão de escolha, mas nem todas as circunstâncias o

são.

2.1 DO MELHOR MODELO DE INSTITUIÇÕES POLÍTICAS

Consolidada estas reflexões iniciais, resta saber qual é a forma de governo mais

adequada para uma sociedade. Para tanto se deve considerar que: 1) a função do governo é

variável, no sentido em que não existe uma fórmula ou uma receita das prioridades e formas

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de atuação que um governo deve assumir; e 2) que sua atuação influencia direta e

indiretamente a sociedade.

Diante de tais considerações, Mill oferece uma hipótese geral o suficiente para servir

como resposta para praticamente todas as formas de governo. Trata-se de uma resposta

formal, que ajuda a instaurar o debate mesmo não sendo possível auferir o conteúdo material

devido para cada governo em especial. Para Mill, a forma mais adequada de governo deve

equilibrar ordem e progresso. Ordem é entendida como a preservação de um bem já existente,

enquanto progresso é o aperfeiçoamento sem detrimento da ordem já consolidada. A

capacidade de progresso com a permanência da ordem, com equilíbrio entre os dois vetores, é

uma qualidade inestimável do bom governo.

Para o exercício adequado das funções governamentais, entendida de forma geral

como o equilíbrio entre a preocupação com a ordem e a preocupação com o progresso, Mill

sustenta que a condição de um bom governo é a qualidade dos homens. Afirma que a primeira

virtude do governo é a virtude do povo enquanto comunidade, de forma que, para promover o

aperfeiçoamento do governo, deve-se promover tal virtude. Em outras palavras, a condição do

bom governo reflete-se na consciência da sociedade enquanto uma comunidade que deve dar

prevalência aos interesses gerais.4

Para Mill:

Sempre que a disposição geral do povo for tal que cada indivíduo atente apenas para aqueles de seus interesses que são egoístas, e que não se preocupe com a sua parte dos interesses gerais, em tal estado de coisas o bom governo é impossível [...]. Sendo o primeiro elemento de um bom governo, portanto, a virtude e a inteligência dos seres humanos que compõem a comunidade, o mais importante mérito que pode possuir uma forma de governo é o de promover a virtude e a inteligência do próprio povo (MILL, 1981, p. 19).

Para cada época e para cada governo existirão obstáculos específicos para a

manutenção da ordem e a persecução do progresso. Mas ainda em uma perspectiva formal as

dificuldades específicas perpassam na formação de uma comunidade que se guie por um bem

comum.

Após dar estes passos, Mill resume da seguinte maneira a sua hipótese:

para determinar a forma de governo mais adequada a um povo determinado, devemos ser capazes de, dentre os vícios e lacunas desse povo, distinguir aquele que constitui o impedimento mais imediato ao progresso [...] O melhor governo para

4 Nesta proposição está subjacente a orientação utilitarista de Mill.

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esse povo é o que mais tende a propiciar-lhe aquilo cuja falta o impede de avançar, ou que o faz avançar de uma maneira desajeitada e incompleta (MILL, 1981, p. 24).

A resposta de Mill sobre o governo adequado para cada sociedade é deveras geral e

justamente diz muito pouco sobre qual a melhor forma de governo, por exemplo, para a

sociedade brasileira contemporânea. Porém, seu mérito não reside em oferecer uma resposta

mágica que serviria para acabar com os problemas políticos de uma sociedade, mas sim em

inaugurar um debate através da conscientização de aspectos variáveis e de outros que

decorrem da decisão dos governantes e da própria comunidade.

2.2 DO GOVERNO REPRESENTATIVO

Mill sustenta que a forma ideal de governo é o representativo, no qual, mesmo que

não seja possível a participação ativa e constante de todos, todo cidadão é ao menos chamado

ocasionalmente para ter alguma participação. O filósofo também apresenta a seguinte

definição de governo representativo:

Governo representativo significa que o povo inteiro, ou pelo menos grande parte dele, exercite, por intermédio de deputados periodicamente eleitos por ele, o poder do controle supremo, que deve existir em algum lugar em todas as constituições. Este poder supremo deve ser mantido em toda sua perfeição. O povo deve ser amo e senhor, sempre que quiser, de todas as atividades do governo (MILL, 1981, p. 47).

A indicação de uma forma de governo como superior a outra não implica na

necessidade de que tal forma seja aplicável a todos os estágios de civilização, mas sim que,

quando possível adotá-lo, acarrete uma maior quantidade de benefícios que as formas

concorrentes. Se hoje temos o governo representativo como o mais adequado, não implica que

também o seria no passado.

O governo representativo possibilita uma boa administração, além do aprimoramento

das virtudes políticas, como a busca de um bem comum, o fortalecimento da emancipação dos

cidadãos e a persecução das qualidades de um bom governo.

Nesta conjuntura a apatia política é criticada por Mill. Para o filósofo a população

deve chamar para si a responsabilidade de participar das decisões políticas – e um benefício

do governo representativo é impulsionar tal atribuição, do contrário “deixe que uma pessoa

não faça nada por seu país e ela não se interessará por ele [...]. Deixar as coisas para o

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governo, como deixá-las ao acaso, é sinônimo de não se preocupar com elas e de aceitar os

resultados” (MILL, 1981, p. 28-29).5

Conforme Mill, o governo representativo é superior às outras formas de governo:

O único governo capaz de satisfazer todas as exigências do estado social é aquele do qual participou o povo inteiro; que toda a participação, por menor que seja, é útil; que a participação deverá ser, em toda parte, na proporção em que permitir o grau geral de desenvolvimento da comunidade; e que não se pode desejar nada menor do que a admissão de todos a uma parte do poder soberano do Estado. Mas como, nas comunidades que excedem as proporções de um pequeno vilarejo, é impossível a participação pessoal de todos, a não ser numa porção muito pequena dos negócios públicos, o tipo ideal de um governo perfeito só pode ser o representativo (MILL, 1981. p. 38).

A adequação do governo representativo a um povo é proporcional ao seu

desenvolvimento, devendo ao menos preencher as três condições das instituições políticas

enumeradas anteriormente (que o povo esteja disposto a aceitá-lo, que possa preservá-lo e que

possa cumprir os deveres atribuídos por tal forma de governo). A falta dos referidos requisitos

torna o governo representativo inadequado, sendo preferíveis outras formas até que o povo

atinja um grau suficiente de maturação.6

2.3 MALES DO GOVERNO REPRESENTATIVO

Mill indica dois males do governo representativo: o primeiro é a insuficiência de

qualidades intelectuais para o adequado exercício do governo, ou seja, a baixa qualificação

dos representantes; o segundo é se deixar influenciar por interesses que não sejam dirigidos ao

bem comum. Ciente deste males, Mill apresenta as seguintes orientações:

O sistema representativo deveria ser constituído de maneira a manter este estado de coisas; não deveriam permitir que qualquer dos interesses seccionais se tornasse forte o suficiente para prevalecer contra a verdade, a justiça, e todos os outros interesses seccionais juntos. Deveria sempre ser mantido um equilíbrio entre os interesses pessoais de modo a fazer com que cada um deles dependa, para ter

5 Não sendo propriamente o contexto dos debates da filosofia política contemporânea, mas tomando como objeto as sociedades complexas caracterizadas pela pluralidade, é interessante a perspectiva complexa da democracia de Edgar Morin: “A democracia serve-se de dois circuitos recursivos: 1) os governos dependem dos cidadãos que dependem dos governos; 2) a democracia produz cidadãos que produzem a democracia. Se os cidadãos tornam-se subprodutivos, a democracia também se torna subprodutiva; se a democracia fica subprodutiva, os cidadãos passam a ser subprodutivos. Assim, as crises/ enfraquecimentos de civismo são também crises/ enfraquecimentos de democracia, logo de complexidade política e social” (MORIN, 2007, p. 150). 6 Mill aponta como um fator positivo na dominação de povos. Entende que tal circunstância ajuda na emancipação dos povos, na medida em que um status desta natureza empurra a população a um grau de desenvolvimento suficiente para ocasionar a ruptura com um governo dominador.

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sucesso, de conseguir convencer pelo menos uma grande parte das pessoas que agem segundo motivos elevados e visões mais abrangentes (MILL, 1981, p. 69).

Sobre o primeiro dos males a seção seguinte trata exclusivamente deste tema, já para

o segundo dos males, a próxima subseção transpõe o problema para a filosofia política

contemporânea, demonstrando as dificuldades inerentes a questão.

2.4 SOBRE O BEM COMUM E A FILOSOFIA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA

Em termos contemporâneos, os males que Mill pretende evitar seriam neutralizados

em uma comunidade dotada de integridade, como idealizada por Dworkin, na qual haveria um

ponto de homogeneidade para o qual convergiriam as diferentes pretensões individuais.

Na orientação liberal de Ronald Dworkin, há a fundamentação da existência de uma

unidade da comunidade política (como pressuposto para a integridade jurídica) a partir de

uma concepção de fraternidade que envolve todos os cidadãos. No interior da comunidade, as

pessoas aceitam que são governadas por princípios comuns a todos. Em síntese: “cada um

aceita a integridade política como um ideal político distinto, e trata a aceitação geral desse

ideal” (DWORKIN, 1999, p. 255). Esta sistemática acaba por vincular a atividade legislativa

e jurisdicional. Isto significa que na visão do Direito como Integridade, existem princípios

que permeiam toda a ordem jurídica dotando-a de coerência.

Aceitamos a integridade como um ideal político porque queremos tratar nossa comunidade política como uma comunidade de princípios, e os cidadãos de uma comunidade de princípios não têm por único objetivo princípios comuns, como se a uniformidade fosse tudo que desejassem, mas os melhores princípios comuns que a política seja capaz de encontrar. A integridade é diferente da justiça e da equidade, mas está ligada a elas da seguinte maneira: a integridade só faz sentido entre pessoas que querem também justiça e equidade (DWORKIN, 1999, p. 314).

Como contraponto ao liberalismo representado por Dworkin e Rawls, no qual o bem

comum é o substrato das preferências existentes compatíveis com os princípios de justiça,

consideradas igualmente em um estado neutro, o Comunitarismo, na esteira de Charles

Taylor, pode ser analisado. Este se opõe a visão liberal usando como critério para avaliar as

preferências o quanto elas corroboram o bem comum (entendido como uma concepção

substantiva da boa vida que define o modo de vida da comunidade).

O comunitarismo estipula uma hierarquia de valores que varia sócio-historicamente,

idéia que é endossada por dois argumentos: 1) No liberalismo o indivíduo é concebido como

anterior e livre dos seus vínculos, sendo todos eles reversíveis, sendo um eu desonerado, já no

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comunitarismo há o eu inserido em práticas sociais que não admite desvinculação; 2) a tese

social, enquanto os liberais negligenciam as condições sociais para a concretização dos

objetivos, Taylor entende que a autodeterminação só pode ser pensada em um contexto social,

o que resulta na necessidade do abandono da neutralidade liberal. A autodeterminação

necessita ser pensada em uma estrutura cultural que forneça opções (KYMLICKA, 2006, p.

263-279).

Além desta questão, a necessidade da defesa de um governo representativo já está

superada para os debates teóricos contemporâneos (BOBBIO, 2002), porém o governo

representativo continua a ser objeto de análise. As discussões iniciadas por Mill possuem um

mérito inegável e é certo que nem todas se esgotaram. Porém, pelo rumo que a história tomou,

há outros elementos e necessidades que passam a compor o debate.

3 SOBRE O SUFRÁGIO E O VOTO: O ALCANCE DAS CONSIDERAÇÕES DE

MILL NA PROBLEMÁTICA POLÍTICA ATUAL

É através dos procedimentos eleitorais e de participação adequados que Mill entende

ser possível superar os males do regime democrático sem perder as suas virtudes. Por isso

Mill dedica considerável atenção para discutir a questão do voto. Além do mais, é neste ponto

que reside uma linha de ação possível para evitar um dos males dos governos representativos

citados por Mill: representantes com capacidade insuficiente ─ e, neste ponto específico, Mill

dialoga de forma quase consonante com o status de alguns dos principais problemas políticos

contemporâneos.

Se o governo representativo é caracterizado pelo exercício racional dos interesses do

povo ─ o qual, segundo o próprio Mill, “é amo e senhor”, ou seja, é o ponto fulcral de todo o

exercício político ─, é natural que surjam conflitos ou eventuais pontos de discordância

acerca da melhor decisão política a ser tomada. Isto ocorre, fundamentalmente, porque as

sociedades são heterogêneas, guiadas por interesses distintos a depender do contexto

histórico-social de seus cidadãos componentes. Se, no tempo de Mill, tal fato já era muito

conhecido dos teóricos, é fato que a sociedade atual apresenta uma potencialização desta

mesma problemática ─ na medida em que o aumento considerável do tamanho dos Estados e

das populações e do fluxo de informações e pessoas entre as sociedades assumiu proporções

muito maiores do que representava à época de Mill. Por conta disso, um governo

representativo necessita de controles claros nos rumos das decisões políticas, justamente para

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que a pluralidade e diversidade de opiniões políticas não inviabilizem seu exercício – e, neste

sentido, as considerações de Mill representam balizas muito úteis na dimensão política atual.

Para Mill, inicialmente, o direito de voto deve existir como condição de justiça para

dar voz a todos. Por outro lado, deve-se encontrar algum meio de evitar que interesses

privados invadam o governo representativo, bem como que assegure que os representantes

tenham capacidade para exercerem suas funções. Outro mal que considerado como subjacente

a estas reflexões, é a instituição de uma ditadura da maioria. Para isso Mill apresenta algumas

propostas sobre o sufrágio – algumas polêmicas atualmente e outras que já foram polêmicas,

mas hoje são vistas como indispensáveis para a democracia, como o direito de voto para as

mulheres por exemplo.

Uma primeira ponderação é a exigência de um mínimo de qualificação dos próprios

eleitores:

Encaro como totalmente inadmissível que possa participar do sufrágio uma pessoa que não saiba ler, escrever ou, ainda, executar as operações comuns de aritmética. A justiça exige que, mesmo que o sufrágio não dependa disso, os meios de atingir estes conhecimentos elementares sejam colocados ao alcance de todas as pessoas [...] e tal pessoa não estaria sendo excluída pela sociedade, mas sim por sua própria preguiça [...] a educação universal deve preceder o sufrágio universal (MILL, 1981, p. 89-90).

A qualificação dos eleitores é pressuposto para o exercício competente do governo

representativo, porque é fator de emancipação7 do indivíduo, habilitando-o a fundamentar

suas próprias decisões políticas. Novamente, Mill apresenta um problema recorrente das

democracias atuais – e, neste ponto específico, muito próximo da democracia brasileira. Em

virtude da limitação da educação elementar, grande parte das opções políticas atuais é

exercida sem o devido fundamento razoável, o que a torna racionalmente injustificável à

medida que não deriva propriamente do sujeito, mas de uma espécie de “acaso político”.

Trata-se de um governo representativo que impede, indiretamente, a representação, posto que

não há “decisão política”, no sentido estrito, do termo que seja personificada por aqueles que

exercem o governo.

Adicionalmente, para Mill o voto deveria ser público e não secreto. Com o voto

público o eleitor se tornaria mais responsável pelo seu voto. O voto secreto é adequado para

proteger o eleitor de algum indivíduo poderoso o suficiente para interferir no interesse

público. A ponte com os fundamentos políticos atuais, neste caso, apontaria para um sentido

específico – a proteção contra interferências de poder no exercício das opções políticas

7 Cabe destacar que Mill não se utiliza deste termo, mas fala sobre maturidade de um povo.

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individuais é pressuposto de aplicabilidade na realidade política brasileira. Historicamente, a

sociedade brasileira ainda não se desvencilhou por completo da tradição de compra, venda e

indução de votos – de forma que o voto secreto em um nível social é plenamente justificável

atualmente, ainda que, segundo Mill, responsabilize o indivíduo em uma menor medida por

suas opções políticas. No entanto, já em um nível parlamentar, no qual em tese as influências

políticas externas são praticamente nulificadas, e no qual toda e qualquer decisão política

deve ser justificada perante o povo, o voto secreto perde o sentido. Assim, neste ponto em

específico, as ponderações de Mill devem ser balanceadas no contexto político atual.

Outra discussão presente é a seguinte: o voto é um encargo ou um direito? Se for um

encargo o indivíduo tem o dever de tomar a decisão mais adequada considerando o bem

público, se for entendido como um direito, para Mill, seria algo disponível. Na elocução de

Mill:

Se for um direito, se pertencer ao eleitor por si só, com que base poderemos culpá-lo por vendê-lo, ou utilizá-lo para agradar uma pessoa que gostaria de conquistar? [...] Seu voto não é uma coisa pela qual tem o direito de optar; tem tanto a ver com seus desejos pessoais quanto o veredito de um jurado. É estritamente uma questão de dever (MILL, 1981, p. 107-108).

Este é o discurso ideológico que está por trás da instituição do voto obrigatório em

boa parte das democracias atuais, notadamente a brasileira. É certo que o voto obrigatório (e

universal) deve ser precedido pela educação universal. Mas a circunstância política brasileira

elegeu a legitimidade do governo eleito como prioritária em face da emancipação individual

por meio da educação (consequentemente, também, a amplitude do escopo representativo vem

antes da fundamentação racional das decisões políticas individuais). O pensamento de Mill é,

então, perfeitamente lógico em seu interior ─ uma educação ampla e irrestrita coaduna

perfeitamente com um voto público e obrigatório. No entanto, há um descompasso na

sociedade brasileira atual com relação à qualificação do eleitor, o que poderia abrir margens

para o questionamento da obrigatoriedade do voto ─ ou, mais apropriadamente para o

contexto de um governo representativo tomado aos moldes de Mill, na revisão do sistema

educacional.

Uma consideração final, e famosa na obra de Mill, é a proposta de votos por peso.

Um cidadão de maior qualificação intelectual deveria ter um voto mais valioso que os demais.

Mill não pretende deduzir uma regulamentação sobre tal questão, apenas a apresenta como

adequada para combater os males da democracia. Em suas palavras, o voto por peso não

ofende a exigência de justiça que deve existir no sufrágio:

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Não ter voz alguma na direção dos assuntos comuns é uma coisa; ver ser concedida a outros uma voz mais potente, em razão da capacidade maior para a direção destes assuntos, é outra diferente. Cada pessoa tem o direito de se sentir insultada por não ser levada em consideração, por ser encarada como não tendo nenhum valor. Mas apenas um tolo, e um tolo todo especial, se sentirá ofendido pelo reconhecimento de que existem outros cuja opinião, e até mesmo cujo desejo, merecem consideração maior do que os seus (MILL, 1981, p. 93).

Em outra medida, Mill acredita que o sistema de voto por peso é necessário para se

atingir significativas melhorias na qualidade dos representantes. É isto que sustenta na

seguinte lição:

Até que tenha sido elaborado e aceito pela opinião pública um sistema de voto plural que confira à educação o grau de influência superior suficiente para contrabalançar o peso numérico da classe menos instruída, os benefícios do sufrágio universal estarão sempre acompanhados, assim me parece, de uma fonte de males mais que equivalentes (MILL, 1981, p. 95).

Um sistema político efetivamente representativo para Mill exige como pressuposto a

qualificação tanto dos eleitores quanto dos eleitos, e um sistema de voto condizente com tais

especificidades. Na estrutura política atual, notadamente brasileira, vê-se a desconsideração

quase completa de tais pressupostos, posto que há um desnível entre o sistema de votos e o

grau de qualificação educacional tanto do povo quanto dos representantes eleitos. Nesta

medida, as considerações de Mill representam contribuições valiosas na avaliação da

sistemática política contemporânea, posto que permitiriam aferir o grau de efetividade do

governo representativo brasileiro com base em seus pressupostos de fato.

3.1 ADENDO. VOTO IGUALITÁRIO E A JUSTIÇA COMO EQUIDADE DE RAWLS

A proposta de voto por peso, em especial, rendeu um diálogo com o filósofo

contemporâneo John Rawls. Neste adendo sobre Rawls, não é explícito como a Justiça como

equidade8 se posicionaria a respeito da proposta de voto por peso de Mill. De todo modo, é

8 Justiça como equidade é o nome da teoria sustentada em “Uma Teoria da Justiça”, apesar de também ter sido refinada e posteriormente publicada com o título “Justiça como equidade”. Em síntese, Rawls defende uma concepção de justiça liberal através da defesa de dois princípios de justiça (descritos na nota seguinte) que seriam os escolhidos pelos indivíduos em uma posição original. A posição original é um artifício teórico a semelhança do contrato social, que projeta um véu de ignorância nos indivíduos, fazendo-os ignorar suas posições concretas na sociedade e escolher, de forma imparcial, princípios de justiça que guiarão as instituições políticas. Como cada individuo pode vir a ocupar qualquer posição, no entender de Rawls, eles tenderiam a eleger princípios que aumentariam o máximo possível a chance de realizarem suas expectativas independente das posições que venham ocupar na sociedade (RAWLS, 2008).

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certo que à luz dos dois princípios de justiça de Rawls9, aqueles que estivessem em uma

posição desvantajosa precisariam receber uma justificativa para a aceitarem. A restrição da

liberdade política só poderia ser aceita se tal desigualdade resultasse em uma maior proteção

geral como resultado final.

A desigualdade criada, neste ponto, é a quebra da regra uma pessoa, um voto.

Alguém com maior capacidade e escolaridade teria o voto com peso maior, ao mesmo tempo

em que o voto de todas as pessoas teria algum peso. A questão chave é: como justificar para

as pessoas cujo voto possui menor peso que o voto de outros cidadãos tenha maior peso?

Neste aspecto, Rawls não pretende criticar Mill. Parte da presunção de que “o

governo vise ao bem comum, isto é, a preservação de condições e a realização de objetivos

que são similarmente vantajosos para todos” (RAWLS, 2008, p. 288). Também no corpo

social é possível identificar cidadãos que se destacam em capacidades políticas, de forma que

“os outros estarão dispostos a confiar neles e a conceder um peso maior às suas opiniões”

(RAWLS, 2008, p. 288). Em uma situação ideal, as pessoas mais qualificadas tomariam as

decisões mais adequadas para a coletividade, o que resulta em um ganho geral inclusive para

aqueles com menor poder de participação. Evidentemente, para que haja uma concepção

intrínseca de justiça nesta proposta, todo cidadão poderia (através da satisfação de critérios,

como escolaridade) aumentar o peso de seu voto.

A discussão desencadeada por Rawls é interessante para refletir se uma proposta

desta natureza seria ao menos teoricamente possível na Constituição brasileira atual. É certo

que há uma limitação material explícita no art. 60, §4°, II para propostas de emendas

constitucionais que tendem a abolir o voto direto, secreto, universal e periódico. A questão

chave, e a polêmica que Rawls não adentra, é se a quebra da regra uma pessoa, um voto, nos

moldes propostos por Mill, seria constitucional e/ou coerente com a justiça como equidade.

4 O PROBLEMA DA PLURALIDADE

O principal elemento que serve para mediar o pensamento de Mill, e ao mesmo

tempo se distancia dele na medida em que não encontramos respostas satisfatórias para tais

questões no filósofo utilitarista, é a necessidade da emancipação dos cidadãos equilibrada com

9 A primeira formulação dos princípios de justiça, e servem para compreender o uso teórico de Rawls nesta pesquisa, consiste em: “Primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual ao sistema mais extenso de iguais liberdades fundamentais que seja compatível com um sistema similar de liberdades para as outras pessoas. Segundo: as desigualdades sociais e econômicas devem estar dispostas de tal modo que tanto: (a) se possa razoavelmente esperar que se estabeleçam em benefício de todos como (b) estejam vinculadas a cargos e posições acessíveis a todos” (RAWLS, 2008, p. 73).

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a constituição de um corpo político adequado de forma a possibilitar as decisões políticas

mais legítimas para a sociedade. Na sociedade inglesa do século XIX, havia de forma mais ou

menos determinável uma minoria e uma maioria, como havia no século XVIII uma maioria e

uma minoria que deveriam ser equilibradas pelos federalistas. Contemporaneamente, o objeto

de análise são sociedades complexas, caracterizadas pela pluralidade, implicando na

necessidade de respostas diferentes. Assim, este pode ser um ponto especialmente

problemático na aplicabilidade do pensamento de Mill aos sistemas políticos modernos.

A primeira reflexão do livro de Mill, sobre a natureza das instituições políticas, já é

mitigada pelo próprio filósofo - ele deixa claro que suas concepções decorrem em parte da

história, de forma que o autor estava ciente da limitação temporal de seu próprio pensamento.

Mesmo tendo buscado apresentar reflexões gerais o suficiente, capazes de servirem para

vários períodos e contextos, a radical mudança nas circunstâncias sociais aponta para o fato de

que os posicionamentos teóricos de Mill não podem ser usados indiscriminadamente.

Aliás, o problema da pluralidade, cuja resposta não encontramos em Mill, tampouco

é solucionado de forma satisfatória pelos teóricos do final do século XX e nas obras

publicadas no início do século XXI. Os teóricos contemporâneos não contestam a

necessidade de promover o pluralismo – liberais e comunitaristas concordam nisso, só

divergindo sobre qual é a forma mais adequada de perseguir tal fim.

É possível tomar-se como exemplo Habermas: com seu procedimentalismo, ele

defende uma concepção procedimentalista da democracia, na qual a legitimidade seria

assegurada pela aceitação racional de todos os participantes de processos discursivos que

instituem as bases de uma sociedade. Neste procedimentalismo, não se adentra a questão sob

uma perspectiva material ou formal, mas atém-se aos procedimentos que por si só bastarão

para integrar a comunidade. Em suas palavras:

Em sociedades pluralistas, porém, convivemos hoje com evidências cotidianas que se distanciam cada vez mais do caso modelar do Estado nacional com uma população culturalmente homogênea [...] é essencial que o processo democrático também se preste como fiança da integração social de uma sociedade que se mostra cada vez mais diferenciada e automatizada (HABERMAS, 2002, p. 140).

Há uma pluralidade subjacente aos procedimentos discursivos que deve ser

integrada. Porém, orquestrar tal encadeamento, pela harmonização das diferentes culturas com

uma proposta material, está além do propósito habermasiano.

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Presumo que as sociedades multiculturais só poderão manter-se coesas por meio de uma cultura política como essa, que já deu mostras de sua eficiência, se a democracia for compensada não apenas sob a forma de direitos liberais à liberdade e direitos políticos à participação, mas também mediante o gozo profano de direitos sociais e culturais ao compartilhamento (HABERMAS, 2002, p. 142).

Assim, as tentativas de solucionar a questão, mesmo por filósofos mais recentes

como Habermas, em certo ponto dialogam com as considerações de Mill. De certo modo, a

organização racional das estruturas de manifestação política e a abrangência das instituições

sociais representativas podem ser adquiridas mesmo em face das pluralidades sociais. Mesmo

no campo teórico, a atualidade do pensamento do Mill é notável, principalmente tendo-se em

vista as transformações políticas e sociais posteriores a seu tempo.

É por isso que Mill não limita totalmente suas considerações à sociedade inglesa do

século XIX – mas fornece linhas gerais de estruturação da representação política. Como

consequência, é perfeitamente possível aplicar o pensamento de Mill (de forma

contextualizada e razoável, claro está) à problemática política contemporânea, porque sua

obra fornece diretrizes teóricas úteis ao estabelecimento de um governo civil efetivamente

representativo.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Mill é um marco teórico e histórico para uma série de questões concernentes ao

governo representativo. Algumas de suas reflexões foram ratificadas e hoje é inconcebível

pensar a democracia sem elas – como ocorre com o direito de voto das mulheres. Outras

assumem um caráter conflitante com a ortodoxia teórica, apesar de soarem plausíveis para os

utilitaristas e merecerem citações por teóricos contemporâneos – como a questão de dar maior

peso ao voto das pessoas com maior escolaridade. Mesmo em campo teórico, novamente, é de

se destacar o diálogo que os pensadores políticos estabelecem em alguns pontos com a obra

de Mill, mesmo na reformulação de algumas questões mais amplas, como igualdade, justiça e

pluralidade. As instituições políticas de Mill, ainda que de certo modo ligadas à prática efetiva

da representação política, enquadram-se de modo notável no ferramental teórico trazido por

pensadores mais atuais, como Rawls, Dworkin e Habermas.

Há uma atualidade no pensamento de Mill, principalmente nos aspectos mais gerais

por ele tratados como os males dos governos representativos – que se apresentam como

constantes presentes nos tempos de Mill e verificáveis nos dias de hoje. Por mais que o

pensamento Mill não baste para resolver tais males, como a permeação de interesses

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conflitantes com o bem comum na comunidade política, Mill oferece um ponto de partida

sólido para tais discussões. Sobre este particular, pode-se constatar a repercussão na filosofia

política contemporânea a necessidade e a dificuldade de determinar um bem comum que sirva

como norte para a atuação das instituições políticas. No entanto, a nível de pressuposto, as

considerações de Mill podem e devem ser levadas em conta tanto pelos teóricos quanto pelos

que efetivamente exercem o governo representativo (e aí incluem-se representantes e

representados). A estrutura política e social brasileira seria certamente um campo de aplicação

interessante para as teorias de Mill, mormente em face de suas circunstâncias históricas e

sociais ─ de modo que no campo da prática social o pensamento de Mill é aplicável na mesma

medida em que o é no campo da teoria: há ressalvas ante a evolução do pensamento político e

da sociedade, mas as linhas gerais por ele fornecidas ainda não foram, em geral,

completamente transpostas.

Como os filósofos clássicos gregos, “Considerações sobre o governo representativo”

é uma leitura clássica, oferecendo uma contribuição sem igual para determinadas temáticas,

como tal, ao mesmo tempo que deve ser considerada, não pode ser usada para resolver

questões práticas sem o devida acuidade. Platão e Aristóteles sem dúvida contribuem para o

pensamento político, mas pouco se extrai deles de maneira conclusiva para resolver questões

mais especificas. Da mesma forma, Mill contribui para a reflexão das linhas gerais do

governo representativo, no entanto, é sempre necessário balancear suas opiniões teóricas e

práticas com as circunstâncias em que está inserida a teoria e a prática político-representativa.

De modo geral, porém, viu-se ser possível estabelecer um diálogo entre Mill e as teorias

políticas mais atuais ─ e, principalmente, que é possível avaliar os reflexos que este diálogo

projeta na prática política contemporânea. Mill, é, então, uma referência no instrumental

político da representatividade, ainda que de certo modo deslocado no tempo e no espaço das

instituições políticas e sociais.

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REFERÊNCIAS

BOBBIO, Noberto. O Futuro da Democracia. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. 8. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002.

DWORKIN, Ronald. O império do direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

GARGARELLA, Roberto. As teorias da justiça depois de Rawls: um breve manual de filosofía política. Trad. de Alonso Reis Freire. São Paulo: Martins Fontes, 2008. (Justiça e Direito)

HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política. Trad. de George Sperber e Paulo Astor Soethe. 3. ed. São Paulo: Loyola, 2002.

KYMLICKA, Will. Filosofia Política Contemporânea: uma introdução. Trad. de Luís Carlos Borges. Revisão Marylene Pinto Michael. São Paulo: Martins Fontes, 2006. (Justiça e Direito)

MILL, John Stuart. O governo representativo. Trad. Manoel Innocêncio de L. Santos Jr. Brasília: UNB, 1981.

MORIN, Edgar. O Método 6: Ética. Trad. Juremir Machado da Silva. 3. ed. Porto Alegre: Sulina, 2007.

RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Trad. Jussara Simões. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008. (Coleção justiça e direito)

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O DIREITO DE PETIÇÃO SOB PERSPECTIVA

Uma proposta para a ampliação do debate democrático no controle concentrado de

constitucionalidade

THE RIGHT OF PETITION IN PERSPECTIVE

A proposal to widen the democratic debate in the concentrated constitutional control

Eneida Desiree Salgado*

Geisla Aparecida Van Haandel Mendes**

SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. O direito de petição como direito de índole essencialmente democrática. 3. O direito fundamental de petição como direito subjetivo público. 4. O direito de petição no controle concentrado de constitucionalidade. 5. Considerações Finais. 6. Referências.

RESUMO: Objetiva-se por meio do presente estudo investigar as funcionalidades alusivas ao direito de petição, previsto no art. 5º, XXXIV, “a”, da Constituição Federal brasileira, sua conceituação e substancialidade, enquanto direito fundamental de índole essencialmente democrática e a potencialidade de sua utilização em sede de controle concentrado de constitucionalidade como instrumento de ampliação do debate democrático junto ao Supremo Tribunal Federal, com a perspectiva de ampliação da participação de interesses conexos e não diretos no controle concentrado de constitucionalidade, como medida de efetiva participação da sociedade civil, pois afinal os efeitos decorrentes dos resultados de tais decisões serão contra ela aplicados.

PALAVRAS-CHAVE: Direitos Fundamentais – Democracia – Direito de Petição Poder Judiciário – Participação.

* Mestre e doutora em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná, atualmente em estágio de pós-doutoramento junto ao Instituto de Investigaciones Jurídicas da Universidade Nacional Autónoma do México. Professora do Departamento de Direito Público da UFPR. Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito - Mestrado - da UNIBRASIL, do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas - Mestrado e Doutorado - da UFPR, e do Instituto de Direito Romeu Felipe Bacellar. Pesquisadora e vice-líder do Núcleo de Investigações Constitucionais da Universidade Federal do Paraná. E-mail: [email protected]. ** Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Direitos Fundamentais e Democracia das Faculdades Integradas do Brasil – UNIBRASIL. Especialista em Direitos Humanos pela Universidad Pablo de Olavide Sevilha – ES. Especialista em Direito do Trabalho pela Faculdades Integradas do Brasil – UNIBRASIL e Escola da Magistratura do Trabalho – EMATRA IX. Integrante do Grupo de Pesquisa em Direito Constitucional das Faculdades Integradas do Brasil – NUPECONST. Advogada. Email: [email protected]

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ABSTRACT: The aim of the present paper is to investigate the functionalities surrounding the right of petition, as it stands in the article Nº 5, XXXIV, “a”, of the Brazilian Federal Constitution, its conceptualization and substantiality, as a fundamental right of essential democratic nature and also to look over its potential when it comes to its use in concentrated constitutional control as a instrument to widen the democratic debate by the Federal Supreme Court, with the perspective of increasing the participation of both direct and indirect interests in the field of concentrated constitutional control, as a effective approach to civilian society participation, knowing that eventually the effects the results of these decisions will be applied against it.

KEY-WORDS: Fundamental Rights – Democracy – Right of Petition – Judiciary Power – Participation.

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1. Introdução

A sociedade contemporânea reclama uma participação em todos os campos públicos,

porém, são tímidas as efetivas participações, ainda que o momento político seja de um Estado

Democrático de Direito estabilizado por um constitucionalismo construtor e prospectivo em

direção a um direito colorido pela consideração da humanidade, dos sentimentos a serem

ponderados em uma razão mais relacional, desapegada de subsunções cientificadas apenas

pelas premissas estáticas de um mundo jurídico marcado pelo distanciamento hermenêutico

das emoções.

Deste mundo herda-se uma ingente peculiaridade, que domina o pensamento

substancial e processual de nossa época, particularizando capacidades estritamente individuais

e apenas reativas ao exercício do poder, a exemplo das defesas pessoais e diretas, pelo

peticionamento individual em um individualismo reiterado e concentrador, que deixa ao largo

ações voltadas ao coletivo, máxime quando em xeque direitos constitucionalmente

assegurados, cuja interpretação e aplicação se estendem a todos, segundo a concepção dos

efeitos erga omnes verificáveis nas ações constitucionais.

O tradicional direito de petição, na forma em que se costuma pensá-lo, como exercício

do direito de ação, mas que com este não se confunde, não raras vezes prestigia os detentores

de meios reais para o seu exercício: aqueles que possuem consciência de seu direito e a quem

recorrer para sua efetivação, que dispõem dos meios materiais e financeiros para cumprir um

encargo probatório, por vezes inalcançável pelo pagamento de experts e produções laborais

para o cumprimento do ônus que é deixado às próprias partes.

O que aqui se propõe é um olhar para além do individual, segundo a perspectiva do

direito fundamental de petição previsto pelo art. 5º, XXXIV, “a”, da Constituição Federal1, da

transposição a um direito de petição abrangente, para dizer de alcance individual e coletivo às

ações constitucionais, do seu aproveitamento, pelos resultados, a toda a sociedade, inclusive a

uma minoria desassistida de recursos para o intento de ações individuais, e mais, de um

exercício participativo em decisões outras, que reflexivamente trazem-lhes consequências,

afetando parte ou integralidade da composição do seu direito.

1 Art. 5º, XXXIV - são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas: a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder;

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O direito de petição que se propõe não é apenas mais uma decorrência da carga teórica

da declaração de direitos, mas uma fresta, uma abertura para a ação real, de ingerências da

multiplicidade e complexidade fenomênica dos fatos sociais.

O direito de petição, no tema deste trabalho, representa um ósculo para o Poder

Judiciário para além da introdução da realidade do ser, um espectro individual, como

representa para o exercício democrático participativo um diálogo concreto.

Representa, neste contexto, a reintrodução e recarregamento das ausências de

participação não contempladas no sistema e que dependem, para tanto, de uma nova postura,

da aceitação de que os temas não podem apenas serem resolvidos no âmbito dos encontros e

tensões particulares individuais.

A limitação ao ângulo de visada e atuação restrita aos legitimados para proposição de

ações de controle de constitucionalidade ou, ainda, ao escrutínio estrito de luminares do

direito, não se faz suficiente para a resolução de tais questões, pois da abrangência inerente

aos resultados destas decisões repercute uma enorme onda reflexiva a exigir um olhar não

apenas contemplativo da sociedade, ao contrário, exige e permite pró-atividade no efetivo

exercício democrático-participativo.

2. O direito de petição como direito de índole essencialmente democrática

O direito de petição na forma prevista pela Constituição da República Federativa do

Brasil de 1988 assegura a todos, independentemente do pagamento de taxas, o direito de

interpor petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de

poder (Art. 5º, inc. XXXIV, “a”, CF/88). Tal previsão se coaduna com o sentido moderno de

Constituição, proposto por Canotilho, segundo o qual a Constituição é compreendida como “a

ordenação sistemática e racional da comunidade política através de um documento escrito no

qual se declaram as liberdades e os direitos e se fixam os limites do poder político”2.

As democracias constitucionais contemporâneas são caracterizadas pela positivação de

uma Constituição longa e densa no sentido de contemplar, além das regras inerentes à

organização política-estrutural do Estado, um extenso catálogo de direitos fundamentais, cujas

2 O conceito de Constituição, segundo Canotilho, incorpora três dimensões fundamentais, a saber, “1) ordenação jurídico-política plasmada num documento escrito; 2) declaração, nessa carta escrita, de um conjunto de direitos fundamentais e do respectivo modo de garantia; 3) organização do poder político segundo esquemas tendentes a torná-lo um poder limitado e moderado.” (grifos do original) CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7ª ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 52.

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normas, dotadas de rigidez, ressaltam e propugnam a proteção e garantia destes mesmos

direitos, como garantia de equilíbrio do sistema jurídico. Ademais, os direitos fundamentais

estabelecidos em uma Constituição rígida funcionam como limites materiais à deliberação

democrática. Nesse sentido, o constitucionalismo3 potencialmente garante o devido

funcionamento da democracia, ao assegurar a proteção aos direitos fundamentais e estabelecer

as regras a serem seguidas na estrutura organizacional do Estado pelos Poderes constituídos4.

O regime democrático baseado no princípio fundamental constitucional da soberania

popular, fundamento da República Federativa do Brasil, proclamado pelos artigos 1º e 2º 5,

traz como ideal democrático o respeito aos direitos fundamentais, ao desenvolvimento

independente das atividades pelos Poderes da República e, sobretudo, estabelece os caminhos

e a garantia da participação da população nos ditames do país através da abertura de espaços

para o efetivo atuar do cidadão em uma concepção institucional mais abrangente e

democrática6.

Um Estado de democrático de direito impõe abertura à participação dos cidadãos na

construção das decisões públicas sob os auspícios do “triângulo virtuoso conhecido pela

3 Conforme observa Maurizio Fioravanti o processo de surgimento do constitucionalismo desenvolvido ao largo do séc. XX pressupõe a supremacia e eficácia da Constituição sobre todo o ordenamento jurídico. Segundo explica, o chamado Estado Constitucional é compreendido como o modelo de Estado em que o ordenamento jurídico da sociedade é regido por uma constituição, cuja supremacia significa a subordinação de todos os atos emanados dos poderes constituídos e, por conseguinte, de toda a legislação infraconstitucional, às suas disposições. Para o autor, foi a entrada em vigor das Constituições Democráticas que legitimou o desenvolvimento desta nova forma de Estado, denominada de “Estado Constitucional”. FIORAVANTI, Maurizio. Estado y Constitución. In: FIORAVANTI, Maurizio (org.). El Estado moderno en Europa. Madrid: Trotta, 2004, p. 13-43. 4 “O Constitucionalismo tem como pedra angular os direitos fundamentais que, por sua vez, representam os valores substantivos escolhidos pela sociedade no momento constituinte, de máxima manifestação da soberania popular. São estes direitos que garantem o funcionamento da democracia, isto é, quando os direitos fundamentais impõem limites materiais aos atos do governo estão, na verdade, protegendo o povo como um todo e não apenas maiorias eventuais. E quem está incumbido de proteger estes valores é o Poder Judiciário, conforme determinação do próprio Poder Constituinte”. BARBOZA, Estefânia Maria de Queiroz. Jurisdição Constitucional: Entre constitucionalismo e democracia. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2007, p. 50. 5 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. 6 “A cidadania vem exigindo a reformulação do conceito de democracia, radicalizando, até, uma tendência que vem de longa data. Tendência endereçada à adoção de técnicas diretas de participação democrática. Vivemos, hoje, um momento em que se procura somar a técnica necessária representativa com as vantagens oferecidas peoa democracia direta. Abre-se espaço, então, para o cidadão atuar, direta e indiretamente, no território estatal”. CLÈVE, Clèmerson Merlin. Temas de direito constitucional (E de teoria do Direito). São Paulo: Editora Acadêmica, 1993, p.16.

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fórmula do governo do povo, pelo povo e para o povo” 7. Por democracia, José Afonso da

Silva, compreende “o meio e instrumento de realização de valores essenciais de convivência

humana” 8, e nesse sentido, envolve não somente o regime político e a estrutura

organizacional do Estado, mas toda a história e os movimentos sociais que a circundam, de

modo que “a democracia não é um mero conceito político abstrato e estático, mas é um

processo de afirmação do povo e da garantia dos direitos fundamentais que o povo vai

conquistando no correr da história” 9.

Trata-se de movimento contínuo, de progressiva transformação e sujeito ao conflito,

de construção de autonomia e de distribuição democrática do poder, o próprio conceito de

democracia, de definição muito densa, como poder que emana do povo, se apresenta como um

método de construção de vínculos sociais, sobretudo, de consensos sociais.

A sedimentação do Estado Democrático de Direito pressupõe a importância da

promoção do debate democrático na formação deste vínculo social, “o princípio democrático

exprime fundamentalmente a exigência da integral participação de todos e de cada uma das

pessoas na vida política do país”10.

A construção da democracia pode ser traduzida como um processo de luta constante

com objetivo emancipador; do contrário se estará diante de um cenário de aviltamento ao

ideal de democracia por não consignar ações práticas. Segundo a perspectiva de Alain

Touraine, a simples “homenagem verbal” à democracia na verdade acaba por encobrir a

degradação do ideal democrático e o desaparecimento gradual da confiança na ação política11.

O direito de petição, nesse contexto, representa abertura para a ação real, de

ingerências da multiplicidade e complexidade fenomênica dos fatos sociais, de exercício do

direito de participação como direito fundamental, possuindo o condão de materializar os

princípios constitucionais estruturantes do Estado brasileiro, estabelecidos no art. 1º, caput, da

Constituição de 1988, como o princípio democrático e o Estado de direito. Nesta perspectiva,

Adriana da Costa Ricardo Schier afirma que “o direito de participação concretiza, assim, o

7 DUARTE, Maria Luísa. O direito de petição: Cidadania, participação e decisão. Coimbra: Editora Coimbra, 2008, p. 68. 8 SILVA, José Afonso da Silva. Curso de Direito Constitucional Positivo. 8º ed., São Paulo: Editora Malheiros, 1992, p. 114. 9 SILVA, Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 114. 10 MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 18ª ed. São Paulo: Editora Atlas S.A., 2005, p. 17. 11 TOURAINE, Alain. O que é a democracia? 2ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1996, p. 151.

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princípio Democrático, manifestando-se através de regras que asseguram aos cidadãos a

possibilidade de interferir e auxiliar na tomada de decisões quanto às atividades do poder

público, vinculando tais decisões ao bem comum historicamente definido, contribuindo, nesta

medida, com a realização do Estado Social”12.

Historicamente a primeira indicação de previsão do direito de petição é atribuída à

Magna Carta de 1215, na Inglaterra, cuja previsão na cláusula 40 consignava que “a ninguém

venderemos justiça ou direito, nem a recusaremos ou demoraremos”. A construção do

significado político da petição deu origem, em 1628, ao Petition of Rights, e em 1689 o

instituto foi expressamente formalizado na declaração de direitos, Bill of Rights, através da

previsão de que aos súditos restava assegurado o direito de dirigir petições ao Rei, sendo

consideradas ilegais todas as prisões e processos decorrentes do exercício de tal direito13.

Para Maria Luísa Duarte a concepção da petição como direito está relacionada com a

evolução do Estado pré-constitucional, no qual este direito teria assumido a tarefa de defesa

perante as ordens estamentais. Segundo sua perspectiva, foi o desenvolvimento da noção de

soberania, do princípio da separação dos poderes, do sistema representativo, próprios do

constitucionalismo, que contribuíram “para este relativo ocaso do direito de petição a

coincidir com a aurora do constitucionalismo liberal”.14

Segundo a perspectiva de Artur Cortez Bonifácio, o direito de petição como primado

da democracia e do cidadão surgiu com o desenvolvimento do constitucionalismo a partir da

edição das primeiras constituições, visto que, o direito de apresentar queixas ou reclamações

presente nas ordens estamentais somente poderia ser utilizado de modo restrito e

particularizado por determinados grupos não sendo estendido a todos15, característica diversa

da apresentada pelo direito de petição.

12 SCHIER, Adriana da Costa Ricardo. A participação popular na administração pública: o direito de reclamação. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 75. 13 Cf. CLÈVE, Clèmerson Merlin. Temas de direito constitucional (e de Teoria do Direito). São Paulo: Editora Acadêmica, 1993, p. 21; BONIFÁCIO, Artur Cortez. Direito de petição: Garantia constitucional. São Paulo: Editora Método, 2004, p. 76-77; DUARTE, Maria Luísa. O direito de petição: Cidadania, participação e decisão. Coimbra: Editora Coimbra, 2008, p. 36-39. SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 8ª ed. São Paulo: Malheiros, 1992, p. 387. 14 DUARTE, O direito de petição: Cidadania, participação e decisão, p. 39. 15 “Resumidamente, defere-se que o direito de petição na forma de direito subjetivo público e primado do cidadão surgiu com o constitucionalismo, com as primeiras constituições, haja vista o fato de as experiências anteriores revelarem o exercício de um direito voltado às reclamações, queixas, postulações e sugestões de corporações, mas exercido de forma particularizada e restrita a grupos estamentais”. BONIFÁCIO, Artur Cortez. Direito de petição: Garantia constitucional. São Paulo: Editora Método, 2004, p. 80.

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Talvez a melhor forma de compreender o instituto seja pensá-lo a partir da

modernidade e de sua exigência de consentimento para a legitimação para o exercício do

poder político.

3. O direito fundamental de petição como direito subjetivo público

O direito de petição constitucionalizado no sistema jurídico brasileiro como direito

fundamental16 se apresenta como norma garantidora de direitos individuais e coletivos, na

medida em que, conforme preceitua Clèmerson Merlin Clève, para além de direitos

subjetivos, o direito de petição também assegura interesses difusos, coletivos e genéricos17.

Tratando-se de direito fundamental e enquanto norma garantidora dos demais direitos

fundamentais, possui aplicação imediata (§ 1º, do art. 5º, da CF/88) e seu conteúdo está

protegido de eventuais reformas pelo poder derivado18 conforme estabelece o art. 60, §4º, IV,

da CF/88.

O direito de petição, para Artur Cortez Bonifácio, apresenta-se no marco estabelecido

pela Carta Constitucional brasileira como o direito inerente ao cidadão de participar das

decisões políticas do país que refletem em sua realidade existencial, tratando-se, ao mesmo

tempo, de um direito de liberdade e de um direito prestacional19. Afirma tratar-se de “um

direito de interação entre o indivíduo, singular ou coletivamente considerado, e os poderes

públicos e os órgãos em que se expressam, que vindica uma participação política efetiva, num

contexto de instrumentalidade e materialidade visíveis”.20

Desde a Constituição de 1824, que já previa a possibilidade de todo cidadão apresentar

reclamações, queixas e petições perante os poderes legislativo e executivo (art. 179, nº. 30),

16 Haja vista sua previsão dentre o rol dos direitos fundamentais (art. 5º, XXXIV, “a”, CF/88). 17 “O direito de petição possui dimensão democrática, na medida em que assegura a todos, por meio de petição ou representação, o acesso ao aparelho do Estado para o fim de reclamar qualquer providência, inclusive a responsabilização de funcionários pela prática de abuso de poder. [...] E, neste particular, a garantia da petição não assegura apenas direitos subjetivos do requerente, mas assim também interesses difusos, coletivos e genéricos.” CLÈVE, Temas de direito constitucional (E de teoria do Direito), p. 22. 18 “O Direito Fundamental de Petição constitucionalizado no rol dos direitos fundamentais é alcançado pelas limitações de conteúdo à reforma constitucional, pelo poder derivado, e, em assim o sendo, como norma garantidora dos direitos fundamentais, tem aplicação imediata (art. 5º, § 1º, da CRFB). Em suma, goza de todos os predicados formais e materiais destes direitos, sendo, portanto, norma de excelência. Eis a importância da sua constitucionalização e no grau de direitos fundamentais”. BONIFÁCIO, Direito de petição: Garantia constitucional, p. 54. 19 BONIFÁCIO, Direito de petição: Garantia constitucional, p. 81. 20 BONIFÁCIO, Direito de petição: Garantia constitucional, p. 81.

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todas as Cartas Constitucionais brasileiras subsequentes trouxeram previsão alusiva ao direito

de petição como se pode inferir na Constituição de 1891, art. 72, caput; Constituição de 1934,

art. 113, nº 10; Constituição de 1937, art. 122, nº 7; Constituição de 1946, art. 141, § 37;

Constituições de 1967 e de 1969, art. 150, § 30 e, finalmente, na Constituição de 1988, art. 5º,

XXXIV.21

Gilmar Ferreira Mendes compreende o direito de petição como a possibilidade de

dirigir reclamação a autoridade competente para que determinada medida seja revista ou

corrigida, para que a conduta de um subordinado seja examinada e ainda para viabilizar a

apresentação de “qualquer pedido ou reclamação relativa ao exercício ou à atuação do Poder

Público”22. Afirma que o direito de petição se apresenta como um direito fundamental de

caráter universal e geral que pode ser exercido de forma individual ou coletiva, sendo, pois,

“assegurado a todos, pessoas físicas ou jurídicas, brasileiros ou estrangeiros, ou até mesmo a

entes não dotados de personalidade jurídica”23.

Procurando trazer ao instituto um sentido pragmático e de concreta aplicação,

abrangendo a garantia de participação e o dever dos poderes públicos de solucionar as

situações que lhe são apresentadas, seja de interesse particular ou geral, Artur Cortez

Bonifácio conceitua o direito de petição como “o direito-garantia subjetivo público que as

pessoas individuais ou coletivas têm de interpor aos poderes públicos pedidos, reclamações,

representações, sugestões, reivindicações, em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou

abuso de poder, em favor de interesses particulares ou do interesse público”24.

Para Alexandre de Moraes o direito de petição é uma prerrogativa democrática de

caráter informal e se apresenta como “instrumento de participação político-fiscalizatório dos

negócios do Estado que tem por finalidade a defesa da legalidade constitucional e do interesse

público geral”25.

21 Cf. SALGADO, Eneida Desiree. O desenvolvimento democrático e os direitos fundamentais: levando o direito de petição a sério. In: I Seminário Ítalo-brasileiro: inovações regulatórias em direitos fundamentais, desenvolvimento e sustentabilidade, 2011, Curitiba, p. 66-82. Disponível em: http://www.seminarioitalobrasileiro.com.br/arquivos/66-82.pdf Acesso em: 28/07/2012. MENDES, Gilmar Ferreira et. al. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 566. BONIFÁCIO, Artur Cortez. Direito de petição: Garantia constitucional. São Paulo: Editora Método, 2004, p. 101-108. 22 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 566. 23 MENDES, et. al., Curso de direito constitucional, p. 569. 24 BONIFÁCIO, Direito de petição: Garantia constitucional, p. 83. 25 MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 24ª ed. São Paulo: Editora Atlas, 2009, p. 183-184.

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José Afonso da Silva inclui o direito de petição dentre as garantias constitucionais26.

Define-o como o direito que cabe a qualquer pessoa (física ou jurídica, por indivíduo ou

grupo de indivíduos, nacionais ou estrangeiros) de requerer a atenção dos poderes públicos

sobre determinada situação, apontar uma lesão a direito, solicitar “uma modificação do direito

em vigor no sentido mais favorável à liberdade”, ou ainda defender “direitos ou interesses

gerais da coletividade”27. Segundo aduz, o direito de petição apresenta um duplo aspecto, de

um lado pode relacionar-se a uma queixa ou reclamação no sentido de um recurso não

contencioso, de outro pode representar a manifestação da liberdade de opinião ou possuir o

caráter de informação direcionada a determinada autoridade.

Para Adriana da Costa Ricardo Schier tal compreensão, apresentada por José Afonso

da Silva, restringe sobremaneira a aplicação do direito de petição ao exigir, para o seu

manejo, a ocorrência de violação ou iminência de violação a determinado direito e a utilização

exclusiva para a defesa de direitos e interesses individuais. Segundo a autora, “o direito de

petição pode ser exercido inclusive quando não houver qualquer afronta ou ameaça a direitos,

simplesmente como uma forma de solicitar informações sobre a atuação administrativa, por

exemplo”, bem como, por tratar-se de um direito fundamental, pode ser empregado para a

defesa de qualquer direito, seja ele social, político e/ou coletivo, e não só para interesses

individuais.28

Ressalte-se ainda, na ilação de José Afonso da Silva, que o direito de petição não pode

ser destituído de eficácia29. No mesmo sentido, Clèmerson Merlin Clève aduz que a

administração possui o dever de responder a petição devidamente protocolada, por tratar-se de

norma de eficácia plena, cuja aplicabilidade não pode ser restringida pelo ente público, que

somente está habilitado a proceder à devida regulamentação da matéria30.

Por direito de petição, nas lições de J. J. Gomes Canotilho, depreende-se a faculdade

de apresentar petições, reclamações, ou queixas, a qualquer autoridade pública, efetuada de

forma individual ou coletiva, com a finalidade de defesa de direitos, da constituição, das leis e

do interesse geral31, nos termos prescritos pelo art. 52, da Constituição Portuguesa. O direito

26 SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 8ª ed. São Paulo: Malheiros, 1992, p. 387-388. 27 SILVA, Curso de direito constitucional positivo, p. 387-388. 28 SCHIER, A participação popular na administração pública: o direito de reclamação, p. 191. 29 SILVA, Curso de direito constitucional positivo, p. 388. 30 CLÈVE, Temas de direito constitucional (E de teoria do Direito), p. 22. 31 CANOTILHO, Direito constitucional e teoria da constituição, p. 512.

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de petição, segundo a ordem jurídica portuguesa, pode ser oposto em relação aos órgãos de

soberania, compreendido neste aspecto como um direito político de defesa da constituição,

das leis e de direitos pessoais (queixa e reclamação), e também em relação ao Provedor de

Justiça, para o qual são apresentadas queixas pelos cidadãos relacionadas à legalidade, a

dinamização do pedido de declaração de inconstitucionalidade, dentre outras possibilidades32,

o Provedor de Justiça, neste aspecto, corresponde a versão portuguesa do Ombudsman33.

Para Maria Luísa Duarte o direito de petição na dogmática jurídica portuguesa alberga

uma concepção ampla dotado de dupla função: a) como garantia complementar de outros

direitos fundamentais, e b) como direito de participação política. Assim, a referida autora

lusitana compreende o direito de petição como “solicitação dirigida, sob forma escrita, aos

órgãos de autoridade pública, de natureza não judicial, com o objetivo de garantir a sua

intervenção em defesa de direitos e interesses pessoais ou em defesa de causas de interesse

geral”34.

Em sentido diverso, caracterizando o direito de petição como meio fundamentalmente

político, José Carlos Vieira de Andrade afirma que o direito de petição, reclamação ou queixa,

aos órgãos de soberania ou outras autoridades não possui por si só garantias suficientes nem

mesmo eficácia especial como meio de defesa de direitos se desassociado de outras formas de

pressão política, como a realizada pelos meios de comunicação, ressaltando que o acesso aos

tribunais continua sendo o principal meio de defesa dos direitos, liberdades e garantias35.

A Constituição Alemã, por sua vez, prevê em seu art. 17º a possibilidade de

interposição de um recurso informal (direito de petição), individual ou em conjunto, como

direito de defesa e como direito de participação, cuja abrangência também consigna o direito

ao recebimento de uma decisão material sobre a petição. O direito de petição no direito

constitucional alemão, segundo Bodo Pieroth e Bernhard Schlink, é um “direito fundamental

antigo”36, definido nos termos da norma constitucional como pedido, se dirigido a uma ação

32 Cf. CANOTILHO, Direito constitucional e teoria da constituição, p. 513. 33 “Importante citar, ainda, a participação exercida por meio do ombudsman, por vezes denominado de mediador (França), ouvidor-geral ou defensor do povo (Espanha). Trata-se de um órgão de proteção dos cidadãos relacionado ao Parlamento e que tem sua competência direcionada ao controle das atividades da Administração Pública”. SCHIER, A participação popular na administração pública: o direito de reclamação, p. 126. 34 DUARTE, O direito de petição: Cidadania, participação e decisão, p. 29. 35 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 4ªed. Coimbra: Almedina, 2009, p. 343-344. 36 PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais. Trad. António Francisco de Sousa e António Franco. São Paulo: Saraiva (Série IDP), 2012, p. 477.

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futura, e como recurso, se relacionado com uma situação do passado, ressaltando os autores

que somente a petição na forma escrita encontra-se albergada pelos direitos fundamentais37.

Explicam, ainda, que as petições, no sentido proposto pela dogmática alemã, como recursos

informais, compreendem além da reclamação, do recurso hierárquico e do recurso

administrativo, “todos os pedidos e recursos administrativos relativos ao exercício do poder

público”38.

Notadamente o direito de petição se apresenta como instrumento de proteção de

direitos fundamentais e de integração do indivíduo na construção das decisões de interesse

público39, objetivando denunciar ilegalidades ou atos abusivos de poder, máxime quando em

xeque direitos fundamentais constitucionalmente protegidos, donde se depreende a

possibilidade de reclamação contra a prática de ato inconstitucional40.

Trata-se, pois, de um direito subjetivo público de dirigir petições como forma de

defesa de direitos ou contra atos ilegais ou abusivos de poder, de índole democrática e cidadã,

expressão dos fundamentos e princípios estruturantes da Carta Constitucional brasileira e

informadores de todo o ordenamento jurídico pátrio.

O Supremo Tribunal Federal qualifica o direito de petição também neste sentido,

como “direito público subjetivo de índole essencialmente democrática”, por se tratar de

“prerrogativa de extração constitucional assegurada à generalidade das pessoas pela Carta

Política (art. 5º, XXXIV, a)”41. Por estar presente em todas as Constituições brasileiras,

37 PIEROTH; SCHLINK, Direitos Fundamentais, p. 477-478. 38 PIEROTH; SCHLINK, Direitos Fundamentais, p. 478. 39 O interesse público, no sentido proposto, se aproxima à “vontade geral” descrita por Rousseau, voltada ao interesse comum, à utilidade pública, à vontade única relacionada com a comum conservação e o bem estar geral. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. Leme/SP: EDIJUR, edição 2010 (1762), p.33-34 e 111-115. Normativamente se pode aduzir que o interesse público ou a vontade geral corresponde à vontade da República, no sentido de promover a igualdade e bem de todos, conforme preceitua o art. 3º da Constituição da República Federativa do Brasil. 40 Nesse sentido, Artur Cortes Bonifácio, obtempera: “Pode-se fazer uso do direito de petição para se queixar aos poderes públicos contra o cometimento de inconstitucionalidade ou ilegalidade, levando ao conhecimento das autoridades o funcionamento anormal de serviços, visando a punição dos responsáveis ou, em última análise, em defesa de direitos pessoais. BONIFÁCIO, Direito de petição: Garantia constitucional, p. 89. 41 Supremo Tribunal Federal, AR 1.354-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 21-10-1994, Plenário, DJ de 6-6-1997. No mesmo sentido: MS 28.857-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 15-12-2010, Plenário, DJE de 15-4-2011; AO 1.531-AgR, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 3-6-2009, Plenário, DJE de 1º-7-2009; MS 21.651-AgR, Rel. Min. Néri da Silveira, julgamento em 5-5-1994, Plenário, DJ de 19-8-1994; Pet 762-AgR, Rel. Min. Sydney Sanches, julgamento em 1º-2-1994, Plenário, DJ de 8-4-1994.

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segundo o Supremo Tribunal Federal, o direito de petição “qualifica‑ se como importante

prerrogativa de caráter democrático”42.

O fortalecimento da participação do cidadão no debate democrático possibilitando sua

interação no espaço público, sobretudo no processo de tomada de decisão, como reiterado ao

longo do texto, se apresenta como ideal democrático estabelecido pelo texto constitucional.

Instrumentos de participação como o direito de petição podem ser entendidos como pequenas

sementes de abertura democrática dos poderes públicos à sociedade que podem germinar e

crescer como processos de construção e transformação da realidade social, conectando

fenômenos e contextos, teoria e realidade, de modo que, ao ampliar a relações entre o Estado

e o indivíduo43, passe a compor toda a sociedade diretamente interessada na consecução de

soluções e respostas aos questionamentos feitos pela mesma sociedade, e que neste momento

passa a participar ativamente da construção das soluções.

Tratando-se de um direito subjetivo público a sua efetiva realização deve ser

assegurada pelo Estado44. Veja-se que o Estado possui o dever de viabilizar os caminhos

através dos quais os homens possam ser ouvidos e de efetivamente ouvir o que a comunidade

tem a dizer, na medida em que resulta da ação voluntária e racional dos homens com vistas à

manutenção da ordem, da convivência em sociedade, da garantia das liberdades individuais,

da busca do bem comum, dentre outras características. Nesse sentido, promover a interação e

o diálogo social também são seus deveres, máxime quando se está diante de um direito dotado

de fundamentalidade, prescrita na Carta Maior que rege e dá estrutura organizacional a este

mesmo Estado.

Buscando-se a ampliação do debate democrático e a dilação do espectro de

aplicabilidade do direito de petição, pode-se pensar no seu exercício em face de todos os

42 ADI 1.247‑ MC, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 17‑ 8‑ 1995, Plenário, DJ de 8‑ 9‑ 1995. 43 Ao Estado compete o gerenciamento dos elementos estruturais e organizacionais da sociedade sem descurar da centralidade ao homem. Seja sob a perspectiva contratualista de formalização de um pacto social através do qual se institucionaliza o Estado como o ente dotado do poder de manter a paz, o respeito e a convivência harmônica entre os homens. [Cf. HOBBES, Thomas. O Leviatã. Trad. Rosina D’Angina. São Paulo: Martin Claret, 2012 (1651); LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil. Petrópolis: Editora Vozes, 2006 (1689); ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. Leme/SP: EDIJUR, edição 2010 (1762)]. Seja, sob a ótica weberiana de um Estado que se funda na coação, ao reclamar para si e com êxito o monopólio da coação física legítima, única fonte do direito, em uma comunidade humana em determinado território. [Cf. WEBER, Max. Economia e Sociedade. Vol. 2. Trad. de Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa; Rev. Téc. De Gabriel Cohn, 4ª ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2000, pp. 525-526]. 44 BONIFÁCIO, Direito de petição: Garantia constitucional, p. 177.

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poderes da República45, inclusive perante o Poder Judiciário, máxime quando do exame de

questões constitucionais importantes para toda a população brasileira, em sede de controle

concentrado de constitucionalidade que denotam ondas reflexivas para toda a sociedade, e que

deve estar sempre pautado pela proteção e efetividade dos direitos fundamentais nos termos

previstos pela Constituição Federal.

4. O exercício do direito de petição no controle concentrado de constitucionalidade

Diante deste amplo aspecto democrático e participativo, de ampliação do espaço

público de debate e de exposição de argumentos, que qualificam o direito de petição, subjaz a

possibilidade de utilização deste veículo de democratização em sede de tutela jurisdicional,

sobretudo em assuntos de relevante interesse jurídico e social. Nesse contexto o direito de

petição estabelece a ponte necessária entre o Poder Judiciário e a sociedade em sede de

controle de constitucionalidade, levando até o mundo dos autos e do direito as complexidades

relacionais e multifacetárias da realidade plural da sociedade em que vivemos.

Atualmente, na ordem jurídica brasileira, não existe lei regulamentando o exercício do

direito de petição, de modo que o desenvolvimento do instituto, enquanto instrumento

democrático de fortalecimento da cidadania constitui o desafio a ser alcançado46. “No âmbito

do Poder Judiciário, o direito de petição entendido de maneira mais ambiciosa, em toda a sua

fundamentalidade política, poderia levar à efetiva realização do direito de acesso à justiça e a

real democratização do controle de constitucionalidade”47 .

As ações de controle de constitucionalidade se apresentam como principais

mecanismos a serem instrumentalizados na defesa e na garantia da supremacia da

Constituição, dentro de um Estado Constitucional garantístico, conforme preceituado por

Canotilho48. A busca da garantia da supremacia da Constituição, mais do que preservar seu

corpo normativo, pretende resguardar os preceitos fundamentais que a comunidade política

45 “Parece, no entanto, conforme ao objetivo do direito de petição, defender sua ampla aplicabilidade em face dos três órgãos de soberania, do Ministério Público, dos Tribunais de Contas, dos órgãos da Administração indireta e ainda daqueles que prestam serviços públicos sob a delegação do Estado.” SALGADO, O desenvolvimento democrático e os direitos fundamentais: levando o direito de petição a sério, p. 75-76. 46 SALGADO, O desenvolvimento democrático e os direitos fundamentais: levando o direito de petição a sério, p. 77. 47 SALGADO, O desenvolvimento democrático e os direitos fundamentais: levando o direito de petição a sério, p. 78. 48 Canotilho destaca que o constitucionalismo se apresenta como “técnica específica de limitação do poder com fins garantísticos”. CANOTILHO, Direito constitucional e teoria da constituição, p. 51.

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pensa e sente como fundamentos essenciais que a identificam e caracterizam enquanto

comunidade49. Eventual ofensa aos preceitos constitucionais importa em afronta direta à

identidade da própria comunidade que a estabeleceu como norma fundamental de seu

ordenamento jurídico e político. Nesse sentido, portanto, o controle de constitucionalidade se

apresenta como instrumento garantidor da própria democracia, por resguardar os princípios

norteadores desta comunidade, sobretudo quanto aos procedimentos democráticos

estabelecidos no texto constitucional.

A realização do controle ou da fiscalização da constitucionalidade dos demais atos

infraconstitucionais parte, pois, deste pressuposto concernente à “consciência

constitucional”50 presente no ordenamento. Parte da “consciência da necessidade de garantia

dos seus princípios e preceitos”51 a serem percolados pela comunidade para a integralidade da

ordem constitucional.

Segundo a redação do caput do art. 102 da CF/88 compete ao Supremo Tribunal

Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, a atuação da jurisdição constitucional

brasileira se dá através de um sistema misto ou híbrido de controle de constitucionalidade,

combinando um controle concentrado52 (em abstrato) e um controle difuso53 (em concreto) de

constitucionalidade.

O controle concentrado de constitucionalidade por via de ação direta objetiva o

pronunciamento em abstrato quanto à validade ou não de uma norma, na dicção do art. 102, I,

“a”, “de lei ou ato normativo federal ou estadual”. Sua finalidade é, pois, um pronunciamento

sobre a própria lei, de modo que não subsiste um caso concreto a ser examinado, mas somente

o exame em tese ou em abstrato da lei. Por esta razão a doutrina afirma que esta ação

49 “se compreende a expressão – constituição da República – para exprimir a ideia de que a constituição se refere não apenas ao Estado mas à própria comunidade política, ou seja, a res publica.” CANOTILHO, Direito constitucional e teoria da constituição, p. 88 – grifos do original. 50 CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata da constitucionalidade no direito brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 33. 51 CLÈVE, A fiscalização abstrata da constitucionalidade no direito brasileiro. p. 34. 52 O controle concentrado de constitucionalidade abrange: a) ação direta de inconstitucionalidade (art. 102, I, “a”); b) ação declaratória de constitucionalidade (art. 102, I, “a”); c) ação direta de inconstitucionalidade por omissão (art. 103, § 2º); d) ação direta interventiva (art. 36, III); e) arguição de descumprimento de preceito fundamental (art. 102, § 1º). 53 Art. 102, III - julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida: a) contrariar dispositivo desta Constituição; b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal; c) julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição. d) julgar válida lei local contestada em face de lei federal. (Incluída pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004).

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constitucional, embora seja jurisdicional, se trata de um “exercício atípico de jurisdição”54,

notadamente porque não existe litígio a ser solucionado, nem mesmo partes, pois não se refere

à tutela de direitos subjetivos aplicáveis a situações concretas, em que subsiste uma pretensão

jurídica individual.

Os legitimados ativos à propositura da ação direta de inconstitucionalidade, descritos

taxativamente no rol do art. 103 da CF/88, provocam a jurisdição constitucional quanto à

validade, permanência ou não, de uma lei no sistema jurídico, não subsistindo pretensões

individuais a serem examinadas. Nesse sentido, Clèmerson Merlin Clève adverte: “cuidando-

se de processo objetivo, na ação direta de inconstitucionalidade não há lide nem partes (salvo

num sentido formal), posto inocorrerem interesses concretos em jogo. Por essa razão, os

princípios constitucionais do processo (leia-se do processo subjetivo) não podem ser

aplicados ao processo objetivo sem apurada dose de cautela”55.

Em sentido diverso, Álvaro Ricardo de Souza Cruz afirma que o processo concentrado

de controle de constitucionalidade não pode ser visto como um “processo objetivo”, na

medida em que, sob sua perspectiva, admitir um processo objetivo e, portanto, “não

contraditório” implica em violação a própria concepção de democracia56, bem como na

consequente transformação do processo de controle de constitucionalidade em algo

“asséptico, estéril, afastado do cotidiano”57 da sociedade que o instituiu.

Segundo aduz, a contraposição de argumentos é fundamental na construção de

melhores respostas às pretensões, assegurada por um “fluxo comunicativo de ideais” tendo em

vista um ideal de democracia participativa, de tal sorte que o “processo é necessariamente um

procedimento subjetivo, sujeito ao devido processo legal, contraditório e ampla defesa (art. 5º,

LV da CF/88), sem o que perde sua legitimidade democrática”58. Não possibilitar o acesso ao

contraditório e a “subjetivação” dos processos de controle concentrado de constitucionalidade

corresponde, sob sua ótica, a negação do direito difuso afeto a todas as pessoas de “vivermos

num regime político que permita/garanta o direito de argumentar e de participar”59.

54 Cf. BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 180. 55 CLÈVE, A fiscalização abstrata de constitucionalidade no direito brasileiro, p. 143-145. 56 CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Jurisdição constitucional democrática. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 371. 57 CRUZ, Jurisdição constitucional democrática, p. 384. 58 CRUZ, Jurisdição constitucional democrática, p. 371. 59 CRUZ, Jurisdição constitucional democrática, p. 372.

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Notadamente, ainda que o controle de constitucionalidade sob a via da ação direta seja

visto como um processo objetivo, segundo reiterado posicionamento do próprio Supremo

Tribunal Federal60, a Lei nº 9.868/1999, que regulamenta a proposição da ação direta de

inconstitucionalidade, embora no caput do art. 7º prescreva a não admissão de intervenção de

terceiros61, prevê a possibilidade de aceitação de outras manifestações ao processo através da

figura do amicus curiae. Estabelece o § 2º do art. 7º “o relator, considerando a relevância da

matéria e a representatividade dos postulantes, poderá, por despacho irrecorrível, admitir,

observado o prazo fixado no parágrafo anterior, a manifestação de outros órgãos ou

entidades”. Tal previsão acena no sentido de se admitir a apresentação de argumentos outros,

ainda que exija a comprovação de representatividade do postulante.

Nesse sentido, para Gilmar Mendes a positivação da figura do amicus curiae constitui

“providência que confere caráter pluralista ao processo objetivo de controle de

constitucionalidade”62, subsidiando a decisão com novos argumentos e alternativas outras

para a melhor solução do processo.

Verifica-se, contudo, que somente a previsão da representação do amicus curiae não

se mostra suficiente à necessária ampliação do debate democrático e consequente abertura à

sociedade legitimamente interessada a participar.

O direito de petição constitucional ao lado de um pedido individualizado que

mantenha correlação estreita com a centralidade do tema principal para acrescer outros

argumentos correlatos, de visibilização geral, para estender o domínio de compreensão do

tema do processo principal e seus subtemas, a fim de ampliar os efeitos do tema central,

mostra se com um sensível potencial de contribuição ao ideal democrático presente no

desenho constitucional brasileiro.

A construção da decisão em sede de jurisdição constitucional deve dar espaço a uma

solução mais completa63. A exemplo, no tema da união entre pessoas do mesmo sexo, a

60 “O ajuizamento de ação direta de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal faz instaurar processo objetivo, sem partes, no qual inexiste litígio referente a situações concretas ou individuais” (STF, RDA, 193:242, 1993, Rcl 397, rel. Min. Celso de Mello). 61 Nem mesmo a assistência a qualquer das partes é admitida, veja-se a redação do art. 169, § 1º do Regimento Interno do STF. 62 MENDES, et. al. Curso de direito constitucional, p. 1124. 63 “[U]rge abrir espaço para a exposição de argumentos em sede de controle concentrado, a fim de permitir que em todas as ações – inclusive na ação declaratória de constitucionalidade – os cidadãos possam levar sua opinião para a apreciação da corte, atuando em defesa da constituição por meio do direito de petição”. SALGADO, O desenvolvimento democrático e os direitos fundamentais: levando o direito de petição a sério, p. 79.

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despeito da decisão ser concessiva, deixou em aberto muitas outras relações decorrentes64. Ou

seja, inaugura uma nova postura, mas deixa inúmeras outras ao desalento, ao sofrimento dos

individualizados naquela autorização primeira, em que se consigna o extraordinário avanço,

mas é preciso mais avançar. Nesse sentido, talvez a admissão de argumentos outros através do

livre exercício constitucional do direito de petição pudesse contribuir e trazer a lume novas

possibilidades, outras necessidades e ângulos de visada diversos sobre o mesmo tema

fundante que possibilite uma fórmula teórica mais abrangente, inclusive com eventual

remessa de tais considerações ao Congresso Nacional haja vistas as projeções laterais e

reflexivas a toda a sociedade.

Ressalte-se que o direito de petição estabelecido pelo art. 5ª, XXXIV, “a”, da CF/88,

não se confunde com o pleito individual e/ou coletivo relacionado ao direito de ação, ele

possui qualificações outras, como já demonstrado, com outros matizes de transcendência para

permitir o exercício democrático-participativo e não apenas contemplativo do controle de

constitucionalidade. Dá lugar a pró-atividade relacional com outros direitos em tensão ou em

expectativa de fruição, e a possibilidade de integração do indivíduo para a exposição de

argumentos em processos cujas decisões são dotadas de uma universalidade e abrangência

que, como uma enorme onda reflexiva, trazem repercussões a todo o grupo social.

Nesse contexto o direito de petição se apresenta como instrumento de acreditação

civilizatória por possibilitar a transferência de legitimidade democrática às decisões com

repercussão e projeção erga omnes. Tecnicamente se pode dizer de sua similitude com o

instituto do amicus curiae, não para ingresso e decisão pessoal do autor/requerente, mas com

primado para colher as circunstâncias teóricas de interesse, para formulação abstrata da teoria

e justificação decisória a partir de propostas de interesse devidamente habilitadas na petição.

O direito de petição constitucional corresponde então a articulação teórica para uma

decisão em tese com suas particularidades, porém considerando a participação e defesa teórica

das posições postuladas pelo próprio cidadão. A importância transcende o resultado da

decisão, visto que a relevância ou não dos argumentos dispostos através da petição somente

poderá ser aferido no desenvolvimento do processo, mas sim na participação da sociedade na

construção de uma decisão de efeitos reflexivos a todos, resgatando a centralidade do homem

ao direito. 64 Como, por exemplo, a adoção numa similar união, o casamento civil e suas implicações, divisões de herança, possibilidade de realização de cirurgias para mudança de sexo, dentre tantas outras questões que a partir da emblemática decisão, passarão anos tramitando pelos escaninhos oficiais, mas sem a oficiosidade de uma linha diretiva fundamental.

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A legitimação de forças pluralistas da sociedade para participar da interpretação

constitucional reside no fato dessas mesmas forças representarem fração da esfera pública e

de realidade constitucional, em uma sociedade aberta e complexa o desenvolvimento da

democracia se realiza por meio de formas diversificadas e refinadas de mediação do processo

público, visto que a competência objetiva do “povo” para a interpretação constitucional

também é um direito da cidadania.

Veja-se que a principal função de um Tribunal Constitucional, no excerto de Luís

Roberto Barroso65, está na proteção dos direitos fundamentais como garantia da própria

democracia e não contra esta. A jurisdição constitucional, neste aspecto, “é um espaço de

legitimação discursiva ou argumentativa das decisões políticas, que coexiste com a

legitimação majoritária, servindo-lhe de ‘contraponto e complemento’”66, demonstrando a

funcionalidade democrática do controle judicial de constitucionalidade.

Através do direito de petição outros temas passam a ser relacionados e examinados

ampliando-se o espectro restrito e adstrito exclusivamente ao interesse próprio dos

legitimados à propositura da ação de controle direto de constitucionalidade. O desafio de

desenvolvimento e regulamentação do instituto se faz imperioso e urgente, para que o cidadão

não somente possa exercer o direito fundamental de petição, mas que também obtenha a

necessária e respeitosa resposta ao peticionamento, como sói acontecer em um Estado

Constitucional e Democrático de Direito.

5. Considerações finais

A ampliação do debate democrático em sede de controle concentrado de

constitucionalidade pelo exercício do direito de petição, diga-se, direito fundamental previsto

expressamente pelo art. 5º, XXXIV, “a”, da Constituição Federal, conforme se propõe no

presente estudo, possibilita a abertura do debate sobre questões constitucionais inferentes à

sociedade, de tal sorte que o sistema de controle de constitucionalidade passa a ser ponderado

como verdadeiro instrumento garantidor da democracia.

65 “Pois este é o papel de um tribunal constitucional, do Supremo Tribunal Federal, no caso brasileiro: proteger e promover os direitos fundamentais, bem como resguardar as regras do jogo democrático. Eventual atuação contramajoritária do Judiciário em defesa dos elementos essenciais da Constituição dar-se-á a favor e não contra a democracia. BARROSO, O controle de constitucionalidade no direito brasileiro, p. 377. 66 BARROSO, O controle de constitucionalidade no direito brasileiro, p. 376.

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A proposta que se delineia parte, pois, da transposição a um direito de petição

abrangente e extensivo às ações constitucionais, para pensar o seu aproveitamento a toda a

sociedade. Nesse sentido, como afirmado ao longo do texto, o direito de petição representa

uma abertura, como modalidade de exercício democrático participativo, e afirma-se como

ponte necessária ao diálogo social concreto, reintroduzindo as ausências de participação não

contempladas no sistema e que dependem, para tanto, de uma nova postura e exigem um olhar

não apenas contemplativo da sociedade, mas, sobretudo prospectivo de inserção real e efetiva,

não apenas figurativa na visão abstrata do controle.

Aprofundar-se-á, assim, a contraposição de argumentos, de notória e fundamental

importância na construção de melhores respostas às pretensões, sobretudo quando se está

diante de decisões que emanam projeções reflexivas a toda a sociedade. A intenção é alcançar

uma compreensão mais consentânea com a realidade dos fatos sociais e do que se espera

como atitude dos poderes públicos, não restrita à perspectiva particular de uma plêiade isolada

de julgadores e ainda restritos ao conteúdo formal dos limites ínsitos da petição inicial, porque

de parte do rol de poucos legitimados para a motivação meritória e de potencialidade restrita,

como acontece na atualidade do instituto do controle concentrado de constitucionalidade.

Embora o direito de petição não seja devidamente considerado pelo ordenamento, que

a mais das vezes não valoriza as substancialidades que lhe são inerentes, ele prossegue

existindo, com perseverança, marcescente como a folha que murcha, mas não se destaca,

mantêm-se firme entre o rol de direitos fundamentais.

Para vislumbrar essa ambiciosa visão do direito de petição, exige-se muito do jurista.

É preciso, como adverte Pontes de Miranda, inserir-se na Constituição e fazê-la viver,

interpretá-la pondo-se ao lado dela, intimamente, “compenetrar-se do pensamento que esponta

nos preceitos escritos e, penetrando-se neles, dar-lhes a expansão doutrinária e prática”.67

É esse o objetivo deste artigo. Provocar a reflexão sobre o direito de petição e o

controle abstrato de constitucionalidade, buscando potencializar democraticamente a partir de

sua transcendência ambos os institutos, acentuando o caráter democrático e aberto da

Constituição de 1988.

6. Referências

67 PONTES DE MIRANDA. Comentários à Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. Tomo I. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1936, p. 7.

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Os direitos humanos fundamentais de desenvolvimento e acesso à justiça

sob o prisma da dignidade humana

Fabio Antunes Possato*

Adriana Silva Maillart**

RESUMO: O objetivo deste trabalho é analisar de forma dialética o direito ao

desenvolvimento e o direito de acesso à justiça, identificando a perspectiva comum existente

entre ambos e suas inter-relações, sob o ponto de vista da dignidade humana. Sob esse viés,

caracterizam-se os direitos fundamentais no Estado democrático brasileiro, o direito de acesso

à justiça, o direito ao desenvolvimento e a interligação entre o acesso à justiça e o

desenvolvimento e vice-versa. Utilizando-se do método dialético de pesquisa e da técnica da

pesquisa bibliográfica, conclui-se que o acesso à Justiça e o desenvolvimento são dois direitos

humanos fundamentais interdependentes e complementares, que possuem como denominador

comum o princípio da dignidade humana.

Palavras-chaves: Direito ao desenvolvimento; Acesso à justiça; Gestão de conflitos;

Dignidade da pessoa humana.

The fundamental rights of development and access of justice in the human

dignity’s perspective

ABSTRACT: The aim of this paper is to analyze the right of development and the right of

access to justice, identifying the common perspective between them and their inter-

relationship, in the point of view of human dignity. Ponder the observations guided by the

characterization of fundamental rights in the Brazilian democratic State, the right of access to

justice, right to development and the interconnection between them. It uses the dialectical

method and the technical bibliographical research and concludes that access to justice and

development are both fundamental human rights interdependent and complementary, which have as a

common denominator the principle of human dignity.

Keywords: Right to development; Access to justice; Conflict management; Human dignity.

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1. Introdução

A pessoa humana, sujeito central dos direitos humanos internacionais, é objeto de

proteção sob vários enfoques, posto ser sujeito de vários direitos, como os direitos de

liberdade, os direitos de igualdade e os direitos de solidariedade. Nessa direção, todos os

direitos buscam um fim principal, qual seja a promoção da dignidade da pessoa humana.

Paralelamente, a pluralidade de direitos observada no globo, apesar de repleto de

especificidades, permite identificar as malhas que foram formadas ao longo dos anos com a

finalidade de proteger os estados de dignidade alcançados em graus anteriores. Nas

sociedades ocidentais, por exemplo, os direitos de liberdade e igualdade passaram a sofrer a

imposição dos direitos de solidariedade, e vice-versa. Assim, a título de ilustração, o direito

de propriedade passou a ser reconhecido com o atendimento da necessária função social,

como forma de se buscar a esta dignidade; e, estes dois direitos capazes de serem pleiteados

perante o Estado.

Este artigo pretende, portanto, analisar sob o ponto de vista da dignidade humana, as

perspectivas existentes entre o direito de acesso à justiça e o direito ao desenvolvimento,

buscando-se verificar, isoladamente, a caracterização de cada um destes direitos para, por fim,

identificar o ponto de junção e intersecção entre eles.

Para tanto, o estudo utilizou-se do método dialético, identificando os direitos de

acesso à justiça e ao desenvolvimento no panorama constitucional, para, então, caracterizar

cada um deles e, ao final, sintetizá-los, compondo o contexto único que compreende o acesso

à ordem jurídica justa e o desenvolvimento, tanto do Estado e da sociedade, como do

indivíduo, observado individualmente.

Nesse contexto, fez-se necessário explorar os paradigmas acerca do que se entende

por acesso à justiça e, igualmente, analisar os paradigmas que envolvem o direito ao

desenvolvimento, a fim de possibilitar a compreensão do problema proposto: a identificação

do denominador comum existente entre os direitos humanos fundamentais de

desenvolvimento e de acesso à justiça, sob o prisma do direito brasileiro.

2. Os direitos humanos fundamentais de acesso à Justiça e desenvolvimento no Estado

democrático brasileiro

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O Estado brasileiro, constituído em um Estado democrático1, tem por escopo

assegurar os direitos sociais e individuais, dentre eles a liberdade, o bem-estar, a segurança, a

igualdade e, especialmente, a justiça e o desenvolvimento.

Essa foi a vontade do constituinte brasileiro de 1988 já em sua peça preambular, que,

apesar de não pertencer ao corpo do mandamento constitucional, é carregada de intenções e

fundamentos propugnados por aqueles que representaram a vontade do povo naquela

oportunidade, a Assembleia Nacional Constituinte. Dentre os anseios mencionados

inicialmente no preâmbulo constitucional, pode-se destacar a justiça e o desenvolvimento,

qualificados como valores supremos de nossa sociedade, orientada e comprometida com a

solução pacífica das controvérsias2, tanto na ordem externa quanto na interna.

Neste contexto, a justiça, como valor supremo e fim almejado pelo Estado, deve

orientar a ordem jurídica que, tendendo à satisfação das necessidades do povo, deve objetivar

a construção de uma sociedade livre e solidária, a garantia do desenvolvimento nacional, a

erradicação da pobreza e da marginalização, a redução das desigualdades sociais e regionais e

a promoção do bem de todos, sem preconceitos ou discriminações3.

Entretanto, ao mesmo tempo em que a justiça deve representar um valor para a

sociedade, consiste em fundamento que orienta as relações sociais. E, estas relações sociais,

por sua vez, são compostas de verdadeiros emaranhados de vontades, necessidades e

expectativas distintas, pois cada membro da sociedade imprime no Estado a responsabilidade

pela satisfação de seus anseios. Por conseguinte, os anseios e necessidades individuais, por

representarem apenas uma pequeníssima parcela da vontade social, divergem entre si e se

contrapõem, transformando-se em polos geradores de conflitos, exigindo do Estado uma

resposta necessária e especial. Por sua vez, esta resposta do Estado na resolução de tais

* Especialista em Direito Processual Penal pela Escola Paulista da Magistratura e mestrando da linha de pesquisa “Justiça e [o paradigma da] eficiência” do programa de Mestrado em Direito da Universidade Nove de Julho (UNINOVE). ** Doutora e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Coordenadora do Curso de Direito, professora e pesquisadora do Programa de Mestrado em Direito da Universidade Nove de Julho (UNINOVE). 1 Frise-se, também, que o Estado brasileiro encontra assento na ordem jurídica, consistindo-se em um Estado democrático de direito (cf. CF/88, Art. 1º. “A República Federativa do Brasil [...] constitui-se em Estado Democrático de Direito [...]”). Assim, pode-se entender que a ordem jurídica, conjunto de leis e princípios que orientam o Estado, deve atender às necessidades do povo brasileiro, titular do poder político que, pelo sufrágio, delega seu exercício aos representantes por ele escolhidos (CF/88, Art. 1º, parágrafo único. “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”). 2 Preâmbulo da Constituição Federal de 1988 (CF/88). “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias [...]”. 3 CF/88, Art. 3º.

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controvérsias deve buscar um fim justo e pacífico, de modo a não potencializar os atritos

gerados pelas diferenças, mas a coadunar os interesses, mesmo divergentes4.

A resolução justa e pacífica dos conflitos de interesse, consequentemente, representa

uma das formas de se obter justiça ou, em outras palavras, representa uma das formas de

como acessá-la.

Ou seja, acesso à Justiça compreende não só o acesso ao Judiciário, mas a outros

valores e direitos do ser humano. E, na visão desta pesquisa, um meio de viabilizar a garantia

deste acesso se faz pela remoção de obstáculos econômicos, sociais, políticos, culturais e

burocráticos (numa interpretação voltada para o interior) que, por sua vez, trará reflexo para

uma abordagem voltada para o exterior, pois a remoção destes obstáculos coaduna com a

visão de desenvolvimento (Cf. MAILLART; NASPOLINI, 2012, p. 586).

Por sua vez, a promoção do desenvolvimento intencionado pelo legislador

constituinte é voltada para o bem de todos, para a erradicação da pobreza e a diminuição das

desigualdades, de modo a consubstanciar uma sociedade livre, justa e solidária, o que

comunicam os valores perquiridos pelo direito de acesso à justiça.

É nesse esteio que se encontram os direitos ao acesso à justiça e ao desenvolvimento

propugnados pelo constituinte de 1988, ambos reconhecidos como direitos humanos

fundamentais e que devem ser assegurados pelo nosso Estado democrático de direito, sob o

prisma da dignidade humana. É sobre cada um destes direitos isoladamente que se tratará a

seguir.

3. O direito de acesso à justiça e suas vicissitudes

O acesso à Justiça, nos séculos XVIII e XIX, era compreendido como “o direito

formal do indivíduo agravado de propor ou contestar uma ação”(CAPPELLETTI; GARTH,

1988, p. 9), ou seja, apenas assegurava o direito às pessoas que possuíssem recursos para

reclamar perante o Judiciário de fazê-lo, olvidando “a incapacidade que muitas pessoas

[tinham] de utilizar plenamente a justiça e suas instituições” (CAPPELLETTI; GARTH,

1988, p. 9). O efetivo acesso à justiça, portanto, era varrido da preocupação do Estado.

Naquele momento, a preocupação imediata era dar ao significante “Justiça” o

mesmo sentido e conteúdo que o de “Poder Judiciário”, tornando sinônimas as expressões

“acesso à Justiça” e “acesso a esse poder” (RODRIGUES, 1994, p. 28). E mesmo assim, o

4 A solução pacífica das controvérsias é um compromisso do Estado brasileiro, como já visto, estabelecido em sede preambular na Carta Magna de 1988.

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acesso ao Judiciário não significava a equidade de acesso. Os mais abastados teriam mais

condições de pleitear junto ao Poder Judiciário do que os hipossuficientes.

No momento atual, visando à efetivação do acesso à Justiça, a preocupação com o

acesso à Justiça ultrapassa a possibilidade das partes poderem reclamar perante o Judiciário,

no chamado contencioso jurídico, e vai além, englobando a possibilidade de utilizar-se de

outros meio de soluções de controvérsias; pela relativa equidade de acesso ao Poder

Judiciário; pela duração razoável dos processos, pela diminuição da complexidade dos

procedimentos judiciais e pela transparência na prestação jurisdicional. Busca-se, assim, “o

acesso a ela [Justiça] como o acesso a uma determinada ordem de valores e direitos

fundamentais para o ser humano” (RODRIGUES, 1994, p. 28).

É nesse entendimento que CAPPELLETTI e GARTH (1988, p. 7) reconhecem que a

expressão acesso à justiça determina duas finalidades básicas do sistema jurídico, pelo qual as

pessoas buscam reivindicar seus direitos ou resolver suas lides pelos desígnios do Estado. A

primeira delas é a acessibilidade ao próprio sistema, e a segunda é a produção de resultados

justos, tanto do enfoque social como do interesse individual. Mas, antes de tudo, acesso à

Justiça deve ser compreendido como um direito humano que teve como marco de

acontecimento a Declaração de Direitos Humanos que determinou o reconhecimento dos

direitos e deveres sociais dos governos, comunidades, associações e indivíduos (Cf. SILVA,

2005, p. 120-121).

O recurso à justiça e o inerente direito ao seu acesso é reconhecido

internacionalmente como meio garantidor da dignidade da pessoa humana que, ao mesmo

tempo, constitui o fundamento da “liberdade, da justiça e da paz no mundo”5. Essa tautologia

impressa na dignidade humana, que a faz sujeito de ações ao mesmo tempo em que consiste

em fundamento para outras, é expressa no direito de toda pessoa a recorrer a um “tribunal

independente e imparcial, para decidir seus direitos e deveres”6 e , da mesma forma, acessar o

“serviço público do seu país”7, garantias insculpidas na Declaração Universal do Direitos

Humanos, adotada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas por meio da

5 Preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH). “Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”. 6 DUDH, artigo X – “Toda pessoa tem direito, em plena igualdade, a uma audiência justa e pública por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir de seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele”. 7 DUDH, Artigo XXI, nº 2. “Toda pessoa tem igual direito de acesso ao serviço público do seu país”.

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resolução 217 A (III) em 10 de dezembro de 1948, marco da reconstrução do direito

internacional sob os princípios do direito internacional dos direitos humanos8.

Ressalte-se que o acesso à justiça representa uma das formas de estabelecimento da

igualdade entre os cidadãos, colocando-os, em tese, em posições isonômicas perante o Estado.

Inicialmente, essa igualdade estabelecida tem características meramente formais, posto que,

na realidade, muitas são as barreiras que devem ser vencidas para que o cidadão obtenha do

Estado a jurisdição e a consequente resolução da disputa. Estes são verdadeiros fatores que

desequilibram as possibilidades de acesso e relativizam os menos abastados, aflorando, então,

a desigualdade material, como o custo processual e a sucumbência a serem suportadas, caso

veja a solução do processo contrária aos seus interesses, ou, ainda, as taxas, despesas,

recolhimento de preparo, caso pretenda exercer o direito ao duplo grau de jurisdição, ou

submeter suas alegações à análise dos tribunais superiores, sem falar nos gastos que se

despendem com a manutenção do defensor. Todos estes são fatores econômicos que limitam o

acesso à prestação jurisdicional e consequente concretização do acesso à justiça.

Assim, reconheceu-se no direito de acesso à justiça, um direito fundamental,

relacionado não somente à duração razoável do processo, mas também a prestação de

assistência jurídica integral e gratuita aos hipossuficientes9. Note-se que o constituinte de

1988 garantiu o acesso ao judiciário ao estabelecer que “a lei não excluirá da apreciação do

Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”10, suporte mínimo que garante ao cidadão

jurisdicionado a capacidade postulatória. Na mesma toada, o legislador ampliou esse direito,

estendendo-o aos hipossuficientes ao garantir-lhes a assistência jurídica11 e a gratuidade da

justiça, e incluindo na lista de direitos e garantias individuais o direito à razoável duração do

processo.

8 O Sistema universal de proteção dos direitos humanos, cujo órgão principal representativo é a Organização das Nações Unidas (ONU), propiciou a sedimentação dos sistemas regionais de proteção, como o Sistema Europeu, com a criação do Conselho da Europa em 1949 e a adoção da Convenção Europeia de Direitos Humanos em 1950, o Sistema Interamericano, com a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem aprovada em 1948 pela Organização dos Estados Americanos (OEA) e, mais recentemente, o Sistema Africano, com a adoção da Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos em 1981 pela Organização da Unidade Africana, hoje União Africana. 9 CF/88, artigo 5º, inciso LXXIV: “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”. 10 CF/88, artigo 5º, inciso XXXV. 11 O artigo 134 da CF/88 consolida a responsabilidade do Estado na prestação da assistência jurídica integral e gratuita ao estabelecer que “a Defensoria Pública é a instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV”.

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Outrossim, no esteio das garantias do acesso à justiça, a proteção dos interesses

difusos e coletivos denota, também, um instrumento de materialização daquela garantia, posto

que,

no mundo contemporâneo, ocorrendo a ampliação dos direitos coletivos, difusos e individuais homogêneos, há uma transcendência da concepção individualista de titularidade de direitos. Entretanto, na medida em que a proteção privada de interesses difusos nem sempre encontra o grupo organizado de forma suficiente para enfrentar uma demanda judicial complicada, torna-se difícil a efetivação da justiça (HADDAD, 2011, p. 29).

A fim de atender essa necessidade, desde 1985, o legislador contemplou o

ordenamento jurídico com a Lei nº 7.347, disciplinando a ação civil pública e, desde 2007,

com a Lei 11.448, legitimou o Ministério Público, a Defensoria Pública, os entes estatais e as

associações privadas para proporem a ação principal e a cautelar. Igualmente, o Código de

Defesa do Consumidor, Lei 8.078/90, legitimou os mesmos titulares para a proteção dos

interesses difusos e coletivos pertinentes ao direito do consumidor.

Outro ponto a ser explorado na amplitude do conceito do acesso à justiça é a

capacidade da parte reconhecer seus direitos e, mais que isso, entendê-los juridicamente

exigíveis, o que se traduz no processo de conscientização do cidadão de que é sujeito de

direitos e, portanto, capaz de exigi-los (Cf. CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 21). Portanto,

quanto mais conscientes de seus direitos, maior será a exigência da efetivação dos direitos

fundamentais decorrentes da Constituição, elevando, portanto, o nível de realização do acesso

à justiça por todos os cidadãos e a proteção da dignidade humana.

Ressalte-se que a conscientização jurídica viabiliza, também, a concretização do

acesso à justiça por permitir que os cidadãos, conscientes de suas controvérsias, de seu direito

e do direito de seu oponente, busquem soluções mais céleres e adequadas aos seus conflitos,

evitando, inclusive, a jurisdição estatal, tornando-se possíveis acordos extrajudiciais que se

adequem de forma mais eficaz ao problema, propiciando a paz social de maneira mais célere

que a solução litigiosa e adversarial.

Nesse diapasão, a amplitude das possibilidades de resolução dos conflitos, tanto a

forma litigiosa como a consensual, ou não adversarial, contribuem, igualmente, para a

concretização do acesso à justiça. É nesse esteio que, após a emenda constitucional nº

45/2004, iniciou-se, em 2006, pelo então recém-instituído Conselho Nacional de Justiça

(CNJ) o movimento em prol da Conciliação sob o slogan “Conciliar é legal”12, com o objetivo

12 Notícia disponível em: <www.cnj.jus.br/images/programas/movimento-pela-conciliacao/artigo_01.pdf>. Acesso em 18 fev. 2012.

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de promover a mudança de comportamento no trato do conflito através da cultura da

conciliação, sendo efetivamente implementado com a edição da Resolução de nº 125 do

mesmo CNJ, em 29 de novembro de 2010, estabelecendo a “política judiciária nacional de

tratamento adequado dos conflitos de interesses no âmbito do Poder Judiciário”.

Por fim, pode-se identificar a importância atualmente dada ao tema acesso à justiça

com a atenção dispensada pela Secretaria de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça

que, em 20 de julho de 2012, selecionou seis pesquisas que irão subsidiar a formulação de

políticas públicas e a promoção de reformas normativas voltadas ao aprimoramento do

sistema de Justiça e à universalização do acesso à Justiça13.

Assim, a importância do tema aumenta na medida em que se verifica a inter-relação

do direito de acesso à justiça com outros direitos humanos fundamentais. Na verdade, como já

dito, nenhum direito fundamental poderia ser exigido senão pela coerção jurisdicional

proporcionada pela decisão judicial ou pelo acordo extrajudicial que constitua título

executivo, como o acesso à educação básica e à saúde, direitos sociais fundamentais que

podem ser exigidos individual ou coletivamente por meio do acesso à justiça.

Nesse diapasão, a capacidade de resolução das controvérsias é preponderante para

que se atinja a justiça em todos os seus aspectos, especialmente na promoção da pacificação

social e do bem de todos, em consonância com o processo dinamogênico que possibilita o

aprimoramento da dignidade da pessoa humana. A acessibilidade à justiça, nestes termos,

constitui um direito inerente ao próprio cidadão, que faz dele um instrumento garantidor de

sua própria dignidade ao reconhecer no Estado um ente a quem possa recorrer sempre que

entender necessário à sua segurança. Representa, também, a concretização da dignidade da

pessoa humana ao se estabelecer como mínimo existencial, assim como outros direitos

sociais, como a educação fundamental e a saúde básica, todos exigíveis judicialmente (Cf.

BARCELLOS, 2002, p. 302-303).

Pontuado o direito de acesso à justiça, deve-se verificar outro direito humano

fundamental, o direito ao desenvolvimento, a fim de que seja traçado o paralelo entre o acesso

à justiça e sua implicação no desenvolvimento.

4. O direito ao desenvolvimento como garantia fundamental

13 Disponível em: <portal.mj.gov.br/data/Pages/MJ65097B8FITEMID637D5FCB89C04DD59126300EA5 EDBC82PTBRIE.htm>. Acesso em 21 Jul. 2012.

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A fase de descolonização da década de 1960 define o marco histórico do direito ao

desenvolvimento, especialmente ao verificar-se a devastação sofrida pela Europa durante a 2ª

Guerra Mundial, o processo de bipolarização pós-guerra e a herança de dominação que

assolou os países africanos após a 1ª Guerra Mundial, já em processo de “descolonização” e

independência.

Frise-se que o conflito surgido, e que marcou o período, entre os direitos

econômicos, sociais e culturais (mais acentuados pela influência soviético-socialista) e os

direitos civis e políticos (mais influenciados pelo liberalismo estadunidense) foi resultado de

um “sistema internacional de polaridades definidas” (LAFER, 1999, p. 32). Assim, nesse

contexto, o Terceiro Mundo, concentrado no hemisfério sul do planeta e subjugado pelos

países desenvolvidos do hemisfério norte, desenvolveu suas identidades culturais próprias, e,

por conseguinte, criou a demanda de proteção desses “direitos de identidade coletiva”, como

o direito ao desenvolvimento, cujo conceito foi estreado em 1972, por Keba Mbaye14 ao

apontar as diferenças globais existentes entre o hemisfério norte, desenvolvido, e o hemisfério

sul, subdesenvolvido, estabelecendo o direito destes em buscar sua capacidade de

autodeterminação pelo seu próprio desenvolvimento (Cf. BEDJAQUI, 1991, p. 177).

Antes desse reconhecimento, segundo PEREIRA (1992, p. 29), em 1º de janeiro de

1969, o Cardeal León-Étienne Duval, Cardeal Arcebispo de Argel na época da libertação do

domínio francês, já havia proclamado o direito ao desenvolvimento dos países do Terceiro

Mundo, e, em dezembro do mesmo ano, a Assembleia Geral das Nações Unidas proclamou

solenemente a “Declaração sobre o Progresso e o Desenvolvimento Social”, conforme a

resolução 2542 (XXIV) da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 11 de Dezembro de

1969, estabelecendo em seu artigo 2º que “o progresso e o desenvolvimento social basear-se-

ão no respeito pela dignidade e valor da pessoa humana e assegurarão a promoção dos direitos

humanos e da justiça social”15.

Nesse contexto, em 21 de fevereiro de 1977, a ONU, por meio da Comissão de

Direitos Humanos, tratou específica e explicitamente do direito ao desenvolvimento na

resolução 4 (XXXIII), mesmo documento que solicitou ao secretário-geral um relatório sobre

tal direito, assentado em dezembro do ano seguinte, em que se afirma a existência do direito

humano ao desenvolvimento no direito internacional, estabelecendo-se a relação entre o

14 Chefe de Justiça do Senegal em 1972. 15 Artigo 2º da Declaração sobre progresso e desenvolvimento social, conforme a resolução 2542 (XXIV) da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 11 de dezembro de 1969.

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direito ao desenvolvimento e outros direitos humanos baseados na cooperação internacional

entre os Estados16 .

Em 1979, por meio da resolução 4 (XXXV), a Comissão de Direitos Humanos

reconheceu o dever dos Estados, conjunta e individualmente, em promover as condições

necessárias para a realização e observância do direito ao desenvolvimento, mesma sessão em

que se aprovou a resolução 5 (XXXV), reiterando o direito ao desenvolvimento como um

direito humano, e que a igualdade de oportunidades para o desenvolvimento é uma

prerrogativa das nações e dos indivíduos que as compõem, direito que foi, novamente,

afiançado pela resolução 35/174 da Assembleia Geral da ONU em 15 de dezembro de 1980.

Em 11 de março de 1981, a Comissão de Direitos Humanos da ONU, por meio da

resolução 36 (XXXVII), criou um grupo de trabalho formado por experts governamentais

destinado a produzir um instrumento internacional que institucionalizasse e consolidasse o

direito ao desenvolvimento como um direito humano, que culminou com a aprovação, em 04

de dezembro de 1986, da Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento17.

A Carta Internacional, por sua vez, reconhece a inalienabilidade do direito ao

desenvolvimento (artigo 1º), posto que constitui meio para que se viabilize os demais direitos

humanos e liberdades fundamentais, cujo sujeito central é a pessoa humana, participante ativa

e beneficiária desse direito (artigo 2º, § 2º) que, igualmente, atribui a responsabilidade pela

sua realização a todos os seres humanos, de forma individual e coletiva (artigo 3º, §2º), além

do dever dos Estados em formular políticas adequadas para o desenvolvimento, visando ao

constante aprimoramento do bem-estar de toda a população e de todos os indivíduos, baseado

em sua participação ativa e livre, além da distribuição equitativa dos benefícios resultantes

(artigo 2º, §3º), assegurando igualdade de oportunidade para todos no acesso aos recursos

básicos, educação, serviços de saúde, alimentação, habitação, emprego e distribuição

equitativa de renda. Em suma, define o direito ao desenvolvimento como um direito humano

pelo qual toda pessoa e todos os povos estão habilitados a participar do desenvolvimento

econômico, social, cultural e político da sociedade em que vivem.

Por sua vez, a Declaração e Programa de Ação de Viena, decorrente da Conferência

mundial sobre direitos humanos, realizada de 14 a 25 de junho de 1993, em Viena, Áustria,

reproduz as disposições da Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento, mas salienta que

“o desenvolvimento facilita o gozo de todos os Direitos Humanos, mas a falta de

16 E/CN.4/1334, de 11 de dezembro de 1978, p.39. 17 Resolução 41/128 da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 4 de dezembro de 1986.

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desenvolvimento não pode ser invocada para justificar a limitação de Direitos Humanos

internacionalmente reconhecidos”.

Na mesma toada, a Declaração da Cúpula do Milênio das Nações Unidas, realizada

entre 6 e 8 de setembro do ano 2000, em Nova Iorque, Estados Unidos, adotada por meio da

resolução A/RES/55/2, reconhece o direito ao desenvolvimento como um direito humano

reconhecido internacionalmente e vinculado diretamente ao exercício da democracia18,

afirmando o compromisso dos países signatários em “tornar o direito ao desenvolvimento

uma realidade para cada um”19, estabelecendo, novamente, o dever de cooperação entre as

nações e os indivíduos.

Assim, o panorama internacional influenciou o constituinte brasileiro de 1988 que,

com a promulgação de nossa Constituição Cidadã referenciou o desenvolvimento no próprio

preâmbulo ao estabelecer que o Estado democrático brasileiro está compromissado em

assegurar o desenvolvimento da sociedade. Aliás, a garantia do desenvolvimento nacional

constitui um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, conforme o artigo

3º, inciso III da CF/88. Entretanto, a carta magna não estabelece a forma, nem dá os contornos

do desenvolvimento almejado pelo constituinte, nem os instrumentos que o governante deverá

utilizar para efetivá-lo. Assim, o mandamento constitucional vincula o governante ao

determinar que estabeleça políticas públicas que proporcionem o desenvolvimento nacional,

mas, ao não definir os meios e instrumentos, nem informar o contorno desse direito, torna-o,

em tese, subjetivo, por constituir uma cláusula aberta, carente, inclusive, de definições ou

conceituações que permitam delimitá-lo. Todavia, segundo Ivanilda Figueiredo (2008, p. 30)

poder-se-ia definir o direito ao desenvolvimento “como o direito de todo indivíduo de dispor

de condições materiais e formais para orquestrar sua vida de acordo com suas aptidões e

preferências e de um ambiente que lhe permita buscar com seus próprios meios o incremento

dessas condições”. Ainda, segundo Celso de Mello (2004, p. 894), o direito ao

desenvolvimento:

é definido por Z. Haquani como ‘um conjunto de princípios e regras no fundamento dos quais o homem, enquanto indivíduo ou membro do corpo social (Estado, nação, povo...) poderá obter, na medida do possível, a satisfação das necessidades econômicas, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento de sua personalidade.

18 Resolução A/RES/55/2 (Declaração da Cúpula do Milênio). “24. Não mediremos esforços para promover a democracia e reforçar o cumprimento da lei, assim como o respeito por todos os direitos humanos internacionalmente reconhecidos e liberdades fundamentais, incluindo o direito ao desenvolvimento”. 19 Idem. “11. [...]. Estamos compromissados em tornar o direito ao desenvolvimento uma realidade para cada um, e para a libertação da inteira raça humana da necessidade”.

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Desta forma, encontram-se diversas determinações constitucionais programáticas que

estabelecem diretrizes que, por sua vez, refletem a implementação do direito ao

desenvolvimento, como a impenhorabilidade da pequena propriedade rural de família por

débitos decorrentes de sua atividade produtiva, devendo a lei dispor sobre os meios de

financiar seu desenvolvimento (artigo 5º, inciso XXVI); a proteção de marcas e patentes com

vistas ao desenvolvimento tecnológico e econômico do país (artigo 5º, inciso XXIX); a

competência da União em elaborar e executar planos nacionais e regionais de

desenvolvimento econômico e social (artigo 21, inciso IX), além de instituir diretrizes para o

desenvolvimento urbano voltado à habitação, saneamento básico e transportes urbanos (artigo

21, inciso XX); a determinação de fixação de leis complementares visando ao equilíbrio do

desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional (artigo 23, parágrafo único), bem como

à redução das desigualdades regionais; a possibilidade de se estabelecerem incentivos pela

União com a finalidade de promover o equilíbrio do desenvolvimento socioeconômico entre

as diferentes regiões do país (artigo 151, inciso I); a busca do desenvolvimento nacional

equilibrado incorporado e compatibilizado por planos nacionais e regionais de

desenvolvimento (artigo 174, §1º); o incentivo ao turismo como fator de desenvolvimento

econômico e social (artigo 180); a política de desenvolvimento urbano municipal voltada ao

pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e à garantia do bem-estar dos habitantes

(artigo 182); o desenvolvimento científico e tecnológico na área da saúde (artigo 200, inciso

V); o direito à educação visando ao pleno desenvolvimento da pessoa humana (artigo 205); o

estabelecimento do Plano Nacional de Cultura, visando ao desenvolvimento cultural (artigo

215, §3º); o incentivo ao desenvolvimento científico e à pesquisa (artigo 218); a destinação do

mercado interno à viabilização do desenvolvimento cultural e socioeconômico (artigo 219);

entre outros.

Neste entendimento, o desenvolvimento não deve sofrer limitações qualitativas,

como o desenvolvimento econômico, desenvolvimento social, desenvolvimento político, entre

outros. Nem deve se confundir com crescimento econômico.

O desenvolvimento, como o que a sociedade brasileira está, difusamente, a reclamar, tem de se manifestar, simultaneamente, em todas as dimensões relevantes da vida nacional: política, social, cultural, ambiental, institucional, econômica, financeira, tecnológica, regional, comunitária, administrativa etc. Tem de se espraiar por todo o território: rural, urbano e metropolitano. Tem de articular direcionadamente todos os Poderes da República [...]. Tem de envolver virtuosa e integradamente todas as instâncias federativas [...] (IPEA, 2007, p. 8-9).

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Outrossim, o desenvolvimento de uma nação deve ser tarefa de toda a sociedade,

pois se trata da construção do futuro em obediência às vontades expressas democraticamente

pela “maioria dos atores sociais integrantes da nacionalidade”. Manifesta-se, pois, em

“múltiplas dimensões”, demandando, consequentemente, múltiplos recursos com afinada

coesão social, exigindo, portanto, coordenação convergente e sinérgica dos meios

potencializadores dessas novas qualidades de desenvolvimento almejadas (Cf. IPEA, 2007, p.

8).

Não obstante os já mencionados dispositivos constitucionais que fazem referência,

direta ou indiretamente, ao direito ao desenvolvimento, deve-se relembrar que o que foi

intencionado pelo constituinte originário de 1988 foi constituir um Estado democrático de

direito com valores supremos direcionados ao desenvolvimento e à justiça, de uma sociedade

fraterna e pluralista fundada na solução pacífica das controvérsias.

Diante de tudo isso, pode-se analisar o direito ao desenvolvimento como o meio pelo

qual se viabilizam os demais direitos humanos fundamentais, da mesma forma que todos os

direitos humanos fundamentais, de algum modo, propiciam o desenvolvimento da pessoa

humana, constituindo o desenvolvimento, portanto, uma finalidade.

Sob outro aspecto, pode-se analisar o direito ao desenvolvimento como sendo o

direito a solucionar os conflitos de forma pacífica, conforme o insculpido no preâmbulo da

Constituição brasileira, posto que, como visto, o conflito consiste em instrumento de

desenvolvimento, como forma de aprimoramento da sociedade.

5. Acesso à justiça e desenvolvimento sob a ótica da dignidade humana

Como visto, acesso à justiça pode ser entendido sob vários enfoques, necessários à

compreensão desse direito de grande amplitude. Não significa, isoladamente, acesso ao

judiciário, mas, em termos concretos e amplos, o acesso a uma ordem jurídica justa, que deve

ser gerada pela promoção das capacidades postulatórias dos cidadãos, independentemente de

suas capacidades financeiras, precedidas do acesso ao conhecimento do que é o direito, e de

quais são os seus deveres, complementado por mecanismos de proteção dos direitos difusos e

coletivos – neste ponto deve-se frisar a necessidade de proteção do meio ambiente como

forma de se garantir o desenvolvimento sustentável e, igualmente o acesso à ordem jurídica

justa, mesmo viés observado ao analisar-se a necessidade de proteção do direito dos

consumidores e, por fim, o enfoque da solução das controvérsias como forma de pacificação

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social, fim almejado utilizando-se qualquer meio legal utilizado, especialmente os

consensuais, por proporcionarem a solução pacífica das controvérsias.

Desta forma, a obediência ao direito de acesso à justiça, ou à ordem jurídica justa,

implica, obrigatoriamente, no aprimoramento da sociedade, ao viabilizar a solução dos

conflitos e a consequente pacificação social, gerando, por sua vez, o desenvolvimento

pretendido pelo constituinte originário de 1988.

Sob outro prisma, pode-se afirmar que a capacidade de postular e pleitear em juízo

um direito humano fundamental constitui um direito inerente à dignidade da pessoa humana,

posto que, para se atingir a dignidade, deve-se tornar possível proteger os direitos inerentes a

ela. Assim, ao adquirir-se a capacidade de proteção e tutela de direitos humanos, viabiliza-se

a própria dignidade humana e, consequentemente, o desenvolvimento integral do indivíduo

enquanto ser humano sujeito de dignidade.

Tanto é assim que, conforme já visto, o direito ao desenvolvimento pode, ao mesmo

tempo, constituir um meio de promoção de outros direitos, como, também, um direito

finalístico proporcionado por aqueles mesmos direitos. Nesse contexto, a obediência e

respeito ao direito de propriedade e sua função social, ao direito à educação, entre outros,

conduzem ao desenvolvimento, ao mesmo tempo em que a obediência ao direito ao

desenvolvimento implica na implementação da propriedade, da moradia e da educação.

Sob esse viés, cumpre-se estabelecer a relação existente entre o direito de acesso à

ordem jurídica justa e o direito ao desenvolvimento. Pois bem, estabelecer a relação entre

esses direitos significa, ao mesmo tempo, identificar a precedência entre eles, reconhecer qual

desses direitos possui maior ligação com o direito natural, posto que este encontra-se

imiscuído com a própria natureza humana. Com isso, o acesso à ordem jurídica justa passou a

constituir um direito condicionado à existência de um Estado de direito, inerente à pessoa

humana, mas submetido à formação de um Estado, consequência do pacto social entre os

integrantes de determinada sociedade.

Diante disso, pode-se inferir que o direito ao desenvolvimento precede o direito de

acesso à ordem jurídica justa e, consequentemente torna-se o instrumento meio que a

viabiliza. Entretanto, deve-se considerar, igualmente, que o respeito ao direito de acesso à

justiça, constitui, também, meio para se atingir um fim maior, o desenvolvimento.

É nesse esteio que estão inseridos o direito ao acesso à justiça e o direito ao

desenvolvimento propugnados pelo constituinte de 1988, ambos reconhecidos como direitos

humanos fundamentais. O primeiro porque a titularidade de direitos esvaziada de mecanismos

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para sua efetiva reivindicação é destituída de sentido (Cf. CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p.

7); o segundo, o direito ao desenvolvimento, porque nele se traduzem os próprios objetivos do

Estado que, em primeiro plano, representam a efetivação dos demais direitos, especialmente

os direitos de igualdade (econômicos, sociais e culturais) e de solidariedade (pela realização

efetiva da dignidade da pessoa humana).

Ademais, a dignidade da pessoa humana20, um dos fundamentos do Estado

democrático de direito brasileiro, deve ser alcançada e repensada a cada “manifesto de

exigências e reclamos de cada momento histórico”, renascendo de forma dinâmica sob tal

enfoque, processo que SILVEIRA e ROCASOLANO (2010, p. 175) classificaram

“dinamogenesis”, levando à observação, pelas lentes da mesma dignidade humana, dos

anseios e reclamos da sociedade atual.

Assim, percebe-se que, como bem salienta TAVARES (2006, p. 313), a dignidade

humana perpassa todas as dimensões dos direitos fundamentais (como os direitos ao acesso à

justiça e ao desenvolvimento), de tal forma que seria o substratum básico de todo e qualquer

direito fundamental. Ou, como ainda bem expõem SILVEIRA e ROCASOLANO (2010, p.

189), “o princípio do respeito pela dignidade da pessoa humana é expressão jurídica dos

valores representados pelos direitos humanos, manifestos no interesse de proteção dessa

dignidade em seu sentido político, social, econômico e cultural”. Desta forma, pode-se

depreender que ao se assegurar os direitos fundamentais das mais diversas dimensões, como

direito o acesso à justiça e o direito ao desenvolvimento, consequentemente, estar-se-á

assegurando o princípio basilar e fundamental da dignidade humana.

6. Considerações Finais

A partir da compreensão dos direitos humanos sob um valor maior, a dignidade da

pessoa humana, verdadeiro princípio norteador dos demais direitos, identificou-se o Estado

brasileiro constituído em um Estado democrático de direito, fundado em valores supremos,

como a justiça e o desenvolvimento, fundamentos de uma sociedade fraterna e pluralista,

comprometida com a solução pacífica das controvérsias.

Com isso, verificou-se que a solução dos conflitos possui intrínseca relação com o

desenvolvimento individual e social, além de constituir instrumento de pacificação social. De

outro lado, pôde-se observar que a solução das controvérsias constitui direito fundamental

20 CF/88, Art.1º, inciso III.

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inerente à pessoa humana, e só pode ser proporcionado ao se garantir o acesso à justiça, que,

em termos mais próprios, significa o acesso à ordem jurídica justa.

Assim, acesso à justiça e desenvolvimento se inter-relacionam, constituindo,

entretanto, o direito ao desenvolvimento o direito humano que precede o direito de acesso à

justiça, por estar mais ligado ao direito da pessoa em buscar seu desenvolvimento integral, o

que se reflete no direito de desenvolvimento da própria sociedade como um todo.

Portanto, a solução dos conflitos está condicionada ao acesso à justiça por todas as

pessoas, de forma igualitária, e gera o desenvolvimento individual e social. Por outro lado,

apesar do direito ao desenvolvimento constituir uma finalidade, relacionada diretamente à

dignidade da pessoa humana, constitui, também, meio, posto que uma vez atendido, viabiliza

os demais direitos humanos decorrentes, entre eles o direito de acesso à justiça, reafirmando a

tautologia correspondente aos direitos humanos internacionais e fundamentais, buscando um

objetivo comum de construir uma sociedade livre e solidária, reduzindo as desigualdades

sociais e regionais e a promovendo o bem de todos, sem preconceitos ou discriminações.

Referências bibliográficas

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PRINCÍPIOS DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, DA FRATERNIDADE E DA IGUALDADE: SUAS CORRELAÇÕES E ATUAÇÃO NOS FUNDAMENTOS DOS

DIREITOS FUNDAMENTAIS1

PRINCIPLES OF DIGNITY OF THE HUMAN PERSON, FRATERNITY AND EQUALITY: THEIR CORRELATIONS AND PERFORMANCE IN THE

FUNDAMENTAL RIGHTS

Rodrigo Espiúca dos Anjos Siqueira*

Daniela Menengoti Ribeiro∗∗ RESUMO Este trabalho utiliza o método da pesquisa bibliográfica e recorre à doutrina constitucionalista pátria contemporânea com o objetivo de analisar brevemente os princípios da dignidade da pessoa humana, da fraternidade e da igualdade: suas correlações e atuação nos fundamentos dos direitos fundamentais. Para tanto, percorre a construção histórica do conceito de dignidade da pessoa humana, encontrando os pontos de interseção entre dignidade, liberdade e igualdade, e, de forma sintética até chegar à concepção contemporânea de dignidade como fundamento dos direitos humanos. Discorre ainda sobre o conceito de mínimo existencial e sua relação com da dignidade humana. O problema é aqui tratado sob a ótica do Direito contemporâneo, em especial na sua acepção constitucional, demonstrando que se a dignidade da pessoa humana é o fundamento da eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre Estado e particulares, também o deve ser nas relações entre particulares ou em sua eficácia horizontal. PALAVRAS-CHAVES: Direitos fundamentais; Eficácia horizontal; Dignidade humana.

ABSTRACT This work utilizes the bibliographical research method and refers to the Brazilian Contemporary Constitutional Law doctrine with the scope of a brief analysis of the principles of liberty, equality and human dignity, their relations and function as foundation for the horizontal efficacy of the fundamental rights. For that reason utilizes the historical construction of the human person dignity concept, finding the intersection points with dignity, freedom and equality, until meet the contemporary conception of dignity as the foundation for the human rights. This research also discusses the concept of the minimal existential and its relations with the human dignity. The problem is treated here under the view of Contemporary Law, especially under the Constitutional 1 Este trabalho é resultado dos estudos realizados no âmbito do Grupo de Pesquisa Direitos Fundamentais Sociais do Programa de Mestrado em Direito da UNOESC. * Mestrando do Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade do Oeste de Santa Catarina (UNOESC). Possui graduação em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco e em Teologia pelo Seminário Anglicano de Estudos Teológicos de Recife-PE. É especialista em Capelania Marítima e Defesa dos Direitos do Marinheiro Mercante, pelo Center for Seafarer´s Rights, em Nova Iorque, EUA. É especialista em Direitos Humanos pela Universidade Católica de Brasília e em Advocacia Pública, pela Universidade Luterana do Brasil. Atualmente é procurador e pesquisador institicional da Faculdade Anglicana de Erechim. ∗∗ Doutora em Direito-Relações Econômicas Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) com período de pesquisa (doutorado sanduíche) na Université Paris 1 - Panthéon-Sorbonne. Mestre em Direito-Relações Internacionais, pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora e pesquisadora do Programa de Pesquisa, Extensão e Pós-graduação em Direito da Universidade do Oeste de Santa Catarina (UNOESC).

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Law understanding, showing that if the human person dignity is considered to be the foundation of the human rights vertical efficacy in the relations between the State and individuals, it should also be seen as foundation for the horizontal efficacy in the relations among individuals.

KEY-WORDS: Human Rights; Horizontal efficacy; Human dignity. 1) A CORRELAÇÃO ENTRE OS MOVIMENTOS HISTÓRICO-FILOSÓFICOS COM A

EVOLUÇÃO/REGRESSÃO DOS DIREITOS HUMANOS

Para a construção da concepção contemporânea de Direitos Humanos, concorrem uma

série de movimentos históricos e filosóficos com os seus respectivos documentos formais de

constituição e dispositivos legais. Em especial cito: o processo de mudança de poder na França,

nos últimos anos do século XVIII; a ocorrência da Independência dos Estados Unidos da

América, também no final do século XVIII; o movimento para abolição da escravidão, do Século

XIX; o surgimento do Socialismo; as duas grandes guerras mundiais do Século XX; e, por fim, o

Capitalismo moderno.

Na esteira da Revolução Francesa do Século XVIII, e de sua Declaração dos Direitos do

Homem e do Cidadão, de 1789, e que ainda integra o direito positivo francês, ao lado da

Constituição Francesa, vieram os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, consagrados como

princípios basilares da concepção de Direitos Humanos contemporânea, conforme se pode

observar da leitura do artigo primeiro da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU,

de 10 de dezembro de 1948: “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e em

direitos. São dotadas de razão e de consciência e devem agir em relação umas às outras com

espírito de fraternidade” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1948)

Note-se que o processo de conquista dos direitos humanos se deu através de uma sucessão

de movimentos histórico-filosóficos, conforme se vê na pesquisa efetuada por Alexandre Hugo

Sampaio Netto (2011):

Embora o nascedouro dos direitos humanos fora oficialmente promulgado na Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948, sobretudo em função das atrocidades ocorridas na 2ª guerra mundial, a sua procedência é uma decorrência de vários fatores históricos cujas idéias de um direito inalienável e pertencente à condição do ser humano deve-se a poetas, religiosos, filósofos e políticos da antiguidade. Por conseguinte, a concepção dos direitos humanos não se deve a nenhum sistema moral ou ético específico, mas sim a uma confluência de ideologias fundamentadas nas

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revoluções sociais, industriais, científicas e até mesmo militares. (SAMPAIO NETTO, 2011, s/p)

A luta e o consequente estabelecimento da independência dos Estados Unidos da

América, embasada na Declaração de Direitos de Virgínia, de 1771, e, posteriormente, na

Declaração de Independência, de 1776, aventam os princípios cristalizados na Revolução

Francesa. Estes princípios demonstram a crescente insatisfação da burguesia com o Estado

Feudal, consolidando a luta por liberdade e desvinculação do poder da Igreja sobre o Estado,

fomentando a nova concepção de Estado Liberal e os Direitos de Liberdade.

Estes ideais eram embasados no jusnaturalismo moderno de Thomas Hobbes, que

propugnava as bases para os direitos liberais, de especial interesse da burguesia da época, que são

os direitos à liberdade, à propriedade e à segurança, também conhecidos por Direitos de

Liberdade Negativa, pois pregavam a não intervenção estatal na esfera dos direitos individuais.

(CARBONARI, 2008)

O movimento pela abolição da escravidão no continente americano, no século XIX,

incrementa as ideias de igualdade entre todos os homens, sem distinção de cor da pele ou origem

étnica. Embora tenha sido fortemente combatido nas nações onde a mão de obra escrava era a

base da economia de produção rural, este movimento de libertação, eventualmente, conseguiu

impor seus objetivos e consagrou seus ideais libertários e igualitários, plantando a semente dos

direitos à igualdade racial e prevenção ao racismo, hoje consolidados na Convenção sobre a

Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, adotada pela ONU em 21 de dezembro

de 1965.

Também influenciou fortemente os Direitos Humanos, o surgimento e o crescimento

rápido das doutrinas propaladas pelo Socialismo na Rússia, em meados do Século XIX, como

contraponto aos ideais Capitalistas que deram causa à desigualdade econômica crescente e aos

grandes índices de desemprego, gerando uma crise e marginalização econômica de muitos. O

socialismo traz, em seu bojo teórico, idéias de igualdade, que impulsionaram a reflexão para além

dos Direitos de Liberdade, ampliando o conceito de igualdade perante a lei para incluir também

os Direitos Sociais, tais como o direito ao trabalho, à educação, à segurança social e à saúde.

(GIANNATTASIO, 2009; TOSI, 2011; TRINDADE, 2011)

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Os eventos catastróficos da Primeira e Segunda Grandes Guerras, em especial em seus

períodos pós-conflito, deram impulso à elaboração de cartas de direitos em âmbito internacional,

com a criação de tratados e normas internacionais sobre prisioneiros de guerra, armas cruéis,

tratamento de feridos e de civis, dando início ao surgimento das regras internacionais de Direito

Humanitário. O período Pós-Segunda Grande Guerra, também embalado pelos ideais do

Socialismo, e motivado por vários movimentos populares e de operários, gerou a inclusão dos

Direitos Sociais nas Constituições Nacionais criando o conhecido Estado do Bem-Estar Social, o

welfare state. (TOSI, 2011; TRINDADE, 2011)

A Declaração Universal de 1948 deu forma à concepção atual de Direitos Humanos, que

foi consagrada em 1993, na Convenção de Viena, conforme se verifica em seu artigo 5º que

declara: “Todos os direitos humanos são universais, indivisíveis, interdependentes e inter-

relacionados.” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1993, s/p)

Percebo ainda, no âmbito da evolução histórico-filosófica dos Direitos Humanos, a forte

influência do cristianismo social. Esta corrente de pensamento, através da interpretação de

trechos do Novo Testamento, e, embora seja considerada como uma das fontes do conceito

contemporâneo de Direitos Humanos enfrentou, na própria instituição que lhe deu nascimento,

uma forte oposição à sua aplicação prática. Os conceitos de igualdade e liberdade de pensamento,

no seio da Igreja Católica Apostólica Romana, foram muito rechaçados como imorais e

perigosos, e, só começaram a ser aceitos com o advento da Encíclica Papal “Rerum Novarum”,

editada pelo Papa Leão XIII em 1894. Daí por diante, os conceitos de direitos humanos foram,

gradativamente, sendo aceitos e implementados no seio da Igreja, culminando, nas palavras do

professor Giusepe Tosi (2011), com o “Concilio Vaticano II, a modificar profundamente sua

posição de inicial condenação dos direitos humanos. Mais recentemente o papa João Paulo II, na

sua Encíclica Redemptor Hominis, reconhece o papel das Nações Unidas na defesa dos ‘objetivos

e invioláveis direitos do homem.’ ” (TOSI, 2011, s/p)

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2) OS PROCESSOS HISTÓRICO-CULTURAIS QUE MARCARAM A CONSTRUÇÃO

NO SENSO COMUM DA REPRESENTAÇÃO SOCIAL DOS DIREITOS HUMANOS NO

BRASIL

O surgimento de um sistema social no Brasil se deu entre 1930 e 1945, com a mudança da

economia agrícola-rural para a industrial-urbana, fomentando a intervenção estatal para garantia

dos direitos à saúde, educação, previdência social, trabalho, segurança, habitação e etc. De notar-

se que neste processo de construção dos Direitos Humanos no Brasil, os direitos sociais tiveram

sua inclusão no direito positivo antes mesmo do que as garantias dos direitos civis e políticos,

ratificando a forte influência de dois movimentos sócio-culturais, a escravidão e o colonialismo.

(UNIVERSIDADE CATÓLICA DE BRASÍLIA, 2007)

A partir de 1946, com a promulgação da Constituição de 46, bem como através da criação

do parque industrial brasileiro e o grande incentivo à industrialização nacional, ganharam força

os movimentos de base, em especial os sindicais e estudantis. Entretanto, nos anos de 1970 e

1980, com a instalação da ditadura militar, mais uma vez perdem força os direitos civis e

políticos, e ganham evidência os direitos sociais como compensação pela perda das liberdades

civis e políticas e excessivo controle de idéias por parte do Estado. (GIANNATTASIO, 2009;

CARBONARI, 2008)

No final da década de 1980, com o fim do regime militar e a redemocratização do país,

voltam à evidência os direitos políticos e civis. Esses direitos têm especial destaque com a

promulgação da Constituição de 1988. Vários outros direitos sociais são fortalecidos a partir daí,

por exemplo, a seguridade social, a saúde (com a criação do Sistema Único de Saúde) e a

assistência social (com o advento da Lei Orgânica de Assistência Social).

Aliado a tudo isso vemos, como fortes influências na formação da matriz conceitual

brasileira dos Direitos Humanos, o coronelismo, o clientelismo e o mandonismo, que deixaram

herança de acomodação popular e de uma cultura de barganha política, onde poucos detêm o

poder político, através do poder financeiro, obtendo apoio mediante negociatas e compra de

votos, conforme ensina Carvalho. (1997 apud UNIVERSIDADE CATÓLICA DE BRASÍLIA,

2007)

Neste contexto, e na busca da efetivação dos direitos humanos, tem-se a necessidade de

estudar e divulgar amplamente os direitos e deveres inerentes a todos os cidadãos, em especial, os

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direitos fundamentais, uma vez que estes são os mais caros e necessários a todos em virtude de

sua essencialidade na garantia da dignidade humana, sendo esta mesma considerada como

fundamento daqueles.

3) A EFICÁCIA VERTICAL DAS NORMAS DE DIREITOS FUNDAMENTAIS

Nas relações entre o Estado e os particulares, têm-se os direitos fundamentais como

basilares na defesa do indivíduo contra arbitrariedades do poder público. Sem a devida garantia

destes direitos fundamentais, o indivíduo encontra-se totalmente vulnerável e passível de sofrer

com abusos de poder, estando à mercê da violência estatal, passível de abandono social e

padecendo da falta dos recursos básicos imprescindíveis a uma vida digna. Entretanto, esta

eficácia não é algo fácil de atingir, há muitas variáveis que devem ser consideradas, a exemplo da

vontade política dos governantes e a ausência de órgãos competentes para garantir a sua

concretização.

Como resultado da construção histórica dos direitos humanos, surge a Declaração

Universal dos Direitos Humanos, aprovada em 10 de dezembro de 1948, pela Assembléia Geral

das Nações Unidas, sem, contudo, meios práticos de forçar a concretização dos direitos nela

contidos. Como se depreende das lições do jurista Dalmo de Abreu Dallari (2011):

O grande problema, ainda não resolvido, é a consecução de eficácia das normas de Declaração de Direitos. Proclamadas como normas jurídicas, anteriores aos Estados, elas devem ser aplicadas independentemente de sua inclusão nos direitos dos Estados pela formalização legislativa. Entretanto, inexistindo um órgão que possa impor sua efetiva aplicação ou impor sanções em caso de inobservância, muitas vezes os próprios Estados que subscreveram a Declaração agem contra as suas normas, sem que nada possa ser feito. (DALLARI, 2011, p. 211)

Ainda na esteira de Dallari (2011), tem-se lição de que os Estados, na tentativa de

concretizar os direitos proclamados na Declaração Universal dos Direitos Humanos,

gradativamente adotam a praxe de incluir em suas constituições capítulo referente aos direitos e

garantias fundamentais. O Brasil adotou esta prática e, em sua Constituição Federal promulgada

em 1988, positivou os direitos e garantias fundamentais, valendo a esta Carta Magna a alcunha de

“Constituição Cidadã” (DALLARI, 2011, p. 211).

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Diante da dificuldade em garantir a eficácia das normas de direitos fundamentais,

devidamente consagradas em Declarações de Direito e nas constituições dos Estados, faz-se

necessário um breve exame da significação dada ao vocábulo eficácia em nossa doutrina pátria.

Conforme o professor e magistrado Ingo Wolfgang Sarlet (2011), o termo eficácia engloba uma

“múltipla gama de aspectos passíveis de problematização e análise, ainda que esta se restrinja ao

direito constitucional, constituindo, além disso, ponto nevrálgico para o estudo da Constituição.”

(SARLET, 2011, p. 235)

Diz a Constituição Federal brasileira, em seu artigo 5º. § 1º. que: “As normas definidoras

dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.” (BRASIL, 1988) É este o

princípio normativo que deve ser profundamente analisado na busca do significado da eficácia

dos direitos fundamentais, uma vez que é a principal arma concedida aos defensores dos direitos

fundamentais.

No estudo do significado de eficácia, encontrei certa semelhança entre eficácia e vigência.

Neste sentido, urge diferenciar os dois conceitos, eficácia e vigência, para obter os resultados a

que se propõe este ensaio. Mais uma vez, encontrei nas lições do professor Ingo Sarlet a resposta

para o questionamento feito. Neste sentido, Sarlet (2011) dá magistral lição demonstrando que na

doutrina pátria, há uma distinção entre os conceitos de vigência e eficácia, afirmando que:

[...] a vigência consiste na qualidade da norma que a faz existir juridicamente (após regular promulgação e publicação), tornando-a de observância obrigatória, de tal sorte que a vigência constitui verdadeiro pressuposto da eficácia, na medida em que apenas a norma vigente pode vir a ser eficaz. (SARLET, 2011, p.236)

Partindo do pressuposto que as normas referentes aos direitos fundamentais têm a sua

vigência inconteste no território brasileiro, uma vez que se encontram devidamente insculpidas

no corpo da Carta Magna em vigor, passo a analisar a sua eficácia propriamente dita, o que é o

escopo deste trabalho.

A doutrina constitucional contemporânea, conforme Ingo Wolfgang Sarlet (2011), Dirley

da Cunha Júnior (2011), Virgílio Afonso da Silva (2011) e José Afonso da Silva (2000), faz

distinção entre as normas de eficácia plena, como aquelas que consagram direitos políticos e

liberdades públicas, e as normas de eficácia limitada, aquelas que consagram direitos sociais. Isso

se comprova pela maneira como se perfaz a sua efetividade. Nas normas de eficácia plena não é

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necessário, para a sua efetivação, nada além da abstenção do Estado e do legislador ordinário.

Uma vez promulgada a norma, imediatamente se produzem os efeitos desejados sem que seja

necessária qualquer intervenção do Estado, à exceção, obviamente, dos casos de violação destas

normas quando se fará necessária intervenção estatal para a sua garantia. Já no caso das normas

de eficácia limitada, é imprescindível a intervenção do Estado para a sua efetividade, uma vez

que, por se tratarem de direitos sociais, a sua realização depende de uma ação estatal, sem a qual

a eficácia da norma não se produzirá por completo. Desta forma, e na lição de Virgílio Afonso da

Silva (2011):

[...] de eficácia plena seriam as normas que, desde a promulgação da constituição já reúnem todos os elementos necessários para a produção de todos os efeitos desejados. De eficácia limitada, ao contrário, seriam aquelas normas que dependem de alguma regulamentação posterior que lhes complete a eficácia. (AFONSO DA SILVA, 2011, p. 254)

Uma vez estabelecido que eficácia seja a capacidade de produzir efeitos jurídicos e

fáticos, e que vigência é pressuposto para esta mesma eficácia e significa a existência jurídica da

norma, tem-se posta a importância de determinar quais os fundamentos da eficácia vertical que

diz respeito à efetivação dos direitos fundamentais nas relações entre Estado e particulares. Na

esteira das lições da professora Adriana Zawada Melo (2012), é: “na garantia que os Estados

contemporâneos buscam ofertar, a cada indivíduo, de levar a sua vida de acordo com a dignidade

humana, que os direitos humanos fundamentais encontram sua explicação e sua inspiração.”

(MELO, 2012, p. 16)

Destarte, a dignidade da pessoa humana, é, de fato, a fundamentação última dos direitos e

garantias fundamentais nas relações entre Estado e particulares.

4) A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Uma vez sedimentada a questão da eficácia vertical das normas de direitos fundamentais e

a colocação da dignidade da pessoa humana como fundamento da eficácia vertical dos direitos

fundamentais, perfaz-se necessário olhar para um fenômeno recente da doutrina dos direitos

fundamentais, a saber, a constitucionalização do direito.

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O cenário internacional pós-Segunda Guerra Mundial, trouxe uma série de inovações no

ramo do Direito Internacional, em especial no tocante à edição de Tratados e Convenções

Internacionais relativos ao tema dos direitos e garantias fundamentais. O tema vem ganhando

cada vez mais relevo nos ordenamentos jurídicos ocidentais ao ponto de várias constituições

terem incluído em seus textos um capítulo exclusivo para regular direitos e garantias

fundamentais.

Dentre as várias consequências sócio-políticas deste cenário estão as diversas inovações

no Direito Constitucional, em especial a teoria de que há intenso diálogo e irradiação das normas,

valores e princípios constitucionais no Direito Privado, fenômeno que se convencionou chamar

de constitucionalização do direito.

Essa constitucionalização do direito dá novos contornos às relações entre os instrumentos

normativos constitucionais e os demais diplomas legais infraconstitucionais, ao ponto de se

afirmar que a Constituição irradia seus valores e postulados de forma a alterar postulados antes

considerados sedimentados, tais como a autonomia privada, tão cara aos estudiosos do Direito

Civil. Esta irradiação gera, então, vários conflitos, entre os ramos do Direito Constitucional e do

Direito Privado, especificamente no tocante à eficácia dos direitos fundamentais.

Vemos, na lição de Riva Sobrado de Freitas e Alexandre Shimizu Clemente, a implicação

deste novo entendimento sobre a influência do Direito Constitucional no Direito Privado:

Sob esta nova perspectiva e paralelamente à sua difusão, notamos a superação da ideia de que os Direitos Fundamentais somente se prestariam à tutela dos cidadãos em face do Estado, pois eles, como valores essenciais do pacto social firmado, passam a ser compreendidos como “postulados sociais”, os quais exprimem uma ordem de valores, que se presta a ser fonte de inspiração, impulso e diretriz para a vinculação tanto do processo legislativo quanto dos atos da administração pública e também de toda a jurisdição. (FREITAS; CLEMENTE, 2010, p. 69-70)

Neste trabalho, entende-se a constitucionalização do direito em seu sentido mais amplo.

Poder-se-ia dizer que esta expressão deveria ser entendida como um fenômeno onde o

ordenamento jurídico de um determinado país vigorasse sob uma Constituição dotada de

supremacia, entretanto esta definição é inespecífica e não contempla todos os sentidos afetos a

este novel fenômeno.

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O que se quer demonstrar com a afirmação de uma constitucionalização do direito é o fato

de que há um forte reflexo do “efeito expansivo que as normas constitucionais adquiriram nos

últimos 50 anos. Tal difusão centra-se no conteúdo material e axiológico das regras

constitucionais, que se reflete com intensa força normativa por todo o sistema jurídico.”

(FREITAS; CLEMENTE, 2010, p. 71)

Assim, percebe-se uma grande impregnação do ordenamento jurídico pelas normas

constitucionais, ampliando a irradiação do texto constitucional a todas as esferas e ramos do

direito moderno. Este efeito é particularmente perceptível nos ordenamentos dos países

ocidentais, ganhando força no período pós-guerra com a proclamação das declarações de direitos

fundamentais e o movimento pela proteção e promoção da dignidade da pessoa humana.

Um efeito importante da constitucionalização do direito, particularmente para o

desenvolvimento deste trabalho, é a vinculação das relações intersubjetivas aos direitos

fundamentais. Isso se deve à superação da visão liberal, para a qual os direitos humanos

fundamentais só produzem efeitos nas relações onde o Estado é uma das partes e o cidadão está

na outra ponta. Essa nova visão é relevante, especialmente na ótica apresentada por Freitas e

Clemente, na lição abaixo descrita:

Percebe-se, finalmente, a superação da visão liberal, pela qual os Direitos Fundamentais apenas deveriam produzir efeitos na relação entre Estado e os cidadãos. Essa limitada concepção, acompanhando o fenômeno da constitucionalização, reconheceu que na hodierna sociedade nem sempre é o Estado o maior corruptor dos Direitos Fundamentais, pois, este posto, muitas vezes, é ocupado por particulares, principalmente aqueles dotados de algum poder social ou econômico. (FREITAS; CLEMENTE, 2010, p. 75)

Portanto, imperioso concluir que a constitucionalização do direito culmina por trazer

novas formas de aplicação dos direitos fundamentais nas relações intersubjetivas, indo além da

proteção do cidadão perante o Estado, permitindo aos particulares evocarem tais direitos para sua

proteção em suas relações com o Estado e com os demais cidadãos.

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4.1) TEORIAS DA APLICABILIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS ÀS RELAÇÕES

PRIVADAS

A aceitação da vinculação das relações particulares aos direitos fundamentais é o primeiro

passo enfrentado pelos doutrinadores, que, a partir daí, passam então, à tarefa de desenvolver

teorias e propor modelos para a aplicação dos Direitos Fundamentais nas relações intersubjetivas.

Elenco a seguir as três teorias mais relevantes sobre os efeitos dos Direitos Fundamentais

nas relações entre particulares: Teoria da aplicabilidade direta ou eficácia imediata; Teoria da

aplicabilidade indireta ou eficácia mediata, e; Teoria da não aplicabilidade ou State Action.

4.1.1) Teoria da aplicabilidade direta ou eficácia imediata

Esta teoria é a mais aceita dentre os doutrinadores brasileiros, e tem sido entendida, até

mesmo pelo Supremo Tribunal Federal como mais adequada ao nosso ordenamento jurídico

nacional. Conforme observamos nas palavras de Freitas e Clemente:

Apresentada esta Teoria que, conforme afirmado alhures, é a que certamente encontra mais adeptos na doutrina brasileira, parece oportuno citar as principais teses desenvolvidas entre nós, as quais consideram o ordenamento jurídico nacional (imbuído em um paradigma constitucional social-democrático), o que impõe, de certa maneira, um modelo exclusivo que visa atender às demandas particularizadas de nossa sociedade. (FREITAS; CLEMENTE, 2010, p. 84)

A Teoria da aplicabilidade direta ou eficácia imediata tem sua origem na Alemanha e foi

inicialmente desenvolvida por Hans Carl Nipperdey, em meados dos anos 50, e busca defender

que há vinculação direta dos Direitos Fundamentais em ambos os aspectos das relações sociais,

seja entre indivíduos e o Estado, seja em conflitos entre particulares.

Na aplicação direta dos Direitos Fundamentais, os particulares em conflito podem evocar

tais direitos sem que haja necessidade de encontrar quaisquer “pontes” ou “portas de entrada”

originadas no Direito Privado, uma vez que para esta Teoria os Direitos Fundamentais são

considerados como direitos subjetivos dos particulares no desenvolvimento de suas relações. Isso

quer dizer afirmar a possibilidade concreta de os indivíduos fazerem valer os Direitos

Fundamentais contra outros particulares.

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Freitas e Clemente lecionam no sentido de a Teoria da Aplicabilidade Direta exigir a

ponderação de direitos quando da sua utilização em um caso concreto, conforme se verifica

abaixo:

Cumpre destacar, ainda, que os adeptos desta teoria não ignoram a existência de especificidades na sua aplicação e, portanto, diante de um caso concreto, reconhecem a necessidade de ponderação entre o direito fundamental e a autonomia privada dos indivíduos envolvidos na relação. (FREITAS; CLEMENTE, 2010, p. 82)

Assim, aplicar esta teoria ao caso concreto tornará necessária a utilização da ponderação

de direitos, que, em outras palavras que dizer que deverá ser aplicado à situação fática o

sopesamento entre os direitos em conflito. Isto equivale dizer que quanto maior for a limitação a

um direito, maior deverá ser a importância da concretização do outro direito em oposição àquele

limitado.

Ao decidir uma lide, deverá o julgador atribuir valor e importância de satisfação aos

direitos discutidos e julgar qual deles é mais relevante para a sociedade, atribuindo a este maior

importância de realização e concretização em detrimento do outro direito que terá sua efetividade

limitada.

Desta forma, para esta Teoria, os Direitos Fundamentais podem ser aplicados diretamente

nas relações intersubjetivas, utilizando-se do sopesamento de direitos quando houver conflitos

entre estes, da mesma forma que o são nas relações entre o Estado e o indivíduo.

4.1.2) Teoria da aplicabilidade indireta ou eficácia mediata

Esta teoria sobre os efeitos dos Direitos Fundamentais nas relações intersubjetivas é uma

construção intermediária entre a teoria que nega a vinculação, também chamada de State Action,

e aquela que afirma a eficácia direta e imediata, tratada no tópico acima.

Tem seu surgimento na Alemanha, tendo como precursor Günter Dürig, sendo hoje

adotada, predominantemente naquele país, especialmente pelo Tribunal Constitucional Alemão.

Tem como escopo a busca pelo equilíbrio entre a Autonomia Privada, por um lado, e os

Direitos Fundamentais, por outro. Isso se deve a esta teoria reconhecer um direito geral de

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liberdade, como resposta à tentativa de evitar uma dominação do Direito Privado pelo Direito

Constitucional.

Nas palavras de Freitas e Clemente:

Neste diapasão, os Direitos Fundamentais representariam uma ordem objetiva de valores, ou, ainda, um sistema de valores, fazendo com que seus efeitos irradiadores sejam sentidos em todos os ramos do ordenamento jurídico. No Direito Privado, esses valores (ou seja, os Direitos Fundamentais) adentram à esfera privada, por meio das cláusulas gerais e dos conceitos indeterminados. (FREITAS; CLEMENTE, 2010, p. 79)

Assim, esta tese elabora um modelo de eficácia dos Direitos Fundamentais nas relações

privadas o qual permite que a vinculação ocorra através da intermediação de normas e princípios

peculiares ao Direito Privado, na forma de cláusulas gerais e conceitos indeterminados. Ou seja,

para que haja vinculação dos Direitos Fundamentais nas relações privadas, a Teoria da Eficácia

Mediata, demanda a existência de “pontes” entre o Direito Público e o Privado, na forma de

cláusulas gerais ou de conceitos indeterminados.

4.1.3) Teoria da não aplicabilidade ou State Action

Sendo predominantemente aceita nos Estados Unidos da América, esta tese tem sua base

na visão liberal e nega, primordialmente, a vinculação das relações particulares aos Direitos

Fundamentais. Entretanto, um estudo mais acurado dos conceitos e aplicação desta teoria revela

uma contradição entre o teórico e o prático. Ocorre uma aparente negação da vinculação, mas

que, na jurisprudência, revela-se como eficácia dos Direitos Fundamentais nas relações

intersubjetivas, conforme será demonstrado adiante.

Em virtude de sua aparente negação da vinculação, a Teoria da State Action encontrou um

subterfúgio para aplicar os Direitos Fundamentais às relações entre particulares. Este artifício

consiste em atribuir ao Estado a responsabilidade por atos de ordem privada, ou mesmo fazer a

equiparação destes com os atos de ordem pública. Através desta ficção jurídica, os doutrinadores

da Teoria da State Action conseguem solucionar, ainda que de maneira assistemática, equacionar

o dilema de saber quando uma ação privada tem possibilidade de se comparar ou mesmo ser

transformada em ação pública.

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De acordo com a lição de Freitas e Clemente, vemos que:

Em que pese a Teoria da State Action querer negar (ainda que aparentemente) a vinculação dos Direitos Fundamentais, o trabalho jurisprudencial da Suprema Corte estadunidense acaba encontrando, de uma forma ou de outra, uma conformação daquela ação privada, transformando-a em pública, garantindo, desse modo, que se preserve um direito constitucional violado. (FREITAS; CLEMENTE, 2010, p. 77)

Desta forma, vê-se que, mesmo que haja negativa aparente da vinculação, para os que

negam tal possibilidade, a jurisprudência encontra maneiras de reparar a violação dos Direitos

Fundamentais nas relações privadas, forçando a conclusão de que tais direitos são de extrema

importância para a plena realização da democracia e a proteção do Estado Democrático de

Direito.

5) O DIREITO FUNDAMENTAL DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Tendo por base a concretização dos Direitos Fundamentais nas relações entre Estado e

indivíduo, bem como nas relações entre particulares, resta conceituar dignidade da pessoa

humana, para poder situá-la entre os fundamentos da eficácia daqueles direitos.

Ao me debruçar sobre o estudo dos Direitos Humanos e, em especial, o processo histórico

de conquista e aquisição dos direitos fundamentais, esbarrei no conceito de igualdade perante a

lei. Entretanto, essa igualdade legal deve ser entendida sob um prisma diferente do que a simples

definição do vocábulo, pois, manifesta-se de uma maneira muito peculiar, intrinsecamente ligada

à noção de dignidade.

Ao afirmar que todos são iguais perante a lei, é necessário ter em mente que nem todas as

pessoas são, de fato, iguais em muitos aspectos. Assim, ao lado do direito à igualdade, surge o

direito às diferenças. Por isso, neste sentido estrito, a concepção de igualdade deve permitir o

reconhecimento de diferenças, como as relacionadas ao gênero, à raça, à idade, e etc. Só assim

podemos falar em uma igualdade eficaz e que promove uma radical proteção e garantia de

direitos. Desta maneira, a igualdade, considerada em face da dignidade humana, garante a

qualquer ser humano o caráter de fim em si mesmo e outorga-lhe o status de sujeito de direitos.

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Aí, adentra-se o âmbito do Direito das Minorias.

Neste sentido, o Direito das Minorias se presta a proteger parcelas ou grupos vulneráveis

da sociedade, mitigando as desigualdades entre os cidadãos. Por esta ótica, o Direito das Minorias

foca sua atuação na pessoa humana, como sujeito de direito, considerada em suas peculiaridades

e vulnerabilidades e se utiliza dos conceitos de igualdade formal, abstrata e geral e igualdade

material, concreta e específica, para tanto, considera o direito à igualdade, bem como o direito à

diferença, demonstrando o caráter bidimensional da justiça, como redistribuição e

reconhecimento das identidades.

Consolida-se, assim, o caráter bidimensional da justiça, fazendo-se necessária uma

igualdade que reconheça as diferenças e uma diferença que não produza, alimente ou reproduza

as desigualdades. Segundo Nancy Fraser (2001):

[...] o reconhecimento de identidades não se reduz somente à distribuição porque o status na sociedade não decorre, simplesmente, em função das classes sociais. Ao mesmo tempo, a distribuição não pode ficar reduzida ao reconhecimento de identidades porque o acesso aos recursos não decorre, simplesmente, em função de status. (grifo do autor) (FRASER, 2001, p. 55-56)

Com efeito, a garantia dos direitos não é resultado da simples atribuição de status de

sujeito de direitos, faz-se necessária uma intervenção do Estado, como ente garantidor, na

concretização das normas instituídas e o faz, em última instância, para conferir ao cidadão a sua

dignidade.

Conceituar doutrinariamente a dignidade não é tarefa das mais fáceis. Por ser de

elaboração relativamente recente, pois, somente após a Segunda Guerra Mundial, extrapolou a

esfera da filosofia e, hoje, está imbricado nos sistemas jurídicos e no discurso político sem

qualquer possibilidade de retorno. É também difícil de precisar a noção de dignidade da pessoa

humana em virtude de abranger em si outros conceitos, tais como “pessoa humana” e

“dignidade”. Essa ideia de dignidade da pessoa humana está intrinsecamente ligada aos conceitos

de liberdade e igualdade, ambos de elaboração mais antiga do que aquela.

Por vários anos o conceito de dignidade da pessoa humana esteve mais próximo da

filosofia, e, por conseguinte, detinha status de valor e não de norma. Por este motivo é que se

pode entender a ausência desta nos ordenamentos jurídicos surgidos a partir da Revolução

Francesa, uma vez que estes ordenamentos davam maior importância à igualdade formal e o

positivismo sempre priorizou a norma em detrimento de outros paradigmas. Após a Segunda

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Guerra Mundial, com toda a barbárie que a caracterizou, e já no Século XX é que a dignidade da

pessoa humana passa a ser reconhecida e consagrada como princípio fundamental, como nos

ensina Melo (2012).

Para os fins a que se destina este trabalho, optei por simplificar a discussão a respeito da

conceituação de pessoa humana. Escolhi adotar esta noção na sua acepção mais ampla possível,

que é a que abrange todas as pessoas indistintamente de seu status jurídico ou cidadania (MELO,

2012). Mesmo porque o próprio uso da expressão “pessoa humana”, ao invés do costumeiro

“cidadão”, vocábulo afeito à concepção liberal de constituição, já nos indica o intuito do

legislador de ampliar a dimensão de sua aplicação em contraponto com a limitação do conceito

de cidadania. (CUNHA JÚNIOR, 2011)

Dignidade da pessoa humana, assim, deve ser entendida como o fundamento principal dos

direitos fundamentais, ainda que não se esgote nestes direitos o seu conteúdo jurídico.

A construção histórica do conceito moderno de dignidade da pessoa humana passa por

vários momentos. Pode-se, com certa convicção, afirmar que o Cristianismo é o precursor da

idéia de dignidade inerente a todos os homens, uma vez que dentre os seus postulados existe a

forte determinação de que todos os homens foram criados à imagem e semelhança do mesmo

Deus e, por isso, são merecedores do mesmo tratamento, devendo uns amarem aos outros.

Também se deve creditar ao Iluminismo a construção histórica do conceito doutrinário de

dignidade da pessoa humana. Dentre tantos outros, e como nos ensina Norberto Bobbio (2004),

Immanuel Kant, cuja obra ainda hoje é citada nas discussões a respeito do tema, é valente

expoente deste conceito, em especial ao afirmar que o homem deve ser um fim em si mesmo. Na

esteira dos ensinamentos de Kant, temos o professor Sarlet (2011), afirmando que:

Ainda nesta perspectiva, já se apontou – com razão, no nosso sentir – para o fato de que o desempenho das funções sociais em geral encontra-se vinculado a uma recíproca sujeição, de tal sorte que a dignidade da pessoa humana, compreendida como vedação da instrumentalização humana, em princípio proíbe a completa e egoística disponibilização do outro, no sentido de que se está a utilizar outra pessoa apenas como meio para alcançar determinada finalidade, de tal sorte que critério decisivo para a identificação de uma violação da dignidade passa a ser (pelo menos em muitas situações, convém acrescer) o do objetivo da conduta, isto é, a intenção de instrumentalizar (coisificar) o outro. (SARLET, 2011, p. 63)

Destarte, na busca de conceituar dignidade, nos deparamos com algumas idéias que lhe

são afeitas, e, dentre elas, a da impossibilidade da instrumentalização do ser humano. (BOBBIO,

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2004) Conforme explicitado acima, a exploração de um ser humano pelo outro, viola a dignidade

do explorado e nos faz ponderar que a noção de dignidade está proximamente ligada às noções de

igualdade e de liberdade.

Tome-se como exemplo disso o fato de alguém que, subjugado pelo outro, tornar-se

atrelado aos interesses deste e ser utilizado como meio para obtenção de fins que não os seus

próprios, encontrar-se-á privado de sua liberdade e não poderá ser considerado em condição de

igualdade com relação a aquele que o subjugou. Haverá, nesse caso, uma violação frontal ao

princípio da dignidade da pessoa humana, uma vez que sem direito à sua autodeterminação e

privado de seu direito à igualdade formal e material, aquele homem deixará sua condição de ser

humano e identificar-se-á com o conceito de instrumento, objeto utilizado para obtenção de

determinado fim.

Há que se cogitar a possibilidade da sujeição de um ser humano pelo outro ser decorrente

da vontade de quem se sujeita, mas, nem por isso, deve esta situação de desigualdade ser

entendida como exceção à caracterização de violação da dignidade da pessoa humana. Nessa

hipótese, a própria vontade de sujeitar-se pode ser fruto de uma desigualdade material ou

financeira, até mesmo fruto de uma condição mental debilitada e conformista que afirma que tal

circunstância é socialmente aceitável. Essa condição pode até ser alegada pelo explorador como

possibilidade excludente da culpabilidade, na hipótese de uma possível responsabilização penal

pelo ato.

Entretanto, a dignidade da pessoa humana, por ser inerente à condição de ser humano, não

pode ser descartada ou objeto de renúncia, exatamente por sua característica de ser intrínseca à

pessoa humana, sendo decorrente da mera condição de ser pessoa. Nessa ótica, mais uma vez,

recorremos aos ensinamentos do professor Sarlet (2011) para afirmar que:

a dignidade, como qualidade intrínseca da pessoa humana, é irrenunciável e inalienável, constituindo elemento que qualifica o ser humano como tal e dele não pode ser destacado, de tal sorte que não se pode cogitar na possibilidade de determinada pessoa ser titular de uma pretensão a que lhe seja concedida a dignidade. (SARLET, 2011, p. 52)

Assim, a dignidade não pode ser concedida a ninguém por ato administrativo do Estado, e

nem através de processo legislativo ou judicial. É evidente que a dignidade não existe apenas

onde é reconhecida pelo ordenamento jurídico, mas a sua existência é decorrente tão somente da

existência de pessoa, de ser humano. Estando presente o ser humano aí estará a dignidade da

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pessoa humana. Portanto, sendo o Estado Democrático de Direito o garantidor de direitos por

excelência, deverá o poder público resguardá-la sempre que existirem violações da dignidade ou

iminente perigo de tal.

6) CONSIDERAÇÕES ACERCA DAS RELAÇÕES ENTRE A DIGNIDADE DA PESSOA

HUMANA, A LIBERDADE E A IGUALDADE COMO FUNDAMENTOS DA EFICÁCIA

DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS.

Após um breve estudo da Constituição Federal da República Federativa do Brasil,

encontrei vários dispositivos que apontam para a correlação entre a dignidade da pessoa humana,

igualdade e liberdade. O artigo 1º, inciso III da Carta Magna estabelece, como um dos

fundamentos da nossa República Federativa, a dignidade da pessoa humana, a qual também pode

ser considerada como fundamento da liberdade, da igualdade e dos demais direitos fundamentais.

Isso se observa nos seguintes dispositivos constitucionais: Artigo 5º, caput e inciso I,

onde se vê presente a igualdade; no artigo 3º, III, onde a Constituição compromete-se com a

redução das desigualdades, e com a repulsa à discriminação, no mesmo artigo 3º, IV; além da

literal vinculação do Estado brasileiro com a busca pelo bem estar social e justiça social, como se

vê nos artigos 170 e 193.

Com vistas a esclarecer as relações existentes entre dignidade da pessoa humana,

igualdade, liberdade e a eficácia horizontal dos direitos fundamentais, passo a analisar, ainda que

de maneira sucinta estas correlações. Para os fins deste trabalho, esta sucinta análise se restringe

ao estudo destes conceitos e suas correlações no âmbito do Direito.

Sendo de construção antiga, os conceitos de liberdade e igualdade são objetos de estudo

desde a antiguidade, remontado à Grécia antiga seus primeiros registros doutrinários, culminando

por ganharem especial atenção à época das declarações de direitos setecentistas, bem como nos

primórdios do constitucionalismo. Por outro lado, a concepção de dignidade da pessoa humana,

tem como início de seu tratamento doutrinário a partir da Idade Média, galgando precedência no

âmbito do direito constitucional na época contemporânea. (MELO, 2012)

Árdua tarefa é a de conceituar igualdade, uma vez que por ser aberta a um grande número

de parâmetros valorativos, ela esteve e está sujeita às variações de conteúdo ao longo da história,

já que, conforme os movimentos ideológicos se alternam a sua conceituação, para o mundo do

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Direito, também sofre alterações muitas vezes significativas.

Sob a ótica específica do Direito, pode-se afirmar, com razoável segurança e na lição de

Melo (2012), a íntima ligação entre igualdade e justiça, não apenas com relação à justiça social,

mas também no âmbito da justiça comutativa e distributiva. Em essência, essa estreita relação é

fruto da frequência com que é questionada a atividade de fazer justiça, quando esta é entendida

como sendo a ação de estabelecer o que é devido a cada um. É o que ensina Melo, citando Lopes:

A teoria da justiça sempre começa com a questão da igualdade. Tanto que a busca da regra formal da justiça termina muitas vezes na formulação da seguinte proposição: ’a Justiça é um princípio de ação segundo o qual os seres de uma mesma categoria devem ser tratados da mesma maneira’. (MELO, 2012, p. 23, apud LOPES, 1998, p. 139)

Segundo este entendimento, todos os cidadãos devem obter, por parte do Estado, o

mesmo tratamento seja na esfera administrativa, legislativa ou judicial. O Estado tem o dever de

fornecer a todos a mesma medida de atenção e proteção. Esta obrigação é decorrente da própria

lei. A norma, ao estabelecer que todos são iguais perante a lei, está dizendo ao Estado que este

deve providenciar a todos os seres na sua jurisdição um tratamento isonômico na aplicação da lei.

Como se depreende da lição de Alexy (2011):

Nos detalhes, o dever de igualdade na aplicação da lei apresenta uma estrutura complicada, por exemplo quando exige a elaboração de regras vinculadas ao caso concreto, seja para a precisa determinação de conceitos vagos, ambíguos e valorativamente abertos, seja para o exercício de discricionariedade. No seu núcleo, contudo, esse dever é simples. Ele exige que toda norma jurídica seja aplicada a todos os casos que sejam abrangidos por seu suporte fático, e a nenhum caso que não o seja, o que nada mais significa que dizer que as normas jurídicas devem ser cumpridas. (grifo do autor) (ALEXY, 2011, p. 394)

O professor Dirley da Cunha Júnior (2011), elucida a questão da igualdade perante a lei

da seguinte forma:

O direito à igualdade é o direito que todos têm de ser tratados igualmente na medida em que se igualem e desigualmente na medida em que se desigualem, quer perante a ordem jurídica (igualdade formal), quer perante a oportunidade de acesso aos bens da vida (igualdade material), pois todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. A exigência de igualdade decorre do princípio constitucional de igualdade, que é um postulado básico da democracia, pois significa que todos merecem as mesmas oportunidades, sendo defeso qualquer tipo de privilégio e perseguição. O princípio em tela interdita tratamento desigual às pessoas iguais e igual às pessoas desiguais. (grifo do autor) (CUNHA JÚNIOR, 2011, p. 676)

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Conforme ensina Cunha Júnior (2011), a igualdade manifesta-se em duas formas: a

igualdade formal e igualdade material. A igualdade formal, para fins didáticos, pode ser

subdividida em igualdade na lei e igualdade perante a lei, entendida esta como a elaboração de

normas que não contenham distinção que não seja autorizada pela Constituição, impedindo o

legislador de criar normas que venham a romper a ordem isonômica; e aquela como a aplicação

da lei igualmente a todos, mesmo que se crie desigualdade, impedindo que a aplicação da lei seja

feita segundo critérios discriminatórios ou de privilégio. Já a igualdade material deve ser

entendida como a aplicação da lei ao caso concreto, levando em consideração os sujeitos de

direito em suas peculiaridades e subjetividades, com vistas a fornecer uma ação administrativa ou

uma prestação jurisdicional com equidade no caso específico.

Em outras palavras, na consideração do conceito de igualdade na elaboração e aplicação

da lei, deve-se levar em conta que existem dois tipos de discriminações: as que são opostas e as

que favorecem o conjunto de valores, princípios e direitos consagrados pela Constituição do país.

Estando vedadas as que se opõem e devendo ser promovidas as segundas por serem medidas

efetivas de entrega da justiça com equidade, e, principalmente, por estarem consagradas na

própria Carta Magna, como normas e mecanismos necessários.

Esta é a magistral lição de Piovesan (2010) quando afirma que são imprescindíveis, para a

implementação do direito à igualdade, o combate à discriminação e a promoção da igualdade:

Na ótica contemporânea, a concretização do direito à igualdade implica na implementação dessas duas estratégias, que não podem ser dissociadas, isto é, hoje o combate à discriminação torna-se insuficiente se não se verificam medidas voltadas à promoção da igualdade. Por sua vez, a promoção da igualdade, por si só, torna-se insuficiente se não se verificam políticas de combate à discriminação. (PIOVESAN, 2010, p. 243)

Assim, temos que a igualdade é princípio basilar na concretização dos direitos humanos

fundamentais, e está intrinsecamente ligada à dignidade da pessoa humana quando entendida

como pressuposto da efetivação da justiça.

Por sua vez, o conceito de liberdade, tem o início de sua construção teórica remontando à

Grécia antiga, e também se apresenta multifacetado e afetado pelas várias flutuações ideológicas

dos momentos históricos. Objetivando alcançar os fins a que se propõe este ensaio, restringe-se, a

breve análise que se fará do conceito de liberdade, ao âmbito do Direito.

É a partir do século XIX que o significado jurídico de liberdade começa a dissociar-se e

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estabelecer a sua independência do significado filosófico da mesma liberdade. Isso se deve ao

fato de que é naquela época que começaram a serem positivadas as liberdades públicas e os

direitos fundamentais. Hoje em dia, a liberdade está consagrada como direito humano

fundamental e, a exemplo da igualdade, que nas palavras de Melo (2012), pode ser considerada

“como valor, como princípio e como norma. Em termos de significado, a liberdade é cada vez

mais rica, sendo que se pode melhor compreendê-la a partir de uma visão global que parte de dois

grandes ‘blocos de classificação’, a liberdade positiva e a liberdade negativa”. (MELO, 2012, p.

28)

Continua Melo (2012) a ensinar:

A primeira abrange tudo o que se relaciona com a clássica autonomia da vontade, e a segunda diz respeito à possibilidade de o indivíduo agir sem interferências ou obstáculos, sejam estes opostos pelo Estado ou pelos particulares. A par desta classificação, ainda se pode distinguir entre liberdade real, representada pela ausência de óbices de ordem pessoal para alguém fazer algo, e liberdade formal, que se traduz na liberdade jurídica, ou seja, na ausência de óbices legais à ação do indivíduo. Na seara da liberdade jurídica deve mencionar-se a liberdade política, que contemporaneamente se identifica com a possibilidade de participação democrática. (MELO, 2012, p. 28)

Assim, entendida a liberdade nas suas diversas formas de expressão, tem-se que o cidadão

deve ter garantido o seu direito à livre determinação de sua vontade, ao não impedimento de agir

em conformidade com a lei, à participação ativa nas decisões políticas de seu país. Entretanto,

todas as formas de expressão da liberdade também trazem em seu bojo a limitação desta mesma

liberdade quando exercitada na vida em sociedade.

Isso se deve ao fato de que para que se exerça o direito à liberdade para todos os cidadãos,

há que se impor limites a este mesmo direito, na tentativa de se garantir um convívio social

igualitário. Paradoxalmente, para que todos possam usufruir, de maneira simultânea, das

liberdades conquistadas, mister que existam restrições a este exercício da liberdade individual

com vistas à garantia da dignidade humana. A essas restrições, podemos chamar de

responsabilidade.

Assim, pode-se entender juridicamente liberdade como a habilidade do ser humano de

determinar a sua vontade livremente, até mesmo para abster-se de agir, cioso da sua

responsabilidade decorrente de cada ação ou omissão sua, perante os seus concidadãos e perante

a sociedade de maneira geral, representada pelo aparato coercitivo estatal.

Por fim, como se depreende do acima descrito, a liberdade e a igualdade têm fundamento

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na dignidade da pessoa humana. E, ao se positivar este direito, o legislador tem como objetivo

evitar o abuso de poder, seja por parte de um indivíduo, grupo de indivíduos ou do próprio

Estado.

Sendo inegável a interligação entre estes valores, normas, princípios, resta concluir que,

se a dignidade é, com efeito, o fundamento último destes valores também o é para os direitos

fundamentais e deve servir para fundamentar os seus aspectos práticos e doutrinários, sempre

trazendo suas interações com os conceitos de igualdade e liberdade.

7) EFICÁCIA HORIZONTAL DAS NORMAS DE DIREITOS FUNDAMENTAIS

É na busca pela igualdade social e o acréscimo valorativo acumulado pelos direitos

humanos no início do século XX que deu a luz a diferenciação entre a eficácia vertical (já

abordada no tópico quatro acima) da eficácia horizontal dos direitos fundamentais (a ser tratada

no presente tópico).

Estabelecer que existem diferenças entre a eficácia vertical e a horizontal dos direitos

fundamentais não é simplesmente dividir as liberdades entre públicas e privadas e denominar

aquelas como eficácia vertical e estas como eficácia horizontal.

O entendimento aqui proposto é o de evidenciar a diferença entre os dois âmbitos de

eficácia, vertical e horizontal, dos direitos fundamentais, uma vez que estes vinculam a todos, de

diferentes formas, de acordo com a esfera e relações sobre as quais incidem, quer sejam de

aspecto público ou particular.

Como bem lecionam Melo e Costa Júnior (2007): “Quando se fala nas eficácias vertical e

horizontal, pretende-se aludir à distinção entre a eficácia dos direitos fundamentais sobre o Poder

Público e a eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre os particulares.” (MELO;

COSTA JÚNIOR, 2007, p. 262)

Ainda com base nos ensinamentos de Melo (2012), pode-se aduzir:

Em sua feição clássica, a teoria da eficácia horizontal dos direitos fundamentais defende que esses direitos não são oponíveis apenas contra o Estado e seus agentes, o que teria sentido quando de seu surgimento histórico, mas também no seio das relações privadas, diretamente (eficácia ou relevância imediata) ou por meio de um ato estatal que intermedeie essa aplicação (eficácia ou relevância mediata). (MELO, 2012, p. 30-31)

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Desta forma, a eficácia dos direitos fundamentais é um instituto que a todos vincula e sob

a sua égide todos, os cidadãos brasileiros e os estrangeiros durante sua estada no país, devem

pautar suas condutas, sob pena de violar princípio e norma constitucional. Por isso, mesmo nas

relações entre particulares, devem ser considerados, com primazia, os direitos fundamentais.

Dado que os direitos fundamentais têm como sua base teórica e fundamento principal a

dignidade da pessoa humana, deve, da mesma forma, ser o entendimento que estes direitos sejam

aplicados igualmente nas relações entre particulares. Entretanto, há certa resistência por parte da

doutrina de direito privado em aceitar quaisquer limitações, mesmo que oriundas do texto

constitucional, à autonomia da vontade ou, em última instância, à liberdade e à igualdade.

Como resposta à resistência dos doutrinadores de direito privado à oposição de limites à

autonomia da vontade como resultado da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, invoco a

lição de Melo (2012):

Pode-se facilmente sustentar a eficácia horizontal dos direitos fundamentais como mera decorrência do tratamento constitucional de vários institutos do direito privado e/ou como decorrência do princípio da supremacia constitucional, no sentido de que as normas constitucionais são normas de hierarquia superior, que sempre devem prevalecer e que permanentemente irradiam um efeito paramétrico e conformador a todo o ordenamento jurídico, público e privado. (MELO, 2012, p. 32)

Inafastável, como se vê, a eficácia dos direitos fundamentais, quer na verticalidade, quer

na horizontalidade das relações humanas, seja por sua natureza de norma constitucional e

consequente primazia na ordem jurídica nacional, seja por seu fundamento principal na dignidade

da pessoa humana. Sustenta-se ainda esta eficácia horizontal dos direitos fundamentais por força

de sua fundamentação principal na dignidade da pessoa humana, nas suas correlações com os

conceitos de igualdade e liberdade.

Tomando-se por definição de dignidade a lição de Oliveira (2011), temos:

É o valor que se revela em toda pessoa apenas pelo fato de existir, o que significa que a dignidade é incomensurável e estática. As pessoas humanas não perdem ou ganham dignidade, assim como não há como medi-la ou graduá-la. A dignidade inerente, intrínseca ao ser, não é atribuída, mas sim um dado limitador da atuação humana e concomitantemente libertador. (OLIVEIRA, 2011, p. 90)

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Por fim, resta admitir a necessidade do reconhecimento da dignidade da pessoa humana

como elemento básico e definidor da condição de ser humano, não podendo, portanto, ser

dissociada da existência humana, negada, atribuída, objeto de renúncia, destituída ou relegada ao

status de atributo secundário.

Por tudo acima disposto, tem-se como fato que a dignidade da pessoa humana é o

fundamento último e principal da eficácia dos direitos fundamentais, na esfera pública (relações

entre Estado e particulares) e na esfera privada (relações entre particulares).

CONCLUSÃO

Considerados os conceitos de igualdade, liberdade e dignidade da pessoa humana em sua

construção histórica, percebe-se uma clara interligação entre eles. Ressalte-se que os dois

primeiros, embora de construção jurídico-filosófica mais antiga que o último, têm por

fundamento principal este e, por isso, são entendidos como subsidiários à dignidade da pessoa

humana na sua qualidade de fundamento dos direitos humanos.

Ao longo da história, a dignidade da pessoa humana passou a ter primazia como

fundamento dos direitos fundamentais, especialmente em virtude de sua positivação nos

instrumentos normativos, constituições e declarações de direitos, tornando-se, no direito

contemporâneo, fundamento principal dos direitos humanos fundamentais.

A inserção da dignidade da pessoa humana nos textos constitucionais também pode ser

apontada como fator decisivo para a sua condição de fundamento da eficácia dos direitos

fundamentais no âmbito vertical, isto é, nas relações entre Estado e particulares.

A busca pela ampliação do campo de aplicação desta eficácia mediante a vinculação dos

particulares é que deu surgimento à teoria da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, que a

exemplo da eficácia vertical, tem seu fundamento principal na dignidade da pessoa humana.

Assim, é reconhecido o caráter de fundamento da eficácia horizontal dos direitos

fundamentais, à dignidade da pessoa humana, como resultado da primazia das normas

constitucionais, do entrelaçamento entre a dignidade, igualdade e liberdade e da decisão de

priorizar certos valores basilares do ordenamento jurídico nacional.

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DIREITO À MORADIA NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA –

CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DE SUA POSITIVAÇÃO E FUNDAMENTAÇÃO

RIGHT TO HOUSING ON THE BRAZILIAN FEDERAL CONSTITUTION –

CONSIDERATIONS OVER ITS POSITIVATION AND REASONING

Maria Amélia da Costa1

RESUMO O direito à moradia, incluído no texto constitucional em 2000, no rol dos direitos fundamentais sociais, é um direito que, nesta condição, demanda uma necessidade de fundamentação ética para sua justificação e concretização e busca esta fundamentação no princípio da dignidade da pessoa humana. Para isto, são apresentadas referências ao histórico do direito à moradia no Brasil, para situá-lo no contexto constitucional em que se encontra, ao conteúdo dos direitos sociais como um todo, especificando-se a demanda de proteção possuem. Também são feitas considerações sobre o conteúdo do princípio da dignidade da pessoa humana a fim de demonstrar como a utilização do princípio como fundamento é extremamente necessária para a efetivação do direito à moradia. PALAVRAS-CHAVE Direitos fundamentais sociais; Direito à moradia; Dignidade humana

ABSTRACT The right to housing, included in the brazilian constituition in 2000, in the list of fundamental social rights, is a right that, in this condition, demands a need of ethical reasoning for its justification and substantation and seeks this argumentation on the human dignity principle. For that, references from the history of the right to housing in Brazil are presented to point it out the constitutional context in which it is, to the content of social rights as a whole, specifying the protection that it demands. Consideration are also made about the content of the human dignity principle in order to demonstrate how the utilization of the principle as fundament is extremaly necessary to effectuation of the right to housing. KEYWORDS: Fundamental social rights; Right to housing; Human dignity

1 Introdução

Teto, lar, asilo inviolável. Todo ser humano mora. Morar vai além da necessidade de

se abrigar das intempéries. Morar significa abrigar não apenas o corpo, mas a individualidade,

a intimidade, o patrimônio mínimo, a existência saudável. Direito dependente de espaço

físico, restringido pelo direito de propriedade que por vezes tantas tenta impedir a sua

1 Mestre em Direito Público e Evolução Social pela Universidade Estácio de Sá. Professora da Universidade Presidente Antonio Carlos – Juiz de Fora – MG.

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concretização. Direito que acompanha a referência histórica da má distribuição de terras, da

falta de acesso ao seu mercado regular e todo o seu legado de exclusão. Direito que possui

especificações técnicas, uma vez que não basta o simples abrigo, por não ser o homem

simples animal – moradia digna, moradia adequada, padrões que acompanhem as diferenças

culturais e ao mesmo tempo preze por uma condição de vida digna.

Classificado como um direito social, o direito à moradia só veio a ser incluído

expressamente no rol dos direitos sociais da Constituição da República em 14 de fevereiro de

2000. Entretanto, é longa a jornada de seu reconhecimento, tanto no plano nacional quanto no

plano internacional, em razão da própria demanda que possui – em todo mundo, assim como

neste país, o déficit habitacional e a exclusão fundiária são realidades que dependem tanto de

ações legislativas de proteção quanto de programas governamentais.

Por se tratar, de um direito tão ligado às mais básicas necessidades humanas é que se

faz necessária a busca de sua fundamentação ética, a qual é imprescindível nos momentos de

efetivação deste direito, tendo em vista a relação tão íntima que o direito à moradia estabelece

com tantos outros, como dito no início desta introdução. Partindo-se desta premissa, busca-se

seu fundamento no princípio da dignidade da pessoa humana e não apenas em sua dimensão

individual mas, sobretudo, numa dimensão transindividual, já que a moradia adequada, além

de importar à pessoa na sua individualidade, importa também à manutenção da identidade dos

grupos, ao desenvolvimento do país, ao exercício da democracia e a sustentabilidade

ambiental.

O presente artigo, apresentado ao CONPEDI no encontro que tem como tema os 25

anos da Constituição da República, é resultado de uma pesquisa teórica documental e vem

estruturado em três partes. A primeira parte trata do reconhecimento expresso do direito à

moradia como direito social e nele é traçado um breve relato sobre o caminhar do Direito

Brasileiro em direção a este reconhecimento desde a assinatura de documentos internacionais

à previsão expressa pela carta constitucional. A segunda, fala sobre a classificação que recebe

o direito à moradia, ou seja, trata da definição de direitos sociais, suas perspectivas de

efetivação e a necessidade de sua justificação ética, tendo em vista ser uma categoria de

direitos que são essenciais à realização dos objetivos da democracia e do Estado de Direito.

Por fim, na terceira parte serão feitas algumas considerações acerca do princípio da dignidade

da pessoa humana como um dos fundamentos do direito à moradia, sob diversos aspectos da

realização deste direito.

2 O reconhecimento expresso do direito à moradia como direito social

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O direito à moradia está incluído dentre os direitos enumerados no artigo 6.º da

Constituição da República, que são os direitos sociais, ao lado do direito à educação, à saúde,

ao trabalho, ao lazer, à segurança, à previdência social, à proteção à maternidade e à infância

e à assistência aos desamparados.

Em seu texto original, a Constituição não trazia no artigo 6.º o direito à moradia

como um dos direitos sociais. Isto só veio ocorrer em 14 de fevereiro de 2000, através da

Emenda Constitucional n.º 26, quando passou a ser um direito expressamente previsto,

embora fosse evidente que sua tutela já era, de certa forma, garantida por outros dispositivos

constitucionais, como, por exemplo, as competências para a promoção de programas de

habitação – artigo 21, XX e artigo 23, IX, o inciso IV do artigo 7.º, que dispõe ser direito dos

trabalhadores o salário mínimo capaz de atender às suas necessidades vitais básicas como,

dentre outras, a moradia, e o artigo 183, que dispõe sobre a usucapião especial de imóvel

urbano, em cujos requisitos está a utilização para a moradia.

Não obstante estas tutelas, o direito à moradia estava implícito na condição digna da

existência humana, tutelada pelo princípio da dignidade da pessoa humana, uma vez que é no

exercício deste direito que outros também são exercidos, como o direito ao patrimônio, à

intimidade e à vida privada.

Além destas previsões constitucionais não expressas, outros documentos

internacionais dos quais o Brasil é signatário também faziam, à época, referências ao direito à

moradia, em especial o Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais,

o PIDESC, através do qual os Estados-membros se comprometeram a efetivamente proteger

alguns direitos, incluindo o de moradia, e as declarações de Vancouver e, posteriormente a de

Istambul, sobre moradia e assentamentos humanos, os quais lhe conferiam, ao menos

materialmente, o status de direito fundamental, por força do §2.º do artigo 5.º da Carta

Magna.

Esses documentos internacionais deram, de certa forma, um embasamento à inclusão

do direito à moradia de forma expressa no texto da Carta Magna, uma vez que firmavam

compromissos dos países signatários na efetivação dos direitos que prescreviam.

O PIDESC foi um dos instrumentos de maior importância no reconhecimento do

direito à moradia no Sistema Internacional de Proteção dos Direitos Humanos. Isto se deve ao

fato de, na prática, ser dificultosa a tarefa de dar efetividade aos direitos humanos, mas, com a

adesão ou ratificação de um pacto, o Estado Parte se compromete a cumprir com

determinadas obrigações referentes à realização dos direitos que ali são previstos. É através

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do PIDESC, portanto, que o direito à moradia será não só apenas reconhecido como direito

humano, mas efetivamente protegido. Para esta efetividade, o Estado Parte assume o

compromisso de agir com seu próprio esforço, bem como contando com a ajuda internacional,

no máximo dos seus recursos disponíveis, para assegurar, progressivamente, o pleno exercício

dos direitos reconhecidos no Pacto.

Quando estabelece o direito de todas as pessoas a um suficiente nível de vida, inclui

dentre os fatores integrantes deste direito, o direito ao alojamento, ou seja, a moradia, não

ficando apenas esse direito restrito ao que seja “suficiente”, mas reconhecendo a necessidade

do melhoramento constante do nível de vida (artigo 11º, 1).

Ao estabelecer o direito das pessoas ao gozo do melhor estado de saúde física e

mental possível de se atingir, inclui dentre os fatores para este fim o melhoramento dos

aspectos de higiene do meio ambiente, que, consequentemente, pressupõe que o lugar onde

essa pessoa more seja salubre (art. 12º, 1.).

Procurando-se obter uma interpretação autêntica e máxima eficácia das disposições

do Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, é instituído pelo

Conselho Econômico e Social da ONU o Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e

Culturais, que emite Comentários Gerais. Destes Comentários é especialmente interessante, o

Comentário Geral n.º 4.

O Comentário Geral nº. 4, confere uma interpretação ao artigo 11 do Pacto

Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que reconhece,

positivamente, a moradia como um direito humano. Ele tem como proposta principal

demonstrar a interpretação do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais sobre o

que seja moradia adequada, bem como reafirmar princípios fundamentais relacionados ao

direito à moradia, ressaltando fatores que compõem uma ideia universal de moradia adequada,

como a segurança jurídica da posse, a disponibilidade de serviços, materiais e infraestrutura; a

disponibilidade de recursos; a habitabilidade; a acessibilidade; a localização e, por fim a

adequação cultural.

O outro documento internacional que veio influenciar o compromisso brasileiro com

o direito à moradia foi a Declaração de Istambul para Assentamentos Humanos, juntamente

com a Agenda Habitat, resultado da segunda Conferência das Nações Unidas sobre

Assentamentos Humanos, realizada em 1996, em Istambul, Turquia. Esta segunda

Conferência reafirmou os propósitos da primeira Conferência das Nações Unidas sobre

Assentamentos Humanos, realizada em 1976 em Vancouver, Canadá, que estabeleceu

diretrizes sobre o direito humano à adequada habitação e serviços.

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A Agenda Habitat foi o documento resultante desta Conferência e contém um Plano

Global de Ação que estabelece os compromissos firmados na Declaração de Istambul. Este

Plano Global de Ação compreende ações implementação e monitoração de atividades

destinadas à promoção e proteção do direito à moradia.

No preâmbulo da Declaração de Istambul, é exposto o propósito da Agenda Habitat,

que consiste em abordar dois temas considerados de igual importância global, que são:

“Moradia Adequada para Todos” e “Desenvolvimento de Assentamentos Humanos

sustentáveis em um Mundo em Urbanização”.

Devido a estes dois temas assumidos pela Agenda Habitat, fica claro, mais uma vez,

que a efetivação dos direitos humanos é tarefa complexa, ou seja, são levados em conta

diversos aspectos da existência humana, onde se evidencia o destaque para a questão

ambiental, de importância extrema para a sobrevivência humana. Também é enfatizada na

Agenda a questão das cidades, em razão conformação do mundo na atualidade, onde a

população ocupa cada vez mais as áreas urbanas. Assim, a Agenda diz literalmente que os

seres humanos estão no centro das preocupações com o desenvolvimento sustentável, fazendo

parte disso as moradias adequadas e os assentamentos humanos sustentáveis, ou seja,

qualquer ação relacionada a direitos humanos deve estar sempre direcionada a realização da

pessoa humana em todos os seus aspectos.

Com compromissos internacionais firmados, veio a proposta de emenda

constitucional – PEC n.º 601 em 1998, que resultou na Emenda Constitucional n.º 26,

incluindo o direito à moradia no rol dos direitos sociais. As justificativas apresentadas pela no

relatório da Comissão de Constituição, Justiça e Redação merecem transcrição, a fim de se

observar como a decisão de se incluir expressamente o direito à moradia no texto

constitucional partiu, também, das diretrizes internacionais voltadas à sua efetividade. Diz o

Relatório da Comissão de Constituição e Justiça e de Redação (BRASIL, 2013)2:

A questão do direito à moradia tem sido objeto de acesso a polarizado debate social tanto em nível nacional como internacional. Fóruns, entidades de classe, entidades governamentais e não-governamentais têm-se reunido nesses últimos anos com vistas ao maior encontro de todos os tempos sobre o tema: a Conferência Habitat II, convocada pela Organização das Nações Unidas (ONU) e realizada no período de 03 a 14 de junho deste ano. Para esse evento, o Brasil foi indicado relator da parte da Agenda do Habitat (carta de intenções da conferência) que trata do “direito à moradia”. Coube-lhe, assim, a difícil tarefa de justificar, frente a países como Japão, Estados Unidos e Coréia (que se posicionam contra a inclusão desse termo na agenda), a urgente necessidade de se reconhecer a moradia como um direito social.

2 http://www.camara.gov.br

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A participação ativa brasileira em tão importante evento, de caráter mundial, coloca-nos em posição delicada, principalmente quando se verifica, em meio a uma situação eminentemente crítica das áreas urbanas brasileiras, uma lacuna na própria Constituição Federal, que não reconhece a moradia como um direito real, como a saúde, o lazer, o trabalho etc. Mas delicada ainda, fica a situação do Brasil quando, sabedores da realização da Conferência, os “sem teto” de todo país, já bastante organizados, ameaçam “pipocar ocupações de terrenos” na periferia das grandes cidades – conforme se lê nos mais renomados jornais do País. As atuais condições de moradia de milhares de brasileiros chegam a ser deprimentes e configuram verdadeira “chaga social” para grande parte das metrópoles do País. Faz-se, portanto, urgente que se dê início a um processo de reconhecimento da moradia como a célula básica, a partir da qual se desenvolvem os demais direitos do cidadão, já reconhecidos por nossa Carta Magna: a saúde, o trabalho, a segurança, o lazer, entre outros. Sem a moradia o indivíduo perde a identidade indispensável ao desenvolvimento de suas atividades, enquanto ente social e produtivo, se empobrece e se marginaliza. Com ele se empobrece, invariavelmente, a Nação.

Como se pode perceber pelo texto do relatório acima, o Brasil viu a necessidade de

incluir a moradia dentre os seus direitos sociais devido à dimensão do problema em seu

território, além de reforçar o compromisso brasileiro com a comunidade internacional e com

seu próprio povo, no sentido da erradicação da pobreza e da miséria e de promoção do

desenvolvimento com base na justiça social. Fica em evidência, no relatório da Comissão de

Constituição e Justiça e de Redação, a importância do direito à moradia no desenvolvimento

de outros direitos já reconhecidos na Constituição, importantes não só ao desenvolvimento da

Nação, como também do desenvolvimento da própria pessoa humana, ratificando a ideia de

que a moradia é direito essencial para a manutenção da integridade física e da dignidade da

pessoa humana.

O Brasil é um país que, por diversos fatores, apresenta problemas sociais decorrentes

da má distribuição de renda, da ausência do Estado e do próprio fenômeno da globalização,

que influenciam no crescimento da exclusão social e pobreza, e, consequentemente, na

questão da moradia, tanto no ambiente urbano quanto no ambiente rural, em praticamente

todo o seu território, pautada pela irregularidade e pela inadequação.

A menção expressa ao direito no rol de direitos sociais sem dúvida, por si, mostrou

que o Estado brasileiro assumiu compromissos em relação a sua efetivação, devido não

apenas a sua tamanha importância para o paradigma de vida digna das pessoas, mas também

pelo que representa em termos de indicativo de desenvolvimento. Em outras palavras, além de

todo o embasamento na dignidade da pessoa humana que contém, a promoção da moradia,

melhor dizendo, da moradia adequada, implica também no desenvolvimento e

sustentabilidade das cidades e demais assentamentos humanos e vice-versa.

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3 Direitos fundamentais sociais: direitos de igualdades e diferenças.

Direitos fundamentais sociais são aqueles que compõem a chamada segunda geração,

ou segunda dimensão, de direitos fundamentais, que são os direitos sociais, terminologia que

vem cercada de diversas dúvidas e críticas, mas amplamente utilizada para caracterizar

aqueles direitos que exigem, por parte do Estado, uma atuação positiva. No sistema jurídico

brasileiro, a moradia encontra-se nesta categoria de direitos, prevista de forma expressa no

artigo 6.º da Constituição da República.

A terminologia gerações se justifica em razão do fato destes direitos terem uma

justificação histórica, ou seja, cada geração de direito surge em um momento histórico pontual

em que as pessoas se confrontavam contra uma determinada ordem, lutando em defesa de

novas liberdades (BOBBIO, 2004, p.25), representando verdadeiras conquistas humanas em

face de determinados modelos estatais, que num momento anterior não os asseguravam.

O termo gerações, entretanto, não deve levar à ideia de que uma geração de direitos

veio em substituição à outra, ao contrário, remete à ideia de um processo cumulativo, de

complementaridade e não de alternância. Todavia, a discordância em relação ao termo não se

estende ao conteúdo destes direitos, havendo consenso neste ponto, mas à possibilidade de

gerar uma falsa impressão da substituição gradativa de uma geração por outra (SARLET,

2007a, p.54).

Os direitos de primeira geração surgem concomitantemente ao ideal liberalista,

inspirado, principalmente nos movimentos revolucionários francês e americano.

Correspondem a um rol de direitos que garantem a proteção das liberdades humanas face às

ações estatais, resguardando uma esfera de autonomia individual. Estes direitos de primeira

geração correspondem aos direitos civis e políticos, como a garantia da propriedade, da

autonomia privada, da liberdade, da liberdade de expressão e associação e da participação

política, que, num momento anterior ao revolucionário, encontravam-se ameaçados tanto pelo

Estado como por particulares detentores de poder, e dali em diante passam a ser protegidos

por cartas constitucionais, de qualquer abuso por parte do poder instituído. Por esta razão

estes direitos são considerados como destinatários de conduta negativa do Estado, ou seja,

requerem uma conduta de não intervenção por parte deste nas liberdades individuais.

Toda a base dos direitos fundamentais de primeira geração está firmada no

pensamento liberal, em especial na igualdade e liberdade dos homens, sendo estas

compreendidas apenas em sua concepção formal. Significa dizer que todos os homens têm

igualdade de gozo da liberdade, ou seja, nenhum homem pode ter mais liberdade do que o

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outro. Eles nascem livres e, num estado de natureza (segundo a concepção de John Locke)

não deve haver discriminação fundada em diferenças específicas entre homens e homens,

entre grupos e grupos (BOBBIO, 2004, p.85). Isto se evidencia pelas capacidades expressas

no artigo 2.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos: todo homem tem capacidade

para gozar os direitos e as liberdades sem distinção de qualquer espécie.

Oportuno se faz esclarecer algumas diferenciações que a doutrina faz a respeito da

diferença entre os direitos humanos e os direitos fundamentais. Para Paulo Bonavides (2002,

p. 514) ocorre com mais frequência o emprego dos termos direitos do homem e direitos

humanos entre os autores anglo-americanos e latinos, enquanto a terminologia direitos

fundamentais é preferida pelos autores publicistas alemães, como define Konrad Hesse (1986

apud BONAVIDES, 2002, p. 514) numa acepção lata, que os direitos fundamentais são

aqueles que almejam criar e manter os pressupostos elementares de uma vida na liberdade e

na dignidade humana. O mesmo autor (HESSE, 1986 apud BONAVIDES, 2002, p. 514)

define direitos humanos restrita e especificamente como aqueles direitos que o direito vigente

qualifica como tais.

Carl Schmitt (1954 apud BONAVIDES, 2002, p. 515) oferece dois critérios formais

de definição dos direitos fundamentais, dizendo que seriam aqueles direitos e garantias

nomeados e especificados no instrumento constitucional e também todos os direitos que

receberam da Constituição um grau mais elevado de garantia e segurança. E para este mesmo

autor, sob o ponto de vista material, os direitos fundamentais são variáveis conforme a

ideologia, a modalidade de Estado e as espécies de princípios e valores que a Constituição

estabelece, sendo, na essência, os direitos do homem livre e isolado que este possui em face

do Estado, e numa acepção estrita, unicamente os direitos de liberdade, em princípio

ilimitada, diante de um poder estatal de intervenção, em princípio limitado, mensurável e

controlável (SCHMITT, 1954 apud BONAVIDES, 2002, p. 515).

Ingo Sarlet (2007a, p. 194-196) faz uma distinção interessante entre os direitos

humanos e os direitos fundamentais; para o autor, a distinção possui alguma relevância de

ordem prática, por existirem diversos planos de positivação. Sendo assim, os direitos

fundamentais seriam aqueles reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional de

determinado Estado, e os direitos humanos, os incluídos em documentos de direito

internacional. Sobre os direitos humanos, Sarlet esclarece melhor, dizendo que estes se

referem:

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[...] àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser humano como tal, independentemente de sua vinculação com determinada ordem constitucional, e que, portanto, aspiram à validade universal, para todos os povos e tempos, de tal sorte que revelam um inequívoco caráter supranacional (2007a, p. 36).

Ambas as categorias compartilham da característica da fundamentalidade material.

No entanto, a fundamentalidade formal seria atributo apenas dos direitos fundamentais e a

conseqüência disto no ordenamento jurídico brasileiro seria: serem parte da constituição

escrita, ficando, portanto, em nível hierarquicamente superior no ordenamento jurídico; como

normas fundamentais, estarem submetidas aos limites formais e materiais de reforma da

constituição; e serem imediatamente aplicáveis, vinculando tanto as entidades estatais quanto

as particulares.

Retornando à capacidade que o ser humano tem de gozar dos direitos de liberdade,

esta universalidade, segundo Bobbio (2004, p. 85-86), não se estende aos direitos sociais, pois

nestes os indivíduos são iguais apenas genericamente e não especificamente. Melhor dizendo,

para o autor, igualdade e diferença têm uma relevância diversa conforme estejam em questão

direitos de liberdade ou direitos sociais. Assim, segundo a lição de José Eduardo Faria (1994,

p. 105) “os direitos sociais não configuram um direito de igualdade, baseado em regras de

julgamento que implicam um tratamento uniforme; são, isto sim, um direito das preferências e

das desigualdades, ou seja, um direito discriminatório com propósitos compensatórios.”

Igualdade e diferença: a realidade demonstrou que isto realmente possuía uma

enorme relevância quando se tratava de sobrevivência, de condições de saúde, de condições

de trabalho. Os direitos fundamentais baseados na liberdade e na igualdade perante a lei não

foram suficientes para contornar os problemas sociais que sempre existiram e que com a

industrialização se tornaram ainda maiores. Antes, os homens eram súditos, e viviam sob o

comando de um rei. Bem ou mal, eram dependentes, de certa maneira, de uma determinada

pessoa. Agora se tornaram livres e podiam contratar o que quisessem e como quisessem, e

toda esta liberdade não foi suficiente para que se mudasse suas condições de vida.

Com o estado liberal em crise, num quadro de abuso de exploração da propriedade,

exploração do trabalho e consequente aumento de demandas sociais, em especial na

necessidade de diminuição da miséria e melhoria das condições de saúde e trabalho, se

observava a necessidade da intervenção estatal em algumas esferas individuais, o que fez

surgir a ideia da segunda geração de direitos, que são os direitos sociais. Havia a necessidade

de uma intervenção positiva do Estado na garantia de determinados direitos para que se

assegurasse um mínimo de justiça social, e isto era espelhado por diversos movimentos

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sociais reivindicatórios. Surgiu então neste cenário a segunda geração de direitos, de caráter

positivo, ou seja, uma categoria de direitos destinados a fazer com que o Estado participe

ativamente na promoção do bem-estar social.

Todo o embasamento desta nova geração de direitos, que, importante repetir, não

exclui a outra, mas a complementa, e de certa forma, garante a sua existência, é feito, pois,

sobre o princípio da igualdade. Não a igualdade denominada formal, que implica em todos

serem iguais perante a lei, mas uma igualdade material, que proporciona materialmente as

mesmas oportunidades de crescimento e desenvolvimento de cada ser humano como pessoa,

independente do status econômico e social que ocupe. A liberdade aqui estará configurada

não como liberdade do Estado e perante o Estado, mas como liberdade por intermédio do

Estado (SARLET, 2007a, p.57).

Ao contrário dos direitos de primeira geração, os direitos sociais são realizados

através de condutas positivas do Estado, dispostos em normas programáticas, promotoras de

atuações concretas (BONAVIDES, 2002, p. 518) 3, direcionadas fatos existentes, voltadas a

realização dos ideais de igualdade e de justiça, sem os quais, num novo contexto histórico,

frise-se, fica impossibilitada a realização das liberdades, dos direitos de primeira geração.

Como esclarecido também por Vicente de Paulo Barreto,

[...] os direitos sociais não são meios de reparar situações injustas, nem são subsidiários de outros direitos. Não se encontram, portanto, em situação hierarquicamente inferior aos direitos civis e políticos. Os direitos sociais – entendidos como igualdade material e exercício da liberdade real – exercem novo paradigma, aqui proposto, posição e função, que incorpora aos direitos humanos uma dimensão necessariamente social, retirando-lhes o caráter de “caridade” ou “doação gratuita”, e atribuindo-lhes o caráter de exigência moral como condição de sua normatividade. Constituem-se, assim, em direitos impostergáveis na concretização dos objetivos últimos pretendidos pelo texto constitucional (2003, p.110).

A realização dos direitos sociais possui um enorme clamor moral, uma vez que

necessária para a concretização dos ideais de igualdade e justiça. Estes direitos não podem ser

vistos como os direitos que aliviam os problemas dos menos favorecidos. Na realidade atual,

a efetividade dos direitos sociais vai representar o embasamento concreto da possibilidade de

realização dos direitos civis e políticos e, mais além dos objetivos primordiais elencados nas

constituições dos Estados. É o que exige a nova ordem constitucional. 3 Segundo Paulo Bonavides (2002, p. 518), estes direitos passaram primeiro por um ciclo de baixa normatividade, ou tiveram eficácia duvidosa, em virtude desta natureza de direitos que exigem do Estado prestações materiais que nem sempre são possíveis devido à carência ou limitação de meios e recursos. A inserção na esfera programática se deu por não conterem as garantias ministradas por instrumentos processuais de proteção, como as destinadas aos direitos de liberdade.

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É importante ressaltar que os direitos fundamentais sociais são, assim como os

direitos fundamentais de primeira geração, direitos do homem individual, não se confundindo

com os direitos coletivos ou os direitos difusos, se devendo a expressão social a dois motivos,

apontados por Ingo Sarlet (2007a, p. 57-58): porque podem ser considerados como uma

densificação do princípio da justiça social e porque representam uma reivindicação das

classes menos favorecidas a título de compensação em virtude de extrema desigualdade.

A realização dos direitos sociais representa uma democratização das liberdades

conquistadas no contexto do Estado liberal, integrando a atuação defensiva dos próprios

direitos fundamentais de base liberal (BARRETO, 2003, p. 128). Assim o Estado, mediante

uma atuação positiva, constrói as bases para que se assegurem condições de liberdade

concreta e efetiva. Traduzindo, não há como se exercer a liberdade sem que a pessoa tenha

garantido um mínimo de condições dignas de existência e manutenção de sua vida, de sua

saúde e de seu trabalho. A pessoa inserida neste modo de vida saberá reivindicar,

democraticamente, tudo que seja necessário para o seu desenvolvimento. Por este motivo,

toda a fundamentação ética dos direitos sociais estará baseada no princípio da dignidade da

pessoa humana como exigência de justiça (BARRETO, 2003, p.130).

4 A fundamentação do direito à moradia no princípio da dignidade da pessoa humana.

O princípio da dignidade da pessoa humana é um princípio de aplicação tão

abrangente que acaba sendo utilizado como fundamento para toda uma sorte de direitos,

mormente os direitos fundamentais. Sob este ponto, é definitiva a lucidez de Maria Celina

Bodin de Moraes, quando adverte:

A constituição consagrou o princípio e, considerando a sua eminência, proclamou-o entre os princípios fundamentais, atribuindo-lhe o valor supremo de alicerce da ordem jurídica democrática. Com efeito, da mesma forma que Kant estabelecera para a ordem moral, é na dignidade humana que a ordem jurídica (democrática) se apoia e constitui. Isto significa dizer que o valor da dignidade alcança todos os setores da ordem jurídica. Eis a principal dificuldade que se enfrenta ao buscar delinear, do ponto de vista hermenêutico, os contornos e os limites do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. Uma vez que a noção é ampliada pelas numerosíssimas conotações que enseja, corre-se o risco da generalização, indicando-a como ratio jurídica de todo e qualquer direito fundamental. Levada ao extremo, essa postura hermenêutica acaba por atribuir ao princípio um grau de abstração tão intenso que torna impossível a sua aplicação (2003, p. 83-84).

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Assim, ao utilizar-se o princípio como fundamento, é necessário buscar referências

no sentido de uma definição, ainda que uma definição perfeita do que seja dignidade da

pessoa humana seja praticamente uma utopia.

Mesmo os esforços filosóficos não conseguiram uma definição perfeita de dignidade

da pessoa humana. Entretanto, há algumas referências se fazem interessantes, como a do

pensamento cristão e a do pensamento kantiano e que possibilitam o desenvolvimento da

reflexão jurídica do tema (MORAES, 2003, p.81).

A referência do pensamento cristão parte de uma concepção individual do homem,

ou seja, a condição do homem como pessoa é ressaltada, uma vez que necessária a sua relação

com Deus de maneira individual (COSTA, 2011, p. 231). O comportamento ético do homem

seria identificado não mais por sua relação com a cidade, mas com Deus, considerando-se

também que este homem é dotado de vontade livre, possuindo auxílio divino para não ceder

aos impulsos de transgressão às normas divinas, auxílio este que vem através da lei revelada,

que traz a ideia de dever (CHAUÍ, 1995, p.342-343). Esta ideia do dever, presente no

pensamento cristão, permanece mesmo após o distanciamento filosófico dos princípios

teológicos e da fundamentação religiosa da ética, como no pensamento Kantiano4.

O pensamento kantiano é construído de forma direcionada à humanidade e a todo ser

racional, colocando o dever como a expressão da lei moral nos homens, resultado da

imposição que a razão prática (liberdade como instauração de normas e fins éticos) faz a si

mesma; e pela obediência aos valores dados pelo dever, alcança-se a autonomia (COSTA,

2011, p.231-232).

Kant (2006, p.57-59) vai considerar o homem como um fim em si mesmo, quando

seu agir autônomo em conformidade com certas leis estiver direcionado a si ou a outro – nisto

consistirá o imperativo prático: “age de tal maneira que possas usar a humanidade, tanto em

tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca

simplesmente como meio”. Para ele, a dignidade estaria compreendida pelas coisas que não

tem preço, que não admitem equivalência, e assim, a moralidade e a humanidade enquanto

capaz de moralidade são as únicas duas coisas providas de dignidade (KANT, 2006, p.65-66).

Em razão até mesmo desta dificuldade de definição absoluta do que seja dignidade

da pessoa humana, a sua proteção não se dá, nem deveria, por normas que tratem de aspectos

4 Como afirma Vicente de Paulo Barreto, que afirma haver uma interpretação reducionista do pensamento kantiano a se considerar a moral como sendo, principalmente, individual, havendo, entretanto, a possibilidade de se verificar uma fundamentação no sentido da concepção social do homem, quando filósofo alemão considera que há uma lei que manda que os homens jamais se tratem a si e aos demais como meios mas sempre como fins (2003, p. 132-133).

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da vida humana de forma específica, mas sim vem protegida como um valor que identifica o

ser humano como tal (SARLET, 2007b, p. 29-30). Desta forma, é possível afirmar que o

único pressuposto para a existência da dignidade é a condição humana – se o homem é

racional e livre para se autodeterminar, ele possui dignidade e nada poderá diminuí-lo desta

condição.

A proteção da dignidade ocorre, e deve mesmo ocorrer, em relação à pessoa

individualmente considerada, sendo a própria construção do conceito fundada neste aspecto

individual do homem. Contudo, não se pode negar que o homem possui uma dimensão

transindividual de existência, da qual se extrai uma noção de dignidade humana da

humanidade, que atende os anseios desta dimensão, mas sem poder, entretanto, se sobrepor à

dimensão individual:

De fato, a proteção da dignidade se dá em relação à pessoa individualmente considerada, mas, é impossível negar a dimensão coletiva da existência humana e a partir daí uma dimensão transindividual da dignidade da pessoa, mesmo que se leve em conta que a dimensão individual da dignidade é a mais relevante. Desta forma é importante que se busque sempre evitar a possibilidade de privilegiar a dignidade humana transindividual em detrimento da dignidade humana individual, pois a admissão da dimensão transindividual da dignidade não é autorizativa do sacrifício da dignidade individual em favor da comunidade (COSTA 2011, p. 233).

A justificativa para esta dimensão transindividual da dignidade tem referências no

que se chama de condição plural do homem, conceito utilizado por Hannah Arendt em sua

obra A Condição Humana, na qual estabelece as três atividades humanas fundamentais: o

labor, o trabalho e a ação. Ao discorrer sobre a ação, Arendt considera:

A ação, única atividade que se exerce diretamente entre os homens sem a mediação das coisas ou da matéria, corresponde à condição humana da pluralidade, ao fato de que homens, e não o Homem, vivem na Terra e habitam o mundo. Todos os aspectos da condição humana tem alguma relação com a política; mas esta pluralidade é especificamente a condição – não apenas a conditio sine qua non, mas a conditio per quam – de toda vida política. [...] A ação seria um luxo desnecessário, uma caprichosa interferência com as leis gerais de comportamento, se os homens não passassem de repetições interminavelmente reproduzíveis do mesmo modelo, todas dotadas da mesma natureza e essência, tão previsíveis como a natureza e a essência de qualquer outra coisa. A pluralidade é a condição da ação humana pelo fato de sermos todos os mesmos, isto é, humanos, sem que ninguém seja exatamente igual a qualquer pessoa que tenha existido, exista ou venha a existir (2007, p.15-16).

Muito embora a concepção transindividual da dignidade não deva se sobrepor à

concepção individual, ambas são extremamente relevantes para a atividade de promoção e

proteção dos direitos sociais, tendo em vista que o ser humano vive numa circunstância de

coletividade e essa circunstância de coletividade é inafastável da atual situação de mundo

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globalizado. Assim, a proteção individual dos direitos sociais não é suficiente, uma vez que,

por si, não consegue cumprir com os objetivos do Estado democrático de direito. Quanto a

isto, bem observa Norberto Bobbio:

Para a realização dos direitos do homem, são frequentemente necessárias condições objetivas que não dependem da boa vontade dos que as proclamam, nem das boas disposições dos que possuem meios para protege-los. [...] A efetivação de uma maior proteção dos direitos do homem está ligada ao desenvolvimento global da civilização humana (2004, p. 63-64).

Portanto, ao almejar-se um desenvolvimento global da civilização é necessário

justificar eticamente as decisões na dimensão transindividual da dignidade, em contraposição

a um agir por parte do Estado, ou até mesmo de particulares, mas principalmente do Estado,

que possam trazer lesões aos direitos por uma coletividade como é o caso do direito à

moradia, que, além de abrigar o homem, abriga uma identidade. Esta dignidade

transindividual está relacionada à ética da solidariedade, citada por Maria Celina Bodin de

Moraes, ao traçar um paralelo entre o que chama direito moderno e direito pós moderno:

Que mudanças, então, poderiam ser resumidamente apontadas entre a época das luzes e a época atual, entre o Direito moderno e o Direito que vem sendo chamado de pós moderno? Em primeiro lugar, como foi ressaltado, o “mundo da segurança” deu lugar a um mundo de inseguranças que, aparentemente, perdurará; em segundo lugar, a ética da autonomia ou da liberdade foi substituída pela ética da solidariedade; enfim, e como consequência das duas assertivas anteriores, a tutela da liberdade (autonomia) do indivíduo, foi substituída pela noção de proteção à dignidade da pessoa humana (2003, p. 71-72)5.

Seja por uma concepção individual, seja por uma transindividual da dignidade, sem

que, ressalte-se, jamais uma se sobreponha à outra, os direitos fundamentais carecem de ser

fundamentados. Não basta apenas a prescrição mandamental no texto constitucional, a

elevação ao status de direito fundamental. O esforço vai além. Vai à necessidade da busca de

um fundamento que justifique e delineie toda a realização de um direito.

A questão da fundamentação dos direitos humanos, e em consequência, dos direitos

fundamentais, é assunto que já vem há muito ocupando a doutrina. Nesta corrente, Bruno

Amaro Lacerda, citando Robles, rebate a célebre afirmação de Bobbio de que o problema

fundamental dos direitos do homem não é a sua justificação mas a sua proteção (2004, p. 43),

dizendo: 5 A referência que a autora faz ao “mundo da segurança” refere-se ao “mundo dos códigos”, que substanciam os valores do liberalismo do século XIX. Já o mundo de insegurança seria o momento de incertezas e indefinições do Direito Civil, que enfrentaria uma crise de paradigmas relacionados aos seus conceitos tradicionais (MORAES, 2003, p. 64-65).

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Robles julga que a fundamentação dos direitos humanos consiste em um difícil problema, mas do qual não podemos nos esquivar. E apresenta quatro razões distintas para esta necessidade (ROBLES, 2005, p. 1-4). A primeira, uma razão de ordem moral: não podemos defender os direitos humanos e, por consequência, sua efetivação, se não temos claro por que o defendemos. [...] A segunda razão é lógica: o fundamento não é algo extrínseco, sem consequências para a realização dos conteúdos materiais dos direitos humanos. Sem o fundamento, não sabemos quais são esses conteúdos, ou seja, não sabemos exatamente o que estamos defendendo. [...] A terceira é de ordem teórica: seria ridículo, diz o autor, que os estudiosos dos direitos humanos apresentassem teorias alheias à fundamentação, pois a tarefa do teórico é exatamente de fundamentar, ou seja, de justificar tais direitos. Por fim, a quarta razão é pragmática: para que os direitos humanos sejam concretizados, é necessário que todos tenham sobre eles ideias claras, o que é possível somente quando cumprida a tarefa de encontrar razões, isto é, de fundamentar .(LACERDA, 2011, p. 133).

Ainda citando Robles, Bruno Amaro Lacerda destaca a questão da responsabilidade

sobre a realização dos direitos humanos, como explicita no trecho a seguir:

Robles também apela ao princípio da responsabilidade. Para ele, é preciso que os direitos humanos deixem de ser vistos como exigências subjetivas e passem a ser enfocados como “os canais institucionais que permitam a realização dos deveres” (ROBLES, 2005, p.123). Em sua visão, a dignidade da pessoa não consiste em cada indivíduo exigir direitos que julga valiosos para a realização de sua personalidade, mas, em “cada um assumir seus deveres como pessoa e como cidadão e exigir de si mesmo seu cumprimento permanente” (ROBLES, 2005, p. 123). A pessoa toma consciência do seu valor, da sua dignidade, não ao reivindicar infinitamente direitos, mas ao compreender que todos tem o direito de salvaguardar os direitos alheios (LACERDA, 2011, p. 133-134).

Como se observa, se os direitos humanos devem ser considerados como canais

institucionais que permitam a realização de deveres, com maior razão deverão o ser quando

descritos como direitos fundamentais, uma vez que inseridos num sistema constitucional de

proteção e promoção pelo Estado de direito, que possui, e tem como meta atingir, objetivos

prescritos em sua lei maior.

O direito à moradia é um direito humano, fundamental e social, cujo conteúdo

implica em prestações concretas assim como os demais direitos sociais. Buscar-se a sua

fundamentação é tarefa indispensável, como aqui se defendeu, para que se delineie o seu

alcance, o seu propósito e o seu conteúdo. Os direitos sociais, dependentes de prestações

positivas para sua efetivação, demandam aportes de custeio, dos quais nem todas as pessoas

podem dispor. Em consequência, especificamente no tocante ao direito à moradia, a situação

atual no panorama global é verdadeiramente crítica, tanto sob o aspecto deficitário – a

ausência de moradias, quanto sob o aspecto qualitativo das mesmas, vez que o exercício pleno

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do direito à moradia só é considerado se for possível esta moradia ser identificada como

adequada6.

Além deste viés positivo do direito social à moradia deve ser observado o viés

negativo, o viés da proteção contra as ações do Estado, em razão do fato do direito à moradia

ser um direito passível de violações graves, consubstanciadas em práticas urbanísticas

justificadas pelo progresso e reorganização urbana, que, na verdade, constituem verdadeiras

remoções e, consequentemente, lesões a este direito, o que é rechaçado pelos documentos

internacionais de direitos humanos. Neste ponto fica clara a necessidade da fundamentação

ética no princípio da dignidade da pessoa humana todas as vezes que se pensar em alguma

intervenção no espaço que venha a ameaçar o direito à moradia, já que estas lesões

corresponderão à lesões à pessoa , ofensivas à sua dignidade

Conclusão

O direito à moradia, previsto como um direito humano e também como um direito

fundamental social é um direito de demandas muito específicas, que atingem o homem em

diversos aspectos de sua personalidade: sua saúde, sua intimidade, sua individualidade e seu

patrimônio. Além disso, é um direito que tem uma importância significativa sob o ponto de

vista coletivo, uma vez que os agrupamentos habitacionais criam identidades e até mesmo

afirmam culturas. Por outro lado, as lesões a este direito sempre afetarão as pessoas não só

sob o ponto de vista individual, mas, por muitas vezes, sob o ponto de vista coletivo.

A sua previsão expressa pela Constituição da República no rol dos direitos

fundamentais sociais, o que ocorre em 2000, veio para afirmar necessidades presentes num

mundo globalizado de se enfrentar o problema da moradia, tanto sob o ponto de vista de sua

promoção quanto da sua proteção. Assim, a inclusão expressa no texto constitucional vem

acompanhar esse movimento internacional de promoção e proteção dos direitos humanos a

respeito da efetivação deste direito.

O momento em que este direito chega a ser previsto de forma expressa na Carta

Magna é o momento no qual afirma a ética da solidariedade, a ética baseada na concepção

transindividual do homem que, sem negar que este é um ser individual, considera sempre a

6 No tocante ao conceito de moradia adequada, vai bem Ingo Wolfgang Sarlet (2009) quando afirma que o legislador constitucional acertou ao não adjetivar o direito à moradia como moradia adequada pois à luz da Carta Magna não se pode, em qualquer hipótese, se ter uma interpretação deste direito como um direito à moradia não adequada ou não descente. Disponível em http://www.direitodoestado.com/revista/RERE-20-dezembro-2009-INGO-SARLET.pdf. Acesso em 13 de março de 2013.

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sua condição de ser que coexiste. E por ser um direito, como afirmado por tantas vezes,

relacionado a aspectos tão intrínsecos da natureza humana é que se faz necessária a busca de

sua fundamentação ética, que se torna possível com o princípio da dignidade da pessoa

humana.

Este princípio assume o papel de delinear o conteúdo do direito à moradia no que diz

respeito à pessoa em seu aspecto mais humano – a sua personalidade, a sua identidade. A

fundamentação é o único caminho para a promoção e proteção do direito à moradia da forma

como se almeja, que é a adjetivando como adequada.

Num panorama constitucional, o princípio da dignidade da pessoa humana,

trabalhando conjuntamente ética da solidariedade, é que vai tornar possível a promoção

concreta da igualdade de existência digna, identificando o homem como o fim de toda e

qualquer ação do Direito e realizando os objetivos fundamentais da República.

Referências

ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 10.ed. Tradução de Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. BARRETTO, Vicente de Paulo. Reflexões sobre os direitos sociais. In SARLET, Ingo Wolfgang (org.) Direitos Fundamentais Sociais: Estudos de Direito Constitucional, Internacional e Comparado. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. BRASIL, Câmara dos Deputados. Projeto de Emenda Constitucional n.º 601. Brasília, 15 de dezembro de 1998. Disponível em: www.camara.gov.br. Acesso em 13 de março de 2013.

BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho; apresentação de Celso Lafer. Nova Edição. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 12.ed. São Paulo, Malheiros, 2002. CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. 5.ed. São Paulo: Ática, 1995. COSTA, Maria Amélia da. A dignidade humana como fundamento do direito à moradia. In MELLO, Cleyson de Moraes Mello e COELHO, Nuno M. M. S. (Coord.) Fundamentos do Direito na Contemporaneidade. Estudos em homenagem ao professor Paulo Nader. Juiz de Fora: Editar, 2011. FERNANDES, Marlene. Agenda Habitat para Municípios. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Administração Municipal, 2003. Em: http://pt.scribd.com/doc/37257284/Agenda-Habitat. Acesso em 13 de março de 2013.

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O ESPAÇO PÚBLICO PRISIONAL – INFLUÊNCIAS NAS SUBJETIVIDADES, IMPACTOS NOS DIREITOS DA PERSONALIDADE E A INCIDÊNCIA DOS

DIREITOS FUNDAMENTAIS

THE PUBLIC SPACE PRISON - INFLUENCES IN SUBJECTIVITIES, IMPACTS THE RIGHTS OF PERSONALITY AND IMPACT OF FUNDAMENTAL RIGHTS

Cristhian Magnus De Marco1

André Luiz Alves2 Resumo A eficácia de direitos fundamentais exige esforços interdisciplinares. Além de uma dogmática constitucional adequada e voltada para a realização da dignidade humana, são necessários empreendimentos conceituais afins nos domínios do direito civil, do direito penal, da psicologia, da pedagogia e de outros conhecimentos científicos correlatos. O presente artigo procura enlaçar algumas possibilidades desses saberes, com pesquisa aplicada, apontando, ao final, experiências positivas para a mudança de paradigmas e para o desenvolvimento dos direitos da personalidade. O texto tem como pressuposto uma concepção ampla dos direitos da personalidade, por meio da qual é possível sempre uma expansão do seu âmbito de proteção. É importante dizer, ainda, que as pesquisas aqui relatadas foram patrocinadas por programas institucionais de iniciação científica. Palavras-chave: direitos fundamentais; direitos da personalidade; subjetividades; espaço público; prisão. Abstract The effectiveness of fundamental rights requires interdisciplinary efforts. Besides a dogmatic constitutional right and toward the realization of human dignity, like conceptual developments are needed in the areas of civil law, criminal law, psychology, pedagogy and other related scientific knowledge. This paper seeks to ensnare some possibilities of this knowledge with applied research, pointing out, in the end, positive experiences for changing paradigms and the development of the personality rights. The text must presuppose a broad conception of personality rights, through which is always a possible expansion of its scope of protection.   Importantly, though, that the research reported here were sponsored by institutional programs of scientific initiation. Keywords: fundamental rights; personality rights; subjectivity; public space; prison.

                                                                                                                         1 Professor e pesquisador da Universidade do Oeste de Santa Catarina; Mestre em Instituições Jurídico-Políticas pela Universidade Federal de Santa Catarina; Doutor em Fundamentos Constitucionais do Direito Público e do Direito Privado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; [email protected]. 2 Professor da ACADEJUC – Academia de Justiça e Cidadania de Santa Catarina; graduando em Direito e bolsista do PIBIC/Unoesc 2010-2013; pós-graduando em Psicopedagogia Institucional; Bacharel em Pedagogia; Especialista em Ação Interdisciplinar Aplicada ao Processo Ensino-Aprendizagem com Ênfase nos Paradigmas Atuais da Educação; [email protected].

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1 Introdução

Reunindo esforços teóricos e práticos, os autores do presente artigo utilizam resultados

de pesquisas de campo realizadas de 2010 a 2012, sob o patrocínio de programa de iniciação

científica, para enfrentar a problemática da eficácia de direitos fundamentais no ambiente

prisional. Trata-se de enfoque interdisciplinar que utiliza o direito ao desenvolvimento da

personalidade como ponto de convergência. Quanto aos procedimentos metodológicos, houve

pesquisa bibliográfica e entrevistas semiestruturadas.

Para os fins deste artigo importa inicialmente estabelecer um acordo semântico para

espaço público na perspectiva da Teoria dos Direitos Fundamentais. O espaço público

constitui-se essencialmente no local de conectividade entre os particulares, regido por

princípios constitucionais que têm como valor normativo a proteção da dignidade da pessoa e

os direitos da personalidade. Nesse norte, compreende-se necessária a reconstrução de

instituições jurídicas, a partir da eficácia dos princípios constitucionais norteadores e

conformadores da vida social.

Na mesma esteira, cumpre analisar a relação entre espaço público e subjetividades,

numa perspectiva de intercomplementariedade, posto que o espaço público é formado por um

coletivo de subjetividades e estas se desenvolvem sob forte influência dos espaços públicos

com os quais interagem.

Observa-se entre essas áreas [espaço público e subjetividades] um ponto de contato e ao mesmo tempo uma lacuna. O ponto de contato é a influência contínua e recíproca entre subjetividades e espaço público, compreendido este último como lugar de desenvolvimento e realização das subjetividades. A lacuna está na carência de análises sólidas a respeito da eficácia dos Direitos Fundamentais e dos métodos de aplicação nas hipóteses concretas, nos novos conflitos surgidos no âmbito da vida social contemporânea (DE MARCO e ALVES, 2012, P. 499).

Se existem carências de análises sólidas no que tange à eficácia dos Direitos

Fundamentais e de seus métodos de aplicação às hipóteses concretas incidentes nas mais

diversas áreas do vasto e multifacetado campo da sociedade humana, conforme se verificou

acima, tal carência se apresenta de forma ainda mais acentuada no espaço público objeto do

presente estudo: a prisão. Assim, o presente empenho investigativo objetiva contribuir, ainda

que modestamente, para a redução de tal carência.

Cumpre esclarecer que os pressupostos apresentados nesta pesquisa são aplicáveis às

prisões em sentido amplo, abrangendo desde os chamados presídios e cadeias públicas

(destinados ao internamento de presos provisórios), as penitenciárias (destinadas ao

internamento de condenados em regime fechado), até as colônias agrícolas ou industriais

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(destinadas ao internamento de condenados em regime semiaberto). Os pressupostos da

pesquisa estendem-se ainda para as demais instituições de internamento por determinação

legal, tais como hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico e estabelecimentos destinados

à aplicação de medidas socioeducativas, ressalvando-se, contudo, que estes últimos, pelas

especificidades do público que atendem, devem ser objeto de maior nível de proteção,

conforme estabelecido nos diplomas legais próprios que os regulamentam.

Portanto, para as finalidades do presente estudo, concebe-se a prisão como gênero da

espécie instituições de internamento por determinação legal, cabendo os pressupostos da

pesquisa aqui mencionados tanto à prisão quanto às demais categorias mencionadas. Tendo

em conta tais especificidades, são referidos como sinônimos no decorrer do estudo os termos

espaço público prisão e espaço público de internamento por determinação legal, sendo

utilizado o termo prisão com finalidade didática, pela sua força simbólica representativa da

condição de cerceamento da liberdade a que estão sujeitas as pessoas nesses espaços.

Pressupõe-se ser a sinonímia apropriada pelo fato de que a metodologia aqui proposta pode

ser adotada em linhas gerais, com pequenas adaptações às circunstâncias específicas, aos

internos de todas as modalidades de instituições de internamento por determinação legal.

2 O ESPAÇO PÚBLICO PRISÃO E SUAS INFLUÊNCIAS NAS SUBJETIVIDADES DOS INTERNOS Apesar de a lei de execuções penais pátria determinar, em seu artigo terceiro, que “Ao

condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou

pela lei” (BRASIL, 1984), a realidade que se apresenta nas instituições de internamento por

determinação legal brasileiras tendem se apresentar de forma acentuadamente distante deste

enunciado.

Muito embora isso não seja, por assim dizer, “privilégio” da realidade brasileira, pois

na esmagadora maioria dos países a prisão tem sido considerada uma instituição falida e,

apesar disso, “uma detestável solução da qual não se pode abrir mão” (FOUCAULT, 1983),

cumpre envidar esforços viabilizadores de avanços frente ao deplorável quadro que tende se

configurar em tais espaços públicos, com suas pérfidas influências nas subjetividades.

As prisões têm se constituído, em regra, em espaços públicos típicos de degradação

humana e condicionamento à estagnação volitiva. Nesse sentido, segue abaixo excerto de

relato de detento condenado por assalto:

[...] Imagine 4 ou 5 homens presos 21 horas [por dia] em uma cela de 2 por 3 metros, quais são as ideias que saem da boca! Furtar, matar, roubar e traficar. Os que não têm muito a perder acabam entrando nessa e não conseguem

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mais sair. Em alguns casos a família abandona, ao ver que não tem mais jeito. O mundo é tão grande e nós aqui isolados da sociedade, cada vez ficando mais burros, e o mundo evoluindo [...] (G. F. 2010).3

Tal estado de coisas tende também a gerar naqueles que não conseguem vislumbrar

outras possibilidades, a pseudo impressão de que, após cometerem os crimes, a prisão passa a

consistir em uma espécie de tempo e espaço de “férias” - mesmo que forçadas. Período que

tais indivíduos tendem utilizar para reciclar os conhecimentos sobre aquilo que costumam

praticar -onde soem aprimorar com seus pares as técnicas e os projetos para novas investidas

na criminalidade. É o que se observa no relato de interno condenado por tráfico de drogas:

[...]Eu fiz coisas erradas, vendi droga, mas eu não quero nunca mais voltar prá esse lugar. Errei, mas não quero continuar no erro. Mas tem gente ali que fica dizendo que quando sair vão fazer uns “adianto”, roubar, traficar... Ficam trocando informação, dizendo onde conseguir droga, como comprá carro clonado... Eu chego me arrepiá de vê tudo isso... (O. V. 2010).4

Para pessoas que tendem reincidir em tais práticas, auto-abandonados em um estado de

deplorável degradação humana, observou-se no decorrer da pesquisa que tornam-se comuns

expressões como: “Não dá nada mesmo. A gente come e dorme de graça aqui”, etc. Nessa

perspectiva a prisão, projetada para punir, nem sequer essa finalidade consegue atingir,

malgrado os esforços dos que acreditam ser a política do “quanto pior melhor” (no sentido da

precarização das condições de vida para os presos) a solução para a questão. Ironicamente,

uma das características mais expressivas do ser humano, a adaptabilidade, que tornou possível

a evolução da espécie nas condições mais inóspitas, aplica-se na prisão em uma perspectiva

negativa: não vislumbrando outras possibilidades, essas pessoas tendem a se adaptar inclusive

à cruel realidade da prisão, porém com nefastas consequências. Ali se submetem ao chamado

processo de prisionização, sobre o qual se expressa com peculiar propriedade a pedagoga

especializada em Psicopedagogia Valentina Luzia de Jesus (2007, p. 2-3):

O ser humano ao ser condenado à pena de reclusão, não perde somente o direito de exercer livremente suas ações e passa, então, a incorporar uma série de normas que lhe são impostas, passando a fazer parte de um novo contexto social, levando-o a lidar com diferentes aspectos da vida [...]na prisão [...] faz com que o indivíduo que já produziu a violência, reproduza-a de forma mais ofensiva, pois de acordo com os autores [Foucault e Zaffaroni], a prisão é um local não só de exercício da violência, como também, de sua produção e reprodução, ela danifica, vulnerabiliza o indivíduo, destrói toda sua dignidade humana [...] Enquanto permaneceu em uma prisão, esse indivíduo não pôde participar da evolução que o mundo sofreu. Foi submetido a diversas formas de violência. Com isso, afastou-se de sua família e do convívio social, e o pior, afastou-se de si próprio, já não

                                                                                                                         3Detentos entrevistados no decorrer da pesquisa Motivação e mobilização para a aprendizagem - construindo caminhos para a eficácia reeducacional nos sistemas prisional e socioeducativo (ALVES, 2011). 4Idem.

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se reconhecendo, muitas vezes, como pessoa, integrando-se cada vez mais ao convívio prisional, muitas vezes perdendo a sua própria identidade [...] Baseado nos estudos feitos sobre a história da prisão e a prisionização, pode-se ressaltar que os estabelecimentos penais servem a um propósito: “varrer” da sociedade aquilo que a incomoda, que representa um problema, levar para longe o “lixo”, o “entulho” que pode causar mal, sem a preocupação sobre como esse “lixo” vai ser tratado. A exemplo dos leprosos da Idade Antiga e Média ou dos loucos de todos os gêneros, o criminoso deve ser eliminado do convívio social, longe dos olhos de todos, sem lembrar que algum dia estará na sociedade, deformado e mais ofensivo (DE JESUS, 2007, p. 2-3).

No entender de Zaffaroni (1991), tal processo de prisionização se estabelece com

maior ou menor nível de precariedade, à medida que mais ou menos aprimorada – ou

civilizada – é uma sociedade.

É verdade que no mundo temos sistemas penais seletivos, mais violentos, mais reprodutores de violência e sistemas menos violentos, menos reprodutores de violência. Isso é verdade, sem dúvida. Como regra geral, poderíamos dizer que o sistema penal é mais seletivo, mais violento, mais reprodutor de violência quanto mais estratificada seja a sociedade, quanto maior seja a polarização da riqueza numa sociedade, quanto maior seja a injustiça social nessa sociedade. E que é menos seletivo, menos violento, menos reprodutor de violência, quanto menor seja a grande injustiça social da sociedade (ZAFFARONI, 1991, p.53).

Neste diapasão, De Jesus (2007) avalia que no interior da prisão reproduzem-se,

adaptadas da sociedade, estruturas sociais próprias, reproduzindo-se inclusive a estratificação

social, as relações de domínio e opressão, face ao que alguns presos, mesmo em sua minoria,

passam a ser investidos de poder e prestígio. Exercem sua autoridade opressora sobre outros

internos, os quais, nesse contexto, além de sofrer a sanção punitiva do Estado, passam a ser

também submetidos às leis e regras que são próprias dos “xerifes” das prisões. Considera que

tal realidade, evidenciada no dia-a-dia que se estabelece no sistema prisional, talvez seja uma

forma de viabilizar a sobrevivência, necessidade decorrente do processo de prisionização. Tal

fenômeno é também analisado por Cohen e Augustinis (2002, p.1):

Se observarmos o meio penitenciário, do mesmo modo que olhamos a macrossociedade, veremos que também lá existem várias estruturas sociais: presos que passaram a ser os poderosos, os ricos, os de prestígio, os prestadores de serviços sexuais, os alcaguetes, os traficantes. Situação essa que poderá ser temporária, vigente nesse microcosmos prisional, que não necessariamente tenha a ver com o passado e nem com o futuro além do presídio [...] O sistema penitenciário aparentemente funciona como um sistema repressor da autonomia dos indivíduos que cometeram algum ato ilícito, tipificado pelo Código Penal Brasileiro, tendo como finalidade puni-los ou tratá-los. Esta atitude heterônoma visa a reenquadrar o indivíduo infrator ao convívio social, segundo as normas legais. Mas, se olharmos para o fenômeno da "prisionalização" [termo equivalente a prisionização], ou seja, o aparecimento de uma cultura própria dos presídios, veremos que lá se estrutura uma sociedade autônoma, com funções sociais diferenciadas e leis

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próprias. Quando nos distanciamos para analisar estas duas sociedades, macro (exterior aos presídios) e micro, observamos que ambas são arrogantes e prepotentes, portanto intolerantes a uma convivência conjunta e complementária. Acreditamos que somente quando a sociedade se estruturar de um modo mais tolerante, portanto mais continente dessas angústias, plasmar-se-á nos indivíduos o respeito à autonomia.

Na mesma esteira, considera Thompson (1980), que toda a pessoa encarcerada sofre,

em determinada medida, o processo de prisionização, que se inicia com a perda de seu status

original, transformando-se abruptamente em uma figura anônima, integrante de um grupo de

subordinados. Assim, todo encarcerado sucumbe, em maior ou menor grau, à cultura da

prisão, a qual se constitui um sistema de poder que se caracteriza como totalitário e formal,

controlando o indivíduo durante as 24 horas do dia.

A realidade acima descrita contrapõe-se aos próprios princípios filosóficos que

embasam o sistema prisional, conforme Cohen (2009, p. 26):

[...] considerando que um dos princípios filosóficos que sustentam o sistema prisional é o da defesa social, que é o de proteger a sociedade com relação ao indivíduo que cometeu um ato antijurídico [...] como na prática se deve realizar essa proteção social e como se deve tratar de forma humana essas pessoas a serem custodiadas e ao mesmo tempo reabilitá-las ao convívio social?

O questionamento de Cohen pauta-se no estado de coisas apresentado acima,

caracterizado pelo processo de prisionização. Tal realidade fática em que tende descambar o

sistema prisional tanto não protege a sociedade com relação aos que cometeram os atos

antijurídicos, quanto tende a acometer de forma contundente, além dos internos, também uma

outra categoria de integrantes do espaço público prisão: os funcionários que operacionalizam

essas instituições, conforme se verifica abaixo.

3 O ESPAÇO PÚBLICO PRISÃO E SUAS INFLUÊNCIAS NAS SUBJETIVIDADES DOS FUNCIONÁRIOS QUE AS OPERACIONALIZAM

Quanto às influências do espaço público prisão nas subjetividades dos funcionários

que atuam na órbita prisional, de acordo com Moraes (2005, p. 211), o processo de

prisionização também os atinge contundentemente:

A vida nessa “microcidade fechada” é um forte indutor de identidade que partiria da mortificação da identidade produzida no mundo livre que tem no trabalho, no emprego e na profissão, um forte referencial. (...) na prisão o interno deve aprender, e muito rapidamente, a ser um preso, mediante um processo acelerado de socialização ao/no universo prisional, uma vez que

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disso pode depender a sua sobrevivência. A essas pressões encontram-se também submetidos os agentes penitenciários que precisam também muito rapidamente entender a dinâmica da prisão.

Para De Jesus (2007) a vida carcerária constitui-se em uma dinâmica tipicamente

massificante e as influências da prisionização tendem se estender aos funcionários que

operacionalizam as prisões. Assevera que isso ocorre devido à inevitável interação que tais

funcionários mantém com um ambiente onde, sobretudo para o preso, o processo de

prisionização tende a desorganizar a personalidade e a induzir à perda da identidade

originária, com a consequente formação de uma nova identidade. Tal contexto tende a

concitar no indivíduo o sentimento de inferioridade, o empobrecimento psíquico, a

infantilização, a regressão, levando-o à busca desesperada por proteção, a qual pode se dar de

diversas formas, tendendo esse processo a torná-lo adicto, ou seja, um ser dependente,

reduzindo-o, em alguns aspectos, à condição análoga à de escravo ou de incapaz. E tais

peculiaridades dos internos tendem levar os funcionários das prisões, ao interagirem com tal

público, a se comportar de forma destoante com o que comumente se aceita como usual a

sociedade de modo geral. Principalmente no que tange à naturalização do exercício da

repressão, que tais funcionários se vêm como que obrigados pelas circunstâncias a praticar,

tendendo com isso a incorporar tais comportamentos tipicamente repressores, os quais lhes

são mostrados como os únicos possíveis, sem possibilidades alternativas. Métodos

brutalizantes e estagnadores do potencial humano tendem lhes ser apresentados como

procedimento padrão imutável na operacionalização tradicional ou convencional das prisões.

Com isso tendem a absorver gradativamente - e sem que se apercebam disso - os

comportamentos que caracterizam as pessoas autoritárias, com as respectivas consequências.

Tal tendência decorre da perspectiva histórica das prisões, as quais tradicionalmente

estiveram sob a égide das Secretarias de Estado da Segurança Pública, ou equivalentes, aos

cuidados de corporações formadas por policiais militares ou por policiais civis. Os militares

tendiam a manter sob sua responsabilidade os estabelecimentos de maior envergadura, como

penitenciárias e grandes presídios. Já os policiais civis tendiam a manter sob sua

responsabilidade as cadeias públicas, que tradicionalmente se localizavam anexas às

delegacias. Tal arranjo estrutural ainda se apresenta nesse formato em alguns estados

brasileiros. Porém a tendência modernizadora da gestão penitenciária tende à especialização,

separando as funções dos profissionais designados para efetuar a prisão dos infratores

(policiais militares), daquelas que cabem aos profissionais que os enquadram legalmente e

realizam procedimentos de investigação (policiais civis) e, em um terceiro nível de

especialização, das que cabem aos profissionais que atuam no monitoramento da execução

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penal (funcionários das prisões, que executam as tarefas de manter sob custódia os

sentenciados, sob os parâmetros da Lei de Execuções Penais).

No que tange às especificidades das funções das diversas categorias de agentes da lei

(agentes policiais militares, agentes policiais civis e agentes executores da lei que atuam em

prisões) foram entrevistados no decorrer da pesquisa diversos profissionais integrantes de

todas essas instâncias, com vistas a prospectar as particularidades de cada uma dessas

funções. Verificou-se entre os policiais militares entrevistados que nenhuma das ocorrências

por eles atendidas chegaram ao lapso temporal de uma hora. Embora com diversas situações

extremamente tensas, em meio a reações verbais e físicas dos elementos abordados, a

interação com os suspeitos/transgressores da lei limitou-se a alguns minutos, encaminhando-

se os mesmos para a polícia civil. Nas entrevistas com os policiais civis, aos quais cabe

basicamente proceder investigações e realizar o enquadramento legal das infrações dos

suspeitos/infratores, identificou-se que o lapso temporal de interação com os mesmos tende se

limitar a algumas horas. Não foi identificada, entre os entrevistados, nenhuma situação em

que tal lapso temporal superasse vinte e quatro horas. Procedido o enquadramento legal, via

de regra, os policiais civis encaminham os suspeitos/transgressores para os presídios. Aí, sob

a supervisão dos funcionários das prisões, os suspeitos/infratores tendem permanecer de

alguns dias a algumas décadas, dependendo da gravidade de infração apurada.

Embora haja tanto o reconhecimento da necessidade quanto a prescrição legal de uma

abordagem diferenciada, tendo em vista o lapso temporal que tende ser estendido nas

unidades de internamento por determinação legal, há a tendência tradicional da permanência,

na maioria das instituições, da abordagem de cunho tipicamente militar. Tal abordagem se

caracteriza pelo enfoque eminentemente repressivo, fruto da tradição militar, da época em que

os operacionalizadores prisionais militares atuavam com o maior rigor possível para com os

presos, com o intuito de desagravar os colegas com os quais estes haviam se defrontado.

Agiam assim também os militares operacionalizadores das prisões pelo hábito imanente ao

policial militar de intervir energicamente nas situações operacionais tensas e delicadas que

tendem se apresentar nas abordagens policiais. Porém tais práticas se constituem anacrônicas

para o contexto de especialização das instâncias da segurança pública esclarecido acima.

Além de que a pessoa presa já chega à prisão dominada, algemada, em um momento em que o

calor do confronto já foi superado.

Embora os tempos sejam outros e a legislação, especialmente com o advento da

Constituição de 1988, prime pelo respeito à dignidade da pessoa humana, independentemente

da condição da pessoa, observa-se que tal vício de natureza cultural tende a se manter nas

prisões. Em especial nos profissionais que não conseguem vislumbrar outras possibilidades de

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atuação e absorveram as práticas tradicionais, arraigadas ao senso comum, práticas estas que

não primam pela técnica contextualizada e nem pela cientificidade na operacionalização de

tais instituições.

De Jesus (2007) considera tanto equivocado quanto desumano esse enfoque

eminentemente repressivo que tende se estabelecer no convívio entre os funcionários das

instituições prisionais e os internos, considerando a segregação operacionalizada em tais

moldes flagrantemente exclusora, ao invés de reintegradora à sociedade. Aduz que, nessa

perspectiva, o indivíduo internado, para poder sobreviver na comunidade prisional, não terá

alternativa que seja se identificar com seus colegas de infortúnio, se integrando dessa forma

na micro cultura deste grupo. Conclui que tal processo tende a fazê-lo se distanciar de forma

gradativamente mais acentuada da sociedade como um todo, ao invés de se reintegrar. E nesse

labirinto, tende se perder a oportunidade que é apregoada pelo contexto jurídico, legal e ético,

de transformar o sistema penitenciário em espaço mediador para a saudável reintegração

social.

Assim, os funcionários prisionais que não tenham o devido preparo para atuar nesse

contexto de forma assertiva – vislumbrando possibilidades de e aproveitando oportunidades

para atuar como agentes estatais a quem cumpre dar exemplo de civilidade aos internos -

tendem cair na armadilha limitante e limitadora imposta pela cultura prisional tradicional,

tornando-se perpetradores da reprodução desse círculo vicioso. Tal cultura lhes reserva a

incômoda perspectiva de perpetrar e perpetuar o exercício do famigerado “direito penal do

inimigo”, vendo nos internos inimigos e sendo por eles considerados como tal. Na análise de

Santos (2009, p. 34) os funcionários das prisões estão permanentemente expostos aos

seguintes riscos, além dos demais que já são reconhecidos:

[...] a prisionização representa um processo, pelo qual o indivíduo vai assumindo os influxos perniciosos da prisão que o potencializam para o crime, que o acomodam à vida carcerária e que o distanciam dos valores e padrões sociais normais. Isso significa que aos poucos o sujeito se integra aos costumes, valores e normas comuns aos detentos, da mesma forma que se estigmatiza e se criminaliza. Nessa perspectiva, fica demonstrado que as relações interpessoais que se realizam no cárcere representam danos tanto para os servidores quanto para os detentos.

Sem um preparo intenso, profundo e abrangente, que capacite tais profissionais a

tornarem-se imunes, em níveis gradativamente mais elevados, aos graves processos de

deterioração psíquica que tendem ser deflagrados pelo processo da prisionização, a tendência

é a inevitável queda de tais profissionais na vala degradante da violência.

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Assim, cidadãos de bem, envolvidos nas lides das prisões, tendem ser arrastados de

roldão e inadvertidamente a incorrer em condutas tipificadas no código penal como crimes, se

integrando ao processo de perpetuação do círculo vicioso da violência. Tende se estabelecer

assim no espaço público prisional, como lugar comum, a absurda e paradoxal situação que

pode ser ilustrada com a sentença “cegos guiando cegos” - com as deletérias consequências

para todos os envolvidos nesse processo.

Cumpre, portanto, municiar os funcionários dos estabelecimentos de internamento por

determinação legal com recursos que os instrumentalizem para atuar com a devida tecnicidade

e cientificidade, de modo a evitar a queda na vala comum da violência e a consequente

degradação humana que ela gera. Tal providência se constitui de valor fundamental para a

preservação da dignidade humana desses profissionais.

4 IMPACTOS NOS DIREITOS DA PERSONALIDADE GERADOS PELAS INFLUÊNCIAS NAS SUBJETIVIDADES QUE TENDEM SER PRODUZIDAS NO ESPAÇO PÚBLICO PRISÃO

O contexto apresentado acima revela a precarização do fruir dos direitos da

personalidade tanto do público interno das prisões quanto dos funcionários que as

operacionalizam na perspectiva tradicional - pelo fato de tenderem a se estabelecer nestes

espaços processos de degradação humana que arrastam tanto os internos quanto os

funcionários para espirais descendentes de desenvolvimento humano.

Nessa perspectiva, ao invés de desenvolvimento das personalidades, tende se

estabelecer a degradação das mesmas, ao serem submetidas a processos de desenvolvimento

invertidos, que se dão em sentido contrário à evolução, na contramão da própria história, por

adentrarem na vala comum das relações autoritárias, que induzem às práticas da violência, da

opressão e da tirania.

Tal realidade se contrapõe ao exercício dos direitos da personalidade, os quais se

constituem nos elementos fundantes da própria dignidade humana, destinados a salvaguardar

o desenvolvimento do ser humano - o pleno desenvolvimento das potencialidades humanas

(GODOY 2001). Nessa esteira, o direito geral da personalidade é concebido como “emanação

da condição humana e resultado da admissão da capacidade da pessoa, porque dotada de

dignidade, de se autodeterminar, de guiar sua existência e de se desenvolver (GODOY 2001,

p. 22).” Historicamente, tal direito geral da personalidade recebeu especial destaque no artigo

2o, no1 da Constituição alemã de 23 de maio de 1949: “ressalvados direitos de outrem,

contidos nas normas constitucionais e morais, ‘cada um terá direito ao livre desenvolvimento

de sua personalidade’(Freie Entfaltung der Persönlichkeit).”

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A partir de tal reconhecimento, passou-se à construção de um quadro jurídico que

proporcionou a retomada do conceito de um direito geral de personalidade, compreendido

como a prerrogativa tanto da conservação quanto do desenvolvimento da própria

individualidade, do valor que é intrínseco ao homem, o conteúdo de sua dignidade, um

verdadeiro “direito-fonte” ou “direito-matriz”, do qual, conforme assenta Mattia (1978, p. 40-

41), decorrem outros, positivados e igualmente garantidos, mesmo contra o Estado, que são os

chamados direitos da personalidade.

Tal dignidade engloba, de acordo com Canotilho (1996, p. 363) os direitos da

personalidade e os direitos fundamentais do indivíduo, consagrando tanto a afirmação da sua

integridade física e espiritual quanto a garantia do desenvolvimento de sua personalidade,

bem como a defesa de sua autonomia individual. E ainda, conforme Farias (1996. p. 45-50),

tal dignidade é compreendida em seu sentido lato, na perspectiva negativa, como o mínimo

respeito a que faz jus qualquer pessoa por sua condição humana. Já na perspectiva positiva, a

compreensão de tal dignidade refere-se ao que atém à garantia das condições mínimas para

que possa o indivíduo desenvolver suas potencialidades. Para Godoy (2001, p. 24) no modelo

do Estado Social, o princípio da dignidade da pessoa humana consiste na efetiva e positiva

promoção de condições para o desenvolvimento da pessoa, da globalidade de seus elementos.

No entender de Gomes (1977, p. 168) os direitos da personalidade são tão “essenciais

ao desenvolvimento da pessoa humana, que a doutrina moderna os preconiza e disciplina, no

corpo do Código Civil, como direitos absolutos.” Na consideração de Gomes (1977, p. 168)

tais direitos “Se destinam a resguardar a eminente dignidade da pessoa humana, preservando-

a dos atentados que pode sofrer por parte de outros indivíduos”. Canotilho afirma também

(1996, p. 363) que “tal dignidade se constitui valor máximo, compreendendo em seu conceito

desde a afirmação da integridade física e espiritual do homem, até a garantia da sua

autonomia e o livre desenvolvimento de sua personalidade.” Godoy (2001, p. 30) aduz que a

garantia dessa dignidade é justamente “a prerrogativa do ser humano de desenvolver a

integralidade de sua personalidade, todos os seus desdobramentos e projeções.”

Em contraposição a tais enunciados, verifica-se na realidade registrada nos tópicos

anteriores que ambas as categorias de pessoas – internos e funcionários do espaço público

prisão, dentre estes últimos em especial os dedicados às chamadas atividades de segurança –

tendem ser arrastadas inadvertidamente pela cultura que caracteriza o processo de

prisionização, caindo como que em uma armadilha nesse sentido, tendo assim gravemente

prejudicados os seus processos de desenvolvimento como seres humanos.

Portanto, no contexto tradicional das instituições de internamento por determinação

legal, tanto os internos quanto os funcionários que operacionalizam tais instituições tendem

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ser coartados em seus direitos da personalidade, envolvidos reciprocamente em círculos

viciosos que são ao mesmo tempo interdegradantes e autodegradantes, na contramão do pleno

desenvolvimento de suas potencialidades humanas. Face a tal realidade, propõem-se a seguir,

no tópico 6 do presente estudo, alternativas para reverter gradativamente tal estado de coisas,

na perspectiva da efetivação nestes espaços públicos dos direitos da personalidade acima

abordados.

5 INCIDÊNCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS SOBRE AS SUBJETIVIDADES DOS ORBITANTES DO ESPAÇO PÚBLICO PRISÃO E IRRADIAÇÕES DESSA INCIDÊNCIA NA LEGISLAÇÃO VIGENTE.

Na perspectiva apresentada acima, com a meridiana clareza de ser a dignidade da

pessoa humana princípio fundante da nossa CRFB, de que esta dignidade se efetiva através do

exercício dos direitos da personalidade e que estes, por seu turno, se destinam a dar guarida ao

pleno desenvolvimento das potencialidades humanas –o que se sintetiza na sentença

desenvolvimento humano - depreende-se ser efetivamente justo e apropriado reportar-se a tal

desenvolvimento humano como norte de tudo o que seja praticado no espaço público prisão.

Nesse diapasão, a Lei no 7.210, de 11 de julho de 1984, que regulamenta as execuções

penais - recepcionada pela CRFB de 1988 - determina em seu artigo 1o: “A execução penal

tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar

condições para a harmônica integração social do condenado e do internado.” Toda a

arquitetura dessa lei se estabelece de modo a proporcionar a efetivação de ambas as

dimensões mencionadas no artigo retro-mencionado: por um lado a efetivação das disposições

da sentença ou decisão emanada do Poder Judiciário e por outro lado, complementarmente – e

não opcionalmente – proporcionar as condições necessárias para a saudável integração social

do condenado e do internado.

As legislações decorrentes de tal ordenamento, no âmbito dos estados federados,

seguem por força normativa constitucional os mesmos parâmetros, não sendo necessárias

maiores delongas a respeito delas. Esse é o dever ser estabelecido pelo Direito, é o que

efetivamente deve ser feito.

Contudo o Direito, como ciência social aplicada, precisa se socorrer nas mais diversas

ciências, numa perspectiva sistêmica, interdisciplinar, para que seus desideratos possam ser

atingidos - para não se limitar à condição de “letra morta”, designadora de meras disposições

programáticas renhidas com a realidade. A presente pesquisa teve como objetivo a busca de

respostas sobre como tornar realidade efetiva o respeito aos direitos da personalidade – os

quais se constituem a forma prática de efetivação do princípio da dignidade pessoa humana,

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conforme se verificou acima - tanto no espaço público prisão quanto nos demais espaços

públicos de internamento por determinação legal. Para tal, dentro das possibilidades

conjunturais encontradas, buscou-se criar condições favorecedoras do desenvolvimento

humano tanto dos internos quanto dos operacionalizadores das instituições de internamento

por determinação legal nas quais a pesquisa foi aplicada.

6 OPERACIONALIZAÇÃO PRISIONAL COM ABORDAGEM INTERDISCIPLINAR, NORTEADA ESTRATÉGICA CIENTIFICAMENTE E FOCALIZADA NO DESENVOLVIMENTO HUMANO

Insensatez é fazer as coisas sempre da mesma maneira e esperar resultados diferentes. (Albert Einstein)

Para que efetivamente sejam investidos de eficácia os direitos da personalidade das

pessoas que se encontram, por determinação legal, internadas em prisões e instituições

similares, bem como dos profissionais que as operacionalizam, há-se de tomar todas as

providências fáticas e jurídicas possíveis no sentido de tornar essas instituições espaços

indutores do desenvolvimento humano das pessoas que neles interagem, conforme verificado

anteriormente.

Na perspectiva da operacionalização prisional com abordagem interdisciplinar, com

norteamento estratégico e científico, focada no desenvolvimento humano, importante

contribuição agregou Carlos Henrique Pereira (2012)5, durante encontro de formação de

docentes de profissionais operacionalizadores de instituições de internamento por

determinação legal. Ao refletir sobre a complexidade das funções dos profissionais que atuam

na operacionalização de tais instituições, concluiu que para fazer frente aos desafios que se

apresentam aos que exercem tais atribuições é necessária uma abordagem com viés

interinstitucional, buscando a contribuição dos conhecimentos e métodos desenvolvidos por

diversas instituições. Destaca-se nesse sentido a necessidade de se buscar, em primeiro plano,

na área das instituições militares, os conhecimentos necessários que habilitem tais

profissionais para o uso da força, para ser utilizada em conformidade com as necessidades que

surgirem, para dar respaldo ao aspecto da segurança. Inclusive para viabilizar a própria

manutenção da incolumidade física dos internos, protegendo-os tanto de eventuais agressões

internas, de uns contra os outros, quanto de investidas externas, como por exemplo a

possibilidade de arrebatamento de presos com fins de vingança. Tais recursos são também

                                                                                                                         5O referido evento foi promovido e sediado pela Acadejuc – Academia de Justiça e Cidadania do Estado de Santa Catarina, em Florianópolis-SC, Julho de 2012.

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indispensáveis para se garantir o cumprimento da determinação legal, no sentido de se evitar

possíveis fugas e também eventuais resgates de presos por seus comparsas.

Porém, face à necessidade de busca de ampliação da perspectiva disposta na

legislação, complementarmente a esse viés essencial, que é o da segurança, o viés educacional

se faz também indispensável e precisa ser contemplado, para que as instituições de

internamento por determinação legal cumpram efetivamente com seus desideratos. Incumbe à

educação complementar o trabalho da segurança para que o prescrito em lei em relação às

instituições de internamento por determinação legal seja cumprido. Se para a segurança as

instituições militares são a referência, há de se buscar métodos apropriados para viabilizar o

outro lado da moeda que permita tornar factíveis as determinações legais de promover as

condições para a harmônica integração social das pessoas submetidas aos internamentos -

conforme prevê o artigo primeiro da nossa Lei de Execuções Penais para as prisões e,

similarmente, as legislações específicas que regem as demais instituições de internamento

congêneres. Portanto, há-se que buscar nas instituições educacionais os conhecimentos e

métodos nelas desenvolvidos e implantá-los, com as devidas adaptações, na órbita dos

espaços públicos de internamento por determinação legal.

Considera-se determinante para tal o preparo dos profissionais que operacionalizam

tais instituições para atuarem na perspectiva de indutores de desenvolvimento humano, ou

no mínimo, investidos conscientemente da condição de colaboradores e favorecedores, no

desenrolar das suas atividades, da deflagração de tais processos de desenvolvimento. Cumpre-

lhes atuar em conformidade com o enunciado na regra 48 do documento intitulado “Regras

mínimas para o tratamento de pessoas presas”, formulado no 1º Congresso das Nações Unidas

sobre Prevenção do Crime e Tratamento de Delinquentes, realizado em Genebra, em 1955 (in

Coyle, 2002, p. 25): “Todos os integrantes do quadro de pessoal, em todos os tempos,

comportar-se-ão e desempenharão suas atribuições de modo a influenciar as pessoas presas

para o bem mediante seu exemplo e de modo a fazer valer seu respeito.”

Com norte nessa regra, foram realizadas experiências a partir da atuação de

profissional dedicado à operacionalização de prisões, buscando-se implementar, no decorrer

das atividades operacionais prisionais empreendidas no decorrer da investigação, ações

favorecedoras do desenvolvimento humano, com abordagem interdisciplinar, respaldada em

princípios científicos e estratégicos.

Visando criar as condições para o efetivo desenvolvimento humano, buscou-se superar

o senso comum, cristalizado nas práticas tradicionais implementadas nas prisões - as quais se

configuram arcaicas e comprovadamente inoperantes no que tange à consecução das

atribuições legais que incumbe às instituições gestoras de tais espaços cumprir. Segue

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descrição de aspectos importantes experienciados no decorrer da pesquisa, no transcurso de

atividades operacionais realizadas em diversos estabelecimentos de internamento por

determinação legal.

Partiu-se da observação de que as práticas ou técnicas operacionais convencionais

aplicadas em tais instituições, utilizadas há séculos, com poucas variações, tendem gerar a

deplorável situação de produzir “vítimas de vítimas”. Ou seja, um contexto no qual tanto os

funcionários das prisões quanto a clientela por eles atendida tendem sofrer efeitos agudamente

danosos em seus processos de desenvolvimento como seres humanos – conforme já se

verificou nos tópicos 2 e 3, acima. A gravidade de tal situação chega a tal ponto que a própria

Organização Internacional do Trabalho classificou a profissão como a segunda mais perigosa

do mundo.

Face à especificidade do desafio enfrentado pela pesquisa, na busca de alternativas

para transformar em alguma medida a realidade observada, adotou-se o posicionamento

epistemológico multirreferencial. Tal postura se constitui, conforme Ardoino e Barbier

(1993), envolvente de leituras complexas, plurais e de diversos ângulos dos múltiplos

fenômenos da realidade, tendo como ponto de partida a determinação de compreender e/ou

intervir sobre uma realidade determinada. Implica buscar onde necessário, sem limitar-se a

um ou outro campo científico, os recursos epistemológicos necessários para viabilizar a

compreensão ou o atingimento dos objetivos de intervenção intentados.

Esse posicionamento torna propícia a aplicação do denominado pensamento lateral

(aberto para novas possibilidades, buscador de alternativas ao convencional, atento a soluções

“fora da caixa”, além do tradicional). Tal modelo de pensamento, aplicado em conjunto, numa

relação de complementariedade com o chamado o pensamento vertical (focado no que já se

domina em relação a determinada questão, pontual, que se atém mais ao “aqui e agora”),

tende a ampliar as possibilidades de sucesso na superação de questões de ordem mais

complexa, que ainda não foram resolvidas pelo chamado padrão de pensamento habitual.

Sobre o pensamento lateral, discorre Hoffmann (2008):

Para Chojolán e Mora (2007), a expressão “pensamento lateral” pode ser usada em dois sentidos: 1) Específico, como um conjunto de técnicas sistematizadas, utilizadas para trocar os conceitos e percepções e gerar outros, novos. 2) Geral, como exploração de múltiplas possibilidades e enfoques, em vez de identificar somente um ponto de vista. Mentruyt (1997) destaca que o pensamento lateral é útil na geração de idéias e de novas maneiras de ver as coisas. O vertical é importante para o encaminhamento e a operacionalização do que foi produzido. Esses dois tipos de pensamento não são antagônicos e sim complementares. São necessários, pois dessa forma dão sentido ao mundo e viabilizam a vida. Para More (2006), o pensamento lateral trata da produção de idéias criativas

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e inovadoras que fogem do padrão de pensamento habitual das pessoas que as executam. A técnica baseia-se em provocações de pensamento para a esquiva do caminho habitual e do padrão de pensamento natural.

Assim, procedeu-se a operacionalização prisional com abordagem interdisciplinar,

com foco no desenvolvimento humano, com norteamento científico e estratégico, valendo-se

de variadas disciplinas de diversas áreas das ciências, tendo nelas como que “caixas de

ferramentas”, às quais se recorreu para solucionar problemas específicos que foram

identificados no dia-a-dia, no decorrer das atividades operacionais nas unidades em que os

estudos foram realizados.

Quanto ao viés científico da abordagem – gerador da superação gradativa das atuações

baseadas no senso comum, partiu-se do pressuposto de que quanto maior for a amplitude do

emprego da ciência, menor será a necessidade do uso da força e melhores serão os resultados

obtidos no sentido da promoção das condições para o desenvolvimento humano no âmbito das

instituições de internamento por determinação legal.

No decorrer das investigações o senso comum foi identificado, tanto na interação com

os funcionários dos estabelecimentos envolvidos quanto com profissionais e acadêmicos que

de uma ou outra forma interagiram com a pesquisa, como o cerne do problema do

arraigamento à cultura da prisionização. Nesse sentido, destaca-se a conclusão de Catiane

Tirloni, Bacharel em Direito, em diálogo travado a respeito do temática aqui em apreço: “A

maioria dos problemas, na vida e no trabalho, somos nós mesmos que criamos.”

Identificou-se como um dos traços do arraigamento ao senso comum as concepções

preconceituosas em relação ao público atendido nos espaços públicos de internamento por

determinação legal. Algumas frases, expressas em uma mensagem veiculada na internet,

sintetizam o pensamento dominante, na perspectiva do senso comum, em relação a tal

público. A referida mensagem é encabeçada com o título “Vagabundos”. Em seguida, a frase

“Como eles são”, com a imagem de bandidos armados e encapuzados sobre uma laje numa

favela. Na sequência, a frase “Como eles nos tratam” e a imagem de um sujeito em pé

apontando a pistola para a cabeça de uma pessoa sentada com os braços para trás. Em

seguida, a sentença: “Como os direitos humanos os vêm” e a imagem de um anjo

candidamente sentado sobre uma límpida pira de água. Ao final, a frase “Como devemos

tratá-los” e a imagem de um grupo de indivíduos enforcados, pendurados lado a lado em um

pórtico. Muito embora tal percepção seja corroborada enfaticamente pela mídia, nos

programas policiais sensacionalistas, cumpre ao profissional que operacionaliza os espaços

públicos de internamento por determinação legal adotar uma postura técnico-científica em

relação a tal realidade.

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Numa análise mais acurada, à luz da ciência, com a devida detenção sobre os fatos e

circunstâncias que tendem levar os indivíduos às prisões, o que se observa é que se tratam

fundamentalmente de pessoas com problemas, de indivíduos que não foram capazes de

encontrar respostas satisfatórias para encaminhar adequadamente suas vidas. Seres que se

encontram existencialmente com seus processos de desenvolvimento humano invertidos, em

espiral descendente. E isso tende se dar em decorrência de diversos fatores: desestruturação

familiar, drogadição, histórico de violência familiar e similares. Em suma:

indivíduos fracassados, em uma situação de fracasso robustamente comprovada pela realidade

em que se encontram: encarcerados, limitados no fruir da própria liberdade, caídos em uma

das situações mais desagradáveis e desgastantes que pode ser passada por um ser humano.

Tal percepção embasada cientificamente contribui em alto grau para evitar que “a

priori” se dispense aos internos um tratamento preconceituoso, áspero, suscitador de

relacionamentos humanos tóxicos. Quando se identifica a realidade em um nível acima do

senso comum, torna-se viável tomar providências preventivas, tanto no sentido de evitar o

recrudescimento da decadência que se processa na prisionização, quanto no viés de contribuir

para a superação de tal situação, através da deflagração de ações promotoras de

desenvolvimento humano.

Quanto ao viés estratégico da abordagem, é de entendimento pacífico que a estratégia

precisa ser aplicada às mais diversas instituições, para possibilitar o atingimento dos

resultados desejados. E a atuação em ambientes de internamento por determinação legal

requer especial atenção a tal aspecto, tendo em vista sua natureza específica. Concluiu-se no

decorrer da pesquisa que a promoção do desenvolvimento humano nessas instituições

constitui-se o que se pode chamar de a providência de maior impacto estratégico para o

sucesso institucional, no sentido ilustrado por Peter Drucker, considerado um dos maiores

gurus da ciência da administração: “A melhor forma de prever o futuro é criá-lo.” A tensa

realidade das prisões, quando contrastada com as providências adequadas no sentido da

promoção do desenvolvimento humano, cede espaço a uma outra realidade, conforme se

demonstra na parte final do presente tópico.

Para se avançar estrategicamente nesse sentido, de transformar decadência em

superação humana, através da conquista de sucessivos patamares de evolução, de acordo com

um planejamento estratégico, uma postura estratégica das mais recomendáveis é a inspirada

pelo pensamento de um dos mais renomados estrategistas de todos os tempos:

Com o espírito aberto e livre, encare as coisas de um ponto de vista alto. É imprescindível cultivar a sabedoria e o espírito. Refine sua sabedoria: adquira mais conhecimentos sobre a justiça pública, aprenda a distinguir

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entre o bem e o mal, estude os caminhos das diferentes artes, uma a uma. Quando não mais puder ser iludido pelos homens, você terá atingido a sabedoria da estratégia. (MUSACHI, 1974,p. 63, 64).

A observação do espaço público prisão tendo em vista essa perspectiva levou à

conclusão de que a “área de combate” mais producente a ser trabalhada localiza-se no campo

mental, nas mentes das pessoas que interagem nos espaços públicos de internamento por

determinação legal. A partir de tais observações, foram buscadas soluções para os problemas

identificados, na perspectiva estratégica de gerar as condições para tornar tais espaços em

locais propícios ao saudável desenvolvimento das personalidades humanas – tanto dos

internos quanto dos funcionários neles atuantes.

Assim, na busca de ser estrategicamente bem sucedido em tal empreendimento, de

“combater com eficácia no campo mental”, na perspectiva da abordagem interdisciplinar, com

norteamento em princípios científicos e estratégicos e focada no desenvolvimento humano,

recorreu-se primeiramente às ferramentas, ou “armas” disponíveis na órbita das chamadas

Ciências Humanas. Interessante reflexão agregou nesse sentido, em diálogo no decorrer dos

estudos, o Bacharel em Pedagogia Valdir Araújo, ao expressar: “Quem trabalha com gente

precisa entender de gente!” Nessa perspectiva, constatou-se serem pertinentes os pressupostos

da Psicopedagogia, os quais foram identificados com alto potencial de contribuição para a

atuação assertiva, pautada na promoção do desenvolvimento humano nas unidades de

internamento por determinação legal. Em primeiro lugar por proporcionar recursos para os

operacionalizadores de tais instituições estabelecerem uma relação profissional com os

internados, a partir da compreensão básica dos processos psíquicos que lhes são peculiares.

Tais conhecimentos são de suma importância para viabilizar a imposição de limites às

condutas impróprias, mantendo assim a indispensável disciplina na órbita dos

estabelecimentos, porém sem a necessidade da tradicional adoção de posturas autoritárias -

nas mais diversas gradações com que estas podem se apresentar. Ou seja, proporciona lançar

mão da autoridade legítima, consolidada pela atuação coerente, respaldada em pertinentes

argumentos, sem a necessidade de incorrer em arbitrariedades.

Cumpre reiterar que as posturas autoritárias são equivocadamente concebidas como

indispensáveis ao exercício profissional nos estabelecimentos dessa natureza. Conforme se

verificou acima, isso decorre principalmente do tradicional estilo militar de administração de

tais instituições, ou seja, do arraigamento a um passado que todo o arcabouço legal, tanto em

nível constitucional quanto infraconstitucional, insta por superar.

Embora haja a necessidade de demonstrar a realidade da forma tal qual se apresenta,

registra-se que este trabalho não tem por propósito tecer críticas em relação aos profissionais

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que atuam na perspectiva tradicional, a partir da constatação de que não existe propriamente

culpa por parte deles por atuarem dessa forma. Isso porque tão somente reproduzem o que

aprenderam no decorrer da trajetória que empreenderam. O que se deseja é apresentar

possibilidades de atuações diferentes para se vislumbrar o atingimento de resultados diferente

- conforme pontuado no pensamento de Einstein destacado na epígrafe deste tópico - numa

perspectiva estratégica e científica. E também compartilhar alguns resultados da aplicação da

abordagem interdisciplinar com norteamento científico e estratégico, com foco no

desenvolvimento humano.

Importa ainda reconhecer que é perfeitamente compreensível o acometimento por

pruridos de irritabilidade e a consequente reação com arroubos de autoritarismo frente às

malcriações de pessoas que se comportam das formas mais abusadas, folgadas, renhidas com

os mais elementares princípios de civilidade. E que essa tende ser a característica

comportamental de uma significativa parcela das pessoas submetidas a medidas de

internamento por determinação legal - em especial nos estabelecimentos destinados à

aplicação de medidas socioeducativas – e tais comportamentos precisam ser enfrentados, de

uma forma ou de outra.

Porém a convivência com tais indivíduos nesse nível de relacionamento, marcado pelo

autoritarismo, no qual a tensão e o antagonismo predominam, tende afetar tanto a qualidade

de vida quanto a própria saúde dos profissionais que interagem nesse meio. Por um lado, esse

estado de coisas tende gerar o recrudescimento do processo de prisionização, sobre o qual se

discorreu acima. Por outro lado, o estresse e a tensão podem levar, em alguns casos, à

somatização, o que gera a tendência de alguns desses profissionais se tornarem dependentes

de psicotrópicos, álcool, etc., entre outros efeitos danosos que tendem ser gerados por esse

padrão de convivência. Outra consequência complementar também potencialmente danosa é o

risco constante a que estão expostos os profissionais que não conseguem superar tal

perspectiva, de procederem a transposição do padrão autoritário de convivência para as

demais áreas do viver. Quando isso ocorre, tais efeitos tendem se estender para os círculos

familiar e social, onde tendem se estabelecer crescentes dificuldades nos relacionamentos,

pela dificuldade de aceitação, por parte dos circunstantes, dos padrões autoritários de

comportamento inconscientemente incorporados.

Nessa perspectiva, a postura psicopedagógica proporciona a possibilidade de tais

profissionais gerir tais relacionamentos a partir de uma base técnica e científica, tornando-se

apto a gerar transformações gradativas do estado de coisas que comumente se estabelece em

tais estabelecimentos, a partir da compreensão de que se está lidando com pessoas

prejudicadas em seus processos de desenvolvimento humano. Nesse viés, se concebem os

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internos como pessoas portadoras de precariedades cognitivas que lhes dificultam a

compreensão da relação de consequência entre causa e efeito, à semelhança de pessoas que,

embora com o corpo crescido, permanecem em idades mentais e emocionais remotas. Em

alguns casos, por exemplo, são indivíduos que não tiveram os limites quando deveriam ter

tido, ou os tiveram de forma imprópria, talvez até exagerada, ao ponto de apresentarem o

chamado “efeito represa” – comumente observado em criminosos sexuais, os quais,

excessivamente coartados em certos aspectos do viver, em determinado ponto extravasam de

modo descontrolado, conforme esclarecem os pressupostos psicanalíticos em que se embasa a

Psicopedagogia.

Assim, a postura psicopedagógica proporciona ao profissional que atua nessa área a

compreensão de que são as precariedades cognitivas e psíquicas em epígrafe que levam tais

pessoas a incorrer em condutas que geram como efeito a própria autocondenação à

segregação, ao distanciamento dos familiares, à submissão, enfim, à prisão e ao processo de

prisionização. E com base nessas compreensões, contextualizadas aos casos específicos, o

profissional investido da postura psicopedagógica busca promover ou colaborar com a

promoção de ações psicopedagógicas supridoras de tais precariedades nos processos de

desenvolvimento humano dessas pessoas.

A partir de tais compreensões, torna-se viável uma interação técnica, em que se

mantém a disciplina com firmeza, porém com base em um padrão de convivência empático,

em níveis de qualidade que se estabelecem acima da animosidade, da raiva, da hostilidade e as

consequências que estas tendem gerar. Os pressupostos psicopedagógicos propiciam inclusive

a compreensão de que as pessoas podem - e devem – evoluir, modificar padrões impróprios,

superar-se. Tal compreensão proporciona as condições para sair do lugar comum de

simplesmente rotulá-las, no caso, como “vagabundos”. Esse viés psicopedagógico da

abordagem municia os profissionais com técnicas que possibilitam a manutenção de um nível

de convivência baseado no respeito, contribuindo fundamentalmente para a preservação da

qualidade de vida tanto dos internos quanto do próprio profissional. Com isso ele se torna

apto a contribuir na indução do desenvolvimento humano, ao invés de cair na vala comum da

violência e da degradação humana indutora do processo de prisionização, conforme verificado

no tópico 3, acima.

Sobre a questão da dicotomia entre superação X imobilismo, contribui

fundamentalmente o aporte que a Psicopedagogia busca na teoria psicossocial do

desenvolvimento humano, de Erikson (1987). Este autor considera que o contexto

sociocultural é fundamental para o desenvolvimento do indivíduo, sendo tal circunstancial em

que o indivíduo está envolvido significativamente influenciador para a superação ou para a

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degradação humana. Acentua a importância de se levar em consideração o contexto histórico

e cultural, do qual se extraem preciosas informações, que servem como instrumentos de

análise. Defende que tais informações proporcionam indicativos da formação de uma

identidade, que é construída e mantida pela sociedade, a qual denomina de “ego grupal”

(1987, p. 69). Ou seja, o espaço público no qual o indivíduo está inserido constitui-se

conformador desse “ego grupal”. Por isso, defende ser sumamente necessária a integração da

percepção do social e do individual para se estudar os assuntos referentes à subjetividade do

ser humano, reconhecendo que o arranjo dos aspectos sociais (espaço público) interfere

fundamentalmente na formação das subjetividades. Assim, mudanças estratégicas no espaço

público tendem a surtir mudanças nas subjetividades – bem como as transformações surtidas

em cada sujeito que integra o espaço público tendem também a afetar tal espaço de alguma

forma. Sobre a importância da superação das concepções e visões limitadas e limitadoras para

as integradas e integradoras, afirma Erikson (1987, p. 44):

Naturalmente, a negligência geral desses fatores na psicanálise não favoreceu uma aproximação com as Ciências Sociais. Os estudiosos da sociedade e da história, por outro lado, continuam ignorando alegremente o simples fato de que todos os indivíduos nasceram de mães; de que todos nós já fomos crianças; de que as pessoas e os povos começaram em seus berçários; e de que a sociedade consiste em gerações no processo de desenvolvimento de filhos em pais, destinados a absorver as mudanças históricas durante suas vidas e a continuar fazendo história para seus descendentes. Somente a Psicanálise e as ciências sociais unidas poderão finalmente proceder ao levantamento do curso de vida individual no contexto de uma comunidade em permanente mudança.

Tal perspectiva dinâmica, que reconhece que os cursos de vida dos indivíduos fluem

no contexto de espaços comunitários – e portanto, públicos – os quais estão em permanente

mudança, sinaliza para a assertividade da atuação nos estabelecimentos de internamento por

determinação legal com a perspectiva de que cumpre tornar tais instituições ambientes

propícios ao desenvolvimento humano. Ou seja: favorecedor de superações sucessivas,

transcendendo o imobilismo engessado e cristalizado de métodos seculares comprovadamente

inoperantes. Isso para que os seres humanos ali inseridos usufruam da prerrogativa de se

desenvolverem gradativamente, de modo a tornar o “ego grupal” ali estabelecido

progressivamente mais rico e saudável, ao invés de empobrecido e degradado. Considera-se

ser a implementação de tal dinâmica imprescindível para que seja usufruído o direito

fundamental ao pleno desenvolvimento das potencialidades humanas tanto por parte dos

internos quanto dos funcionários de tais estabelecimentos - conforme verificado no tópico 4

do presente artigo, que abordou os impactos nos direitos da personalidade gerados pelas

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influências nas subjetividades produzidas nos espaços públicos de internamento por

determinação legal.

Assim, com fulcro em tal percepção, com postura psicopedagógica norteada em

princípios científicos e estratégicos, o profissional torna-se apto a receber e tratar os

internados por determinação legal como pessoas em processos individuais de

desenvolvimento. E também a atuar com a consciência de que sobre tais internados exerce

influência significativa o estado geral do estabelecimento que os acolhe. Nessa perspectiva,

tal profissional busca interagir de forma proativa, contribuindo na geração de condições

apropriadas para a superação das condições de precariedade das quais os internados são

portadores, bem como para a elevação a patamares de dignidade e realização humana

gradativamente mais elevados. Tal abordagem se caracteriza como prospectiva, focada nas

possibilidades, superando a abordagem reativa, a qual é focada no passado, no crime

cometido. Para a abordagem prospectiva, o passado é apenas fonte de informação que

subsidia para a providência de ações transformadoras, porém o foco principal de atuação se

concentra no porvir - na preparação dos internos para este porvir.

A atuação em tal perspectiva implica em manter com todo o rigor as ações necessárias

à manutenção da segurança, inclusive como forma de proteger o interno dele próprio, no

sentido de uma eventual tentativa de fuga, na qual teria como consequência a perda de todos

os benefícios, como supressão dos dias remidos, regressão de regime, etc. Porém na

perspectiva psicopedagógica tal rigor é, por assim dizer, temperado com uma interação

humana respeitosa, técnica e científica, contribuidora para a superação ao invés de incitadora

à degradação.

Para tal corroboram expressivamente os postulados da psicopedagoga argentina Sara

Paín (in Serra, 2009. – pag. 21), segundo a qual:

[...] a aprendizagem é resultado da articulação de fatores internos e externos do próprio sujeito, do organismo (substrato biológico), do desejo de aprender, das estruturas cognitivas e do comportamento em geral. Todos esses aspectos convergem para um mesmo objetivo, que é o ato de aprender.

Conforme Paín (in Serra, 2009) tal aprendizagem possui algumas funções que se

contrapõem para se otimizarem sinergicamente, sendo elas: função repressora (estipuladora de

limites, disciplinadora); função transformadora (geradora da percepção de novas

possibilidades, suscitadora de mudanças de comportamento) e função socializadora

(proporcionadora da apropriação de saberes necessários à convivência social, à vida em

sociedade).

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Tal concepção se apresenta de especial propriedade para nortear a operacionalização

de instituições de internamento por determinação legal, pois concita à busca do equilíbrio

sensato e apropriado entre as três funções, evitando o lugar comum de se fixar de forma

engessada somente nas ações repressoras/disciplinadoras e, com isso, estagnando as demais.

Nesse viés, cumpre atuar sem abrir mão da disciplina, que é inegavelmente fundamental em

espaços públicos de internamento por determinação legal, porém mantendo um equilíbrio

sensato com as demais funções retro-mencionadas. Lança-se mão das providências atinentes à

função transformadora para viabilizar condições favoráveis à formação de uma nova visão de

mundo, através do acesso a produtos e atividades culturais que propiciem tal transformação. E

da função socializadora, para viabilizar as condições para a apropriação de habilidades que

tornem o indivíduo apto a interagir saudavelmente na sociedade quando egresso, por exemplo,

através de cursos de formação educacional e profissionalizante. Nesta perspectiva, busca-se

estabelecer entre as três funções saudável sinergia, tendo como norte a promoção do

desenvolvimento humano.

No que tange à aplicação dos procedimentos atinentes à função repressiva

(disciplinadora, estabelecedora de limites), em especial quanto às sanções disciplinares

aplicáveis no decorrer das atividades de operacionalização das instituições de internamento

por determinação legal, tem-se em Piaget (in Serra, 2009, p. 62), preciosa orientação:

[...] Existem duas formas de sanções disciplinares: a sanção expiatória e a sanção por reciprocidade. Na sanção expiatória, não há nenhuma relação entre o comportamento [de quem impõe a sanção] e a atitude [motivadora da sanção]. É o famoso castigo e uma punição aleatória; por exemplo, quem briga com o irmão não merece doce-de-leite de sobremesa. Não há uma relação entre a atitude de brigar e o objeto doce-de-leite. Na sanção por reciprocidade, busca-se uma coerência entre a infração e a atitude [do aplicador da sanção] e, principalmente, deve haver a possibilidade de [quem recebe a sanção] reparar o erro que cometeu.

Na abordagem por reciprocidade, tende ser surtida a compreensão clara da relação

entre causa e consequência. Tal abordagem tem o condão de diminuir inclusive o nível de

revolta de quem recebe a sanção para com quem a aplica, contribuindo, inclusive, para a

superação de quaisquer dúvidas quanto à dosimetria da sanção – tendo em vista que sua

natureza de reciprocidade contrapõe justamente o comportamento que deflagrou a

consequência aplicada. Os resultados de sua aplicação tendem também ser mais eficazes no

sentido da superação de reincidências, pelo efeito profundamente pedagógico que tende surtir.

Já na aplicação das sanções expiatórias, vulgos “castigos”, a experiência tem demonstrado

que, embora existam alguns efeitos no sentido de evitar reincidências, apresentam efeitos

colaterais altamente desgastantes dos vínculos de convivência e tendem redundar em revolta e

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mais degradação – ao invés de superação humana. Há-se pois que buscar, na medida das

possibilidades, aplicar as sanções tendo em conta o princípio da reciprocidade, aplicando-as

de forma tal que contemplem efetivamente, na medida do possível, uma relação direta de

causa e efeito entre a atitude e a consequência. A quem sujou, cumpre limpar, a quem gerou

prejuízo, cumpre ressarci-lo, e assim sucessivamente.

Quanto à possibilidade da reparação do erro, tal postulado de Piaget é aplicado por um

juiz em uma comarca de Minas Gerais, conforme notícia do jornal virtual “Em flagrante”

(edição de 11 de junho de 2012):

Projeto do Juiz Henrique Mallmann, de Santa Rita de Cássia, faz com que condenados tenham a oportunidade de se redimir diante de suas vítimas indenizando-as, devolvendo dinheiro corrigido em caso de furto/roubo, ou ainda pagando clínicas de reabilitação com o próprio suor para compensar o envolvimento com o tráfico de drogas, dentre outras ações. Além disso, eles têm a chance de pedir perdão a quem um dia fizeram sofrer. Num país onde geralmente o drama de quem foi alvo de bandidos é esquecido, este é um exemplo a ser seguido.

Considera-se, na perspectiva dos postulados dessa pesquisa, que o exemplo acima

exposto constitui-se em uma referência importante no sentido do foco de busca de excelência

que se há de determinar para a atuação assertiva na órbita das instituições de internamento por

determinação legal. Tal exemplo se estabelece na mesma esteira dos postulados da Justiça

Restaurativa, observando-se em tais abordagens que o melhor que se pode fazer em relação

aos internados por determinação legal é gerar condições para que quem gerou danos se torne

apto a repará-los.

Nesse viés, a Pedagogia, também da órbita das Ciências Humanas, é outra área de

conhecimento que apresenta expressivo potencial de contribuição para a operacionalização de

instituições de internamento por determinação legal pautada na geração de condições para o

pleno desenvolvimento das potencialidades humanas. Nesse sentido, Rufino e Miranda (2006)

apresentam reflexão com teor altamente representativo de tal potencial: “Se o professor

acredita nas possibilidades de vir a ser dos alunos, promove ações que desenvolvem as

potencialidades inerentes a qualquer ser humano.” Tal reflexão elucida enfaticamente o fato

de que somente se investe naquilo em que se acredita e, portanto, é preciso acreditar e

empreender os empenhos necessários para se obter os resultados desejados. Na órbita das

instituições de internamento por determinação legal, cabe aos profissionais que nelas atuam

pautar-se na perspectiva retro-mencionada para que suas funções atinjam o escopo das

determinações legais que regulamentam tais instituições.

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Zaffaroni (1991, p. 221) afirma: “Se olharmos para os presídios veremos que lá se

estrutura uma sociedade autônoma, com funções sociais distintas, o fenômeno da

prisionização, ou seja, o aparecimento de uma cultura própria e leis próprias.” Sendo,

portanto, a configuração fática do processo de prisionização de natureza cultural, aduz-se que

tal cultura perniciosa precisa ser, mais do que identificada, efetivamente trabalhada para ser

transformada. Na perspectiva do presente empreendimento científico, assentado na temática

do reconhecimento dos direitos da personalidade das pessoas que orbitam nos espaços

públicos de internamento por determinação legal, pressupõe-se que cultura se muda com

educação. E tal mudança cultural, a ser implementada a partir de processos educacionais

apropriados, no caso em tela, com o desiderato de promover as condições para a promoção do

desenvolvimento humano em instituições de internamento por determinação legal, requer

programas educacionais aplicados à consecução de tais objetivos.

Com essa finalidade, foi operacionalizado no decorrer das pesquisas que embasam o

presente artigo o Programa Educacional de Desenvolvimento Humano – PROEDH, aplicado

junto aos internos, o qual caracteriza-se como ação preventiva de ordem terciária. Tal

categoria de prevenção consiste, conforme os estudos da abordagem sociopsicológica da

violência e do crime, de acordo com Hoffmann (2012), em “estratégias que envolvem

programas e projetos direcionados a pessoas que já tenham praticado violência e crimes, para

evitar que reincidam. Tratam, por exemplo, de promover a reintegração de um ex-interno na

família, no trabalho e na sociedade.”

No caso específico do PROEDH, tal programa visa justamente promover o

desenvolvimento humano das pessoas reclusas nos espaços públicos de internamento por

determinação legal, proporcionando-lhes, na medida das possibilidades presentes no contexto

de cada ambiente específico, elementos contribuidores para a auto-superação. Inclui desde

seções de aconselhamento a filmes e palestras com ênfase no resgate da autoestima e

conscientização a respeito das vastas potencialidades humanas, até cursos profissionalizantes.

Enfatiza-se reiteradamente, no decorrer das atividades que integram o programa, que tais

potencialidades humanas se constituem em campo propício para ser trabalhado de modo a

evitar problemas com condutas desviantes que levem à reincidência em infrações à lei e à

deflagração das consequências correlatas.

O desenvolvimento de tal programa de prevenção terciária, específico para ser

aplicado em instituições de internamento por determinação legal, teve como suporte pesquisas

anteriores realizadas por Alves (2011), entre as quais “Motivação e mobilização à

aprendizagem - construindo caminhos para a eficácia reeducacional nos sistemas prisional e

socioeducativo” e “Aplicação da pena como consequência pedagógica – construindo

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condições para a diminuição da reincidência com a efetivação de dispositivos legais

concernentes à educação e temas correlatos”. E também “Implementação do PROERC -

programa educacional de resistência à criminalidade, às drogas e à violência – em unidades do

sistema penal e socioeducativo” (ALVES, 2012). Tais pesquisas tiveram como campo de

aplicação unidades prisionais e de atenção socioeducativa do estado de Santa Catarina. Tal

programa de prevenção terciária, aplicado nas unidades em que a presente pesquisa foi

realizada, contribuiu de forma expressiva para os resultados que serão apresentados na parte

final do presente tópico.

Outro campo científico de ampla aplicabilidade à operacionalização prisional com

abordagem interdisciplinar, norteada estratégica cientificamente e focalizada no

desenvolvimento humano é o das neurociências, situado na interface entre as Ciências

Humanas e as Ciências da Saúde. A título de exemplo do impacto de tais conhecimentos em

tal operacionalização, destaca-se uma informação de alta relevância apresentada no artigo “A

emoção no agir”:

Necessita-se de cinco ações convenientes (recompensa) para reparar o efeito emotivo de apenas um afrontamento. De modo semelhante, comentários positivos de uma pessoa a outra costumam cair em esquecimento, mas uma abordagem negativa fica na memória como um estigma (MESADRI, 2012).

Tal conhecimento proveniente de pesquisas aplicadas, exaustivamente experienciadas,

trazido à tona pelo Mestre em neurociências e doutor em ciências, professor de curso da área

de saúde na Univali (SC), configura-se de contundente aplicabilidade para a adequada gestão

dos relacionamentos humanos de forma geral. E tal aplicabilidade apresenta-se com contornos

cruciais nas lides com internados por determinação legal. Essa informação científica

proporciona a meridiana clareza de que, para evitar que os relacionamentos se tornem tóxicos,

importa administrar, com base nos pressupostos neurocientíficos, as interações negativas e as

positivas. Se, em média, para cada interação negativa são necessárias cinco interações

positivas para compensar o desgaste provocado pela primeira, importa gerenciar tais

interações de modo a evitar que os relacionamentos se tornem insuportáveis.

Tal clareza científica demonstra a necessidade de se gerenciar conscientemente o teor

das interações humanas travadas, de forma especial nas instituições de internamento por

determinação legal, onde se faz imperiosa a manutenção da disciplina com firmeza, para a

manutenção das condições mínimas de trabalho. Por consequência, os profissionais que atuam

em tais instituições se vêm constantemente na contingência de interagir com tal público com

interpelações que tendem se configurar afrontadoras, o que não há como evitar, a princípio,

devido ao estado bruto, por assim dizer, com que determinados integrantes de tal público

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tendem a se apresentar - em especial nas instituições em que não haja nenhum trabalho

educacional em curso.

Contudo, reitera-se, com a consciência da realidade emocional envolvida apresentada

acima, é possível gerenciar esse tipo de situações com o que se pode designar como

administração de interações. Se não há como evitar algumas interações de teor impositivo, é

possível compensar com interações amenas, através de expressões e gestos corriqueiros do

dia-a-dia. Quando se estabelece, conforme mencionado acima, uma interação a partir de uma

postura profissional psicopedagógica, permeada pela compreensão, por parte do profissional,

de que está interagindo com pessoas prejudicadas em seus processos de desenvolvimento,

fracassadas existencialmente – ao invés de “vagabundos”, “perversos” e assim por diante,

torna-se possível superar as interações marcadas tipicamente pela hostilidade.

Nesse aspecto se estabelece o que se pode designar como a cabeça de ponte estratégica

mais importante para o sucesso da abordagem interdisciplinar, com norteamento estratégico e

científico, focada no desenvolvimento humano. Quando o profissional consegue olhar para os

internos com o devido preparo técnico para perceber neles não mais tão somente indivíduos

infratores da lei, mas seres humanos perturbados, confusos, equivocados na forma como

administram seus potenciais humanos, consegue mudar a postura de interação

predominantemente afrontadora para uma postura de compreensão e até de compaixão. Isso

no sentido de observar à sua frente seres fracassados e que tendem a se “enterrar” ainda mais

naquela vida, naquele mundo, no deplorável processo de prisionização. Compaixão no viés de

ver a situação degradante daqueles indivíduos encarcerados, com uma compreensão tão clara

e profunda dos fatos, ao ponto de gerar movimentos internos no sentido de buscar contribuir

para que aqueles seres parem de descer e consigam superar os deploráveis estados de ser em

que se encontram. Tal mudança nevrálgica de percepção gera um impacto psicológico tão

poderoso na convivência, ao ponto de eliminar a produção de hostilidade, substituindo a

emissão de mensagens de indignação e afrontamento por mensagens de compreensão em uma

perspectiva empática, ainda que firme e claramente técnica e profissional, mantendo os

necessários limites. Tal postura tende a contribuir fundamentalmente com aqueles seres para

se aperceberem de sua real condição, ao invés de avalizar percepções equivocadas que os

internos tendem ter de si próprios, que vão dos extremos de “se acharem os bam-bam-bans”

ou de ficarem se considerando meras vítimas de um sistema perverso. Um exemplo prático de

“desmontar” a percepção “bam-bam-bam” é expressar serenamente: “Quem está aqui é, em

primeiro lugar, ladrão da própria dignidade, do próprio direito de usufruir da liberdade, da

convivência com seus entes queridos.” E para quem se considera vítima de um sistema

perverso, basta refletir serenamente sobre quem gerou a ação para que se produzisse a reação

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que levou ao encarceramento. Quando essa postura serena passa a ser a atitude do

profissional, tende-se gerar nos internos um conjunto de reações que suscitam condições

altamente propícias para a indução do desenvolvimento humano, ao invés de reforçar atitudes

de rechaço e retaliação. Quando isso ocorre, o profissional passa a reunir condições para

efetivamente influenciar o interno, passando a se operar um processo inverso ao da

prisionização, que pode ser designado pura e simplesmente como civilização. Nesse contexto,

quando ocorre essa “virada”, ao invés de o interno puxar, por assim dizer, o profissional para

o mundo do fracasso existencial, caracterizado pela violência e pela infração à lei, é o

profissional que começa a puxar o interno para a percepção de uma outra realidade, com a

meridiana clareza de que o crime, a violência e tudo o que os rodeia se constituem ilusão

estúpida e pérfida armadilha, em relação aos quais o mais inteligente a fazer é se distanciar ao

ponto de se imunizar definitivamente.

Tal processo de indução de desenvolvimento humano, para ser conscienciosamente

dirigido pelo profissional, requer a compreensão e o domínio de alguns conhecimentos

neurocientíficos, cujos pressupostos são apresentados no livro “Inteligência social: o poder

das relações humanas”, de Goleman (2006). Nesta obra é apresentado um modelo inovador de

inteligência, com base no campo emergente da chamada neurociência social. Esclarece que a

interação social influencia tanto na moldagem do comportamento quanto no próprio

funcionamento do organismo. Ao apresentar o conceito de inteligência social, Goleman

(2006) demonstra o poder que é exercido pela interação social nas variações do humor e da

própria química cerebral, ao examinar o quanto uma ofensa ou mesmo uma experiência social

desagradável podem ser prejudiciais. Por outra parte, demonstra os efeitos positivos

suscitados por substâncias neuroquímicas liberadas em situações que envolvem interações

humanas positivas, em que se expressa amor, altruísmo, compaixão, compreensão, etc. Nessa

perspectiva, Goleman (2006) conclui que se constitui atitude de efetiva inteligência social o

desenvolvimento de relações humanas caracterizados predominantemente por tais interações

positivas, de modo a estabelecer uma sincronia grupal de conexão com os valores acima

expressos.

O que tende comumente a se estabelecer nos espaços públicos de internamento por

determinação legal é exatamente o oposto: ao invés de inteligência social, a tendência é a

instauração de um ambiente de desinteligência, de hostilidade – aquilo que popularmente se

designa como “campeonato de burrice”, em que um grupo está predisposto a “ferrar” o outro,

gerando como resultado a crescente degradação dos relacionamentos humanos e frustrações

recíprocas. Interessante episódio que ilustra com toda a ênfase essa realidade foi a

manifestação de um discente em uma aula para agentes penitenciários ministrada no decorrer

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da pesquisa: “Você achou o meu discurso muito ‘Rosa Maria’ [alusão pejorativa a quem

supostamente se porta de forma complacente em relação aos presos]? Mas não se preocupe!

Lá onde eu trabalho, os presos têm raiva de mim! Está tudo certo!” De forma semelhante,

demonstrando esse mesmo viés, foi também observada durante a pesquisa manifestação em

rede social de antigo diretor de órgão estadual responsável pela administração prisional: “Se

os presos não gostam, é sinal que é bom para o sistema, é sinal que é assim mesmo que deve

ser!” Tal predisposição ao antagonismo tende se configurar a marca nos estabelecimentos de

internamento por determinação legal entre internos e funcionários – em especial os que

integram as equipes de segurança.

Tal tendência se constitui renhida com a ciência, conforme se verificou acima,

tendendo a gerar como consequência o recrudescimento da violência e da degradação

humana. Tais práticas, provindas do arraigamento ao senso comum, precisam ser superadas,

para se sair do lugar comum de se aplicar o “direito penal do inimigo”, para em seu lugar,

implementar o respeito aos direitos da personalidade com a promoção do desenvolvimento

humano. Tal transformação se faz crucial para que a luz da Constituição da República

Federativa do Brasil de 1988 passe a irradiar também nos espaços públicos de internamento

por determinação legal. Tal estado de coisas deteriorado, fruto do senso comum que

caracteriza o reducionismo operacional que convencionalmente se observa nesses espaços se

constitui verdadeira armadilha que alimenta o chamado discurso do ódio, o ciclo da

odiosidade - provindo do equivocado preconceito de que é dessa forma que deve se

estabelecer o relacionamento entre os internos e os funcionários. Como resultado de tal

recrudescimento das hostilidades recíprocas, em alguns estados do Brasil houve a formação

de grupos de internos organizados dentro das instituições prisionais, os quais embasam nessa

dinâmica de odiosidade seus discursos para angariar adeptos, sendo portanto o ódio, sob tal

perspectiva, combustível para o crime organizado. No decorrer da pesquisa, foram realizados

experimentos em unidades de internamento por determinação legal onde tal situação se

instaurou de forma veemente. Tal fenômeno foi identificado como resultado da desesperança

que tende se instaurar entre os internos face aos procedimentos operacionais limitados ao

convencional e tradicional. E de pessoas desesperadas, ironicamente o trocadilho se aplica:

“tudo pode ser esperado.”

A partir dos estudos aplicados de neurociências, foi realizada frente a esse estado de

coisas a experiência denominada de influenciação por espelhamento reverso. Ou seja, buscou-

se produzir efeitos reversos, contrários aos produzidos pelo círculo do ódio que tende se

instaurar em locais onde o processo de prisionização se estabelece de forma intensa. Com

abordagem interdisciplinar, norteada estratégica e cientificamente, focada no

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desenvolvimento humano, com a consciência de que a influenciação comum que se produz

nos ambientes de internamento por determinação legal tende a “arrastar” os funcionários das

prisões para os comportamentos violentos, em tal experiência buscou-se atuar em sentido

contrário. Com a investidura da postura psicopedagógica, que contribui expressivamente para

a imunização ao contágio pelo ciclo do ódio e da violência, houve o investimento estratégico

no sentido de interagir com os internos com o objetivo de produzir a influenciação por

espelhamento reverso.

Para tal houve o respaldo nos conceitos da neurociência social, trabalhados por

Goleman (2006), cuja síntese importa esclarecer para se proporcionar uma noção básica de

procedimentos que podem ser adotados para a superação de situações delicadas como a

mencionada acima. De acordo com Goleman (2006), nos relacionamentos podem se

estabelecer situações de sincronia ou de distonia. Na distonia, configura-se uma espécie de

rejeição ou antipatia mútua, ou dissonância. Já na sincronia, ocorre o contrário, há a acolhida

do outro, embora nem sempre seja constatada conscientemente, mesmo quando o

entrosamento se processa com facilidade. Tal sincronia espontânea se dá, esclarece Goleman

(2006), em decorrência do trabalho de uma classe específica de neurônios denominados de

neurônios-espelho. Tais neurônios refletem uma ação observada no outro e leva o observador

a imitar tal ação, ou a ter o impulso de imitá-la. Os estudos neurocientíficos revelam a

existência de diversos sistemas de neurônios espelho, muitos dos quais atuam no córtex pré-

motor, o qual rege as atividades da fala, dos movimentos e também da pura e simples intenção

de agir. Como esses neurônios espelhos estão localizados próximos aos neurônios motores,

tais áreas do cérebro que exercem a função de iniciar um movimento podem começar a se

ativar, também, mediante a observação de tal movimento em uma outra pessoa. Para Goleman

(2006), diversos sistemas neuronais no cérebro humano são aptos não somente a imitar, mas

também a ler intenções e emoções. Cita experiências realizadas com voluntários submetidos a

ressonância magnética no decorrer de visualizações de vídeos, ficando demonstrado na

apuração dos resultados que os voluntário ativavam no cérebro, no decorrer da assistência a

tais vídeos, exatamente nas mesmas áreas que foram ativadas pelas pessoas que apareciam na

película veiculada - as quais foram monitoradas previamente. Ou seja, quem vivenciou a cena

e quem a assistiu teve exatamente a mesma ativação cerebral – houve o “espelhamento” de tal

ativação. Tais experiências, conforme Goleman (2006), revelam que os neurônios espelho

geram o contágio pelas emoções, contribuindo para que as pessoas entrem em estados de

sincronia, ao sentir o outro, através da comunhão dos mesmos sentimentos e movimentos, das

mesmas sensações e emoções.

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Essas informações científicas, confrontadas com a realidade que tende se estabelecer

nos espaços públicos de internamento por determinação legal, levam à conclusão de que o

efeito dos neurônios espelhos tem se dado no sentido negativo, tendendo a contagiar os

funcionários com a violência e a criminalidade.

Já no decorrer da experiência de influenciação por espelhamento reverso, buscou-se

atuar, nos espaços de internamento por determinação legal em que a pesquisa foi realizada,

com a intencionalidade de produzir o resultado contrário: ao invés de cair, por assim dizer, no

padrão dos infratores da lei e de suas práticas, padrão este sintetizado na frase ouvida durante

a pesquisa: “nós temos que ser mais bandidos que os bandidos”, houve a busca consciente de

influenciá-los em sentido contrário. A partir das conclusões dos experimentos científicos das

neurociências sociais, que chegam à conclusão de que as emoções que contagiam as pessoas

geram consequências que podem ser positivas ou negativas, buscou-se, no decorrer da

experiência de influenciação por espelhamento reverso, administrar o cenário emocional, de

modo a promover a superação dos quadros onde predominam emoções negativas e

desagradáveis, por quadros onde predominam as emoções agradáveis, geradores de bem estar

e de qualidade de vida.

Uma obra de referência que também contribuiu para o sucesso de tal experiência, da

órbita das Ciências Sociais Aplicadas - área da Administração, foi “Os 7 hábitos das pessoas

altamente eficazes” (COVEY, 2011). No capítulo intitulado “Construindo relacionamentos”

ou autor apresenta a sugestão de administrar, em relação às outras pessoas, aquilo que

denominou de conta bancária emocional:

Gostaria de sugerir seis depósitos para aumentar a Conta Bancária Emocional. Compreender o indivíduo. Tentar realmente compreender a outra pessoa é, provavelmente, um dos depósitos mais importantes que você pode fazer, além de ser a chave para todos os outros depósitos. Prestar atenção às pequenas coisas. As pequenas gentilezas e cortesias são muito importantes. A falta de cortesia, o descaso e o desrespeito, mesmo que insignificantes, provocam uma retirada considerável. Nos relacionamentos, as pequenas coisas equivalem a grandes coisas. Honrar os compromissos. Honrar um compromisso ou uma promessa equivale a um enorme depósito, romper com o prometido corresponde a uma retirada imensa. As pessoas costumam alimentar suas esperanças com promessas, particularmente aquelas que dizem respeito ao seu meio de vida básico. Esclarecer expectativas. A causa de quase todas as dificuldades de relacionamento reside em expectativas ambíguas ou conflitantes em torno de metas e papéis. Criamos muitas situações negativas simplesmente ao assumir que as nossas expectativas dispensam explicações e que são claramente compartilhadas pelas outras pessoas. Demonstrar integridade pessoal. A integridade pessoal gera confiança, sendo a base para vários tipos de depósitos. A integridade inclui a honestidade, mas vai além dela. Pedir desculpas sinceras quando você faz uma retirada. Quando fazemos retiradas da Conta Bancária Emocional, precisamos pedir desculpas, e fazê-lo com sinceridade (COVEY, 2011, 48-52).

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Tais postulados, além de saudáveis no sentido de produzir os resultados de

influenciação por espelhamento reverso em relação aos internos, constituem-se também

sumamente oportunos na convivência no dia-a-dia com os colegas de trabalho.

Corroborando os postulados de Covey, bem como dos diversos pressupostos

registrados acima, foram também aplicados os princípios de Hunter (2006), sintetizados na

obra “Como se tornar um líder servidor – os princípios de liderança de o monge e o

executivo”, os quais se encontram em voga em grandes organizações mundiais.

Sinteticamente, o que tal obra ensina é que os indivíduos são pré-dispostos a serem liderados

pelas pessoas que percebem como dispostas a contribuir com eles de alguma forma. Tal

princípio foi também largamente empregado na pesquisa. Mediante os pedidos de auxílio dos

internos, por exemplo: “Sr. [...], o senhor pode me fazer um favor?” A resposta era,

basicamente: “Se estiver dentro do regulamento, sim!” E se estava no regulamento, o favor

geralmente era feito, na medida das possibilidades.

O efeito de tal posicionamento e da experiência de influenciação por espelhamento

reverso, em conjunto com todo o exposto acima, pode ser sintetizado naquilo que se considera

o resultado mais expressivo produzido pela presente pesquisa: a expressão da disposição da

expressiva maioria dos internos com os quais houve a interação pautada nos princípios e

pressupostos científicos enunciados, de abandonar a vida do crime. Através do conjunto de

providências referidas anteriormente, da interação com postura psicopedagógica à aplicação

do PROEDH e as experiências de influenciação por espelhamento reverso, os internos

compreenderam, sentiram e se dispuseram a se direcionar, como seres humanos aptos à auto-

superação e ao desenvolvimento humano, para uma vida de respeito às leis, primando por

condutas isentas de infrações à lei e caracterizadas pela busca de fazer o bem e também de

enriqueceram-se culturalmente. Para isso foram liderados e dessa perspectiva estão imbuídos.

A materialização de tal realidade se constituiu na criação, no estabelecimento âncora em que a

pesquisa atingiu maior profundidade na aplicação, da Associação Beneficente, Cultural e

Esportiva Vida Nova, à qual a expressiva maioria dos internos a que a ideia foi apresentada se

filiou. Segue o teor do termo de adesão à referida associação.

ASSOCIAÇÃO BENEFICENTE, CULTURAL E ESPORTIVA VIDA NOVA Com respaldo legal no Art. 3º da Lei Nº 7.210, de 11 de julho de 1984, o qual determina que “Ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei”; com a consciência de que a vida do crime é ilusória e geradora de sofrimentos e perdas irreparáveis tanto para as vítimas quanto para quem comete o crime, mas principalmente para os familiares; com o firme propósito de tornar tudo o que se relaciona ao crime em uma página virada; com a firme e inarredável disposição de cumprir com os deveres que me cabem no decorrer do cumprimento da pena, firmo-me pelo presente como sócio da

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ASSOCIAÇÃO BENEFICENTE, CULTURAL E ESPORTIVA VIDA NOVA. Estou consciente de que o maior bem, a maior beneficência que me cabe fazer é, em primeiro lugar, evitar eu mesmo de cometer quaisquer tipos de infrações que possam desabonar minha conduta e a de meus companheiros de jornada. Em segundo lugar, ajudar os meus companheiros, aconselhando-os e auxiliando-os de todas as formas que estiverem ao meu alcance, para que evitem também quaisquer tipos de infrações que possam desabonar as suas condutas e as dos demais que estão na mesma condição. Para isso, me disponho a integrar e, se for o caso, a colaborar, sempre que necessário, com o CONSELHO DE SINCERIDADE E SOLIDARIEDADE, destinado a prestar esse auxílio. Estou consciente de que no aspecto cultural, posso, quero e devo absorver ao máximo possível tudo o que puder ser útil para mudar de vida para melhor, para me fortalecer e me desenvolver como ser humano; tudo o que puder ser útil para que eu me torne uma pessoa cada vez mais digna, motivo de orgulho e exemplo de superação para os meus companheiros, para minha família e para a sociedade. Para isso, me disponho a participar, dentro de minhas possiblidades, de todos os cursos, palestras e eventos que me sejam oportunizados. Estou ciente de que o esporte é um complemento importante para me auxiliar a manter-me saudável física e mentalmente. Para isso, me disponho a participar, dentro de minhas possiblidades, dos eventos esportivos que me sejam oportunizados Com essa motivação, filio-me à ASSOCIAÇÃO BENEFICENTE, CULTURAL E ESPORTIVA VIDA NOVA e me comprometo a me manter fiel ao acima exposto, para o meu bem, para o bem dos meus companheiros de jornada, dos meus entes queridos e da sociedade como um todo.

Cumpre esclarecer que a formação de tal instituição aberta à participação de internos

de estabelecimentos por determinação legal foi fruto de intenso trabalho de reflexão grupal,

respaldada nos postulados e princípios estratégicos e científicos retro-mencionados.

Considera-se que tal desenlace representa o ápice da operacionalização com abordagem

interdisciplinar, norteada estratégica e cientificamente, com foco no desenvolvimento

humano. Foi inspirada, principalmente no que tange ao conselho de sinceridade e

solidariedade, na metodologia aplicada pelas Associações de Proteção aos Condenados e

Internados – APACs. Tais instituições, geridas pela sociedade civil organizada, constituem-se

modelo de eficácia na execução das medidas de internamento por determinação legal em

algumas comarcas de estados brasileiros, como Minas Gerais e São Paulo, nas quais os

internos são instrumentalizados para, através dos conselhos de sinceridade e solidariedade,

evitar quaisquer atuações desviantes, sob orientação de profissionais habilitados para orientá-

los nesse sentido. Na presente pesquisa, houve a transposição de parte da metodologia

utilizada pelas APACs a uma unidade gerida pelo poder público, através da aplicação dos

métodos acima mencionados.

Importa mencionar que quando se estabelece o padrão de convivência

conscienciosamente administrado, de acordo com os parâmetros expressos acima, ocorre a

elevação do nível de qualidade de vida e do fruir dos direitos da personalidade tanto dos

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funcionários envolvidos em tal mister quanto dos internados por determinação legal que

participam de tal processo.

7 CONCLUSÃO

À guisa de conclusão, tecem-se algumas considerações respectivas à presente

pesquisa, focada na temática “o espaço público prisão – influências nas subjetividades,

impactos nos direitos da personalidade e a incidência dos direitos fundamentais.”

Os profissionais que atuam em espaços públicos de internamento por determinação

legal se vêm na contingência de conviver com pessoas, em regra, em níveis de

desenvolvimento humano dos mais precários possíveis, incluindo golpistas de vários gêneros,

traficantes, além de criminosos que atentam de forma contundente contra o patrimônio, contra

a vida e contra dignidade sexual de seus semelhantes. Não restam dúvidas - e tudo o que se

afirma no presente artigo não contraria em uma vírgula – quanto à necessidade de se colocar

tais pessoas sob a égide da lei, a qual deve ser aplicada com todo o rigor com que é

estabelecida para atingir a finalidade à qual se destina: inibir tais comportamentos e

desestimular tais pessoas a reincidir em tais condutas. Conclui-se, contudo, que é possível

interagir em tal meio de forma digna e dignificante, sem cair no lugar comum de ser atraído

por esse grupo de pessoas perturbadas para o seu nível de precariedade existencial – o que

ocorre quando os profissionais que com eles interagem se deixam arrastar pelos

comportamentos violentos e renhidos com a lei.

Reconhece-se que, embora se configure árduo desafio, é possível, sim, na

operacionalização de tais estabelecimentos, atuar com autodomínio técnico, com abordagem

interdisciplinar norteada estratégica e cientificamente, focada na promoção do

desenvolvimento humano, com a consciência de que essa é a abordagem que produz, a médio

e longo prazo, os melhores resultados.

Colaciona-se para efeito de ilustração a comparação, utilizada por estudiosos da

estratégia, entre a força do fogo e a força da água. Em tal comparação, observa-se que a força

do fogo destrói tudo o que encontra pela frente, ao ponto de, ao final, consumir-se a si própria

– não tendo mais o que consumir, o fogo se apaga. Já a água, reunindo-se de gota em gota, vai

juntando-se e forma uma força irresistível. Nas lides nos estabelecimentos de internamento

por determinação legal, em alguns momentos não há como evitar a utilização de estratagemas

caracterizados pela força do fogo, porém, pelo que se conclui do presente estudo, há-se de

empreender os empenhos no sentido de tornar tais eventos exceção, estabelecendo como regra

o uso da força da água, por seus resultados menos danosos e mais eficazes.

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Nessa perspectiva, há-se de atuar, no dia-a-dia da operacionalização das unidades de

internamento por determinação legal, de forma proativa no sentido de juntar, de gota em gota,

os elementos necessários para formar uma força irresistível que conduza e purifique a massa

problemática que a compõe, de modo a dar-lhe forma e conteúdo compatíveis com a

civilização. Ampliando tal analogia, constituiu-se facilmente comprovável de que água

límpida e cristalina, em pequena e contínua quantidade, jorrando sobre um recipiente

enlameado, gradualmente vai purificando o líquido de tal recipiente, até o ponto de tornar tal

conteúdo também límpido. Por isso, há-se que investir com constância e persistência nos

processos de desenvolvimento humano das pessoas submetidas ao internamento por

determinação legal.

Embora se observe tradicionalmente a predominância de atitudes tipicamente

reagentes, de profissionais reagentes, que reagem no mesmo tom às atuações impróprias dos

internos, é possível fazer frente a tais comportamentos com atitudes conscienciosamente

“interagentes”, proativas, inteligentes. Sob tal perspectiva, o profissional interagente, que

prima pela atuação inteligente, atua nos espaços públicos de internamento por determinação

legal seguindo o exemplo do jardineiro sábio, que, ao invés de simplesmente roçar as ervas

daninhas (com o que estas se tornam ainda mais fortes, pois o efeito que se gera com a roçada

é o mesmo da poda), prima por arrancá-las pela raiz e substituí-las por flores e folhagens.

Roçar simplesmente é muito pouco, é muito rústico, denota pouco preparo e pouca

inteligência de quem se acomoda nessa prática no trato dos terrenos que estão sob sua

responsabilidade.

Faz-se necessário, portanto, ir além, superar o lugar comum do elemento reagente, que

atua na perspectiva de pura e simplesmente vigiar e punir, conforme constatou Foucault

(1983), evoluindo para a perspectiva do elemento interagente, que avança para além. Mais

que vigiar e punir, focaliza a atuação também em interagir e educar. Mantendo a vigilância

sim, como condição inerente à própria função e da qual não se pode em hipótese alguma abrir

mão, porém atento permanentemente às oportunidades para interagir e educar, integrando de

forma equilibrada e sinérgica os elementos de repressão, transformação e socialização,

conforme os postulados psicopedagógicos de Sara Paín, apresentados acima.

Conclui-se que o investimento na formação de profissionais de tal naipe é o melhor

que pode ser feito, a melhor ação propedêutica que se vislumbra para evitar ações desastradas

e renhidas com a sensatez e com a legislação, as quais tendem se estabelecer como lugar

comum nos espaços públicos de internamento por determinação legal. Cumpre, nesta

perspectiva, às instâncias de planejamento dos órgãos responsáveis pela gestão de tais

estabelecimentos viabilizar as condições para que no mínimo um quarto dos profissionais

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sejam instrumentalizados técnica e cientificamente para atuar com tal orientação, para que,

com a colaboração dos demais, sob a égide de uma política institucional focada na promoção

do desenvolvimento humano, possam dar vazão em vastas proporções ao que foi

experienciado no recorte da presente pesquisa.

Os resultados de tal investimento social tendem ser dos mais auspiciosos, com tais

providências se faria possível elevar os profissionais integrantes das forças de segurança que

atuam nos estabelecimentos de internamento por determinação legal da condição de

“subcategoria” - incapaz de dar respostas eficazes às atribuições legais que lhe são conferidas

pela legislação - para a de “supercategoria”, no sentido dos potenciais resultados que tendem

ser surtidos, nessa perspectiva, para a sociedade como um todo. Tal movimento,

complementado com ações sistêmicas, fruto de um macroplanejamento envolvendo as

diversas instâncias públicas com competência para complementar tais ações, encerra um

potencial de geração, a médio e longo prazos, de resultados dos mais expressivos no

tratamento da delicada questão da segurança pública. Reitera-se o ensinamento monumental

de Peter Drucker: “A melhor maneira de prever o futuro é criá-lo.

Nessa perspectiva, tais profissionais passariam da condição de “primos pobres” na

ordem das forças de segurança pública, para a condição de protagonistas, com o status de

polícia correcional, aptos a fazer jus a tal denominação. Nessa perspectiva, caberia a tais

profissionais o papel de mostrar a face nobre do Estado, que, representado por agentes

imbuídos da forma mais intensa com o espírito da Constituição da República Federativa do

Brasil de 1988, atuem de modo a ensinar pelo exemplo o exercício da cidadania a pessoas que

geralmente só conseguem ver a face armada do Estado; pessoas estas que em sua maioria

provém, dentre os miseráveis, dos que o são no mais alto grau, por terem contraído o mais

degradante dos estigmas: a miséria moral.

Tal situação de miséria moral tende levá-los a atuar como toupeiras humanas,

desenvolvendo disfunção mental que se pode designar como “toupeirismo” ou “síndrome da

toupeira”. Tal estado de anomalia psíquica tende levar os seres acometidos por esse mal a

viver no submundo, a ser confinados em galerias e a ter como projeto de vida escavar túneis –

sonhando com isso escapar da condição de confinados, porém, mesmo quando tal intento se

faz bem sucedido, tendem a não demorar em retornar para a galeria, num círculo vicioso

frustrante e degradante.

E ironicamente, o profissional desavisado, que atua em instituições de internamento

por determinação legal sem o devido preparo, tende a absorver a chamada “cultura da galeria”

- caracterizada pelo processo de prisionização esclarecido acima - com o que contrai também

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a síndrome da toupeira e passa a fazer parte do submundo, desvirtuando-se de agente de

execução da lei para a condição de infrator, ao cair no círculo vicioso da violência.

Augura-se com este empreendimento investigativo lançar as bases para o que se pode

designar como um teoria geral de reabilitação de internados por determinação legal, a ser

desenvolvida em produções futuras. Uma teoria geral apta a fazer frente com um viés

científico a uma questão que está mais do que na hora de ser enfrentada com uma nova

sistemática, com uma nova tecnologia, para produzir resultados diversos dos degradantes e

nefastos que até o momento tem sido evidenciados nos espaços públicos de internamento por

determinação legal.

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FUNDAMENTABILIDADE E INTERDEPENDÊNCIA DOS DIREITOS À

IGUALDADE E AO AMBIENTE EQUILIBRADO

Nubya Cirqueira de Castro

RESUMO

Desigualdade social e desequilíbrio ambiental são preocupações que pautam a agenda

mundial na atualidade. Os direitos à igualdade e ao meio ambiente equilibrado são

consagrados como fundamentais na Constituição brasileira. A interdependência destes

direitos é determinante para que estes se efetivem e se coadunem com o princípio da

dignidade humana, basilar e axiológico nos constitucionalismos brasileiro e ocidental.

O Estado assume papel importante neste cenário dominado por discriminações sociais e

ambientais e marcado pelo embate entre desenvolvimento e preservação do patrimônio

ambiental. Solidariedade e ações afirmativas aparecem como alternativas atenuantes

para enfrentar as desigualdades e, ao mesmo tempo, como instrumentos de esperança

diante dos principais desafios contemporâneos de progredir sem degradar ainda mais o

planeta, alargar a representatividade social e reduzir a desigualdade material.

PALAVRAS-CHAVE: IGUALDADE. MEIO AMBIENTE. INTERDEPENDÊNCIA.

DIREITOS FUNDAMENTAIS. ESTADO. DESENVOLVIMENTO.

FUNDAMENTABILITY AND INTERDEPENDENCE OF RIGHTS TO

EQUALITY AND TO A BALANCED ENVIRONMENT

ABSTRACT

Social inequality and environmental imbalance are global concerns nowadays. Rights to

equality and to a balanced environment are acclaimed as fundamental rights on brazilian

Constitution. The interdependence of these rights is decisive to make them effective e to

allow that they coadunate to human dignity principle, basic and axiological in brazilian

and occidental constitutionalism. State assumes an important play in this scene

dominated by social e environmental discriminations and marked by the opposition

between development and preservation of environmental patrimony. Solidarity and

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affirmative actions appear as mitigating alternatives to confront inequalities and, at the

same time, as instruments of hope in face of the main contemporary challenges of

developing without degrading the planet, enhancing the social representative and

reducing material inequality.

KEYWORDS: EQUALITY. ENVIRONMENT. INTERDEPENDENCE.

FUNDAMENTAL RIGHTS. STATE. DEVELOPMENT.

SUMÁRIO: Introdução. 1 O direito ao Ambiente Equilibrado como direito

fundamental. 2 O direito à Igualdade como direito fundamental. 3 Interdependência dos

dois direitos e o papel do Estado. Conclusão. Referências

1. Introdução

Além de marcarem os debates mais prementes na agenda mundial da atualidade,

a desigualdade social e o desequilíbrio ambiental guardam afinidade mais profunda que

explica o trilhar lado-a-lado de causas e efeitos desses dois fenômenos ao longo da

história e na contemporaneidade.

Trata-se da interdependência de dois valores essenciais para a vida do ser

humano, a igualdade e o ambiente equilibrado. Dois valores que, no constitucionalismo

brasileiro, alçaram o posto de direitos fundamentais.

O objetivo deste trabalho é demonstrar tanto a fundamentabilidade desses

direitos, como a interdependência de ambos em um cenário em que Estado e sociedade

civil enfrentam o desafio de preservar o planeta e reduzir abismos sociais. E para isso,

não querem comprometer o desenvolvimento.

De início, abordamos separadamente a fundamentabilidade dos direitos à

igualdade e ao ambiente equilibrado na Constituição Federal de 1988 para, na

sequência, tratar da interdependência dos dois direitos, demonstrando como esta é

determinante não só para a efetividade de ambos os direitos como também para fazer

valer o princípio da dignidade humana, preceito axiológico da Constituição brasileira.

Neste sentido, analisamos o papel do Estado que, apegando-se ao valor

protagonista da igualdade na Constituição Federal - embora ancorada no liberalismo,

promove políticas que visam reduzir a desigualdade social e passa a dividir também

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com os cidadãos outrora excluídos os desafios de enfrentar o poderio econômico e as

demandas de um planeta em crescente degradação.

As alternativas de enfrentamento das desigualdades e do desequilíbrio,

ancoradas nos vetores solidariedade e ações afirmativas, surgem como políticas

atenuantes, mas também como instrumentos de esperança de superação das disparidades

e das barreiras invisíveis que abortam o alargamento de mentalidades da sociedade

como um todo tanto no sentido social como no aspecto ambiental.

2. O direito ao Ambiente Equilibrado como direito fundamental

A preocupação com o meio ambiente é um dos temas mais prementes da

atualidade, mas só recentemente o assunto passou a integrar a pauta da agenda mundial.

A comunidade internacional faz deflagrar, a partir do início dos anos 70, uma série de

programas e conferências em busca de critérios para o chamado Desenvolvimento

Sustentável, um termo que, a princípio, soaria muito estranho e só integraria o

vocabulário cotidiano de milhões de pessoas a partir dos anos 90.

O marco reconhecido neste processo é a realização da Conferência de

Estocolmo, em 1972, na Suécia. Foi a partir deste evento que ganhou força a noção de

proteção ambiental abrangendo a preservação da natureza em todos os seus elementos

essenciais à vida humana, ou seja, a tutela da qualidade do meio ambiente se subordina

à qualidade de vida, como uma forma de direito fundamental da pessoa humana1.

A Declaração do Meio Ambiente, adotada pela Conferência de Estocolmo traz

26 princípios que representam um prolongamento da Declaração Universal dos Direitos

do Homem, de 1948. A declaração de 1972 proclama que “o Homem é, a um tempo,

resultado e artífice do meio que o circunda, o qual lhe dá o sustento material e o brinda

com a oportunidade de desenvolver-se intelectual, moral e espiritualmente. (…) Os dois

aspectos do meio ambiente, o natural e o artificial, são essenciais para o bem-estar do

Homem e para que ele goze de todos os direitos humanos fundamentais, inclusive o

direito à vida mesma”2.

Em 1.983, é formada pela ONU a Comissão Mundial Sobre Meio

Ambiente e Desenvolvimento e, finalmente, em 1.992, a Conferência das Nações

1 SILVA, José Afonso da. Direito ambiental constitucional. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 58 2 BRASIL, ONU. A ONU e o meio ambiente. Declaração da Conferência da ONU sobre o Meio

Ambiente (Estocolmo, 1972). Disponível em www.onu.org.br. Acesso em 23.11.11.

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Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (UNCED), comumente conhecida

como ECO-92, ou RIO-92, realizada no Rio de Janeiro, “oportunidade em que as

nações, pela primeira vez, estabeleceram, em caráter definitivo, critérios para se atingir

o desenvolvimento sustentável”.3

É na Rio 92 que se firma a Convenção-Quadro das Nações Unidas

Sobre a Mudança do Clima (UNFCCC), que começara a ser elaborada pelo menos 13

anos antes. Em 1.979, a primeira Conferência Mundial sobre o clima marca o início dos

debates com esse enfoque. O debate evolui para o atual Painel Intergovernamental de

Mudanças Climáticas (IPCC, pela sigla em inglês), que acaba fornecendo o arcabouço

teórico-científico para a Convenção-Quadro, adotada na Rio 92 e colocada em vigor em

1.994.

No ordenamento jurídico brasileiro, é clara a influência da Declaração do Meio

Ambiente de Estocolmo na elaboração da Constituição de 1988, já que as Constituições

precedentes “jamais se preocuparam com a proteção do ambiente de forma específica e

global”. 4

O tratamento específico da questão ambiental pela Constituição de 1988 vale a

esta Carta Magna a alcunha de “verde”, nas palavras de Edis Milaré

A Constituição de 1988 pode muito bem ser denominada “verde”, tal o destaque (em

boa hora) que dá à proteção do meio ambiente. O Texto Supremo captou com

indisputável oportunidade o que está na alma nacional – a consciência de que é preciso

aprender a conviver harmoniosamente como a natureza -, traduzindo em vários

dispositivos aquilo que pode ser considerado um dos sistemas mais abrangentes e atuais

do mundo sobre a tutela do meio ambiente. 5

E é considerada “eminentemente ambientalista” por José Afonso da Silva

Pode-se dizer que ela é uma Constituição eminentemente ambientalista. Assumiu o

tratamento da matéria em termos amplos e modernos. Traz um capítulo específico sobre

o meio ambiente, inserido no título da “Ordem Social” (Capítulo VI do Título VIII).

3 Clóvis S. de Souza e Daniel Schiavoni Miller – Comissão de Valores Mobiliários 2003 4 Para histórico do tratamento constitucional brasileiro à questão ambiental ver MILARÉ, Édis. Direito do

Ambiente: A Gestão Ambiental em foco: doutrina – jurisprudência – glossário. 7. ed. revista, atualizada e

reformulada. São Paulo: RT, 2011. p. 183-184.

5 MILARÉ, Édis. Op. Cit., p. 184

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Mas a questão permeia todo o seu texto, correlacionada com os temas fundamentais da

ordem constitucional.6

Vem à luz no texto constitucional brasileiro a consciência de que o direito à vida

é que orienta todas as formas de atuação no campo da tutela do meio ambiente.

Sobressai-se, portanto, diante de outros direitos como o de propriedade e diante de

considerações sobre desenvolvimento. Nesse contexto, José Afonso da Silva explica:

Também estes são garantidos no texto constitucional, mas, a toda evidência, não podem

primar sobre o direito fundamental à vida, que está em jogo quando se discute a tutela

do meio ambiente.7

Tal prevalência refuta, inclusive, a polêmica sobre a supremacia do interesse

público sobre o privado, ou vice-versa, como ensina Daniel Sarmento. Ademais, com o

reconhecimento, pela ordem jurídica brasileira, de direitos fundamentais de titularidade

transindividual, como o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225,

CF), esta convergência se acentua, pois nestes casos o interesse da coletividade já é, por

si só, direito fundamental, existindo plena identidade conceitual entre ambos.8

Por previsão Constitucional (Art. 49, I) a recepção pelo Brasil, de tratados

internacionais “que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao Patrimônio

Nacional” é atribuição do Congresso Nacional. O instrumento para validar esses

tratados é o decreto legislativo.

3. O direito à Igualdade como direito fundamental

O ideário de igualdade é consagrado e tutelado como direito fundamental na

Constituição Brasileira de 1988 no art. 5º que inaugura o elenco dos direitos

fundamentais

6 SILVA, José Afonso da. Op. Cit., p. 46 7 SILVA, José Afonso da. Op. Cit., p. 70 8SARMENTO, Daniel. Livres e Iguais: Estudos de Direito Constitucional. 2. Ed. Rio de Janeiro: Lumen

Júris, 2010. p. 72.

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Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se

aos brasileiros e estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida,

à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes.9

Evidencia-se o protagonismo do princípio da igualdade no cenário jurídico

constitucional através também da irradiação de seus efeitos a todos os demais direitos e

garantias individuais e coletivos que integram a extensa relação de direitos

fundamentais. A enunciação do termo igualdade também no preâmbulo

constitucional10 expõe a mensagem igualitária como eixo central da Constituição e

imprime à Carta a preocupação com a transformação social.

A preocupação com a igualdade aparece também no âmbito dos Princípios

Fundamentais que integram o Título I que elenca objetivos finalísticos do Estado

brasileiro tais como

I – construir uma sociedade, livre e solidária;

III – erradicar a pobreza e marginalização e reduzir as desigualdades sociais e

regionais;

IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e

quaisquer outras formas de discriminação.11

Ao estabelecer tais metas para o Estado, a Constituição, por si, já admite a

existência literal da desigualdade social, apesar da igualdade formal que ela mesma trata

de validar.

Tal reconhecimento, porém, não invalida o caráter transformador social

impresso na Carta Magna, ao contrário, acentua sua preocupação em buscar a igualdade

material – tratamento igualitário de todos os seres humanos, inclusive na concessão de

oportunidades. Imprime-se, assim, a herança do preceito liberal na nossa Carta Magna.

A igualdade restringe-se ao aspecto formal e no aspecto material, a busca da isonomia

fica a cargo do indivíduo. Esta herança, porém, não se configura na concepção liberal

pura, já que é possível perceber, como ressalta Carlos Roberto Siqueira Castro

9 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 2000. p. 15 10 Destaca-se no preâmbulo constitucional o uso do termo igualdade – “a igualdade e a justiça como

valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, e fundada na harmonia social” 11 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Op. cit., p. 13

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“vigorosos vetores para uma interpretação constitucional voltada à superação das

desigualdades culturais, sociais e econômicas.” 12

Continua Carlos Siqueira Castro:

Auscultando, pois, as mensagens que emanam do preâmbulo e dos direitos e garantias

fundamentais da Constituição de 1988, relacionados com o ideal da igualdade,

recolhe-se a convicção de que – conquanto sob uma dicção aparentemente

tradicionalista – o artigo 5º instaura o que podemos denominar de a nova igualdade,

haja vista o seu conteúdo substantivo e dirigido alcance transformador.13

Após visitarmos a fundamentabilidade dos direitos ao ambiente equilibrado e à

igualdade na Constituição brasileira, abordaremos a interdependência desses dois

direitos para que tenham efetividade e coadunem com a concepção de dignidade

humana, preceito axiológico da nossa Carta Magna. Notaremos, então, que o papel do

Estado será um diferencial neste contexto.

4. Interdependência dos dois direitos e o papel do Estado

Como direitos fundamentais, o direito à igualdade e o direito ao ambiente

equilibrado são basilares na concepção da dignidade humana, condição fundante da

Constituição Federal de 1988. A Carta Magna contemplou a percepção de que a

proteção eficiente do patrimônio ambiental é um dos elementos que garantem a

igualdade entre os homens.

Em sintonia, no princípio 12, seção IV, a Carta da Terra14 expressa essa concepção e

a classifica como objetivo dos Estados signatários.

12 CASTRO. Carlos Roberto Siqueira. A Constituição aberta e os Direitos Fundamentais. Ensaios sobre

o constitucionalismo pós-moderno e comunitário. 1. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 360 13 CASTRO. Carlos Roberto Siqueira. Op. Cit., p. 360 14 A Carta da Terra é uma declaração contendo 16 princípios éticos fundamentais, resultante do evento

conhecido como Fórum do Rio + 5, realizado no Rio de Janeiro em 1997, a título de promover um

balanço da política ambiental, cinco anos depois da Rio 92. Reconhece que os objetivos de proteção

ecológica, erradicação da pobreza, desenvolvimento econômico eqüitativo, respeito aos direitos humanos,

democracia e paz são interdependentes e indivisíveis. Atualmente, foi traduzida para 40 línguas e

subscrita por mais de 4 mil organizações.

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Defender, sem discriminação, os direitos de todas as pessoas a um ambiente natural

e social capaz de assegurar a dignidade humana, a saúde corporal e o bem-estar

espiritual, com especial atenção aos direitos dos povos indígenas e minorias.15

As realidades mundial e brasileira, no entanto, demonstram que imperam as

discriminações social e ambiental. O vínculo direto entre a desigualdade social e o

desequilíbrio ambiental é abordado com propriedade por José Robson da Silva

O desequilíbrio ambiental apanhado no ângulo social aponta para causas variadas (…)

visto que os sistemas político, econômico e jurídico-normativo privilegiam a

concentração dos recursos ambientais no patrimônio de alguns sujeitos (…) A tutela

dos recursos ambientais para as gerações futuras dentro do modelo econômico que se

tem será uma tutela seletiva, pois as gerações que estarão garantidas serão aquelas que

descenderam dos controladores do ambiente, dos meios de produção. A garantia do

meio ambiente equilibrado para as futuras gerações é dependente dos mecanismos de

acesso aos recursos, pois o que se tem até aqui é um acesso desigual.16

O referido autor sustenta com argumento convincente seu raciocínio ao discorrer:

“Aqueles que não detêm um mínimo patrimonial que lhes permita satisfazer as

necessidades básicas da sobrevivência, tendem a se concentrar primeiro em alcançar

este mínimo patrimonial para posteriormente ter um agir ambientalmente correto”.17

Este cenário impõe aos Estados um papel primordial diante da inescapável

interdependência dos direitos à igualdade e ao ambiente equilibrado.

No caso do Brasil, cuja história é marcada pelo abismo socioeconômico, o quadro

esboçado acima é real, mas encontra um cenário favorável. Isto por conta de uma

conjunção de fatores também já expostos neste estudo, quais sejam:

I – A igualdade e o ambiente equilibrado são direitos fundamentais previstos na

Constituição Federal.

II – A Carta Magna abraçou o princípio da dignidade humana como valor

axiológico.

15 TERRA. Carta da. Disponível em www.cartadaterrabrasil.org. Acesso em 25.11.11. (grifamos) 16 SILVA. José Robson da. Paradigma biocêntrico: do patrimônio privado ao patrimônio ambiental. Rio

de Janeiro: Renovar. In MILARÉ, Edis. Op. cit., p. 132 e 133. 17 SILVA. José Robson da. Op. cit., in MILARÉ, Edis. Op. cit., p. 133

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III – A concepção liberal impressa na Constituição Federal não é fiel ao rigor

puro do liberalismo econômico que, ao satisfazer-se com a igualdade formal, prevê a

indiferença do Estado no que tange à busca da igualdade material pelo cidadão.

Nesse sentido, a aspiração de alcançar padrões sociais mais uniformes se consagra

como objetivo do Estado brasileiro, imprimindo o princípio isonômico – ora direta,

ora indiretamente -, no preâmbulo e em todos os dispositivos constitucionais.

A combinação dos fatores expostos acima configura um terreno fértil para um maior

respeito à dignidade humana, já que a busca pela igualdade material pode reduzir a

pobreza, levar alimento à mesa dos famintos e estas ações podem se reverter em

preservação e maior conscientização ambiental. Como bem lembra José Robson da

Silva “(…) parece claro que uma pessoa bem alimentada, com as necessidades básicas

atendidas e com tempo para o lazer, reage em relação às questões ambientais de um

modo diferente daquele que nada possui”.18

Na busca por maior equidade, o constitucionalismo contemporâneo tem adotado

duas alternativas que encontram eco no nosso modelo constitucional. As ações

afirmativas e o princípio da solidariedade.

As ações afirmativas ou positivas são o artifício encontrado pelos Estados para

superar as incongruências inerentes à igualdade liberal – sempre formal e não material.

Elas consistem em dar um tratamento diferenciado e preferencial respaldado em lei para

aqueles cidadãos que, por contingência histórica, estão, discriminadamente, imersos na

desigualdade material. Através dessas ações, o poder público busca suprir as falhas da

pseudoigualdade prevista na Constituição e alcançar maior igualdade nos planos social e

econômico.

Os efeitos desta compensação vão além da superação da mera discriminação.

Traduzem-se como justiça distributiva19 e são destacados por Carlos Roberto Siqueira

Castro

O que se pretende com a adoção de políticas afirmativas, em realidade, é a promoção

dos princípios da diversidade e do pluralismo, de modo que venham a se operar

18 SILVA. José Robson da. Op. cit., in MILARÉ, Edis. Op. cit., p. 133 19 Não é objetivo deste estudo esmiuçar o conceito de justiça distributiva. Sobre definição e histórico do tema ver FLEISCHACKER, Samuel. Uma breve história da justiça distributiva. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

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transformações tanto no comportamento como na mentalidade da sociedade como um

todo. 20

É também nesse contexto em que se expressa o que Jürgen Habermas chama de

“sensibilidade para as diferenças” 21 que o princípio da solidariedade encontra eco. Este

princípio baseia-se em desconstruir a ideia primeira do liberalismo de que a igualdade é

orientada pelo valor da liberdade e esta, por sua vez, histórica e contingencialmente

vinculada à propriedade, resultou na igualdade reconhecida apenas formalmente, ou

seja, na lei. O princípio da solidariedade, portanto, reverte esta tendência histórica ao

reorientar a liberdade pelo valor da igualdade, desvinculadas da noção de propriedade,

numa busca pela superação das desigualdades tanto entre nações como entre as pessoas

dentro das nações.

Neste sentido, descreve Carlos Roberto Siqueira Castro

Trata-se de postulado alçado em ideia-força da contemporaneidade, que inspira e

legitima a concepção do Estado Social Democrático de Direito. Seu fundamento

essencial é a crença de que a ordem social e econômica pode ser aprimorada em

termos de maior igualdade material entre os homens mediante intervenções

solidaristas do Estado e da sociedade civil organizada. Em suma, nestes tempos de

crise permanente, o princípio da solidariedade representa a energia da filosofia

humanista em prol da unidade dos padrões civilizatórios dentro da heterogeneidade

da vida social. De fato, não mais prevalece a visão cíclica e intermitente das crises na

vida dos povos e das nações. O sentimento geral do existencialismo pós-moderno é

no sentido da permanência e ilimitação da crise, que passou a ser planetária e

multitemática (crise energética, crise de abastecimento, crise ambiental, crise de

mercado etc.). Em tal contexto, a ideia da solidariedade assume o sentido do

instrumental da esperança, ou de elo perdido, para a conciliação entre a memória

evocativa de valores humanitários, que receberam cuidadoso acabamento por três

séculos de modernidade, e o salto no desconhecido e nas projeções impalpáveis do

terceiro milênio.22

Também na visão de Habermas, a solidariedade, pautada pela racionalidade e

estruturada na ação comunicativa, não se confunde com a caridade. Fundamenta-se na

empatia, na estima social, configurando o que o autor denomina de “consciência nós”, a 20 CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. Op. Cit., p.364 21 HABERMAS, Jürgen, A inclusão do outro estudo de Teoria Política, Edições Loyola, São Paulo: 2002, p. 166 in CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. Op. Cit., p. 364 22 CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. Op. Cit., p. 389

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disposição dos cidadãos ao consenso intersubjetivo, com a convicção de que o bem do

outro pode ser também o meu bem.

Na concepção habermasiana, a solidariedade expande-se do universo limitado do

indivíduo e do Estado nacional para outros indivíduos e ambientes supranacionais

quando cidadãos, imbuídos da sensibilidade para as diferenças, admitem a igualdade

entre estranhos, configurando-se a solidariedade cosmopolita.

Aliando conceitos de igualdade e solidariedade, Habermas distingue a

responsabilidade solidária. É nesta distinção que indiretamente, o autor remete-nos à

interdependência dos direitos à igualdade e ao meio ambiente equilibrado. Pelo viés da

moral, Habermas sugere o comprometimento da responsabilidade solidária com a

responsabilidade com as gerações futuras

sem aquilo que move os sentimentos morais da obrigação e da culpa, da censura e do

perdão, sem o sentimento de libertação conferido pelo respeito moral, sem a sensação

gratificante proporcionada pelo apoio solidário e sem a opressão da falha moral, sem a

“amabilidade” que nos permite abordar situações de conflitos e contradição com o

mínimo de civilidade, perceberíamos necessariamente – e é assim que ainda pensamos

– o universo povoado pelos seres humanos como algo insuportável. A vida no vácuo

moral, numa forma de vida que não conheceria nem mais um cinismo moral, não

valeria a pena. Esse julgamento exprime simplesmente o “impulso” de se preferir uma

existência da dignidade humana à frieza de uma forma de vida insensível às

considerações morais. 23

A responsabilidade solidária proposta por Habermas não exclui, portanto, a

responsabilidade que temos com as futuras gerações, pois serão elas as afetadas com

nossas ações e decisões do presente.

O destino da vida social no futuro é preocupação também de José Fernando de

Castro Farias que evoca a solidariedade em sua exposição

O discurso solidarista, que certos filósofos, sociólogos e juristas colocaram em

evidência no final do século XIX e início do século XX, significava a constatação de

que grupos inéditos estavam se constituindo, e que novas formas de solidariedade se

compunham. A solidariedade representa a constatação de que, ao lado das formas

tradicionais de solidariedade, a sociedade caminha para uma complexidade crescente

23 HABERMAS, Jürgen, O futuro da natureza humana: A caminho de uma eugenia liberal? Trad. Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 101

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com novas práticas sociais, políticas, jurídicas, econômicas, culturais, industriais e

tecnológicas que subvertem os dados da vida social. Esta não é mais o conjunto coerente

que os antigos e também o individualismo do pensamento moderno imaginaram.

Doravante, a sociedade caminha para uma diferenciação cada vez maior, uma

heterogeneidade crescente onde é excluída toda possibilidade de um retorno ao

homogêneo. A vida social não pode mais ser pensada fora de um combate permanente,

fora de turbulências, onde uma pluralidade de formas de vida afeta todos os grupos que

se encontram, se afrontam, se combatem, se aliam ou se acomodam entre si no interior

de um espaço onde os homens nascem, por acaso. As épocas em que as hierarquias

naturais podiam conter essa efervescência não existem mais. O discurso solidarista tenta

forjar uma unidade levando em conta essa pluralidade da vida social. 24

Sem embargo dos ganhos materiais imediatos e indispensáveis à sobrevivência de

milhões de indivíduos, o que se espera também das ações afirmativas e das iniciativas

pautadas no princípio da solidariedade é que esses dois vetores possam contribuir cada

vez mais para o alargamento da representatividade social. Ou seja, mais do que alvo das

iniciativas inclusivas, os outrora excluídos passem também a ser cidadãos ativos dos

novos desafios contemporâneos que se impõem ao Estado e à sociedade civil.

Um desses desafios inevitáveis certamente é assegurar que Estado e sociedade

tenham capacidade de ao menos arbitrar o enorme contencioso que se levanta entre

progresso econômico e tecnológico e o patrimônio ambiental. Considerando-se que o

embate se dá num modo de produção capitalista em que lucro e propriedade são, a um

só tempo, elementos basilares e objetivo último, somente um estado legitimado pela

atuação consciente da esmagadora maioria dos seus cidadãos terá capacidade de dar

cabo dessa missão.

Como nos lembra Gilberto Dupas:

Os estados nacionais estão frágeis em relação ao capital e o poderio das

empresas transnacionais – particularmente o setor financeiro – domina o palco

decisório. A estabilidade de emissões [de CO2] é imperativa, mas os efeitos das

concentrações acumuladas são inevitáveis (...) E mesmo quando os problemas

ambientais assumem uma dimensão global, tentativas inovadoras são frequentemente

impedidas pela presença de agendas escondidas que resultam na impossibilidade de

consenso sobre metas conjuntas. 25

24 FARIAS. José Fernando de Castro. A origem do direito de solidariedade. 1 ed. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 1998. p. 195 25 DUPAS. Giberto (org.). Meio ambiente e crescimento econômico – Tensões estruturais. 1 ed. São Paulo: Editora Unesp, 2008. p.14 e 15.

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E no bojo das agendas escondidas, oportunamente lembradas por Dupas, temos

ainda aquelas agendas muito particulares, não raro travestidas de interesse comum, e

muito presentes no discurso dos lobbies que representam os mais diversos segmentos

que passam ao largo de qualquer ideia ou iniciativa voltadas para os objetivos

universais. E isso embute armadilhas com efeitos muito deletérios como, por exemplo,

as tentativas de negar a validade de princípios universais, em benefício dos

pseudoconsensos.

Assim como a última crise econômica da União Europeia fez surgir a ideia (falsa) de

que não é prerrogativa da democracia questionar determinados rumos dos mercados, já

não será surpresa a negativa da sua legitimidade para tratar da crise de ordem climática.

Assim, somente o fortalecimento das sociedades democráticas é que irão assegurar

estados nacionais igualmente democráticos e dotados de instrumentos capazes de

contrapor às agendas escondidas e aos falsos consensos.

Neste sentido, uma vez mais, comprova-se a importância de buscar a efetividade dos

direitos à igualdade e ao ambiente equilibrado que, na essencialidade de sua

interdependência, impõem-se como credenciais para o vigor democrático.

5. Conclusão

Ao final deste trabalho, quando ficam demonstradas a fundamentabilidade e a

interdependência de dois direitos – à igualdade e ao ambiente equilibrado – cujas

efetividades respaldam o princípio da dignidade humana, preceito fundante dos

constitucionalismos brasileiro e ocidental, evidencia-se como impactante a

complexidade do contexto contemporâneo em que os efeitos dos abismos sociais e da

degradação ambiental se acentuam em todo o planeta.

A combinação desses dois fenômenos certamente não é obra do acaso, haja vista

a correlação direta entre índices de exclusão social, fragilidade da sociedade civil e

consequentemente dos seus respectivos estados nacionais. Numa sociedade em que

faltam condições de sobrevivência digna, não é de se estranhar que a proteção ambiental

fique em segundo plano.

Esta, porém, tem presença obrigatória no leque multitemático de crises que

assolam os continentes atualmente. As crises econômica e ambiental convergem para o

sentido da escassez. Enquanto a primeira aponta para a falta de recursos de ordem

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financeira e postos de trabalho, por exemplo, a segunda, por sua vez, aparece para nos

fazer lembrar que a escassez se dará na ordem dos recursos naturais.

Lançar políticas públicas, ancoradas no nosso modelo constitucional e baseadas

em princípios como o da solidariedade, como é o caso das ações afirmativas ou

positivas tem sido a alternativa adotada pelo Estado para enfrentar as disparidades e

buscar transformações de mentalidades na sociedade visando tanto à redução das

desigualdades sociais como à maior preservação dos recursos naturais do nosso planeta.

Mais do que inclusão, o desafio planetário é trazer para o jogo político cidadãos

com plena capacidade de ação. O caminho para a emancipação está em aperfeiçoar a

luta pela igualdade em ambientes onde o mercado toma ares de sujeito e dita leis. Estas

só serão derrubadas quando consolidarem-se consciências como a de que o cidadão é

superior ao mercado e a de que prezar a igualdade e o meio ambiente é o mesmo que

prezar a vida.

6. Referências bibliográficas BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal,

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O DIREITO À EDUCAÇÃO E O DIREITO AO TRABALHO À LUZ DO MULTICULTURALISMO

LE DROIT À L'ÉDUCATION ET LE DROIT AU TRAVAIL DANS LA PERSPECTIVE DU MULTICULTURALISME

Vanessa Vieira Pessanha∗

RESUMO O estudo busca apresentar elementos que demonstrem a análise do direito à educação e do direito ao trabalho sob a ótica do multiculturalismo, oferecendo ao leitor algumas reflexões acerca dos elos de ligação que podem ser estabelecidos entre os três conceitos em foco. Para tanto, a partir de uma perspectiva hermenêutica, é realizada uma breve explicação acerca de pontos principais que envolvem o multiculturalismo, seguida de noções basilares dos dois direitos fundamentais em comento no artigo, iniciando pelo direito à educação e continuando com o direito ao trabalho. A análise que corresponde ao foco do estudo ocorre na sequência, com algumas reflexões propostas no que concerne à percepção do direito à educação e do direito ao trabalho analisados à luz do multiculturalismo, procurando reconhecer situações de conflito e perceber seu alcance e aplicabilidade. PALAVRAS-CHAVE: Direito à educação; Direito ao trabalho; Multiculturalismo. RÉSUMÉ L'étude vise à présenter des preuves de l'analyse du droit à l'éducation et le droit au travail dans la perspective du multiculturalisme, en fournissant au lecteur quelques réflexions sur les liens qui peuvent être établis entre les trois éléments de mise au point. À cette fin, du point de vue herméneutique, se tient une brève explication des principaux points concernant le multiculturalisme, suivis des notions de base de deux droits fondamentaux en cours de discussion dans l'article, à commencer par le droit à l'éducation et à la suite avec le droit au travail. L'analyse correspond à l'objectif de l'étude est la suite, par quelques réflexions concernant la réalisation proposée du droit à l'éducation et le droit au travail analysé à la lumière du multiculturalisme, cherche à reconnaître les conflits et réaliser son champ d'application et l'applicabilité. MOTS-CLÉS: Droit à l'éducation. Droit au travail. Multiculturalisme. 1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como escopo delinear a relação que pode ser estabelecida

entre multiculturalismo, educação e trabalho, tendo em vista a complexa realidade social da

∗ Bacharel em Direito (Unifacs). Licenciada e Bacharel em Letras Vernáculas (Ufba). Especialista em Direito e Processo do Trabalho (Faculdade Baiana de Direito). Mestre em Direito Privado e Econômico (Ufba). Doutoranda em Relações Sociais e Novos Direitos (Ufba). Advogada. Docente em cursos presenciais e EaD. Coordenadora dos cursos de Pós-graduação Lato Sensu das áreas de Educação e Comunicação (Unifacs). E-mail: [email protected]

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atualidade e as ligações passíveis de observação e análise no que tange ao multiculturalismo e

à construção do processo de efetivação dos referidos direitos sociais.

No intuito de cumprir a finalidade almejada, o item 2 é dedicado a uma revisão

teórica a respeito de pontos fundamentais do multiculturalismo, procurando compreender em

que consiste e qual a sua atual configuração.

No item 3, a abordagem teórica caminha na direção de demonstrar algumas questões

principais que envolvem os direitos fundamentais à educação e ao trabalho, bem como seu

alcance e sua relevância no contexto social.

O item 4 incorpora a responsabilidade de apresentar alguns possíveis pontos de

convergência entre os três elementos basilares do estudo (multiculturalismo, educação e

trabalho), sendo fruto de reflexões sobre a influência que o multiculturalismo pode exercer na

efetivação de direitos fundamentais como os direitos à educação e ao trabalho, especialmente

levando em consideração questões de natureza econômica e de diversidade social e moral. O

intuito é realizar uma análise dos referidos direitos à luz do multiculturalismo, procurando

avaliar as possibilidades de interseção.

Passar-se-á, agora, à explanação do primeiro tema fundamental da análise em

comento: o multiculturalismo.

2 BREVES LINHAS ACERCA DO MULTICULTURALISMO

Fábio Konder Comparato1 assevera que “a identidade de uma nação é de natureza

predominantemente cultural, formando um conjunto próprio de costumes, valores e visões do

mundo. É essa especificidade cultural que distingue uma nação das demais [...]”. Todavia,

sabe-se que, apesar dessa identidade originalmente pensada, costumam coexistir culturas

diferentes (multiculturalismo) mesmo dentro de um território nacional – trata-se, portanto, de

uma situação que pode ser vislumbrada tanto em comparação a países e hemisférios

diferentes, como também avaliando um único país, a exemplo do Brasil.

Sobre o conceito e a origem do multiculturalismo, vale trazer à baila as palavras de

Mônica Aguiar: “o termo multiculturalismo, na acepção utilizada para designar multiplicidade

1 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 99.

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de culturas, surgiu no início da década de 70, no Canadá, tendo como principal escopo a

integração cultural”2.

Em sua origem, destarte, o multiculturalismo está diretamente ligado a uma relação

sendo estabelecida entre as culturas, diversas sim, porém passíveis de convivência em um

determinado espaço social e em tempo real.

Ocorre que o caminho atualmente trilhado vem seguindo em outra direção:

Nascido com esse propósito de fazer coexistir diferentes visões culturais, [o multiculturalismo] chega aos nossos tempos com aplicação inteiramente oposta no campo prático, qual seja o de fechamento ou bloqueio cultural, na medida em que a proteção à diversidade de culturas enseja a criação de um muro invisível pelo qual se chega, a pretexto de preservar determinados valores não universais, a manter-se um isolacionismo cultural.3

Na visão da autora, essa situação leva à criação de um contrassenso, uma vez que a

liberdade cultural, ao invés de integrar, leva à segregação (como forma de manutenção da

cultura).

Inicialmente, o multiculturalismo visava à inclusão, porém, com o tempo, passa a ser

concebido e aplicado como um reconhecimento da diferença – que, para continuar a existir,

precisava ser separada e conviver basicamente entre seus pares, afastada socialmente daquilo

que difere da sua realidade.

A necessidade de uma compreensão mais adequada desse fenômeno vem gerando

uma série de estudos, cuja repercussão tem se intensificado com o processo de globalização

cada vez mais acentuado.

Como explica Losano4, a difusão da informática e das redes telemáticas vem

influenciando diretamente o processo de globalização, uma vez que, no momento histórico

atual, está incomparavelmente mais veloz, intenso e penetrante.

A troca de informações facilitada e cada vez mais rápida tem proporcionado uma

visão nitidamente mais significativa acerca das semelhanças e diferenças existentes no modo

de ser, agir e pensar das comunidades em todo o mundo.

Nas palavras de Semprini5, o multiculturalismo funciona como um importante

indicador da crise do projeto de modernidade, sendo essa uma questão que merece relevo: “ao

colocar à modernidade a questão da diferença, o multiculturalismo ultrapassa a especificidade

2. AGUIAR, Mônica. A pr oteção do direito à diferença como conteúdo do princípio da dignidade humana: a desigualdade em razão da orientação sexual. Disponível em: <http://www.diritto.it/art.php?file=/archivio/24747.html#>. Acesso em 23 fev. 2013, p. 1. 3. Ibidem, p. 1-2. 4 LOSANO, Mario G. Os grandes sistemas jurídicos: introdução aos sistemas jurídicos europeus e extra-europeus. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 65. 5 SEMPRINI, Andrea. Mult iculturalismo . Bauru, SP: EDUSC, 1999, p. 08-09.

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de qualquer contexto nacional e propõe um sério desafio de civilização às sociedades

contemporâneas”. E esse, sem dúvida, é um ponto crucial acerca do tema.

É fato que alguns elementos permanecem sendo vislumbrados como de caráter

discriminatório na convivência entre os seres humanos, a exemplo da raça e da classe social6.

Trata-se de situação evidente o problema de aceitação das diferenças. Conhecer o

outro, com suas especificidades, e reconhecer o outro como sujeito de direitos, apesar de suas

particularidades (que, muitas vezes, os distancia tanto), consiste, de fato, em um desafio que,

embora não seja neonato, é bastante atual, diariamente travado no seio das sociedades.

Reconhecer a alteridade corresponde a uma noção comumente relacionada ao

reconhecimento do outro pautado na noção de respeito à sua dignidade e seus direitos, apesar

de suas diferenças.

Nesse sentido, para Habermas7, nas sociedades multiculturais é fundamental que se

assegure o respeito à cultura de cada indivíduo que faz parte da sociedade, com base na ideia

de que os direitos são iguais, preservando-se, assim, sua herança cultural. Dessa forma, trata-

se de um tema que costuma perpassar problemas de identidade e reconhecimento.

Seguindo essa linha de raciocínio, torna-se relevante perceber que o

multiculturalismo “entende a cultura não restrita à etnia, à nação ou à nacionalidade, mas

como um lugar de direitos coletivos para a determinação própria de grupos” 8.

Dentro do contexto apresentado, a epistemologia multicultural é responsável por

apresentar o embasamento teórico do tema.

A referida epistemologia está alicerçada em quatro paradigmas fundamentais9: a) a

realidade consiste em uma construção; b) as interpretações são essencialmente subjetivas; c)

os valores podem ser considerados elementos com alto teor de relatividade; d) o

conhecimento, por sua vez, é um fato de natureza política.

À epistemologia multicultural opõe-se a epistemologia monocultural, defensora de

parâmetros diametralmente opostos àqueles propostos pela primeira, a exemplo de uma

notória desvalorização dos fatores culturais e simbólicos da vida coletiva.

Vale ressaltar que desse debate entre as epistemologias multicultural e monocultural

surgem algumas aporias, dentre as quais se versará um pouco, no item 4 do presente estudo, 6 AGUIAR, Mônica. A pr oteção do direito à diferença como conteúdo do princípio da dignidade humana: a desigualdade em razão da orientação sexual. Disponível em: <http://www.diritto.it/art.php?file=/archivio/24747.html#>. Acesso em 23 fev. 2013, p. 2. 7 HARBEMAS, Jürgen. Lutas pelo reconhecimento no estado democrático constitucional. In: Mul ticulturalismo . Charles Taylor (Org.). Lisboa: Instituto Piaget, 1998. 8 BUENO, José Geraldo Silveira. Surdez, linguagem e cultura. Disponível em: <http://moodle.stoa.usp.br/file.php/257/Textos/surdez_linguagem_cultura.pdf>. Acesso em: 23 fev. 2013. 9 SEMPRINI, Andrea. Mult iculturalismo . Bauru, SP: EDUSC, 1999, p. 83-84.

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especificamente sobre duas (aplicadas ao assunto ora proposto): relativismo versus

universalismo e reconhecimento subjetivo versus mérito objetivo. Para Semprini10, são

classificadas como aporias tendo em vista a dificuldade de mediação dialética entre essas

controvérsias, gerada pelas contendas entre as duas epistemologias supracitadas.

Ainda de acordo com o referido autor, no âmbito ocidental, a diferença ganha um

espaço extremamente significativo após a 2ª Guerra Mundial, com o genocídio judeu,

passando a ser considerada, a partir de então, um valor em si mesma.

Outrossim, como explicita Semprini11:

[...] Diferença e identidade, igualdade e justiça, relativismo e universalismo, racionalismo e subjetividade, cidadania, ética, direito... estes termos nos são familiares. São as categorias mesmas do projeto moderno em seu conjunto que estão passando por uma crise. Mais que um desafio social e político, mais que um desafio teórico e filosófico, trata-se de um verdadeiro desafio de civilização que nos é lançado pelo multiculturalismo.

É possível afirmar, portanto, que a diferença – bem como todas as suas implicações –

ostenta o título de ser um dos elementos essenciais quando se trata de multiculturalismo, em

que pese a necessidade de pontuar que esse, em absoluto, não corresponde a um problema

exclusivamente ocidental.

Mônica Aguiar12 lembra que o desafio atual reside na necessidade de reforçar o

multiculturalismo no viés da igualdade.

Na visão de Fábio Konder Comparato13, essa “é a parte mais bela e importante de

toda a História: a revelação de que todos os seres humanos, apesar das inúmeras diferenças

biológicas e culturais que os distinguem entre si, merecem igual respeito [...]”. Assim sendo, o

autor, no intuito de apresentar sua afirmação histórica dos direitos humanos, considera a

referida revelação – de isonomia entre os seres humanos – como sendo “[...] o

reconhecimento universal de que, em razão dessa radical igualdade, ninguém – nenhum

indivíduo, gênero, etnia, classe social, grupo religioso ou nação – pode afirmar-se superior aos

demais”.

A igualdade, dessa forma, não deve ser analisada sob o prisma da ausência de

diversidade. A diferença existe, porém deve ser vislumbrada como um fato que não impede o

diálogo, mas sim fortalece a percepção de que, sendo todos iguais, deve haver espaço para

10 SEMPRINI, Andrea. Mult iculturalismo . Bauru, SP: EDUSC, 1999, p. 90. 11 Ibidem, p. 173. 12 AGUIAR, Mônica. A pr oteção do direito à diferença como conteúdo do princípio da dignidade humana: a desigualdade em razão da orientação sexual. Disponível em: <http://www.diritto.it/art.php?file=/archivio/24747.html#>. Acesso em 23 fev. 2013, p. 3. 13 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 1.

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suas manifestações diferenciadas, coexistindo em harmonia (sem excluir) e incorporando a

realidade claramente multicultural em que se vive.

Reforçando esse imperativo e a complexidade da matéria, perceber aspectos

positivos e negativos pode auxiliar também na melhor avaliação da questão ora em foco:

O multiculturalismo é, assim, considerado positivo quando permite à sociedade refletir sua diversidade em todos os níveis e quando propicia a igualdade de oportunidades para todos os grupos étnicos e culturais que a compõem. Pode ser considerado perigoso quando instrumentaliza as minorias com o conhecimento somente de uma cultura étnica e das tradições de seu grupo, tornando-as, assim, despreparadas para competir com os grupos dominantes da sociedade que detêm, entre outras coisas, o conhecimento oficial e ocidental que lhes permite vencer tal competição.14

Após essas breves linhas de contextualização do multiculturalismo e algumas das

dificuldades com as quais convive, segue o texto no intuito de contemplar as outras duas

bases do estudo em voga: o direito à educação e o direito ao trabalho.

3 DIREITOS FUNDAMENTAIS À EDUCAÇÃO E AO TRABALHO

Os direitos à educação e ao trabalho serão apresentados na sequência, com o intuito

de conhecer seu alcance e relevância dentro do rol de direitos fundamentais sociais.

3.1 DIREITO À EDUCAÇÃO

Para iniciar o tópico, faz-se necessário conceituar o processo educacional. Maria

Cristina Lima15 explica que a educação

[...] é a prática contínua e intermitente de se transmitir e receber informações, que se vão construindo com o tempo, por elas sendo o homem influenciado, ao tempo que também as influencia, ajudando, assim, a desenvolver o meio onde vive e, também, desenvolver-se.

A educação é concebida como um direito fundamental no art. 6º da Constituição

Federal de 1988 e, ao ser atribuído ao processo educacional tal status jurídico, estudiosos do

14 LIMA, Solange Martins Couceiro. Mul ticulturalismo . Disponível em: <http://www.revistas. univerciencia.org/index.php/comeduc/article/view/4078/3828>. Acesso em: 02 mar. 2013. 15 LIMA, Maria Cristina de Brito. A educação como direito fundamental. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 1-2, grifos do autor.

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tema (a exemplo de Wilson Liberati16) fazem questão de registrar que se trata de um direito

destinado a todos os indivíduos.

Como lembra Murillo José Digiácomo17, “mais do que um direito fundamental de

toda criança e adolescente, [...] o direito à educação se constitui num verdadeiro direito

natural inerente à pessoa humana, sejam quais forem sua idade ou sua condição social”.

Dessa forma, compreender a educação como um instrumento de transformação social

passa pela ideia inicial de entendê-la como estágio essencial na vida do indivíduo, preparando,

inclusive, seu processo de formação como cidadão.

Nas palavras de Wilson Liberati18, a partir de tal acepção é possível compreender a

frase “educação é poder”, “permitindo concluir que ela é a chave para estabelecer e reforçar a

Democracia, promover o desenvolvimento humano sustentável e contribuir para uma paz

baseada no respeito mútuo e na justiça social”.

Inventariar a educação como instrumento que potencializa o desenvolvimento

pessoal (indivíduo) e de toda a sociedade ao seu redor representa uma das maneiras de

vislumbrar sua relevância.

Visão interessante é também apresentada por Regina Muniz19, ao asseverar que “a

educação engloba a instrução, mas é muito mais ampla. Sua finalidade é tornar os homens

mais íntegros, a fim de que possam usar da técnica que receberam com sabedoria [...]”.

Na passagem citada, a autora demonstra uma perspectiva mais humanística da

educação, como um fator de evolução, de transformação do indivíduo, capaz não apenas de

absorver conhecimentos, mas também de modificar o mundo ao seu redor por meio de uma

atuação adequada e ética.

Ismael Gílio20 trata da ligação nitidamente existente entre a educação e a economia:

A educação, [...] à medida que se buscam soluções tanto para problemas sociais brasileiros quanto para a inserção da economia brasileira no mercado internacional, ou para a construção de um novo ciclo ou modelo de desenvolvimento, apresenta-se como a principal e mais importante estratégia, pois está indissoluvelmente ligada ao processo de desenvolvimento econômico. A importância da educação em nenhuma época foi tão grande como agora.

16 LIBERATI, Wilson Donizeti. Conteúdo material do direito à educação escolar. p. 207-271. In: LIBERATI, Wilson Donizeti. Direito à educação: uma questão de justiça. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 210. 17 DIGIÁCOMO, Murillo José. Instrumentos jurídicos para garantia do direito à educação. In: LIBERATI, Wilson Donizeti. Direito à educação: uma questão de justiça. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 277 (grifos do autor). 18 LIBERATI, Wilson Donizeti. Op. cit., p. 210. 19 MUNIZ, Regina Maria Fonseca. O direito à educação. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 09. 20 GÍLIO, Ismael. Trabalho e educação: formação profissional e mercado de trabalho. São Paulo: Nobel, 2000. p. 37.

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É muito difícil, de fato, compreender o processo de desenvolvimento econômico e

social sem o devido investimento em educação, ou seja, sem que as pessoas possam ter acesso

à escola – e nela possam permanecer durante o tempo necessário à obtenção da finalidade

almejada –, buscando a oportunidade de desenvolvimento e consolidação das bases para alçar

voos, alcançando uma melhor condição de vida e, em última análise, construindo um espaço

social mais igualitário.

Tratando, ainda, da realidade brasileira, Adelaide Dias21 apresenta um retrato da

situação vivenciada atualmente:

Não obstante, tenhamos avançado, a partir da segunda metade do Século XX, em termos de definição da educação como direito do homem, a educação como direito está longe de ser efetivada em termos de direito de toda e qualquer pessoa em nosso país. A legitimidade e o reconhecimento do direito humano à educação têm sido objeto de longos debates e acirradas disputas no campo político, social e educacional, advindos da luta pela democratização da educação pública, em termos de acesso, permanência e qualidade da educação.

A título de provocação final acerca da relevância da educação, vale trazer à baila a

seguinte afirmação: “onde a liderança, a criatividade e o conhecimento desempenham um

papel cada vez mais preponderante, o direito à educação se constitui, em última analise, no

direito a participar da vida do mundo moderno”22.

As oportunidades, na conjuntura atual, são, inegavelmente, cada vez mais pautadas

na preparação apropriada do indivíduo para os objetivos que deseja alcançar, tornando, assim,

o processo educacional cada vez mais basilar.

Uma vez oferecidas noções sobre a educação, tratar-se-á, a partir desse momento, do

direito fundamental ao trabalho.

3.2 DIREITO AO TRABALHO

O trabalho, enquanto valor social, corresponde a um dos fundamentos da República

Federativa do Brasil, sendo citado desde o primeiro artigo (inciso IV) da Constituição Federal

de 1988.

A Constituição Federal Portuguesa registra claramente o direito ao trabalho em seu

art. 58º. Trata-se de um dispositivo legal que contempla, inclusive, não só a afirmação de que

21 DIAS, Adelaide Alves. Da educação como direito humano aos direitos humanos como princípio educativo. p. 441-456. In: SILVEIRA, Maria Godoy et. al. Educação em Direito Humanos: fundamentos teórico-metodológicos. João Pessoa: Editora Universitária, 2007, p. 448. 22 LIBERATI, Wilson Donizeti. Conteúdo material do direito à educação escolar. p. 207-271. In: LIBERATI, Wilson Donizeti. Direito à educação: uma questão de justiça. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 210.

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se trata de um direito, mas também afirma que é um direito de todos e elenca os deveres do

Estado no sentido de efetivá-lo: promoção de políticas de pleno emprego; igualdade de

oportunidades no que diz respeito à escolha da profissão, dando possibilidade de acesso a

quaisquer tipos de cargos; formação cultural e técnica; valorização dos trabalhadores.

Os elementos citados constituem, sem dúvida, frentes de aplicabilidade do direito ao

trabalho, sendo de extrema relevância para compreender seu alcance e a necessidade de sua

efetivação.

O art. 6º da CF/88 – o mesmo que apresenta o fundamento constitucional do direito à

educação – é responsável por oferecer nominalmente a lista de direitos sociais, dentre os quais

se encontra também o direito ao trabalho.

Para Luz Pacheco Zerga23, a centralidade do trabalho na vida humana e sua direta

relação com a dignidade e o desenvolvimento da personalidade servem como pilares para a

construção do ordenamento. O entendimento social, ao qualificar o trabalho como privilégio,

dever e vocação da pessoa, destaca manifestamente que, apesar de ser uma obrigação, é um

direito, que tem a categoria adicional de privilégio e vocação – tratando-se, portanto, de um

direito fundamental com particularidades.

É possível afirmar que o trabalho constitui uma das facetas da dignidade humana e,

como tal, merece destaque no panorama dos estudos jurídicos, especialmente levando em

consideração seu caráter de subsistência e realização do indivíduo.

Tendo em vista a sua relevância, Maria Hemília Fonseca24 oferece, também, o

entendimento de que o direito ao trabalho pode ser pensado como um direito de liberdade,

notadamente nos Estados em que não há previsão expressa na Carta Magna – ou seja, mesmo

os Estados que não apresentem o direito em comento elencado legalmente poderiam utilizar

esse caminho para assegurar sua existência e aplicabilidade. Ressalte-se, contudo, que esse

não é o caso do Brasil, uma vez que possui o registro do referido direito, conforme já

mencionado.

Maria Áurea Cecato25, a respeito dos aspectos financeiro (subsistência) e moral

(valor social do trabalho), assevera:

o trabalho é um dos direitos essenciais. Sua supressão significa também supressão de dignidade. Em primeiro lugar, porque o salário dele resultante é

23 ZERGA, Luz Pacheco. La dignidad humana en el derecho del trabajo. Cizur Menor (Navarra): Thomson/Civitas, 2007, p. 43-45. 24 FONSECA, Maria Hemília. Dir eito ao trabalho: um direito fundamental no ordenamento jurídico brasileiro. 2006. Tese (Doutorado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, p. 149-150. 25 CECATO, Maria Áurea Baroni. Direito humanos do trabalhador: para além do paradigma da declaração de 1998 da O.I.T. p. 351-371. In: SILVEIRA, Maria Godoy et. al. Educação em Direito Humanos: fundamentos teórico-metodológicos. João Pessoa: Editora Universitária, 2007.

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o instrumento de acesso às condições materiais indispensáveis a uma vida digna. Em segundo, porque a sua ausência gera sentimento de diminuição moral e repercute na inserção social do trabalhador, visto que se tem disseminada a cultura do trabalho como valor social e ético.

Trabalho e dignidade são associados, de maneira recorrente, notadamente pela

análise do trabalho como um fator de complemento da vida humana, seja pela necessidade de

manter a si e à família, seja pelo valor social atribuído ao processo de labor.

Dessa forma, o direito ao trabalho pode ser considerado um direito da maior

importância no cenário social, entretanto com questionamentos intrínsecos que muito

preocupam os estudiosos da área, a exemplo de Fábio Rodrigues Gomes26:

[...] mesmo que atingíssemos um consenso quanto à fundamentalidade material do direito ao trabalho, o que deveríamos entender como sendo exigível a partir desse direito? Como devemos interpretar o direito ao trabalho, de modo a orna-lo mais que um mero símbolo? Como transformá-lo num direito efetivo?

Esse corresponde a um dos grandes problemas enfrentados pelo direito ao trabalho:

promover sua efetivação, deixando de ser apenas uma utopia (embora muito desejada) e

passando a se concretizar, até mesmo como uma das formas de implementar efetivamente o

bem estar social.

Leonardo Vieira Wandelli compartilha os problemas oriundos da ausência de

efetividade de um direito fundamental tão importante em qualquer ordenamento jurídico:

[...] há um claro déficit de efetividade desse direito e que começa já pela escassa referência que encontramos a respeito tanto nos livros de direito constitucional e de direito do trabalho quanto na jurisprudência do STF ou do TST. Sua centralidade normativa é inquestionável, mas seu baixo desenvolvimento científico e sua inaplicação prática são tão evidentes quanto. Considero que, para enfrentar essa inefetividade exemplar, é preciso repensar, antes, a fundamentação do direito ao trabalho, de modo a tornar mais visíveis as diversas dimensões do seu conteúdo. É certo que o Estado não pode garantir um posto de trabalho a todos. Mas o conteúdo do nosso direito não se esgota aí. Ele deve atuar com toda a inteireza da relevância concreta do trabalho para a dignidade humana; tanto daqueles que, precisando, não têm um trabalho, quanto daqueles que têm um trabalho, assalariado ou não.27

Delimitar a zona de alcance e os caminhos de atuação, de fato, consiste em um passo

indispensável no sentido de lutar pela concretização do direito ao trabalho. Um exemplo

26 GOMES, Fábio Rodrigues. O direito fundamental ao trabalho: perspectivas histórica, filosófica e dogmático-analítica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 67 (grifos do autor). 27 WANDELLI, Leonardo Vieira. O direito humano e fundamental ao trabalho. Disponível em: <http://www.gazetadopovo.com.br/vidapublica/justica-direito/artigos/conteudo.phtml?id=1327330&tit=O-direito-humano-e-fundamental-ao-trabalho>. Acesso em: 03 mar. 2013.

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interessante é o dispositivo da Constituição Portuguesa, já citado anteriormente, deixando

registradas as questões contempladas pelo dispositivo legal, no intuito de que seja possível

afiançar o cumprimento do referido direito, uma vez que se sabe, com maior precisão, o que

se espera da materializado do direito em observância.

Torna-se oportuno citar Benizete de Medeiros28: “talvez um dos grandes desafios e

perigos da economia globalizada é instalar na sociedade e no trabalhador, em especial, uma

sorte indefinida, uma vida de incertezas [...]”.

Essas incertezas, sem dúvida, coadunam com a ideia de fundamentalidade do direito

ao trabalho, especialmente por ser o trabalho, na maioria das vezes, a fonte de sustento do

indivíduo, elemento que lhe garante, portanto, subsídios para viver com dignidade.

Uma vez que estão postos os alicerces do presente artigo, o item seguinte

desenvolver-se-á com o fulcro de estabelecer ilações entre esses alicerces, procurando

entender algumas situações socialmente perceptíveis e refletindo sobre a realidade posta.

4 DIREITO À EDUCAÇÃO E DIREITO AO TRABALHO À LUZ DO

MULTICULTURALISMO

Compreender em que medida multiculturalismo, educação e trabalho se entrelaçam

corresponde ao objetivo primordial desse estudo.

Seguindo o referido escopo, os direitos à educação e ao trabalho serão analisados

levando em consideração aspectos que envolvem a multiplicidade de culturas e seus possíveis

reflexos no que diz respeito à efetivação dos direitos fundamentais citados.

Dando início a tal mister, é valido perceber que, de acordo com Semprini29, a

educação pode ser facilmente enquadrada como uma das áreas de problema no que diz

respeito a conflitos culturais.

Como pensar em educação é pensar, inicialmente, na questão escolar, não é

adequado deixar de abordar a relevância da escola na vida do indivíduo. Nesse contexto, a

escola é reconhecidamente um vetor de formação do indivíduo e integração em uma

comunidade de iguais, ultrapassando os laços de etnia, familiares e que se relacionam aos

costumes, de maneira a conhecer e internalizar o sentimento de nação. Trata-se de um

28 MEDEIROS, Benizete Ramos de. Trabalho com dignidade: educação e qualificação é um caminho? São Paulo: LTr, 2008, p. 100. 29 SEMPRINI, Andrea. Mult iculturalismo . Bauru, SP: EDUSC, 1999, p. 45.

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processo de libertação do indivíduo, liberando-o dos laços sociais e promovendo sua

transformação em um homem livre e responsável30.

Registre-se, por oportuno, que a escola também costuma ser um espaço

representativo da diversidade cultural que a circunda.

Tendo em vista sua manifesta relevância social, a escola funciona, também, como

palco de grandes controvérsias de natureza multicultural. Esses debates são inúmeros, porém,

no cerne do estudo ora em comento, faz-se interessante destacar as questões que envolvem o

acesso à educação de qualidade (não só em relação à educação básica e ao ensino superior,

como também ao ensino técnico e profissionalizante).

A relação existente entre educação e poder (citada no item 3.1 do presente trabalho)

pode ser também vislumbrada por meio do imperialismo cultural, notadamente na perceptível

tendência histórica de expansão da influência de determinados países – em geral, os que

detêm reconhecido poder econômico (e bélico) – em relação aos demais. Essa extensão vem

carregada não só de aspectos de natureza econômica e política, mas, inegavelmente, perpassa

questões de natureza cultural, muitas vezes chegando ao espaço do outro país de maneira a

tentar impor seus costumes, suas crenças e seus valores, mesmo que sorrateiramente –

utilizando, por exemplo, o discurso econômico e o processo educacional como vetores de

disseminação de seus objetivos.

Seria a educação um fator cultural e, como tal, absolutamente capaz de participar da

discussão acerca da questão relativismo versus universalismo? Acredita-se que sim.

A educação pode, sim, ser considerada um elemento de natureza cultural; dessa

forma, é possível verificar variação, no que tange a seu alcance e sua efetivação, de um país

para o outro. Aquilo que é fundamental em um determinado local pode não ser considerado

como tal em outro, e essa é uma realidade que pode atingir o processo educacional.

O embate relativismo versus universalismo entra em cena, a fim de tentar construir

os limites mínimos de oferta desse direito, enquanto direito fundamental que o é.

Clifford Geertz31, por exemplo, reconhece que há dificuldade em estabelecer

universais culturais que possam ser considerados substanciais.

É importante ter em mente que a utopia do universalismo surge com o advento do

Iluminismo e passa a acompanhar a visão de mundo amplamente difundida no mundo

ocidental, representando um dos fundamentos do projeto filosófico da modernidade32.

30 SEMPRINI, Andrea. Mult iculturalismo . Bauru, SP: EDUSC, 1999, p. 45-46. 31 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2012, p. 30. 32 SEMPRINI, Andrea. Op. cit., 1999, p. 92.

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No outro extremo, situa-se o relativismo, segundo o qual é impossível estabelecer um

ponto de vista único e universal sobre o conhecimento, a moral, a justiça. Assim sendo,

[...] o universalismo não é [...] somente um engodo, mas uma impostura e uma violência. Ele pode ser realizado somente eliminando-se a diferença, reduzindo ao silêncio as vozes discordantes e transformando em obrigação universal o que é somente um ponto de vista particular.33

Flávia Piovesan34 assevera que os relativistas acreditam no pluralismo cultural como

impedimento à “formação de uma moral universal, tornando-se necessário que se respeitem as

diferenças culturais apresentadas por cada sociedade, bem como seu peculiar sistema moral”.

Buscando ampliar a discussão, faz-se salutar pensar a educação não apenas em um

sentido mais pontual (o que pode ser considerado fundamental, dentro do processo

educacional, em termos de educação que deve chegar para todo cidadão), alcançando outros

parâmetros igualmente interessantes para reflexão, a exemplo de perceber se e em que medida

a educação pode funcionar como um fator cultural fundamental para qualquer sociedade. Esse

é um ponto a ser registrado, especialmente levando em considerações sociedades em que esse

elemento perpassa muito mais o educar (familiar e social) que o ensinar (promovido pela

instituição escolar).

É perceptível que a educação, entendida como fator cultural, recepciona divergências

acerca do que seria um mínimo a ser garantido a todos (universalismo) e, por outro lado, da

necessidade de ser avaliada como valor e prática para cada comunidade (relativismo).

Ainda no campo do ensino, outro conflito que costuma ocorrer é o do

reconhecimento subjetivo versus mérito objetivo35.

Os multiculturalistas que defendem a importância do reconhecimento entendem se

tratar de um procedimento que ajuda a cultivar a autoestima, com critérios específicos de

avaliação e adoção de contribuições dos grupos marginais nos programas de ensino,

melhorando a motivação e despertando a atenção destes, de maneira a promover o bem estar

social mais efetivamente, realizando a inclusão considerada necessária para alcançar tal

finalidade.

Bem objetivamente, entretanto, os opositores dessa visão ressaltam a importância da

competição e da excelência como elementos que também possuem relevância social, fatores

que não devem ser negligenciados em nenhuma hipótese, sob pena de perda substancial e

33 SEMPRINI, Andrea. Mul ticulturalismo . Bauru, SP: EDUSC, 1999, p. 94-95. 34 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 215. 35 SEMPRINI, Andrea. Op.cit., 1999, p. 93.

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irreparável para toda a sociedade – com alusão a uma leitura própria a respeito da ideia de que

o bem coletivo deve prevalecer em relação ao desejo (ou satisfação desse desejo) individual.

Essa é uma divergência que costuma alcançar grande repercussão, em especial por

culminar em temas igualmente polêmicos, a exemplo das cotas raciais para estudantes em

universidades públicas.

Vale pontuar, aqui, a necessidade de avaliar adequadamente os resultados que se

deseja obter, almejando o bem comum e buscando alcançar um ponto de equilíbrio social, por

meio do estabelecimento de metas exequíveis e a criação de regras com razoabilidade.

Nesse sentido, uma forma que pode ser interessante para apaziguar debates dessa

natureza é a adoção de cotas raciais em universidades públicas – procurando, assim, promover

a compensação social pela desigualdade de oportunidades – com determinação concomitante

de tempo para sua duração, obrigando que os problemas de base sejam solucionados no prazo

pactuado e estabelecendo, portanto, um momento de mudança do sistema de reconhecimento

subjetivo para a retomada do mérito objetivo.

Por óbvio, trata-se de uma solução que precisa estar atrelada a uma efetiva

concretização das alterações no processo que envolve a educação básica no setor público,

havendo tempo hábil para que essas pessoas – oriundas desse processo educacional – possam

ter a preparação adequada desde o início e, assim, tenham condições de competir em

condições iguais com aqueles que tiveram acesso a uma educação básica de qualidade,

geralmente associada, na atualidade, ao setor privado de ensino.

Essa é uma discussão de total relevância, tendo em vista, em especial, a realidade

brasileira:

Vivemos em um país e num mundo marcados por contrastes e desigualdade de recursos, oportunidades e direitos. Onde, cada vez mais, uns poucos concentram muito e a grande maioria sofre escassez e exclusão. Não se trata apenas de recursos financeiros, mas de outros bens e direitos, como espaço de participação, voz ativa, poder de decisão, informação e oportunidades de aprendizagem.36

É de conhecimento notório que a globalização torna-se mais evidente com o

desenvolvimento das novas tecnologias em diversos setores – desde o mundo digital até os

meios de transporte e comunicação. A influência da globalização é bastante perceptível em

36 SACAVINO, Susana. Direito humano à educação no Brasil: uma conquista para todos/as? p. 457-467. In: SILVEIRA, Maria Godoy et. al. Educação em Direito Humanos: fundamentos teórico-metodológicos. João Pessoa: Editora Universitária, 2007, p. 457.

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algumas áreas, a exemplo do setor financeiro, ao passo que ainda pode ser considerada

distante quanto aos direitos civis e à justiça social, como lembra Losano37.

Isso posto, percebe-se que a globalização, com nítidos reflexos em aspectos culturais,

pode claramente alcançar também a perspectiva de abrangência e aplicação de direitos

fundamentais, revelando-se como um outro ponto de observação e avaliação do direito à

educação e do direito ao trabalho à luz do multiculturalismo.

Sabe-se que verificar o debate multicultural, no ensinamento de Semprini38, levanta

problemáticas teóricas complexas e contraditórias, a exemplo da própria construção de

sujeito.

É relevante não olvidar, por exemplo, que “a interioridade e o pleno

desenvolvimento pessoal ocupam um lugar cada vez mais importante na definição

contemporânea de identidade”39. Nesse sentido, não levar em consideração esses aspectos

seria deixar de lado também reivindicações fundamentais de natureza multicultural.

Inevitavelmente, a construção do sujeito pode ser associada ao processo educacional

e seu desenvolvimento pessoal muitas vezes está relacionado ao mundo do trabalho. Em

outras palavras, a formação profissional costuma ser compreendida como uma faceta da vida

humana, capaz de identificar o indivíduo como um ser pertencente ao âmago social também

nessa perspectiva do labor, cada vez mais valorizada nas sociedades atuais.

Outro fator de grande relevância e que estabelece uma relação direta entre os temas

fundamentais dessa pesquisa (multiculturalismo, educação e trabalho) é a mutação econômica

pela qual os Estados Unidos passaram, tendo início entre as décadas de 1970 e 1980, com

reflexo direito nas relações de natureza trabalhista.40

A partir desse período, passa a ocorrer um processo de supervalorização dos

empregos de natureza tecnológica e intelectual, em detrimento dos empregos especialmente

na área de serviços, mal remunerados, precarizados, uma vez que são enquadrados na

condição de subempregos.

Vale ressaltar que essa conjuntura social e econômica não é uma exclusividade norte-

americana, podendo ser facilmente verificada também em terras brasileiras.

Como relata Semprini, há alvos que podem ser considerados fáceis nesse processo de

divisão social, a exemplo da mão de obra não qualificada, bem como a de baixa qualificação.

37 LOSANO, Mario G. Os grandes sistemas jurídicos: introdução aos sistemas jurídicos europeus e extra-europeus. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 65. 38 SEMPRINI, Andrea. Mul ticulturalismo . Bauru, SP: EDUSC, 1999, p. 07. 39 Ibidem, p. 107. 40 Ibidem, p. 33-35.

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Aí reside mais um ponto de encontro entre os temas centrais do estudo, haja vista a

educação poder funcionar como o vetor de melhoria desse quadro social, com a qualificação

da mão de obra e a consequente possibilidade de inclusão no mercado de trabalho desses

grupos inicialmente marginalizados.

É interessante perceber que o próprio elemento trabalho é um símbolo multicultural

notadamente modificável em relação à sua realidade nas diversas culturas, muitas delas

estabelecendo parâmetros diferentes de dignidade.

Procurando avaliar o tema sob outro prisma, Merryman e Pérez-Perdomo41

asseveram que há uma ligação imediata entre a tradição jurídica e a cultura, caracterizando

uma relação nitidamente contínua de troca e reciprocidade entre ambas.

Ademais, dentro dessa vertente de humanização do Direito, surge o tema do trabalho

decente, cuja repercussão em sistemas jurídicos e sociais como o do Brasil é bastante

significativa. Não se deve olvidar que o mundo do trabalho costuma gerar problemas sociais

pungentes.

Nesse sentido, trazer a lume o conceito de trabalho decente, de acordo com a

Organização Internacional do Trabalho (OIT), pode funcionar como elemento norteador no

que é pertinente à abordagem em foco:

O conceito de Trabalho Decente, formalizado em 1999 pela OIT, sintetiza sua missão histórica de promover oportunidades para que homens e mulheres possam ter um trabalho produtivo e de qualidade, em condições de liberdade, equidade, segurança e dignidade humanas. Ponto de convergência dos quatro objetivos estratégicos da OIT (respeito aos direitos no trabalho, a promoção de mais e melhores empregos, a extensão da proteção social e o fortalecimento do diálogo social), o Trabalho Decente é condição fundamental para a superação da pobreza, a redução das desigualdades sociais, a garantia da governabilidade democrática e o desenvolvimento sustentável.42

Ressalte-se, portanto, o caráter social da noção de trabalho decente, extremamente

articulado à implementação de direitos fundamentais – em especial, o direito fundamental ao

trabalho auxiliado pelo direito à educação. Discutir a temática em foco no presente artigo

tomando como parâmetro o trabalho decente é projetar também a materialização de um novo

espaço comunitário, comprometido com o bem estar e a justiça social, em uma esfera mais

palpável de concretização de direitos fundamentais.

41 MERRYMAN, John Henry; PÉREZ-PERDOMO, Rogelio. A Tradição da Civil Law: uma introdução aos Sistemas Jurídicos da Europa e da América Latina. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2009, p. 194. 42 ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. OIT lança campanha de Trabalho Decente. Disponível em: <http://www.oitbrasil.org.br/node/888>. Acesso em: 07 jan. 2013.

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A educação, reconhecidamente um instrumento transformador da realidade social,

costuma ter um papel eficaz no processo de inclusão e de mobilidade social, uma vez que, por

meio da qualificação do indivíduo, este passa a competir mais adequadamente por melhores

postos de trabalho, implementando não só seu projeto de vida, mas também a melhoria de seu

enquadramento socioeconômico (patrimonial sim, mas especialmente em termos de promoção

de elementos de qualidade de vida imprescindíveis, a exemplo de questões que envolvem a

saúde básica).

Acrescente-se, por oportuno, que o entrelaçar do multiculturalismo com as funções

da educação e as necessidades do âmbito laboral leva a reflexões a respeito da diversidade

cultural (e moral) passível de ser encontrada ao redor do mundo. Torna-se evidente que, em

uma realidade como a brasileira, a economia, que muito comumente influencia aspectos de

natureza cultural, pode funcionar como mais um ponto de interseção entre os pilares do estudo

ora em análise, cada vez mais relevante diante das especificidades do sistema capitalista.

Dada a importância de normas da natureza dos direitos fundamentais e do trabalho

decente, caminhos precisam ser apontados no intuito de efetivá-las, pois nenhuma ciência

deve estar dissociada dos benefícios reais que pode trazer à população, razão pela qual, no

caso específico aqui em apreço, entender a articulação entre o multiculturalismo, a educação e

o trabalho, bem como sua relevância e seu potencial de mutação útil, pode significar

transformações positivas e duradouras na vida em sociedade, valorizando o ser humano

individualmente e enquanto ser que pertence a um grupo social com peculiaridades que

precisam ser respeitadas.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Multiculturalismo, educação e trabalho já possuem, por si só, substância suficiente

para diversas discussões de evidente repercussão prática.

A ilação dos três elementos, nesse estudo, buscou reconhecer possíveis ligações,

procurando avaliar e promover reflexões acerca desses temas de considerável relevância

social, analisando os referidos direitos fundamentais à luz do multiculturalismo.

Após a apresentação dos fundamentos teóricos de cada um dos pilares da pesquisa,

nos itens 2 e 3, as principais reflexões pontuadas no item 4 foram as que seguem:

1. Nos conflitos culturais, a educação costuma figurar como área de tensão;

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2. O papel social da escola é inegável (até mesmo como representativa da

realidade cultural na qual está inserida) e essa, não raro, é palco de problemas de natureza

multicultural;

3. Educação e poder têm o condão de remeter também ao imperialismo cultural,

forte realidade que vem sendo vislumbrada ao longo da história;

4. A educação, como fator cultural que é, integra a discussão a respeito do

relativismo versus universalismo;

5. A contenda reconhecimento subjetivo versus mérito objetivo perpassa o âmbito

educacional, demandando um cuidado especial na análise acerca de quais resultados se deseja

alcançar;

6. Uma possível solução para a dualidade apresentada na consideração anterior

seria estabelecer um prazo para o regime de cotas raciais, entendendo que, concomitante à sua

ocorrência, é preciso acontecer também a mudança na base do problema, qual seja, a oferta de

uma educação básica de qualidade no setor público, possibilitando que seus concluintes

tenham condições reais de competir igualitariamente;

7. A globalização, que vem gerando reflexos culturais, pode afetar, por via de

consequência, direitos como os direitos à educação e ao trabalho;

8. O debate multicultural abrange também questões como desenvolvimento

pessoal e identidade, facilmente relacionados à educação e ao trabalho;

9. Trabalhadores sem formação adequada são alvos mais fáceis na conjuntura

econômica e social de exclusão;

10. O próprio elemento trabalho pode ser considerado, em si, um fator cultural

(como ocorre com a educação), tendo em vista as alterações, por exemplo, dos parâmetros de

dignidade abraçados pelos diversos países;

11. Em geral, tradição jurídica e cultura têm relação direta; nesse sentido, entender

a defesa do trabalho decente (tema que vem ganhando espaço no cenário jurídico) é também

um ponto que permite envolver diretamente o direito à educação e o direito ao trabalho sob o

prisma do multiculturalismo.

Com base em tudo quanto exposto, é possível afirmar que há, sim, influência do

multiculturalismo na educação e no trabalho, sobretudo no que diz respeito à construção da

própria ideia básica desses direitos e a sua efetivação, especialmente levando em consideração

aspectos de natureza social e econômica.

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REFERÊNCIAS

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DA NECESSIDADE DE EFETIVAÇÃO DO DIREITO À EDUCAÇÃO POR MEIO DE

POLÍTICAS PÚBLICAS

(THE NEED FOR EFFECTIVE THE RIGHT TO EDUCATION THROUGH PUBLIC

POLICY)

Ivan Dias da Motta

http://lattes.cnpq.br/1508111127815799

Tatiana Richetti

http://lattes.cnpq.br/1419928867607198

RESUMO: A educação é responsável por fornecer elementos para a construção do senso crítico, da sociabilidade, da ética, dentro outros valores sociais e humanos, tendo por finalidade o desenvolvimento humano e de cidadania. O tratamento atribuído à educação no âmbito internacional importou na interiorização e positivação como direito fundamental de natureza social. Os direitos fundamentais são os direitos humanos positivados que surgiram da necessidade de se impor limites ao poder do Estado. O destaque conferido aos direitos sociais pela Constituição Federal de 1988 desautoriza qualquer tentativa de negar ou esvaziar a sua natureza jurídica como direito fundamental. A concretização destes direitos se dá por meio de políticas públicas, que são um conjunto de atividades a serem realizadas pela administração pública. O objetivo da política educacional deve estar voltado para uma educação de qualidade, libertadora. A sociedade tem um papel importante para a efetivação deste direito, cuja participação vai desde a constatação da necessidade de implementar determinada política, passando pela sua elaboração, efetivação e avaliação. O direito à educação é um direito público subjetivo o que implica a sua exigibilidade perante o Poder Judiciário. O não oferecimento ou sua oferta irregular importa na responsabilidade da autoridade competente. Por tratar de um direito que faz parte da condição de dignidade da pessoa humana e integrar o que se chama de mínimo existencial não pode estar sujeito a normas programáticas, daí se percebe a necessidade de elaboração de uma lei de responsabilidade educacional, bem assim, de se pensar na ideia da criação de um direito educacional como um ramo do direito. PALAVRAS-CHAVE: Direito Fundamental. Educação. Políticas Públicas. ABSTRACT: Education is responsible for providing elements for the construction of critical sense, sociability, ethics, within other social and human values, with the objective of human development and citizenship. The treatment given to the education in the international scope implied the interiorization and positivationas a fundamental right of a social nature. Pós-doutor em Direito Educacional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, professor permanente

do Programa de Mestrado em Direito do Centro Universitário de Maringá – CESUMAR, advogado e consultor em Direito Educacional. Endereço eletrônico: <[email protected]>

Especialista em Direito do Trabalho pela Universidade Católica Dom Bosco – UCDB, mestranda em Ciências Jurídicas pelo Centro Universitário de Maringá – CESUMAR, advogada do Núcleo de Prática Jurídica do CESUMAR. Endereço eletrônico: <[email protected]>.

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Fundamental rights are the positivized human rights that arose from the need to impose limits to state power. The emphasis given to social rights by the Federal Constitution of 1988 disallows any attempt to deny or empty its legal nature as a fundamental right. The concretion of these rights goes through public policies, which are a set of activities to be performed by public administration. The goal of the educational policy should be facing a quality education, liberating. The society has an important responsibility in the realization of this right, whose membership goes from the verification of the need to implement certain policy, going through itspreparation, executionand evaluation. The right to education is a subjective public right which means that can be required to the Judiciary. Not offering it or wrong offers, results in responsibility of the competent authority. Because it is a right that is part of the condition of human dignity and integrates what is called minimum existential cannot be subject to programmatic standards, from then realizes the need for drafting an educational responsibility law, as well as thinking about the idea of creating an educational law as a branch of law. KEYWORDS: Fundamental Right. Education. Public Policy.

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS ACERCA DO DIREITO À EDUCAÇÃO

O direito à educação sempre esteve presente nas constituições brasileiras, porém, foi

na Constituição Federal de 1988 que este direito foi reconhecido como um direito

fundamental de natureza social, inserido no artigo 6º.

A Constituição Federal de 1988 trouxe ainda uma série de aspectos que envolvem a

concretização desse direito, tais como os princípios e objetivos que o informam, os deveres de

cada ente da Federação (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) para com a garantia

desse direito, a estrutura educacional brasileira (dividida em diversos níveis e modalidades de

ensino), além da previsão de um sistema próprio de financiamento, que conta com a

vinculação constitucional de receitas, detalhados nos artigos 205 a 214.

Por meio destes parâmetros é que a atuação do legislador e do administrador público

deve pautar-se, além de critérios que o Ministério Público e o Poder Judiciário devem adotar

quando chamados em questões que envolvam a implementação deste direito fundamental.

Diga-se que além da previsão constitucional, há uma série de outros documentos

jurídicos que contêm dispositivos relevantes a respeito do direito à educação, tais como, em

âmbito internacional, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, a Declaração

Americana dos Direitos e Deveres do Homem de 1948, a Declaração Universal dos Direitos

da Criança de 1959, o Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais,

de 1966 e a Convenção Americana sobre os Direitos Humanos de 1969; em âmbito nacional,

a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n. 9.394/96), o Estatuto da Criança e

do Adolescente (Lei n. 8.069/90), o Plano Nacional de Educação (Lei n. 10.172/2001), entre

outros.

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Observa-se que o tratamento atribuído à educação no âmbito internacional importou

na interiorização e positivação do direito à educação enquanto comando constitucional de

direito fundamental social e correspondeu a uma resposta que destacou a educação como um

dos principais instrumentos de desenvolvimento humano e de cidadania.

Poucos sabem a importância e as implicações práticas da enunciação do direito à

educação como um direito fundamental de natureza social e, consequentemente, o que pode

ser exigido do Estado para a sua satisfação.

O objetivo deste estudo será delinear o regime jurídico de proteção do direito à

educação como um direito fundamental de natureza social, como verdadeiros direitos e não

meros programas de ação sem caráter vinculante para os poderes públicos, buscando, com

isso, contribuir para a ampliação das possibilidades concretas de sua realização.

1.1 DIREITOS FUNDAMENTAIS DE NATUREZA SOCIAL

Os direitos fundamentais são os direitos humanos, ou direitos do homem,

reconhecidos e positivados no ordenamento jurídico, que surgiram da necessidade de se impor

limites ao poder do Estado pela sociedade, assentando-se sobre o valor do reconhecimento da

dignidade da pessoa humana.

Os direitos humanos estão, pois, restritos ao plano internacional e, na medida em que

são reconhecidos e positivados no direito interno, passam para o plano de direitos

fundamentais1.

Joaquim José Gomes Canotilho faz esta diferenciação entre direitos do homem e

direitos fundamentais. Para ele,

Direitos do homem são válidos para todos os povos e em todos os tempos (dimensão jusnaturalista-universalista); direitos fundamentais são os direitos do homem, jurídico-institucionalmente garantidos e limitados espacio-temporalmente. Os direitos do homem arrancariam da própria natureza humana e daí o seu carácter inviolável, intemporal e universal; os direitos fundamentais seriam os direitos objectivamente vigentes numa ordem jurídica concreta.2

Para Goffredo Telles Junior, os direitos humanos são “bens soberanos” aos quais se

atribui valor máximo, ou seja, são aqueles que integram o corpo e espírito de um homem,

1 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocencio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito

constitucional. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 237. 2 CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 3. ed. Coimbra: Almedina, 1999, p. 393.

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como a vida, a dignidade humana, a integridade física e psíquica, a justiça, a igualdade e a

liberdade.3

Norberto Bobbio destaca que os direitos humanos “não nascem todos de uma vez

nem de uma vez por todas”4, evidenciando a existência de um processo histórico de lutas da

humanidade contra o poder.

Assim, verifica-se que os direitos humanos têm uma afirmação gradativa, variando

de acordo com as transformações políticas, jurídicas e axiológicas concretizadas pela ação das

instituições e dos homens no curso do processo histórico e social da humanidade.

As revoluções gloriosa e francesa, a independência norte-americana, o aparecimento

das primeiras cartas constitucionais, a formação de estados liberais entre outros

acontecimentos paradigmáticos demonstram o processo de formação e consolidação dos

direitos humanos. Esse progresso civilizatório da humanidade que repercute na luta pelo

reconhecimento dos direitos do homem não é contemporâneo, coincidindo com a própria

história da existência do homem na terra5.

Não obstante, segundo Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves, Somente após a II Grande Guerra Mundial, consideradas as atrocidades praticadas pelo nazismo contra a individualidade da pessoa humana e contra a humanidade como um todo, sentiu-se a necessidade de proteção de uma categoria básica de direitos reconhecidos à pessoa humana. Era preciso assegurar uma tutela fundamental, elementar, em favor da personalidade humana, salvaguardando a própria raça.6

O holocausto foi uma verdadeira demonstração de desrespeito à dignidade da pessoa

humana tratando-se de um marco histórico que criou um consenso geral quanto a necessidade

de proteção ampla e eficaz dos direitos humanos fundamentais7.

A fim de se evitar novos acontecimentos, em 1948, a Declaração Universal dos

Direitos do Homem foi proclamada pelas Nações Unidas, enunciando em seu artigo 1º que

3 TELLES JUNIOR, Goffredo. Iniciação à Ciência do Direito. 4ª.ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 341. 4 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. 2. ed. Rio de Janeiro: Elsevier,

2004, p. 5. 5 VERBICARO, Loiane Prado. Os diretos humanos à luz da história e do sistema jurídico contemporâneo. Revista Jurídica Cesumar. Mestrado, Maringá, v. 7, n. 1, p. 31-56, jan./jun. 2007, p. 31. Disponível em: <http://www.cesumar.br/pesquisa/periodicos/index.php/revjuridica/article/view/515/373> . Acesso em: 15 jan. 2013. 6 FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Direito Civil: teoria geral. 5. ed. Rio de Janeiro: Lumen

Juris, 2006, p. 100. 7 KOEHLER, Rodrigo Oskar Leopoldino; MOTTA, Ivan Dias da. A Constituição Federal de 1988 e o Direito à Educação. Revista Jurídica Cesumar. Mestrado, Maringá, v. 12, n. 1, p.49-74, jan./jun. 2012, p. 56. Disponível em: <http://www.cesumar.br/pesquisa/periodicos/index.php/revjuridica/article/view/2268/1641>. Acesso em: 15 jan. 2013.

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todas as pessoas deveriam nascer livres e iguais em dignidade e direitos, instaurando uma era

em que as nações firmaram entre si a responsabilidade de proteção mútua aos direitos do

homem.

Para Alexandre de Moraes os direitos humanos fundamentais “colocam-se como uma

das previsões absolutamente necessárias a todas as Constituições, no sentido de consagrar o

respeito à dignidade humana, garantir a limitação do poder e visar o pleno desenvolvimento

da personalidade humana” 8.

As lutas sociais tiveram como ideário a fixação de direitos e garantias fundamentais a

todos os cidadãos, para que fossem oponíveis contra quem detivesse o poder central.

Nos dizeres de Alain Supiot, “os direitos humanos, que são uma das mais belas

expressões do pensamento ocidental e participam, por esta razão dos saberes da humanidade

sobre si mesma, merecem de todo o modo um melhor tratamento”.9

Na medida em que os direitos humanos surgiam no plano internacional e eram

reconhecidos e positivados, foram agrupados e classificados de acordo com sua natureza e

com a exigência que impunham ao Estado, difundindo-se sob a expressão “gerações de

direitos do homem”, que buscava organizá-los em classe de direitos fundamentais com base

nos ideais da Revolução Francesa (liberdade, igualdade e fraternidade)10.

A terminologia “geração de direitos”, por transmitir uma ideia de sucessão e de

exclusividade de uma geração em relação à outra, foi substituída. Atualmente fala-se em

dimensões de direitos humanos demonstrando a coexistência de gerações e não um

exclusivismo geracional.11

Segundo Paulo Bonavides12, a primeira dimensão de direitos humanos têm por titular

o indivíduo e, “são oponíveis ao Estado, traduzindo-se como faculdade ou atributos da pessoa

e ostentam uma subjetividade que é seu traço mais característico; enfim, são direitos de

resistência ou de oposição perante o Estado”. O seu desenvolvimento está associado ao ideal

libertário com a defesa dos direitos da liberdade.

Ingo Wolfgang Sarlet afirma que

8 MORAES, Alexandre. Direitos humanos fundamentais. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 2. 9 SUPIOT, Alain. Homo juridicus: ensaios sobre a função antropológica do direto. Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 240. 10 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 3. ed. São Paulo, SP: Saraiva, 2003, p. 32. 11 VERBICARO, Loiane Prado. Os diretos humanos à luz da história e do sistema jurídico contemporâneo. Revista Jurídica Cesumar. Mestrado, Maringá, v. 7, n. 1, p. 31-56, jan./jun. 2007, p. 40. Disponível em: <http://www.cesumar.br/pesquisa/periodicos/index.php/revjuridica/article/view/515/373> . Acesso em: 15 jan. 2013. 12 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo, SP: Malheiros, 2007. p. 564

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O impacto da industrialização e os graves problemas sociais e econômicos que a acompanharam, as doutrinas socialistas e a constatação de que a consagração formal de liberdade e de igualdade não gerava a garantia de seu efetivo gozo acabaram já no decorrer do século XIX, gerando amplos movimentos reivindicatórios e o reconhecimento progressivo de direitos atribuindo ao Estado comportamento ativo na realização da justiça social. 13

No final do século XIX, surgiram os direitos humanos de segunda dimensão,

compreendendo os direitos econômicos, sociais e culturais, corolários dos princípios da

igualdade, caracterizando-se em uma dimensão positiva de fazer o Estado atuar de forma a

propiciar um direito ao bem estar social, ou seja, o Estado passou de mero espectador do

exercício arbitrário das liberdades individuais a garante da igualdade substancial através de

medidas prestacionais.

A terceira dimensão de direitos humanos corresponde aos direitos de solidariedade

ou fraternidade, com destaque especial ao direito ao desenvolvimento, à paz e ao meio

ambiente equilibrado14. Esta dimensão de direitos tem por finalidade básica a coletividade, ou

seja, proporcionar o bem estar dos grandes grupos, que muitas vezes são indefinidos e

indeterminados.

Na última década surgiram ainda os direitos de quarta e quinta dimensão que

decorrem do avançado de desenvolvimento tecnológico da humanidade, tratando-se os

primeiros dos direitos ligados à bioética e os segundos dos direitos ligados à cibernética.

É inegável que os direitos sociais sejam verdadeiros direitos fundamentais por

trataram de componentes essenciais do direito à vida e à dignidade da pessoa humana15.

Joaquim José Gomes Canotilho afirma ainda que os direitos econômicos, sociais e

culturais, ou seja, de segunda dimensão, são indissociáveis dos direitos e liberdades

individuais, conforme o paradigma de liberdade igual, razoável e racionalmente estruturado,

que pressupõe uma ordem jurídico-constitucional de reciprocidade, apoiada sem subterfúgios,

não apenas nas ideias de direito à vida e à integridade física, mas aos cuidados e às prestações,

asseguradoras do corpo e do espírito, como ter um lar, ter trabalho, ter ensino16.

O acolhimento dos princípios do Estado social e democrático de direito pela

Constituição Federal de 1988 impõe, para a concretização desse modelo, não apenas o

13 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. 3ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 51. 14 PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. São Paulo, SP: Max Limonad, 1998, p. 28. 15 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Sociais: Teoria Jurídica dos Direitos Sociais enquanto Direitos Fundamentais. Coimbra: Editora Coimbra, 2010, p. 10. 16 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estudos sobre Direitos Fundamentais. 2. ed. Portugal: Coimbra; São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 106.

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respeito aos direitos individuais, como também a realização dos direitos sociais, de que são

exemplos o direito à educação, ao trabalho, à saúde, dentre outros direitos sociais.

Este papel de destaque conferido aos direitos fundamentais (pela primeira vez na

história constitucional do país, cuja influência decorre dos documentos internacionais de

proteção aos direitos civis e políticos e de proteção aos direitos econômicos, socais e culturais

de 1966) desautoriza qualquer tentativa de negar ou esvaziar a natureza jurídica dos direitos

sociais, como se estes não fossem verdadeiros direitos, mas meros conselhos ou exortações ao

legislador17.

Ao contrário, são normas jurídicas, intimamente ligadas à ideia de dignidade da

pessoa humana e de limitação do poder, positivadas no plano constitucional de determinado

Estado Democrático de Direito, que, por sua importância axiológica, fundamentam e

legitimam todo o ordenamento jurídico18, não se apresentando apenas como conselhos morais

ou catálogo de boas intenções em decorrência de sua força normativa.

Os direitos sociais constituíram um capítulo exclusivo no rol de direitos e garantias

fundamentais da Constituição Federal de 1988 e, muito embora não tenham sido acostados ao

art. 5º, também foram alcançados pela força da cláusula de “aplicação imediata” (§ 1º do art.

5º da CF/88).

O direito à educação como um direito social exige a atuação do Estado para a sua

efetivação e a Constituição Federal de 1988 ainda vai além quando declara que a educação é

um “direito público subjetivo” (art. 208, § 1º), a fim de evitar o caráter programático que

dependem de norma regulamentadora por parte do legislador ordinário, ou, pior ainda, que

dependeria da discricionariedade do administrador público para sua implementação que se

escusaria facilmente sob a alegação de limitação de recursos, albergado pelo manto do

princípio da reserva do possível.19

Desta maneira, o legislador constitucional quis tornar exigível a efetividade por se

tratar de um direito que faz parte da condição de dignidade da pessoa humana e integra o que

se chama de mínimo existencial.

17 DUARTE, Clarice Seixas. A Educação como um direito fundamental de natureza social. In Educação e Sociedade, Campinas, vol. 28, n. 100 – Especial, p. 691-713, out. 2007, p. 694. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/es/v28n100/a0428100.pdf>. Acesso em: 15 jan. 2013. 18 MARMELSTEIN, George. Curso de direitos fundamentais. São Paulo: Atlas, 2009, p. 20 19 KOEHLER, Rodrigo Oskar Leopoldino; MOTTA, Ivan Dias da. A Constituição Federal de 1988 e o Direito à Educação. Revista Jurídica Cesumar. Mestrado, Maringá, v. 12, n. 1, p.49-74, jan./jun. 2012, p. 60. Disponível em: <http://www.cesumar.br/pesquisa/periodicos/index.php/revjuridica/article/view/2268/1641>. Acesso em: 15 jan. 2013.

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A positivação dos direitos do homem representa, além da grande contribuição à

modernidade, a consciência de que todos os homens são sujeitos de direitos e, portanto,

credores de condições mínimas de existência capazes de assegurar a sua dignidade20.

O direito à educação, positivado constitucionalmente como direito fundamental,

corolário da dignidade da pessoa humana, há de ser encarado como determinação vinculativa

para a Administração Pública, incumbindo ao administrador a adoção de medidas que

viabilizem o gozo e fruição, especialmente em relação ao alcance e implementação de uma

educação mais democrática, livre, justa e plural.

1.2 DA IMPORTÂNCIA DA EDUCAÇÃO COMO ELEMENTO DE FORMAÇÃO

HUMANA

A Constituição Federal de 1988 estabeleceu como finalidade da educação o

desenvolvimento pleno da pessoa, o preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação

para o trabalho (art. 205 da CF/88).

Segundo Elias de Oliveira Motta a educação é um processo, por excelência, de

mudanças sistemáticas e conscientes que se faz de forma planejada e organizada, firmando-se

como o instrumento mais eficaz que um governo tem para efetivar o desenvolvimento de um

povo21.

Com isso, verifica-se que o desenvolvimento de um país está intimamente ligado ao

nível educacional atingido pela sua população.

Pontes de Miranda ressalta que “o Estado tardou em reconhecer as vantagens da

instrução e educação do povo. Desconheceu, durante séculos e séculos, que somente se pode

aumentar o valor do Estado, do país, aumentando-se o valor dos indivíduos.”22

Relevante por isso observar que o direito à educação, além de um interesse do sujeito

individualmente considerado, se apresenta como um direito coletivo, próprio da sociedade,

visto representar objeto de inúmeras pretensões de direito: dos governos, dos pais, das

religiões, dos educadores e educandos23.

20 BARUFFI, Helder. A educação como um direito social fundamental: positivação e eficácia. Educação e Fronteiras On-Line, Dourados-MS, v.1, n.3, p.146-159, set./dez. 2011. Disponível em: <http://www.periodicos.ufgd.edu.br/index.php/educacao/article/viewFile/1522/900>. Acesso em: 25 jan. 2013. 21 MOTTA, Elias de Oliveira. Direito Educacional e Educação no Século XXI. Brasília: UNESCO, 1997, p. 79-80. 22 MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967: com a Emenda nº 1 de 1969, Rio de Janeiro: Forense, 1987, v. VI, p. 333. 23 BARUFFI, Helder. A educação como direito fundamental: um princípio a ser realizado. In: FACHIN, Zulmar (Coord.). Direitos Fundamentais e cidadania. São Paulo: Método, 2008. p. 85.

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Cláudio Pacheco define ainda a importância da educação na formação da cidadania, Para nós, que vivemos em democracia e que não receamos, antes ambicionamos a pluralidade dos partidos, a escola há de instruir sem subterfúgios, nem escamoteações, há de desenvolver o espírito crítico, há de combater os preconceitos, há de cultivar a tolerância e, acima de tudo, incutir em cada um o amor à sua própria liberdade e o respeito à liberdade alheia. Em outras palavras, ensinará a “viver democraticamente”. Não pretende fazer “partidários”, mas reconhece a necessidade de formar “cidadãos”; pois o sufrágio universal, o voto secreto e a justiça eleitoral, esplêndidas conquistas a que atingimos em nossa evolução política – constituirão um ritual inconsequente, uma simples aparência de democracia, enquanto faltar ao eleitorado a capacidade de escolher e a vontade de acertar.24

Percebe-se que o conceito de cidadania não se limita aos direitos políticos e que a

educação tem tríplice importância: o desenvolvimento do país como um todo; a possibilidade

do homem vir a ser um ator político em seu meio e, a própria formação e desenvolvimento do

homem como indivíduo25.

Ainda para Elias de Oliveira Motta,

A educação envolve todos os processos voltados para a perpetração das pessoas para as mudanças interiores e exteriores, com o objetivo de antecipar o desenvolvimento e deixá-las aptas a aceitarem, entenderem e enfrentarem os desafios do futuro com capacidade para moldá-lo aos seus princípios, valores e interesses individuais e sociais.26

A educação, enquanto direito fundamental, também surge como meio para o

enfrentamento e a superação dos desafios da modernidade, como a erradicação da pobreza e a

redução da desigualdade social, objetivos fundamentais da República e do Estado

Democrático de Direito.

Esta projeção já estava refletida no artigo 13 do Pacto Internacional dos Direitos

Econômicos, Sociais e Culturais (1966), segundo o qual,

Os Estados Partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda a pessoa à educação. Concordam que a educação deve visar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido da sua dignidade e reforçar o respeito pelos direitos do homem e das liberdades fundamentais. Concordam também que a educação deve habilitar toda a pessoa a desempenhar um papel útil

24 PACHECO, Cláudio. Tratado das constituições brasileiras. Rio de Janeiro, RJ: Freitas Bastos, 1958-1965, v. XII, p. 291. 25 KOEHLER, Rodrigo Oskar Leopoldino; MOTTA, Ivan Dias da. A Constituição Federal de 1988 e o Direito à Educação. Revista Jurídica Cesumar. Mestrado, Maringá, v. 12, n. 1, p.49-74, jan./jun. 2012, p. 60. Disponível em: <http://www.cesumar.br/pesquisa/periodicos/index.php/revjuridica/article/view/2268/1641>. Acesso em: 15 jan. 2013. 26 MOTTA, Elias de Oliveira. Direito Educacional e Educação no Século XXI. Brasília: UNESCO, 1997. p. 79-80.

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numa sociedade livre, promover compreensão, tolerância e amizade entre todas as nações e grupos, raciais, étnicos e religiosos, e favorecer as atividades das Nações Unidas para a conservação da paz.

No sentido mais amplo do processo de formação a educação é tema central no

pensamento de Habermas, para quem, esta deve ser compreendida no sentido mais abrangente

possível, abrigando processos de formação social, cultural e científico, em todos os espaços

onde acontecem. Em outras palavras, educação deve ser entendida como um conceito central

à educação moderna27.

A própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei nº 9.394, de 20.12.1996),

impulsionada pelos princípios constitucionais e outras normas de regência, aponta a

necessidade do respeito ao pleno desenvolvimento do educando (enquanto exercício da

cidadania) por meio da educação como processo socializador, consoante se extrai da leitura

dos artigos 1º e 2º:

Art. 1º A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais. § 1º Esta Lei disciplina a educação escolar, que se desenvolve, predominantemente, por meio do ensino, em instituições próprias. § 2º A educação escolar deverá vincular-se ao mundo do trabalho e à prática social. Art. 2º A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Para o novo contexto global, substrato em que está lançada (e se desenvolve) a

civilização contemporânea - semeadora do futuro mundial -, a educação humana merece ser

identificada como o maior recurso de que se dispõe para enfrentar a nova estruturação do

mundo, determinante na continuidade do atual processo de desenvolvimento econômico e

social28.

27 BANNEL, Ralph Ings. Habermas e a educação. Cult, Sumaré, v. 136, p. 49-50, jun. 2009. Disponível em: <http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/habermas-e-a-educacao/>. Acesso em 25 jan. 2013. 28 ARAÚJO. Fernanda Raquel Thomaz de; BELLINETTI, Luiz Fernando. O direito fundamental à educação na perspectiva da formação humana integral e do desenvolvimento social no contexto do mundo globalizado: a demanda econômica de sua realização na atividade orçamentária e um enfrentamento da invocação da cláusula da “reserva do possível” pelo poder público. Encontro Nacional do CONPEDI, 21, 2012, Uberlândia, MG. Anais eletrônicos do XXI Congresso Brasileiro do CONPEDI. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2012. Disponível em: <http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=c902b497eb972281>. Acesso em 25 jan. 2013.

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É por meio da educação que o ser humano tem o seu desenvolvimento pleno,

intelectual, artístico, científico. Tratando-se, porém, de um processo de aprendizagem que

nunca se encerra29, na medida em que o indivíduo está em constante transformação.

Também é por meio da educação que se permite o pleno desenvolvimento da

personalidade humana, na medida em que, com conhecimento advindo do ensino, o indivíduo

conquista sua liberdade e a ascensão social, o que permite sua integração na sociedade e,

consequentemente, a efetivação da cidadania30.

Para Lissa Cristina Pimentel Nazareth,

A educação é vital para o homem como o próprio ato de sobreviver, preservar sua frágil existência e assegurar sua evolução. A Educação é tão importante para a humanidade quanto o ato de procriar e desenvolver-se na vida social. Em face desta afirmativa, a Educação é a própria humanidade31.

O acesso à educação tem o dever de atuar como condição inerente à realização dos

outros direitos, ou seja, como “base constitutiva na formação do ser humano, bem como na

defesa e constituição dos outros direitos econômicos, sociais e culturais”32.

A formação humana possibilita o homem a vivência da plenitude dos direitos

humanos, com o que, difunde-se o anseio da educação em, para e pelos direitos humanos,

consoante proposta levantada por Maria Victoria Benevides33, para quem A Educação em Direitos Humanos é essencialmente a formação de uma cultura de respeito à dignidade humana através da promoção e da vivência dos valores da liberdade, da justiça, da igualdade, da solidariedade, da cooperação, da tolerância e da paz. Portanto, a formação desta cultura significa criar, influenciar, compartilhar e consolidar mentalidades,

29 SANTOS, Marcio Fernando Candéo dos. Os Direitos da personalidade na relação educacional. Maringá: CESUMAR, 2011, p. 61. 30 MOTTA. Ivan Dias da; LOPES, Mariane Helena. O sistema de cotas sociais para ingresso na universidade pública. Encontro Nacional do CONPEDI, 20, 2011, Belo Horizonte, MG. Anais eletrônicos do XX Congresso Brasileiro do CONPEDI. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2011, p. 4341. Disponível em: <http://www.conpedi.org.br>. Acesso em: 20 mar. 2013. 31 NAZARETH, Lissa Cristina Pimentel. A responsabilidade civil do educador e implicações nos direitos da personalidade do educando. Maringá: CESUMAR, 2009, p. 7. 32 LIMA JÚNIOR, Jaime Benvenuto (org.). Relatório brasileiro de direitos humanos econômicos, sociais e culturais apud ARAÚJO. Fernanda Raquel Thomaz de; BELLINETTI, Luiz Fernando. O direito fundamental à educação na perspectiva da formação humana integral e do desenvolvimento social no contexto do mundo globalizado: a demanda econômica de sua realização na atividade orçamentária e um enfrentamento da invocação da cláusula da “reserva do possível” pelo poder público. Encontro Nacional do CONPEDI, 21, 2012, Uberlândia, MG. Anais eletrônicos do XXI Congresso Brasileiro do CONPEDI. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2012. Disponível em: <http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=c902b497eb972281>. Acesso em 25 jan. 2013. 33 BENEVIDES, Maria Victoria. Educação em Direitos Humanos: de que se trata? Palestra de abertura do Seminário de Educação em Direitos Humanos, São Paulo, 18 fev. 2000. Disponível em: <www.hottopos.com/convenit6/victoria.htm>. Acesso em 25 jan. 2013.

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costumes, atitudes, hábitos e comportamentos que decorrem, todos, daqueles valores essenciais citados – os quais devem se transformar em práticas.

A educação em, para e pelos direitos humanos atua como forma de proteção e

respeito destes direitos, com o que se tornará possível o cumprimento dos objetivos da

República (art. 3º da CF/88) voltado ainda ao fundamento de respeito à dignidade da vida

humana.

A garantia do exercício de direito individuais e sociais é, pois, um objetivo do Estado

Democrático de Direito, razão pela qual, a educação se torna responsável por fornecer

elementos para a construção do pensamento humano, do senso crítico, da sociabilidade, da

ética, dentro outros valores sociais e humano, bem como, transformadora e construtora do

próprio Estado e, realizadora da dignidade humana.

2 DA NECESSIDADE DE EFETIVAÇÃO DO DIREITO À EDUCAÇÃO POR MEIO

DE POLÍTICAS PÚBLICAS E POR MEIO DE TUTELA JURISDICIONAL

As políticas públicas são o meio pelo qual se possibilita a verdadeira concretização

das normas constitucionais de maior relevância como os direitos fundamentais, em especial,

os de natureza social, a exemplo do direito à educação, cuja viabilidade é elemento

determinante para o exercício das liberdades individuais e da própria democracia, traduzindo-

se na mais notável via de efetivação.

Clarice Seixas Duarte salienta que, No Estado social de direito, é a elaboração e a implementação de políticas públicas – objeto, por excelência, dos direitos sociais – que constituem o grande eixo orientador da atividade estatal, o que pressupõe a reorganização dos poderes em torno da função planejadora, tendo em vista a coordenação de suas funções para a criação de sistemas públicos de saúde, educação, previdência social etc. 34

Não basta, pois, o reconhecimento formal dos direitos fundamentais (sociais) sendo

imprescindíveis os meios para concretizá-los, por isso, estes direitos dependem de políticas

públicas, que são um conjunto de atividades a serem realizadas pela administração pública

para que os fins previstos na Constituição sejam cumpridos.

Nesta proposta de políticas públicas, Eduardo Cambi aduz que, 34 DUARTE, Clarice Seixas. A Educação como um direito fundamental de natureza social. In Educação e Sociedade, Campinas, vol. 28, n. 100 – Especial, p. 691-713, out. 2007, p. 694. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/es/v28n100/a0428100.pdf>. Acesso em: 15 jan. 2013.

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Em sentido amplo, o termo políticas públicas abrange a coordenação dos meios à disposição do Estado, para harmonização das atividades estatais e privadas, nas quais se incluem a prestação de serviços e a atuação normativa, reguladora e de fomento, para realização de objetivos politicamente determinados e socialmente relevantes. Enfim, políticas públicas são metas políticas conscientes ou programas de ação governamental, voltados à coordenação dos meios à disposição do Estado e das atividades privadas, com a finalidade de realizar objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados35.

A realização de políticas públicas, no entanto, demanda uma série de pressupostos e

justificação, podendo-se destacar, dentre elas, as necessidades humanas básicas percebidas e

socialmente compartilhadas. Conforme Potyara Pereira, “na ausência de definição precisa e

coerente de necessidades, as políticas públicas tornam-se inconsistentes, quando não

desastradas, por não contarem com critérios adequados de orientação”36.

Nesta linha, defenda ainda que, “reconhecer a existência de necessidade humanas como necessidades socais, com valores, finalidades e sujeitos definidos, tem sido um grande passo para a construção da cidadania, pois isso equivale reconhecer a existência de uma força desencadeadora de conquistas sociais e políticas”.

Analisando-se criteriosamente o processo de formação e desenvolvimento das

políticas públicas é possível notar que na base de cada uma delas encontram-se necessidades

humanas, que foram problematizadas e se transformaram em questões de direito.

Impende observar que “algumas políticas públicas já estão definidas na Constituição,

devendo necessariamente ser adotadas por corresponderem, seus fins, aos objetivos da

República”37.

A partir da ideia de que a educação pode servir de instrumento poderoso de

desenvolvimento da pessoa humana e do exercício da cidadania, com o que será possível

cumprir os objetivos da República e a própria manutenção de um Estado Democrático de

Direito, exige-se que o integral atendimento ao direito à educação signifique cumprir,

35 CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo: direitos fundamentais, políticas públicas e protagonismo judiciário. São Paulo: RT, 2009, p. 190. 36 Pereira, Potyara A. P. Políticas Públicas e Necessidades Humanas com Enfoque no Gênero. Sociedade em Debate, Pelotas, 12(1): 67-86, jun./2006. 37 FRONTINI, Paulo Salvador. Ação civil pública e separação dos Poderes do Estado. In: MILARÉ, Edis (coord.). Ação civil pública: lei 7.347/1885 – 15 anos. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 713-752, p. 744.

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qualitativa e quantitativamente as obrigações que dele decorrem, produzindo ações políticas e

serviços educacionais adequados à plena formação do educando38.

A rede pública de ensino tem, pois, a missão de proporcionar aos frequentadores o

encontro com a tecnologia que permita desenvolver conhecimentos e habilidades que

qualifiquem e incluam as pessoas nos mais diversos segmentos sociais. O objetivo da política

educacional deve estar voltado para uma educação básica de qualidade, libertadora e não

somente o contexto de educar para o trabalho, por isso, as políticas públicas sociais devem

permitir que a educação básica envolva ciência, tecnologia, questões éticas e direitos

humanos39. Tal premissa é necessária para minimizar as diferenças existentes em relação ao

ensino privado.

No escólio de Elias de Oliveira Motta, cabe ao Estado a

(...) obrigação de construir, organizar e manter escolas, proporcionando a democratização e a gratuidade do ensino, especialmente no nível constitucional de obrigatoriedade, bem como zelar pelo respeito às leis do ensino, pela avaliação das instituições e pelo desenvolvimento do nível de qualidade do ensino40.

O dever do Estado com a educação foi positivado no artigo 208 da Constituição

Federal41, estabelecendo assim um rol de deveres garantidos pelos quais o Estado buscará

cumpri-los.

38 ARAÚJO. Fernanda Raquel Thomaz de; BELLINETTI, Luiz Fernando. O direito fundamental à educação na perspectiva da formação humana integral e do desenvolvimento social no contexto do mundo globalizado: a demanda econômica de sua realização na atividade orçamentária e um enfrentamento da invocação da cláusula da “reserva do possível” pelo poder público. Encontro Nacional do CONPEDI, 21, 2012, Uberlândia, MG. Anais eletrônicos do XXI Congresso Brasileiro do CONPEDI. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2012. Disponível em: <http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=c902b497eb972281>. Acesso em 25 jan. 2013. 39

GONÇALVES, Ana Catarina Piffer. Políticas Públicas: atividade exclusivamente estatal x participação de empresas privadas. In: SIQUEIRA, Dirceu Pereira; ALVES, Fernando de Brito (Org.). Políticas Públicas: da previsibilidade a obrigatoriedade, uma análise sob o prisma do Estado Social de Direitos. Birigui: Boreal, 2011, p. 62. 40 MOTTA, Elias de Oliveira. Direito educacional e educação no século XXI. Brasília: Unesco,1997, p. 168. 41 Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: I - educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita para todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria; II - progressiva universalização do ensino médio gratuito; III - atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino; IV - educação infantil, em creche e pré-escola, às crianças até 5 (cinco) anos de idade; V - acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um; VI - oferta de ensino noturno regular, adequado às condições do educando; VII - atendimento ao educando, em todas as etapas da educação básica, por meio de programas suplementares de material didático escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde; § 1º O acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo. § 2º O não-oferecimento do ensino obrigatório pelo Poder Público, ou sua oferta irregular, importa responsabilidade da autoridade competente.

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Todavia, a universalização da educação e a sua qualificação ainda expressa uma

promessa de realização no Brasil (em que pese o elevado número de políticas públicas

existentes), o País carece de intenso e prioritário investimento em termos de políticas públicas

educacionais no sentido de garantir a igualdade de acesso a todas as crianças e jovens42.

Indaga-se: quais seriam as garantias políticas da eficácia desse direito? Para

responder a indagação, citando alguns juristas defensores da democracia participativa, o

professor Helder Baruffi alega que a garantia de realização dos direitos fundamentais sociais

se dá,

(a) pela construção de um regime democrático que tenha como conteúdo a realização da justiça social; (b) pelo apoio a partidos e candidatos comprometidos com essa realização; (c) pela participação popular no processo político que leve os governantes as atender suas reivindicações43.

A sociedade é, pois, o mecanismo imprescindível para a efetivação do direito à

educação, sua participação vai desde a constatação da necessidade de implementar

determinada política pública, passando pela sua elaboração, efetivação e avaliação, podendo-

se determinar, de modo pontual, as necessidades prementes que devem ser sanadas.

É certo que os problemas da educação não serão resolvidos tão somente com a

participação da sociedade civil, porém, ela exerce um papel representativo, em especial

direcionando ao Estado, no clamor por melhorias na Educação.

Acerca da participação da sociedade Elias de Oliveira Motta destaca que A colaboração da sociedade também se faz necessária, principalmente para suprir as deficiências do Estado na promoção e incentivo da educação. É aqui que a ação da livre iniciativa ganha importância, não só por garantir maior número de vagas, mas, principalmente, pelas alternativas que oferece às famílias para poderem escolher, livremente, a escola que preferem, seja pelas suas tradições religiosas e culturais, seja pelo desejo de melhor qualidade do que a oferecida pelo poder público.44

§ 3º Compete ao Poder Público recensear os educandos no ensino fundamental, fazer-lhes a chamada e zelar, junto aos pais ou responsáveis, pela frequência à escola. 42 ARAÚJO. Fernanda Raquel Thomaz de; BELLINETTI, Luiz Fernando. O direito fundamental à educação na perspectiva da formação humana integral e do desenvolvimento social no contexto do mundo globalizado: a demanda econômica de sua realização na atividade orçamentária e um enfrentamento da invocação da cláusula da “reserva do possível” pelo poder público. Encontro Nacional do CONPEDI, 21, 2012, Uberlândia, MG. Anais eletrônicos do XXI Congresso Brasileiro do CONPEDI. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2012. Disponível em: <http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=c902b497eb972281>. Acesso em 25 jan. 2013. 43 BARUFFI, Helder. A educação como um direito social fundamental: positivação e eficácia. Educação e Fronteiras On-Line, Dourados-MS, v.1, n.3, p.146-159, set./dez. 2011. Disponível em: <http://www.periodicos.ufgd.edu.br/index.php/educacao/article/viewFile/1522/900>. Acesso em: 25 jan. 2013. 44 MOTTA, Elias de Oliveira. Direito educacional e educação no século XXI: com comentários à nova lei de diretrizes e bases da educação nacional (Prefácio de Darcy Ribeiro). Brasília: Unesco, p. 168.

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A própria Constituição Federal de 1988 nos artigos 20545 e 22746 insere a sociedade

como sujeito da relação educacional.

É importante observar que o papel da sociedade “não é substituir o Estado, liberá-lo

de suas atribuições constitucionais, postar-se sob sua tutela, mas se organizar de maneira

competente para fazê-lo funcionar”47, influenciando direta ou indiretamente na formulação e

na gestão de políticas públicas. Esta participação da sociedade pode se concretizar a partir da

implementação de conselhos, fóruns, câmaras setoriais, orçamentos participativos, dentre

outros.

No entanto, segundo Orlando Rochadel Moreira, a sociedade civil, na prática, “ainda

não apresenta a força necessária para influenciar, de maneira consistente, a esfera pública

política, ou porque não é suficientemente organizada, ou porque os agentes do Estado são

insensíveis ao clamor popular”48.

Isso ocorre também porque a participação está condicionada aos mecanismos abertos

pelo Estado.

Logo, é preciso que o Estado adote medidas que permitam a participação da

sociedade em todos os níveis da educação, bem como, adote medidas com a implementação

de políticas públicas para garantir o acesso à educação de qualidade e a permanência do

educando na escola.

A Constituição Federal de 1988 determina que o não oferecimento do ensino

obrigatório pelo poder público, ou sua oferta irregular, importa responsabilidade da autoridade

competente (Art. 208, § 2º).

Para Regina Maria Fonseca Muniz a educação é “condição para a formação do

homem e tarefa fundamental do Estado, é um de seus deveres primordiais, sendo que, se não o

cumprir, ou o fizer de maneira ilícita, pode ser responsabilizado por dano moral e ou

patrimonial”49.

45 Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. 46 Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. 47 MARTINS, Rosilda Baron. Educação para a cidadania: o projeto político-pedagógico como elemento articulador. In: VEIGA, Ilma P. A.; RESENDE, Lúcia Maria G.de (orgs.) Escola: espaço do projeto político-pedagógico. Campinas, SP: Papirus 1998, p. 53. 48 MOREIRA, Orlando Rochadel. Politicas públicas e direito à educação. Belo Horizonte: Fórum, 2007, p.44/45. 49 MUNIZ, Regina Maria Fonseca. O Direito à educação. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 211.

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Não obstante a previsão constitucional de penalização da autoridade competente

percebe-se a necessidade de uma responsabilização mais severa que poderia ser viabilizada

com a criação de uma lei de responsabilidade educacional como já ocorre com a lei de

responsabilidade fiscal, por exemplo.

Observa-se ainda que a Constituição Federal de 1988 prevê a imediata exigibilidade

destes direitos prestacionais quando não observados, ou prestados de forma deficiente, perante

o poder judiciário quando define que o acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito

público subjetivo (art. 208, § 2º).

Na medida em que a Constituição vincula o Estado à efetivação do direito

fundamental à educação, decorre deste vínculo uma situação jurídica que faz nascer para

indivíduo e sociedade que titularizam este direito, na hipótese de sua lesão – quer por postura

do Poder Público ou de particulares -, uma pretensão apta a ser exercida por meio do direito

de ação50.

A respeito da força normativa da Constituição no que tange as políticas públicas

Osvaldo Canela Junior admoesta O efeito de irradiação dos direitos fundamentais é de tal forma intenso, que vincula a conduta do Estado. Isto significa que as formas de expressão do poder estatal devem atuar coordenadamente para que se efetivem os direitos fundamentais. Assim, o Estado, por seus agentes, ao não produzir a irradiação necessária para a efetivação dos direitos fundamentais, viola a Constituição. A atividade legislativa, ante o princípio da legalidade, cria as normas de conduta dos agentes públicos adequadas à realização dos objetivos do Estado. As normas de conduta vinculam a intervenção humana dos agentes públicos, representada pela atividade administrativa, e a destinação do patrimônio estatal. Caso esta atividade não se harmonize com os objetivos do Estado, a jurisdição promoverá o realinhamento necessário51.

Como meios de garantir o acesso à educação, a permanência na escola e a qualidade

do ensino os interessados estão respaldados constitucionalmente na busca do Poder Judiciário.

Ressalta-se que a ação do Poder Judiciário em face das negações dos demais poderes

na concretização dos direitos sociais, dentre eles a educação, não fere o princípio da

tripartição dos poderes.

50 BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 221-222. 51 CANELA JUNIOR, Osvaldo. Controle judicial de políticas públicas. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 56-57.

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Não se pode permitir, em razão da importância que este direito revela para a

edificação do Estado Democrático, que esteja adstrito a decisões de índole administrativa,

sujeitas aos critérios de conveniência e oportunidade52.

O Poder Judiciário pode determinar o remanejamento dos gastos públicos de maneira

a possibilitar a realização do direito fundamental social, mormente quando este direito

compõe o mínimo existencial e não podem ficar sujeitos à discricionariedade da maioria

parlamentar ou da administração pública.

A este respeito, Eduardo Cambi ressalta que,

Dentro das limitações orçamentárias, o Estado deve priorizar os gastos públicos na concretização daqueles direitos que permitem gerar as condições gerais mínimas para emancipação da pessoa humana, porque esta é a premissa mais favorável à realização dos direitos fundamentais em países de modernidade tardia como o Brasil. [...] Os direitos que compõem o mínimo existencial são tão importantes que a sua outorga não pode ficar sujeita à vontade (discricionariedade) da maioria parlamentar ou da Administração Pública. Desse modo, a ausência de previsão de despesa, nas leis orçamentárias, bem como a inexistência de políticas públicas não impede a efetivação judicial do mínimo existencial. [...] Opções orçamentárias podem ser invalidadas pelo Poder Judiciário para permitir a concretização dos direitos fundamentais sociais ou, ao menos, do mínimo existencial. Deve o Judiciário sopesar os distintos atos materiais que podem ser praticados pelo Executivo, quando, diante das circunstâncias fáticas e jurídicas inerentes ao caso concreto, restar demonstrado que a opção do administrador é manifestamente inconstitucional. Há de ficar comprovado que foi preterido o valor da dignidade humana para se implementar outras alternativas incapazes de promover a tutela do mínimo existencial. 53

Nelson Joaquim54 sugere a criação de um Direito Educacional como “orientador na

aplicação dos mecanismos ou instrumentos administrativos e judiciais, para prevenir ou

compor os conflitos e, ainda, apresentar solução judicial de acordo com a natureza do caso”,

concluindo que

O Direito Educacional atua também, em duplo sentido: de um lado preventivamente, orientando, atuando de forma pedagógica, por intermédio da doutrina jurídica, procedimentos administrativos e pedagógicos da própria

52 GÖTTEMS, Caludinei J. Direito fundamental à educação: a efetividade da democracia através da jurisdição constitucional. In: SIQUEIRA, Dirceu Pereira; PICCIRILLO, Miguel Belinati. Inclusão social e direitos fundamentais. Birigui: Boreal, 2009. p. 59-60. 53 CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo: direitos fundamentais, políticas públicas e protagonismo judiciário. São Paulo: RT, 2009, p. 407-409. 54 JOAQUIM, Nelson. Direito educacional brasileiro: história, teoria e prática. 1. ed. Rio de Janeiro: Livre Expressão, 2009, p. 231/232.

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instituição de ensino, participações do Ministério Publico, Conselho Tutelar, Conselhos Municipais de Educação, políticas públicas e privadas, ações afirmativas para inclusão social na educação; de outro lado, apresenta solução de composição ou judicial, por intermédio dos órgãos judiciais e instrumentos processuais, a participação do Estado-juiz.

O ideal seria a efetivação dos direitos sociais por meio de uma ação concreta do

Estado por meio de políticas públicas com a participação da sociedade na implementação e na

fiscalização e não simplesmente diante da possibilidade de agir em juízo, até porque, quanto

mais democrático for o sistema político com tomada de decisões pelo próprio Poder

Executivo, baseadas no interesse da coletividade, menor será a atuação do Poder Judiciário

para a garantia da Constituição e dos objetivos que permeiam o Estado Democrático de

Direito.

CONCLUSÃO

Buscou-se com o presente artigo demonstrar a importância da educação como

responsável por fornecer elementos para a construção do pensamento humano, do senso

crítico, da sociabilidade, da ética, dentro outros valores sociais e humanos, tendo por

finalidade o desenvolvimento humano e de cidadania.

Em razão desta importância e do tratamento atribuído no âmbito internacional a

educação foi positiva na Constituição Federal de 1988 como direito fundamental de natureza

social.

Estes direitos fundamentais nada mais são do que os direitos humanos reconhecidos

e positivados que surgiram da necessidade de se impor limites ao poder do Estado.

Consideradas as atrocidades praticadas pelo nazismo contra a individualidade da

pessoa humana e contra a humanidade como um todo na 2ª Guerra Mundial, sentiu-se a

necessidade de proteção de uma categoria básica de direitos reconhecidos à pessoa humana,

tratando-se de um marco histórico.

O destaque conferido aos direitos sociais pela Constituição Federal de 1988

desautoriza qualquer tentativa de negar ou esvaziar a sua natureza jurídica como direito

fundamental.

Demonstrou-se que não basta o reconhecimento formal dos direitos fundamentais

(sociais) sendo imprescindíveis os meios para concretizá-los, por isso, estes direitos

dependem de políticas públicas, que são um conjunto de atividades a serem realizadas pela

administração pública para que os fins previstos na Constituição sejam cumpridos.

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A partir da ideia de que a educação pode servir de instrumento poderoso de

desenvolvimento da pessoa humana e do exercício da cidadania, com o que será possível

cumprir os objetivos da República, exige-se que o integral atendimento ao direito à educação

signifique cumprir, qualitativa e quantitativamente as obrigações que dele decorrem,

produzindo ações políticas e serviços educacionais adequados à plena formação do educando.

O objetivo da política educacional deve estar voltado para uma educação de

qualidade, libertadora e não somente o contexto de educar para o trabalho.

Pontuou-se a necessidade de participação da sociedade cujo papel imprescindível vai

desde a constatação da necessidade de implementar determinada política, passando pela sua

elaboração, efetivação e avaliação, podendo-se determinar, de modo pontual, as necessidades

que devem ser sanadas.

O direito à educação é um direito público subjetivo o que implica a sua imediata

exigibilidade perante o Poder Judiciário. O não oferecimento ou sua oferta irregular importa

na responsabilidade da autoridade competente.

Por se tratar de direito que faz parte da condição de dignidade da pessoa humana e

integra o que se chama de mínimo existencial não pode estar sujeitos a normas programáticas,

daí se percebe a necessidade de elaboração de uma lei de responsabilidade educacional, bem

assim, pensar na ideia da criação de um direito educacional como ramo do direito.

REFERÊNCIAS

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UMA ANÁLISE CRÍTICA SOBRE OS MECANISMOS JURÍDICOS DE EFETIVIDADE DO DIREITO FUNDAMENTAL À INFORMAÇÃO PÚBLICA

NO BRASIL A CRITICAL ANALYSIS OF THE MECHANISMS OF LEGAL EFFECTIVENESS OF

THE FUNDAMENTAL RIGHT TO PUBLIC INFORMATION IN BRAZIL

Ana Maria D´Ávila Lopes1

Isabelle Maria Campos Vasconcelos Chehab2

RESUMO O presente artigo discorre sobre os mecanismos jurídicos que concorrem para a efetividade do direito fundamental de acesso à informação pública no Brasil. Para tanto, fez-se uso de pesquisa documental e bibliográfica. Inicialmente, expôs-se o conceito histórico de direito fundamental à informação pública. Em seguida, apresentaram-se os seus fundamentos jurídicos – tanto os nacionais, como os internacionais, com especial destaque para a Lei nº 12.527/2011. Ao final, concluiu-se que o direito à informação pública é dotado não apenas de uma legitimidade formal, mas igualmente material, na medida em que a sua busca e o seu resguardo estão intrinsecamente vinculados ao ideário de democracia e de concretização dos direitos humanos. Por semelhante modo, observou-se que as reivindicações sistemáticas da sociedade civil organizada em prol do acesso aos documentos e informações, especialmente aqueles relacionadas aos períodos de exceção, foram fundamentais na constituição de um arcabouço jurídico e político para a construção da memória coletiva no Brasil. Ainda, verificou-se que a edição da Lei nº 12.527/2011 tende a colaborar na consolidação do direito fundamental à informação no Brasil, na medida em que disciplina, fixa os limites e facilita o acesso às informações no âmbito da Administração Pública.

PALAVRAS-CHAVE: Direitos Fundamentais; Direitos Humanos; Direito à informação

pública.

ABSTRACT

This article discusses the effectiveness of the fundamental right of access to public information in Brazil. For this, it was used a documental and bibliographical research . Initially, it was explained the concept of historic fundamental right to public information. Then, it was presented its legal bases. Subsequently, it was analyzed the main public policy to promote and protect the human right to information in Brazil, namely the Project Revealed Memories. By the end, it was concluded the relevance of civil society organizations in the establishment of the legal framework of the right to public 1 Mestre e Doutora em Direito Constitucional pela Universidadade Federal de Minas Gerais - UFMG. Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Fortaleza - UNIFOR. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. 2 Mestra e Doutoranda em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza - UNIFOR. Professora do Curso de Direito da Faculdade Integrada do Ceará – FIC.

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information in Brazil. Also, it was observed that, for a long-standing, at the international field, that right already received shelter, which can be expressed through treaties and pacts. Finally, it was found that the enactment of Law n°. 12.527/2011 tends to collaborate in strengthening and visibility of the fundamental right to public information in Brazil.

KEYWORDS: Fundamental Rights; Human Rights; Right to public information.

INTRODUÇÃO

Malgrado alguns ainda concebam o acesso à informação pública como um

privilégio de alguns, que, no mais das vezes, se valem da argumentativa de

governabilidade ou de influência dos que o detêm, a verdade é que, gradualmente, a

magnitude da informação pública tem sido alterada para uma perspectiva geral e

irrestrita.

Assim, hodiernamente, a informação é tida como bem comum; escudo e

mecanismo de - e para a – democracia. A regra é a transparência e não o segredo, razão

pela qual a ideia de defesa e promoção da informação pública foi se constituindo como

política pública prioritária dos países, que caminham rumo à democracia, à igualdade e à

dignidade da pessoa humana.

O presente artigo visa, pois, discorrer, através de pesquisa bibliográfica e

documental, sobre a possível efetividade dos mecanismos jurídicos disponíveis para a

concretização do direito fundamental à informação pública no Brasil, fixando os seus

limites a partir do disposto nas normas internacionais, bem como do previsto na Lei nº

12.527/2011.

Nesses termos, apresentou-se, no tópico inicial, o conceito de direito à informação

pública, trazendo-se à lume o desenvolvimento da temática, por meio da sua evolução

histórica no Brasil e no estrangeiro.

No tópico seguinte, foram colacionados os mecanismos jurídicos para a promoção

e defesa do direito fundamental à informação pública no Brasil, iniciando-se pelas

normas internacionais, tais como os artigos 19 e 21, parágrafo 2º., da Declaração

Universal dos Direitos Humanos (DUDH), assim como o artigo 19, parágrafos 2º. e 3º.,

do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP). Sem olvidar-se de

comentar os artigos 10 e 13 da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, além

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da Declaração Interamericana de Princípios de Liberdade de Expressão, mais

especificamente em seus itens 3, 4 e 5.

Posteriormente, explicitou-se o porquê da fundamentalidade do direito à

informação, por meio dos seus mecanismos jurídicos constitucionais, alcançando tanto o

seu aspecto formal, quanto o material. Foi, também, explanado o seu cunho

infraconstitucional, enfatizando-se, para tanto, o eixo orientador VI, intitulado Direito à

Memória e à Verdade, notadamente em suas diretrizes 23, 24 e 25, do Plano Nacional de

Direitos Humanos III (PNDH-III), e a recém-editada Lei nº 12.527/2011.

Ao final, concluiu-se que o direito à informação pública é dotado não apenas de

uma legitimidade formal, mas igualmente material, na medida em que a sua busca e o seu

resguardo estão intrinsecamente vinculados ao ideário de democracia e de concretização

dos direitos humanos. Por semelhante modo, observou-se que as reivindicações

sistemáticas da sociedade civil organizada em prol do acesso aos documentos e

informações, especialmente aqueles relacionadas aos períodos de exceção, foram

fundamentais na constituição de um arcabouço jurídico e político para a construção da

memória coletiva no Brasil. Ainda, verificou-se que a edição da Lei nº 12.527/2011 tende

a colaborar na consolidação do direito fundamental à informação no Brasil, na medida em

que disciplina, fixa os limites e facilita o acesso às informações no âmbito da

Administração Pública, conforme adiante se explicitará.

1. DELIMITAÇÃO HISTÓRICA-CONCEITUAL

Para se verificar a relevância e o atual status do direito à informação no âmbito

normativo e político, mister se faz – previamente – tecer alguns comentários sobre a

constituição da cultura de acesso e de transparência dos dados e documentos públicos no

Brasil.

Nessa senda, é fundamental destacar que, desde o descobrimento do Brasil até o

início do século XX, a regra era o sigilo das informações na – e pela - Administração

Pública. Entendia-se que a sua publicização poderia trazer prejuízos aos atos e

procedimentos estatais, além de gerar possíveis conflitos, quando não ameaças, à

continuidade de políticas públicas e de ações de soberania.

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Com o advento do século XX, especialmente com a queda do Muro de Berlim,

com o desenvolvimento de estratégias e práticas de acesso à informação e,

principalmente, com a abertura política na América Latina, o Brasil passou a reestruturar

o seu modelo de Estado, antes hermético e pautado na excepcionalidade, agora

privilegiando um paradigma de democracia e transparência.

Destarte, o Brasil foi sendo demandado – interna e externamente – para planejar e

efetivar políticas públicas que se coadunassem com o seu discurso de abertura política, o

que pressupunha a facilitação e o acesso aos documentos e aos arquivos secretos,

notadamente da Era Vargas e da ditadura militar (NILMÁRIO; TIBÚRCIO, 2008, p. 19)

Cumpre frisar que as informações aqui solicitadas tinham origens específicas, a

saber: foram criadas e/ou estão armazenadas pela Administração Pública – direta ou

indireta - o que impõe o seu zelo e o seu resguardo.

Por outra banda, deve-se rememorar que estando tais informações sob a égide da

Administração Pública vinculam-se ao princípio da publicidade como regra, ou seja, todo

este conjunto de documentos, arquivos e/ou dados devem estar disponíveis à

coletividade, excetuando-se os casos em que o próprio ordenamento estipular em sentido

contrário.

Tal fato resta patente quando a Lei de Acesso às Informações, em seu art. 4º.,

estabelece que: “Para os efeitos desta Lei, considera-se: I - informação: dados,

processados ou não, que podem ser utilizados para produção e transmissão de

conhecimento, contidos em qualquer meio, suporte ou formato.”

Ainda, é relevante ratificar, malgrado a lei não o tenha feito com clareza, que os

dados e documentos que interessam à temática em apreço, necessariamente devem dizer

respeito à Administração Pública, que, por seu turno, enseja práticas e procedimentos

específicos para a sua produção e/ou acesso.

Logo, deve-se entender que a informação pública é dotada não apenas de

regramento próprio – dada a sua origem pública– como também de procedimento

específico para fins de acesso, defesa e, inclusive, denegação, o que demanda motivação

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e responsabilidade peculiares, justamente pela sua vinculação com a Administração

Pública.

Nesse contexto, discorre-se sobre informação pública e o seu acesso: não apenas

como dados e/ou arquivos esparsos sob a guarda da Administração Pública, mas também

como documentos relevantes, conectados entre si, que exprimem a História e a memória

de um país e do seu povo, que, se não bem geridos, pressupõem o chamamento à

responsabilidade dos seus guardiões por seu caráter e finalidade coletiva.

Por tudo isto, compreende-se como relevante o acesso, a defesa e a promoção do

direito à informação pública. Primeiramente, por ser a informação elemento de aportes e

finalidades eminentemente públicas. Em segundo lugar, por ter a informação conotação e

serventia plenas ao presente e ao porvir. Ainda, por ser a informação indispensável para a

construção e/ou restauração da democracia – como tem acontecido no Brasil. Finalmente,

por ser a informação pública fonte da História e da memória de um país, imprescindível

para a compreensão e monitoramento da Administração Pública, conforme adiante se

explicitará.

2. MECANISMOS JURÍDICOS PARA A EFETIVIDADE DO DIREITO

FUNDAMENTAL À INFORMAÇÃO

A promoção e a defesa do acesso à informação pública no Brasil recebem guarida

tanto no âmbito constitucional como na seara infraconstitucional. Igualmente, o seu

esteio advém de diversas normas internacionais, dentre as quais, destacam-se: Declaração

Universal dos Direitos Humanos (1948), Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos

(1966), Convenção Americana dos Direitos Humanos (1969), Declaração Interamericana

de Princípios de Liberdade de Expressão (2000), Convenção das Nações Unidas contra a

Corrupção (2003), que têm colaborado – genérica e especificamente - para a elaboração e

efetividade do corpo normativo interno.

2.1 Das normas internacionais

A primeira norma a dispor – genericamente – sobre o direito de acesso à

informação foi a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), que assim

proclamou:

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Art. 19. – Toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras. (grifo nosso)

Art. 21 - 2. Toda pessoa tem igual direito de acesso ao serviço público do seu país. (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, ON-LINE, 1948).

Em seguida, no ano de 1966, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos

(PIDCP) fixou mais detalhadamente os limites do direito à informação, senão vejamos:

Art. 19 – [...]

2. Toda pessoa terá direito à liberdade de expressão; esse direito incluirá a liberdade de procurar, receber e difundir informações e idéias de qualquer natureza, independentemente de considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, em forma impressa ou artística, ou qualquer outro meio de sua escolha. 3. O exercício do direito previsto no § 2º do presente artigo implicará deveres e responsabilidades especiais. Conseqüentemente, poderá estar sujeito a certas restrições, que devem, entretanto, ser expressamente previstas em lei e que se façam necessárias para: a) assegurar o respeito dos direitos e da reputação das demais pessoas; b) proteger a segurança nacional, a ordem, a saúde ou a moral pública. (grifo nosso) (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, ON-LINE, 1966).

Observe-se que, inicialmente, o PIDCP disponibilizou um acesso significativo a

informações, inclusive, explicitando a liberdade de procurá-las, recebê-las e difundi-las.

Por outro lado, no seu parágrafo 3º., estabeleceu limites/restrições quando as informações

versarem sobre a reputação de pessoas diversas e/ou acerca da segurança nacional, da

ordem, da saúde ou da moral pública, o que testifica a constante dificuldade jungida ao

acesso efetivo e amplo às informações, especialmente, se concernentes a regimes

autoritários, tal qual foi no Brasil com a Ditadura Vargas e com a Ditadura Militar, que

perdurou até o ano de 1985.

Posteriormente, pode ser destacada a explicitação firmada na Convenção

Americana dos Direitos Humanos (1969), mais especificamente em seu artigo 13, a

saber:

Art. 13 - Liberdade de pensamento e de expressão

1. Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e idéias de toda natureza, sem consideração de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo de sua escolha.

2. O exercício do direito previsto no inciso precedente não pode estar sujeito a censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente fixadas pela lei e ser necessárias para assegurar:

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a) o respeito aos direitos ou à reputação das demais pessoas; ou

b) a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas.

3. Não se pode restringir o direito de expressão por vias ou meios indiretos, tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel de imprensa, de freqüências radioelétricas ou de equipamentos e aparelhos usados na difusão de informação, nem por quaisquer outros meios destinados a obstar a comunicação e a circulação de idéias e opiniões. (grifo nosso) (ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS, ON-LINE, 1969).

Resta patente que a Convenção foi deveras mais ousada que o PIDCP, uma vez

que além de estabelecer e disciplinar o direito à informação, proibiu a restrição do direito

de expressão por vias ou meios indiretos, seja por órgãos oficiais ou particulares,

fortalecendo, assim, em tempos de crise, o pleno acesso a informações e, em última

instância, a própria ideia de democracia e/ou a necessidade do seu retorno.

Por sua agudeza, é igualmente merecedora de destaque a Convenção das Unidas

contra a corrupção, que fixa ditames, em seus artigos 10 e 13, acerca da transparência e

da acessibilidade aos procedimentos internos da Administração Pública, in verbis:

Artigo 10 Informação pública Tendo em conta a necessidade de combater a corrupção, cada Estado Parte, em conformidade com os princípios fundamentais de sua legislação interna, adotará medidas que sejam necessárias para aumentar a transparência em sua administração pública, inclusive no relativo a sua organização, funcionamento e processos de adoção de decisões, quando proceder. Essas medidas poderão incluir, entre outras coisas: a) A instauração de procedimentos ou regulamentações que permitam ao público em geral obter, quando proceder, informação sobre a organização, o funcionamento e os processos de adoção de decisões de sua administração pública, com o devido respeito à proteção da intimidade e dos documentos pessoais, sobre as decisões e atos jurídicos que incumbam ao público; b) A simplificação dos procedimentos administrativos, quando proceder, a fim de facilitar o acesso do público às autoridades encarregadas da adoção de decisões; e c) A publicação de informação, o que poderá incluir informes periódicos sobre os riscos de corrupção na administração pública.

Ainda, deve-se mencionar a Declaração Interamericana de Princípios de

Liberdade de Expressão, em seus itens 3, 4 e 5, que preconiza sobre o acesso à

informação como direito fundamental e as proibições expressas acerca da censura prévia

e/ou interferência na transmissão de informações, senão vejamos:

3. Toda pessoa tem o direito de acesso à informação sobre si própria ou sobre seus bens, de forma expedita e não onerosa, esteja a informação contida em

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bancos de dados, registros públicos ou privados e, se for necessário, de atualizá-la, retificá-la e/ou emendá-la. 4. O acesso à informação em poder do Estado é um direito fundamental do indivíduo. Os Estados estão obrigados a garantir o exercício desse direito. Este princípio só admite limitações excepcionais que devem estar previamente estabelecidas em lei para o caso de existência de perigo real e iminente que ameace a segurança nacional em sociedades democráticas. 5. A censura prévia, a interferência ou pressão direta ou indireta sobre qualquer expressão, opinião ou informação através de qualquer meio de comunicação oral, escrita, artística, visual ou eletrônica, deve ser proibida por lei. As restrições à livre circulação de idéias e opiniões, assim como a imposição arbitrária de informação e a criação de obstáculos ao livre fluxo de informação, violam o direito à liberdade de expressão.

Observa-se, portanto, um significativo número de diplomas internacionais que

especificamente dispõem sobre o acesso à informação pública como direito, passível de

exigibilidade e justiciabilidade. Verifica-se, também, a diversidade de mecanismos hábeis

para o cumprimento do acesso à informação, assim como a vedação de toda e qualquer

interferência e/ou censura prévia aos dados e documentos públicos. Por fim, há que ser

explicitado que o conjunto desses instrumentos e mecanismos foram deveras úteis para o

reconhecimento interno paulatino do direito à informação pública, conforme adiante será

demonstrado.

2.2 Da fundamentalidade do direito à informação pública A fundamentalidade formal do direito à informação pode ser vislumbrada a partir

do art. 5º., inciso XXXIII, da Constituição Federal de 1988, que dispõe sobre o assunto

nos seguintes termos:

Art. 5º. [...] XXXIII - todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado. (grifo nosso) [...] LXXII - conceder-se-à "habeas-data": a) para assegurar o conhecimento de informações relativas à pessoa do impetrante, constantes de registros ou bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público; b) para a retificação de dados, quando não se prefira fazê-lo por processo sigiloso, judicial ou administrativo;

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Observa-se, pois, que a Carta Magna de 1998 não apenas traz o direito à

informação expressamente disciplinado em seu bojo, como também especifica o remédio

constitucional pertinente ao acesso e/ou retificação de dados, intitulado de habeas data.

Por semelhante modo, merece fazer destaque à sua fundamentalidade,

intensificada pela cláusula de abertura firmada no art. 5o, § 2o, da CF, que permite a

inclusão, no rol constitucional, de direitos e garantias decorrentes do regime e dos

princípios adotados (LOPES; CHEHAB, 2008, p. 8).

Cumpre dizer que a inclusão formal no catálogo dos direitos fundamentais, graças

à norma prevista no art. 5º, § 2°, não é o único, nem talvez o mais forte argumento para

afirmar a sua natureza de direito fundamental. Pelo contrário, o mais sólido deles é sua

correspondência substancial com a definição de direitos fundamentais, entendidos estes

como princípios jurídicos positivos, de nível constitucional, que refletem os valores mais

essenciais de uma sociedade, visando a proteger diretamente a dignidade humana, na

busca pela legitimação da atuação estatal e dos particulares (LOPES; CHEHAB, 2008, p.

9)

Desta definição, infere-se que os direitos fundamentais são normas positivas do

mais alto nível hierárquico, visto sua função de preservar a dignidade de todo ser

humano, tarefa que deve ser o centro e fim de todo agir. Aliás, a proteção da dignidade

humana é o elemento essencial para a caracterização de um direito como fundamental. É

verdade que todo direito, toda norma jurídica, tem como objeto a salvaguarda e bem-estar

do ser humano - ou pelo menos assim deveria ser - mas, no caso dos direitos

fundamentais, essa proteção é direta e sem mediações normativas (LOPES; CHEHAB,

2008, p. 10).

O caráter principiológico dos direitos fundamentais deriva, por sua vez, da

estrutura abstrata do seu enunciado, conforme os ensinamentos do jurista alemão Alexy

(1993, p.105-108). Por outro lado, afirma-se, também, que os direitos fundamentais

buscam legitimar o Estado à medida que o grau de proteção desses direitos permitirá

definir o grau de democracia vigente. Contudo, não apenas o Estado está submetido aos

limites impostos pelas normas dos direitos fundamentais: os particulares também devem

obediência aos seus ditames (LOPES; CHEHAB, 2008, p.10).

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Verifica-se, portanto, que o direito à informação é merecedor do caráter de

fundamentalidade, na medida em que anuncia norma de importância suprema, que

delineia direito indispensável à concretização da dignidade pessoa humana, sendo

ratificado por diversas leis nacionais e documentos internacionais, dos quais o Brasil é

signatário, conforme será apresentado nos tópicos seguintes.

2.3 Das normas infraconstitucionais

No que tange às normas infraconstitucionais aplicáveis à promoção e defesa do

direito fundamental à informação, deve-se iniciar pelos comentários acerca da

Conferência Nacional de Direitos Humanos, realizada em 2009, que, por meio do

Programa Nacional de Direitos Humanos III (PNDH 3), estabeleceu, no seu Eixo

orientador VI intitulado Direito à Memória e à Verdade, diversas diretrizes, dentre as

quais citam-se: Diretriz 23 – Reconhecer da verdade e da memória como direito humano

da cidadania e dever do Estado; Diretriz 24 – Preservação da memória histórica e a

construção pública da verdade; Diretriz 25 – Modernização da legislação relacionada

com o direito à memória e à verdade, fortalecendo a democracia (BRASIL, 2010, p.173-

176).

A partir de então, observou-se o estabelecimento de elementos norteadores

específicos para políticas públicas de promoção e defesa da memória coletiva e, em

última instância, do amplo direito à informação em face da Administração Pública.

Primeiramente, com o advento do reconhecimento do direito à memória como

direito humano fundamental e, por isto, dever do Estado para com os cidadãos, o que

importou na assunção e planejamento de políticas públicas para a memória.

Por outro lado, verificou-se a necessidade de centralização e aperfeiçoamento da

memória histórica, o que impôs o delineamento de uma política de Estado de promoção e

defesa da memória coletiva e conseqüente direito de acesso à informação pública.

Ainda, foi trazida à tona a franca necessidade de modernização da legislação

referente ao acesso à informação, o que se concretizou com a sanção da Lei nº. 12.527, de

18 de novembro de 2011, que passaremos a comentar.

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A norma supramencionada tornou-se conhecida como lei de acesso à informação

pública, que teve por objeto regular o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do

art. 5º., no inciso II, do § 3º., do art. 37 e no § 2º. do art. 216 da Constituição Federal.

Igualmente, alterou a Lei nº. 8.112, de 11 de dezembro de 1990, bem como revogou a Lei

nº. 11.111, de 5 de maio de 2005, e dispositivos da Lei nº. 8.159, de 8 de janeiro de

1991.

Conforme os seus artigos 1º. e 2º., a Lei nº 12.527/2011 subordinou ao seu regime à

administração direta e indireta, além das entidades sem fins lucrativos que recebam, para

realização de ações de interesse público, recursos públicos diretamente do orçamento ou

oriundos de outros ajustes/acordos, impondo, pois, o ideário de transparência e eficiência

aos procedimentos da Administração Pública e seus assemelhados.

Já no seu art. 4º., a Lei trouxe um apanhado conceitual dos seus principais termos,

dentre os quais, destacam-se: informação, informação sigilosa, informação pessoal,

autenticidade e integridade.

Igualmente, em seu art. 5º., fez questão de expor que a informação franqueada

deve ser transparente, clara e em linguagem acessível, permitindo-se, assim, que o direito

em epígrafe seja exercido de maneira adequada, coadunando-se, em última instância, com

a concretização do Estado Democrático de Direito, especialmente no que tange à sua

plena abrangência e conhecimento. .

Por semelhante modo, estabeleceu em seu § 2º., art. 7º., que mesmo quando não

for autorizado acesso integral à informação - por ser parcialmente sigilosa, é assegurado

o acesso à parte não sigilosa por meio de certidão, extrato ou cópia com ocultação da

parte sob sigilo - tudo no intuito de dirimir todo e qualquer prejuízo ao gozo do direito à

informação.

Nessa mesma esteira, o §4º., do mencionado art. 7º., determinou que a negativa de

acesso às informações objeto de pedido formulado aos órgãos e entidades referidas no art.

1º., quando não fundamentada, sujeitará o responsável a medidas disciplinares, o que

demonstra o acesso como regra, sendo a sua exceção, portanto, a negativa de acesso, que

deverá se submeter à efetiva fundamentação de quem lhe denegue.

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Também merecedora de destaque é a redação do art. 11, a qual prevê que o órgão

ou entidade pública deverá autorizar ou conceder o acesso imediato à informação.

Quando não for possível, deverá ser fixado um prazo máximo de 20 dias para o seu

cumprimento.

É relevante frisar que a Lei em comento não se limitou a disciplinar

genericamente o acesso a informações, sendo enfática na obrigatoriedade de acesso,

especialmente quando pertinente aos dados e documentos que versarem sobre condutas

que impliquem violação dos direitos humanos praticada por agentes públicos ou a mando

de autoridades públicas – expedientes típicos do período ditatorial, agora plenamente

defesos em lei, conforme o disposto no parágrafo único, do art. 21.

Outro dispositivo inovador é o seu art. 24, que revisou os prazos de restrição de

acesso à informação, para 25 anos, se ultrassecreta; 15 anos, quando secreta; e 5 anos,

sendo informação de caráter reservado.

Salienta-se que, conforme o § 4º., do mesmo art. 24, ultrapassado o prazo de

classificação ou consumado o evento que defina o seu termo final de restrição, a

informação tornar-se-á automaticamente de acesso público. Sendo-lhe possível uma única

renovação do prazo de restrição, notadamente para os casos de informação ultrassecreta,

conforme o preconizado pelos § 1º., inciso III e § 2º., do art. 35.

No que concerne às informações pessoais, o art. 31 dispõe que o seu tratamento

deve ser feito de forma transparente e com respeito à intimidade, vida privada, honra e

imagem das pessoas, bem como às liberdades e garantias individuais, o que se coaduna

plenamente com os ditames da Constituição Federal de 1988.

Por outra banda, clarifica, em seu § 4º, do mesmo art. 31, que a restrição de

acesso à informação relativa à vida privada, honra e imagem de pessoa não poderá ser

invocada com o intuito de prejudicar processo de apuração de irregularidades em que o

titular de informações estiver envolvido, bem como em ações voltadas para a recuperação

de fatos históricos de maior relevância.

Percebe-se, por inequívoca, a cautela do legislador ao estabelecer que a vida, a

honra e a imagem não podem ser utilizadas como escudos para promover a impunidade,

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ou pior: para obstacularizar o acesso à verdade histórica. Em última instância, observa-se

que este dispositivo obedece ao princípio matriz da administração pública que preconiza

o interesse público sobre o privado, mas sempre jungido aos ditames da democracia.

Ainda, neste caso, em específico, ressaltam-se a promoção e a defesa do direito de

acesso à informação, em detrimento de todo e qualquer ensejo de favorecimento pessoal,

sobretudo, para com aqueles que – de algum modo – cometeram graves violações de

direitos humanos.

Ainda, faz-se mister destacar que malgrado a Lei em destaque tenha sido objeto

de sanção em 18 de novembro de 2011, a sua vigência somente se deu 180 (cento e

oitenta) dias após a sua publicação, consoante dispõe o art. 47.

Aduz-se que tal lapso temporal, refere-se à necessidade da administração pública

de se compatibilizar – funcional e organicamente - com as novas atividades, prazos e

diretrizes estabelecidas pela lei de acesso a informações.

Por todo o exposto, verifica-se que a Lei nº 12.527/2011 é repleta de inovações no

âmbito do acesso, defesa e promoção à informação. De fato, apresentou novas diretrizes

para o acesso, mas também estabeleceu possíveis sanções para as negativas infundadas.

Igualmente, trouxe à baila novos – e mais diminutos - prazos de restrição às informações,

sem olvidar-se de permitir – em casos específicos – sua renovação por uma única vez.

Ainda, não deixou de enfatizar o caráter coletivo e democrático do diploma, na medida

em que ratificou a relevância da informação para um Estado Democrático de Direito, em

detrimento de todo e qualquer interesse pessoal, especialmente daqueles que promoveram

ou suportaram violações de direitos humanos.

Observa-se, entretanto, que o maior desafio da lei de acesso a informações reside

inexoravelmente na sua implementação. Aqui, a velha receita de controle e

monitoramento social, bastante útil para sua edição, ainda – em muito – haverá de se

aplicar a nova lei.

CONCLUSÃO

Diante do todo exposto, pode-se concluir que:

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I –Informação pública é todo e qualquer dado, arquivo, documento que tenha sido

elaborado pela Administração Pública e/ou esteja sob a sua guarda;

II - As reivindicações sistemáticas da sociedade civil organizada em prol do

acesso aos documentos e informações, especialmente aquelas relacionadas aos períodos

de exceção, foram fundamentais na constituição de um arcabouço jurídico e político para

a atual normatividade sobre o direito fundamental à informação no Brasil;

III – Sobre a profusão de documentos internacionais, que tanto no âmbito

genérico, a exemplo da Declaração Universal de Direitos Humanos e o Pacto

Internacional de Direitos Civis e Políticos, como no aspecto específico, tal qual ocorre

com a Convenção Americana dos Direitos Humanos (1969), Declaração Interamericana

de Princípios de Liberdade de Expressão (2000), Convenção das Nações Unidas contra a

Corrupção (2003), colaboram para a efetividade interna do direito fundamental à

informação pública no Brasil;

IV – A Lei nº 12.527/2011 é repleta de inovações no âmbito do acesso, defesa e

promoção do direito fundamental à informação no Brasil. Tal lei apresentou novas

diretrizes para o acesso, bem como possíveis sanções para as negativas infundadas.

Também, trouxe à baila novos – e mais diminutos - prazos de restrição às informações,

sem olvidar-se de permitir – em casos específicos – sua renovação por uma única vez.

Ainda, não deixou de enfatizar o caráter coletivo e democrático do diploma, na medida

em que ratificou a relevância da verdade e da memória, em detrimento de todo e qualquer

interesse pessoal, especialmente daqueles que promoveram ou suportaram violações de

direitos humanos;

IV – O maior desafio da lei de acesso a informações reside na sua implementação,

em que o controle e monitoramento social ainda – em muito – haverão de se aplicar;

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TITULAÇÃO DAS TERRAS QUILOMBOLAS: EFETIVIDADE E

(IN)CONSTITUCIONALIDADE DA REGULAMENTAÇÃO

TITLING OF QUILOMBO´S LAND: EFFECTIVENESS AND

(UN)CONSTITUTIONALITY OF THE REGULAMENTATION

Germene Mallmann*

RESUMO

O presente artigo analisa, mediante uma abordagem social e jurídica, na perspectiva de Carlos Eduardo Marques e Luís Roberto Barroso, a questão da efetividade da titulação proprietária das terras ocupadas pelas comunidades remanescentes de quilombos, previsto no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, bem como a constitucionalidade do Decreto 4887/2003, que regulamenta o procedimento para tais titulações. Para tanto, utilizando-se de conceitos interdisciplinares, em especial da antropologia, investiga a identificação e a ressignificação dos quilombos no contexto da atualidade, o significado dos territórios para as comunidades tradicionais, o instituto da função social da propriedade e da posse. Também é analisado o entendimento dado pela relatoria da Ação Direita de Inconstitucionalidade nº 3239/DF sobre o procedimento para titulação das áreas quilombolas. PALAVRAS-CHAVE: quilombo, titulação, função social, efetividade

ABSTRACT This article analyzes, through a social and legal approach, from the theoretical perspective of Carlos Eduardo Marques and Luís Roberto Barroso, the issue the effectiveness of titling of areas occupied by remnants communities of Quilombo promoted by Article 68 of the Temporary Constitutional Provisions of the 1988 Federal Constitution, as well as the constitutionality of act 4887/2003, which regulates the procedure for such titrations. Therefore, using interdisciplinary concepts, especially anthropology, investigates the identification and meaning of quilombo in today's context, as well as the meaning of the territories for traditional communities, the institute of the social function of property and possession. The article also analyzes the understanding given by the magistrate at the Supreme Court in the Direct Unconstitutionality Action nº. 3239/DF about the procedure for titling the quilombo´s areas. KEYWORDS: quilombo, titling, social function, effectiveness

* Acadêmica do 10º período do curso de Direito da UNICURITIBA – Centro Universitário Curitiba. Bacharel em Secretariado Executivo Bilíngue. Pós-Graduada em Administração de Empresas. Integrante do grupo de pesquisa “Estado, modelo econômico e apropriação de bens na sociedade pós moderna” do mestrado do UNICURITIBA.

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INTRODUÇÃO

A Constituição Federal de 1988, acompanhando a tendência mundial de

reconhecimento do multiculturalismo, determinou o tombamento de todos os documentos e os

sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos, reconhecendo-os como

patrimônio histórico e cultural brasileiro (art. 216, § 5º). Ainda, no artigo 68 do Ato das

Disposições Constitucionais Transitórias nosso texto constitucional dispôs que “aos

remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é

reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.

O reconhecimento de direitos dos quilombolas operou-se no plano jurídico, ao lhes

serem garantidos, pelo constituinte, o direito de propriedade, no pressuposto de que isso

bastaria para a preservação da cultura e para a inserção social deste grupo, historicamente

subintegrado e excluído da sociedade.

Contudo, diante da dificuldade de identificação dos destinatários da norma e do

procedimento a ser adotado para as titulações, fez-se necessária uma regulamentação

infraconstitucional, que, passados mais de 20 anos da promulgação da Constituição Federal,

se materializou mediante a edição do Decreto nº 3912/2001, revogado pelo vigente Decreto

4887/2003, o qual é objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3239/DF, ainda em

trâmite no Supremo Tribunal Federal, a qual questiona o critério de auto-atribuição das

comunidades como remanescente de quilombo, a eventual ilegitimidade de autonomia do

chefe do executivo para regulamentar texto constitucional via decreto, assim como a suposta

criação de nova modalidade de desapropriação.

O objetivo desta pesquisa é confrontar os principais pontos estudados pela

Antropologia e pelo Direito sobre a cultura e o território quilombola, com o entendimento do

relator da ADI, Ministro Cezar Peluso, cujo voto foi proferido em abril de 2012, assim como

levantar os aspectos principiológicos e a efetividade da norma constitucional.

Nesta perspectiva, utiliza-se do método dialético proposto por Hegel, de

interpretação dinâmica e totalizante da realidade, que considera os fatos dentro de um

contexto social, cultural, político, econômico e jurídico.

Esta pesquisa possui uma feição interdisciplinar, na medida em que, ao explorar

conceitos de diferentes áreas do conhecimento promove a adequada interconexão, colimando

o objetivo de enriquecer a investigação do problema de pesquisa.

O artigo desdobra-se em três partes. Inicialmente são analisados os aspectos jurídicos

da regulamentação da norma constitucional. Em seguida, tendo como referencial teórico

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Carlos Eduardo Marques, Francisco Cardozo Oliveira e Laura Beck Varela, o texto analisa

quem são os titulares do direito, como identificá-los e qual a importância da posse e da

propriedade na preservação dos direitos culturais das comunidades tradicionais. Por fim, com

base no pensamento de Luís Roberto Barroso e Konrad Hesse, são analisados aspectos

principiológicos da norma constitucional e sua efetividade.

O tema revela-se atual e importante pelo conflito de culturas e interesses que suscita;

sendo que a Ação Direita de Inconstitucionalidade (3239) que envolve a questão, ainda está

pendente de julgamento pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal.

ASPECTOS FORMAIS E MATERIAIS DA REGULAMENTAÇÃO DO ARTIGO 68

DO ATO DAS DISPOSIÇÕES CONSTITUCIONAIS TRANSITÓRIAS

Toda Constituição, conforme ensina José Afonso da Silva1, tem força imperativa de

regra, não havendo cláusula com valor moral de conselhos ou aviso. O autor também foi o

responsável pela notável classificação tricotômica das normas constitucionais em normas de

eficácia plena, contida e ilimitada. As primeiras são dotadas de normatividade suficiente para

produção imediata de todos os efeitos jurídicos; as segundas, de eficácia contida, possuem

também normatividade capaz de produzir efeitos imediatos, porém o legislador

infraconstitucional poderá restringir seu âmbito de eficácia. Por fim as terceiras, de eficácia

limitada, não receberam elementos suficientes para produção plena de seus efeitos, cabendo

ao legislador ordinário sua complementação. Walter Claudius Rothemburg2 defende a

aplicabilidade plena e imediata do artigo 68 do ADCT, pois segundo ele,

Estão suficientemente indicados, no plano normativo, o objeto do direito (a propriedade definitiva das terras ocupadas), seu sujeito ou beneficiário (os remanescentes das comunidades dos quilombos), a condição (a ocupação tradicional das terras), o dever correlato (reconhecimento da propriedade e emissão dos títulos respectivos) e o sujeito passivo ou devedor (o Estado, Poder Público).

1 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 2ª edição. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1982. p.489 2 ROTHENBURG, Walter Claudius. Direitos dos Descendentes de Escravos (Remanescentes das Comunidades de Quilombos) In: SARMENTO, Daniel, IKAWA, Daniela; PIOVESAN, Flávia (Coord.). Igualdade, Diferença e Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p.461

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Porém, o artigo 68 do ADCT é uma norma aberta que demanda, de fato, a

regulamentação do procedimento para identificação e demarcação dos territórios

remanescentes de quilombo.

O Decreto nº 3912/2001, primeiro editado com esta finalidade, determinava em seu

artigo 1º, § único que:

Para efeito do disposto no caput, somente pode ser reconhecida a propriedade sobre terras que: I - eram ocupadas por quilombos em 1888; e II - estavam ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos em 5 de outubro de 1988.

A regulamentação prevista no decreto 3912/2001 inovou juridicamente ao introduzir

no ordenamento a usucapião com prazo centenário. Neste cenário, seria mais fácil para os

quilombolas buscar a titulação de terras por usucapião prevista no artigo 1238 do Código

Civil segundo a qual, para se adquirir a propriedade, é suficiente a comprovação da posse por

15 anos, ou seja, 85 anos a menos que o disposto na referida norma.

O decreto 3912/2001 foi revogado pelo vigente decreto nº 4887, editado em 20 de

novembro de 2003. A legislação ordinária vigente relacionada com a questão quilombola se

restringe à Lei 7668/88, que autoriza a criação, pelo Poder Executivo, da Fundação Cultural

Palmares, esta responsável pela legitimação das comunidades quilombolas, e à Lei 9649/98,

que estabelece as atribuições do Ministério da Cultura, entre elas a aprovação da delimitação e

demarcação das terras com reminiscência de quilombos. São comandos normativos que,

apesar de indispensável à execução do artigo constitucional, não regulamentam o

procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das

terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do

ADCT, como o faz o decreto 4887/2003. Não há, portanto, relação imediata entre o decreto e

as leis mencionadas. Assim, por se tratar de ato normativo autônomo, o decreto está sujeito ao

controle concentrado de constitucionalidade.

O texto constitucional, no artigo 84, inciso VI, determina as matérias cujas

disposições, mediante decreto, são de competência privativa do Presidente da República.

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Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery3 ensinam que pelo decreto autônomo “o

Chefe do Poder Executivo determina o modus faciendi do comando que resulta da lei, para

que possa ser fielmente cumprida, conforme já é tradicional das Constituições brasileiras

anteriores”. Conclui-se que existe realmente um vício formal no decreto 4887/2003, vez que

regulamenta texto constitucional, independente de lei. A regulamentação da titulação das

terras ocupadas pelos quilombolas é matéria que deve ser levada para discussão e votação no

Congresso Nacional e consequente produção legislativa.

A IDENTIFICAÇÃO DOS REMANESCENTES DE QUILOMBO NA ATUALIDADE

As normas constitucionais que se referem aos remanescentes de quilombo

fomentaram uma discussão acadêmica acirrada sobre quem são os detentores do direito. A

antropologia teve papel fundamental nesta busca conceitual, surgiram diversas correntes de

definição de quilombo, classificadas por Carlos Eduardo Marques4 como:

a) Corrente marxista-leninista, segundo a qual os quilombos são identificados pela

negação ao sistema escravista. A premissa da qual se parte é filosófica e política: a

busca pela liberdade e igualdade, pela transformação social, a ruptura com o

sistema opressor. Essa corrente surgiu num contexto de ditadura militar e apesar da

importante investigação histórica, não se aprofundou no fenômeno em si.

b) Corrente tecnicista que procurou identificar características comuns aos quilombos

como dimensão espacial, atividades econômicas desenvolvidas, número de

integrantes para em seguida classificá-los em pequenos ou grandes, de subsistência

ou agrícolas.

c) Por fim a corrente arqueológica busca resíduos da presença de negros, inclusive

em terras ainda ocupadas por seus descendentes, de conteúdos etnográficos e

culturais.

3 NERY JUNIOR, Nelson, NERY, Rosa Maria de Andrade. Constituição Federal Comentada e legislação constitucional. 2ª edição. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2009. 4 MARQUES, Carlos Eduardo. De Quilombos a Quilombolas: notas sobre um processo histórico-etnográfico. Revista de Antropologia da USP, São Paulo, v.52, n.1, p.342-343, 2009.

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Contudo, a necessidade atual é pelo conteúdo contemporâneo “ressemantizado” do

fenômeno, que analisa como sua autonomia foi construída em paralelo com o modo de vida

coletivo. Neste sentido, Carlos Eduardo Marques5 afirma:

Quilombo, a partir dessa nova ressignificação, não é apenas uma tipologia de dimensões, atividades econômicas, localização geográfica, quantidade de membros e sítio de artefatos de importância histórica. Ele é uma comunidade e, enquanto tal, passa a ser uma unidade viva, um locus de produção material e simbólica. Institui-se como um sistema político, econômico, de parentesco e religioso que margeia ou pode ser alternativo à sociedade abrangente.

Assim, a antropologia estabeleceu critérios fundamentais para a identificação dos

destinatários da norma, como a heterogeneidade da ocupação, a manutenção e reprodução de

modos de vida. Além da autodeclaração e da indissociabilidade entre identidade e território.

Nesta seara, o artigo 2º do decreto 4887, conceitua que “consideram-se

remanescentes das comunidades quilombolas, para os fins deste Decreto, os grupos étnicos-

raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de

relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a

resistência à opressão histórica sofrida”. Posteriormente, o Decreto n.º 6040 de 07 de

fevereiro de 2007, que instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos

Povos e Comunidades Tradicionais no Brasil, no seu art. 3.º definiu uma espécie de auto-

reconhecimento, nos seguintes termos: “I - Povos e Comunidades Tradicionais: grupos

culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de

organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua

reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos,

inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição; II - Territórios Tradicionais: os

espaços necessários a reprodução cultural, social e econômica dos povos e comunidades

tradicionais, sejam eles utilizados de forma permanente ou temporária, observado, no que diz

respeito aos povos indígenas e quilombolas, respectivamente, o que dispõem os artigos 231 da

Constituição e 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e demais

regulamentações”.

A premissa de autodeclaração ou de autoidentificação está contida na Convenção nº

169 da Organização Internacional do Trabalho sobre povos indígenas e tribais, cujas

5 MARQUES, op. Cit., p. 344.

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determinações foram incorporadas à legislação brasileira pelo Decreto Legislativo 143/2002 e

Decreto 5.051/2004. O artigo 1º da referida Convenção afirma o seguinte (g.n.):

1. A presente convenção aplica-se: a) aos povos tribais em países independentes, cujas condições sociais, culturais e econômicas os distingam de outros setores da coletividade nacional, e que estejam regidos, total ou parcialmente, por seus próprios costumes ou tradições ou por legislação especial; b) aos povos em países independentes, considerados indígenas pelo fato de descenderem de populações que habitavam o país ou uma região geográfica pertencente ao país na época da conquista ou da colonização ou do estabelecimento das atuais fronteiras estatais e que, seja qual for sua situação jurídica, conservam todas as suas próprias instituições sociais, econômicas, culturais e políticas, ou parte delas. 2. A consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposições da presente Convenção.

Desta leitura observa-se que a Convenção 169 da OIT apresenta três critérios

fundamentais para o reconhecimento dos grupos indígenas ou tribais: 1) a existência de

condições sociais, culturais e econômicas diferenciadora do restante da sociedade nacional;

2) a existência de costumes e tradições e 3) autoidentificação. Critérios estes que vão ao

encontro dos estabelecidos pelos estudos antropológicos desenvolvidos no Brasil para

identificar as comunidades remanescentes de quilombo.

Por outro lado, na visão da relatoria da Ação Direta de Inconstitucionalidade6, os

destinatários da norma são

os que subsistiriam nos locais tradicionalmente conhecidos como quilombos, na sua acepção histórica, em 05 de outubro de 1988, ou seja, aqueles que, tendo buscado abrigo nestes locais, antes ou logo após a abolição, lá permaneceram até a promulgação da CF/88.

Interessante observar que foi adotado pelo Ministro relator o critério histórico

arqueológico de identificação, assim como o da usucapião centenária. Importante ressaltar

que o trabalho de juristas e antropólogos no resgate e ressignificação dos quilombos foi

reconhecido pela relatoria como “respeitável”, mas “de natureza metajurídica” e sem

comprometimento com o texto constitucional.

Também o critério de autoatribuição e autodefinição para caracterizar quem seriam

os remanescentes das comunidades de quilombolas, apesar de legitimado pela convenção 169

6 BRASIL. Informativo 662 do Supremo Tribunal Federal. Disponível em http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo662.htm Acesso em 06 mar 2013

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da OIT e pelo Decreto 6040/2007, foi reputado como inconstitucional pela relatoria da ADI.

Ocorre que o autorreconhecimento permite explicitar e localizar interesses latentes de difícil

percepção para uma racionalidade disposta a operar mediante lógica classificatória e

conceitual, seja ela inspirada em interesses de dominação ou em interesses técnico-

científicos.

FUNÇÃO SOCIAL DA POSSE E DA PROPRIEDADE: O SIGNIFICADO DOS

TERRITÓRIOS PARA AS CULTURAS TRADICIONAIS

A Constituição Federal de 1988 regulou a função social da propriedade como direito

fundamental (art. 5º, XXII) e como princípio da ordem econômica (art. 170, III), que se

concretiza por quem utiliza os bens e não necessariamente por quem é o titular do documento

de propriedade, ou seja, a função social da propriedade aproxima a noção da posse, de

utilização da terra.

Francisco Cardozo Oliveira alerta para a ausência de menção à função social da

posse na Constituição brasileira. Para o autor, “antes da propriedade, é a posse que está mais

estritamente ligada à realidade fática e que, por conseguinte, detém maior potencial de

funcionalização”7. Desta forma, a natureza finalística da apropriação de bens, determinada

pelas necessidades humanas e pelas relações sociais, faz da função social elemento

imprescindível da posse e talvez por isso não tenha sido mencionada expressamente na Carta

Magna; ou ainda, em função dos ditames da economia de mercado na qual a possibilidade da

prevalência do valor de uso ante o valor de troca impediria o sistema de trocas, fonte de

lucros.

A essência da função social não está relacionada apenas com finalidades econômicas

imediatas, mas sim com a promoção da dignidade da pessoa humana, da cidadania plena e da

redução de desigualdades. A legislação brasileira em vários dispositivos disciplina as

diretrizes que concretizam o exercício da função social como os artigos 182 e 186 da

Constituição Federal de 1988. O primeiro regula a política de desenvolvimento urbano e o

7 OLIVEIRA, Francisco Cardozo. Hermenêutica e Tutela da Posse e da Propriedade. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 245.

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segundo elenca os requisitos que devem ser cumpridos simultaneamente para o cumprimento

da função social na propriedade rural.

Em pelo menos outros três diplomas legais, sem mencionar as leis estaduais e

municipais, também fartas, a função social está disciplinada. De acordo com Francisco

Cardozo Oliveira8, são eles:

A lei 8629/1993, que trata da regulamentação dos dispositivos constitucionais relativos à reforma agrária e do cumprimento da função social no campo (art. 9º). A lei 10257/2001 que disciplina o Estatuto da Cidade e a apropriação do solo urbano. O artigo 39, da lei 10257/2001, fixa o parâmetro para o cumprimento da função social na cidade. E ainda o Código Civil de 2002 (lei 10406/2001), que, a partir do artigo 1196 e do artigo 1228, contem cláusulas gerais de interpretação para a tutela da posse e da propriedade.

As normas fornecem critérios interpretativos da função social que são analisados nos

casos concretos sob uma ótica ampliada, na qual se examina a realidade fática, os interesses

dos proprietários e dos não proprietários, dos possuidores e dos não possuidores, a

configuração da realidade socioeconômica, guiados pelos valores dos fins sociais da lei e do

bem comum. Trata-se, como dito, de uma análise dialética e valorativa entre realidade e

ordenamento, que considera o conteúdo material da posse, os diferentes sujeitos envolvidos, e

é capaz de alterar o fluxo de riquezas produzidas9.

Enquadra-se nesta concepção de funcionalização da propriedade e consideração dos

elementos fáticos e socioeconômicos da posse, a proteção constitucional dada aos

remanescentes de quilombo. Para as comunidades quilombolas, a utilização da terra, o vínculo

com o território reclamado, é instrumento de promoção da cidadania, de preservação de

valores culturais e sociais, de fonte de subsistência, de reconhecimento social e cultural. A

titulação proprietária a estes grupos concretiza o princípio da função social, atribui uma

cidadania efetiva, afastada da antiga hierarquização no modo de concessão de direitos, que

impede o avanço das desigualdades socioeconômicas.

Na demarcação das áreas de terras de remanescentes de comunidades quilombolas

não se leva em conta apenas uma posse física de uma determinada área do território. Está em

causa uma espécie de posse funcionalizada na direção de atender finalidades relacionadas à

necessidade de reprodução social, econômica e cultural dos remanescentes de comunidades

quilombolas delimitada, em última instância, por critérios de auto-reconhecimento ou de auto-

8 OLIVEIRA, op. Cit., p. 251. 9 Ibid., p.89-94.

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atribuição. Justifica-se, portanto, a preocupação das perícias antropológicas de identificar um

conjunto de vivências e de experiências constitutivas das comunidades quilombolas, ao longo

do tempo, de modo a permitir quantificar a área de território necessária para a reprodução

social, econômica e cultural dos quilombos. Tanto é assim que o próprio § 2.º do art. 2.º do

Decreto n.º 4887/2003 considera terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos

quilombos as utilizadas para a garantia de sua reprodução física, social, econômica e cultural.

A antropologia defende que o direito de propriedade das comunidades remanescentes

de quilombo sobre seus territórios, é uma forma de preservar a cultura e o modo de vida

coletivo do grupo, por isso, de acordo com o artigo 17 do decreto 4887/2003, o título

outorgado às comunidades é coletivo, pró-indiviso, com obrigatória inserção de cláusula de

inalienabilidade, imprescritibilidade e de impenhorabilidade

Neste aspecto, novamente a relatoria da ADI neutralizou os argumentos oferecidos

pela antropologia, rechaçando os atributos de inalienabilidade, imprescritibilidade e de

impenhorabilidade ao título de propriedade das terras quilombolas, e assim acabou por

revelar o apego cultural que ainda perdura ao modelo de propriedade individual surgido no

Brasil pela Lei de Terras de 1850.

Acontece que nos últimos 200 anos, o modelo de posse e propriedade sofreu

profunda alteração, abandonou seu caráter absoluto e individual para ater-se ao princípio da

função social. Esta nova concepção considera os interesses relacionados à posse, ao controle

da apropriação de terras e à garantia de direitos sociais. A propriedade pode ser atualmente

um instrumento de instauração de novas relações sociais e de produção de bens. Novas formas

proprietárias são reconhecidas, agora adequadas a direitos subjetivos, considerando a

dignidade essencial seja dos proprietários ou de quem detenha a posse objetivando atingir a

finalidade especifica da função social.

Função social da propriedade é cláusula aberta e não pode ser entendida de modo

unívoco. A determinação de seu conteúdo envolve atividade legislativa e interpretativa,

guiadas pelos artigos 1º, 3º e 5º da CRFB/1988.

Depreende-se que o modelo de propriedade, nas últimas décadas, abandonou seu

caráter absoluto e individual para ater-se ao princípio constitucional da função social da

propriedade que contempla, além da função econômica, valores mais amplos como dignidade

da pessoa humana e justiça social. Seus elementos estão vinculados à realidade social e

histórica, o que legitima as comunidades quilombolas a receberem o título proprietário das

terras ocupadas, conforme previsto no artigo 68 do ADCT, pois garante a dignidade de um

grupo étnico vulnerável e a proteção ao patrimônio histórico-cultural.

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O direito civil contemporâneo, ao tratar da propriedade, abandona a abordagem

reducionista, de interesses egoístas do indivíduo e resgata a pessoa em sua dimensão

existencial, cidadão, membro da coletividade para a qual deve se voltar o aproveitamento

econômico dos bens.

O Código Civil Brasileiro de 2002 não define a função social, porém no § 1º, artigo

1228 ao dispor “o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas

finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o

estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o

patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas” impõe

delimitações ao seu exercício, e deveres a serem cumpridos na esfera econômica, social,

ambiental e cultural, que visam a proteção de direitos coletivos.

O direito de propriedade no ordenamento jurídico brasileiro contemporâneo transita

entre a realidade fática e a realidade normativa, extrapola a relação entre a coisa e o

proprietário e passa a considerar também os interesses dos não-proprietários, que deixam de

ser apenas sujeitos passivos universais, indeterminados e passam a poder exigir dos

proprietários, no cumprimento da função social da propriedade, que lhe sejam dadas

condições de acesso aos bens, à propriedade.

O direito de propriedade se caracteriza menos pelo seu conteúdo estrutural e mais

pela sua destinação do bem sobre o qual incide, ou ainda por sua potencialidade econômica.

Segundo Eroulths Cortiano Junior, “o exercício dos poderes proprietários é variável e não

cabe mais no abstrato modelo de usar, fruir e gozar”10. Surge a noção pluralista do instituto

(mais propriedades e novas propriedades). Também a noção de sujeito de direito mudou, não

é mais anônimo, neutro e titular de patrimônio e sim de pessoa concreta. Substitui-se o

abstrato individualista pelo antropocêntrico. Uma constante dialética entre norma e realidade,

a partir de uma perspectiva crítica e interdisciplinar torna palpáveis conceitos que antes eram

abstratos, aproximando-se das relações de vida em sociedade.

Laura Beck Varela e Marcos de Campos Ludwig apontam semelhanças entre a

função social da propriedade e a boa-fé objetiva, ambas tidas como “cânone hermenêutico e

integrativo, fonte de deveres jurídicos e limites ao exercício de direitos subjetivos”, porém

esclarecem que boa-fé objetiva é uma espécie de cláusula geral com efeitos inter partes, de

10 CORTIANO Junior, Eroulths O Discurso Jurídico da Propriedade e suas Rupturas – Uma Análise do Ensino do Direito de Propriedade. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p.158.

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“técnica essencialmente destinada à atividade judicial”11, diferente da função social da

propriedade que se aproxima da natureza de princípio jurídico, com efeitos erga omnes.

O direito de propriedade hodierno abandonou a concepção analítica de usar, fruir e

gozar para sofrer as delimitações, não no direito e sim em seu exercício, impostas pelo

cumprimento da função social, em observância aos interesses sociais, entre outros. A

compreensão desta delimitação é fundamental para resolver eventuais disputas em torno das

terras reivindicadas pelos remanescentes de quilombo.

Para concretizar a titulação prevista no artigo 68 do ADCT é fundamental que a

propriedade seja considerada no aspecto de cumprimento da função social. A situação vivida

pelos quilombolas é de posse, instituto que antecede a propriedade e que também deve ser

exercido de maneira a atender a função social.

INTERPRETAÇÃO E EFETIVIDADE DA TITULAÇÃO DE TERRAS ÀS

COMUNIDADES REMANESCENTES DE QUILOMBO

Em seu voto, o relator da ADI afirmou que as terras a serem tituladas às comunidades

remanescentes de quilombo devem se limitar às ocupadas desde antes ou logo após a abolição

até 05 de outubro de 1988. Sobre o esforço da antropologia em resgatar toda a extensão do

território significativo para as comunidades, o relator disse se tratar de uma “ocupação

presumida”. Ele também levantou a questão dos terceiros interessados nas áreas reivindicadas

pelos quilombolas, os quais não poderiam ser destituídos de seus bens sem lei específica e

sem a garantia do devido processo legal, pois isso provocaria verdadeiro quadro de

desestabilização social. Ele equiparou os requisitos para titulação com os da usucapião,

destacando ser incabível a desapropriação de terras particulares, prevista no artigo 13 do

Decreto 4887/2003, uma vez que os quilombolas já as teriam como usucapidas. Essa

interpretação dada ao artigo 68 do ADCT foi nomeada por juristas e antropólogos de

“usucapião centenária”. Por fim foi ressaltada a inconstitucionalidade de usucapir imóveis

públicos (artigos 183, §3º e 191, § único, ambos da CFRB/1988) e, quanto à desapropriação

de imóveis privados prevista no decreto, o ministro afirmou que além de não disciplinada em

11 VARELA, Laura Beck; LUDWIG, Marcos de Campos. Das Propriedades à Propriedade: Construção de um Direito. In: MARTINS-COSTA, Judith (Org.). A Reconstrução do Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 778.

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lei, nos termos da Constituição (art. 5º, XXIV), não se amoldaria às hipóteses previstas, de

necessidade ou utilidade pública e de interesse social.

Tais pressupostos para a desapropriação são conceituados por Hely Lopes Meireles12

da seguinte forma:

a) necessidade pública surge quando a Administração defronta situações de emergência que, para serem resolvidas satisfatoriamente, exigem transferência urgente de bens de terceiro para o seu domínio; b) utilidade pública apresenta-se quando a transferência de bens de terceiros para a Administração é conveniente, embora não seja imprescindível; c) interesse social ocorre quando as circunstâncias impõem a distribuição ou o condicionamento da propriedade para melhor aproveitamento, utilização ou produtividade em benefício da coletividade ou de categorias sociais merecedoras de amparo específico do Poder Público.

O ministro relator não concedeu às titulações quilombolas o atributo de interesse

social tampouco da função social da propriedade (artigo 5º, XXIII, CRFB/1988) que é um

elemento integrador que determina uma destinação compatível e harmoniosa do instituto com

o interesse público, legitimando assim a desapropriação que é a transferência da propriedade

de um terceiro para o poder público, por razões de utilidade ou necessidade pública ou

interesse social. Percebe-se que o direito à titulação proprietária dos quilombolas, além de

atravessar procedimentos administrativos e jurídicos, se depara ainda com interesses

antagônicos.

O artigo 68 do ADCT demanda uma interpretação extensiva, pois é uma norma que

assegura direitos. Entretanto, o entendimento de nossa Suprema Corte é o de que as normas

contidas no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Carta de 1988 demandam

interpretação restritiva ou estrita. Exemplos disso são as decisões proferidas no RE 140.616-

DF13, sobre o artigo 8º, ADCT que assegurava a promoção de carreira aos anistiados do

regime militar, na qual o Supremo Tribunal Federal interpretou restritivamente a norma

constitucional esclarecendo que a promoção seria devida apenas na modalidade merecimento

e não na de antiguidade. Outro caso foi a ADI 41-1/DF14 que confrontou o artigo 129, IX da

Constituição Federal, que proíbe membros do Ministério Público de atuar como

representantes de entidades públicas, com o artigo 29, § 5º do ADCT que permitiu aos

membros do Ministério Público Estadual representar a União em causas de natureza fiscal. A

decisão do STF afirmou que o artigo 29, § 5º do ADCT “por ser norma de direito

excepcional, só admite interpretação estrita, não sendo aplicável por analogia, e, portanto,

12 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 32ª edição. São Paulo: Malheiros, 2006. 13 RTJ, 145:942, 1993, RE 140.616-DF, relator Ministro Paulo Brossard 14 RT, 678:220, 1990, ADIn 41-1/DF, relator Ministro Moreira Alves

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não indo além dos casos nela expressos, nem se estendendo para abarcar as conseqüências

lógicas desses mesmos casos”.

A interpretação constitucional deve ordenar fenômenos múltiplos, influenciados pelo

contexto social, político, econômico e institucional de determinado momento. Luís Roberto

Barroso ensina que “nenhum método deve ser absolutizado”. Para o autor:

A interpretação se faz a partir do texto da norma (interpretação gramatical), de sua conexão (interpretação sistemática), de sua finalidade (interpretação teleológica) e de seu processo de criação (interpretação histórica)15

A Constituição de 1988 foi orientada pelos parâmetros da socialidade. Com base na

natureza singular do presente, abarcou conteúdos sociais, culturais, políticos e econômicos,

visando concretizar os objetivos listados no artigo 3º.

O artigo 68 do ADCT é dotado de eficácia jurídica, porém faz-se necessária a análise

de sua eficácia social, isto é, as mudanças efetivas no mundo dos fatos que seu cumprimento é

capaz de produzir. Para Luís Roberto Barroso “a efetividade significa, portanto, a realização

do Direito, o desempenho concreto de sua função social”16.

Para a efetividade das normas constitucionais, incluindo o reconhecimento dos direitos

dos quilombolas, a Constituição adquire sua “força normativa” mediante o envolvimento e o

compromisso de todos os agentes sociais envolvidos. Konrad Hesse17 afirma que: A força vital e a eficácia da Constituição assentam-se na sua vinculação às forças espontâneas e às tendências dominantes do seu tempo, o que possibilita o seu desenvolvimento e a sua ordenação objetiva. Mas, a força normativa da Constituição não reside, tão-somente, na adaptação inteligente a uma dada realidade. A Constituição jurídica logra converter-se, ela mesma, em força ativa, que se assenta na natureza singular do presente. Embora a Constituição não possa, por si só, realizar nada, ela poderá impor tarefas. A Constituição transforma-se em força ativa se essas tarefas forem efetivamente realizadas, se existir a disposição de orientar a própria conduta segundo a ordem nela estabelecida, se, a despeito de todos os questionamentos e reservas provenientes dos juízos de conveniência, se puder identificar a vontade de concretizar essa ordem. Concluindo, pode-se afirmar que a Constituição converter-se-á em força ativa se fizerem-se presentes, na consciência geral – particularmente, na consciência dos principais responsáveis pela ordem constitucional -, não só a vontade de poder, mas também a vontade de Constituição.

15 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 7ª edição. São Paulo: Saraiva, 2009. p.129 16 BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas. 6 ed. atualizada. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p.85. 17 HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991. p.18-19.

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O não reconhecimento dos direitos dos remanescentes de quilombos revela que a

nação brasileira, ao questioná-los, ainda não expressou a “vontade de Constituição” alegada

por Hesse, tampouco a efetividade, a qual requer o cumprimento espontâneo da norma. A

regulamentação do artigo 68, ADCT contraria interesses poderosos, o que explica a relutância

do Estado em acionar os mecanismos suficientes para sua concretização, seja na demora

havida em regulamentar o artigo, seja no conteúdo do voto do relator da Ação Direta de

Inconstitucionalidade nº 3239.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presente pesquisa propôs o problema em torno da constitucionalidade do decreto

4887/2003 que regulamenta o disposto no artigo 68 do ADTC e a efetividade do direito à

titulação proprietária dos territórios ocupados pelas comunidades remanescentes de quilombo.

Para enfrentar o problema proposto a pesquisa direcionou-se para quatro perspectivas

básicas, as quais foram confrontadas com o voto do relator da ADI 3239: 1) aspectos formais

da regulamentação do artigo constitucional, 2) a ressemantização do conceito de

remanescentes de quilombo, 3) o instituto da função social da posse e da propriedade em

especial dos territórios ocupados pelas comunidades quilombolas, 4) o interesse social que

reveste a titulação das áreas ocupadas e as mudanças sociais efetivas que a titulação é capaz

de operar.

Sobre a regulamentação do artigo 68 do ADCT, de fato a Ação Direta de

Inconstitucionalidade deverá ser julgada procedente, pois de acordo com o artigo 84 inciso VI

da CFRB/1988 o chefe do Executivo não está legitimado para regulamentar norma

constitucional, devendo a matéria seguir o trâmite legislativo.

A respeito da ressignificação de quilombo, que inclui o problema do território, a

pesquisa revelou, ao contrário do voto proferido pelo Ministro relator da ADI, que cabe às

pessoas que vivem em coletividade em um território específico, a autodeclaração como

pertencentes à comunidade quilombola. Laudos antropológicos determinam a extensão da

ocupação coletiva. Observou-se que nestes laudos de identificação predomina a corrente

arqueológica, de natureza etnográfica, que busca resíduos da presença de negros em terras

ainda ocupadas por seus descendentes.

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A interpretação ressemantizada de quilombo, conforme demonstrado, baseia-se em

critérios político-organizativos que abrangem elementos subjetivos e objetivos, como

trajetória comum, manutenção e reprodução do modo de vida coletivo desenvolvido em um

determinado território.

Assim, além da análise histórica, deve-se considerar principalmente a

indissociabilidade entre identidade e território coletivo, sem, contudo, ignorar as influências

sofridas por outras culturas e pela própria antropologia, que mediante a investigação local

detém o poder de instrumentalizar a identificação e o reconhecimento de direitos destes

grupos.

Quanto ao modelo de propriedade, a pesquisa demonstrou que, nas últimas décadas,

ele abandonou seu caráter absoluto e individual para ater-se ao princípio da função social da

propriedade que contempla, além da função econômica, valores mais amplos como dignidade

da pessoa humana e justiça social. Seus elementos estão vinculados à realidade social e

histórica, o que legitima as comunidades quilombolas a receberem o título proprietário das

terras ocupadas, conforme previsto no artigo 68 do ADCT, pois garante a dignidade de um

grupo étnico vulnerável e a proteção ao patrimônio histórico-cultural.

O direito de propriedade constitui um dos elementos centrais na luta por

reconhecimento de direitos na sociedade moderna, na medida em que ele opera a regulação

das trocas e a distribuição da riqueza produzida. O direito de propriedade, portanto, não se

limita a dar visibilidade a uma determinada cultura, como no caso dos remanescentes das

comunidades quilombolas; antes, ele é elemento constitutivo da forma de socialidade

integrada ao processo de evolução social característico da modernidade. A titulação

proprietária reconhecida aos remanescentes de comunidades quilombolas deve ser capaz de

assegura-lhes a devida integração ao conjunto da vida social, assim como aos benefícios dos

regimes proprietários típicos da atualidade.

Eventuais conflitos pela propriedade das terras, que normalmente envolvem

proprietários não-quilombolas, devem ser resolvidos mediante a ponderação de interesses,

norteado pelo princípio da função social.

A regulamentação do artigo 68 do ADCT previu a concessão do título como coletivo,

em nome da associação quilombola, pró-indiviso, com cláusula de inalienabilidade,

impenhorabilidade e imprescritibilidade. Essas limitações foram tidas como inconstitucionais

no voto do relator da ADI 3239. O risco efetivo destas limitações é que elas comprometam a

integração social e econômica destas comunidades tituladas visto que impedem os

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quilombolas de terem acesso às linhas de crédito e consequentemente, de obterem recursos e

financiamentos para a exploração econômica das áreas e acesso às inovações tecnológicas.

Para a efetividade de direitos das comunidades remanescentes de quilombo, capaz de

operar efeitos concretos de função social, de realização do Direito, é necessária a “força

normativa da constituição”, a disposição espontânea e generalizada de realizar a norma

constitucional, mediante o compromisso e o envolvimento da sociedade como um todo para

reconhecer a identidade quilombola. Somente assim poderemos concretizar, mediante a

titulação de terras aos quilombolas, os objetivos fundamentais da República, dispostos no

artigo 3º da Constituição Federal.

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SOBREPOSIÇÃO DE UNIDADES DE CONSERVAÇÃO EM TERRAS INDÍGENAS

NO ESTADO DE RORAIMA

ENCROACHMENT OF PROTECTED AREAS ON INDIGENOUS LANDS IN THE

RORAIMA STATE

Priscilla Cardoso Rodrigues∗

Rafael Reis Ferreira∗∗

RESUMO

O presente artigo científico analisa os problemas decorrentes da sobreposição de unidades de

conservação em terras indígenas, a colisão dos princípios constitucionais e a compreensão

interpretativa do fenômeno investigado. A pesquisa aborda o impacto da sobreposição no

Estado de Roraima para justificar as opiniões que serão apresentadas neste artigo, com o

destaque para as terras indígenas e as unidades de conservação localizadas em seu território,

como forma de evidenciar a complexidade do problema. Por fim, será demonstrado que a

Constituição Federal Brasileira exige que interpretação da sobreposição respeite o princípio

da dignidade da pessoa humana como fator decisivo para solucionar a colisão de princípios

constitucionais.

Palavras-chave: Sobreposição; Unidades de Conservação; Terras Indígenas.

ABSTRACT

This scientific article examines the issues arising out of the encroachment of protected areas

on indigenous lands, the collision of constitutional principles and the interpretative

understanding of the phenomenon investigated. The research examines the impact of the

encroachment in the Roraima State, to justify the ideas as it will be shown in this article, with

emphasis on indigenous lands and the protected areas located on its territory, to highlight the

complexity of the issue. And ultimately, will be demonstrated that the Brazilian Federal

Constitution requires that the interpretation of the encroachment respects the principle of

dignity of the human person as a decisive factor to solve the collision of constitutional

principles.

Keywords: Encroachment; Protected Areas; Indigenous Lands.

∗ Professora do Curso de Direito da Universidade Federal de Roraima. [email protected]. ∗∗ Professor do Curso de Direito da Universidade Federal de Roraima. [email protected].

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Introdução

A sobreposição de terras indígenas e unidades de conservação pode ser conceituada,

do ponto de vista jurídico, como um fenômeno resultante de uma somatória de direitos,

aparente ou manifestamente conflitantes, sobre um mesmo objeto.

A problemática principal a ser discutida no presente estudo se refere à possibilidade

de solução jurídica, a priori, para os problemas que surgem da sobreposição de direitos de

igual hierarquia ou, se não for viável, para uma possível abordagem conciliatória nesses

casos.

Para tentar desvendar a possibilidade de encontrar mecanismos para a solução dessa

colisão de princípios constitucionais, é feito o recorte sobre os casos de sobreposição

existentes no Estado de Roraima. É claro que os questionamentos que serão discutidos sobre a

sobreposição não se restringem a estas terras indígenas e unidades de conservação, contudo,

por razões de demonstração da eficácia de uma possível solução, a elas se limitarão.

Da mesma maneira, como o tema abrange várias áreas do conhecimento, por razões

de conveniência e viabilidade do estudo, será utilizada pesquisa bibliográfica na área jurídica

para a reflexão teórica sobre os problemas e possíveis soluções para o objeto proposto.

Pela natureza da questão discutida, não é viável apresentar uma solução através de

métodos indutivos, da contribuição das mais diversas áreas, da experiência das pessoas

envolvidas e das diferentes visões para o problema, devendo ser pesquisada e pensada uma

solução dedutiva, ao menos para tentar responder a hipótese que foi levantada neste trabalho.

É claro que tal posicionamento pode sofrer críticas severas, com importantes razões e

fundamentos que devem e serão considerados. Mas a proposta é pensar em uma solução

jurídica para a sobreposição.

De imediato, sem querer comprometer a imparcialidade da pesquisa, pensamos que a

solução dos possíveis conflitos deverá apontar para a definição de um critério de

interpretação, pois, caso contrário, não teremos uma posição predefinida juridicamente, sendo

qualquer opção marcada pela casuística.

Cabe alertar que, apesar de a sobreposição aparentemente indicar para soluções

opostas, do tipo “ou protegem-se as terras indígenas ou protegem-se as unidades de

conservação”, tal equívoco não pode prosperar, devendo qualquer visão maniqueísta ser

abandonada desde já.

Quando se está diante de valores igualmente importantes para a sociedade, como a

dignidade da pessoa humana e a preservação ambiental, tal conflito não pode ser solucionado

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a partir de fórmulas simplistas de interpretação, evidenciando, como não poderia ser diferente,

a complexidade do objeto.

Sistema Nacional de Unidades de Conservação e Povos Indígenas

A criação de um sistema de preservação ambiental fundada na criação de áreas com

atributos ecológicos importantes, isoladas da presença humana, remonta aos ideais

preservacionistas surgidos no século XIX em países industrializados, especialmente nos

Estados Unidos.

Naquele período, o desaparecimento de importantes biomas em decorrência da rápida

expansão do capitalismo industrial e urbano, criou o “mito moderno da natureza intocada”

(DIEGUES, 2001), fundado num antagonismo insuperável entre o homem e a natureza, a

partir do qual toda relação do ser humano com o meio ambiente é devastadora. Daí a

necessidade de isolar as áreas naturais que ainda não haviam sofrido os efeitos degradadores

da presença humana através da criação de parques preservacionistas.

Entretanto, estudos arqueológicos demonstraram que “a natureza em estado puro não

existe, e as regiões naturais apontadas pelos biogeógrafos usualmente correspondem a áreas

extensivamente manipuladas pelos homens” (ELLEN apud DIEGUES, 2001, p. 14), situação

que no Brasil se acentua ainda mais se levarmos em consideração que as paisagens naturais

que se pretendem conservar, como a Amazônia, há muitos anos considerada pelos governos

brasileiros como intocada e desabitada, são, na realidade, resultado de intensa atividade

humana por parte de populações indígenas e tradicionais que, durante séculos, utilizaram seus

conhecimentos tradicionais e sua relação simbiótica com a natureza para desenvolver técnicas

de manejo da fauna e da flora responsáveis pela diversidade biológica atualmente existente.

Por esse motivo, a transposição do modelo preservacionista norte-americano para a

realidade brasileira acabou gerando graves conflitos culturais, econômicos e sociais, ao

promover a expulsão dessas populações de seus territórios originários ou impedir a realização

das atividades tradicionais necessárias à sua sobrevivência física e cultural (DIEGUES, 2001).

Como não poderia deixar de acontecer, a criação do Sistema Nacional de Unidades

de Conservação (SNUC), que culminou com a publicação da Lei nº. 9.985, no dia 18 de julho

de 2000, acabou se tornando palco das discussões entre preservacionistas, que defendiam o

isolamento da natureza em relação ao homem como única forma possível de preservação

ambiental, e movimentos sociais de defesa dos direitos dos povos indígenas e das populações

tradicionais de continuarem utilizando os recursos naturais de forma tradicional e sustentável.

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O resultado foi um modelo de conservação socioambiental1 que tentou

compatibilizar a conservação ambiental com a utilização sustentável dos recursos naturais,

materializado na criação de duas categorias de unidades de conservação: as de proteção

integral, destinadas à preservação da natureza, com a possibilidade de uso apenas indireto de

seus recursos naturais (artigo 7º, § 1º da Lei nº. 9.985/2000); e as de uso sustentável,

destinadas à compatibilização da conservação da natureza com o uso sustentável de parcela

dos seus recursos naturais (artigo 7º, § 1º da Lei nº. 9.985/2000).

Como a criação de qualquer unidade de conservação implica restringir ou até mesmo

proibir a exploração de recursos naturais em suas áreas, como corolário de sua perspectiva

socioambiental, a Lei nº. 9.985/2000 exigiu que a sua criação fosse precedida de estudos

técnicos e de consulta pública que permitissem identificar a localização, a dimensão e os

limites mais adequados (artigo 22, § 2º).

Nesse sentido, além dos estudos ecológicos sobre a biodiversidade, devem também

ser realizados estudos sobre a sociodiversidade local, para que seja possível compreender a

realidade econômica, fundiária, cultural e social que envolve a área a ser protegida e, com

isso, evitar conflitos com as populações locais.

Já a exigência de consulta pública, quando se tratam de áreas habitadas por indígenas,

em cotejo com a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), torna-se

um direito fundamental decorrente tanto do direito de consulta2 quanto do direito de

participação na utilização, administração e conservação dos recursos naturais existentes em

suas terras3.

Entretanto, esse cenário jurídico-ambiental democrático, que se propõe a incluir as

demandas sustentáveis das comunidades locais nos objetivos de conservação do meio

ambiente, é bastante recente se o pensarmos como resultado dos debates travados no âmbito

da Convenção sobre Diversidade Biológica (negociada durante a Conferência das Nações

1 Para Juliana Santilli, “o conceito de bens socioambientais traz em si a ideia da interação homem-natureza, e de que incluem não só os bens naturais (água, ar, solo, fauna, flora, etc.), como também os bens que são fruto de intervenções antrópicas, ou culturais (obras artísticas, monumentos, crenças, saberes, formas de criar, etc.). A síntese socioambiental se revela por meio da concretização de dois valores em um único bem juridico: a biodiversidade e a sociodiversidade.” (2005, p. 94) 2 Previsto no artigo 6º, 1, a da Convenção nº 169 da OIT: Artigo 6º - 1. Na aplicação das disposições da presente Convenção, os governos deverão:

a) consultar os povos interessados, por meio de procedimentos adequados e, em particular, de suas instituições

representativas, sempre que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los

diretamente. 3 Previsto no artigo 15, 1 da Convenção nº 169 da OIT: Artigo 15 - 1. O direito dos povos interessados aos recursos naturais existentes em suas terras deverá gozar de

salvaguardas especiais. Esses direitos incluem o direito desses povos de participar da utilização, administração

e conservação desses recursos.

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Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, a RIO 92), da Convenção nº 169 da OIT

(ratificada pelo Brasil em 2002, por meio do Decreto Legislativo no 143/2002, e promulgada

em 2004, por meio do Decreto no 5.051/2004), da Constituição Federal de 1988 e da Lei do

SNUC (Lei no 9.985/2000), e acabou deixando de fora a maior parte das unidades de

conservação no Estado de Roraima (cerca de 77,8% delas foram criadas nos anos de 1980 e

1990), conforme se observará adiante.

Situação atual das terras indígenas e das unidades de conservação em Roraima

Hoje em dia, com a veiculação na mídia de alguns processos de demarcação de terras

indígenas e da existência de garantias constitucionais de proteção aos povos indígenas,

desenvolveu-se no imaginário nacional a ideia de que os indígenas, especialmente na região

amazônica, habitam grandes espaços de terras intocadas e intocáveis, com condições

ambientais e produtivas suficientes e adequadas à preservação e desenvolvimento pleno de

seus modos de vida tradicionais.

Entretanto, quando falamos de terras indígenas no Estado de Roraima, é necessário

que se diga, a realidade é bem diferente.

Segundo dados do Instituto Socioambiental, Roraima possui hoje um total de trinta e

três terras indígenas demarcadas e homologadas4, sendo que a maior parte delas foi

demarcada em “ilhas” (ou em áreas descontínuas), nas décadas de 1970 e 1980, e não em área

contínua como a Terra Indígena Raposa Serra do Sol (TIRSS), amplamente repercutida, e

como determina a Constituição Federal de 1988.

Os processos de demarcação em ilhas impuseram aos indígenas pequenos espaços de

terra que deixaram de fora recursos naturais e culturais imprescindíveis à sua sobrevivência

física e cultural. Rios, lagos e áreas sagradas foram deixados de fora dos limites da terra

indígena, tornando-se inacessíveis a eles, pois logo após a demarcação, suas terras se

cercaram de fazendas com placas de “Proibida a entrada: propriedade particular” e “Proibido

pescar e caçar”.

Outra realidade que deve ser desmistificada é sobre o potencial produtivo das terras

indígenas no Estado de Roraima. Apesar do imaginário de terras indígenas com abundância

4 As Terras Indígenas demarcadas e homologadas no Estado de Roraima são: Ananás, Anaro (cuja homologação está parcialmente suspensa por decisão liminar da Justiça), Aningal, Anta, Araçá, Barata/Livramento, Bom Jesus, Boqueirão, Cajueiro, Canauanim, Jaboti, Jacamim, Malacacheta, Mangueira, Manoá/Pium, Moskow, Muriru, Ouro, Pirititi (com restrição de uso), Pium, Ponta da Serra, Raimundão, Raposa Serra do Sol, Santa Inês, São Marcos, Serra da Moça, Sucuba, Tabalascada, Trombetas/Mapuera, Truaru, Waimiri Atroari, Wai-Wai e Yanomami.

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de caça, pesca e condições favoráveis à agricultura, devemos esclarecer também que grande

parte dessas terras se situam na região denominada Lavrado, que é uma região de savana,

pouco produtiva e com longos períodos de seca, calor e sol intensos.

Enfim, é importante compreender que quando falamos em terras indígenas no Estado

de Roraima, estamos nos referindo ao espaço de sobrevivência física e cultural de milhares de

indígenas que vivem em condições produtivas precárias e sem acesso a condições sociais e

econômicas mínimas para viver com dignidade.

De outro lado, o Estado de Roraima possui oito unidades de conservação federais,

sendo seis de proteção integral - três Estações Ecológicas (Maracá, Caracaraí e Niquiá) e três

Parques Nacionais (Monte Roraima, Serra da Mocidade e Viruá) - e duas de uso sustentável

(Florestas Nacionais Anauá e de Roraima), com paisagens que variam de florestas e região de

savanas (Lavrado) ao norte a grandes áreas de campinaranas e campinas ao sul do Estado5.

Atualmente, existem diversos casos de sobreposições de terras indígenas e unidades de

conservação em todo o país. São mais de setenta somente na região amazônica, cada caso

apresentando circunstâncias fáticas completamente diferentes.

Mais especificamente no Estado de Roraima, dois casos parecem ter gerado um

aprofundamento das discussões: a sobreposição da Terra Indígena Yanomami (TI Yanomami)

com a Floresta Nacional de Roraima (Flona de Roraima), já resolvida, e a sobreposição da

Terra Indígena Raposa Serra do Sol (TIRSS) com o Parque Nacional do Monte Roraima

(Parna do Monte Roraima).

A Flona de Roraima foi criada por meio do Decreto nº 97.545, de 1º de março de

1989, com uma área de 2.664.690 hectares localizada nos municípios de Alto Alegre e

Mucajaí.

5 De acordo com Campos, “As florestas de Roraima variam muito na sua estrutura e composição. A maior parte é representada pela Floresta Ombrófila Densa, que de acordo com a localização é dividida nos sub-grupos Montana, Submontana, Aluvial e de Terras Baixas. Também ocupam grandes áreas as formações de Floresta Ombrófila Aberta (submontana e de terras baixas) e as Florestas Estacionais Semideciduais (Montana, Submontana e Aluvial). [...] O Lavrado é sem dúvida a paisagem mais peculiar de Roraima, formada por um mosaico de áreas abertas e formações florestais, onde várias fisionomias de savana são entrecortadas por ‘ilhas’ de mata, veredas de buritizais e florestas associadas a rios e serras. Apesar da aparente semelhança com o bioma Cerrado, é uma paisagem única, sem correspondente em outra parte do país, considerada pelo governo brasileiro como área prioritária para a conservação da biodiversidade. Embora mais da metade da região (56%) esteja protegida no interior de algumas Terras Indígenas, apenas 1% da área total do Lavrado está protegida em Unidades de Conservação. [...] Na região sudoeste do estado se localiza a grande região das Campinaranas, um tipo de paisagem que só ocorre nos estados de Roraima e Amazonas. Devido ao isolamento geográfico e à baixa aptidão agrícola, as campinas e campinaranas permanecem bastante conservadas e são fracamente povoadas. A região possui grandes áreas dentro de Unidades de Conservação, e não figura como área pretendida para a expansão da agropecuária. A composição florística é muito distinta daquela observada nas florestas e savanas, com espécies adaptadas ao estresse hídrico causado pelo alagamento periódico durante o período das cheias.” (2011, p. 17)

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Em 1992, entretanto, ocorreu a homologação da TI Yanomami com extensão de

9.664.980 hectares em área contínua, que se sobrepôs em 95% da área da Flona de Roraima.

Segundo informações do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade

(ICMBio)6, após a demarcação da TI Yanomami, que na época acreditava-se ter se sobreposto

integralmente à Flona de Roraima, esta ficou fora do âmbito de gestão do órgão ambiental à

época responsável, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais

Renováveis (IBAMA) e somente foi retomada por volta do anos de 2001, quando técnicos do

IBAMA perceberam que 92 mil hectares da Flona permaneciam intactos, já que dos 142 mil

hectares que ficaram de fora da TI Yanomami, cerca de 50 mil hectares já haviam sido

ocupados por dois assentamentos do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária

(INCRA), Samaúma e Vila Nova, criados em meados da década de 1990.

Quando se iniciaram as negociações para a regularização da Flona, o INCRA cedeu ao

IBAMA uma área vizinha contígua de 75 mil hectares, ainda preservada, como forma de

compensação ambiental pela devastação provocada pelos assentamentos, a qual somada aos

92 mil hectares intactos permitiram o redimensionamento da Flona de Roraima para a

extensão de 167.268,74 hectares, conforme estabelece o artigo 44 da Lei Federal nº 12.058, de

13 de outubro de 2009.

Nesse caso, a sobreposição foi resolvida pela prevalência dos direitos originários do

povo Yanomami sobre suas terras, permitindo o seu usufruto exclusivo dos recursos naturais

nela existentes, já que por ser uma unidade de conservação de uso sustentável que permite a

utilização direta de seus recursos, a Flona de Roraima acabava sendo também a via de entrada

para madeireiros, garimpeiros e posseiros.

O outro caso analisado, o de sobreposição da TIRSS com o Parna do Monte Roraima,

entretanto, não teve o mesmo desfecho favorável.

O Parna do Monte Roraima foi criado por meio do Decreto nº 97.887, de 28 de junho

de 1989, com área de preservação de 116.747,80 hectares e com o objetivo de “proteger

amostras dos ecossistemas da Serra de Pacaraima, assegurando a preservação de sua flora,

fauna e demais recursos naturais, características geológicas, geomorfológicas e cênicas,

proporcionando oportunidades controladas para visitação, educação e pesquisa científica”

(artigo 1º).

Em 1992, a TIRSS foi reidentificada pela FUNAI com área de 1.678.800 hectares,

totalmente incidente sobre o Parna do Monte Roraima. O procedimento demarcatório foi 6 Para mais informações, visitar o endereço eletrônico: http://flonarr.blogspot.com.br/p/caracteristicas-da-uc.html.

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encaminhado ao Ministério da Justiça no dia 18 de maio de 1993 (DOU 21/05/93) e sua

homologação ocorreu por meio do Decreto de 15 de abril de 2005 (DOU 18/04/2005),

assinado pelo então presidente Luis Inácio Lula da Silva, que reconheceu, pela primeira vez,

o “regime jurídico de dupla afetação, destinado à preservação do meio ambiente e à realização

dos direitos constitucionais dos índios” (artigo 3º).

Estabeleceu, ainda, no tocante à sobreposição, que a gestão do Parna do Monte

Roraima seria realizada de forma compartilhada entre a FUNAI, o IBAMA e a Comunidade

Indígena Ingarikó (artigo 3º, § 1o).

A partir de então, o povo Ingarikó passou a também reivindicar o seu direito de gestão

sobre a área, negando-se a admitir um plano de manejo que não tivesse a sua participação.

Após diversas tentativas frustradas de elaboração de um plano de manejo de forma

participativa (como o Plano Pata Eseru, resultado das atividades do Grupo de Trabalho

Interministerial (Ministério da Justiça e do Meio Ambiente) criado em 2008 para a elaboração

de um Plano de Administração conjunta para a área comum afetada), em 19 de março de

2009, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu a Ação Popular nº 3.388/RR, que

impugnava o modelo de demarcação da TIRSS em área continua e pedia a declaração de

nulidade da Portaria nº 534/05, do Ministro da Justiça, e do Decreto Presidencial

homologatório de 15 de abril de 2005.

Nessa decisão, apesar de declarar a constitucionalidade da demarcação, o STF, numa

espécie de ativismo jurídico, extrapolou de sua função, ao criar dezenove condicionantes, que

não faziam parte do objeto da ação decidida e, portanto, não foram submetidas ao devido

contraditório, algumas delas se apresentando como verdadeiras violações aos direitos

fundamentais dos povos indígenas.

Dentre essas condicionantes, no tocante à dupla afetação jurídica, o STF estabeleceu a

responsabilidade do ICMBio pela administração da área comum7, em afronta direta ao direito

fundamental de usufruto exclusivo dos indígenas em relação aos recursos naturais existentes

em suas terras (artigo 231, § 2º da Constituição Federal), apesar do entendimento de alguns

7 Tal responsabilidade é estabelecida pelas condicionantes viii e ix da decisão proferida pelo STF nos autos da Ação Popular nº 3.388/RR, nos seguintes termos: (viii) o usufruto dos índios na área afetada por unidades de conservação fica sob a responsabilidade do Instituto

Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade;

(ix) o do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade responderá pela administração da área da

unidade de conservação também afetada pela terra indígena com a participação das comunidades indígenas,

que deverão ser ouvidas, levando-se em conta os usos, tradições e costumes dos indígenas, podendo para tanto

contar com a consultoria da FUNAI;

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autores de que tal atribuição não relativiza em nada os direitos indígenas, mas sim aumenta a

responsabilidade do órgão ambiental em relação a eles8.

Para cumprimento da decisão do STF, no dia 25 de julho de 2012, o presidente do

ICMBio publicou a Portaria nº 73 criando o Conselho Consultivo do Parna do Monte

Roraima9, presidido pelo chefe ou responsável institucional do Parna e composto por

representantes de órgãos públicos e de segmentos da sociedade civil, com a finalidade de

contribuir com o efetivo cumprimento dos seus objetivos de criação e implementação do

Plano de Manejo.

Esse é o contexto atual do problema da sobreposição de unidades de conservação e

terras indígenas no Estado de Roraima.

8 Nesse sentido, Ana Paula Souto Maior entende que “na prática, a decisão do STF, ao colocar a gestão administrativa do Parna Monte Roraima sob o ICMBio não diminui em nada as obrigações da Funai em relação aos povos da TI RSS, tampouco relativiza os direitos indígenas, e, sim, aumenta a responsabilidade do órgão ambiental com relação aos povos indígenas que nele vivem em dele cuidam. O ICMBio passa a ter que cumprir o seu mister observando a legislação específica relativa aos direitos indígenas, obrigatoriamente internalizando na gestão do Parna os usos, os costumes e as tradições indígenas.” (2011, p. 254-255) 9 A composição ficou definida no artigo 2º da Portaria nº 73/12 do ICMBio, da seguinte maneira: Art. 2º - O Conselho Consultivo Parque Nacional do Monte Roraima é composto por representantes dos

seguintes órgãos governamentais e segmentos da sociedade civil:

DOS ÓRGÃOS PÚBLICOS:

I - Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade - ICMBio, sendo um titular e um suplente;

II - Coordenação Regional de Boa Vista da Fundação Nacional do Índio - CR-Boa Vista- FUNAI/RR, sendo um

titular e um suplente;

III - Superintendência do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis no Estado de

Roraima - IBAMA, sendo um titular e um suplente;

IV - Universidade Federal de Roraima - UFRR, sendo um titular e um suplente;

V - Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Roraima - IFRR, sendo um titular e um suplente;

VI - Comando da Aeronáutica - Base Aérea de Boa Vista/ RR, sendo um titular e um suplente;

VII- Comando do 7º Batalhão de Infantaria da Selva do Exército Brasileiro - Batalhão Forte São Joaquim – CC

FRON RR/7ºBIS, sendo um titular e um suplente;

VIII - Delegacia Federal do Desenvolvimento Agrário no Estado de Roraima - DFDA/RR, sendo um titular e um

suplente;

IX - Prefeitura Municipal de Uiramutã/RR, sendo um titular e um suplente;

X - Prefeitura Municipal de Pacaraima/RR, sendo um titular e um suplente;

DA SOCIEDADE CIVIL:

XI - Núcleo Serra do Sol, sendo um titular e um suplente;

XII - Núcleo Mapaé, sendo um titular e um suplente;

XIII - Núcleo Manalai, sendo um titular e um suplente;

XIV - Conselho do Povo Indígena Ingarikó - COPING, sendo um titular e um suplente;

XV - Conselho Indígena de Roraima - CIR, sendo um titular e um suplente;

XVI - Organização dos Professores Indígenas de Roraima - OPIRR sendo um titular e um suplente;

XVII - Sociedade de Defesa dos Índios Unidos de Roraima - SODIUR, sendo um titular e um suplente;

XVIII - Instituto Socioambiental - ISA, sendo um titular e um suplente;

Parágrafo único. O Conselho Consultivo será presidido pelo chefe ou responsável institucional do Parque

Nacional do Monte Roraima, a quem compete indicar seu suplente.

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Direitos fundamentais ambientais e indígenas e a (in)compatibilidade jurídica da

sobreposição

Por todo o acima exposto, fica evidente que acreditamos que os direitos envolvidos,

tanto o indígena quanto o ambiental, estão igualmente protegidos na Constituição Federal

como direitos fundamentais, elementos que compõem a base jurídica mais importante de

nosso país.

Por esse motivo, a questão sobre a compatibilidade ou incompatibilidade jurídica

desses valores será discutida no âmbito das teorias jurídicas interpretativas, pensando em

alternativas que consigam harmoniza-los de forma a tornar efetivas e aplicáveis as garantias

neles contidas.

A sobreposição é assunto que preocupa não somente os ambientalistas, mas

principalmente os povos indígenas, que se deparam, diariamente, com questões jurídicas

sempre polêmicas e complexas, criadas por um Direito que não compreende as

especificidades de sua diversidade cultural, mas que lhes impõem uma luta constante por

sobrevivência e reconhecimento da cidadania.

Não significa, entretanto, que a sobreposição deva ser tratada como uma disputa entre

defensores da preservação ambiental e defensores de direitos indígenas, “como se houvesse

uma intenção deliberada da área ambiental em suprimir direitos indígenas ou dos índios e

organizações que os apoiam para inviabilizar a conservação da biodiversidade” (SANTILLI,

2004, p. 11).

Não existe motivo para que indígenas e ambientalistas se confrontem, como inimigos,

pois não existe incompatibilidade entre a necessidade de sobrevivência física e cultural dos

povos indígenas e a preservação ambiental.

Por isso, uma das hipóteses viáveis seria a via conciliatória proposta pelo conceito de

“ecologia social” (EMERIQUE, 2012, p. 283), que muito contribui para o aprofundamento do

pensamento em relação ao ser humano e à natureza, sob o ponto de vista dos direitos

humanos, ou do desenvolvimento sustentável, que compatibiliza a proteção ambiental com o

desenvolvimento humano de forma saudável e equilibrada (FIORILLO, 2010, p. 79), devendo

resultar na integridade do ecossistema como garantidor de uma vida sadia (SILVA, 2004, p.

83).

Releva-se como essencial, no debate da sobreposição, então, a preservação da

qualidade de vida dos povos indígenas e o meio ambiente ecologicamente equilibrado, para as

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atuais e futuras gerações. Tal conjunto de direitos constitui-se, essencialmente, de comandos

com perfil constitucional e fundamental.

Portanto, qualquer outro conflito que não tenha este status, como a construção de

usinas hidrelétricas, estradas, linhas de transmissão de energia elétrica, ferrovias, criação de

municípios, além das usuais práticas predatórias extrativistas, por exemplo, impõe a utilização

dos dois direitos fundamentais indicados, como um só mecanismo de proteção, com carga

semântica e valorativa suficiente para uma adequada proteção da natureza e dos indígenas que

ali vivem.

Já quando se tratam de possíveis conflitos entre esses dois direitos fundamentais, o

indígena e o ambiental, que envolvem direitos de igual hierarquia, Robert Alexy (2011)

oferece um caminho racional e possível para uma solução interpretativa.

Ao adotar as contribuições deste grande pensador do Direito, faz-se necessário

esclarecer, desde logo, a escolha das nomenclaturas. Não podemos falar que, quanto à

superposição de direitos fundamentais, temos um conflito, já que tal palavra se destina apenas

às regras jurídicas. O mais correto, segundo essa teoria, é dizer, colisão, por evidenciar que

estão em jogo dois princípios constitucionais (ALEXY, 2011, p. 91-92).

Então, a colisão de princípios impõe um tipo de solução para o problema

interpretativo condicionado às circunstâncias do caso concreto. De acordo com essa teoria, é

necessário que um dos princípios ceda, não integralmente, mas que reduza a sua aplicação

diante de outro que se mostre mais relevante para a questão prática a ser resolvida.

O problema, então, não seria de validade, como ocorre com as regras, mas sim de

“peso”, que seria resolvido através da chamada “lei de colisão”, com quatro soluções

possíveis, aqui adaptadas ao problema em análise: princípios de proteção aos povos indígenas

prevalecem sobre os princípios ambientais; princípios ambientais prevalecem sobre os

princípios de proteção aos povos indígenas; princípios de proteção aos povos indígenas

prevalecem sobre os princípios ambientais, sob determinada condição ou condições do caso

concreto; e, por fim, princípios ambientais prevalecem sobre os princípios de proteção aos

povos indígenas, sob determinada condição ou condições do caso concreto, de acordo com as

opiniões apresentadas por Alexy (2011).

Outro autor, de igual envergadura, dá a este mecanismo de solução de conflitos o

nome de “princípio da concordância prática ou da harmonização” (CANOTINHO, 2000, p.

1225), preocupando-se, da mesma forma, com a interpretação fora do âmbito da validade das

regras jurídicas.

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Vemos, então, que há opção para solucionar o conflito de princípios constitucionais,

seja de forma teórica ou sob determinada condição ou condições do caso concreto. Mas, para

apresentar uma resposta ao problema da sobreposição, como proposto no presente estudo,

precisamos pensar em uma solução que, pelo menos inicialmente, não leve em conta o caso

concreto.

Os argumentos até aqui levantados, entretanto, não apresentam uma solução

definitiva para a questão da sobreposição, pois apenas transferem ao intérprete o poder de

decidir, no caso concreto, qual é o princípio que deverá prevalecer, provocando uma análise

casuística e discricionária, como ocorreu no julgamento do STF sobre a demarcação da

Raposa Serra do Sol.

Contudo, verificamos que é possível defender, através de mecanismos de

racionalização, a preponderância de um determinado direito fundamental, como o da

dignidade da pessoa humana (que sempre irá ocorrer), sem que isso implique numa exclusão

do outro princípio em colisão, como o da preservação ambiental.

Assim, para não ingressar na discussão filosófica entre teorias lógicas ou analíticas,

muito complexa e alheia aos anseios deste trabalho, entendemos que o princípio da dignidade

da pessoa humana, estampado no Texto Constitucional, deve prevalecer sobre todos os outros,

como defendem Ana Paula de Barcellos e Luís Roberto Barroso (2008, p. 365), ao situá-lo no

centro de valores do Estado Democrático de Direito, e Canotilho (2000, p. 248), ao concebê-

lo como a “base antropológica” do Estado.

Diante dessas contribuições, podemos dizer que a análise jurídica do problema da

sobreposição de terras indígenas com as unidades de conservação deve sempre resultar em

soluções que garantam a dignidade humana dos indígenas que vivem nestas áreas. Qualquer

outra solução deve ser considerada inconstitucional, assim como devem ser considerados

inconstitucionais todos os atos administrativos que, existindo ou não a sobreposição, recaiam

sobre terras indígenas, sem o consentimento das comunidades e povos interessados.

Também, sob o mesmo ponto de vista, devem ser considerados inconstitucionais, de

pleno direito, os atos administrativos que, mesmo contando com o consentimento das

comunidades indígenas, venham a ofender a dignidade da pessoa humana.

Assim se, para a sobrevivência física e cultural dos povos indígenas for necessária a

utilização de recursos naturais, seja através da caça, pesca ou coleta, ainda que em unidades

de conservação, seja de que categoria for, há o reconhecimento a priori da constitucionalidade

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desses atos, sendo, por conseqüência, inconstitucionais todas as sanções que visem a

proibição ou restrição dessas práticas.

Entendemos que as unidades de conservação em terras indígenas, se criadas nesses

termos, devem ser consideradas como um plus de proteção para a área, sendo seus

mecanismos jurídicos e institucionais fundamentais para a garantia de um meio ambiente

saudável para esses povos. Ou seja, devem as unidades de conservação servir às necessidades

dos povos indígenas, não o contrário.

Considerações Finais

Para se pensar em possíveis soluções jurídicas para o problema da sobreposição de

terras indígenas e unidades de conservação, defendemos que as interpretações, quando

possível, baseiem-se em opções conciliatórias, valendo-se da natureza fundamental dos

direitos em conflito, que devem ser respeitados, nunca desconsiderados imediatamente.

A partir de uma análise interpretativa das teorias de Robert Alexy e Canotilho, o

presente artigo se propôs a dar uma solução jurídica para a sobreposição através da definição

do princípio da dignidade da pessoa humana como conteúdo mínimo inafastável, sejam quais

forem as circunstâncias fáticas que envolvam o caso concreto.

Nesse caso, levando em consideração a situação ainda não resolvida de sobreposição

da Terra Indígena Raposa Serra do Sol com o Parque Nacional do Monte Roraima analisada

no presente artigo, bem como qualquer outro caso de sobreposição que venha a ocorrer,

conclui-se que, na colisão entre direitos fundamentais, como a dignidade da pessoa humana e

a preservação ambiental, deve sempre prevalecer a interpretação que garanta os direitos dos

povos indígenas.

Isso porque, como observado, toda e qualquer decisão judicial, ato administrativo ou

normativo que atente contra as formas tradicionais de sobrevivência física e cultural dos

povos indígenas resulta em violação da própria Constituição Federal, o que não representa,

entretanto, um “salvo-conduto” que venha a permitir aos indígenas a realização de práticas

não-tradicionais degradadoras do meio ambiente.

Entendemos, por fim, que o princípio da dignidade da pessoa humana deve ser

considerado como um forte aliado dos povos indígenas, podendo ser utilizado concretamente

para impedir a ação de invasores e agentes do Estado, bem intencionados ou não, servindo

como elemento axiológico ou argumentativo para as comunidades indígenas defenderem os

seus direitos na busca da sua própria dignidade.

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COMPONENTES PARA UM PADRÃO AVANÇADO DE DEMOCRACIA

COMPONENTS FOR AN ADVANCED STANDARD OF DEMOCRACY

Gabriel Lima Marques1

Fernanda Bragança2

RESUMO

Contemporaneamente percebe-se de forma clara um declínio da participação dos cidadãos no

espaço público e consequentemente na tomada de decisões. Tal realidade que já há muitos

anos vem se desenhando nas sociedades democráticas ocidentais, possui como características

nucleares a apatia política e a ausência de canais deliberativos. Atento a isto, o neo-

republicanismo surge como uma alternativa de superação deste modelo na medida em que

propõe a elaboração de um programa onde as instituições públicas sejam permeáveis ao

controle da comunidade política em geral, ao mesmo tempo em que incentiva os indivíduos a

exercerem suas virtudes cívicas, ou seja, que tomem gosto pelo debate de matérias que sejam

do interesse geral. Neste sentido, o presente artigo se socorrendo das perspectivas teóricas de

autores neo-republicanos como Philip Pettit, Richard Dagger e Cass Sunstein, parte do

pressuposto de que para alcançar um nível avançado de democracia, urge-se necessário o

estudo de dois elementos que ganham relevo neste contexto, quais sejam: a atuação e inserção

do cidadão no mundo público, bem como a existência de canais de deliberação e discussão.

PALAVRAS-CHAVE: Democracia; Republicanismo; Deliberação

1 Bacharel em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Mestrando em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Pesquisador-bolsista do Projeto CNJ/CAPES, equipe UFRJ. E-mail: [email protected]. 2 Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mestranda em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Pesquisadora do Projeto CNJ/CAPES, equipe UFRJ. Bolsista do CENPES/PETROBRAS. E-mail: [email protected].

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ABSTRACT

Contemporaneously perceives clearly a decline of citizen participation in public space and

consequently in decision making. This reality that for many has been drawing in western

democractic societies, has as nuclear feature the political apathy and the lack of deliberative

channels. Aware of this, the neo-republicanism appears as an alternative to overcome this

model in that it proposes the development of a program where public institutions are

permeable to control of the political community in general, while encouraging individuals to

exercise its civic virtues, ie to take the taste by the discussions envolving general interest. In

this sense, this article is bailing the theoretical perspectives of neo-republicanism authors as

Philip Pettit, Richard Dagger and Cass Sunstein, assumes that to achieve and advanced level

of democracy, urge is necessary to study two issues that make raised in this context, namely:

the performance and integration of the citizen in the public world, as well as the existence of

channels of deliberation and discussion.

KEYWORDS: Democracy; Republicanism; Deliberation

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1. INTRODUÇÃO

A discussão que se pretende travar acerca do conceito de democracia nas sociedades

ocidentais contemporâneas tomará como ponto de partida um padrão estabelecido

aproximadamente a partir do século XVIII – a democracia liberal – cujas principais

características são: a separação entre os poderes executivo, legislativo e judiciário, a

realização de eleições periódicas, voto universal e secreto, representação do cidadão por seus

eleitos na tomada de decisões, e a manutenção de instituições políticas que assegurem os

direitos e interesses individuais (BARBER, 1997, p. 05). Buscar-se á analisar este modelo

como um padrão mínimo de democracia exigido pelas sociedades contemporâneas e, a partir

da constatação de seus déficits e limitações, tentar-se-á estabelecer aquilo que se

convencionou chamar de padrão avançado de democratização, o qual deve apresentar, além

das características mínimas estipuladas na democracia liberal, também outras como:

instituições que assegurem o exercício do poder político em benefício do interesse público, a

participação dos indivíduos na tomada de decisões públicas e, principalmente, que esta

participação ocorra de forma consciente, não manipulada, possibilitando a emancipação

política dos indivíduos.

A busca de um padrão avançado de democracia passa necessariamente pela análise

da ação do homem no mundo público e também pela redução do espaço de participação

política. O declínio do espaço público deu-se, a partir do medievo, com a desvalorização da

participação política, e na modernidade, esse fato foi consolidado com o surgimento das

sociedades industriais capitalistas que produziram o homem de massa, cujas relações se

estabelecem no âmbito privado e do consumo, pouco disposto a envolver-se com assuntos

relacionados ao interesse geral ou bem comum. Essas características são corroboradas pela

ascensão da democracia liberal como forma de exercício da cidadania, a qual limitou a

participação dos indivíduos no processo político à eleição periódica de representantes.

O século XIX presenciou o declínio do ideal de participação política e a ascensão da

democracia liberal representativa. No embate entre republicanos e federalistas, nos Estados

Unidos, a questão da participação política foi o tema central, como mostrou John Greville

Agard Pocock (2000, pp. 30-39). Entretanto, o entendimento de que a forma como se exercia

a virtude cívica nas antigas cidades já não era mais válido para os Estados Modernos, em

virtude de suas novas características, tais como extensão, número de habitantes, exercício de

atividades econômicas que tomavam demasiadamente o tempo dos cidadãos para que

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pudessem ocupar-se dos negócios públicos, foi vitorioso. E, assim a democracia passou a ser

exercida de uma nova forma – a representação.

Os ideais que passaram a nortear a vida política na modernidade pressupunham o

afastamento do homem do espaço público, pois o modelo de participação foi substituído pelo

de representação.3 O indivíduo moderno deveria ter tempo livre para dedicar-se às atividades

privadas, principalmente àquelas ligadas ao setor econômico. A comunidade política teve seu

papel de atuação restringido e houve a valorização dos direitos individuais frente aos do

Estado. Pode-se dizer que o ideal de liberdade política dos antigos sucumbiu diante de novas

necessidades – a de acumulação, por parte das classes abastadas, e a de sobrevivência, por

parte das classes populares.

O conceito de liberdade que passou a vigorar do século XIX em diante foi o de

ausência de interferência, o qual, somado à nova forma de exercer a democracia nas

sociedades ocidentais, promoveu a valorização dos interesses do indivíduo e o recolhimento

do homem do espaço político para o espaço privado. De acordo com Benjamin Barber (2003,

pp. 03-06), a democracia liberal tem sido um sistema político de grande importância na

história do Ocidente moderno, e seus valores, fundamentados nos ideais do contrato social, da

representação, da defesa dos direitos fundamentais individuais que, de certa forma, submetem

o bem público aos interesses privados, não são eficazes para promover a cidadania como

participação dos indivíduos em processos políticos de interesse da coletividade. Se a teoria

democrática liberal desenvolvida no século XX é fraca, como entende Benjamin Barber, e

marcada por conceitos tais como a liberdade individual, direitos naturais, propriedade privada

e capitalismo mercantil, entre outros, estes foram herdados pelo neoliberalismo e estão sendo

colocados em prática ainda hoje.

As conseqüências da vitória da democracia liberal são analisadas por Benjamin

Barber e, o autor chega à conclusão de que os valores defendidos por esse ideal, só poderiam

levar as sociedades que o adotaram a sérios problemas políticos, tais como apatia, alienação,

dificuldade de mobilização dos eleitores até mesmo para votarem em eleições periódicas, bem

como dificuldade de fazer com que os indivíduos se envolvam ou se motivem a participar de

temas que não digam respeito unicamente a interesses particulares. Com isso, chega-se à 3 Tal realidade fez o filósofo alemão Jurgen Habermas afirmar que a crença de outrora na liberdade política e na eficácia de intervenção do cidadão, acabou se confrontado com a realidade da situação onde a participação popular cada vez mais ficou objetivada aos limites eleitorais, em eleições via de regra pré-formadas, quando não manipuladas. Segundo ele, a participação acabou se convertendo num valor em si e a votação e o interesse político em mero fetiche. Conforme HABERMAS. J. Participação Política. In: CARDOSO. F. H. & MARTINS. C. E. (Orgs.). Política e Sociedade. Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1983, p. 375-388.

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conclusão de que o declínio da valorização da vida comunitária e da participação dos cidadãos

nas decisões e deliberações públicas não proporcionou mais felicidade ou riqueza, pelo menos

não para a grande maioria. O recolhimento do homem para a vida privada, para cuidar dos

assuntos econômicos, e a respectiva delegação de suas responsabilidades públicas a

representantes afastaram-no do campo no qual é possível decidir as questões que dizem

respeito a sua própria vida, e as dificuldades apontadas demonstram que há necessidade de

repensar o projeto político da modernidade. Ou seja, torna-se necessário voltar à atenção para

as propostas que buscam recuperar o espaço de participação política como uma forma de

construir um novo projeto.

Esse novo projeto pode ser analisado a partir de uma teoria que, embora não tenha a

democracia como fim, a contempla como meio para atingir seus objetivos - a teoria

republicana. O republicanismo, historicamente propõe-se a construir um ideal de liberdade

que possibilite o controle dos indivíduos e também do poder político para que não haja

dominação de um indivíduo sobre os demais e nem do Estado sobre os indivíduos. Também

se propõe a elaborar um programa cujas instituições públicas sejam permeáveis ao controle da

comunidade política em geral e, para alcançar esta meta, incentivam os indivíduos a

exercerem suas “virtudes cívicas”, reforçando, assim, a necessidade de participação nos

processos de tomada pública de decisões.

As propostas republicanas realizam não somente a defesa teórica da necessidade de

exercício das virtudes cívicas através da participação, mas também apresentam propostas para

que o próprio espaço público seja readequado para promoção da participação. Em outras

palavras, esta teoria possui também como um de seus objetivos precípuos: repensar a estrutura

e organização das instituições existentes, com vistas a proporcionar o retorno dos cidadãos ao

espaço público, permitindo assim que as sociedades avancem em direção ao que se

convencionou denominar como um padrão avançado de democracia.

Neste sentido, o presente paper tem por objetivo realizar um estudo com base nas

obras de autores neo-republicanos como Philip Pettit e Richard Dagger, ambos considerados

como redescobridores do neorrepublicanismo, bem como de Cass Sunstein em virtude de

inovar o republicanismo ao associá-lo a uma perspectiva deliberativa (PINZANI, 2010, p.

267), acerca dos atributos necessários para se caracterizar uma sociedade como avançada

democraticamente. Da mesma forma, tem por objetivo analisar as reformas institucionais

necessárias para fazer frente a realidade contemporânea, que baseada nos ideais liberais

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clássicos, reduz os indivíduos da atualidade a meros consumidores, esvaziando assim o

interesse pela participação na res publica.

2. O REPUBLICANISMO DE PHILIP PETTIT: a contestação como instrumento para

o alcance de um padrão avançado de democracia

Philip Pettit,4 que inaugura a discussão em termos de neorrepublicanismo, defende

um ideal de liberdade política5 equivalente a uma cidadania ativa. Aplicando a perspectiva

republicana à democracia, alterando o modo pelo qual esta opera e substituindo o mero

consentimento pela idéia de contestabilidade. Essa proposta exige que o povo possa sempre se

opor aos atos do governo quando estes são arbitrários, e a oposição pode dar-se no espaço

público através da participação. Assim, para que não haja arbitrariedade no exercício de um

determinado poder, não basta o simples consentimento ao exercício desse poder, mas é

necessária a permanente possibilidade de questioná-lo e contestá-lo.

Partindo do pressuposto de que todo projeto político tem um aspecto deliberativo,

entende ainda o autor (PETTIT, 1999, p. 175) que o diálogo estabelecido pela deliberação

deve cumprir duas funções: primeiramente, estabelecer distinções conceituais e pautas de

inferência que possam ser aceitas pela comunidade e, posteriormente, oferecer um meio que

habilite todos os integrantes da comunidade a oferecer propostas e contestações, uma vez que

critica o ideal liberal de liberdade como ausência de interferência, alegando que este só é

capaz de satisfazer a primeira função, fracassando na promoção da segunda. Entende ainda

Pettit que o conceito do liberalismo, representado pelo desejo do indivíduo de “ser deixado

4 A teoria política de Philip Pettit está presente em seu livro “Republicanismo: una teoria sobre la libertad y el gobierno” (1999). Tal obra caracteriza e sintetiza a visão política do autor, que é considerado um neorrepublicano por fazer parte do rol de autores, entre eles Quentin Skinner, que retomaram os debates acerca do republicanismo. 5 Toda a teoria republicana de Pettit gira em torno do conceito de liberdade. Tal conceito torna-se indispensável para que os adeptos das diferentes correntes de pensamento, presentes na história, possam postular o seu ideal político. O ideal de liberdade possui um papel fundamental na teoria política e constitui-se em ponto central para o desenvolvimento e o estudo do republicanismo. Dessa forma, a concepção de liberdade representa a essência da “tradição republicana”. Para desenvolver sua teoria e chegar ao seu conceito de liberdade, Pettit utiliza a distinção que Isaiah Berlin fez entre liberdade positiva e negativa. Liberdade negativa: sou livre até o ponto em que desfruto de uma capacidade de eleição sem impedimento nem coerção. Sobre Liberdade positiva, diz o autor, na mesma página, “eu sou positivamente livre na medida em que consigo o autodomínio (...)”. Berlin aborda o conceito de liberdade negativa como sendo o elemento chave das duas concepções. Segundo ele, aqueles que defendem a liberdade negativa possuem o interesse de limitar a autoridade, enquanto que os oponentes de tal ponto de vista querem a autoridade em suas mãos. Desse modo, Pettit chega à sua definição de liberdade como não-dominação, uma terceira possibilidade de liberdade política que, segundo seu ponto de vista, corresponde ao conceito republicano. Conforme PETTIT, Philip. Republicanismo: una teoria sobre la libertad y el gobierno. Barcelona: Paidos Iberica Ediciones, 1999, p.35.

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sozinho e em paz, em particular por parte do estado” (PETTIT, 1999, p. 177), beneficiou

aqueles que pertenciam à classe ou categoria dominadora – o patrão, o marido, o proprietário

– e deixou sem voz aqueles que pertenciam à classe dominada – o trabalhador, a mulher, os

pobres.

A construção de Philip Pettit, passa pela retomada de um espaço público como

universo de contestação, pretende atender as duas funções e, por conseqüência, proporcionar

que seja assegurado aos considerados “dominados” um ambiente para questionamentos e

proposições. Nessa linha afirma que, em sendo o objetivo do republicanismo – ou neo-

republicanismo – erigir a liberdade, à semelhança do liberalismo,6 sua concepção pretende ser

neutra em relação a concepções de bem. Todavia, este modelo político também se apresenta

como promotor de um bem social e comunitário,7 capaz de coexistir com lutas sociais, tais

como a ambientalista, a feminista, a socialista e a multicuturalista (PETTIT, 1999, pp. 181-

193), pois, o ideal republicano não é um ideal certo, pronto a ser aplicado mecanicamente,

ora a este grupo, ora àquele. Trata-se sim de um ideal aberto, que vai sendo interpretado

segundo as perspectivas mutantes de uma sociedade viva (PETTIT, 1999, p. 195).

Dentro desses planos, a vida pública – entendida pelo autor como a vida da

comunidade fundada em crenças ou assuntos comuns – é de fundamental importância para a

promoção da não-dominação.8 Entretanto, são identificadas nas sociedades contemporâneas

três dificuldades para este objetivo, ou seja, para a participação dos cidadãos nos assuntos

6 A liberdade republicana não é a liberdade como não interferência, por isso que a não interferência, de acordo com o paradigma liberal, nem sempre proporcionaria e garantiria uma total não dominação. A prova disso mesmo é exemplificada com o relacionamento senhor/escravo, no qual a hipotética benevolência do amo, que não interfere com as escolhas do seu escravo, não liberta este último da situação de não-liberdade que é própria do escravo. Assim, conclui Pettit, a liberdade pode perder-se mesmo quando não há interferência. Neste sentido ver PINTO. R. L. Uma introdução ao neo-republicanismo. Análise Social, vol. XXXVI, 2001, pp. 461 - 485. Disponível em:< http://analisesocial.ics.ul.pt/documentos/1218726793R5fMU7mi5Rz78WY7.pdf >. Acesso em 20/10/2012. 7 O ideal de liberdade como não-dominação é definido por Philip Pettit (1999, pp. 162-168) como um bem social porque, para sua realização, necessita de pessoas que vivam em sociedade e interajam. É entendido como um bem comum porque não pode ser implementado para um membro da comunidade política sem que o seja para todos os demais. 8 Cíntia Luzardo Rodrigues, em sua dissertação de mestrado, aprofunda o conceito de cidadão republicano para

este autor, explicitando ainda os pontos que convergem para exercício dessa cidadania. Nessa linha, chega à conclusão de que sua república ideal é aquela que possui um governo protegido contra manipulações arbitrárias. O cidadão é livre quando não está sob o jugo de outros cidadãos (dominium), e nem sujeito à interferência arbitrária do Estado (imperium). Todos os instrumentos utilizados pelo Estado não devem ser manipuláveis, pois, conforme o autor: Não tem sentido estabelecer instituições ou tomar iniciativas que reduzam a dominação por parte do dominium, se os instrumentos com que se consegue tal feito permitam ao mesmo tempo um tipo de dominação por parte do imperium; o que se ganha por um lado, se perde – talvez abundantemente – por outro lado. Ver RODRIGUES. C. L. Liberdade: Uma análise entre dois republicanos, Hannah Arendt e Philip Pettit. Dissertação apresentada no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Pelotas, como requisito essencial para a obtenção do título de mestre. 2008, p. 277. Disponível em <http://www.ufpel.tche.br/isp/ppgcs/dissertacoes/2008/cintia-rodrigues.pdf >. Acesso em 20/10/2012.

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públicos: a perda dos espaços públicos de convivência e discussão, a interferência causada

pelos meios de comunicação e a representação da opinião pública (PETTIT, 1999, p. 220). O

autor apresenta propostas para solucionar esses problemas.

O primeiro problema tem sua causa no próprio desenvolvimento das sociedades

atuais, uma vez que o espaço público, compreendido como sendo a rua, as praças, centros

urbanos ou rurais, foi substituído ao longo do tempo por centros comerciais e industriais em

decorrência do desenvolvimento das grandes cidades. Devido ao aumento da violência nos

espaços de convivência comunitária, as pessoas afastaram-se desses locais que propiciavam a

interação e a discussão dos assuntos de interesse da comunidade. Em razão disso, a solução

para esse problema deve ser apresentada, de acordo com os escritos de Pettit pelo próprio

Estado,9 que deve torná-los, novamente, mais atraentes para a população. Tais medidas,

segundo o autor seriam realizadas por meio da implementação de políticas públicas, cuja

finalidade seria alcançar um patamar de igualdade material mínimo para que se pudesse

atribuir a todos, formas de evitar a dominação, e com isso dar-lhes condições de serem

incluídos nas decisões e deliberações. Ou seja, esses espaços deveriam ser estruturados pelo

Estado, através da criação de canais de participação.

Já no que se refere ao segundo dilema, causado pela manipulação das informações

pelos meios de comunicação, que agem através da divulgação de notícias sensacionalistas e

parciais, o republicanismo de Philip Pettit o enfrentaria por meio de um plano de controle das

mídias, por parte do Estado. Por fim, quanto ao terceiro e último obstáculo apresentado, este

consiste no modo como a opinião pública é representada ou percebida nas sociedades

democráticas e, nesse ponto, novamente apresenta-se como um agravante ao problema a

atuação dos meios de comunicação de massa, os quais se colocam de forma equivocada como

porta-vozes dos anseios e reivindicações da sociedade, refletores e formadores da própria

opinião pública. A solução é encontrada na promoção da deliberação sobre os assuntos

relevantes, que deve ser levada a cabo também pelo Estado.

Em outras palavras, a fim de garantir a não-arbitrariedade, uma república prevê e

exige a participação dos cidadãos como fiscalizadores da ação do Estado. A participação

ocorre no sentido da contestação. O princípio da contestabilidade é fundamental para a

existência de uma boa república e é considerado uma das bases de um bom governo

9 Para salvaguardar a liberdade republicana o autor exige um Estado constitucional forte, onde as instituições, mais do que garantidoras da liberdade, são, elas próprias, constitutivas dessa liberdade. É isso que justifica um tópico tradicional dos republicanos — que recuperam a normatividade kantiana, segundo a qual a liberdade política é a realização do direito.

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republicano. Tal contestabilidade é denominada por Pettit de democracia deliberativa e

possibilita aos cidadãos a formulação de questionamentos contra as ações arbitrárias do

Estado. Nessa forma deliberativa de democracia, as decisões públicas devem ser exercidas

com bases racionais dialógicas e discursivas e não com base nas negociações, em que cada

grupo ou indivíduo defende seus próprios interesses, utilizando o mínimo possível de

concessões. Para que isso seja possível, é necessária a existência de uma república que seja

inclusiva e que o cidadão disponha de canais institucionais para que sejam ouvidas as suas

contestações. É fundamental a existência de espaços públicos para que os anseios dos

cidadãos cheguem às autoridades competentes e para que as contestações, acerca das decisões

já tomadas pelo Poder Público, possam ser expressas. Pois uma democracia que segue o

modelo deliberativo na tomada de decisões inclui a voz crítica de todos os cidadãos e

responde às queixas apresentadas por eles, conforme leciona Pettit (1999, p. 254):

Se a vida política é deliberativa, haverá uma base para que os cidadãos possam disputar qualquer decisão pública, seja legislativa, administrativa ou judicial. E se a vida política é includente, as pessoas de todos os lugares da comunidade disponibilizarão de voz para expressarem suas críticas. A terceira pré-condição de disputabilidade é que, não somente se assegure às pessoas uma base e uma voz para a disputa, senão também um fórum em que suas queixas e disputas tenham a audiência apropriada. A vida política tem que ser deliberativa e includente, desde logo, mas também sensível.

Neste sentido, problemas como a tomada de decisões de forma arbitrária por parte

dos legisladores, administradores e juízes, bem como a necessidade de se estabelecer limites

ao domínio arbitrário que pode ser exercido pelo Estado, são enfrentados segundo Pettit

através da criação de espaços de contestabilidade (PETTIT, 1999, pp. 240-241), os quais

consistem em formas de promover a recuperação do espaço público através da abertura de

canais para participação nos processos de discussão e deliberação, e também para o exercício

do questionamento das decisões tomadas pelas autoridades. 10 Segundo o autor, a democracia

caracteriza-se mais pela disputa e pelo dissenso do que pelo consenso, e um governo, somente

terá um padrão avançado de democracia n medida em que o povo desfrute de meios,

individual ou coletivamente, de contestar as decisões tomadas por aqueles que exercem o

poder (PETTIT, 1999, p. 242).

10 Afigura-se de extrema importância repisar que a participação política, em Pettit, refere-se à possibilidade que os cidadãos possuem de contestar os atos do governo, ou seja, não se está aqui falando da sua efetividade em sentido amplo. Ela é vista como sinônimo de contestação, e nesse modelo, possui apenas um valor instrumental, e somente é reivindicada como um elemento necessário para a preservação da liberdade como não-dominação.

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Philip Pettit trabalha com três condições de contestação ou disputabilidade: a

deliberação, a inclusão e a responsabilidade. Primeiramente uma república deve atender as

condições para a realização de deliberações através do debate e não das negociações ou

barganhas, pois nestas as preferências já estão previamente dadas, enquanto naquele as

preferências vão se formando no próprio processo de discussão, e as partes envolvidas podem

chegar a um acordo sobre quais normas ou medidas apresentam a resposta mais precisa às

questões colocadas. Os espaços para o debate têm que existir no âmbito dos poderes

legislativo, executivo e judiciário, e devem ser implementados através de procedimentos

capazes de identificar as considerações relevantes da população para a tomada de decisões.

Considera o autor que em uma república em que não haja dominação, as decisões tomadas

pelo poder público devem atender os interesses e considerações relevantes de cada um, sem,

contudo, perder seu caráter de neutralidade e proporcionar o favorecimento de um

determinado grupo (PETTIT, 1999, pp. 244-248).

Em segundo momento, a República é chamada a ser inclusiva (PETTIT, 1999, p.

249), pois se houver qualquer espécie de agravo feito pela tomada de decisões públicas aos

interesses dos indivíduos, devem existir meios preestabelecidos através dos quais essas

ofensas possam ser questionadas. Todavia, para que esses canais existentes sejam bem

aproveitados, é necessário que os grupos façam valer suas reivindicações e isso, como salienta

o autor, dependerá de sua própria capacidade de se fazerem representar nos espaços oficiais

de participação e também de sua habilidade em elaborar denúncias e reclamações (PETTIT,

1999, p. 252).

A proposta de promover a inclusão da contestação vai sendo delineada dentro de

cada um dos poderes. No legislativo, espera-se que os parlamentares – eleitos diretamente

pelo povo – possam representar os diversos grupos de interesse existentes na república e, caso

essa representação não aconteça de forma natural, o autor aposta no estabelecimento de

medidas que assegurem a paridade, como por exemplo, assegurar uma porcentagem das vagas

do parlamento para mulheres, negros ou indígenas. Esse princípio deve ser válido para o

judiciário e para o corpo administrativo do poder executivo. Apesar de os seus cargos não

serem, na maioria das vezes, elegíveis, não podem estar em mãos de um único grupo social ou

que comungue da mesma ideologia ou princípios políticos, culturais ou religiosos. A

diversidade deve ser assegurada para que não haja dominação ou imposição de um modo de

vida sobre os demais. Nesse aspecto, é fundamental a participação, nos canais de contestação

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abertos, dos movimentos sociais, pois estes possuem legitimidade e força para exigir que as

contestações sejam levadas em consideração.

A República precisa ser, finalmente, responsável. Não basta assegurar às pessoas

uma base ou um canal para a contestação sem que seja também assegurado um foro em que as

reclamações recebam a audiência apropriada (PETTIT, 1999, p. 254). Uma república

democrática deve estar aberta às transformações profundas pleiteadas pelos diversos grupos e,

ainda, permitir que as identidades grupais se organizem e coloquem publicamente seus pontos

de vista. Todavia, deve também estar apta para contemplar as contestações rotineiras às

decisões administrativas e judiciais. Tal ênfase dada à necessidade de uma República

responsável é de fundamental importância para o enfrentamento da apatia política e da

redução do espaço público pois, se é importante que sejam criados e cultivados espaços

públicos de contestação, também é importante que as reclamações produzam o resultado

almejado por aqueles que questionam. Assim, se de um lado é possível colocar que a maior

parcela dos cidadãos das sociedades atuais encontra-se refugiada no mundo privado e está

marcada pelas condições de apatia e falta de envolvimento com questões políticas, por outro

também é possível encontrar grupos extremamente engajados politicamente, a exemplo das

ONGs ambientalistas e do movimento que surgiu nos últimos anos contra a globalização

neoliberal. Entretanto, se as reivindicações não são atendidas, não há como se falar em

democracia.

3. A VIRTUDE CÍVICA DE RICHARD DAGGER: reformulação e cidadania ativa

Richard Dagger ao dedicar-se ao tema da recuperação do espaço público, considera

de grande importância analisar as condições e obstáculos que são colocados para o exercício

de uma cidadania ativa no local onde historicamente ela é desenvolvida – a cidade.

Analisando as cidades da atualidade, o autor encontrou três obstáculos ao exercício das

virtudes cívicas11 – o tamanho, a fragmentação geográfica e política e a mobilidade dos

11 A virtude cívica é conceituada por Dagger como uma medida de inserção dos desejos individuais na vontade comum. Dependerá, então, de ‘desejos’ dos indivíduos: que ‘desejem’ participar de uma organização cooperativa; que ‘desejem’ viver em harmonia; que ‘desejem’ aceitar o bem-comum como algo propício e benéfico para suas próprias vidas. A forma negativa do direito, a coerção, apresentar-se-ia como inibidora dos desvios que representem a ausência daquela virtude (desobediência, individualismo apenas, ausência de reciprocidade), pois quanto mais pudermos contar com as pessoas que demonstram esta virtude, menos teremos que contar com a punição, ou outras formas de coerção, para garantir a cooperação delas. A punição pode ser um mal necessário, mas a virtude cívica é um bem positivo. DAGGER. R. Civic Virtues. New York: Oxford University Press, 1997, p. 79.

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cidadãos. No tocante ao tamanho das cidades atuais, o autor enfrenta este problema fazendo

uso dos meios que o avanço tecnológico disponibiliza. Assim, para Dagger, o advento dos

meios de comunicação de massa – rádio, televisão, computadores – faz com que o tamanho da

cidade não seja um empecilho para que os cidadãos assumam suas responsabilidades políticas.

Concorda, porém, que para as pessoas realmente se conhecerem, estas precisam saber das

ações umas das outras e isso somente pode ser possível em pequenas localidades (DAGGER,

1997, p. 157), pois uma grande diferença entre as cidades-estados da Antiguidade e as

metrópoles contemporâneas, em relação ao exercício das virtudes civis, é a fragmentação que

caracteriza estas últimas. As grandes cidades vivenciam a fragmentação e a divisão da

autoridade política, a multiplicação dos limites e jurisdições e a fragmentação geográfica em

bairros, subúrbios, periferias o que ocasiona uma série de dificuldades para articulação dos

grupos e para mobilização dos mesmos em torno de um objetivo comum (DAGGER, 1997, p.

158).

Outro fator que, no entendimento do autor, torna difícil a articulação dos cidadãos é a

mobilidade que as pessoas possuem nas sociedades atuais, pois em seu entendimento ela

impede a criação de vínculos com a comunidade e atrapalha na educação das crianças. Assim

sendo, o autor considera que não se pode esperar que os cidadãos ajam no interesse da

comunidade política quando estes não se percebem como membros da comunidade o que

acaba gerando uma dificuldade extrema na criação do que ele denomina de memória civil

(DAGGER, 1997, p. 164) que consiste no reconhecimento dos eventos, características e

desenvolvimentos que marcam a história da cidade.

Entende Richard Dagger que a cidade é a responsável pela cidadania, todavia esta é a

cidade como pode ser e não como é.12 A responsabilidade que se requer para o exercício da

cidadania, segundo Richard Dagger, não se pode esperar que muitos assumam nas metrópoles

contemporâneas. Em razão disso para que as metas esperadas pelo republicanismo liberal

sejam alcançadas e para que as dificuldades acima elencadas sejam superadas, faz-se

necessário, conforme o pensamento do autor que a estrutura política das grandes cidades seja

reformulada através da descentralização. Para Dagger, portanto, urge-se necessário que as

metrópoles sejam divididas e subdivididas em distritos, e que cada um destes departamentos

12 Faz-se mister salientar que a importância das cidades no pensamento de Dagger diz respeito não apenas ao fato de estas terem raízes históricas com a cidadania mas também em razão do movimento migratório constante para os centros urbanos, o que acaba por gerar a necessidade de que o regime político de uma sociedade se volte tanto para o aspecto da cidade quanto para o da cidadania.

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seja responsável pela eleição de representantes ou delegados, para que atuem nas deliberações

públicas.

Um outro motivo apresentado por Dagger que se transforma em um dificultador do

processo de integração por ele buscado, e que acaba também por desvirtuar completamente a

virtude cívica, é a apatia política. Tal sentimento faz com que políticos constituídos enquanto

profissionais do ramo,13 e, portanto, pouco conhecedores das demandas das localidades que os

escolhem sejam eleitos. Em razão disso o representante político, passa a se tornar cada vez

mais uma figura apartada, e desconectada do espaço público. Importante salientar que com

esta crítica, Dagger não tem mente defender a democracia direta, já que inclusive, aponta à

esta diversos problemas. Sua sugestão na verdade, para solução deste impasse, é o uso de um

sistema eleitoral que adote o voto facultativo, uma vez que para ele, não havendo qualquer

imposição, o ato de votar somente seria exercido por aqueles que estariam em pleno gozo de

sua cidadania (DAGGER, 1997, p. 151).

Com isso, percebe-se que para Richard Dagger é de importância capital a

recuperação do espaço de participação política nas sociedades atuais, encontrando nesse

resgate inclusive uma forma de promover os direitos individuais e a autonomia dos

indivíduos. Contudo, sua proposta abarca a necessidade, tanto do Estado quanto dos cidadãos,

de assumirem responsabilidades. Primeiramente, no que se refere ao Estado, este deve

promover algumas medidas e mudanças para enfrentar a apatia dos cidadãos e os problemas

que dificultam o acesso aos espaços públicos de deliberação. Porém os cidadãos, por sua vez,

também precisam sair da posição de consumidores e voltarem sua atenção para as questões

relevantes de seu contexto sócio-político, em outras palavras, que possuam uma virtude cívica

que os permitam terem gosto pelo envolvimento na comunidade em busca do bem comum.

Dessa forma, se ao Estado cabe a implementação de medidas que possibilitem o retorno dos

indivíduos a res publica, dos indivíduos se espera de igual modo, que sejam capazes de

mobilizarem-se para ocupar os lugares que lhes são assegurados.

13 Esta observação está na mesma linha do entendimento do professor norte americano Bruce Ackerman. Nesse sentido, adverte que a atenção do político deve voltar-se a aprovar leis e tomar algumas poucas decisões de alta visibilidade que genuinamente requerem a atuação e a sabedoria pragmática de homens de Estado. ACKERMAN. B. The new separation of powers. In: Havard Law Review, vol. 113, n. 3, jan. 2000, p. 692.

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4. O REPUBLICANISMO DELIBERATIVO DE CASS SUNSTEIN: deliberação e

minimalismo judicial

Segundo a perspectiva deliberativa14 do republicanismo, que tem como um de seus

maiores expoentes o jurista norte americano Cass Sunstein, a república deve ser caracterizada

como um fórum de razões, que tanto informam a deliberação quanto lhe dão sentido. Ou seja,

para os autores classificados como pertencentes a esta linha do pensamento republicano, a

qualidade de uma democracia é medida por meio de uma análise conjectural da amplitude,

profundidade e universalidade do diálogo e da deliberação entre os diferentes atores sociais.

Em virtude disso, Sunstein (1997, p. 174) propõe uma leitura da constituição norteada pela

promoção da deliberação, identificando que a função primordial da lei fundamental deve ser a

criação de pré-condições para o bom funcionamento dos processos democráticos, o que

possibilita por consequência que os cidadãos se autogovernem. Ora, em outras palavras isso

quer dizer que para o professor de Harvard, o constitucionalismo não deve ser pautado por

uma preferência ilimitada pela regra da maioria – já que esta acaba por macular o princípio

básico da deliberação, qual seja: a igualdade entre os cidadãos – mas sim deve buscar

equacionar as diversas concepções de bem existentes na sociedade através de um debate

plural que envolva todos os interessados (maiorias e minorias), na busca por um consenso

entre cidadãos iguais.

Neste sentido, resta claro que para Sunstein (1997, p. 172), uma democracia só pode

ser considerada como avançada ou em bom funcionamento, quando é fundamentada no

aspecto deliberativo, já que tal característica possibilita uma valorização da cidadania, na

medida em que os resultados políticos alcançados por meio do diálogo derivam da mais ampla

participação possível dos cidadãos que compõem uma determinada comunidade. Assim,

segundo as palavras do próprio autor, uma democracia em bom funcionamento encoraja a

independência de pensamento. Promove um desejo de desafiar opiniões prevalecentes, tanto

por meio de palavras como de atos. E igualmente importante, encoraja um certo conjunto de

atitudes por parte dos que ouvem, uma atitude respeitosa para com aqueles que não

compartilham do senso comum (SUNSTEIN, 2005, p. 110).

14 Importante destacar que em linhas gerais a democracia deliberativa enfatizada por Sunstein em sua concepção republicana, postula que cada cidadão seja representado igualmente no processo de tomada de decisões políticas. Para uma maior compreensão sobre o tema ver HABERMAS. J. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. Volumes I e II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.

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Entretanto, malgrado Sunstein (1997, pp. 183-184) entenda que com a adoção da

democracia deliberativa como forma de governo, todos os cidadãos de uma mesma sociedade

se tornam legítimos intérpretes do texto constitucional – já que a constituição não é somente

aquilo que os juízes dizem que ela significa – também reconhece a necessidade de por vezes,

determinadas matérias que se encontram na pauta política da deliberação, sofrerem a

intervenção judicial com vistas a corrigir o que ele denomina de majoritarismo sem limites.

Desta forma, para o autor, a intervenção judicial, longe de realizar uma busca da resposta

certa,15 deveria apenas e tão somente preservar a liberdade de expressão e assegurar o

procedimento democrático, uma vez que um sistema no qual as maiorias sejam capazes de

limitar as opiniões daqueles que discordam não poderia ser denominado democrático em

nenhuma medida.

Segundo o professor de Harvard, esta postura assecuratória e corretiva, também

denominada de minimalista, é a que deve orientar as funções exercidas pelo poder judiciário

em uma democracia deliberativa. E para concretizar esse minimalismo, identifica o autor dois

aspectos necessários que devem guiar as ações judiciárias na solução das lides que se lhes

apresentam. O primeiro aspecto, de ordem procedimental, consiste em uma recomendação

direcionada aos juízes para que evitem a utilização de argumentos filosoficamente profundos

e controversos para a solução de casos concretos. Ou seja, os tribunais devem evitar o

máximo possível a tomada de posições sobre controvérsias morais ou políticas que não sejam

de forma alguma indispensáveis à solução do caso em particular (SUNSTEIN, 1999, p. IX).

Já o segundo se refere ao teor específico de uma constituição que uma postura minimalista

deve promover, conteúdo este que o jurista norte americano denomina de pré-condições para

o bom funcionamento de uma democracia constitucional, ou moralidade interna da

democracia, que de acordo com Sunstein seriam da ordem de quatro princípios: o princípio da

deliberação política, o da cidadania, o dos acordos, e o do compromisso com igualdade

política (SUNSTEIN, 1999, p. XI).

Sendo assim o objetivo primário das decisões judiciais, de acordo com o jurista de

Harvard, deveria ser o de dar a maior concretude possível a esses princípios que possibilitam

um amadurecimento da democracia deliberativa. Neste sentido, o primeiro princípio seria

responsável por sinalizar o fato de que os resultados políticos não devem ser reflexo de

interesses próprios de grupos privados bem organizados, mas sim devem ser produzidos a

partir de um extenso processo de deliberação e discussão, em que novas informações e

15 Aqui percebe-se cristalinamente uma critica direcionada ao célebre Juiz Hércules de Dworkin.

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perspectivas, são sempre relevantes (VERBICARO, 2007, p. 280). Já o segundo, ao exigir

uma necessária independência e segurança dos indivíduos sociais frente ao Estado, nos

permite concluir que em uma sociedade livre o governo não pode restringir a liberdade de

expressão de forma livre, uma vez que tal atitude se mostra perigosa e prejudicial à

deliberação republicana. Dessa forma, mesmo um risco significativo seria insuficiente para

justificar a censura (SUNSTEIN, 2005, pp. 97-98). O terceiro compromisso enaltece a

relevância do consenso, e busca torná-lo obrigatório, o que permite a concretização do

progresso da democracia. E o quarto e último visa proibir grandes disparidades na influência

política exercida pelos grupos sociais. Aliás, este princípio aparece com grande relevo quando

alerta-se que as maiorias políticas não podem refletir uma domínio sobre os demais grupos, já

que a base de legitimidade de toda democracia está na liberdade de expressão e na

possibilidade de convencimento pelo melhor argumento, seja ele majoritário ou minoritário.

Portanto, pode-se concluir que o republicanismo de Sunstein propõe que a

deliberação deve ser a marca fundamental para a consecução do objetivo de se alcançar um

padrão avançado de democracia. Contudo, como visto, reconhece o jurista que por vezes o

aspecto deliberativo não é suficiente para sustentar tal característica, o que determina a

necessidade de eventuais demandas serem apreciadas pelo poder judiciário que ao atuar, deve

pautar-se por uma postura minimalista, apenas corrigindo eventuais falhas do processo

democrático e deixando em aberto às questões morais e políticas fundamentais, ou seja se

abstendo de adentrar no exame de matérias ainda carentes de um acordo minimante subscrito,

pelos indivíduos que compõem uma determinada comunidade (SUNSTEIN, 1995, p. 12).

5. CONCLUSÃO

As propostas republicanas realizam não somente a defesa teórica da necessidade de

exercício das virtudes cívicas através da participação, mas também apresentam sugestões para

que o próprio espaço público seja readequado para promoção desta participação. Repensam as

instituições, bem como a interação entre os elementos sociais e políticos, como pode ser

observado nos textos de Philip Pettit e Richard Dagger, além da organização do Estado e das

cidades. Dessa forma, as concepções políticas do neorrepublicanismo configuram-se como

um modo possível de fazer frente à redução dos indivíduos das sociedades da atualidade a

meros consumidores e proporcionar seu retorno à esfera política, local por excelência onde a

deliberação, como visto em Sunstein, faz com que a democracia seja aprofundada.

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De todo o exposto, pode-se concluir que o alcance de um padrão avançado de

democracia passa necessariamente por uma dupla responsabilidade, uma dirigida aos

indivíduos que compõem o corpo social de uma determinada comunidade, e outra ao próprio

Estado. A responsabilidade direcionada aos cidadãos, exige destes um resgate do interesse de

debater questões de proveito coletivo, bem como de não aceitar as decisões tomadas que não

faça parte, fiscalizando e contestando quando possível as arbitrariedades cometidas pelo

Estado. Já no que tange a exigência feita ao poder público, este deve se comprometer a

realizar as reformas institucionais necessárias, que visem consequentemente a aplicação da

deliberação, com vistas à construção de decisões imparciais e amplamente aceitas. Claro que

diante da complexidade das relações sociais, não se pressupõe que tais alterações busquem o

atingimento de um consenso, mas sim de um resgate do fórum público, percurso

indispensável ao alcance de um padrão avançado de democracia.

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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PRINCÍPIO DA PARTICIPAÇÃO, CONSENSUALISMO E AUDIÊNCIAS PÚBLICAS

PRINCIPLE OF PARTICIPATION, CONSENSUALISM AND PUBLIC HEARINGS

Janaína Rigo Santin**

Vinícius Francisco Toazza* RESUMO: O presente artigo apresenta um estudo da participação do cidadão na Administração Pública Brasileira, a qual assumiu maior importância com o advento da Constituição Federal de 1988 que traz, implicitamente, em seu preâmbulo e também no artigo 1º, parágrafo único, a positivação do princípio da participação. Nesse contexto, as Audiências Públicas são uma forma de os indivíduos participarem ativamente das decisões jurídico-políticas estatais, legitimando as decisões da Administração Pública. Consequentemente, a democracia não se torna apenas uma técnica formal de escolha periódica, mas um método de ampla participação dos indivíduos nas decisões futuras de seus governantes. Logo, pretende-se demonstrar o princípio da participação na atividade consensual do Estado, tendo como ideal descentralizar a forma de tomada das decisões por parte da Administração Pública e possibilitar o acesso do cidadão ao processo de formação das tutelas jurídico-políticas. Para tal fim, o artigo analisa o instituto da Audiência Pública. PALAVRAS-CHAVE: Princípio da Participação; Audiência Pública; Consensualismo. ABSTRACT: This paper presents a study of citizen participation in Brazilian public administration, which has assumed greater importance with the advent of the 1988 Constitution, which provides, implicitly, in its preamble and also in Article 1, single paragraph, regulates the principle of participation. In this context, public hearings are a way for individuals to participate actively in making legal and political decision of the state, legitimizing the decisions of the Public Administration. Consequently, democracy becomes not just a periodic formal technique of choice, but a method of broad participation of individuals in the future decisions of their rulers. Therefore, the article intends to explore the principle of consensual participation in the activity of the State, having as an ideal the descentralization of the decision that are made by the Public Administration and enable citizen access to the process of formation of legal and political tutelage. To this end, the article analyzes the Institute of Public Hearing. KEYWORDS: Principle of Participation; Public Hearing; Consensualism. INTRODUÇÃO

No Estado Democrático de Direito, os valores democráticos irradiam-se sobre o

ordenamento jurídico e sobre as atividades estatais, afirmados pelos métodos de participação

cidadã presentes na Constituição Federal da República Brasileira de 1988, que garantem

intervenção direta ou indireta da sociedade civil na Administração Pública.

                                                            ** Pós-doutora pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (Bolsa CAPES). Doutora em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Advogada e professora da Faculdade de Direito e do Mestrado em História da Universidade de Passo Fundo. Integrante do grupo de pesquisa no Constituição e Política, na linha de pesquisa: Executivo e Políticas Públicas. E-mail: [email protected]. * Graduando da Faculdade de Direito da Universidade de Passo Fundo e bolsista de iniciação científica da FAPERGS.

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Compreende-se como participação indireta a escolha periódica de representantes para

ocupar cargos eletivos na função pública estatal e como direta a participação ativa dos

cidadãos na tomada de decisões por meio dos vários institutos validados pela soberania

popular.

Nesse sentido, a administração consensual traz um novo paradigma no campo político

de definição da tomada de decisões por parte dos governantes, criando-se espaços plurais de

penetração da sociedade civil nos mecanismos de formação das tutelas jurídico-políticas, a

fim de que os cidadãos possam participar, individual ou coletivamente, das tomadas de

decisões que afetam a vida da coletividade. Trata-se da administração consensual, que visa,

como principal mecanismo participativo, à audiência dos interessados.

Entretanto, a decisão final é do Poder Público, que ficará o mais próximo possível da

síntese extraída do interesse da coletividade, devido à pressão social e ao Controle Social, que

representa outra forma de participação.

Assim, o presente artigo analisa o instituto da audiência pública como uma forma de

participação da sociedade civil na Administração Pública, utilizando o consensualismo como

uma prática de interação entre o administrado e o administrador para a realização do bem

comum, mediante uma decisão coesa e com maior aceitação, já que a sociedade contribuiu

diretamente para tal.

1 DEMOCRACIA, PARTICIPAÇÃO E SOCIEDADE CIVIL

Nesse século, a concepção de democracia é uma questão fundamental para todos

aqueles que se interessam pela construção de uma sociedade livre e justa, baseada numa

definição quantitativa. A expressão democracia significa o "governo da maioria", ou o

"governo do povo" (ROSENFIELD, 1994, p. 7), ou seja, o conhecido "governo do povo, pelo

povo e para o povo" (BONAVIDES, 1995, p. 204).

A democracia, que tem origem grega, iniciou-se com a aglomeração do povo em

espaços denominados “ágoras” ou “praças públicas”, onde efetivamente ocorriam as reuniões

e os encontros. A finalidade era discutir e promover ações políticas que tratavam de

interesses da coletividade, por meio das divergências de ideias, as quais se legitimavam pelo

voto (ROSENFIELD, 1994, p. 8) No mesmo sentido, ALENCAR (1868, p. 36) salienta que

"A praça representa o grande recinto da nação [...] Ali discutiam-se todas as questões do

Estado [...]".

Atualmente, a democracia é o regime pelo qual o poder político ampara-se na

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soberania popular, ou seja, os representantes são eleitos mediante sufrágio universal

(BONAVIDES, 1995, p. 126). Logo, o Brasil adotou o regime de governo democrático,

previsto na Constituição Federal em seu artigo 1º, caput. Também o artigo 60, §4º, II,

resguarda o voto direto, secreto, universal e periódico como cláusula pétrea, como “princípio

[que] se refere à forma de governo adotada pelo Estado, seja republicano ou monárquico” a

fim de que se “reconheça a origem do poder no povo”, na soberania popular, pois constitui-se

na parcela dos membros da sociedade aptos a demonstrar a sua vontade política geral

(MOREIRA NETTO, 2006, p. 272-273).

Carole Pateman aborda democracia como sendo um método político, uma determinada

espécie de disposição institucional para se atingirem decisões políticas, as quais realizam o

bem comum. O próprio povo decide questões por meio de pessoas eleitas, as quais, reunidas

em assembleia, executarão a vontade deste povo (PATEMAN, 1992, p.12-29).

Faz-se necessária a distinção entre democracia direta e indireta. A primeira é tida

como a expressão da vontade do povo por voto direto em cada assunto particular, mas, “num

mundo dominado pela amortização social e política e pela ausência de verdadeiros valores

coletivos, é considerada como inviável historicamente”. Já a segunda, também denominada

representativa, “é a assimilada ao governo de instituições duráveis e de leis igualmente

reconhecidas por todos”, consistindo em tornar possível um grupo de cidadão da sociedade

isoladamente, dedique-se às tarefas da representatividade política e da gestão (ROSENFIELD,

1994, p. 50-70). Por fim, salienta-se a existência da democracia mista, opção do Constituinte

de 1988, a qual procura mesclar o instituto da representação com formas diretas de

participação da população no processo de tomada das decisões jurídico-políticas como, por

exemplo, os institutos presentes no artigo 14 da Constituição Federal de 1988 e as audiências

públicas.

Inicialmente, a participação pode ser entendida num sentido semântico como “uma

forma ativa de integração de um indivíduo a um grupo” (MOREIRA NETTO, 1992, p. 18), ou

seja, a acepção significa fazer parte, tomar parte ou ser parte (BORDENAVE, 1995, p. 22)

“de um ato ou processo, de uma atividade pública, de ações coletivas”, e que no fim permita

chegar a “um consenso traduzível em decisões no sistema político” (TEIXEIRA, 2002, p. 27).

Já na definição juspolítica, a participação consiste na “ação dos indivíduos e dos grupos

sociais secundários nos processos decisórios do Estado ou de seus delegados” (MOREIRA

NETTO, 2001, p. 12).

Além disso, “a participação objetiva o fortalecimento da sociedade civil, não para que

esta participe da vida do Estado, mas para fortalecê-la e evitar as ingerências do Estado”

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(GOHN, 2001, p. 15). Com isso, a sociedade civil atua de modo a auxiliar nas decisões para a

realização de interesses gerais (MOREIRA NETTO, 2001, p. 20). Ainda nessa mesma linha

de pensamento, John Randolph Lucas (1985, c1975, p. 112) assinala que “a participação não

só ajuda as pessoas a interpretarem o fenômeno do governo como uma forma de ação, e não

um mero tipo de acontecimento, mas leva-as a criticar a partir do ponto de vista de agentes, e

não de espectadores”.

E isso somente será possível quando ocorrer “a participação como um processo, que

significa perceber a interação contínua entre os diversos atores que são ‘partes’, o Estado,

outras instituições políticas e a própria sociedade” (TEIXEIRA, 2002, p. 27-28). Logo, “o

início de processos participativos está na capacidade de organização da sociedade civil,

porque somente assim [essa] adquire vez e voz” (DEMO, 1993, p. 32). Da mesma forma,

Teixeira entende que a “participação cidadã [é o] processo complexo e contraditório entre

sociedade civil, Estado e mercado, em que os papéis se redefinem pelo fortalecimento dessa

sociedade civil mediante a atuação organizada dos indivíduos, grupos e associações”

(TEIXEIRA, 2002, p. 30).

A participação da sociedade civil no exercício do poder concretiza-se na esfera

pública, com vistas a influenciar nas atividades estatais. Não se resume aos mecanismos

institucionais nem tampouco almeja o exercício do poder, mas, por estar sustentada na

sociedade civil, interage com a sociedade política de modo a resguardar os interesses da

coletividade (TEIXEIRA, 2002, p. 31). A partir desse entendimento, deduz-se que a

participação só será plena1 quando:

[...] busca aperfeiçoá-lo [o sistema representativo], exigindo a responsabilização política e jurídica dos mandatários, o controle social e a transparência das decisões (prestação de contas, recall), tornando mais frequentes e eficazes certos instrumentos de participação semidireta, tais como plebiscito, referendo, iniciativa popular de projeto de lei, democratização dos partidos [e audiências públicas] (TEIXEIRA, 2002, p. 30-31).

Sendo assim, a participação considera dois elementos na dinâmica política:

inicialmente o “fazer parte ou tomar parte, no processo político social, por indivíduos, grupos,

organizações que expressam interesses, identidades, valores, que poderiam se situar no campo

do particular, mas atuando num espaço de heterogeneidade, diversidade, pluralidade”; e

                                                            1 Entende que “La participación se da en una forma perfecta en una democracia perfecta; es decir, la democracia perfecta es una forma integral de participación directa, en la cual todo el mundo se reúne, discute todos los asuntos públicos, vota entre todo el Pueblo y decide. Esa es la participación directa, total y absoluta, es la llamada democracia perfecta” (GORDILLO, 1973, p. 170).

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posteriormente, a “cidadania, no sentido cívico, enfatizando as dimensões de universalidade,

generalidade, igualdade de direitos, responsabilidades e deveres” (TEIXEIRA, 2002, p. 32).

Além disso, deve-se ter em vista que:

A ideia tradicional de participação política, a princípio adstrita à atividade legislativa e à escolha de representantes, evoluía para uma concepção mais ampla, abrangendo todas as atividades do Estado, desdobrando as hipóteses de provocação de controle do Judiciário e, principalmente, multiplicando-se em inovadoras modalidades de participação administrativa. (MOREIRA NETO, 1992, p. 16).

Pateman entende que a participação “é fundamental para o estabelecimento e

manutenção do Estado democrático, Estado esse considerado não apenas como um conjunto

de instituições representativas, mas aquilo que denomina de sociedade participativa”. E,

segundo Rousseau, “a participação acontece na tomada de decisões [e posteriormente se]

constitui, como nas teorias do governo representativo, um modo de proteger os interesses

privados e de assegurar um bom governo”. Ademais, a autora refere-se à participação como

método educativo e, como “resultado de sua participação na tomada de decisões, o indivíduo

é ensinado a distinguir entre seus próprios impulsos e desejos, aprendendo ser tanto um

cidadão público quanto privado”. Com isso, o indivíduo não sente nenhum conflito entre as

esferas públicas e privadas (PATEMAN, 1992, p. 33-39).

E o exercício democrático da participação cidadã tem como desígnio o Estado e a

própria sociedade. Assim, a sociedade civil compreende-se como um “uma rede de

associações autônomas, com interesses comuns, que devem exercer um controle sobre o

Estado, utilizando-se, para isso, de meios não só institucionais como não convencionais”.

Torna-se, assim, constituída de movimentos, organizações e associações, dotada de

conturbações sociais que trazem reflexos no campo dos particulares, de forma concisa,

comunicando-se com a camada política (TEIXEIRA, 2002, p. 41-43).

Entretanto as possibilidades de atuação da sociedade civil são limitadas, pois não ela

possui, via de regra, poder de decidir de forma deliberativa, mas tão somente “de tematizar os

problemas, questionar atos e decisões, propor alternativas, portanto, influências no processo

de tomada de decisão”. Desse modo, a representação política torna-se uma refração dos

interesses e anseios da sociedade, por meio de instrumentos da própria sociedade civil, como

espaços públicos e ações coletivas, fazendo com que a participação efetive-se em relação aos

representantes políticos (TEIXEIRA, 2002, p. 44-45).

Pode ocorrer, também, a alienação dos cidadãos frente à coisa pública, fenômeno que

se configura como apatia política, uma forma negativa da participação democrática, já que os

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cidadãos retiram-se da esfera pública e se preocupam apenas com seus interesses privados. E,

com isso, os titulares dos mandatos sentem-se no direito de atuar pela coletividade e em nome

dela, mas sem, necessariamente, fazer refletir em suas decisões o interesse público

(ROSENFIELD, 1994, p. 72-79). Logo, “a apatia política e a inércia dos cidadãos diante dos

assuntos políticos tornam-se um problema estrutural da democracia moderna”, o que acaba

com o significado coletivo da ação política e toma o feitio de um ‘negócio’ individual

(ROSENFIELD, 1994, p. 75).

Então, percebe-se que a participação está estreitamente ligada à democracia, pois é por

meio dela que se possibilita a democratização da tomada de decisões, as quais afetarão as

vidas dos cidadãos, além de esses influenciarem nas escolhas dos representantes, já que é pela

vontade do povo que se valida o processo participativo democrático. A participação é a forma

ativa e positiva de os cidadãos garantirem a legitimidade no ciclo do poder. O oposto – a

apatia e o desinteresse político –, configura-se pela negativa dos cidadãos de participarem da

dimensão decisória.

Cabe ressaltar, também, que o envolvimento dos cidadãos no processo participativo é

fundamental para que ocorra a consensualidade, isto é, uma decisão tomada do modo mais

unificado possível, com o apoio e o consentimento de grande parte da sociedade civil, já que

trará consequências para a vida de todos os cidadãos de determinado Estado e, por isso,

necessita de legitimação.

2 PODER LOCAL, GOVERNAÇÃO E CONTROLE SOCIAL

O poder local é o espaço de abrangência no qual o governo exerce sua governação e,

em contrapartida, o povo faz o controle social, por meio da participação no processo de

formação das tutelas jurídico-políticas, ou seja, “a possibilidade de os cidadãos definirem

critérios e parâmetros para orientar a ação pública”. Há a integração da sociedade com a

administração pública, tendo como desígnio resolver problemas e necessidades sociais com

maior eficiência (TEIXEIRA, 2002, p. 38).

Desse modo, o poder local, como destaca Luciane da Costa Moás, apresenta uma

conotação concreta e também abstrata, já que se identifica como o espaço pelo qual se

“denota posição estática”, e abstratamente, “onde se desenvolvem as mais diversas relações

sociais, sejam elas de cooperação, competição ou conflito” (MOÁS, 2002, p. 30-31).

Ao se fragmentar local e poder, tem-se o primeiro como sendo “onde reside a

capacidade para um grande número de pessoas serem ativamente implicadas na política”, uma

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vez que a “política local e a necessidade da democracia local podem ser justificadas pelo fato

de que só as instituições locais têm a capacidade, interesse e conhecimento detalhado para

acompanhar serviços e tomar decisões em sintonia com as condições locais”. Além disso,

cada localidade tem necessidades diversificadas, mas, por meio da democracia local, podem-

se combater as desigualdades (MOTA, 2005, p. 33). Assim, “o local não pode ser entendido

apenas como espaço físico, pois que o aspecto social também necessita ser situado” (MOÁS,

2002, p. 31). Já o segundo – o poder – define-se como “a energia que move os homens e as

sociedades para a realização de seus objetivos” (MOREIRA NETO, 2006, p. 3).

Entretanto, o poder local é mais abrangente que o governo local, pois “penetra no

interior do governo local e interfere nas políticas públicas locais”, além de ser visto, após os

anos 1990, “como sede político-administrativa do governo municipal, mais especificadamente

de suas sedes urbanas – as cidades, e [...] pelas novas formas de participação e organização

popular, como formas de mudanças sociais”.

Maria Gohn ressalta que por poder local se entende a “força social organizada como

forma de participação da população, na direção do que tem sido denominado empowerment

ou empoderamento da comunidade” que nada mais é do que a “capacidade de gerar processos

de desenvolvimento auto-sustentável com a mediação de agentes externos” (GOHN, 2001, p.

34).

O instrumento básico do poder local é a participação comunitária, que tem valor

fundamental, não como um “remédio para todos os males”, mas como mecanismo

complementar de outras transformações. Por meio dele, ocorre a “descentralização, do

planejamento municipal, dos diversos sistemas de participação das comunidades nas decisões

do espaço de vida do cidadão, e que dão corpo ao chamado poder local” – entendido como um

“sistema organizado de consensos da sociedade civil num espaço limitado”. Tudo isso tem

como consequência mudanças no “sistema de organização da informação” (DAWBOR, 1994,

p. 48-74).

Ademais, o poder local é “uma parcela do poder central, dado que o Estado, como

estrutura política, pressupõe o relacionamento, a interdependência entre governantes e

governados na qual o espaço local está inserido”. Mas, muitas vezes, o local posiciona-se de

forma contrária ao poder central, e, mesmo assim, não se pode descurar deste, pois estão

correlacionados (MOÁS, 2002, p. 33).

E, nesse sentido, a governação é o ato, o efeito ou o modo de governar independente.

Segundo a teoria da governação social e política, elencada por Arlindo Mota, ela “não se

limita à interacção entre governo e sociedade, mas ao introduzir o conceito de

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governabilidade coloca a governação em termos de um efectivo e legítimo ajustamento às

necessidades do governo”, além disso, a governação “como modo alternativo de coordenar

atividades colectivas, é o efeito de mudanças sociais profundas” (MOTA, 2005, p. 45-46).

No entendimento de Gohn (2001, p. 37-44), a ação pública estatal não está restrita aos

órgãos e instituições estatais, mas incorpora, mediante uma multiplicidade de interações, a

relação entre sociedade civil e sociedade política. Assim, a governança traz a ideia de que a

capacidade de governar não está atrelada ao aparato institucional, mas sim a uma coalizão

entre os diversos atores sociais, devido a fatores como a influência mútua dos que atuam na

sociedade, as diretrizes ideológicas e as soluções oferecidas. Logo, a governança local

consiste em uma “gestão democrática compartilhada” entre a sociedade civil e os agentes

públicos, incumbindo ao Estado mais o papel de coordenar do que ter “funções de produção

direta de bem-estar, o controle da vinculação da obtenção de recursos a destinações

específicas por via dos mecanismos da democracia representativa”. Isso acaba por gerar a

precisão de métodos da democracia participativa e, assim, os atores são abrangidos em uma

“teia de discussões” sobre as soluções de dificuldades geradas pela falta de recursos públicos.

Com essa interação da sociedade civil e do Estado, cria-se um palco de teste

institucional, misturando a democracia direta com a representativa, o que caracteriza o

sistema da democracia deliberativa. Nesse sistema, privilegia-se a participação ativa dos

indivíduos na gestão pública, integrando o processo de busca do consenso mediante

discussões interativas pela técnica de participação na criação de políticas públicas (GOHN,

2001, p. 42-45).

Como aduz Maria Helena de Castro Santos, a governança “não se restringe, contudo,

aos aspectos gerenciais e administrativos do Estado, tampouco ao funcionamento eficaz do

aparelho de Estado”, mas se refere a “padrões de articulação e cooperação entre atores sociais

e políticos e arranjos institucionais que coordenam e regulam transações dentro e através das

fronteiras do sistema econômico”. Vai além de incluir “mecanismos tradicionais de agregação

e articulação de interesses”, o que faz com que toda a sociedade esteja englobada (SANTOS,

1997, p. 341-342).

Aliás, a governança é um feito mais vasto que o governo, pois envolve as instituições

governamentais, insinuando “os mecanismos formais, de caráter não-governamental, que

fazem com que as pessoas e as organizações dentro da sua área de atuação tenham uma

conduta determinada” e sendo assim, atendam os interesses e concretizem as exigências

(ROSENAU, 2000, p 15-16).

Já que a sociedade exerce o controle social do Estado que é um instrumento

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democrático de participação dos cidadãos para exercer o domínio sobre os governantes e o

aparato administrativo, de modo que as pessoas “possam tomar e executar decisões de

interesse geral da sociedade e que, por isso, todo tipo de participação nesse processo

interativo será importante para a vida de todos e de cada um” (MOREIRA NETO, 2006, p.

50).

Desse modo, há duas dimensões básicas da capacidade de controle social: a primeira

correspondendo ao “controle que efetivamente caiba a setores da sociedade diretamente sobre

os serviços públicos, sejam eles desempenhados por empresas privadas ou pelo próprio

Estado”, e a segunda em relação ao “poder de que desfrute da sociedade para interferir nas

decisões estatais a respeito dos órgãos reguladores, na sua composição e modelagem”

(AGUILLAR, 1999, p. 248).

Aborda-se, assim, uma perspectiva ampliada da soberania popular, já que os cidadãos

exercem o poder controlando os mandatos dos governantes de forma constante e não apenas

quando elegem seus representantes nas eleições. Tal perspectiva abrange “a correção dos

desvios e a responsabilização dos agentes políticos”. Entretanto, seu exercício “requer a

organização da sociedade civil, sua estruturação e capacitação para este fim”, nos mais

variados ambientes públicos, “tendo como parâmetros não apenas variáveis técnicas, mas

também exigências de equidade social e aspectos normativos”, para que as ações estatais

sejam fundamentadas na transparência e visibilidade (TEIXEIRA, 2002, p. 39-40).

Contudo, a governação ou governança pode ser um método pelo qual os cidadãos e as

instituições, públicas e privadas, resolvem seus problemas, utilizando acordos que satisfaçam

os interesses coletivos sem desprezar a busca por resultados eficazes, obtidos mediante a

participação cidadã relacionados com a ação do Estado. Logo, governança corresponde a uma

ação conjunta do Estado e da sociedade civil, com a finalidade de atingir resultados e soluções

que melhor atendam às necessidades comuns.

Já que se raciocina que poder local é a composição de forças, ações e demonstrações

organizativas em nível comunitário, municipal ou regional, que colaboram para atender às

necessidades, aos interesses e aos anseios dos cidadãos locais, melhorando suas qualidades de

vida econômicas, sociais, culturais, políticas etc. E, tendo como fundamento a participação

plena e o “empoderamento”, constitui-se numa democracia participativa, plural, capaz de

gerar relações de poder mais simétricas e igualitárias. E, assim, o controle social funciona

como uma influência sobre o Estado, em que a vontade pública, por meio da participação,

torna-se mais evidente e mais eficiente.

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3 O PRINCÍPIO DA PARTICIPAÇÃO E O CONSENSUALISMO

O princípio da participação foi inserido de forma implícita na Constituição Federal de

1988, na categoria dos princípios2 fundamentais e, por isso, tem suma importância, norteando

todo o ordenamento jurídico vigente, especialmente o Direito Administrativo (MOREIRA

NETO, 2006, p. 272).

Além disso, em razão de o Estado brasileiro constituir-se em um Estado Democrático

de Direito, há a irradiação dos valores democráticos por todo o sistema. Como prevê o artigo

1º da Constituição Federal, em seu parágrafo único, a emanação do poder político soberano

do povo pode-se dar por meio indireto (representação) ou direto (pela participação). O poder

direto é disciplinado no artigo 14 da Constituição Federal nos institutos do plebiscito –

quando o povo é chamado a decidir por meio de votações sobre mudanças a serem

introduzidas nas instituições estatais (I), do referendo – quando se submete à apreciação do

povo as decisões de seus representantes (II) e da iniciativa popular – quando o povo pleiteia

coletivamente seus interesses perante seus representantes (III).

Com isso, aumenta o incentivo de participação dos cidadãos nas “decisões coletivas”,

dentre as quais as que estão relacionadas com “seus interesses políticos e, especialmente,

administrativos”, o que amplia o termo “cidadania e da responsabilidade pela coisa comum”

(MOREIRA NETO, 2006, p. 273).

Além do mais, o princípio da participação, que se designa tout court de participação,

abrange todas as formas de ação do Estado: legislativas, judiciais e também administrativas

(MOREIRA NETO, 2001, p. 21), considerando essa última a abertura para os cidadãos

adentrarem na Administração Pública e contribuírem nas tomadas de decisões do Estado

(MOREIRA NETO, 2006, p. 66). Pela participação é que se possibilita que a Administração

Pública decida conforme os interesses dos seus cidadãos (MOREIRA NETO, 1992, p. 35).

É pela participação administrativa que os administrados se introduzem mais

minuciosamente nas decisões do Poder Executivo, porque esse busca ajustar-se com os

interesses que legitimam seu poder. Ou seja, a participação “visa principalmente à

legitimidade dos atos da Administração Pública, embora, incidentemente, possa servir a seu

controle de legalidade”.

                                                            2 Sobre a evolução dos princípios: “No jusnaturalismo, os princípios eram considerados meras exortações de cunho moral ou político, sendo inaplicáveis imediatamente a um caso concreto, pois careciam de normatividade. Já no positivismo, os princípios foram codificados, porém, eram aplicados como fontes subsidiárias às demais normas, por isso, inferiores. Finalmente, no pós-positivismo, os princípios foram constitucionalizados, e adquiriram caráter supremo, tornando-se um elemento integrador do ordenamento jurídico, que tem como tarefa conferir a este harmonia e unidade” (MARCANTE; TOAZZA, 2010, p. 40-51).

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Ademais, a participação apresenta-se em quatro “graus de intensidade participativa do

administrado”: a informativa, a executiva, a consultiva e a decisiva. A primeira é o “mínimo

que o Estado de Direito deve garantir” aos cidadãos, pois, “trata-se, apenas de dar e de tomar

conhecimento: quais as decisões que estão sendo tomadas e por quais motivos”. A segunda

passa desde uma “informação, (...) colaboração, até delegações de execução de toda

natureza”. Já a terceira configura-se na oitiva dos indivíduos, obrigada ou facultada por lei, na

qual estão compreendidas as audiências públicas, debates públicos e etc. E, finalmente, a que

compreende maior expressão, e é somente instituída por lei, apresenta-se “desde a simples

provocação da Administração, para que leve a tomar uma decisão, até a co-decisão, pelo voto

ou pelo veto, seja em audiências públicas, seja em colegiados deliberativos ou (...) outros”

(MOREIRA NETO, 1992, p. 76-90).

Ainda, o princípio da participação aparece explicitamente em algumas constituições

estaduais, como o caso do Estado do Rio Grande do Sul, cuja Constituição promulgada em 3

de outubro de 1989, positiva-o em seu artigo 193.

Evidencia-se, assim, a importância desse princípio, já que os indivíduos participam

muito mais debatendo do que simplesmente ouvindo como espectadores. As decisões, sendo

coletivas, tornam a sociedade mais “unida e coesa”, pois representam a vontade dos

indivíduos e dão legitimidade aos atos dos governantes, já que têm maior aceitação (LUCAS,

1985, p. 108-113). Devido a essa tomada coletiva de decisões, tanto pelos cidadãos quanto

pelo Estado, nasce o governo por consenso4. E esse é o “elemento coadjuvante da formação

da vontade administrativa” o qual, por meio dos mais variados instrumentos de participação

popular (a coleta de opiniões, o debate público, a audiência pública e a assessoria externa), a

Administração Pública nutre o diálogo com os administrados, a fim de realizar as negociações

de interesses. Porém, a lei assegura a decisão final à Administração, que necessita ser

justificada conforme as sugestões levantadas na audiência dos interessados e acaso sejam

rejeitadas estas opiniões, devem ser motivadas (MOREIRA NETO, 2006, p. 62-73).

O aumento significativo da participação na Administração Pública vem conjecturar o

interesse dos cidadãos em contribuir com a sociedade, instituindo um ambiente comum

(consensualidade) entre o público e o privado, no qual será representada a vontade, os

                                                            3 Art. 19. A administração pública, direta e indireta de qualquer dos Poderes do Estado e dos municípios, visando à promoção do bem público e à preservação de serviços à comunidade e aos indivíduos que a compõe, observará os princípios da legalidade, da moralidade, da impessoalidade, da publicidade, da legitimidade, da participação, da razoabilidade, da economicidade, da motivação e o seguinte: (...) III - a administração pública será organizada de modo a aproximar os serviços disponíveis de seus beneficiários ou destinatários; (...). 4 O entendimento de consenso “no sentido sociológico é a coincidência de propósitos e no sentido jurídico (...) é a coincidência na manifestação da vontade” (MOREIRA NETO, 2006, p. 316).

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interesses e os anseios de toda a sociedade (MOREIRA NETO, 2006, p. 330-331). E é por

meio da participação que a consensualidade está alterando o desempenho estatal, seja na

administração, na jurisdição ou na legislação. Entretanto, é no espaço da Administração

Pública que o consenso está-se mostrando mais receptivo e diversificado como processo de

decisão ou de operação, demonstrando sua importância (MOREIRA NETO, 2001, p. 42).

Esse valor da consensualidade na Administração Pública verifica-se no fragmento:

A atividade de consenso-negociação entre Poder Público e particulares, mesmo informal, passa a assumir papel importante no processo de identificação de interesses públicos e privados, tutelados pela Administração. Esta não mais detém exclusividade no estabelecimento do interesse público; a discricionalidade se reduz, atenua-se a prática de imposição unilateral e autoritária de decisões. A Administração volta-se para a coletividade, passando a conhecer melhor os problemas e aspirações da sociedade. A Administração passa a ter atividade de mediação para dirimir e compor conflitos de interesses entre várias partes ou entes e a Administração. Daí decorre um novo modo de agir, não mais centrado sobre o ato como instrumento exclusivo de definição e atendimento do interesse público, mas como atividade aberta à colaboração dos indivíduos. Passa a ter relevo o momento do consenso e da participação (MEDAUAR, 2003, p. 211).

Logo, o Estado, por meio da consensualidade, ultrapassa a incitação do exercício de

atividades particulares de importância pública, para a resolução privada dos interesses

coletivos, tornando mais eficazes as formas de contraprestação dos serviços públicos

(MOREIRA NETO, 2003, p. 153). Com isso, nota-se que

A participação e a consensualidade tornaram-se decisivas para as democracias contemporâneas, pois contribuem para aprimorar a governabilidade (eficiência); propiciam mais freios contra o abuso (legalidade); garantem a atenção a todos os interesses (justiça); proporcionam decisão mais sábia e prudente (legitimidade); desenvolvem a responsabilidade das pessoas (civismo); e tornam os comandos estatais mais aceitáveis e facilmente obedecidos (ordem) (MOREIRA NETO, 2001, p. 41).

O consenso na tomada de decisões administrativas está refletido em alguns institutos

jurídicos: plebiscito, referendo, coleta de informações, ouvidor do povo, debate público,

assessoria externa ou pelo instituto da audiência pública. Salienta-se: a decisão final é do

Poder Público; entretanto, ele deverá orientar sua decisão o mais próximo possível em relação

à síntese extraída na audiência do interesse público. Nota-se que ocorre a ampliação da

“participação dos interessados na decisão”, o que poderá gerar tanto uma “atuação

coadjuvante” como uma “atuação determinante por parte de interessados regularmente

habilitados à participação” (MOREIRA NETO, 2006, p. 337-338).

Portanto, o princípio constitucional da participação é o precursor da inserção dos

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indivíduos na Administração Pública, bem como uma forma de controle social, pois, pelos

institutos participativos e consensuais, dentre eles o da audiência pública, a sociedade civil

possibilita que as decisões estatais estejam mais afinadas aos interesses dos cidadãos

participantes, aumentando, com isso, a sua legitimidade.

4 AUDIÊNCIAS PÚBLICAS

No Estado Democrático de Direito, a audiência pública é uma das formas de

participação e de controle na Administração Pública realizada por seus governados, pois é por

meio dela que o indivíduo exerce a cidadania e compartilha a troca de informações com o

administrador.

A audiência pública consiste no “mecanismo pelo qual o cidadão participa da tomada

de decisões de gestão da coisa pública; por meio dela, busca-se envolver os destinatários de

uma decisão governamental no próprio processo decisório”. Além disso, ela “não só tem

servido como resposta aos reclamos dos cidadãos como também permitem que as autoridades

melhorem a qualidade da gestão pública”, pois, a pressão exercida nos administradores

impulsiona-lhes a decidir mais aproximadamente em relação aos interesses dos indivíduos

(MAZZILLI, 1999, p. 325-326). Ainda Mazzilli (1999, p. 327) refere que as audiências

públicas mostram-se como formas competentes de equacionar os problemas atrelados a

interesses difusos e coletivos, como, por exemplo, os relativos ao meio ambiente e ao

consumidor. Além disso, demonstram ser competentes no conteúdo de serviços públicos, já

que se oportuniza uma discussão maior sobre a forma de execução da Administração Pública,

uma vez que fica condicionada à apreciação da coletividade.

Nesse contexto, “parte-se do direito do indivíduo ser ouvido em matéria na qual esteja

em jogo seu interesse, seja concreto ou abstrato (right to a fair hearing), tido como princípio

impostergável da ordem jurídica”, verificando a necessidade da participação cidadã no que se

refere a determinações que irão afetar suas vidas. Desse modo, a audiência pública é um

instrumento de participação administrativa pelo qual se oportuniza aos indivíduos e à

sociedade civil o exercício do seu direito de expor tendências, preferências e opiniões que

possam induzir o Poder Público a uma decisão de maior aceitação consensual, já que se

preconiza a legitimidade da ação administrativa (MOREIRA NETTO, 1992, p. 128-129).

As audiências públicas proporcionam uma “abertura do processo administrativo” aos

cidadãos, desenvolvendo instrumentos da administração consensual, o que apresenta várias

vantagens se comparadas às “práticas tradicionais, predominantemente unilaterais e

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inquisitoriais, quando não autoritárias, capitalizando para os governantes que delas se vale

respeito e popularidade”. A audiência pública agrega vantagens ao processo de formação das

tutelas jurídico-políticas, eis que “evidencia sua intenção de produzir a melhor decisão;

galvaniza o consenso em reforço da decisão que vier a ser tomada; manifesta o cuidado com a

transparência dos processos administrativos; renova permanentemente o diálogo entre agentes

eleitos e seus eleitores” (MOREIRA NETTO, 2001, p. 211).

No Direito Comparado, vale analisar o princípio da audiência pública, que consta no

direito argentino, pois tem sede constitucional e é fartamente prestigiado. O artigo 63 da

Constituição da Cidade Autônoma de Buenos Aires já o privilegia:

ARTÍCULO 63.- La Legislatura, el Poder Ejecutivo o las Comunas pueden convocar a audiencia pública para debatir asuntos de interés general de la ciudad o zonal, la que debe realizarse con la presencia inexcusable de los funcionarios competentes. La convocatoria es obligatoria cuando la iniciativa cuente con la firma del medio por ciento del electorado de la Ciudad o zona en cuestión. También es obligatoria antes del tratamiento legislativo de proyectos de normas de edificación, planeamiento urbano, emplazamientos industriales o comerciales, o ante modificaciones de uso o dominio de bienes públicos. 5

Mas, também, verifica-se que as audiências públicas vêm detalhadamente positivadas

no dispositivo da Lei nº 6, ditada pela Legislatura da Cidade de Buenos Aires em 05/3/1998,

destacando a importância dos cidadãos na contribuição para com a Administração Pública,

como se visualiza no presente objeto e nas finalidade dos cinco primeiros artigos:

Artículo 1º - La presente Ley regula el Instituto de Audiencia Pública. La Audiencia Pública constituye una instancia de participación en el proceso de toma de decisión administrativa o legislativa en el cual la autoridad responsable de la misma habilita un espacio institucional para que todos aquellos que puedan verse afectado o tengan un interés particular expresen su opinión respecto de ella. El objetivo de esta instancia es que la autoridad responsable de tomar la decisión acceda a las distintas opiniones sobre el tema en forma simultánea y en pie de igualdad a través del contacto directo con los interesados. Art. 2º - Las opiniones recogidas durante la Audiencia Pública son de carácter consultivo y no vinculante. Luego de finalizada la Audiencia, la autoridad responsable de la decisión debe explicitar, en los fundamentos del acto administrativo o normativo que se sancione, de qué manera ha tomado en cuenta las opiniones de la ciudadanía y, en su caso, las razones por las cuales las desestima. Art. 3° - La omisión de la convocatoria a la Audiencia Pública, cuando ésta sea un imperativo legal, o su no realización por causa imputable al órgano convocante es causal de nulidad del acto que se produzca en consecuencia, quedando abierta la

                                                            5 Tradução para o português: “ARTIGO 63 - O Poder Legislativo, o Poder Executivo ou as comunidades podem convocar uma audiência pública para discutir assuntos de interesse geral da cidade ou zona, e que deve ser realizada na presença inescusavel de funcionários competentes. A convocação é obrigatória quando a iniciativa tem a assinatura de um meio por cento do eleitorado da cidade ou zona em questão. Também é obrigatória antes do tratamento legislativo de projetos de normas de edificação, planejamento urbano, instalações industriais ou comerciais, ou modificação não autorizada ou domínio de bens públicos”.

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actuación judicial. Art. 4° - El incumplimiento del procedimiento estipulado en la presente ley podrá ser causal de anulabilidad del acto, por vía administrativa o judicial. Art. 5°- Las Audiencias Públicas son temáticas, de requisitoria ciudadana o para designaciones y acuerdos. 6

Logo, a audiência pública é um instrumento legítimo e transparente, capaz de levar a

uma abertura da decisão jurídico-política, oportunizando a todos palpitar e construir a decisão

que será adotada no processo de tomada da decisão administrativa ou legislativa. Isso acaba

por fazer com que a democracia não seja apenas um artifício eleitoral, mas um modelo de

participação ativa dos cidadãos na Administração Pública e que seja capaz de aplainar

controvérsias e tomar decisões consensualmente aceitas, por compreender a responsabilidade

política, isto é, a legitimidade.

4.1 Audiências Públicas no Procedimento Administrativo Brasileiro

No Brasil, as audiências públicas são utilizadas tanto para o exercício de funções

administrativas quanto para subsidiar a atuação da função legislativa (artigo 58, §2º, II, da

Constituição da República de 1988), da função judiciária (artigo 9º, §1º, da Lei nº 9.868/1999)

e da missão institucional do Ministério Público (artigo 27, parágrafo único, IV, da Lei nº

8.625/1993).

No campo administrativo, as audiências públicas servem para “inúmeros tipos de

processos administrativos, desde o estabelecimento de novas limitações de polícia, passando,

pelas decisões concernentes a serviços públicos, existentes ou novos, até o estabelecimento de

normas e decisões concretas”, seja no modelo econômico, no social ou de fomento público

(MOREIRA NETTO, 1992, p. 128). Mas, também, destina-se a resguardar a transparência da

                                                            6 Tradução para o português: “Art. 1º - Esta Lei regulamenta o Instituto de Audiência Pública. A audiência pública constitui uma instância de participação no processo de tomada de decisão administrativa ou legislativa na qual a autoridade responsável pela mesma habilita um espaço institucional para que todos aqueles que possam ser afetadas ou tenham um interesse particular expressem sua opinião a respeito dela. O objetivo desta instância é que a autoridade responsável para tomar a decisão acerca das distintas opiniões sobre o tema de forma simultaneamente e em pé de igualdade através do contato direto com os interessados. Art. 2º - As opiniões expressas durante a audiência pública são de carater consultivo e não vinculante. Depois de finalizar a audiência, a autoridade responsável pela decisão deve especificar, os fundamentos do ato administrativo ou normativo, que se sanciona, de que forma tomou em conta as opiniões dos cidadãos e, neste caso, as razões pelas quais descarta. Art. 3º - A omissão de convocar uma audiência pública, quando esta seja uma exigência legal ou não realizada por motivos imputáveis ao órgão convocante, é causa de nulidade do ato que se produz em consequencia, assim, deixando em aberto a atuação judicial. Art. 4º - O cumprimento do procedimento estipulado na presente lei poderá ser causa de anulidade do ato, por via administrativa ou judicial. Art. 5º - As Audiências Públicas são temáticas, de requisição dos cidadãos ou para designações e acordos. 

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atividade administrativa, pois, “não se destina a garantir direitos subjetivos de pessoas

determinadas, mas a proteger os interesses colocados sob tutela do Estado, objetivamente”

(JUSTEN FILHO, 2008, p. 497).

Em se tratando da inserção constitucional, essa traz a audiência pública como um

instituto da participação administrativa aberta aos grupos sociais, visando à legitimidade da

ação do administrador público. O administrado tem direito de demonstrar seu ponto de vista,

suas opiniões, suas ideias e de fazer opções, com a finalidade de contribuir com a melhor

escolha para a administração pública, porém com mais formalidade no procedimento. O

objetivo é o de produzir uma específica eficácia vinculatória, sendo ela absoluta, obrigando a

Administração a atuar de acordo com o resultado do processo, ou sendo relativa, obrigando a

Administração a motivar suficientemente uma decisão que contrarie aquele resultado

(MOREIRA NETTO, 2001, p. 213). Além disso,

(...) só poderão ser realizadas mediante lei instituidora que lhes defina o processo e a eficácia, até mesmo nos casos em que o legislador constitucional já lhes deu previsão, como são os casos do art. 29, XII, que preconiza a cooperação das associações representativas no planejamento municipal; do art. 194, paragrafo único, VII, que prevê a participação da comunidade na seguridade social; do art. 198, III, que indica a participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis na assistência social; e, implicitamente, do art. 225, caput, ao impor à coletividade o dever de atuar para defender e preservar o meio ambiente. (MOREIRA NETTO, 2001, p. 213-214)

Na previsão infraconstitucional, há poucas previsões legais quanto à realização de

audiências públicas. Entretanto nas licitações e nos contratos administrativos, o artigo 39,

caput, da Lei nº 8.666/93 obriga à realização das audiências públicas, iniciando o processo

licitatório, quando o valor estimado para uma licitação for superior a 100 (cem) vezes o limite

previsto no artigo 23, I, c, do mesmo diploma. Nesse caso, a audiência pública é realizada

meramente com caráter informativo, já que sua inexistência acarreta a nulidade do processo

licitatório.

Também, no âmbito da Administração Pública Federal, a Lei nº 9.784/99 vem

impulsionando a evolução do processo administrativo, trazendo como inovação o fim da

implementação da função administrativa pelos órgãos e entidades da Administração Direta e

Indireta do Poder Executivo, bem como pelos órgãos do Poder Judiciário e do Poder

Legislativo. Isso ocasiona a previsão de participação popular direta na formação dos atos

administrativos de grande relevância, nos casos de interesse público, encontrando-se, dentre

as formas de participação administrativas, a audiência pública. O artigo 32 da referida lei

estabelece que, a critério da autoridade, diante da relevância da questão, poderá ser realizada

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audiência pública para debates sobre a matéria do processo antes da tomada de decisão. E o

art. 34, determina que o resultado da audiência pública, deverá ser apresentado com indicação

do procedimento adotado (MOREIRA NETTO, 2001, p. 214-216).

Ademais, o CONAMA (Conselho Nacional do Meio Ambiente) – órgão consultivo e

deliberativo integrante do Sistema Nacional do Meio Ambiente, cuja finalidade é "assessorar,

estudar e propor ao Conselho de Governo as diretrizes de políticas governamentais para o

meio ambiente e os recursos naturais e deliberar, no âmbito de sua competência, sobre normas

e padrões compatíveis com o meio ambiente ecologicamente equilibrado e essencial à sadia

qualidade de vida" –, prevê, na Resolução n. 009/87, artigo 2º, caput, que seja processada

como audiência pública a providência no caso de impactos ambientais, sempre que for julgada

necessária pelo órgão competente para outorga da licença ambiental, ou mediante solicitação

de entidade civil, do Ministério Público ou de 50 ou mais cidadãos (CONAMA, 1981).

Em suma, a audiência pública no procedimento administrativo brasileiro é uma

realidade em plena afirmação e vem crescendo consideravelmente, principalmente na prática

da administração consensual, posto que constrói a motivação das decisões administrativas e se

efetiva a ponderação dos interesses dos indivíduos envolvidos, uma vez que esses colaboram

no processo administrativo decisório.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Partindo da premissa de que a sociedade civil é a base para o exercício democrático do

Princípio Constitucional da Participação, as audiências públicas são o veículo para que essa

participação se concretize na esfera da Administração Pública. Há que se referir a apatia

política e o desinteresse da sociedade, que são vistos como a forma negativa da participação,

já que se configuram pela omissão ou pela desinformação frente aos problemas que devem ser

resolvidos pela gestão e sobre os quais os cidadãos têm o direito de contribuir com as suas

opiniões para uma decisão mais justa e coesa.

Isso implica no crescimento do modelo de administração consensual, porque institui

um ambiente comum (consensualidade) entre o público e o privado, o que faz com que a

decisão tenha maior poder de eficácia e maior aceitação social. E assim o é tendo em vista que

foi tomada em conjunto com a sociedade civil, oportunizada a todos a discussão para a

tomada de decisão que afeta a vida da coletividade. Trata-se de uma importante abertura que

se dá às pessoas, por meio do ordenamento jurídico, para que possam manifestar-se e

compartilhar informações precisas para a efetivação do ato do administrador; ou seja,

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ocorrendo o debate na audiência pública, as opções tornam-se mais claras, o que facilita a

escolha do administrador.

Logo, não se pode negar que a pressão exercida pela sociedade, quando lhes é

possibilitada a participação no processo de formação das tutelas jurídico-políticas, configura-

se importante fator de democratização do poder político. A decisão extraída da síntese dos

anseios dos cidadãos para a melhoria da qualidade de vida da população, seja nas mais

diversas áreas, como saúde, educação, segurança, saneamento ou relacionadas à economia ou

até a infraestrutura da localidade ou microrregião tornam-se mais legítimas e mais assertivas.

Assim, observou-se que as práticas democráticas legitimam ainda mais os atos do

administrador público, pois ganham credibilidade, trazem transparência e maior aceitação

consensual, e isso, atrelado à participação tanto individual quanto coletiva, transcreve um

extrato final pluralista, em que todos puderam colaborar para a tomada de decisão.

Ademais, a consensualidade é a melhor forma de concretizar uma ação ou uma

deliberação que afete a vida dos administrados, pois o consenso obtido em audiência pública

na tomada de decisões administrativas favorece a otimização da decisão política.

As audiências públicas formam o ponto de ligação entre os interesses dos cidadãos e

os atos praticados pelos governantes, propiciando um espaço para contestação, para debate e

para expressão de soluções dinâmicas, criativas e plurais, no qual o cidadão passa a ser

agente, e não mero espectador. Dessa forma, a própria democracia se fortalece, deixando de

ser apenas uma prática periódica eleitoral, mas um modelo de participação ativa dos cidadãos

na administração pública e que seja capaz de aplainar controvérsias e tomar decisões

consensualmente aceitas, por compreender as responsabilidades políticas e suas necessidades

locais.

E, por fim, as audiências públicas também subsidiam a atuação da função legislativa,

ocorrendo o que se entende como a inter-relação entre a democracia representativa e a

democracia participativa.

REFERÊNCIAS

AGUILLAR, Fernando Herren. Controle Social de Serviços Públicos. São Paulo: Max Limonad, 1999.

ALENCAR, José de. Sistemas Representativos. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1868.

BOBBIO, Norberto. Diccionario de Política. Vol. 1. Espanha: Siglo Veintiuno Editores, 1981.

_____. O Futuro da Democracia: Uma defesa das regras do jogo. 6ºed. Tradução de

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Democracia como fundamento para as eleições sindicais (Democracy as a foundation for union elections)

Clovis Renato Costa Farias*

Sumário: 1. A necessidade da representação sindical democraticamente constituída e mantida; 1.1. Finalidades da representação sindical legítima; 1.2. Proteção à representação sindical partindo do critério eletivo; 1.3 As eleições sindicais e a democracia; 1.4. Educação para a democracia em âmbito sindical; 2. Eleições sindicais e os descompassos para a perpetuação do Poder; 2.1. Normatização e princípios norteadores das eleições sindicais; 2.1. Liberdade sindical e seus limites em face dos abusos; 3. Casos conflituosos de eleições sindicais com ênfase no Estado do Ceará; 3.2.1. SINTRO/CE (Rodoviários); 3.2.2. SINPOF/CE (Polícia Federal); 3.2.3. SINDVIGILANTES/CE; 3.2.3.4. Sindicato MOVA-SE (servidores públicos do Estado do Ceará); 4. Conclusões. Resumo: O presente trabalho apresenta aspectos relevantes para o aprimoramento democrático das entidades representativas sindicais, com ênfase nos sindicatos da categoria profissional. Para tanto, passa pela disposição de elementos básicos imprescindíveis ao cumprimento das finalidades dessas organizações, tais como a proteção a seus dirigentes, a legitimidade adquirida quando das eleições democráticas, impondo-se a educação para a realização da democracia em âmbito representativo laboral. Em seguida, adentra-se especificamente nas eleições sindicais, por vezes tomando como paralelo, o ideal democrático dos governos em geral, enfatizando aspectos sócio jurídicos, indispensáveis a um modelo legítimo a ser seguido. São sugeridas atitudes e ações para o ressurgimento do sindicalismo como representante dos interesses das categorias laborais, também com maior legitimidade frente à sociedade. Em continuação, apresentam-se os aspectos centrais da Liberdade Sindical nos termos convencionados pela Organização Internacional do Trabalho, com seus limites e sopesamentos necessários ao seu funcionamento no Estado Democrático de Direito, como forma de luta contra a perpetuação ilegítima do Poder por meio das eleições sindicais. Abstract: This paper presents relevant aspects for the improvement of democratic trade union representative bodies, with emphasis on trade unions in the professional category. To do so, go through the provision of basic elements essential to the fulfillment of the purposes of these organizations, such as the protection of their leaders, gained legitimacy when democratic elections, necessitating education for the realization of democracy within labor representative. Then enters specifically in union elections, sometimes taking as parallel, the ideal democratic governments generally essential to a legitimate model to be followed. Attitudes and actions are suggested to the resurgence of unionism as representing the interests of labor categories, also with greater legitimacy facing the society. In continuation, we present the key aspects of the Freedom of Association in the terms agreed by the International Labour Organisation, with its limits and analyzes necessary for their functioning in a democratic state, as a way of combating the perpetuation of illegitimate power through elections union. Palavras-chave: Direito do Trabalho; Sindicalismo; Democracia; Eleições. Keywords: Labor Law; Unionism; Democracy; Elections.

1. A necessidade da representação sindical democraticamente constituída e

mantida

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1.1. Finalidades da representação sindical legítima

A representação sindical, devidamente organizada e obediente aos

delineamentos do Estado Democrático de Direito1, é essencial para a defesa dos

interesses dos trabalhadores, especialmente, por conseguir minorar o fosso da

hipossuficiência que separa a categoria laboral dos entes aos quais está subordinada, a

ala patronal.

Em sua essência, despersonaliza os conflitos, evitando que a categoria laboral

seja mais prejudicada pela identificação e perseguição dos insatisfeitos decorrente de

eventuais reclamações quanto a problemas no desenvolvimento das atividades

subordinadas. Age para melhorar as condições de trabalho e produção, objetivando a

dignidade dos obreiros, de forma equânime e coletiva. Para tanto, é imprescindível,

conforme pensado por Michels, organização para a obtenção das metas essenciais:

Uma classe que desfralda diante da sociedade a bandeira de reivindicações determinadas e aspira a realizar um conjunto de ideologias ou ideais a partir das funções econômicas que exerce tem necessidade de uma organização. Quer se trate, na realidade, de reivindicações econômicas ou políticas, a organização se revela como o único meio de criar uma vontade coletiva. E, na medida em que ela repouse sobre o princípio do menor esforço, isto é, da maior economia de forças, a organização é, nas mãos dos fracos, uma arma de luta contra os fortes.

Uma luta só pode ter chances de êxito na medida em que ela se desenvolva no terreno da solidariedade entre indivíduos com interesses idênticos. [...]2

Contexto que tende a gerar perseguições aos próprios representantes, diante da

disparidade de interesses entre as classes, uma buscando a manutenção de uma vida com * Doutorando em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC), bolsista do CAPES/CNPq. Vencedor do Prêmio Nacional em Direitos Humanos da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (ANAMATRA). Membro do GRUPE (Grupo de Estudos e Defesa do Direito do Trabalho e do Processo Trabalhista), do Grupo de Estudos Boaventura de Sousa Santos no Ceará, no Curso de Ciências Sociais da UFC, e da ATRACE. Editor e elaborador da página virtual de difusão cultural: Vida, Arte e Direito (vidaarteedireito.blogspot.com/), do Periódico Atividade (vidaarteedireitonoticias.blogspot.com/) e do Canal Vida, Arte e Direito (www.youtube.com/user/3mestress). Autor do livro: 'Desjudicialização: conflitos coletivos do trabalho'. Graduado em Letras pela Universidade Federal do Ceará (2003), em Direito pela Universidade de Fortaleza (2008), especialista em Direito do Trabalho pela Universidade Gama Filho (RJ),mestre em Direito Constitucional (Mestrado em Direito da UFC). Membro da Comissão de Direito Sindical - OAB/CE e do Escritório de Direitos Humanos da UNICHRISTUS. Foi Chefe da Assessoria Jurídica do Procurador Chefe do Ministério Público do Trabalho/PRT-7ª Região (2009-2011), Assessor Jurídico da Secretaria de Cultura do Ceará (Constituinte Estadual da Cultura e Plano Estadual do Livro), conciliador pelo TJCE/CNJ e orientador no Projeto Cidadania Ativa/UNIFOR. 1 PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Art. 1º. Net: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 16.02.2013. 2 MICHELS, Robert. Sociologia dos Partidos Políticos. Trad. de Arthur Chaudon. Coleção Pensamentos Políticos. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1982. p. 15.

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um mínimo de dignidade e a outra atenta à maximização dos lucros. Retaliações que são

minoradas quando da existência de uma organização sindical atuante, democraticamente

constituída e mantida. Sugere-se que a organização sindical cumpra, também, pelos

requisitos de uma democracia para um grande número de pessoas, apresentados por

Dahl3, tratando sobre governos democráticos em geral, mas que serão tomados como

paralelo norteador para as direções na estrutura sindical (sindicatos, federações,

confederações e centrais sindicais).

Dahl4 apresenta requisitos para a democracia ligada a um grande número de

pessoas, nos moldes seguintes: 1. Para a oportunidade de formular preferências são

necessárias as seguintes garantias institucionais: a) liberdade de formar e aderir a

organizações; b) liberdade de expressão; c) direito de voto; d) direito de líderes políticos

disputarem apoio; e) fontes alternativas de informação. 2. Para a oportunidade de

exprimir preferências são necessárias as seguintes garantias institucionais: a) liberdade

de formar e aderir a organizações; b) liberdade de expressão; c) direito de voto; d)

elegibilidade para cargos políticos; e) direito de líderes políticos disputarem apoio; f)

fontes alternativas de informação; g) eleições livres e idôneas. 3. Para a oportunidade ter

preferências igualmente consideradas na conduta do governo são necessárias as

seguintes garantias institucionais: a) liberdade de formar e aderir a organizações; b)

liberdade de expressão; c) direito de voto; d) elegibilidade para cargos públicos; e)

direito de líderes políticos disputarem apoio; f) fontes alternativas de informação; g)

eleições livres e idôneas; h) instituições para fazer com que as políticas governamentais

dependam de eleições e de outras manifestações de preferência.

Os pontos relevantes destacados pelo autor são referenciados para nortear os

contornos que devem identicamente ser seguido pela organização sindical no Brasil, de

modo que não serão aqui profundamente analisados. Assim, serão adaptados à prática

nas eleições sindicais, com outros aspectos relevantes destacados por outros autores,

como se verá nos itens que se seguem.

Em tal ambiente devem ser desenvolvias as atividades e eleições para as

diretorias na estrutura sindical, devendo haver combate a vias negativamente destoantes.

1.2. Proteção à representação sindical partindo do critério eletivo

3 DAHL, Robert A. Poliarquia: participação e oposição. Trad. de Celso Mauro Paciornik. 1. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2012. 4 DAHL. Op. cit. p. 27.

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A normatização brasileira traz previsões que garantem certos direitos a tais

lideranças, destacando-se a estabilidade provisória. É o que pode ser observado na

leitura do art. 8º, VIII, da Constituição de 1988 ao dispor que “é vedada a dispensa do

empregado sindicalizado a partir do registro da candidatura a cargo de direção ou

representação sindical e, se eleito, ainda que suplente, até um ano após o final do

mandato, salvo se cometer falta grave nos termos da lei.”5

No Brasil, tais organizações estão entre os direitos fundamentais sociais dos

obreiros, de modo que, de acordo com o art. 8º, III, da Constituição de 1988, “ao

sindicato cabe a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria,

inclusive em questões judiciais ou administrativas”.6 Com acréscimo no correr do

referido artigo de que é livre a associação profissional ou sindical, sendo obrigatória a

participação dos sindicatos nas negociações coletivas de trabalho (art. 8º, caput c/c

inciso VI, CF/88). Algo, melhor detalhado na Consolidação das Leis do Trabalho:

Art. 513. São prerrogativas dos sindicatos: a) representar, perante as autoridades administrativas e judiciárias os interesses gerais da respectiva categoria ou profissão liberal ou interesses individuais dos associados relativos à atividade ou profissão exercida; b) celebrar contratos coletivos de trabalho; c) eleger ou designar os representantes da respectiva categoria ou profissão liberal; d) colaborar com o Estado, como órgãos técnicos e consultivos, no estudo e solução dos problemas que se relacionam com a respectiva categoria ou profissão liberal; [...]7

Contudo, para a obtenção de tais prerrogativas deve-se observar o critério

eletivo, apto a legitimar, na democracia real8, as pretensas lideranças representativas de

cada categoria. Toma-se a categoria como soberana para dispor sobre seus interesses, a

qual pode ser comparada com o povo9 na democracia indireta, o qual tem o poder

centrado no voto, garantidor da igualdade real, mecanismo de escolha dos

representantes para o exercício de tal poder.

5 PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Op. cit. 1. 6 PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Op. cit. 1. 7 PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Decreto-Lei n.º 5.452, de 1º de maio de 1943 - Consolidação das Leis do Trabalho. Net: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm. Acesso em: 16.02.2013. 8 KELSEN, Hans. A Democracia. 2. ed. Trad. de Vera Barkow. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 95. 9 Constituição de 1988, art. 1º, parágrafo único, Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

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Destaque-se que ao se tratar de democracia real, partindo-se da teoria

apresentada por Kelsen, releva-se a igualdade obtida pelo voto universal, uma vez que,

segundo o autor, ainda não temos possibilidade de garantirmos com plenitude a

igualdade ideal.

1.3 As eleições sindicais e a democracia

Kelsen trata sobre o fenômeno das eleições inserido nas distinções básicas

entre a democracia ideal e a real, optando pela última para o funcionamento adequado

da igualdade entre os eleitores:

[...] um método específico de seleção dos governantes pela coletividade dos governados aparece como elemento essencial da democracia real.

Esse método é a eleição. [...] Na ideologia democrática, a eleição deve ser uma delegação de vontade do eleitor ao eleito. Desse ponto de vista a eleição e, por conseguinte, a democracia que nela se apoia seriam, como já foi dito, ‘impossibilidades lógicas intrínsecas’; a vontade na realidade não pode ser delegada: [...] A sua ideologia faz o chefe aparecer como um ser de natureza completamente diferente da natureza da coletividade social a ele submetida, e, consequentemente, ele vale como um ser superior, de origem divina, ou é circundado por uma auréola de poderes mágicos.

[...] na democracia real o traço característico é a responsabilidade dos chefes. Mas, sobretudo, visto que na democracia a qualidade do chefe não é sobrenatural, pois qualquer um pode ser eleito chefe, essa qualidade não é monopólio permanente de um indivíduo ou de um pequeno grupo de indivíduos. A democracia real apresenta a imagem da troca mais ou menos rápida de chefes. Certamente, também aí é possível constatar a tendência do chefe a manter o poder o maior tempo possível, mas tal tendência encontra resistências em que a ideologia tem um papel ponderável e que exercem influência sobre a psique dos indivíduos, determinando-lhes a conduta. A racionalização da função de chefe, com suas consequências (representadas pela publicidade, pela crítica e pela responsabilidade), e a ideia da livre criação dos chefes impossibilitam que estes se tornem amovíveis. Mas, exatamente na medida em que isso acontece, a ideologia da direção exercida pelos chefes também sofre uma transformação. Por conseguinte, uma das características da democracia real é a ascensão constante da massa dos governados à posição de chefe (para evitar mal entendidos, tenha-se em mente que aqui não se trata tanto de direção dos partidos, mas principalmente de direção do Estado, que se exprime no governo).10

Os delineamentos para as eleições sindicais partem dos estatutos de cada

entidade, os quais devem obedecer às normas gerais de democracia que norteiam o

funcionamento das instituições no Estado brasileiro. É o que dispõe o artigo 8º da

Convenção Relativa à Liberdade Sindical e à Proteção do Direito de Sindicalização

(Convenção nº 87) da Organização Internacional do Trabalho – OIT11, a qual, apesar de

10 KELSEN. Op. cit. p. 91-94. 11 ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Convenção nº 87/1948. Artigo 8: 1. Ao exercer os direitos que lhes são reconhecidos na presente Convenção, os trabalhadores, os empregadores e

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ainda não ratificada, foi firmada pela República Federativa do Brasil e encontra-se

tramitando no Congresso Nacional desde 1949. Nesse sentido, destacou Gérson

Marques:

1.1. DEMOCRACIA SINDICAL E SUBSIDIARIEDADE PELA LEGISLAÇÃO ELEITORAL:

O tema comporta, prefacialmente, algumas considerações, as quais terão repercussão nas matérias adiante enfrentadas.

A primeira que vem a talhe é compreender que a democracia, no âmbito das entidades sindicais, vem diretamente da Constituição Federal e das diversas convenções internacionais da OIT, senão da própria Constituição deste organismo internacional, de que o Brasil é membro fundador. Assim, nenhuma lei ou estatuto sindical pode dispor ofensivamente à democracia nem à limitação da representação da categoria.

[...]

Embora a Convenção 87-OIT (Organização Internacional do Trabalho), referente às liberdades sindicais, não tenha sido, ainda, ratificada pelo Brasil, é certo que seus princípios se encontram insculpidos no art. 8º da Constituição Federal pátria e na Constituição da OIT. Dentre os princípios, a reportada Convenção assegura expressamente que as organizações de trabalhadores e de empregadores têm o direito “de eleger livremente seus representantes, organizar a sua gestão e a sua atividade” sendo que “as autoridades públicas deverão abster-se de toda intervenção que tenha por objetivo limitar este direito ou entorpecer seu exercício legal” (art. 3º). Mandamentos de liberdade sindical semelhantes aos insculpidos no art. 8º da CF/88.

[...]

Que se arremate, então: mesmo o Brasil não sendo signatário da Convenção 87-OIT, sobre liberdades sindicais, submete-se aos princípios do sindicalismo mundial, que estão insculpidos na Constituição da OIT, organização da qual faz parte.

Tampouco seria de se admitir que, dentro de um Estado Democrático de Direito, houvesse a permissão para que a principal unidade de democracia social (os sindicatos) não se curvassem aos princípios democráticos. Dentre os primados da democracia, destacam-se:

a) Eleição/escolha de dirigentes pelos próprios representados;

b) Liberdade na escolha de dirigentes, de modo que os eleitores não sofram qualquer coação ou constrangimento em sua manifestação de voto;

c) Livre concorrência e igualdade entre os que pretendam se submeter ao sufrágio dos representados;

d) Eticidade no processo eletivo e no exercício da função pública;

e) Mandatos dos dirigentes, evitando-se a perpetuação no poder;

suas organizações respectivas estão obrigados, assim como as demais pessoas ou coletividades organizadas, a respeitar a legalidade.

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f) Sucessão entre representantes do poder, a fim de assegurar o rodízio nas instâncias da direção da entidade;12

A Convenção 87 da OIT tem funcionado como norte para o Direito Sindical

brasileiro e encontra-se quase toda em vigor por meio de normas nacionais que lhe

copiaram os dispositivos, ressalvada, em especial, a imposição do registro das entidades

condenada pela OIT. Assim, a divergência central está na unicidade sindical, aferida

pelo Ministério do Trabalho e Emprego, uma vez que a Constituição de 1988 veda a

criação de mais de uma organização sindical, em qualquer grau, representativa de

categoria profissional ou econômica, na mesma base territorial, que será definida pelos

trabalhadores ou empregadores interessados, não podendo ser inferior à área de um

Município (art. 8º, II). A importância da organização e da auto-regulamentação é

demarcada pela referida Convenção nos artigos 2 e 3.1:

Artigo 2: Os trabalhadores e os empregadores, sem nenhuma distinção e sem autorização prévia, têm o direito de constituir as organizações que estimem convenientes, assim como o de filiar-se a estas organizações, com a única condição de observar os estatutos das mesmas.

Artigo 3: 1. As organizações de trabalhadores e de empregadores têm o direito de redigir seus estatutos e regulamentos administrativos, o de eleger livremente seus representante, o de organizar sua administração e suas atividades e o de formular seu programa de ação.

Nesse passo, as normas estatutárias das entidades sindicais devem buscar

garantir ao máximo a democracia (otimizada no correr das atividades na representação

sindical), para que se possa de fato apontar para os interesses coletivos dos obreiros.

Para tanto, apesar de serem constatados descompassos por parte de determinadas

representações (viciadas nas vantagens da organização em razão do desvirtuamento dos

interesses coletivos para a preponderância dos individuais) deve-se lutar para o

aprimoramento do trabalho de defesa das entidades em benefício dos trabalhadores,

evitando-se generalizações condenatórias sem ação em busca de soluções pelas vias

adequadas. Com a reversão das atitudes contraditórias torna-se possível materializar o

tom emancipatório nos eleitores, os quais podem passar a observar criticamente a

12 TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 7ª REGIÃO. Procurador Regional do Trabalho Francisco Gérson Marques de Lima. Proc. nº 1904-86.2010.5.07.0001 (1ª Vara do Trabalho de Fortaleza). Parecer do Ministério Público do Trabalho (MPT). Autor: Carlos Onofre Façanha Dantas. Reclamados: Sindicato dos Policiais Federais no Estado do Ceará e Outros.

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atuação dos representantes, atuando e melhorando a política e os políticos que a

representam, como destacado por Held:

[…] scepticism and cynicism about politics are not necessarily inevitable facts of political life. By establishing the credibility and viability of alternative models of governing institutions, and showing how these can be connected to systematic difficulties that occur and recur in the social and political world, a chance is created that mistrust of politics can be overcome. A political imagination for alternative arrangements is essential if the tarnished image of politics is to be eradicated. Fourth, we cannot be satisfied with existing models of democratic politics.

[…] we have seen that there are good grounds for not simply accepting any one model, whether classic or contemporary, as it stands. There is something to be learnt from a variety of traditions of political thought, and a propensity simply to juxtapose one position with another, or to play off one against another, is not fruitful.13 14

Demarca-se, assim, a necessidade da representação sindical democraticamente

constituída com profunda relevância na consolidação de um modelo representativo das

categorias, cada vez mais eficiente, o qual deve partir da educação. Como destacado por

Kelsen, “a educação para a democracia torna-se uma das principais exigências da

própria democracia [...] o problema da democracia, na prática da vida social, passa a

ser um problema de educação no mais alto estilo.”15

1.4. Educação para a democracia em âmbito sindical

A educação democrática é um meio apto a reverter os baixos índices de

interesse na participação apresentados na contemporaneidade. Tal desinteresse foi

constatado por Ribeiro, incluindo-se o sindicalismo como uma das associações da

sociedade civil organizada, com base na pesquisa realizada pelo Projeto WVS (World

Values Survey), dirigido por Ronald Inglehart, em 1991:

13 HELD, David. Models of Democracy. 3. ed. California: Stanford University Press, 2006. p. 259. 14 Tradução: “[...] ceticismo e cinismo sobre política não são necessariamente fatos inevitáveis da vida política. Ao estabelecer a credibilidade e a viabilidade de modelos alternativos de instituições governamentais, e mostrando como estes podem ser ligados a dificuldades sistemáticas que ocorrem e reaparecem no mundo social e político, cria-se a chance de superação da desconfiança na política. A imaginação política para arranjos alternativos é essencial para que a imagem manchada da política seja erradicada. Em quarto lugar, não podemos estar satisfeitos com os modelos existentes da política democrática. [...], temos visto que há boas razões para não simplesmente aceitar qualquer modelo de uma, quer clássico ou contemporâneo, tal como está. Há algo a ser aprendido a partir de uma variedade de tradições de pensamento político, e uma propensão de simplesmente justapor uma posição com outra, ou para jogar fora uma contra a outra, não é frutífera.” 15 KELSEN. Op. cit. p. 97.

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[...] gostaríamos de apresentar os baixos níveis de participação em todos os tipos de organização encontrados em 1991. Com exceção das igrejas e organizações religiosas, que contaram com 22% de participação, entre as demais as taxas não ultrapassaram os 10 pontos percentuais. Apenas 10% afirmaram participar de sociedades beneficentes, 5,5% de grupos educacionais/artísticos/culturais, 6,7% de sindicatos, 4,9% de partidos políticos, 7,5% de grupos locais de discussão, 2,8% de grupos ecológicos, 4,6% de organizações profissionais, 8,3% de grupos esportivos/recreativos e 2,2% de grupos de mulheres/feministas.16

Conforme os dados apurados na WVS há um desinteresse que ultrapassa os

90%, em média, nos oitenta e três países pesquisados no mundo, variando de 86,9% até

95,2%. Novos dados17 foram acrescentados em 1997 revelando ainda o altíssimo

desinteresse pelos sindicatos e demais organizações de trabalhadores, de modo que, dos

países pesquisados, entre 72,4% a 86,7% das pessoas entrevistadas manifestaram que

não participam. Apesar do quadro apresentado para as organizações laborais, os

elaboradores do projeto que levantou os dados referenciados destacam a relevância da

ampliação de tal participação, a qual tende a refletir o processo de desenvolvimento

humano:

The rise of emancipative orientations, such as individualism, autonomy, promotion orientation, and self-expression values, reflects the process of human development. This has desirable civic consequences, because rising emphasis on autonomous human choice is inherently conducive to antidiscriminatory conceptions of human well-being. Finally, emancipative orientations are inherently people-centered, which is a major reason why rising emphasis on self-expression values is strongly linked with democracy. This means that the emergence and flourishing of democracy itself is part of the broader process of human development […]18 19

A emergência de uma cultura pós-materialista leva a uma participação política

mais pró-democrática, mesmo não implicando tal constatação que a participação em

organizações na sociedade civil aumenta a qualidade da democracia. Algo que deve ser

16 RIBEIRO, Ednaldo Aparecido. Valores pós-materialistas e cultura política no Brasil. Maringá: Eduem, 2011. p. 175. 17 RIBEIRO. Op. cit. p. 180. 18 INGLEHART, Ronald et WELZEL, Christian. Modernization, cultural change, and democracy: the human development sequence. New York: Cambridge University Press, 2008. p. 145. 19 Tradução: “A ascensão de orientações emancipatórias, como o individualismo, a autonomia, a orientação, a promoção e a auto-expressão de valores, reflete o processo de desenvolvimento humano. Isto tem consequências cívicas desejáveis, porque a ênfase crescente sobre a escolha humana autônoma é inerentemente propícia para concepções antidiscriminatórias de bem-estar humano. Finalmente, orientações emancipatórias são inerentemente centradas nas pessoas, o que é uma razão importante pela qual a ênfase crescente sobre a auto-expressão de valores está fortemente ligada com a democracia. Isso significa que o surgimento e o florescimento da democracia em si é parte do processo mais amplo de desenvolvimento humano [...]”

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otimizado em cada passo do processo, especialmente quando referente às representações

e à participação dos representados.

Desse modo, impõe-se que seja evitada a perpetuação do Poder nas mãos de

membros que passem a olvidar os interesses da categoria, acomodados com as benesses

particulares da organização, em detrimento da coletividade, a qual tende a se esquivar

da participação. Os indivíduos, distantes de suas entidades representativas, passam a ser

manipulados de forma imperceptível, por estarem despolitizados e desmobilizados, para

permitirem, inclusive, medidas que lhes são prejudiciais, como destacado por Carnoy:

Nos primeiros anos da década de 80, apesar do desemprego inédito, a maior parte da classe trabalhadora (os não-sindicalizados, principalmente os segmentos não vinculados às minorias) pode ainda ser convencida de que aumentos nos lucros são necessários para as maiores taxas de crescimento futuro e preços (e salários) estáveis. Isto significa, sob a solução que o capital apresenta para a crise, um declínio do salário do cidadão (salários mais benefícios sociais) e, mesmo, que possa haver um compromisso aceitável. Mas a burocracia do Estado que defende tal política em benefício do capital precisa mostrar que isso funciona.20

Evitar condutas desviantes é uma precaução que tem o condão de possibilitar

um maior engajamento dos membros da categoria, demarcando o desenvolvimento

humano de forma coletiva. Algo que afeta positivamente as melhorias das condições de

vida de toda a sociedade, como destacado por Carnoy: “O que temos, portanto, é um

Estado relativamente autônomo, não independente da classe dominante, mas também

não seu instrumento exclusivo. O Estado, no capitalismo adiantado, foi moldado pelas

lutas de classes contraditórias”21.

O autor ressalta a importância das capacidades de luta da classe operária

(organizada), contraditando os interesses gerais da burguesia, definindo o Estado, na

essência, como a “cristalização dessa dominação de classe e suas instituições refletirão

fundamentalmente os interesses da burguesia, embora a pureza desta expressão varie

de acordo com as capacidades históricas de classes contraditórias”22.Para tanto,

Carnoy, rememorando Castells23, assim conclui:

20 CARNOY, Martin. Estado e Teoria Política. 4. ed. Trad. dos tradutores do Instituto de Letras da PUCAMP. Campinas: Papirus, 1994. p. 310. 21 CARNOY. Op. cit. p. 298. 22 CARNOY. Op. cit. p. 298. 23 CASTELLS, Manuel. The Economic Crisis and American Society. Princeton: Princeton University Press, 1980.

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[...] A taxa decrescente de lucro e a necessidade de cobrir os custos de produção são o resultado direto de uma classe trabalhadora mobilizada, de movimentos comunitários e pelos direitos civis, em favor de uma maior participação econômica no desenvolvimento capitalista.24

Assim, atuações destoantes do senso democrático e da coerência com os fins da

organização laboral devem ser vergastadas do universo sindical pela atuação própria e

desejada da própria categoria, quando consciente, pelo voto, manifestações, denúncias

ou ações, com o auxílio do Estado, para solucionar controvérsias relativas à democracia

sindical. Eis o terreno propício para a efetivação da Liberdade Sindical, partindo das

organizações legitimamente constituídas e mantidas.

2. Eleições sindicais e os descompassos para a perpetuação do Poder

2.1. Normatização e princípios norteadores das eleições sindicais

As eleições sindicais foram inicialmente regulamentadas pelos próprios

costumes e estatutos das entidades, de forma autônoma, sendo sua forma heterônoma

disposta nos anos 40 pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), arts. 529-533, em

muito não recepcionados pela Constituição de 1988, por incompatibilidade com a

Liberdade Sindical.25

Os processos eleitorais sindicais seguem normas próprias, via de regra,

estabelecidas nos próprios estatutos das entidades, os quais se submetem aos preceitos

fundamentais postados na Constituição de 1988, bem como a determinados princípios

gerais que regem os processos eletivos. Tal tema foi enfrentado por Gérson Marques26

em Parecer do Ministério Público do Trabalho envolvendo eleições sindicais:

No Direito Sindical, ainda, por exemplo, não existe fase de alistamento eleitoral, do qual nasce o direito de votar (jus sufragii), porquanto o sócio em dia com suas contribuições sindicais, atendido o lapso temporal previsto no Estatuto, automaticamente é alçado à condição de eleitor, possuindo o direito subjetivo de votar, se assim o quiser. É que o voto é facultativo, e não obrigatório, outro aspecto em que se distinguem as duas modalidades de eleições (a sindical e a pública).

[...]

24 CARNOY. Op. cit. p. 299. 25 Passou-se a priorizar as previsões estatutárias, nos termos da Convenção 87 da OIT, as quais devem obedecer a parâmetros mínimos que garantam os princípios do Estado Democrático de Direito. 26 TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 7ª REGIÃO. Procurador Regional do Trabalho Francisco Gérson Marques de Lima. Proc. nº 1904-86.2010.5.07.0001 (1ª Vara do Trabalho de Fortaleza). Parecer do Ministério Público do Trabalho (MPT). Autor: Carlos Onofre Façanha Dantas. Reclamados: Sindicato dos Policiais Federais no Estado do Ceará e Outros.

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Portanto, a hermenêutica aplicada ao caso sub judice deve ser, antes de tudo, a específica do Direito do Trabalho, ao invés dos métodos de interpretação do Direito Eleitoral. De fato, a questão é, primordialmente, trabalhista (Direito Sindical), e apenas SECUNDARIAMENTE ELEITORAL, aqui entendida esta última na concepção que lhe confere o Direito Eleitoral, ramo do Direito Público.

No particular, os princípios do Direito do Trabalho e a própria CLT, de aplicação obrigatória, oferecem balizamentos muito mais seguros e pertinentes para resolver o imbróglio submetido a esse juízo do que a legislação eleitoral.

Mas, ainda, a pergunta: o Código Eleitoral pode ser invocado às eleições sindicais, nas lacunas do Direito do Trabalho?

Urge distinguir o CÓDIGO ELEITORAL do DIREITO ELEITORAL, porquanto aquele é apenas uma das normas (conquanto a estruturante do sistema) deste ramo do Direito, que é muito mais amplo. Os princípios do Direito Eleitoral, por revelarem reiterada aplicação e demonstrarem amadurecimento na experiência do sufrágio, podem ser pinçados para a colmatação do Direito do Trabalho. Já quanto ao Código Eleitoral, é preciso ver quais dispositivos estão vigentes e qual o grau de compatibilidade com a modernidade, bem como com o Direito Sindical.

[...]

Henrique Macedo Hinz é mais enfático, ao entender que as disposições da CLT, sobre eleições sindicais, é que devem subsidiar os estatutos dos sindicais.27 Com esta inteligência, citado autor põe a legislação do trabalho como a primeira a ser invocada para a supletividade dos estatutos sindicais; antes, portanto, do Direito Eleitoral. Bom! Se é de se invocar a legislação eleitoral revogada, muito melhor é providenciar a supletividade pela própria CLT, mesmo que de revogação duvidosa.

Dentre os princípios que devem ser seguidos nos pleitos eleitorais, alguns

podem ser verificados em princípios gerais que regem as eleições, alguns apresentados

na doutrina de Gomes28, onde se encontra a democracia; a soberania popular (ou dos

membros da categoria); a igualdade; a legitimidade (eleitores e candidatos); a

moralidade (nas condutas dos participantes e nos pleitos); a probidade (integridade de

caráter; retidão, honradez)29. Também devem ser seguidos o princípio da lisura eleitoral

(toda ação dos intervenientes deve se pautar pela manutenção da lisura das eleições); o

princípio do aproveitamento do voto (voto só deve ser anulado em casos de

demonstração de que é impossível aproveitá-lo como livre manifestação de vontade - in

27 HINZ, Henrique Macedo. Direito Coletivo do Trabalho. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 58.

28 GOMES, José Jairo. Direito Eleitoral. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2011. p. 27-54. 29MICHAELIS, Dicionário. Net: http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=probidade. Acesso em 17.02.2013.

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dubio pro voto); o princípio da celeridade eleitoral (na decisão de eventuais lides pelas

autoridades competentes); o princípio da devolutibilidade dos recursos (só têm efeito

suspensivo se houver norma determinando expressamente – regra do devolutivo); o

princípio da preclusão instantânea (atos devem ser impugnados no momento em que

ocorrem); o princípio da anualidade eleitoral (norma que alterar o processo eleitoral

entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até

um ano da data de sua vigência, buscando segurança jurídica e ações que visem

manipular).

Conforme a CLT, sopesada com a Constituição de 1988, entende-se terem sido

recepcionados apenas alguns trechos do art. 531, especialmente no tocante a imposição

de maioria absoluta dos votos para as eleições dos cargos de diretoria e do conselho

fiscal em relação ao total dos associados eleitores, bem como a priorização da realização

de novo pleito em casos de empate ou não atingimento do quórum mínimo necessário

em primeiro turno, não seguindo a lógica da opção pelo candidato de idade mais

avançada, adotada pelo Código Eleitoral brasileiro.

2.1. Liberdade sindical e seus limites em face dos abusos

Na contemporaneidade, diante da Liberdade Sindical, há de se seguir os

princípios eleitorais fundamentais, como apresentado, os quais devem nortear a

elaboração das normas estatutárias sindicais. Tudo no intuito de gerar maior

legitimidade das entidades frente aos membros da categoria que representa e da

sociedade, com consequente aumento no número de filiações e da participação coletiva.

Objetiva-se a formação de um capital social apto a mudar as relações entre a entidade e

a base, facilitando a ação, por ser menos tangível e estar incorporado à essência do

movimento organizado, como ensinado por Coleman:

Human Capital and Social Capital

[...] human capital is created by changing persons so as to give them skills and capabilities that make them able to act in new ways.

Social capital, in turn, is created when the relations among persons change in ways that facilitate action. Physical capital is wholly tangible, being embodied in the skills and knowledge acquired by and individual; social capital is even less tangible, for it is even less, for it is embodied in the relations among persons. Physical capital and human capital facilitate productive activity, and social capital does so as well.30 31

30 COLEMAN, James S. Foundations of Social Theory. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1994. p. 304.

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Entrementes, esse é um dos maiores problemas pelos quais tem passado o

sindicalismo brasileiro, com repercussão direta na credibilidade dos membros da

categoria em seus representantes, uma vez que há dirigentes de várias entidades que

buscam, ilegitimamente, se perpetuar no Poder pelas vias mais amorais, principalmente

por estarem distantes de seu eleitorado, como destacado por Michels:

A medida que os chefes se afastam das massas, eles se mostram cada vez mais dispostos a ocupar os vazios que produzem em seus quadros, não pela via da eleição popular, mas pela cooptação; a aumentar seus efetivos criando, por sua própria iniciativa, sempre que isso for possível, novos postos. Os chefes tendem, por assim dizer, a isolar-se, a formar uma espécie de cartel, a rodear-se de um muro que só pode ser transposto por aqueles que os agradam.

É o que se verifica atualmente em todas as organizações operárias solidamente constituídas.

Num relatório apresentado no VII Congresso das Organizações Operárias Italianas (Modena, 1908), encontra-se formulada a afirmação de que os chefes deveriam conhecer os homens capazes, escolhê-los eles próprios e ocupar de uma forma geral as funções do governo.

Na Inglaterra, esses desideratos já receberam uma aplicação prática, no sentido de que os novos empregados que a organização precisam são escolhidos diretamente pelos velhos funcionários.

O mesmo acontece na Alemanha, onde cerca de um quinto dos empregados sindicais são escolhidos pelo poder central. E como os congressos sindicalistas compõem, eles também, quase que exclusivamente de empregados, o único meio que as organizações ainda dispõem para fazer valer sua opinião individual consiste na colaboração dos jornais socialistas e sindicalistas.32

Tais chefes improbos, além do mais, ajustam intempestivamente as normas

estatutárias para evitar a candidatura de eventuais opositores, forjam lisura nos pleitos e

probidade nas comissões eleitorais, bem como nos membros das urnas coletoras de

votos. Situações que tem afastado cada vez mais os trabalhadores de suas entidades

representativas, as quais, por vezes, rejeitam qualquer participação com observável

perecimento das entidades. Analisando o tema, Gérson Marques assim dispõe:

31 Tradução: “Capital Humano e Capital Social [...] O capital humano é criado por pessoas mudando de forma a dar-lhes competências e capacidades que os tornem aptas a agir de novas maneiras. Capital social, por sua vez, é criado quando as relações entre as pessoas mudam de modo a facilitar a ação. O capital físico é totalmente tangível, sendo incorporado nas habilidades e conhecimentos adquiridos pelo individuo; capital social é ainda menos tangível, pois é menos ainda, porque está incorporado nas relações entre as pessoas. Capital físico e capital humano facilitam a atividade produtiva, e capital social faz bem.” 32 MICHELS. Op. cit. p. 66.

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Em se tratando de sindicatos, o Estado não pode intervir nem interferir em sua organização (art. 8º, CF), administrativamente. É óbvio, no entanto, que as ofensas a direitos e garantias constitucionais, inclusive em eleições sindicais, podem ser submetidas ao controle judicial, em processo público, regido pela cláusula do devido processo legal.33 O julgamento pelo Judiciário diz respeito ao controle da legalidade e dos princípios constitucionais de liberdade e democracia sindical. Nada mais. E precisa se ater apenas a isso, propiciando meios de assegurar a vontade da categoria, nas eleições.

Ao receber a ação judicial, o Judiciário deve agir com o máximo de autocontrole, para não causar prejuízos aos princípios da democracia sindical, sobretudo nos processos eleitorais internos. A função jurisdicional não pode romper os propósitos constitucionais e internacionais do sindicalismo. Portanto, seu papel principal é o de assegurar as cláusulas constitucionais e internacionais referentes às liberdades sindicais, garantindo que a vontade da categoria, na escolha de seus dirigentes, seja promovida (quando obstaculizada) e respeitada efetivamente. Este, pois, é o marco que delimita a atuação do Judiciário e que, de outro lado, impõe às entidades o seu dever de respeitar o Estado Democrático de Direito e as liberdades da categoria, cujos interesses podem, eventualmente, estar na iminência de violação pelos próprios sindicatos. Uma função, portanto, relevantíssima do Judiciário, e bastante melindrosa, sensível.

Outra consideração diz respeito à natureza privada das eleições sindicais, em colisão parcial com a natureza pública das eleições estatais. Uma dicotomia que ensejará tratamento diferenciado e terá conseqüências diversas e distintas. Destarte, o tema das eleições sindicais é afeto ao Direito do Trabalho, ramo do Direito Privado, enquanto o das eleições públicas diz respeito ao Direito Eleitoral, ramo do Direito Público.

Assim é que em eleições sindicais o Estado deve permanecer, ao máximo, afastado das discussões da categoria, enquanto nas eleições públicas o Estado é essencial, sendo, na verdade, seu legítimo condutor.

No campo do Direito Eleitoral, a massa de eleitores é considerável e requer a participação de vários atores e instituições estatais.34 Há, inclusive, um aparato institucional próprio, a Justiça Eleitoral; com regramentos específicos (a legislação eleitoral); e instrumentos específicos (urnas eletrônicas, tecnologia de ponta, servidores técnicos e qualificados em processo eleitoral etc.). Esta é uma realidade própria do funcionamento do Estado, na propiciação de sua democracia.35

33 “O controle das eleições deve ser, em última instância, da competência das autoridades judiciais” (verbete nº 296 do Comitê de Liberdade Sindical, da OIT). No mesmo sentido: Verbetes nº 394 e 426, também do citado Comitê.

34 Nota de Gérson Marques: “Segundo dados do IBGE, de 2010, o Brasil possui população superior a 190 milhões habitantes. E, de acordo com dados divulgados pelo TSE (ano de 2010), o país tem 135 milhões de eleitores. (Cfr. http://www.tse.gov.br/internet/urnaEletronica/index.html, acessado em 07/02/2011)”.

35 TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 7ª REGIÃO. Procurador Regional do Trabalho Francisco Gérson Marques de Lima. Proc. nº 1904-86.2010.5.07.0001 (1ª Vara do Trabalho de Fortaleza). Parecer do Ministério Público do Trabalho (MPT). Autor: Carlos Onofre Façanha Dantas. Reclamados: Sindicato dos Policiais Federais no Estado do Ceará e Outros.

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Na prática contemporânea, tem sido observada a busca pela perpetuação do

poder, independente da legitimidade (ações em favor da categoria, busca da participação

ampla da base), sem atender aos pressupostos mínimos para que um governo continue

sendo responsivo no correr do tempo e que a base permaneça instigada a participar,

fortalecendo as instituições, como defendido por Dahl, que os tratou em termos estatais

(o que ora pretendemos fazer paralelo com os governos sindicais):

Parto do pressuposto de que uma característica-chave da democracia é a contínua responsividade do governo às preferências de seus cidadãos, considerados como politicamente iguais. [...] o termo ‘democracia’ para um sistema político que tenha, como uma de suas característica, a qualidade de ser inteiramente, ou quase inteiramente, responsivo a todos os seus cidadãos. [...]

Parto do pressuposto também de que, para um governo continuar sendo responsivo durante certo tempo, às preferências de seus cidadãos, considerados politicamente iguais, todos os cidadãos plenos devem ter oportunidades plenas:

1. De formular suas preferências.

2. De expressar suas preferências a seus concidadãos e ao governo através da ação individual e da coletiva.

3. De ter suas preferências igualmente consideradas na conduta do governo, ou seja, consideradas sem discriminação decorrente do conteúdo ou da fonte da preferência.36

Entrementes, os desvios têm ocorrido há muitos anos no mundo das entidades

(partidos, associações e sindicatos) e deve ser combatido, principalmente pelos

membros da categoria, os quais, quando em real desvantagem e passando por

perseguições por parte dos ‘representantes’ sindicais, devem, em último caso, procurar

apoio na estrutura do Estado (Ministério do Trabalho e Emprego, Ministério Público do

Trabalho e Poder Judiciário). Impõe-se que seja evitada ao máximo a utilização da

estrutura sindical para beneficiar ou perseguir possíveis concorrentes, uma vez que deve

ser manejada para favorecer a democracia.

Fatores que têm revelado diretorias/coordenações com mandatos sucessivos,

muitos dos quais em que sequer houve, propositalmente, concorrência (chapa única), em

face dos desvios de condutas dos dirigentes da estrutura sindical. Por vezes é clara

intenção de não haver disputa, com exigências burocráticas impraticáveis pelos que

36 DAHL, Robert A. Poliarquia: participação e oposição. Trad. de Celso Mauro Paciornik. 1. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2012. p. 25-26.

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estejam sem a ‘máquina’ sindical. Algo já observado, nos partidos políticos nos anos

iniciais do Século XX, por Michels:

[...] Sua recondução exigida, pelos estatutos, torna-se uma simples formalidade, uma coisa que se subentende. A missão temporária se transforma num cargo, e o cargo num posto fixo. Os chefes democráticos tornam-se irremovíveis e invioláveis como nunca antes na história o foram os chefes de um corpo aristocrático. A duração de suas funções ultrapassa em muito a duração média de ministros nos Estados monárquicos.

[...] existe ainda o hábito, mais ou menos propagado de acordo com o grau de desenvolvimento do partido, de enviar aos congressos pessoas munidas de mandatos imperativos e encarregadas de impedir os delegados de votar, sobre uma questão decisiva, num sentido contrário à opinião da maioria dos mandantes. [...]

Na apresentação dos candidatos políticos, se manifesta ainda outro fenômeno oligárquico grave: o nepotismo. A escolha de candidatos depende quase sempre de uma pequena coligação formada por chefes e subchefes locais que impõe à maioria dos camaradas seus próprios candidatos. Em muitos casos, o colégio eleitoral é considerado simplesmente uma prioridade de família.37

Em tal contexto de estabilidade forçada, tem-se um status quo ilegítimo, que

acaba por gerar ampliação na busca por órgãos estranhos ao meio sindical como apoio

contra as irregularidades, com consequente imposição de limitações à Liberdade

Sindical partida dos próprios membros da categoria. Como tratado por Tsebelis, ao

dispor sobre atores com poder de veto38, em situações em que a estabilidade decisória

conduzirá à instabilidade governamental, com crescente intervenção de burocratas e

juízes, o que aqui se faz comparando-se a organização estatal com a sindical:

A estabilidade decisória afeta uma série de características estruturais de um sistema político. A dificuldade que um governo encontra em suas tentativas de mudar o status quo pode levar à sua renúncia ou substituição, num sistema parlamentarista. Isso significa que a estabilidade decisória conduzirá à instabilidade governamental. [...] Por fim, a impossibilidade de mudar o status quo legislativo pode levar burocratas e juízes a serem mais ativos e independentes em relação ao sistema político.39

Outrossim, a Liberdade Sindical não pode ser compreendida como ilimitada a

ponto de permitir que membros desvirtuados da legalidade possam agir contra as

37 MICHELS. Op. cit. p. 64-67. 38 Para Tsebelis, atores com poder de veto são atores cujo acordo é necessário para uma mudança do status quo. A estabilidade decisória é o termo que expressa a dificuldade de uma mudança significativa do status quo, a qual aumenta em geral com o número de atores com poder de veto e com suas distâncias (p. 64) 39 TSEBELIS, George. Atores com poder de veto: como funcionam as instituições políticas. Trad. Micheline Christophe. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009.

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normas fundamentais e os bons costumes. Deve-se pensar em ‘Fronteiras da Liberdade’.

É o que se depreende da leitura dos artigos 4 e 8 da Convenção nº 87 da OIT

(Liberdades Sindicais)40, os quais buscam evitar arbitrariedades estatais como o

fechamento de entidades pela via administrativa ou a edição de leis que menoscabem a

Liberdade Sindical.

Tais artigos alertam os Estados Membros para o respeito a tal liberdade, mas

obrigam o respeito pelas entidades à legislação e a possibilidade do fechamento de

entidades pela via judicial, a qual atende ao devido processo legal, com ampla defesa e

contraditório. Ademais, a jurisprudência do Comitê de Liberdade Sindical da OIT41 que

toma como base as convenções da Organização, ainda recomenda intervenção em

alguns casos.

É o que se destaca no Capítulo I (Procedimento do Comitê de Liberdade

Sindical e os interlocutores sociais) ao se tratar da Condenação de Sindicalistas, quando

se dispõe, no item 64, que a condenação de sindicalistas com graves penas de prisão por

‘perturbação da ordem pública’, poderia permitir, dado o caráter geral dessas acusações,

que se reprimissem as atividades sindicais. Ainda no item referente à Proteção de

próprios e bens sindicais, constando no item 175 que o direito à inviolabilidade de

próprios sindicais tem como necessário colorário que as autoridades públicas não

podem exigir a entrada nesses locais sem prévia autorização dos ocupantes ou sem

haver obtido o competente mandado judicial; no item 183 que é necessário submeter a

controle judicial independente a ocupação ou interdição de próprios sindicais pelas

autoridades, devido ao grande risco de paralisação das atividades sindicais que

envolvem estas medidas; no item 184 que o Comitê ressaltou a importância do princípio

de que os bens sindicais deveriam gozar de adequada proteção; no item 185 que um

clima de violência, como atos de agressão contra próprios e bens sindicais, pode

constituir grave obstáculo ao exercício dos direitos sindicais, razão pela qual esses atos

40 Convenção 87/OIT: Artigo 4: As organizações de trabalhadores e de empregadores não estão sujeitas a dissolução ou suspensão por via administrativa. Artigo 8: 1. Ao exercer os direitos que lhes são reconhecidos na presente Convenção, os trabalhadores, os empregadores e suas organizações respectivas estão obrigados, assim como as demais pessoas ou coletividades organizadas, a respeitar a legalidade. 2. A legislação nacional não menoscabará nem será aplicada de forma que menoscabe as garantias previstas nesta Convenção. 41 ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO (OIT). A Liberdade Sindical – Recompilação de Decisões e Princípios do Comitê de Liberdade Sindical do Conselho de Administração da OIT. Brasília: OIT. 1 ed. Tradução do original espanhol por Edilson Alkmim Cunha 1997.

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deverão exigir severas medidas por parte das autoridades, especialmente submetendo os

supostos autores a uma autoridade judicial independente.

Outrossim, o Comitê dispõe no Capítulo 5 (Livre funcionamento das

organizações. Direito de elaborar estatutos e regulamentos) sobre o livre funcionamento

das organizações e sobre o direito de elaborar estatutos e regulamentos demarcando no

item 331 que disposições legislativas que regulam detalhadamente o funcionamento

interno das organizações de trabalhadores e de empregadores envolvem graves riscos de

ingerência pelas autoridades públicas. No caso de sua adoção ser considerada

indispensável pelas autoridades, estas disposições deveriam limitar-se a estabelecer um

limite geral, deixando às organizações a maior autonomia possível para reger seu

funcionamento e administração. As restrições a este princípio deveriam ter como únicos

objetivos garantir o funcionamento democrático das organizações e salvaguardar os

interesses de seus membros. Por outra parte, deveria ser previsto recurso a órgão

judiciário, imparcial e independente, para evitar todo risco de ingerência excessiva e

arbitrária no livre funcionamento das organizações.

No item 339 do compêndio elaborado pelo Comitê de Liberdade Sindical da

Organização Internacional do Trabalho (OIT) ressalta-se que é admissível a existência

de disposições que tenham por finalidade promover os princípios democráticos no seio

das organizações sindicais. A votação secreta e direta é uma das modalidades

democráticas e, nesse sentido, não seria objetável.

Já no Capítulo 6 (Direito da livre escolha de representantes), mais

especificamente no tópico ‘Direito de escolher livremente os representantes’, assevera-

se no item 350 que a liberdade sindical implica o direito de trabalhadores e

empregadores de escolher livremente seus representantes. No item 361 que não há

violação dos princípios da liberdade sindical quando a legislação contém algumas regras

com a finalidade de promover os princípios democráticos no seio das organizações

sindicais ou então garantir o desenvolvimento normal do processo eleitoral, respeitados

os direitos dos membros, a fim de evitar qualquer conflito no que tange ao resultado das

eleições. Ainda, no item 366 que nos casos de serem impugnados os resultados de

eleições sindicais, estas questões deveriam ser submetidas às autoridades judiciais que

deveriam garantir processo imparcial, objetivo e rápido.

O Comitê de Liberdade Sindical, ao tratar sobre intervenções de autoridades

em eleições sindicais no item 394 menciona que, com relação a um conflito interno no

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seio da organização sindical entre duas direções rivais, com intuito de garantir a

imparcialidade e a objetividade do processo, conviria que o controle das eleições

sindicais ficasse a cargo de autoridades judiciárias competentes. Ademais, no item 405

que nos casos em que sejam impugnados os resultados de eleições sindicais, estas

questões deveriam ser submetidas às autoridades judiciais que deveriam garantir um

processo imparcial, objetivo e rápido.

No mesmo passo, em favor da democracia com ampla participação, o item 406

ressalta que, a fim de evitar o perigo de graves limitações ao direito dos trabalhadores

de eleger livremente seus representantes, os casos submetidos aos tribunais por

autoridades administrativas, que não aceitam os resultados de eleições sindicais, não

deveriam - ao aguardo do resultado definitivo do processo judicial – paralisar o

funcionamento das organizações sindicais.

Para os casos de desvirtuamento do processo democrático nas entidades

sindicais, o Comitê, no título ‘Destituição de diretorias e intervenção em sindicatos’, do

compêndio em destaque, item 413, dispõe que mesmo reconhecendo que alguns fatos se

revestiam de um caráter muito excepcional e tinham podido justificar uma intervenção

das autoridades, entende que, para ser admissível, a intervenção do sindicato, tal como

havia sido executada, deveria ser rigorosamente provisória e ter como objetivo

exclusivo permitir a organização das eleições livres.

No Capítulo 18 (Conflitos no movimento sindical), ‘Conflitos no movimento

sindical’, item 973 observa que nos casos de conflitos internos, o Comitê tem achado

conveniente observar que a intervenção da justiça permitiria resolver a situação do

ponto de vista legal e normatizar a gestão e a representação da central sindical afetada.

Outra ação possível que tende a essa normatização seria a designação de um mediador

independente, com a concordância das partes interessadas, com o objetivo de buscar

conjuntamente a solução dos problemas existentes e, conforme o caso, proceder a novas

eleições. Em qualquer dos casos, o governo deveria reconhecer os diretores que

acabassem sendo os representantes legítimos da organização.

Conforme apresentado, deve-se lutar contra os desvios realizados para a

ilegítima manutenção do status quo nas entidades sindicais, atentando-se para os valores

da representação legítima, atendendo à democracia, com esforços e engajamento ligados

à base representada, bem como com o auxílio, se for o caso, de entidades externas e

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órgãos estatais para garantir a paridade de armas e a real disputa para a obtenção da

legitimidade almejada pela classe.

3. Casos conflituosos de eleições sindicais com ênfase no Estado do Ceará.

3.1 Panorama contemporâneo de combates a abusos por parte de representações

ilegítimas

Os últimos anos têm começado a revelar uma nova postura por parte dos

membros das categorias, os quais, após tentarem utilizar-se do Poder Político para

modificarem o status quo, quando entendido como destoante das finalidades e ideais da

organização sindical, têm buscado apoio na estrutura estatal para mediar os conflitos. O

que pode ser notado, ainda sem muito relevo, nos noticiários dos órgãos estatais

competentes para enfrentar as questões relacionadas ao Trabalho, em sentido amplo:

Justiça determina intervenção do Sindicato dos Empregados no Comércio em Olinda42

O Ministério Público do Trabalho (MPT) em Pernambuco entrou com Ação Civil Pública (ACP) com pedido de antecipação de tutela contra o Sindicato dos Empregados no Comércio em Olinda, após constatar a não-representatividade da entidade através de denúncia. Em resposta ao pedido do MPT, a 3ª Vara do Trabalho em Olinda, ao acatar a antecipação de tutela, determinou a intervenção do sindicato, nomeando, temporariamente, a Federação dos Empregados no Comércio de Bens e Serviços para representar a categoria.

O sindicato, entre outras coisas, não atuava por melhorias nas condições de trabalho da categoria e cobrava taxas indevidamente, além de violar o princípio da liberdade sindical, estipulando prazos mínimos de trabalho para filiação. Para a justiça, ficou clara a conduta dos diretores em se utilizar do sindicato para benefício próprio. Além de causar dano à coletividade de trabalhadores, a atitude compromete o próprio exercício da autonomia e finalidade do ente sindical na defesa da categoria. [...]

Sindicato dos Domésticos sob intervenção43

Antiga direção cobrava taxas ilegais para homologar demissões e responder a consultas de cálculos. Ex-presidente nega renúncia e avisa que abrirá uma associação

O Sindicato dos Trabalhadores Domésticos do Distrito Federal está sob intervenção do Ministério Público do Trabalho (MPT) por práticas ilegais, como cobrar taxa para homologar rescisões contratuais, para matricular filiados, para responder a simples consultas de cálculos e manter nos quadros

42 MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO (MPT) – Procuradoria Geral do Trabalho. Justiça determina intervenção do Sindicato dos Empregados no Comércio em Olinda. Net: http://portal.mpt.gov.br/wps/portal/portal_do_mpt/comunicacao/noticias/conteudo_noticia/!ut/p/c4/04_SB8K8xLLM9MSSzPy8xBz9CP0os3hH92BPJydDRwN_E3cjA88QU1N3L7OgMC93I_2CbEdFAAovLRY!/?WCM_GLOBAL_CONTEXT=/wps/wcm/connect/mpt/portal+do+mpt/comunicacao/noticias/justica+determina+intervencao+do+sindicato+dos+empregados+no+comercio+em+olinda. Acesso em 17.02.2013. 43 MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO. Sindicato dos Domésticos sob intervenção. Net: https://conteudoclippingmp.planejamento.gov.br/cadastros/noticias/2012/11/15/sindicato-dos-domesticos-sob-intervencao. Acesso em 17.02.2013.

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de direção pessoas alheias à classe 2014 incluindo Antonio Ferreira Barros, que renunciou oficialmente ao cargo de presidente em julho passado, mas continua falando em nome da entidade e atendendo em escritório no Setor Comercial Sul. Os serviços prestados irregularmente chegavam a custar R$ 150. A entidade, cujo objetivo é representar os direitos da categoria, exigia pagamentos ilegais pelo menos desde 1999. O sindicato foi fundado em 1996 por Barros.

Naquele ano, foi firmado um termo de ajuste de conduta com Barros, que se comprometeu a corrigir as irregularidades, promover eleições de chapas formadas por trabalhadores domésticos e deixar de cobrar por serviços que devem ser gratuitos. Mas, passados 13 anos, a situação permaneceu a mesma. Ele continuou descumprindo os termos do acordo, sob pena de multa, que já superou R$ 30 mil. Este ano, a Justiça e o MPT fecharam o cerco a Barros, o único integrante da entidade. Para o pagamento da multa, um Voyage 2006 chegou a ser penhorado. Oficiais de Justiça que inspecionaram o escritório à procura de patrimônios a serem bloqueados acreditam que o ambiente de penúria %u2014 com mesas e cadeiras em péssimo estado, e sem qualquer equipamento eletrônico %u2014 foi forjado.

"Chegamos a um impasse, ou ele cumpria o acordo ou íamos fechar o sindicato", explica a procuradora do Trabalho Marici Coelho de Barros Pereira. O dirigente sindical confessou, nos depoimentos juntados ao processo, aos quais o Correio teve acesso, que continuou fazendo as cobranças irregulares, pois se tratava do meio de sustento dele. O homem também alegou que era a única maneira de o sindicato permanecer em funcionamento, já que, no caso de domésticos, não há imposto sindical. Ele chegou a relatar para as autoridades que estava criando uma associação com o objetivo de continuar exigindo o pagamento dos profissionais. Há suspeita de que centenas de cálculos e rescisões homologados no período tenham deixado em desvantagem as trabalhadoras domésticas, pois na maioria das vezes quem arcava com as taxas eram os patrões.

[...]

Vera Lêda de Morais, presidente da Nova Central Sindical de Trabalhadores do DF, que está auxiliando no processo de formação da entidade, lamenta a situação do sindicato desde sua criação. "A gratuidade dos serviços sindicais precisa ser garantida. Sindicato não é empresa", afirma. Qualquer ato da entidade nos próximos dois anos deve ser comunicado ao MPT. "Estamos tentando salvar um sindicato, que é tão importante para a classe trabalhadora", diz a procuradora Marici. No Brasil, apenas 2% dos trabalhadores domésticos são sindicalizados.

Tais ações anômalas do Estado, que geralmente prima pela não intervenção ou

interferência, restam como último recurso para casos de extrema ilegitimidade e/ou

corrupção das direções das entidades sindicais, a qual passa a agir em desfavor dos

representados.

3.2. Casos ocorridos no Estado do Ceará (2010-2013)

3.2.1. SINTRO/CE (Rodoviários)

Pela via extrajudicial da mediação no Ministério Público do Trabalho (MPT)

ocorreu no Estado do Ceará, de forma branda, com o SINTRO/CE, conforme

dispusemos em livro de nossa autoria:

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Assim, ocorreu com o Sindicato dos Trabalhadores em Transportes Rodoviários do Estado do Ceará (SINTRO-CE), que estava reduzindo de forma avassaladora o número de filiados, bem como perdendo sua base representativa para outros sindicatos. Situações que ensejaram, durante anos, muitas denúncias ao Ministério Público do Trabalho. Até que, em novembro de 2009, houve denúncia formalizada na Procuradoria com relação a irregularidades na realização do pleito para a escolha da nova diretoria, principalmente, por impugnações mútuas das chapas, que contavam com pessoas condenadas, já com trânsito em julgado das decisões, inclusive. De modo que a eleição estava marcada para o dia 20.11.2009.

Paralelamente à atuação do Ministério Público, foram invitadas mais de treze ações na Justiça do Trabalho contra o pleito, membros e a diretoria, que eram retribuídas com mais ações, além das contestadas. Momento em que o direito estava sendo utilizado pelas partes para obstacularizar o processo democrático de forma justa.

[...]

Em seguida, após mais negociações na Procuradoria Regional do Trabalho da 7ª Região, os integrantes das demais chapas firmaram TAC, comprometendo-se a retirarem todas as ações judiciais em tramitação, resolvendo-se os imbróglios da eleição, algo que foi devidamente cumprido.44

Ao final, a entidade superou parte de seus conflitos e continuou seu trabalho,

minorando o descrédito da base e com possibilidades de soerguimento, tendo, contudo,

retomado as mesas de negociação e melhorado as conquistas para os trabalhadores,

conforme as últimas Convenções Coletivas de Trabalho, para as quais tiveram de

realizar diversas paralisações.

3.2.2. SINPOF/CE (Polícia Federal)

O MPT teve de coordenar a eleição para diretoria do Sindicato da Polícia

Federal45, com a participação solidária de outras categorias. A participação do MPT

ocorreu em função de uma decisão do Juiz da 1ª Vara do Trabalho de Fortaleza Judicael

Sudário de Pinho, confirmada após recurso pelo TRT-7ª Região (Relatora

Desembargadora Dulcina Holanda de Palhano), em ação promovida pela Chapa 03

frente a Chapa 01 (atual diretoria), a qual já dirigia o SINPOF desde sua fundação.

Assim, relata o membro do MPT sobre o ocorrido:

Poucos dias antes das eleições do SINPOF, o MPT/PRT-7ª Região foi demandado por integrantes da Chapa 03 (“Integração”) para mediar o

44 FARIAS, Clovis Renato Costa. Desjudicialização: conflitos coletivos do trabalho. São Paulo: Clube de Autores, 2011. p. 461-463. 45 PERIÓDICO ATIVIDADE. Eleição para diretoria do Sindicato da Polícia Federal é coordenada pelo MPT com a participação solidária de outras categorias. Net: http://vidaarteedireitonoticias.blogspot.com.br/2012/06/eleicao-para-diretoria-do-sindicato-da.html. Acesso em 17.02.2013.

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procedimento eleitoral, pois diziam temer a forma como seria ele conduzido, além de prenunciar possível parcialidade por diretores da entidade sindical (candidatos à reeleição pela Chapa 01, “Experiência e Trabalho: a luta continua”), sendo necessária a intervenção de um órgão imparcial, neutro, desvinculado do interesse particular dos concorrentes, até mesmo no fito de assegurar transparência e tranquilidade ao pleito, em nome da democracia do sindicalismo brasileiro.

No todo, eram 03 (três) Chapas concorrentes à sucessão sindical.

[...]

Como se vê, os principais atos do procedimento eleitoral foram estabelecidos e concretizados por consenso de todos os envolvidos, em documento formal firmado perante o MPT/PRT-7ª Região.

Note-se bem: a participação do MPT/PRT-7ª Região, nas referidas eleições do SINPOF, não seria na qualidade de “condutor” do procedimento eleitoral; mas, apenas, como “auxiliar”, “colaborador” e “garantidor dos direitos de democracia sindical”, sem poderes decisórios. O poder de decisão só ocorreria se houvesse empate entre os membros da Comissão Eleitoral, durante algum impasse específico. Deste modo, o desempate seria feito por um órgão imparcial, neutro, desprovido de interesse na causa, o que daria maior legitimidade e credibilidade ao pleito, sem que isso significasse intervenção estatal, em face da permissão dos envolvidos.46

A ação judicial (Reclamação Trabalhista nº 0001904-86.2010.5.7.0001) foi

proposta pela Chapa 03 pugnando por novas eleições, em face de empate ocorrido no

último pleito (novembro de 2010) e demais impugnações quanto a determinadas cédulas

de votação com possível identificação, contrariando o Estatuto da Entidade. Solicitava,

em resumo, a realização de nova eleição coordenada pelo MPT a ser disputada pelas

chapas que empataram.

No pleito questionado houve empate entre as Chapas 01 e 03 e, ante a ausência

de dispositivo específico para o caso na norma da entidade, a Comissão Eleitoral acatou

sugestão de membro da Chapa 01 indicando artigo do Código Eleitoral que impunha a

vitória para o candidato com idade mais avançada dentre os cabeças de chapa.

O MPT, na ocasião, também coordenando o processo por decisão de todas as

chapas concorrentes em acordo firmado na PRT-7ª Região, ressaltou a

imprescindibilidade de realização de segundo turno de votação, mas foi vencido por

46 TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 7ª REGIÃO. Procurador Regional do Trabalho Francisco Gérson Marques de Lima. Proc. nº 1904-86.2010.5.07.0001 (1ª Vara do Trabalho de Fortaleza). Parecer do Ministério Público do Trabalho (MPT). Autor: Carlos Onofre Façanha Dantas. Reclamados: Sindicato dos Policiais Federais no Estado do Ceará e Outros.

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decisão da Comissão Eleitoral e respeitou a vontade das partes em face da Liberdade

Sindical (art. 8º da Constituição de 1988).

Para o pleito de 2012, com a concessão dos pedidos na ação referenciada o

Ministério Público do Trabalho, Procurador Regional Do Trabalho Dr. Gérson Marques

(Coordenador da CONALIS na 7ª Região e Vice Coordenador Nacional) reorganizou a

Comissão Eleitoral diante de desistências ocorridas no pleito anterior. O MPT designou

como Presidente o advogado e professor universitário Clovis Renato Costa Farias

(COMSINDICAL OAB/CE), Vice Presidente Antônio Jesu Granjeiro de Sousa Júnior

(Diretor do Sindicato dos Servidores da Justiça Federal do Estado do Ceará –

SINDJUFCE) e, como membros, José Carlos Vasconcelos (SEC - Sindicato dos

Comerciários do Ceará), José Cláudio Camelo Timbó (indicado pela Chapa 01) e

Nasion Tito Fernandes (indicado pela Chapa 03). A única suplente foi a Procuradora do

Trabalho Francisca Helena Duarte Camelo.

Acordou-se que a votação, nos termos da anterior, ocorreria em cinco locais de

votação, sendo três na capital (Sede do Sindicato, Departamento de Polícia Federal e

Anexo da delegacia) e dois no interior (Sobral e Juazeiro do Norte). Havia, nos termos

da lista uniforme, 592 eleitores, do quais votaram 401, ausentes 191 e 32 votos em

branco, inexistindo votos nulos (do total 10 foram em cédula física). A Chapa 01 obteve

170 votos e a Chapa 03 saiu vencedora com 199 votos. Ao final, o Membro do MPT e a

Comissão Eleitoral proclamaram vitoriosa a Chapa 03 – Integração, com o total de 199

votos.

3.2.3. SINDVIGILANTES/CE

Em um dos momentos históricos do sindicalismo estadual, foi necessária a

participação do Ministério Público do Trabalho para a realização com lisura de pleitos

eleitorais,

Vigilantes reelegem presidente de Sindicato com 50,7% dos votos válidos47

Apuração foi encerrada às 3 horas da manhã desta segunda-feira, na sede do MPT cearense

[...]

47 PROCURADORIA REGIONAL DO TRABALHO DA 7ª REGIÃO. Vigilantes reelegem presidente de Sindicato com 50,7% dos votos válidos. Net: http://www.prt7.mpt.gov.br/noticias/2011/fevereiro/28_02_11_MPT_vigilantes_reelegem_presidente_sindicato.html. Acesso em 17.02.2013.

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O MPT assumiu a assistência do processo eleitoral para a entidade no final de 2010 a pedido dos próprios trabalhadores. A votação ocorreu na quinta-feira, 24, e sexta-feira, 25, em vários pontos do Estado, razão pela qual a apuração começou apenas no domingo, após recolhidas todas as urnas. A Comissão Eleitoral foi formada pelo advogado e professor Clóvis Renato Costa Farias (presidente), pela policial federal Joyce Cabó Maia e pelo gráfico José Rogério de Andrade Silva, com a assessoria do advogado sindicalista Carlos Chagas. Cada chapa indicou um membro para acompanhar os trabalhos. As decisões no pleito foram tomadas mediante consenso entre representantes das três chapas. Segundo dados da Polícia Federal, o Ceará tem cerca de 12 mil vigilantes legalizados, dos quais quatro mil sindicalizados.

AVALIAÇÃO – O presidente reeleito do Sindvigilantes, que desde 1999 passou a integrar a direção da entidade e se elegeu presidente pela primeira vez em 2002 (com reeleições em 2005, 2008 e 2011), afirma que, embora defenda a autonomia sindical, compreende que o MPT contribuiu para o aperfeiçoamento do processo democrático. “Minha avaliação deste processo é positiva”, enfatiza. “A participação do MPT foi fundamental para que o processo eleitoral ocorresse sem atritos e para que a chapa eleita o seja pelo voto e não por manobras. A presença da Instituição foi essencial para que tivéssemos um processo normal e transparente”, avaliou o candidato da Chapa 2, Jonas Rodrigues.

“Sem dúvida alguma, não teríamos a tranquilidade que tivemos sem a presença do MPT porque era um processo que indicava que haveria conflitos. Além disso, esta participação dá legitimidade porque o processo foi conduzido com toda transparência”, completa o candidato da Chapa 3, Daniel Borges da Silva. Clécio Morse, diretor do Sindicato dos Bancários e secretário de Comunicação da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB), que também acompanhou todo o processo eleitoral, afirma que foi de grande lucidez a condução do pleito. “O MPT cumpriu seu papel de mediador, sem intervir diretamente, mas buscando o consenso das chapas concorrentes, assegurando ao processo um nível razoável de intercorrências, de modo a respeitar a vontade de cada eleitor vigilante”, observa Clécio. [...]

Desse modo, impôs-se a participação de órgãos estatais, externos à categoria e

buscados por integrantes da base, para equalizar a situação, encontrando-se a entidade,

atualmente, em pleno funcionamento. Relembrando-se que diante de tais divergências a

categoria foi, em momento anterior, dividida com a criação do SINDVALORES

(vigilantes que trabalham em carros forte com transporte de valores).

3.2.3.4. Sindicato MOVA-SE (Servidores públicos do Estado do Ceará)

No correr de 2012 para 2013, trabalhadores apresentaram denúncias contra a

diretoria no Ministério Público do Trabalho, das quais muitas já tinham sido

judicializadas, com afastamentos mútuos entre alas da diretoria que passaram a se

digladiar internamente pela administração do Sindicato MOVA-SE, representante de

mais de 120 mil servidores públicos no Estado do Ceará. O acervo apresentado contava

com malversação do patrimônio e recursos do sindicato, corrupção, carência de

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reivindicações e movimentos, uso da estrutura sindical em benefício de determinados

candidatos, dentre outras.

Tais conflitos já estavam sendo sentidos pela categoria, de modo que o

descrédito nas ‘lideranças’ estava levando a entidade à perda constante de filiações. O

sindicato tinha sido um dos mais atuantes e com um dos maiores níveis de filiação do

estado, passou a contar com menos de 10% dos membros da categoria, com reduções

constantes. Os canais de diálogo entre dirigentes eleitos, no Poder há anos, não mais

existia diante do ‘racha dentro da diretoria’, o que se intensificou diante da proximidade

das eleições para o novo mandato de dirigentes. Tudo teve início de forma voluntária e

extrajudicial em mediação coletiva realizada no Parquet trabalhista, com pactos

firmados por todos os intervenientes.

Entretanto, em contexto que novamente impôs a participação do Estado (MPT)

e de atores de categorias diversas da base representada, para a realização da eleição,

diante do estado agravado dos ânimos e atitudes amorais para a manutenção ilegítima

do status quo, findou por uma intervenção real na entidade, proposta na Ação Civil

Pública do MPT, para que se pudesse tentar garantir a lisura do pleito e restabelecer a

democracia na entidade.

4. Conclusões O presente trabalho apresentou aspectos relevantes para o aprimoramento

democrático das entidades representativas sindicais, com ênfase nos sindicatos da

categoria profissional.

Para tanto, passou-se pela disposição de elementos básicos imprescindíveis ao

cumprimento das finalidades dessas organizações, tais como a proteção a seus

dirigentes, a legitimidade adquirida quando das eleições democráticas, impondo-se a

educação para a realização da democracia em âmbito representativo laboral.

Em seguida, adentrou-se especificamente nas eleições sindicais, por vezes

tomando como paralelo, o ideal democrático dos governos em geral, enfatizando

aspectos sócio jurídicos, indispensáveis a um modelo legítimo a ser seguido.

Paralelamente foram sugeridas atitudes e ações, que se compreende como

relevantes para o ressurgimento do sindicalismo como representante dos interesses das

categorias laborais, também com maior legitimidade frente a sociedade.

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Em continuação, foram expostos aspectos centrais da Liberdade Sindical nos

termos convencionados pela Organização Internacional do Trabalho, com seus limites e

sopesamentos necessários ao seu funcionamento no Estado Democrático de Direito,

como forma de luta contra a perpetuação ilegítima do Poder por meio das eleições

sindicais.

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A INFIDELIDADE PARTIDÁRIA DEPOIS DAS CONSULTAS N. 1.369 E N. 1.407 AO TRIBUNAL SUPERIOR

ELEITORAL E O ATUAL POSICIONAMENTO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

INFIDELITY PARTY AFTER THE CONSULTATIONS NR. 1.369 AND

NR. 1.407 TO THE SUPERIOR ELECTORAL COURT AND THE ACTUAL POSITION OF THE FEDERAL SUPREME COURT

Filomeno Moraes

Marcus Pinto Aguiar

RESUMO

O trabalho trata da análise da Resolução n. 22.526, de 27 de março de 2007, do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a partir da Consulta n. 1.398 feita a esta Corte pelo Partido da Frente Liberal (PFL), atualmente Democratas (DEM), e da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em sede do Mandado de Segurança (MS) n. 26.602, julgado em 04 de outubro de 2007 cujo ponto fulcral é a temática referente à (in) fidelidade partidária, com a polêmica conclusão de que os mandatos parlamentares das eleições proporcionais pertencem aos partidos políticos e não ao candidato eleito, posição esta posteriormente estendida às eleições majoritárias através da Consulta 1407 ao TSE.

Palavras-chave: Direito partidário; Infidelidade partidária; Direitos Fundamentais; Democracia. ABSTRACT The work deals with the analysis of Res. 22.526 of 27 March 2007, from the Supreme Electoral Tribunal (TSE) due to the Inquiry n. 1398 made to this Court by the Liberal Front Party (PFL), currently Democrats (DEM), and the decision rendered by the Federal Supreme Court (STF) within the Injunction (MS) n. 26,602, judged on October 4th 2007, whose focal point is the issue concerning the (in) fidelity to the party, with the controversial conclusion that the parliamentary seats of proportional elections belong to political parties and not the elected candidate, this position later extended to majoritarian elections by TSE Consulting nr. 1407.

Keywords: Party right; Infidelity of party; Fundamental rights; Democracy.

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INTRODUÇÃO

O trabalho trata da análise da Resolução n. 22.526, de 27 de março de 2007, do Tribunal

Superior Eleitoral (TSE), a partir da Consulta n. 1.398 feita a esta Corte pelo Partido da Frente

Liberal (PFL), atualmente Democratas (DEM), e da decisão proferida pelo Supremo Tribunal

Federal (STF) em sede do Mandado de Segurança (MS) n. 26.602, julgado em 04 de outubro de

2007. Tangencia ainda outras decisões correlatas, também em mandado de segurança (MS 26.603 e

26.604) na Corte Suprema, cujo ponto fulcral é a temática referente à (in) fidelidade partidária, com

a polêmica conclusão de que os mandatos parlamentares das eleições proporcionais pertencem aos

partidos políticos e não ao candidato eleito, posição esta posteriormente estendida às eleições

majoritárias através da Consulta 1407 ao TSE, a qual gerou a Resolução n. 22.610 de 25 de outubro

de 2007 para disciplinar o processo de perda de cargo eletivo, bem como de justificação de

desfiliação partidária.

Será ainda feita uma abordagem sintética em relação aos modelos de mandatos a partir da

referência teórica de Orides Mezzaroba, como forma de esclarecer as características de cada um e

demonstrar que a ideia de mandato partidário utilizada como argumento e fundamento de alguns

votos, especialmente do relator, não se coaduna com a realidade política, jurídica e social do Brasil.

Assim, as decisões dos writs acima referidos, especificamente tratando de mudança de

partido sem causa legítima, dispõem que se tal fato se deu a partir de 27 de março de 2007, para

mandato em eleições proporcionais e majoritárias, o titular perderá seu mandato, podendo o partido

ao qual estava originariamente filiado requerer a devolução do mesmo.

Inicialmente, serão apresentados os principais fundamentos que nortearam a resposta do

TSE às Consultas n. 1.398 e n. 1.407, sobre a titularidade do mandato, para em seguida, confrontá-

los com outras posições jurídicas. A importância desta análise se dá também porque, a partir da

primeira consulta, foram impetrados três mandados de segurança junto ao STF (acima indicados)

por partidos políticos cujas decisões modificaram a jurisprudência da Corte Suprema sobre o tema

em foco.

A relevância deste trabalho é analisar criticamente as posições do STF e TSE nos casos

aqui comentados, para demonstrar como sua interpretação fática e jurídica carece muitas vezes de

uma argumentação baseada em uma hermenêutica constitucional direcionada para a valorização da

harmonia entre os três poderes, da dignidade humana e do bem estar das pessoas em suas realidades

concretas.

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1 MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL E A EVOLUÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA DO STF NO JULGAMENTO DO MANDADO DE SEGURANÇA N. 26.602 DE 2007

Antes de adentrar propriamente na análise do mérito da decisão do STF do MS n.

26602/2007, é importante situar o contexto prévio que envolve tal pronunciamento judicial, uma

vez que a existência deste se deve fundamentalmente à Consulta n. 1.398 da parte do Partido da

Frente Liberal (PFL), atualmente Democratas (DEM), que provocou o Tribunal Superior Eleitoral a

resolver o seguinte questionamento: “Os partidos e coligações tem o direito de preservar a vaga

obtida pelo sistema eleitoral proporcional, quando houver pedido de cancelamento de filiação ou de

transferência do candidato eleito por um partido para outra legenda?” (BRASIL, 2012)

A resposta a esta consulta se deu a partir da sessão administrativa do TSE de 27 de março

de 2007, através da Resolução n. 22.526, por seis votos contra um, com o seguinte entendimento da

Corte, na forma do voto do relator, como segue:

Com esta fundamentação, respondo afirmativamente à consulta do PFL, concluindo que os Partidos Políticos e as coligações conservam o direito à vaga obtida, pelo sistema eleitoral proporcional, quando houver pedido de cancelamento de filiação ou de transferência do candidato eleito por um partido para outra legenda. (BRASIL, 2012d)

Como a decisão do TSE não foi cumprida na esfera administrativa (Câmara dos

Deputados), a questão foi apresentada em sede de Mandado de Segurança (MS 26.602) diante da

Suprema Corte, e esta, contrariamente a sua orientação anterior pacificada1, entendeu que o

mandato pertence ao partido e não ao parlamentar eleito.

Dentro da proposta deste trabalho encontra-se também a avaliação de alguns dos aportes

que foram utilizados como fundamentos para a decisão acima referida do TSE (e a partir dela, do

STF) que foi considerada polêmica2 não apenas pela mudança de entendimento sobre o tema pela

Suprema Corte, até porque se reconhece a influência de aspectos políticos que permeiam as próprias

normas constitucionais e muitas vezes motivam seus intérpretes, mas é inquestionável a ponderação

entre os fatores jurídicos e políticos no processo hermenêutico constitucional, como coloca

Bonavides (2010, p.462): Mas do mesmo passo não se há de conceder importância extrema ao elemento político de que se acha impregnada a norma constitucional. Fazer isto seria cair no extremo oposto, chegando-se por essa via ao sacrifício da norma. [...] Teríamos assim, através de caminho

1 Em relação à decisão do STF neste caso, de acordo com Amorim (2007, p. 3): “Causou enorme polêmica no meio político, tendo em vista a jurisprudência anterior do Tribunal, pacífica no sentido de que não perderia o mandato o candidato que saísse do partido”. 2 Apesar de discordar do posicionamento anterior do STF, confirma o Min. Gilmar Mendes que o entendimento pacífico da Corte Suprema era de não acolhimento da tese da perda de mandato eletivo por infidelidade partidária, nos termos: “Nesse aspecto, vinha sendo até aqui pacífica a orientação no Supremo Tribunal Federal de que a infidelidade partidária não deveria ter repercussão sobre o mandato parlamentar (MS n° 20.927/DF, Rel. Min. Moreira Alves, julg. 11.10.1989). A maior sanção que a agremiação partidária poderia impor ao filiado infiel era a exclusão de seus quadros”.

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inverso, por obra unicamente de intérpretes, reintroduzido no ordenamento constitucional a incerteza e a insegurança sobre o direito básico.

A polêmica se estabeleceu também em torno do inesgotável tema do “ativismo judicial” ou

da “judicialização da política”, uma vez que o Superior Tribunal Federal ao aplicar a técnica da

mutação constitucional acabou criando no artigo 55 da Constituição Federal mais uma hipótese de

perda de mandado parlamentar, sem o devido processo legiferante requerido, atribuindo a si uma

prerrogativa de poder legislativo.

Obviamente, a decisão foi saudada com entusiasmo pelos partidos que submeteram a

consulta ao TSE e, posteriormente, mandado de segurança ao STF, mas digna de nota é a forma

ufanista com a qual o ministro Gilmar Mendes se manifestou sobre a decisão da Suprema Corte,

mais propensa a um agente político do que jurídico, sem a necessária harmonia preconizada por

Bonavides, conforme referido no parágrafo anterior. Afirmou Mendes (2012): “A decisão do

Supremo Tribunal Federal, portanto, constitui um marco em nossa história republicana no sentido

da consolidação da democracia e da efetivação dos direitos políticos fundamentais. O maior

beneficiado dessa decisão, sem sombra de dúvida, é o cidadão-eleitor”.

Não se pretende aqui questionar a insofismável capacidade jurídica do Ministro Gilmar

Mendes, mas apenas alertar que é preferível a autoridade do argumento ao argumento da autoridade.

Assim, na sua fala aqui em análise, diz que o novo entendimento está amparado na técnica de

mutação constitucional como pressuposto desta “evolução jurisprudencial” “Ela reconhece e

reafirma, ao contrário, a necessidade da contínua e paulatina adaptação dos sentidos possíveis da

letra da Constituição à realidade que a circunda” (MENDES, 2012). Cabe aqui, mais uma vez, a

ressalva de Bonavides (260, p. 462): Esta [a norma constitucional] – deve ficar bem assinalado – não é apenas o receptáculo formal onde cabem todas as variações de conteúdo ou substância da vontade que nela vem expressa, porquanto, se assim fora, incorreríamos no grave risco de anular as vantagens estabilizadoras contidas no formalismo da rigidez constitucional.

A mutação constitucional, sem dúvida, é uma janela através da qual o Direito olha para a

vida social, que se desenrola em um continuum temporal, entretanto, a mesma precisa de limites

para que não se exorbite do disposto pelo poder constituinte. Assim, seguindo a proposta de Barroso

(2010, p.128), tais limites seriam: “a) as possibilidades semânticas do relato da norma, vale dizer, os

sentidos possíveis do texto que está sendo interpretado ou afetado; e b) a preservação dos princípios

fundamentais que dão identidade àquela específica Constituição”. Mais adiante esta pesquisa

revelará como ambos foram ultrapassados.

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Um dos argumentos que se utilizou para penalizar o trânsfuga3 e adequar as decisões em

comento dentro desta perspectiva da mutação constitucional foi a de que havia uma demanda social

neste sentido, ou, na fala de Gilmar (2012): “uma clara violação à vontade do eleitor e um

falseamento grotesco do modelo de representação popular pela via da democracia de partidos”.

Caberiam algumas perguntas a esta defesa da vontade popular. Como foi identificada tal

vontade? Quais os métodos utilizados para se chegar a conclusão que o eleitor que é midiaticamente

induzido a votar no “representante do povo” e não do partido, entendeu que sua vontade não estava

sendo realizada na democracia representativa que agora passaria a ser partidária? E por último,

apesar da formalidade expressa nos estatutos dos partidos acerca de suas finalidades partidárias,

pode-se realmente concluir contemporaneamente a quem os partidos realmente representam e quais

seus objetivos?

2 A INFIDELIDADE PARTIDÁRIA A PARTIR DA CONSULTA N. 1.398 AO TSE

Alguns pontos devem ser analisados em relação aos fundamentos da decisão do TSE na

Resolução n. 22.526, a partir do voto do relator. Primeiramente, quanto aos aspectos constitucionais

e legais, lembra o mesmo que é condição de elegibilidade, segundo o art. 14, § 3º, V da Carta

Magna4, a filiação partidária, e que aos partidos, por previsão constitucional (art. 17, § 1º)5, cabe a

definição das normas de fidelidade partidária em seus estatutos. Além disso, afirma o Ministro que

os artigos 108, 175, § 4º e 176 do Código Eleitoral6 indicam que “os votos proporcionais pertencem

ao Partido Político”, consequentemente, o mesmo se daria com o mandato eletivo nas eleições

proporcionais.

O relator conclui que os dispositivos constitucionais acima citados seriam “indicativos

suficientes” para caracterizar a democracia participativa brasileira como um modelo de

“partidocracia” (STE, 2007, p. 4). Na verdade, parece que se confundiu em relação aos diferentes

modelos de mandato. Para esta distinção, este trabalho se apoia nas considerações de Orides

Mezzaroba, ao sustentar que o mandato pode se revestir de três modelos: mandato imperativo,

mandato representativo e mandato partidário. E que, apesar das críticas, vinha prevalecendo no

3 Segundo o dicionário Houaiss (2009, p.1867), trânsfuga é “aquele que deixa o partido político a que estava filiado para se filiar a outro”, o que pratica o transfúgio (transfuguismo, em espanhol, ou turncoat, em inglês). 4 Dispõe o art. 14, § 3º, V, CF: “§ 3º - São condições de elegibilidade, na forma da lei: [...]; V - a filiação partidária; [...]”. (BRASIL, 2012g) 5 Segundo o art. 17, §1º, CF: § 1º É assegurada aos partidos políticos autonomia para definir sua estrutura interna, organização e funcionamento e para adotar os critérios de escolha e o regime de suas coligações eleitorais, sem obrigatoriedade de vinculação entre as candidaturas em âmbito nacional, estadual, distrital ou municipal, devendo seus estatutos estabelecer normas de disciplina e fidelidade partidária. (BRASIL, 2012g) 6 Dispõe a Lei 4.737/65 nos seus artigos 108 e 176: “Art. 108. Estarão eleitos tantos candidatos registrados por um Partido ou coligação quantos o respectivo quociente partidário indicar, na ordem da votação nominal que cada um tenha recebido. [...] Art. 176. Contar-se-á o voto apenas para a legenda, nas eleições pelo sistema proporcional:” (BRASIL, 1965)

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Brasil, inclusive com jurisprudência pacífica do STF, o segundo, o mandato representativo, cuja

característica marcante é a não existência de mecanismos que possam controlar de forma real a

prestação de contas dos parlamentares pelos eleitores. Difere este modelo do mandato partidário,

típico da democracia partidária, ou, como propõe Kelsen, do Estado de Partidos, ou ainda,

partidocracia, na qual os mandatos pertencem aos Partidos Políticos e a “fidelidade partidária torna-

se um pré-requisito fundamental” (MEZZAROBA, 2004, p.77-79)

Abrindo um parêntese relevante, ainda quanto aos modelos de mandato, para que a questão

possa ser mais bem aclarada, já que a mesma foi utilizada como fundamento para diversos votos da

decisão do TSE na Resolução n. 22.526, vale ressaltar um pouco mais a diferença entre os três

modelos. O primeiro, o mandato imperativo, tem sua origem no final da Idade Média, quando as

corporações e os burgos estabeleciam seus delegados para representá-los e estes não tinham o poder

de exorbitar das instruções do representado, devendo exercer o mandato dentro das orientações

estritas do mandante, do que se evoluiu para o princípio lockeano de “representação vinculada à

ideia de autoridade”, posteriormente superada pelo nascimento do Estado de Direito e o modelo

representativo.

Assim, pode-se afirmar de maneira sucinta que as principais características do mandato

imperativo são: a) representante exatamente restrito às orientações da comunidade (previamente

determinadas) da qual ele fazia parte e havia sido indicado; b) o representante está obrigado a

prestar constas de suas ações perante a comunidade, podendo inclusive responder patrimonialmente

por eventuais danos causados no exercício de seu mandato7, e c) “a soberania está pulverizada em

cada indivíduo que compõe a Sociedade” (MEZZAROBA, 2004, p. 71-73).

Já o formato do mandato representativo começa a se delinear em Montesquieu com as

ideias de separação de e equilíbrio entre poderes, nas quais o Legislativo é a esfera de discussão e

representação dos interesses gerais da comunidade. Em Edmund Burke, nasce o princípio de que os

representantes não estariam restritos apenas à vontade dos mandatários, dando àqueles maior

autonomia no exercício de suas funções, inclusive com a capacidade de defender os interesses da

sociedade nacional. Desta forma, são plantadas as sementes do modelo de mandato partidário, que

reflete a pluralidade e a complexidade dos nacionais do Estado, não apenas em aspectos políticos,

como bem expressa Mezzaroba (2004, p.65): As principais características do corpo social que devem ser espelhadas no órgão representativo, além das políticas e ideológicas, são as socioeconômicas, as profissionais, as religiosas, as culturais , as étnicas e de outras minorias sociais. A representação estaria vinculada aos interesses de coletividades específicas [...]. A partir da caracterização desses

7 A primeira característica do mandato imperativo aqui indicada, ressalta o aspecto de restrição geográfica dos interesses defendidos pelo representante, sem levar em consideração questões mais amplas do Estado. Já a segunda, é bastante salutar para a orientação da conduta dos mandatários, inclusive nos dias atuais em que os “representantes do povo” buscam outros interesses que não o da comunidade e muitas vezes de forma irresponsável, isto é, sem imputar-lhes a responsabilização pelos danos causados aos representados, quer comissiva ou omissivamente.

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novos sujeitos coletivos começam a nascer os Partidos operários, confessionais, étnicos, feministas, agrários, etc.

A realidade contrasta com a teoria; esta apenas busca uma aproximação daquela para tentar

entendê-la e explicá-la. Da mesma forma, os modelos de representação política também tem suas

falhas e se aproveita delas para buscar uma teoria melhor. A globalização contemporânea e as

características de uma sociedade midiática, que supervalorizam os símbolos e transformam o

candidato a cargo eletivo em um pop star, a ponto de ofuscar o programa, a filosofia e a ética

partidárias, como bem alerta Nogueira (1998, p. 227): “A questão é que essa transfiguração espelha

a crise de um tipo particular de governo representativo – ‘a democracia de partido’ [...] No

horizonte, desponta uma nova forma de representação: a ‘democracia do público’ [...]”.

Ainda sobre este ponto, chama a atenção Mezzaroba para o fato relevante de que o

acolhimento do princípio da fidelidade partidária pressupõe também a existência de uma

“Democracia Intrapartidária”, em que os representantes teriam ampla liberdade e igualdade de

participação nos assuntos internos do partido, e isto não se dá por meio de uma resolução ou uma

decisão judicial, nem mesmo por emenda constitucional (MEZZAROBA, 2004, p. 299).

Afirmou-se ainda no TSE que as questões de fidelidade partidária devem ser lidas sob a luz

da hermenêutica constitucional, chamando atenção para a superação da “velha hermenêutica” pela

força normativa dos princípios constitucionais e da interpretação normativa a partir de uma

dimensão teleológica do direito (TSE, 2007, p. 4). Em que pese a lembrança de Paulo Bonavides e

Norberto Bobbio nestas questões, parece muito mais que a decisão do TSE quis apenas se fundar

em argumentos de autoridade, pois, de concreto, não se apresentou nenhuma argumentação

consistente, capaz de demonstrar quais seriam estes princípios e como se daria a ponderação dos

mesmos no caso em tela, aos moldes do que bem ensina Alexy.

No TSE, defendeu-se ainda que o único elemento da identidade política de um candidato é

o seu vínculo ao partido, uma vez que não pode haver candidatura fora dele, opinião que pode até

ser aceita, mas que não diz nada em relação ao já eleito candidato (que é a condição do mesmo em

debate), que agora, no exercício do seu munus político e público, não necessariamente está obrigado

a continuar vinculado ao seu partido originário. Na verdade, os partidos políticos representam a

própria diversidade e pluralidade do povo, ou como afirma Sartori (1982, p. 48): “Os partidos são

canais de expressão”. E, mesmo tendo cada partido seu próprio estatuto e programa de ação, não

necessariamente precisa homogeneizar o pensamento dos seus membros, muito pelo contrário, a

diversidade de ideias, mesmo sob o manto de um ideal comum, é extremamente positiva para a

realização da democracia.

É importante que se diga que este trabalho não tem a finalidade de defender a manutenção

do mandato pelo partido, quando do abandono do seu parlamentar, pois acredita que tal poderia se

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dar; entretanto, o escopo aqui é sobre o caminho que tanto o TSE como o STF tomaram, a partir de

julgamentos mais de cunho moral do que propriamente jurídicos, em que aqueles deveriam alumiar

estes, mas não refutá-los sobre o manto de uma interpretação sem a apropriada racionalidade

jurídica requerida.

No TSE, o relator lança mão da expressão “força normativa dos princípios” e dos

princípios da probidade e da moralidade como se fossem palavras mágicas que, por si sós bastassem

para afastar quaisquer dúvidas de que a tese não fosse válida. Diz-se ainda que: “o tempo presente é

o da afirmação da prevalência dos princípios constitucionais sobre as normas de organização dos

Partidos Políticos, pois sem isto se instala, nas relações sociais e partidárias, uma alta dose de

incerteza e dúvida”. E por acaso, as normas de organização partidária, também com fundamento

constitucional, não tem natureza de princípio ou de princípio, nos moldes, por exemplo, do artigo

17, parágrafo primeiro, da mesma Carta Magna? (TSE, 2007, p. 7)

Por fim, o voto vencido aponta algumas ideias esclarecedoras e que merecem destaque,

com as quais se alinha esta pesquisa, entre elas, a de que não há norma constitucional ou

infraconstitucional que disponha sobre a perda do mandato eletivo por infidelidade partidária.

Entretanto, reconhece que a nova hermenêutica fundada nos princípios constitucionais, de

interpretação mais aberta por causa do seu próprio conteúdo normativo, ensejaria tal entendimento,

não fosse pelo fato de que neste caso, tem-se tratado de princípios implícitos, que também

poderiam, sem dúvidas, fazer parte do bloco constitucional.

O ministro que proferiu o voto vencido amparou-se no precedente do Mandado de

Segurança n. 20.927 cujo julgamento foi em 11 de outubro de 1989, lembrando inicialmente que o

princípio da fidelidade partidária entrou no nosso ordenamento através da Emenda n. 1/69 e que foi

expurgado posteriormente através da Emenda Constitucional n. 25/85, de modo que até os dias

atuais continua sem previsão legal. Assim, arremata o ministro Marcelo Ribeiro: “Não me parece

haver espaço para invocar princípios implícitos quando a matéria foi tratada expressamente na

Constituição anterior e a alusão à perda de mandato, de modo claro, foi retirada da atual

Constituição” (TSE, 2007, p. 60).

Além disso, reforça a tese de que o rol do art. 55 da Constituição é numerus clausus,

quando trata das hipóteses de perda de mandato de forma expressa. Pensamento este também

partilhado por Cerqueira e Cerqueira (2008, p. 139), que afirmam que: “O TSE [...] atuou como

‘legislador positivo’ constitucional, adiantando a Reforma Política, criando uma hipertrofia e

invadindo espaço do poder Legislativo”. Aqui cabe bem a observação de Filomeno Moraes (2010,

p. 16), quando diz: “Constituições, são elas, acima de tudo, instrumentos de governo que limitam e

restringem o poder político”.

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Amparados pela decisão do TSE, além do DEM, outros dois partidos, o PPS (Partido

Popular Socialista) e o PSDB (Partido da Social Democracia Brasileira), entraram com um

requerimento junto à Presidência da Câmara dos Deputados com o objetivo de que esta convocasse

seus respectivos suplentes para assumir a vaga dos deputados que haviam transmigrado de legendas.

A decisão do então presidente, deputado Arlindo Chinaglia, em 26 de abril de 2007, foi de

indeferimento do pleito, com base no fato de que a Resolução do TSE tem força apenas de

esclarecimento e não de coisa julgada, e mais, que nos termos do Regimento Interno da Câmara dos

Deputados (RICD), segundo o art. 238, não havia se configurado qualquer hipótese de declaração

de vacância de mandato parlamentar, nem de perda de mandato, nos moldes do que dispõem o art.

55 da Constituição Federal e o art. 240 do RICD. Por conta deste ato da Presidência, os referidos

Partidos impetraram de forma autônoma três mandados de segurança (MS 26.602, MS 26.603 e

26.604), cabendo a esta pesquisa, a análise apenas do MS 26.602, impetrado pelo PPS.

De acordo com o Relatório: “O impetrante requereu à autoridade coatora ‘a posse dos

deputados suplentes nas vagas pertencentes ao Partido Popular Socialista decorrentes da desfiliação

dos deputados [...} eleitos pela legenda nas últimas eleições, conforme decisão do Tribunal Superior

Eleitoral referente à Consulta n. 1.398” (STF, 2007).

A decisão deste Mandado de Segurança foi no sentido de acolher a tese da infidelidade

partidária como fundamento para perda do mandato eletivo do parlamente que muda de legenda

sem uma causa justa, mas contando como marco temporal a resposta do TSE à Consulta n. 1.398,

isto é, a partir de 27 de março de 2007. E, neste caso, o MS 26.602 foi denegado, assim como o MS

26.604, uma vez que os parlamentares abandonaram seu partido de origem antes da referida data.

Apenas o mandamus impetrado pelo DEM (MS 26.603) deu concessão parcial à ordem, uma vez

que um dos parlamentares (deputada Jusmari Oliveira, da Bahia) havia se desfiliado após o marco

acima delimitado.

Bastante instrutivo para o debate, é o parecer da Procuradoria Geral da República (PGR)

no Mandado de Segurança n. 26.603, extensivo ao MS 26.602 e 26.604, ocasião em que o

Procurador- Geral, mesmo entendendo que “a questão da infidelidade partidária é uma anomalia” e

reprovando tal conduta como repreensível ética e politicamente, reconhece que não é através da

interpretação constitucional que a reforma política poderá ser realizada. (PGR, 2007)

Entende ainda o MP que “a filiação partidária é uma condição de participação no processo

eleitoral (condição de elegibilidade), e não de permanência no cargo”, além de sustentar que “a

Constituição Federal não autoriza a perda de mandato parlamentar em decorrência de ato de

infidelidade partidária”. E, por fim, que “a filiação partidária é uma condição de participação no

processo eleitoral não de permanência no cargo” (PGR, 2007).

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Contrariamente do que foi defendido pela Consulta n. 1.398 e pelos Mandados (MS

26.602, MS 26.603 e MS 26.604), não caberia a hipótese de perda de mandato eletivo aqui em

questão por ausência total de previsão constitucional, uma vez que o art. 55 da CF, que trata do

tema, não traz esta possibilidade, ou seja, o rol elencado é taxativo, fazendo-se necessária a inclusão

de novas hipóteses via emenda constitucional, por tratar-se de restrição à direito fundamental. Por

isso, quanto ao aspecto formal, entende-se aqui a incompetência do TSE.

Entende-se também no âmbito desta pesquisa que a filiação é essencial para a

elegibilidade, mas não para a permanência do eleito. Por isto, como bem lembra Pitkin: “Apenas um

povo ativo e com envolvimento político é livre e que as instituições representativas [...] tem, de

fato, servido para desencorajar a cidadania ativa”.

3 A AMPLIAÇÃO DA PERDA DE MANDATO POR INFIDELIDADE PARTIDÁRIA PARA AS ELEIÇÕES MAJORITÁRIAS

A questão que será abordada neste tópico tem como origem a Consulta ao Tribunal

Superior Eleitoral n. 1.407, apresentada pelo deputado federal Nilson Mourão (PT), cujo

questionamento é o que segue: “(...) Os partidos e coligações têm o direito de preservar a vaga

obtida pelo sistema eleitoral majoritário, quando houver pedido de cancelamento de filiação ou de

transferência do candidato eleito por um partido para outra legenda?”

Por ocasião da apreciação da referida consulta, no dia 16 de outubro de 2007, respondeu

afirmativamente o TSE, por unanimidade, seguindo o voto do relator e confirmando o entendimento

da Corte Eleitoral de que os mandatos pertencem aos partidos políticos. Assim, a partir do dia 25 de

outubro de 2007, através da Resolução n. 22.610 (posteriormente alterada pela Resolução-TSE nº

22.733, de 11.3.2008), passou a disciplinar o processo de perda de cargo eletivo, bem como de

justificação de desfiliação partidária.

O relator, ministro Carlos Ayres Britto, inicia o seu voto a partir de um “detido exame no

modo constitucional de ser” do partido político e suas funções, para entender a “posição de

centralidade aos grêmios partidários, em matéria de regime representativo ou de democracia

indireta”, como “peça da requintada engrenagem do nosso regime ou sistema representativo”,

destacando sua “função de sujeito processual ativo [...] para cuidar dos interesses da pólis”, além de

outra função constitucional importante, que é a “de intermediário entre o corpo de eleitores de uma

dada circunscrição e todo e qualquer candidato a cargo de representação popular”, em conformidade

com o disposto no artigo 14, inciso V da Constituição Federal, que torna “a filiação partidária” uma

das explícitas “condições de elegibilidade, na forma da lei” (BRASIL 2012e).

O relator culmina com a seguinte questão: “É dado ao representante passar a representar

uma entidade sob cuja bandeira ideológica deixou de hastear perante o povo, quando em campanha

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pela captação do voto?”. E o mesmo responde com uma firme negativa ao dizer: “O dever de não

desocupar a cadeira em que se foi eleitoralmente assentado é a primeira das condições de leal

exercício de um mandato que não é senão uma binária representação [...]. O eleito a compor com o

seu partido e com o povo uma relação jurídica de inerência com o regime representativo brasileiro”.

(BRASIL, 2012e)

Afirma ainda o relator, ao tratar do cargo da Presidência da República, que, apesar do

caráter individual e pessoal que reveste a sua escolha por via eleitoral, isto é, de uma menor

dependência partidária, mesmo assim o mesmo não se encontra em posição de independência da

legenda partidária. Afirma, por fim, que “uma arbitrária desfiliação partidária implica

desqualificação para se permanecer à testa do cargo político-eletivo. Desqualificação que é

determinante da vaga na respectiva cadeira, a ser, então, reivindicada pelo partido político

abandonado” (BRASIL, 2012e).

Para o relator, a desfiliação arbitrária é uma espécie de renúncia tácita, diferentemente do

voto do ministro Ari Pargendler que, por entender ser a renúncia tácita uma intenção, a expressão

não seria adequada, uma vez que o representante eleito não deseja a perda do mandato ao se

desfiliar. Sugere então que a perda do mandato seja considerada como “desqualificado pelo

abandono do partido”.

Importante ainda a posição do ministro Marco Aurélio, ressaltando o apoio para a

fundamentação da resposta desta Consulta nos Mandados de Segurança n. 26.602, 26.603 e 26.604

decididos pelo STF e a relevância de outras questões, como a escolha do candidato em convenção

do partido; o financiamento, em parte, da campanha eleitoral pelo partido, via fundo partidário; a

propaganda eleitoral gratuita. Todas a reclamar pela fidelidade partidária, tanto para cargos

proporcionais, como majoritários (BRASIL, 2012g).

Pode-se concluir que a perda do mandato em eleições majoritárias a partir de desfiliação

partidária sem justa causa foi fundamentada nos mesmos argumentos usados na Consulta n. 1.398

ao TSE, que tratou dos mandatos parlamentares das eleições proporcionais, conforme exposto ao

longo deste trabalho, não trazendo novos argumentos para o debate, tornando desnecessária aqui a

reafirmação de tudo que já foi dito em matéria de contra-argumentação.

As hipóteses de justa causa para a perda de mandato estão elencadas no artigo 1º da

Resolução 22.610, a saber: Art. 1º - O partido político interessado pode pedir, perante a Justiça Eleitoral, a decretação da perda de cargo eletivo em decorrência de desfiliação partidária sem justa causa. § 1º - Considera-se justa causa: I) incorporação ou fusão do partido; II) criação de novo partido; III) mudança substancial ou desvio reiterado do programa partidário; IV) grave discriminação pessoal.

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Esta pesquisa entende a necessidade de uma reforma no processo político brasileiro,

especialmente nas questões partidárias, uma vez que na prática nem os partidos perseguem ideários

propostos estatutariamente como instrumento norteador de condutas de suas políticas e lutas pelos

seus representados, nem os eleitos, através do partido, representam de fato os interesses destes nem

muito menos dos seus representados.

Pode-se afirmar que os próprios partidos tem contribuído para a crise política, pois, além

de não criarem oportunidades para o debate democrático, quando aparecem estas, geralmente de

cunho midiático e próximas ao embate eleitoral, preocupam-se mais com o “superávit eleitoral”,

que se manifesta com o número de cadeiras adquiridas no parlamento, do que com a construção de

um processo mais amplo de formação cívica.

Da discussão proposta por esta pesquisa, verifica-se que as instâncias superiores do Poder

Judiciário envoltas nesta matéria, TSE e STF, também tem se omitido na ampliação do debate

acerca da fidelidade partidária, preocupando-se apenas em resolver as discussões que lhes são

apresentadas pelos legitimados de forma algumas vezes mais moralista do que jurídica, ao ponto de

atrair para si uma competência que não lhes cabe, exorbitando dos poderes originariamente

concedidos e ultrapassando os limites do disposto constitucionalmente para uma relação harmônica

interpoderes.

4 CONCLUSÃO

O processo de globalização contemporâneo entre muitas coisas tem proporcionado cada

vez mais a aproximação das pessoas, quer seja em uma esfera mundial, quer seja na realidade micro

de uma pequena comunidade inserida em uma fração territorial. Da mesma forma, as decisões de

poder que precisam ser tomadas em quaisquer dos dois âmbitos, podem aproximar aqueles ou

afastá-los.

Evidentemente, as dificuldades do modelo de representação partidária nas democracias

atuais exigem que, não apenas os políticos e os especialistas, participem das reflexões sobre a busca

de alternativas, de meios de expressão mais próximos da vontade real do povo, mas também que

este seja o principal protagonista do processo.

Este trabalho, a partir dos elementos jurídicos e políticos tratados pelo STF e TSE, entende

que por mais que se deseje mudanças no processo político eleitoral, as mesmas devem ser realizadas

com o respeito à harmonia dos poderes e o incentivo à participação da sociedade, através de um

processo de conscientização política da mesma, tendo como atores principais não apenas os agentes

estatais, mas todos os atores sociais que estão direta ou indiretamente envolvidos com este processo,

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respeitando-se ainda os direitos fundamentais como limites a ação do Estado e objetivos a serem

perseguidos pelo mesmo.

REFERÊNCIAS

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_______. Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Resolução n. 22.610. Relator Ministro César Peluzo. Disciplina o processo de perda de cargo eletivo, bem como de justificação de desfiliação partidária. Disponível em: <http://www.tse.jus.br/internet/partidos/fidelidade_partidaria/res22610.pdf>. Acesso em: 11.jun.2012f. _______. Código civil, comercial, processo civil e constituição federal. Obra coletiva de autoria da Editora Revista dos Tribunais. Org. Yussef Said Cahali. 14 ed. rev. ampla e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012g. http://www.tse.jus.br/jurisprudencia/inteiro-teor CÂNDIDO, Joel J. Direito eleitoral brasileiro. 14 ed. Bauru, SP: EDIPRO, 2010. CERQUEIRA, Thales Tácito Pontes Luz de Pádua; CERQUEIRA, Camila Medeiros de Albuquerque Pontes Luz de Pádua. Fidelidade partidária e perda de mandato no Brasil: temas complexos. São Paulo: Editora Primeiro ministro Máxima, 2008. HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Elaborado pelo Instituto Antonio Houaiss e Mauro e Banco de Dados da Língua Portuguesa S/C Ltda. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. MENDES, Gilmar Ferreira. Fidelidade partidária na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <http://www.portaldeperiodicos.idp.edu.br/index.php/cadernovirtual/article/viewFile/80/55>. Acesso em: 12.mar.2013. MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL (PGR). Sustentação oral - fidelidade partidária. PGR- AF n. 3250. Procuradoria Geral da República. Parecer em MS 26.602, 26.603 e 26.604. Disponível em: <http://midia.pgr.mpf.gov.br/secom/SustentaoOralFidelidadePartidria.pdf>. Acesso em: 12.jun.2012. MORAES, Filomeno. Contrapontos: democracia, república e constituição no Brasil. Fortaleza: Edições UFC, 2010. NOGUEIRA, Marco Aurélio. As possibilidades da política: idéias para a reforma democrática do estado. São Paulo: Paz e Terra, 1998. SARTORI, Giovanni. Partidos e sistemas partidários. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar; Brasília: Universidade de Brasília, 1982.

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BANALIZAÇÃO DAS CAMPANHAS ELEITORAIS: UMA

ANÁLISE CRÍTICA DA PROPAGANDA POLÍTICA DIANTE DO

SISTEMA DEMOCRÁTICO

BANALIZATION OF ELECTORAL CAMPAIGNS: A CRITICAL

ANALYSIS OF ADVERTISING POLICY FACE OF DEMOCRATIC

SYSTEM

Felipe Braga Albuquerque1

RESUMO

O trabalho versa sobre banalização das campanhas eleitorais, abordando uma análise

crítica da propaganda política diante do sistema democrático. Também estuda os

princípios constitucionais aplicáveis na fixação do objetivo informativo da propaganda

eleitoral como o da normalidade e legitimidade das eleições, o da moralidade, o do

Estado democrático. Avalia a capacidade popular de escolha no processo eleitoral, ante

o descrédito popular com a classe política, que geram um campo fértil para a utilização

de técnicas de marketing que lançam candidatos que facilmente conseguem persuadir

pessoas a votarem em suas “propostas”. Analisa-se a possível existência de vedação

jurídica à banalização das campanhas eleitorais, concluindo pela aplicação dos

fundamentos constitucionais da normalidade e legitimidade das eleições, da cidadania,

do resguardo do regime democrático, dos direitos fundamentais da pessoa humana, da

finalidade educativa e informativa das programações de rádio e televisão com respeito

aos valores éticos e sociais da pessoa e da família, que são suficientes para proibir

práticas banais no processo eleitoral. Aborda, ainda, o conceito de propaganda eleitoral,

assim como critica o papel “ético” do marketing político. Por fim, enumeram-se casos

de banalização na propaganda eleitoral e aponta-se como pode se dar a impugnação da

                                                            1  Doutor e Mestre em Direito Constitucional pela UNIFOR – Universidade de Fortaleza, Professor Adjunto do Curso de Direito da UFC - Universidade Federal do Ceará, Sócio do Escritório Braga Albuquerque Advocacia e Consultoria. 

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propaganda eleitoral banal no horário eleitoral gratuito, velando pelo cumprimento das

regras eleitorais.

PALAVRAS-CHAVE: Banalização das campanhas. Legitimidade democrática.

Marketing político.

ABSTRACT

The work is about banalization of election campaigns, addressing a critical analysis of

political advertising before the democratic system. Study the constitutional principles

applicable in determining the informational purposes of electioneering as the normality

and legitimacy of the election, the morality, democratic state. Evaluates the ability

popular choice in the election process, compared to discredit popular with the political

class, which generate a fertile field for the use of marketing techniques that cast

candidates who can easily persuade people to vote for their "proposals". Analyzes the

possible existence of legal seal the banalization of election campaigns, concluding by

applying the fundamentals of normalcy and legitimacy of the elections, citizenship, the

shield of democracy, fundamental rights of the human person, the purpose of education

and information radio and television schedules with respect to ethical and social values

of the person and the family are sufficient to prohibit practices commonplace in the

electoral process. Discusses also the concept of electoral propaganda criticizing the role

"ethical" political marketing. Finally, there is cited cases of banalization the electoral

advertising and shows how it can be a challenge to the electioneering campaign time on

trivial free, ensuring compliance with the electoral rules.

KEYWORDS: Banalization of the campaigns. Democratic legitimacy. Political

marketing.

INTRODUÇÃO

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Analisando o tema do XXII Encontro Nacional do CONPEDI “25 anos da

Constituição Cidadã: Os Atores Sociais e a Concretização Sustentável dos Objetivos da

República”, verifica-se, também, como relevante, um estudo crítico do papel que a

propaganda eleitoral exerce na construção de um processo político e social.

Este trabalho parte da constatação de que o Estado deve buscar

constantemente uma legitimação de seu desempenho na formação de um discurso com

função ideológica, política, religiosa etc., de modo a evoluir com a flexibilidade do

comportamento social.

Quando o cidadão assiste ao horário eleitoral gratuito, há um fluxo de

informações que devem, a priori, servir não só como instrumento de conhecimento do

candidato para a cobrança popular, partidária e jornalística de suas ações, bem como

para o conhecimento de direitos e deveres, das propostas de manutenção, de extinção ou

desenvolvimento das ações estatais, transformando o espectador, de certo modo, em um

ator político.

Entretanto, a propaganda política em vários países “apoiada” num ideal de

liberdade de expressão tem gerado uma corrosão do espaço público. Em nome da livre

manifestação de ideias, da não discriminação, do pluralismo, candidatos utilizam um

espaço de construção política num teatro de delicados e indelicados limites entre a

informação, o convencimento e a manipulação.

A legislação eleitoral inibe a imoralidade nas campanhas eleitorais, porém

há um descumprimento generalizado dessas normas pelos partidos políticos, de modo

que já se acha “normal” banalizar um espaço público de florescimento do ideal

democrático.

Neste trabalho, foi utilizada a pesquisa bibliográfica em materiais como

livros, artigos científicos e bases de dados eletrônicos. A pesquisa pauta-se no método

dedutivo, em que será avaliado se a banalização nas campanhas eleitorais viola ou não o

ordenamento jurídico brasileiro.

Desse modo, o presente artigo pretende esclarecer: (i) o objetivo da

propaganda política; (ii) a capacidade popular de escolha no processo eleitoral; (iii); a

possível existência de vedação jurídica à banalização das campanhas eleitorais; (iv); o

conceito de propaganda eleitoral; (v) os casos de banalização na propaganda eleitoral e;

(vi) como pode se dar a impugnação da propaganda eleitoral banal no horário eleitoral

gratuito.

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1 O OBJETIVO DA PROPAGANDA POLÍTICA – LEGITIMIDADE

NO PROCESSO ELEITORAL

Não há regulamentação principiológica do conteúdo da propaganda

eleitoral. A Lei das Eleições (9.504/97), ao se referir a tal instituto apenas de maneira

objetiva, aborda vedações que desvirtuam a igualdade do processo eleitoral, distribui o

tempo de propaganda, aponta como esta deve ser veiculada na impressa escrita, na

televisão, no rádio etc.

No âmbito do procedimento eletivo, especificadamente, inexistem preceitos

normativos de ordem conceitual que permitam identificar previamente atos abusivos in

abstracto nas eleições (GARCIA, 2006, p.17). Assim, somente a partir da análise de

princípios constitucionais e legais é que poderão identificar os atos que consubstanciam

abusivos no âmbito do horário eleitoral gratuito.

Apesar de não haver proibição expressa da banalização das campanhas

eleitorais, aqueles que se elevem a utilizar o horário eleitoral gratuito, utilizando-se de

métodos que não reflitam a vontade popular em sua integralidade, não poderão

apresentar-se como representantes desta, pois estão destituídos de legitimidade

democrática. A Constituição de 1988, por exemplo, ao especificar a soberania popular

no art. 14, §9°, coloca como um de seus objetivos a normalidade e a legitimidade das

eleições.

Assim, o exercício do direito de livre manifestação do pensamento, no

âmbito da propaganda eleitoral gratuita, deve ser destinado ao fim previsto e amparado

na Constituição (normalidade, legitimidade, moralidade, republicanismo, informação,

caráter educativo da comunicação etc.), sob pena de desvirtuamento de seus fins. A

propaganda política não pode ter leis próprias, leis que em nome da busca do poder

deturpem a legitimidade democrática.

Mais do que demonstrar o perfil do candidato, ensina Dilma Teixeira (2006,

p.114), a campanha também precisa estabelecer, com sentimentos de confiança e moral,

um contrato informal entre o candidato e o povo, que irá direcionar as ações de um ao

outro. A campanha, em oposição da ideia de vender o produto, deve vender o benefício

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de seu uso, ao invés de vender o político, deve vender sua capacidade de resolução de

problemas.

Para Raija Maria de Almeida Monteiro Vaz (On-line, s/d):

[...] a articulação entre propaganda política e legitimação de poder se justifica e se estabelece através de um processo de comunicação política que gera informação, que, por consequência, pode estimular o exercício da cidadania, através de uma campanha de propaganda das ações políticas de um governo, a partir do momento em que comunica as suas ações, de forma estudada e persuasiva, com o objetivo de obter a aceitação da opinião pública para as suas ações.

A Lei 9.504/97, por exemplo, expressando o direito constitucional à

informação, determina, no art. 44, § 1°, que a propaganda eleitoral gratuita na televisão

deverá utilizar a Linguagem Brasileira de Sinais - LIBRAS ou o recurso de legenda.

Desse modo, como seriam os sinais de libra de uma propaganda, por

exemplo, do candidato Paulinho da União Tur (PRTB) que concorreu em 2012,

repetindo um gesto da campanha a senador, da qual saiu derrotado em 2010, com o

slogan “A viradinha de Aracaju”? O candidato não fala nada durante o tempo a que tem

“direito”, apenas dá uma "viradinha", com uma voz ao fundo pedindo votos.

Em verdade e em última análise, segundo Max Weber (1968, p.106),

existem apenas duas espécies de pecado mortal em política: não defender causa alguma

e não ter sentimento de responsabilidade - duas coisas que, repetidamente, embora não

necessariamente, são idênticas. No caso do candidato Paulinho da União e de tantos

outros no Brasil, a falta de qualquer diálogo político desnatura a propaganda “política”.

Em outro caso, a candidata Suéllem Rocha (Mulher Pera), pelo Partido

Trabalhista do Brasil (PT do B), pediu votos para uma vaga na Câmara dos Vereadores

da cidade de São Paulo, divulgando, no Twitter, o link de uma foto de suas nádegas com

o número de campanha escrito. Informou ainda que se fosse eleita mostraria um

piercing íntimo, solicitando aos eleitores ajudá-la a “chegar lá” (S/a, On-line, 2012).

A imagem postada no Twitter, por si só, demonstra o que se faz da

propaganda eleitoral (apesar de o caso não se referir ao horário eleitoral gratuito).

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Figura 1: Mulher pera na candidatura à vereadora.

 

Fonte: Mulher Pêra aposta na ousadia para conquistar uma vaga na câmara de vereadores de São Paulo.

Disponível em:

<http://www.diariodepernambuco.com.br/app/noticia/politica/2012/09/03/interna_politica,394304/mulher

-pera-aposta-na-ousadia-para-conquistar-uma-vaga-na-camara-de-vereadores-de-sao-paulo.shtml>.

Acesso em: 3 set. 2012.

A “estratégia” dos partidos políticos em lançar personagens cômicos,

vulgares, banais é a de ensejar um voto de “protesto” de modo a obter o maior número

possível de votos para aumentar o quociente partidário – elegendo um número maior de

candidatos do partido/coligação. Segundo Dilma Teixeira (2006, p. 68), o povo sabe

muito mais o que não quer e tem apenas uma vaga noção do que quer. Isso ajuda a

explicar o fenômeno do “voto contra”. Além disso, expõe a autora, o mito do herói

salvador, vingador e provedor, artífice da felicidade e do progresso públicos ainda

atinge segmentos mais pobres na escolha de seus líderes, pois se sentem impotentes

para mudar ou não têm informação suficiente para a conscientização da mudança.

Como enfatiza Emerson Garcia (2006, p. 16) “[...] qualquer ato idôneo a

desvirtuar, modificar ou suprimir a vontade exteriorizada pela coletividade que participa

do procedimento eletivo devem ser coibidos”.

Desta maneira, a informação apresenta-se como objetivo maior da

propaganda eleitoral, direito esse que está intrinsecamente ligado à ideia de moralidade

e democracia, devendo ser coibidos quaisquer atos, no processo eleitoral, que se

desvirtuem deste objetivo.

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2 OS CIDADÃOS TÊM CAPACIDADE DE FAZEREM JUÍZOS

AUTÔNOMOS ACERCA DO PROCESSO ELEITORAL?

É comum discutir se os eleitores mais pobres têm ou não a capacidade de se

proteger da quantidade indeterminada de informações “jogadas” na propaganda

eleitoral.

A efetivação do princípio democrático de maneira plena, material e não

apenas em sua previsão/proteção legal/formal depende, sobretudo, da implementação

dos direitos sociais. A assimetria social influencia claramente o processo eleitoral.

Enquanto as desigualdades de informação, moradia, emprego, entre outras, não forem

diminuídas, o “povo” ou a grande “massa” despolitizada não se preocupará com o

conteúdo da propaganda eleitoral.

No Brasil, expõe Dilma Teixeira (2006, p. 62-64), o voto é emocional, é

parte da identidade entre o eleitor e o candidato, a isso se deve o fato de evangélicos

votarem apenas em evangélicos. O que leva uma pessoa a deslocar sua atenção podem

ser fatores internos (emocionais, interesses, identidade etc.) e externos (cor, tamanho,

intensidade, posição contraste, movimento, novidade etc.), sendo estes últimos fatores

que podem ser controlados pelo marketing. Portanto, conhecendo-se essas ferramentas,

a propaganda eleitoral pode ser utilizada facilmente para “ludibriar” o eleitor.

Segundo Maquiavel (1982, p. 165), “Enganado por uma falsa aparência, o

povo muitas vezes deseja sua própria ruína: é fácil movê-lo com promessas espantosas e

grandes esperanças”. A multidão seduzida pelo falso bem, às vezes trabalha pela sua

própria ruína, e se alguém que lhe inspira confiança, não esclarece o que é nocivo e

vantajoso, ela se expõe a graves perigos.

Em clara crítica à consciência do voto de pessoas de baixa renda, afirma

Dilma Teixeira (2006, p.72):

Atualmente, o povo brasileiro, de tanto passar por dificuldades devido à elevada concentração de renda que aumenta a pobreza de muitas pessoas sem possibilidades de melhoria, encontra-se desalentado e desacreditado da classe política e das instituições mais tradicionais. Esse quadro torna nossa sociedade um campo fértil para o surgimento de novos líderes com mensagem que consolem o desespero intimamente contido das pessoas e lhes orientem com esperanças de dias melhores por suas próprias ações.

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Desse modo, devem ser criados mecanismos de combate à banalização da

propaganda eleitoral, como já acontece com a compra de votos, por exemplo, pois há

uma indevida influência e persuasão no processo comunicativo das eleições.

Apesar de o mandato político ser livre e não imperativo/vinculado, como

expõe Maquiavel, “Todos compreendem como é louvável que o príncipe mantenha a

palavra dada e viva com integridade” (2006, p. 104). Todos desejam que o Estado seja

governado por pessoas probas, justas, equilibradas, integras etc., mas a prática

demonstra que o processo eleitoral, muitas vezes, não é levado a sério por partidos,

candidatos, profissionais de marketing e por muitos eleitores.

Aponta Maquiavel “[...] os homens são tão ingênuos e obedecem tanto às

necessidades presentes, que aquele que engana encontrará sempre quem se deixe

enganar” (2006, p.106). Então, os partidos políticos e candidatos apoiados nas técnicas

de marketing e propaganda eleitoral e conhecedores da ingenuidade humana, sobretudo

de pessoas mais carentes, bombardeiam o eleitor com um processo comunicativo que

muitas vezes corrompe a legitimidade eleitoral e democrática.

Observa-se, a cada nova eleição no Brasil, seja em âmbito nacional, seja no

âmbito local, um aumento do fenômeno da banalização das campanhas eleitorais. O

patriotismo, os valores sociais, o respeito, a ética com um todo estão completamente

deturpados nas campanhas eleitorais. Não se espera uma mudança radical no

comportamento dos candidatos, mas tão somente uma postura alinhada e identificada à

legitimidade democrática do processo eleitoral para que o povo tenha liberdade e

informação adequadas para escolher seus representantes sem uma indevida persuasão.

3 VEDAÇÃO JURÍDICA À BANALIZAÇÃO DAS CAMPANHAS

ELEITORAIS

A legislação eleitoral, desde a Constituição Federal de 1988 ao Código

Eleitoral limita inúmeros aspectos da propaganda eleitoral. Inicialmente, informa-se que

qualquer censura prévia das propagandas eleitorais não se harmoniza com os princípios

constitucionais, salvo no âmbito intrapartidário. Entretanto, as consequências de uma

propaganda abusiva não devem ficar impunes a candidatos e partidos políticos.

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A Constituição Federal de 1988, por exemplo, enumera no art. 14, §9°, o

princípio da legitimidade do processo eleitoral “§ 9º Lei complementar estabelecerá

outros casos de inelegibilidade [...] a fim de proteger [...] a normalidade e legitimidade

das eleições [...]”. Mas a que legitimidade a Constituição se refere? Como ela pode ser

aplicada ao processo eleitoral?

A Constituição funda-se na cidadania (art. 1º, inc. II), objetivando

“promover o bem de todos” (art. 3º, inc. IV). Ainda, a liberdade de criação, fusão,

incorporação, extinção e funcionamento dos partidos políticos (art. 17, CF) exigem o

resguardo da soberania nacional, do regime democrático, do pluripartidarismo, dos

direitos fundamentais da pessoa humana. Também, o art. 221, da CF/88 determina que a

produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes

princípios: I - preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas; II

- promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que

objetive sua divulgação; III - regionalização da produção cultural, artística e jornalística,

conforme percentuais estabelecidos em lei; IV - respeito aos valores éticos e sociais da

pessoa e da família.

A propaganda eleitoral é uma maneira de divulgar, para todo o povo, os

problemas e as propostas para solucioná-los. Serve para apresentar os candidatos,

demonstrar seu histórico na luta por uma ideologia, e não para entreter o povo.

Segundo o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, Carlos Velloso (1996,

p. 11-29):

Por isso, uma das condições da democracia, das mais importantes, é ‘a existência de um mecanismo apto a receber e a transmitir’, com fidelidade, a vontade do povo, o que ‘implica antes de mais nada num processo eleitoral impermeável à fraude e à corrupção’. Um processo eleitoral que conduza aos postos de mando aqueles que realmente o povo quer, aqueles que, na verdade, o povo deseja que mandem em seu nome, é condição da democracia representativa.

No julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade no 2.306-3, o

Ministro Nery da Silveira expõe em seu voto que há uma relação de implicação entre

democracia e processo eleitoral. A própria consolidação da ordem democrática faz-se

com o processo eleitoral hígido, limpo, de modo que, quem tem experiência do processo

eleitoral, sabe, perfeitamente, que seu equilíbrio depende de se coibirem os excessos dos

partidos e candidatos, durante a fase da propaganda eleitoral, evitando abusos e

transgressões da necessária disciplina desse agitado procedimento (TSE, On-line, 2003).

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A Justiça Eleitoral dispõe de mecanismos legais para sancionar o conteúdo

da propaganda eleitoral. O Código Eleitoral, no art.347, aponta como crime “Recusar

alguém cumprimento ou obediência a diligências, ordens ou instruções da Justiça

Eleitoral ou opor embaraços à sua execução”. A pena é de detenção de três meses a um

ano e pagamento de 10 a 20 dias-multa.

A Lei das Eleições (9.504/97) dispõe no art. 53:

Art. 53. Não serão admitidos cortes instantâneos ou qualquer tipo de censura prévia nos programas eleitorais gratuitos.

§ 1º É vedada a veiculação de propaganda que possa degradar ou ridicularizar candidatos, sujeitando-se o partido ou coligação infratores à perda do direito à veiculação de propaganda no horário eleitoral gratuito do dia seguinte.

§ 2º Sem prejuízo do disposto no parágrafo anterior, a requerimento de partido, coligação ou candidato, a Justiça Eleitoral impedirá a reapresentação de propaganda ofensiva à honra de candidato, à moral e aos bons costumes. (Grifou-se)

Cabe ressaltar que a norma em comento dispõe claramente pela vedação de

propaganda que ridicularize candidatos, ofenda a moral e os bons costumes. Claro que a

norma é bastante genérica, deixando a cargo do magistrado, no caso concreto, a

aplicação do preceito. Porém, os bons costumes e a moral, a qual a legislação eleitoral

protege, em face da ideia de moralidade, democracia, legitimidade do processo eleitoral,

não podem tolerar a banalização do processo eleitoral, sobretudo na propaganda

eleitoral gratuita. A ridicularização de candidatos também é vedada pelo art. 51, inc.IV

da Lei das Eleições.

Um relevante fundamento à vedação de campanhas banais no horário

eleitoral gratuito decorre dos gastos estatais com tal instituto. Conforme a Lei nº

9.504/97, art. 99, as emissoras de rádio e televisão terão direito à compensação fiscal

pela cedência do horário gratuito – regulamentados na Resolução n. 22.158/06, do TSE.

Além disso, o Decreto nº 5.331, de 4 de janeiro de 2005, regulamenta os efeitos de

compensação fiscal pela divulgação gratuita da propaganda partidária ou eleitoral.

Segundo noticia Dyelle Menezes, no site Contas Abertas2, em razão do

horário eleitoral gratuito a Receita Federal deixou de arrecadar, desde 2002, R$ 4

bilhões. Em 2012, R$ 606,1 milhões deixaram de ser recolhidos por causa das

propagandas partidárias. É como se cada um dos mais de 190,7 milhões de brasileiros,

                                                            2 Contas Abertas é uma entidade da sociedade civil, sem fins lucrativos, que reúne pessoas físicas e jurídicas, lideranças sociais, empresários, estudantes, jornalistas, bem como quaisquer interessados em conhecer e contribuir para o aprimoramento do dispêndio público. Disponível em: <http://www.contasabertas.com.br/WebSite/QuemSomos.aspx>. Acesso em: 5 mar. 2013.

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indiretamente, pagasse cerca de R$ 3,18 para receber informações sobre os candidatos e

os partidos políticos nas rádios e TVs. A isenção da propaganda eleitoral gratuita é

maior do que os benefícios tributários com o Programa Minha Casa, Minha Vida,

estimado em R$ 350,4 milhões, e o incentivo a projetos desportivos e paradesportivos

(R$ 138,3 milhões). (MENEZES, On-line, 2012).

Mesmo que o País acumulasse excedente de riquezas e não houvesse uma

lista de prioridades aguardando investimento público, a legitimidade do processo

eleitoral democrático veda a banalização do horário eleitoral gratuito.

Outrora, o Brasil era dominado pelo terror, pela ditadura, sendo seu povo

obrigado a apoiar um governo que não tinha legitimidade. Hoje, democratizada a vida

pública, os partidos permitem um absurdo e contraditório programa eleitoral que, em

vez de formar opinião pública, de moldar a conduta social, banalizam a vida no espaço

público. Tudo isto são fatos naturais de um povo que não tem (porque não podia ter) um

espírito ou sentimento realmente democrático, fazendo com que o processo eleitoral e,

consequentemente, o tesouro público/espaço público sejam propriedades privadas de

partidos e candidatos.

A propaganda eleitoral é uma atividade imprescindível para a propagação (o

torná-lo público) das propostas partidárias, porém, para evitar possíveis influências

negativas ou seu uso abusivo, necessita ser controlada pela Justiça Eleitoral (SCOTTO,

2004, p. 114).

Não é difícil interpretar a Constituição de 1988 no sentido de obstar que o

Estado pague por uma propaganda eleitoral que, em alguns casos, mais parece um

programa humorístico. Então, já que o Estado “paga”, para que seja realizada

propaganda eleitoral, não há espaço para o desperdício, para o abuso do espaço público,

havendo amplos fundamentos jurídicos para a vedação de tais práticas absurdas.

4 CONCEITO DE PROPAGANDA ELEITORAL

O termo propaganda advém da Igreja Católica quando por volta de 1660, a

Congregatio da Propaganda Fide, uma espécie de comissão formada por cardeais,

propagava a religião em missões estrangeiras do Vaticano. Propagare em latim

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significa reproduzir, expandir, disseminar. Tal termo conservou essa conotação religiosa

até o começo do século XX. Posteriormente, a propaganda se laiciza e começa a ser

utilizada com cunho eminentemente persuasivo, objetivando influir na opinião pública e

na conduta social (SCOTTO, 2004, p. 112).

Apesar da propaganda se distinguir da informação (aquela procura

convencer e esta evidenciar um fato), há limites no convencimento expresso no espaço

público do horário eleitoral. Porém, os candidatos e profissionais de marketing, sabendo

que o ser humano se orienta bem mais pela visão do que pela audição, apelam para um

espectro persuasivo ao cliente/eleitor.

Segundo Gabriela Scotto, quando a propaganda ou o marketing são

deslocados para o âmbito político há uma conotação negativa, pois são tênues os limites

entre o convencimento, a persuasão e a manipulação (2004, p.112). Isso pode ser

facilmente visualizado na propaganda utilizada por Getúlio Vargas durante o Estado

Novo (1937-1945) por intermédio do DIP - Departamento de Imprensa e Propaganda.

O sujeito manipulado acredita estar tomando uma decisão de modo livre,

apesar de ter sido conduzido por inverdades. Por outro lado, um modelo ideal de

persuasão racional é baseado em argumentos de verdade, abordando a conveniência de

uma afirmação, de uma opinião etc. (Scotto, 2004, p. 113).

Dilma Teixeira (2006, p. 63-77), em sua obra “Marketing político e

eleitoral: uma proposta com ética e eficiência”, opina que votar é uma questão de

consciência, cidadania, desejo de mudança e, sobretudo, de opinião, que depende de um

fator fundamental: a informação. Assim, o marketing político pode sim, como abordado

em sua obra, ser utilizado para primar pelo coletivismo, fazendo com que o voto se

transforme numa arma efetiva do povo para construir sua própria história, deixando de

ser objeto para ser sujeito do sistema social, político e econômico.

A falta de ética e a deturpação da legislação eleitoral não só por partidos,

candidatos, também decorre da atividade de publicitários. Inclusive, a ABP –

Associação Brasileira de Propaganda (mais antiga entidade de propaganda do Brasil -

fundada em 16 de julho de 1937) tem como primeiro objetivo “Trabalhar pelo

desenvolvimento e enobrecimento da propaganda” e como finalidade social “Zelar pela

preservação dos preceitos éticos na propaganda” (On-line, 2013). Destarte,

paralelamente ao controle estatal, partidário e social da propaganda eleitoral deve,

também, haver um controle das entidades de classe com seus membros.

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O diálogo do candidato com seus eleitores não pode ser considerado apenas

um diálogo de marketing, como aponta Gabriela Scotto (2004, p. 123-124) ao informar

a tese de Philip Kotler na obra “Marketing para organizações que não visam ao lucro”.

Em tal tese, o marketing político é apenas um conjunto de procedimentos e técnicas do

mercado, visto que o mercado (eleitores) pode ser domesticado mediante ferramentas de

marketing, de modo a adquirir força a metáfora de “venda de candidatos políticos” ou a

comparação de candidatos a sabonetes.

Nada obsta ao profissional de propaganda definir segmentos alvos e

periféricos de eleitores, desenvolver a identidade do candidato, evitar situações atos ou

discursos inadequados, analisar o perfil dos concorrentes políticos, ou seja, definir toda

a estratégia de comunicação com as ferramentas da profissão publicitária. O que não

pode haver, no âmbito da propaganda política, é a venda a qualquer custo, a

manipulação, a mentira ou qualquer ato espúrio no processo eleitoral que está

diretamente identificado com a legitimidade democrática.

Do ponto de vista mercadológico, se a eleição fosse vista como um processo

no qual o candidato procurar “vender”, passar suas ideias, suas propostas a um eleitor

que irá comprá-la, não há nenhum impedimento ético-jurídico a tal conduta. Mas, se

constata que não interessa a opinião do candidato, mas a opinião do eleitor (o candidato

é quem tem que se ajustar a ela, conquistar a qualquer preço sua “vontade”), ou seja, a

política não interessa a alguns procedimentos de marketing no processo eleitoral.

A eleição, não só para os políticos, mas como para os profissionais de

marketing é o momento público mais visível de seus trabalhos (SCOTTO, 2004, p.

190). Dessa maneira, essa seria a hora de ambos expor sua experiência, êxitos,

melhorias ao setor público, capacidade de mudança etc. Entretanto, a vitória de alguns

profissionais de marketing político se traduz em ganhar uma conta/contrato com o

político eleito (às custas do Estado, do povo). Por isso, conclui Gabriela Scotto, “O

Marketing político evidencia que não há fronteiras bem definidas e rígidas entre política

e mercado”. Ainda, expõe a autora (2004, p. 191):

Se por um lado é verdade que existe uma considerável mercantilização dos interesses e das transações sociais e profissionais no campo político eleitoral, por outro, não é menos verdade de que existe, também, um “politização” do mercado e dos produtos e serviços oferecidos. Ao se relativizar a dicotomia mercado versus política, e se olhar, em contrapartida, para as interseções entre ambos, observa-se que a condição para que o marketing ‘irrompa’ nas campanhas eleitorais é que de alguma forma ele se ‘politize’.

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Defende Guy Durandin que a propaganda e a publicidade não se reduzem à

mentira, porém ela é a mais eficaz técnica, entre uma série de procedimentos,

principalmente quando se obtém êxito (1983, p. 11).

Antes de abordar o horário eleitoral gratuito é importante lembrar que a

propaganda eleitoral se divide em: a) propaganda partidária; b) horário eleitoral e; c)

inserções. A propaganda partidária é aquela veiculada nos anos não eleitorais e no

primeiro semestre dos que os são (art. 36, §2°, Lei 9.504/97) e tem por finalidade

divulgar, pelo rádio e pela televisão, assuntos de interesse das agremiações partidárias

(arts. 45 a 49 da Lei nº 9.096/95 – Lei dos Partidos Políticos).

Tanto a propaganda partidária, como o “horário eleitoral gratuito” e as

inserções são custeados pelo Estado, sendo expressamente proibida a veiculação de

qualquer propaganda paga no rádio e na televisão3. O Tribunal Superior Eleitoral a cada

eleição, por meio de resolução divulga as datas e horários de transmissão do horário

gratuito no rádio e na televisão. No ano de 2012, o horário começou no dia 21 de agosto

e terminou no dia 4 de outubro (45 dias). Havendo segundo turno, depois de totalizados

os votos, a propaganda gratuita segue até a antevéspera das eleições. A propaganda

gratuita dos candidatos a prefeito e vice-prefeito foi veiculada às segundas, quartas e

sextas-feiras das 7h às 7h30 e das 12h às 12h30 no rádio; e das 13h às 13h30 e das

20h30 às 21h na televisão. Já a propaganda gratuita dos candidatos a vereador ocorreu

às terças, quintas-feiras e aos sábados, nos mesmos horários, tudo conforme disposto na

Resolução do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) nº 23.370.

O horário eleitoral, de certo modo, é o espaço no qual se democratiza o

acesso de todos os candidatos, pobres, ricos, pequenos, grandes, aos meios de

comunicação de massa. Iniciado na ditadura trouxe uma grande contribuição na

transformação da sociedade democrática brasileira, preservando uma relevante função

de servir como fonte de informação para funcionar como formador de opinião em seu

espaço de vida (trabalho, escola, residência etc.). O problema é que nos moldes em que

são realizados, os programas veículos mal preenchem essa função. (COIMBRA, 2008,

p. 87-127).

Outro tipo de propaganda eleitoral é a denominada inserção. A inserção é

uma modalidade de propaganda eleitoral gratuita destinada exclusivamente para a

campanha dos candidatos majoritários, sendo veiculada nos intervalos da programação

                                                            3 A Resolução nº 20.034, de 27 de novembro de 1997, do Tribunal Superior Eleitoral, traz instruções para o acesso gratuito ao rádio e à televisão pelos partidos políticos.

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normal das emissoras de rádio e televisão. Nas inserções, as emissoras não formam

rede, razão pela qual os partidos e coligações deverão entregar as gravações em cada

emissora. As inserções duram até 60 (sessenta) segundos cada uma, perfazendo o

máximo de 30 (trinta) minutos diários4. O fato é que, nos programas eleitorais, há uma

divisão considerável com o resultado das eleições.

A Lei das Eleições determina no art. 47 que as emissoras de rádio e de

televisão reservarão, nos quarenta e cinco dias anteriores à antevéspera das eleições,

horário destinado à divulgação, em rede, da propaganda eleitoral gratuita.

Observa-se, portanto, que o marketing político deve ser utilizado para

valorizar o debate público, ressaltando a importância da política na transformação

social.

5 CASOS DE BANALIZAÇÃO DAS CAMPANHAS ELEITORAIS

Está enraizada no processo eleitoral brasileiro uma maneira espúria de

conquistar votos. Obviamente, como afirma Dilma Teixeira (2006, p. 115) o humor

pode ser manifestado apenas pelo tom da voz para quebrar a tensão, tornando o clima

eleitoral mais leve.

Nas eleições de 2010, por exemplo, vários atletas se candidataram como: a )

Acelino Popó Freitas (PRB-BA), o boxeador concorreu para deputado estadual; b)

Maguila (PTN-SP), o ex-boxeador disputou a função de deputado federal; c)

Marcelinho Carioca (PSB-SP), o ex-jogador competiu para deputado federal; d)

Romário (PSB-RJ), o ex-jogador concorreu para a Câmara Federal; e) Vampeta (PTB-

SP), o ex-jogador disputou a vaga de deputado federal; f) Danrlei (PTB-RS), o ex-

goleiro do Grêmio disputou para deputado federal (S/a, On-line, 2010).

Entre os músicos, também em 2010, destacam-se os candidatos: a) Gaúcho

da Fronteira (PTB-RS), o músico concorreu para deputado estadual; b) Kiko (DEM-SP),

o membro do grupo KLB disputou para deputado federal; c) Leandro (DEM-SP), o

integrante do KLB concorreu para deputado estadual; d) Netinho (PCdoB-SP), o cantor

do grupo Negritude disputou a vaga de senador; e) Reginaldo Rossi (PDT-PE), o cantor

                                                            4 Sobre inserções verificar RESOLUÇÃO Nº 20.034/97, do Tribunal Superior Eleitoral.

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disputou concorreu para deputado estadual; f) Renner (PP-GO), o integrante da dupla

Rick&Renner concorreu ao Senado; g) Sérgio Reis (PR-MG), o cantor e ator disputou

para deputado federal; h) Tati Quebra-Barraco (PTC-RJ), a funkeira concorreu a

deputada federal. (S/a, On-line, 2010).

No âmbito dos apresentadores de programas televisivos, tem-se: a) Ronaldo

Esper (PTC-SP), o estilista concorreu a deputado federal; b) Pedro Manso (PRB-RJ), o

humorista disputou uma vaga a deputado estadual; c) Dedé Santana (PSC-PR), o

humorista competiu para deputado estadual; d) Tiririca (PR-SP), o humorista concorreu

a deputado federal; e) Batoré (PP-SP), o humorista disputou a deputado federal (S/a,

Online, 2010).

Ainda, uma nova categoria de candidatos, segundo a imprensa

sensacionalista brasileira, deriva do “pomar”, quais sejam: a) Mulher Melão (PHS-RJ),

Cristina Célia Antunes Batista, candidatada à deputada federal; b) Mulher Pera (PTN-

SP), Suellen Aline Mendes Silva, candidata à deputada federal (S/a, On-line, 2010).

Reafirma-se que a banalização objeto de crítica e vedação jurídica que se

defende, decorre da total falta de apresentação de propostas ou com inclinação

excessivamente sexual, discriminatória ou qualquer outro apelo que leve à

despolitização da propaganda eleitoral.

O candidato e humorista Tiririca (PR-SP), que foi eleito deputado federal,

tem como grau de instrução o ensino fundamental incompleto. Em sua propaganda

política seus slogans e “propostas” apresentadas foram: a) “Vote em Tiririca, pior que tá

não fica”; b) “Se você já comeu sua prima nanica, vote em Tiririca”; c)

“Você sabe o que faz um deputado federal? Eu não sei, mas vote em mim que eu te

conto”, “Vote no abestado” etc.

O professor Sérgio Tamer (Presidente do Conselho de Ética do Partido da

República), em artigo publicado no jornal Folha de São Paulo, em 6 de setembro de

2010, expõe que a candidatura do artista Francisco Everaldo Oliveira da Silva, o

Tiririca, é um “símbolo do pluralismo praticado pelo Partido da República”. Segundo

Tamer, o candidato Tiririca representa um relevante segmento entre os brasileiros,

sendo livre para escolher a forma e o conteúdo que lhe parecer conveniente quando se

apresenta para pedir o voto nas ruas ou no horário de propaganda política da TV. Ainda,

expõe que Tiririca tem todo o direito de se apresentar para o eleitorado da forma que o

eleitorado o conhece, caso contrário, os candidatos cantores não poderiam cantar, os que

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usam chapéu teriam de mostrar os cabelos, e os médicos estariam proibidos de aparecer

na televisão em roupas brancas (On-line, 2010).

Causa espanto a postura do Presidente do Conselho de Ética do Partido da

República, visto que defender a linguagem utilizada por Tiririca é como referendar a

banalização, a despolitização da propaganda eleitoral. É como amparar a liberdade de

jogar o dinheiro público fora. Não há diferença alguma entre assistir à propaganda do

candidato Tiririca e ver um programa humorístico. Isso verdadeiramente não é

propaganda eleitoral.

De que músicos, humoristas e outros representam um relevante segmento da

sociedade brasileira não há dúvidas. Eles devem, sim, ter a oportunidade de concorrer às

eleições “livres”. Porém, utilizar propaganda eleitoral de maneira espúria não significa

mostrar “representatividade” legítima. Não mesmo. Caberia, sobretudo e em primeiro

lugar, ao próprio Partido da República (principalmente o Conselho de Ética, por meio

de seu presidente) interpelar o candidato e sugerir uma mudança de postura.

A defesa que fez o Presidente do Conselho de Ética do Partido da República

contraria frontalmente o programa do partido. O Programa do Partido da República

entende “a Política como atividade essencialmente ética, que busca a formação de

estruturas de poder e de governo, livres e democráticos”, que “A liberdade exercita-se

na crítica permanente”. Ainda que “A censura moral pode justificar-se na televisão ou

no rádio, preferencialmente exercida por instituições comunitárias; “Nestes casos, o

direito à livre expressão pode conflitar-se com o direito natural da família à educação de

seus filhos, dentro de padrões éticos”. Será que o Presidente do Conselho de Ética do

Partido da República realmente faz uma correta reflexão sobre a propaganda de Tiririca

e o programa de seu partido?

Segundo a Revista Época, de 22 de agosto de 2010 (On-line, 2010):

No Rio de Janeiro, o ex-jogador Romário concorre a uma vaga de deputado federal e apelou para o corpão. Anda cercado por um grupo de mulatas fornidas que distribuem santinhos com um argumento inusitado: ‘Vote no Romário porque ele já é rico e não vai roubar’. Pedro Manso, imitador que fez sucesso se apresentando como Faustão, tenta uma vaguinha na Assembleia vestido e falando como Faustão. ‘Ô-loco, meu! Pedro Manso para deputado!’. Na linha funk-favela concorre Tati Quebra Barraco, autora do hit ‘Dako é bom’, que fala numa marca de fogão. Os famosos tentam se eleger apoiados no argumento da fama. O ex-pugilista Maguila diz que vai ‘lutar em Brasília’. O ex-jogador de futebol Marcelinho Carioca quer ‘jogar no time’ dos eleitores. Raul Gil tira o chapéu para seu filho, candidato a deputado federal. Os irmãos do grupo KLB defendem ‘a união da família’. O que promete o estilista Ronaldo Esper? ‘Agulhar os políticos’ […]

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Na propaganda política do Estado de São Paulo de 2010, também se

visualizou o candidato Maguila (PTN - deputado federal) nocautear um boneco inflável

“Tiririca”, afirmando estar cansado de “palhaçada”, no horário eleitoral (S/a, On-line,

2010). O candidato fez um apelo: "Chega de palhaçada, política é coisa séria".

Outro caso que “burla” a legislação eleitoral ocorreu, por exemplo, com o

candidato Jeferson Camillo (advogado, professor universitário, escritor, jornalista,

apresentador de TV e empreendedor) que publicou vídeos “picantes” no YouTube.

Filmados em um quarto de motel com cinco atores, ele afirma que os filmes feitos para

provocar uma reflexão: “As pessoas estão vendo apenas o que é mostrado, sem perceber

as questões mais profundas e implícitas.” Em um dos vídeos com milhares de

visualizações, há um casal surpreendido por um terceiro no ofurô com a mensagem

“Experimente algo novo, com certeza você vai gostar” (S/a, On-line, 2010).

Um caso que se utiliza do “humor”, mas destaca uma ideologia, uma

proposta é o da candidata Gabriela Leite (PV- Rio de Janeiro). Presidente da ONG

Daspu, que reúne prostitutas do Rio, Gabriela lançou sua campanha sempre afirmando

ser uma "puta deputada" para avançar na questão dos "direitos sexuais", como

fundamentais para que se avance na questão do aborto, da união civil homossexual e na

questão das prostitutas. putas", disse ela no lançamento de sua candidatura, pelo PV. Ela

defende a legalização do aborto, da união civil dos homossexuais, da prostituição (S/a,

On-line, 2010).

Por fim, outro caso que mescla “humor” a propostas é o do candidato

Waldir Soares de Oliveira (Delegado Waldir – PSDB de Goiás). O candidato

literalmente “atira” para todos os lados durante os 30 (trinta) segundos em que faz sua

propaganda política. Com os dedos, “Delegado Waldir” simula uma arma apontada para

a câmera e com os efeitos de produção põe nariz de palhaço sobre o rosto de políticos,

fazendo a impressão de que a tela é atingida pelas balas de mentira. O número da

candidatura, 4500, segundo o blog do site Folha de São Paulo, “casa direitinho” com a

ideologia 'bang-bang': "45 no calibre e 00 para a algema do bandido". Apesar de

banalizar a propaganda, o candidato expõe propostas de agir contra a lei da palmada,

impor trabalho obrigatório ao preso, reduzir a maioridade penal, entre outras (S/a,

Online, 2010).

Ressaltam-se também os slogans de propaganda eleitoral também

desvirtuam a legitimidade democrática, o caráter informativo e outros objetivos que

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devem necessariamente existir nas eleições. O site do provedor “UOL” ressalta os dez

“melhores” slogans de campanha, quais sejam (S/a, Online, 2010):

10º lugar - Edeilza, que tem o apelido de Dê, candidata em Miguel Calmon (BA), com o slogan: 'Em 2008 Dê na câmara.' 9º lugar - Guilherme Bouças, com o slogan: 'Chega de malas, vote em Bouças.' 8º lugar - Grito de guerra do candidato Linguiça, lá de Cotia (SP) 'Linguiça Neles!' 7º lugar - Em Descalvado (AL), tem uma candidata chamada Dinha cujo slogan é: 'Tudo Pela Dinha”. 6º lugar - Em Carmo do Rio Claro, tem um candidato chamado Gê. 'Não vote em A, nem em B, nem em C; na hora H, vote em Gê.' 5º lugar - Em Hidrolândia (GO), tem um candidato chamado Pé. 'Não vote sentado, vote em Pé’. 4º lugar - E em Piraí do Sul tem um gay chamado Lady Zu. 'Aquele que dá o que promete.' 3º lugar - A cearense chamada Debora Soft, stripper e estrela de show de sexo explícito. Slogan: 'Vote com prazer!' 2º lugar - Em Mogi das Cruzes (SP), tem um candidato chamado Defunto: 'Vote em Defunto, porque político bom é político morto!' 1º lugar - Luiz Sobral, Candidato a prefeito de Irecê (BA): 'Com a minha fé e as fezes de vocês, vou ganhar a eleição.'

A título ilustrativo, alguns slogans ressaltam bem com tem sido tratada a

propaganda eleitoral no Brasil.

Figura 2: Propaganda do candidato Anão a vereador.

Fonte: PR tem candidato ‘James Bond’ e anão com slogan ‘dos males o menor’. Disponível em:

<http://g1.globo.com/parana/eleicoes/2012/noticia/2012/08/pr-tem-candidato-james-bond-e-anao-com-

slogan-dos-males-o-menor.html>. Acesso em: 29 ago. 2012.

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Figura 3: Propaganda do candidato Titela.

 

Fonte: Buemba! Simão revela candidatos medonhos. Disponível em:

<http://noticias.uol.com.br/monkeynews/ultimas-noticias/2012/08/30/buemba-simao-revela-candidatos-

medonhos.htm>. Acesso em: 25 fev. 2013.

O trato consumista de candidatos como mercadoria de utilização rápida e

descartável, segundo Eneida Desiree Salgado (2012, p.262) não é privilégio da política

brasileira. Vários países sofrem com a mercantilização do debate político. Ainda,

historicamente a propaganda política teve uma conotação negativa pela ausência de

limites em práticas persuasivas, gerando fanatismos exagerados como ocorreu com

Lenin, Hitler, Mao Tse Tung, assim como no getulismo brasileiro. (SCOTTO, 2004, p.

113-113).

Numerosos partidos políticos, notadamente nos Estados Unidos da América

do Norte, transformaram-se, depois do desaparecimento das velhas divergências a

propósito de interpretação da Constituição, em organizações que só se dedicam à caça

aos empregos e que modificam seu programa concreto em função dos votos que há por

captar (WEBER, 1968, p. 68).

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Nos Estados Unidos, Ronald Reagan, astro de cinema, foi eleito presidente

da república. Fred Thompson, ator, elegeu-se senador. Clint Eastwood, ator e diretor,

foi eleito prefeito de “Carmel”. Alan Autry, ator, foi eleito prefeito do Fresno. George

Murphy, cantora e dançarina, elegeu-se senadora. Ainda, Arnold Schwarzenegger, ator,

foi eleito governador do estado da Califórnia e teve como concorrente a estrela pornô

Mary Carey.

Figura 4: A estrela pornô Mary Carey

 

Fonte: As oito mais ridículas a candidato político. Disponível em:

<http://www.goldenliterature.com/PrinterFriendly/ridiculous-political-candidates%28pf%29.html>.

Acesso em 25 fev. 2013.

A atriz pornô italiana Cicciolina, eleita para o parlamento da Itália em 1987,

ficou mundialmente famosa por despir os seios durante sua “bem-sucedida” campanha.

Milly D'Abbraccio, uma das mais famosas atrizes do cinema pornográfico

italiano e candidata à vereadora em Roma, colou por toda a cidade cerca de sete mil

cartazes nos quais mostra seus glúteos e incentiva os eleitores a votar em novos rostos.

"Basta com essas caras de bunda na política", destaca o cartaz eleitoral sob uma grande

foto do traseiro nu da atriz, que, com as mãos, tira meias vermelhas de renda. Sobre seus

atributos, aparece escrito o seu nome. A candidata defende a transformação de Roma na

cidade do amor (S/a, Online, 2013).

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6 IMPUGNAÇÃO DA PROPAGANDA ELEITORAL BANAL NO

HORÁRIO ELEITORAL GRATUITO

No Brasil, as pessoas têm suportado abusos que, em outros países, seria

motivo suficiente para a queda de um governo, a renúncia de um mandato ou a punição

pelos órgãos de fiscalização e controle (sobretudo o Ministério Público). Porém, o órgão

ministerial e os cidadãos como um todo fazem “vista grossa” ou até consideram naturais

os problemas com a banalização das campanhas eleitorais.

As primeiras sanções que deveriam ocorrer para inibir as campanhas

eleitorais banalizadas eram para se dar no âmbito intrapartidário. A Constituição de

1988, no art. 17, § 1º, assegura aos partidos políticos autonomia para definir sua

estrutura interna, devendo seus estatutos estabelecer normas de disciplina partidária.

Porém, não se encontram registros de punição de partidos para com seus filiados em

razão de tais práticas. Aliás, não houve sequer mobilização, por exemplo, no âmbito do

Partido dos Trabalhadores, para punir filiados condenados na ação penal n° 470

(mensalão). Os casos que ocorrem algum tipo de punição referem-se tão somente à

fidelidade partidária.

A legislação eleitoral (Lei 9.504/97 – Lei das Eleições) determina, a priori,

que, em caso de descumprimento das regras relativas à propaganda eleitoral, o

procedimento, as reclamações ou as representações relativas podem ser feitas por

qualquer partido político, coligação ou candidato (art. 96).

A Resolução n. 22.158/06, do TSE, em seu art. 72, também faculta ao

Ministério Público fiscalizar a propaganda eleitoral. Apesar da omissão da Lei das

Eleições em legitimar o Ministério Público expressamente tal atribuição, a Constituição

determina em seu art. 129, inc. II, como sua função institucional “zelar pelo efetivo

respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos

assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia”.

Ainda, o art. 5°, inc. LXXIII, autoriza a qualquer cidadão propor ação

popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público. Assim, como o Estado, por

meio de isenção fiscal (receita pública), concede aos partidos políticos o benefício de

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apresentar propostas e candidatos, a partir do momento em que o tempo é utilizado para

ridicularizar condutas, banalizar o espaço público ou outra conduta incompatível com o

objetivo da propaganda eleitoral, assim fica o cidadão legitimado a impugnar tal ato.

O horário eleitoral gratuito não pode ser utilizado de forma ilegítima, banal,

por se tratar de um canal comunicativo, um espaço público, destinado, sobretudo, à

informação. Apesar de a propaganda política não se resumir ao horário eleitoral

gratuito, todo o marketing eleitoral deve estar baseado num conteúdo ético-jurídico

básico, regulado no ordenamento jurídico. Porém, o resultado na política ou o “agir para

o necessário” recai no problema ético do instrumento de violência legítima, ou seja, a

política como uma ferramenta de que dispõem os detentores do “poder” outorgado pelo

povo (ética da responsabilidade). Afirma Max Weber (1968, p. 120):

Quem deseja a salvação da própria alma ou de almas alheias deve, portanto, evitar os caminhos da política que, por vocação, procura realizar tarefas muitos diferentes, que não podem ser concretizadas sem violência. O gênio, ou o demônio da política vive em estado de tensão extrema com o Deus do amor e também com o Deus dos cristãos, tal como este se manifesta nas instituições da Igreja.

Obviamente que o candidato, atuando politicamente e respeitando a

legislação eleitoral, dispõe de uma série de instrumentos para conquistar o voto do

eleitor seja com humor, protesto, indignação, beleza etc.

Ainda, no que se refere à utilização da propaganda eleitoral de forma

inverídica, a matéria é regulada na lei eleitoral de modo vinculado ao direito de resposta

(art. 58, Lei 9.504/97- Lei das Eleições). Assim, a mentira formulada contra o eleitor (e

não contra um candidato) não é impugnada no processo eleitoral. Porém, acredita-se que

qualquer cidadão (por intermédio da ação popular) ou o Ministério Público poderiam

solicitar direito de resposta social, esclarecendo as inverdades cometidas por quaisquer

candidato, partido ou coligação.

O Poder Judiciário, quando provocado, não pode tolerar o desvirtuamento

do processo eleitoral. Não foi, por exemplo, o que aconteceu com o Supremo Tribunal

Federal, no julgamento do ADI 2.306. Neste caso, o STF referendou a autonomia do

Congresso Nacional eleito para anistiar multas aplicadas pela justiça eleitoral (referente

a deputados e senadores, por exemplo, que haviam cometido infrações no processo

eleitoral). Na ADI 2.306-3 (Relatora: Ellen Gracie – DJ 31.10.2002), objetivando

afastar do ordenamento jurídico nacional a Lei n. 9.996/2000, que dispõe sobre anistia

de multas aplicadas pela Justiça Eleitoral em 1996 e 1998, o STF declarou que a

moralidade é um princípio vinculante à administração pública, mas não ao legislador.

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Os excessos verificados relativamente à propaganda eleitoral foram coibidos

com rigor pela Justiça Eleitoral, resultando na aplicação de grande número de multas

aos candidatos de todos os matizes políticos. Em tal julgamento que ocorreu por maioria

de votos pela manutenção da lei anistiadora das multas, o então ministro Nery da

Silveira demonstrando indignação em seu voto explana (TSE, Online, 2003):

Em cada pleito, a Justiça Eleitoral esforça-se por fazer cumprir a lei, pela regularidade do processo eleitoral, e posteriormente, por uma norma legislativa, torna-se nenhum esse procedimento, insubsistente e ineficaz. Isso diz respeito a nosso sistema constitucional. Queremos eleições limpas, a verdade eleitoral. Tal é de nosso sistema com base na Constituição.

A propaganda eleitoral é disciplinada por legislação que prevê infrações, comina multas para candidatos, emissoras e meios de comunicação que desrespeitem essas disposições. A Justiça Eleitoral, com seu aparelho judiciário e administrativo, trabalha para que seja cumprida essa legislação, com vistas à regularidade dos pleitos eleitorais. Depois de tudo isso, após cada eleição, vem uma lei declarando anistiadas todas as infrações ocorridas, durante o processo eleitoral.

Desta maneira, evidencia-se um desvirtuamento das campanhas eleitorais

espúrias dos objetivos do processo eleitoral. Fazendo uma reflexão sobre “politização x

despolitização” do processo eleitoral, verifica-se que o Estado deve ter um papel

determinante na blindagem de influências políticas vulgares/banais. Essa ilegitimidade

pode ser sancionada no âmbito jurídico, pois não faltam fundamentos a proteger o

procedimento eletivo no Brasil.

CONCLUSÃO

O Estado deve buscar constantemente controlar a veiculação das

informações repassadas na propaganda eleitoral, que deve servir como instrumento de

conhecimento de candidato para a cobrança popular, partidária e jornalística de suas

ações, bem como para o conhecimento de direitos e deveres, das propostas de

manutenção, extinção ou desenvolvimento das ações estatais, transformando o

espectador, de certo modo, num ator político.

Inobstante não haver proibição expressa da banalização das campanhas

eleitorais, vários princípios constitucionais, como o da normalidade e legitimidade das

eleições, o da moralidade, do Estado democrático, moldam o objetivo informativo da

propaganda eleitoral.

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O quadro popular de descrédito da classe política e de algumas instituições é

um campo fértil para a utilização de técnicas de marketing que lançam candidatos que

facilmente conseguem persuadir pessoas a votarem em suas “propostas”. Devem ser

criados, assim, mecanismos de combate à banalização da propaganda eleitoral, como já

acontece com a compra de votos.

Não obstante, os fundamentos constitucionais da normalidade e legitimidade

das eleições, da cidadania, do resguardo do regime democrático, dos direitos

fundamentais da pessoa humana, da finalidade educativas e informativas das

programações de rádio e televisão com respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e

da família são suficientes para proibir práticas banais no processo eleitoral. A legislação

infraconstitucional também veda propaganda que ridicularize candidatos, ofenda a

moral e os bons costumes. Além disso, os gastos estatais com o horário eleitoral gratuito

também é um relevante fundamento à vedação de campanhas banais.

Não se espera uma mudança radical, uma conduta ética irretocável no

comportamento dos candidatos nas campanhas eleitorais, mas tão somente uma postura

alinhada e identificada à legitimidade democrática do processo eleitoral, para que o

povo tenha liberdade e informação adequadas para escolher seus representantes sem

uma indevida persuasão, decorrente da indevida aplicação de técnicas de marketing no

campo da política.

O marketing político pode ser utilizado para primar pelo coletivismo,

fazendo com que o voto se transforme numa arma efetiva do povo para construir sua

própria história. Não pode haver, no âmbito da propaganda política, é a venda a

qualquer custo, a manipulação, a mentira ou qualquer ato espúrio no processo eleitoral

que está diretamente identificado com a legitimidade democrática.

Paralelamente ao controle estatal, partidário e social da propaganda eleitoral

deve, também, existir um controle das entidades de classe publicitária com seus

membros.

Infelizmente, está enraizada no processo eleitoral, não só brasileiro, uma

maneira espúria de conquistar votos, o trato consumista de candidatos como mercadoria

de utilização rápida e descartável. Inúmeros são os casos de banalização do processo

eleitoral, com apego exagerado ao humor, ao sexo etc.

A banalização objeto de crítica e vedação jurídica que se defende, decorre

da total falta de apresentação de propostas ou com inclinação excessivamente sexual,

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discriminatória ou qualquer outro apelo que leve à despolitização da propaganda

eleitoral.

As primeiras sanções que deveriam ocorrer para inibir as campanhas

eleitorais banalizadas eram para se dar no âmbito intrapartidário, em face da autonomia

dos partidos políticos para estabelecer normas de disciplina partidária.

Qualquer partido político, coligação, candidato, os Membros do Ministério

Público ou cidadão (ação popular) podem velar pelo cumprimento das regras relativas à

propaganda eleitoral.

Por fim, a inadequada utilização do espaço público, objeto das campanhas

eleitorais, gerando uma verdadeira “despolitização” do processo eleitoral, deve ser

coibida pelo Estado, que dispõe de sanções no âmbito jurídico e fundamentos para

proteger o procedimento eletivo.

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PRESTAÇÃO DE CONTAS DE CAMPANHAS ELEITORAIS: (IN)DIFERENÇAS

PRÁTICAS ENTRE A APROVAÇÃO, APROVAÇÃO COM RESSALVAS,

REJEIÇÃO E NÃO PRESTAÇÃO DE CONTAS ELEITORAIS

FINANCIAL ACCOUNTABILITY OF ELECTORAL CAMPAIGNS: PRACTICAL

(IN)DIFFERENCES BETWEEN APPROVAL, APPROVAL WITH CAVEATS,

REJECTION AND NO PRESENTATION OF ELECTORAL FINANCIAL

ACCOUNTABILITY

Lucas de Oliveira Gelape1

Luísa Ferreira Vidal2

RESUMO

O presente artigo pretende estudar as quatro possíveis decisões quanto a contas eleitorais que podem ser proferidas pela Justiça Eleitoral, quais sejam a aprovação, aprovação com ressalvas, rejeição e a não prestação de contas eleitorais, problematizando suas distinções e eficácia práticas. Para tanto, inicialmente será abordada a relação entre democracia e eleições, enquadrando a importância do financiamento de campanhas eleitorais e da prestação de contas, tendo em vista o contexto da reforma política brasileira. Em seguida, serão apresentadas as principais características da regulamentação legal do financiamento de campanhas eleitorais brasileiras e suas respectivas prestações de contas. Posteriormente, serão abordadas decisões judiciais quanto às contas, focando nas diferenças (ou indiferenças) práticas que resultam dessas. Serão ainda feitas críticas à aplicação dessas quatro decisões e, por fim, serão tecidas considerações finais. PALAVRAS-CHAVE: Reforma Política; Financiamento de Campanhas Eleitorais; Prestação de Contas; Julgamento de Contas.

ABSTRACT

The present article intends to study the four possible decisions on electoral campaigns financial accountability that the Electoral Justice can utter, which are the approval, approval with caveats, rejection, and no presentation, problematizing its practical distinctions and efficacy. In order to do so, initially it will be addressed the relations between democracy and elections, locating the importance of electoral campaigns funding and its financial accountability in the context of the political reform in Brazil. Next, it will be presented the main characteristics of the regulation of campaign funding and its respective financial accountability. After, it will be discussed different judicial decisions on the financial accountability presented by campaigns, focusing on the four different possible decisions and

1Graduando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Bolsista de iniciação científica do CNPq no projeto “Propostas de Reforma do Sistema Brasileiro de Financiamento de Campanhas Eleitorais”, sob orientação do prof. Dr. Rodolfo Viana Pereira. E-mail para contato: [email protected]. 2 Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Bolsista de iniciação científica do CNPq no projeto “Propostas de Reforma do Sistema Brasileiro de Financiamento de Campanhas Eleitorais”, sob orientação do prof. Dr. Rodolfo Viana Pereira. E-mail para contato: [email protected].

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its differences (or indifferences). Critics on the application of those decisions will still be made and, lastly, final remarks will be made. KEYWORDS: Political Reform; Electoral Campaign Funding; Financial Accountability of Electoral Campaigns; Judgement of Financial Accountability of Campaigns.

1 INTRODUÇÃO

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 estabelece em seu art. 1º

que o poder emana do povo, e este o exercerá por meio de representantes eleitos3. Analisando

essa prescrição à luz do caput do art. 14 da Magna Carta4, o povo vota a fim de eleger representantes que, por sua vez, exercem o poder em nome dele. Nossa democracia é, portanto, representativa, sendo o voto instituto fundamental para o sistema democrático

brasileiro.

Quase vinte e cinco anos após a promulgação da Constituição, alguns diagnósticos já

podem ser feitos quanto ao atual sistema democrático. Observa-se, por exemplo, uma

eminente insatisfação com o funcionamento do sistema político. A classe política

(especialmente o Poder Legislativo), composta pelos representantes eleitos, é uma das que

menos inspira confiança na população5, de modo que a reforma do sistema, também

conhecida como reforma política, tem sido uma pauta relevante.

Nas discussões, indubitavelmente, o Financiamento de Campanhas Eleitorais é dos

temas que suscita maiores debates, uma vez que possui relação direta com a corrupção6,

principal prática visada nas propostas de reforma política7. Nesse âmbito, é relevante o exame dos dispositivos legais que regem a prestação de contas das campanhas eleitorais, visto ser esse um procedimento apto a detectar irregularidades na captação e nos gastos de recursos durante o pleito, mas ainda pouco desenvolvido nas propostas da reforma política.

A prestação de contas é “[...] procedimento de caráter administrativo [...]” (ZILIO,

2010, p. 387), pelo qual a Justiça Eleitoral analisa as contas do candidato, decidindo por uma

3 “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.” (BRASIL, 2013a) 4 “Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante [...]” (BRASIL, 2013a) 5 Segundo resultados da pesquisa ICJ Brasil, realizada no segundo e terceiro trimestres de 2012, o Congresso Nacional e os partidos políticos são as duas instituições mais desacreditadas do Brasil. (CUNHA et al., 2012, p. 21). 6 “Qualquer análise do financiamento das campanhas deve remeter primeiramente à corrupção.” (RIBEIRO, 2006, p. 78) 7 “[...] a corrupção parece ser o mote da reforma política, impulsionando os debates a cada novo escândalo.” (FERREIRA, 2011, p. 103).

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de quatro opções, quais sejam, a aprovação, a aprovação com ressalvas, a desaprovação e a

não-prestação das contas, conforme os termos do art. 30, da lei nº 9.504 de setembro de 1997,

também conhecida como a Lei das Eleições.

O presente estudo objetiva analisar as decisões possíveis nos julgamentos das contas

de campanhas eleitorais apresentadas pelos candidatos, problematizando suas distinções e

eficácia, a partir de disposições legais e doutrinárias, bem como de aplicações

jurisprudenciais. Inicialmente será abordada a relação entre democracia e eleições, e a

importância do financiamento de campanhas eleitorais e da prestação de contas, tendo-se em

vista o contexto de proposição de reformas do sistema político. Será apresentada a

regulamentação legal do financiamento de campanhas no Brasil e do processo de prestação de

contas. Em seguida, serão exploradas as decisões judiciais quanto às contas e as diferenças

práticas entre elas. Por fim, serão tecidas as críticas e as conclusões. 2 DEMOCRACIA, ELEIÇÕES, FINANCIAMENTO DE CAMPANHAS E REFORMA

POLÍTICA

Conforme ensina Rodolfo Viana Pereira (2010, p. 58-59), a história do

constitucionalismo, desde os tempos liberais, foi desenvolvendo um íntimo relacionamento

com a democracia, principalmente através das denominadas “viragens” históricas eleitoral,

social e pública. Com as suas respectivas característica, cada “viragem” contribui para o

fortalecimento dos laços entre democracia e constitucionalismo, e como resultado desses processos históricos, a relação entre os discursos do constitucionalismo e da democracia passa a ser compreendida como uma relação de co-implicação necessária. De um modo geral, a constituição deve ser vista como o dado estruturante imprescindível para a realização do projeto democrático, ao passo que a democracia deve ser compreendida como o dado legitimador essencial para a justificação da constitucionalidade. (PEREIRA, 2010, p. 60).

No âmbito do atual paradigma do Estado Democrático de Direito8, ao se conceber a

democracia como regime político, identificam-se algumas características básicas, as quais

seriam, segundo a concepção de Robert A. Dahl a) liberdade para constituir e integrar-se em organizações; b) liberdade de expressão; c) direito de voto; d) acesso a cargos públicos; e) possibilidade de os líderes políticos competirem por meio da votação; f) fontes alternativas de informação; g) eleições livres e isentas; h) existência de instituições capazes de viabilizar a política

8 “O Estado constitucional não é nem deve ser apenas um Estado de Direito. [...] Ele tem de estruturar-se como Estado de direito democrático, isto é, como uma ordem de domínio legitimada pelo povo. A articulação do ‘direito’ e do ‘poder’ no Estado constitucional significa, assim, que o poder do Estado deve organizar -se e exercer-se em termos democráticos. O princípio da soberania popular é, pois, uma das traves mestras do Estado constitucional. O poder político deriva do poder dos ‘cidadãos’.” (CANOTILHO, 2003, p. 97-98, grifo do autor).

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do governo e legitimadas pelo voto ou outras manifestações de vontade popular. (CARVALHO, 2009, p. 208-209).

Coaduna-se com esses preceitos a democracia ensejada pelo constituinte brasileiro de

1988, que, para a realização de seu projeto, como bem esclareceu Pereira, ditou diversos

parâmetros na Carta Magna. Dentre esses parâmetros, importante ressaltar a representação

política dos cidadãos.

No Brasil, assim como na maioria dos regimes democráticos em vigor no mundo,

vige uma democracia predominantemente representativa, na qual são escolhidos

representantes para exercer a vontade do povo, seja no Poder Executivo ou no Poder

Legislativo9.

A representação política é atualmente um dos temas mais delicados no campo da

ciência política e do direito10. Variadas são as teorias sobre suas bases, funções e ideais, mas

numa visão mais liberal11 de democracia, poder-se-ia afirmar que a alegação que conecta a democracia e a representação é que na democracia os governos são representativos porque são eleitos: se as eleições são concorridas livremente, se a participação é ampla, e se os cidadãos desfrutam das liberdades políticas, então os governos agirão em favor do interesse da população. (MANIN; PRZEWORSKI; STOKES, 2006, p. 105).

Todavia, essa visão não se sustenta em face de uma sociedade que demanda mais

participação política, e que se encontra diante de impasses quanto à qualidade da sua

representação. Apesar de as eleições não serem “[...] mecanismos suficientes para assegurar

que os governantes farão tudo o que puderem para maximizar o bem-estar dos cidadãos”

(MANIN; PRZEWORSKI; STOKES, 2006, p. 132-133), inegável é seu papel preponderante

9 O regime brasileiro deve ser caracterizado como uma democracia semi-direta, pois “[...] caracteriza-se pela coexistência de mecanismos da democracia representativa (indireta) com outros da democracia direta: referendo, plebiscito, iniciativa popular, recall, etc.” (CARVALHO, 2009, p. 215). De fato, os mecanismos de democracia direta previstos no texto constitucional brasileiro são o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular de leis (estabelecidos no art. 14, I, II, e III, da Constituição de 1988). 10 “Muito embora tenha o século XX presenciado a inclusão constitucional de institutos de democracia direta [...], a esperança depositada na ‘revolução participativa’ e na correspondente reforma institucional restou circunscrita à margem da ação política, cujo modus operandi continuou, em sua grande maioria, a refletir a trilogia delegação, representação, controle político. Consequentemente, o ‘idioma democrático dominante’ ainda se identifica com a versão representativa. Limitado tal sistema, na prática, ao princípio representativo, o abalo nos alicerces deste implicou, por decorrência, a crise daquela.” (PEREIRA, 2010, p. 120, itálicos do autor). 11 “A teoria liberal assenta nos seguintes postulados: (1) a política é um meio para a prossecução de fins, estando estes fins radicados numa esfera de liberdade social preexistente à própria política; (2) o processo democrático serve para colocar o estado ao serviço da sociedade, reduzindo-se este estado a um aparelho administrativo e estruturando-se a sociedade como um sistema econômico baseado no comércio entre pessoas privadas; (3) a política deve orientar-se no sentido de prosseguir estes interesses privados perante um aparelho administrativo que se transformou em poder especializado de prossecução de fins coletivos.” (CANOTILHO, 2003, p. 1414 - 1415).

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no cenário democrático brasileiro. Diante disso, de forma a aprimorar representação, tem se

mostrado fundamental o exame dos diversos aspectos envolvem as eleições.

Ao buscar a “[...] reorganização de regras para competições eleitorais periódicas [...]”

(AVRITZER; ANASTASIA, 2006, p. 11), com vistas a “[...] contribuir para o

aperfeiçoamento da ordem democrática, incidindo positivamente sobre o comportamento

político dos atores em interação e sobre os resultados produzidos” (AVRITZER;

ANASTASIA, 2006, p. 12), a reforma política visa contribuir para o aperfeiçoamento da

representação e do sistema político brasileiro.

Diversas são as matérias discutidas na reforma política, com destaque para o

financiamento das campanhas eleitorais. A respeito do tema, no Brasil vige um sistema misto,

uma vez que ele possibilita arrecadações tanto por meio de financiamento público, quanto por

meio de financiamento privado (GOMES, 2010, p. 263). A regulamentação do sistema está

prevista na legislação eleitoral, em diplomas normativos posteriores às Constituição de 1988. 3 FINANCIAMENTO DE CAMPANHAS ELEITORAIS: DISPOSIÇÕES LEGAIS

A arrecadação de recursos nas campanhas eleitorais está disciplinada,

principalmente, na lei 9.504 de setembro de 1997, também denominada Lei das Eleições

(BRASIL, 2013b). Esse diploma estabelece regras diversas que viabilizam o monitoramento

dos recursos financeiros aplicados nas campanhas, a fim de serem apuradas eventuais

irregularidades.

Conforme dispõe o art. 22 da referida lei, salvo exceções legais12, é obrigatório para

os candidatos “[...] abrir conta bancária específica para registrar todo movimento

financeiro da campanha.” (BRASIL, 2013b). Somente depois da abertura dessa, podem ser

recebidas as doações para as campanhas eleitorais, que deverão ser efetuadas apenas por

meio de cheques cruzados e nominais, transferência bancária ou depósitos identificados13.

Segundo o art. 23,

§2º do mesmo diploma, toda doação “[...] deverá ser feita mediante recibo, em formulário

impresso ou em formulário eletrônico, no caso de doações via internet, em que constem os

dados do modelo constante do Anexo, dispensada a assinatura do doador.” (BRASIL, 2013b).

12 O art. 22 § 2º da Lei das Eleições estabelece não ser obrigatória a abertura de conta bancária específica “[...] aos casos de candidatura para Prefeito e Vereador em Municípios onde não haja agência bancária, bem como aos casos de candidatura para Vereador em Municípios com menos de vinte mil eleitores.” (BRASIL, 2013b). 13 Segundo o art. 23, §4º, III da Lei das Eleições, são permitidas também as doações pela internet, por meio dos sítios dos candidatos admitindo-se inclusive o uso do cartão de crédito, desde que identificado o doador e emitido o recibo eleitoral (BRASIL, 2013b).

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A Lei das Eleições também estabelece limites para as doações, conforme efetuadas

por pessoas físicas ou jurídicas. Segundo o art. 23, §1º, I do diploma legal (BRASIL, 2013b),

pessoas físicas não podem doar para as campanhas eleitorais valor superior a dez por cento

dos seus rendimentos brutos auferidos no ano anterior à eleição14. Esse limite, no entanto,

conforme o art. 23, §7º, “[...] não se aplica a doações estimáveis em dinheiro referentes à

utilização de bens móveis ou imóveis de propriedade do doador, desde que o valor da doação

não ultrapasse R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais).” (BRASIL, 2013b). Já as pessoas jurídicas,

devem se limitar a dois por cento de seu faturamento bruto também do ano anterior à eleição,

conforme o disposto no art. 81, §1º (BRASIL, 2013b)15.

A referida lei, em seu artigo 24, ainda dispõe sobre as fontes vedadas, proibindo

doações em dinheiro ou estimáveis em dinheiro, inclusive por meio de publicidade de

qualquer espécie, procedentes dos seguintes segmentos: entidade ou governo estrangeiro;

órgão da administração pública direta e indireta ou fundação mantida com recursos

provenientes do Poder Público; concessionário ou permissionário de serviço público; entidade

de direito privado que receba, na condição de beneficiária, contribuição compulsória em

virtude de disposição legal; entidade de utilidade pública, entidade de classe ou sindical,

pessoa jurídica sem fins lucrativos que receba recursos do exterior; entidades beneficentes e

religiosas, entidades esportivas; organizações não-governamentais que recebam recursos

públicos e organizações da sociedade civil de interesse público (BRASIL, 2013b).

Quanto aos gastos nas campanhas eleitorais, a Lei das Eleições estabelece em seu art.

18 que “no pedido de registro de seus candidatos, os partidos e coligações comunicarão aos

respectivos Tribunais Eleitorais os valores máximos de gastos que farão por cargo eletivo em

cada eleição a que concorrerem, observados os limites previamente estabelecidos [...]”

(BRASIL, 2013b) pela lei ou, na ausência desta, pelos próprios partidos.

A adequação a essas disposições legais por parte dos candidatos e dos doadores pode

ser apurada durante todo o processo eleitoral, com ênfase em uma de suas etapas: a prestação

de contas da campanha eleitoral. 4 O PROCESSO DE PRESTAÇÃO DE CONTAS DE CAMPANHAS ELEITORAIS

14 Com o art. 25, I, da Resolução nº 23.376 do Tribunal Superior Eleitoral, editada para regulamentar as eleições de 2012, a porcentagem limite para as doações de pessoa física para campanhas eleitorais passou a ser calculada sobre o valor do seu imposto de renda auferido no ano-calendário anterior à eleição (BRASIL, 2013g). 15 Já a porcentagem limite para as doações de pessoa jurídica para campanhas eleitorais passou a ser calculada sobre o valor do seu imposto de renda auferido no ano-calendário anterior à eleição, nos termos do art. 25, II, da Resolução nº 23.376 do Tribunal Superior Eleitoral (BRASIL, 2013g).

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O objetivo da prestação de contas, segundo Marcos Ramayana é assegurar a lisura e

a probidade na campanha, através do controle dos recursos financeiros nela aplicados, com

vistas a viabilizar a verificação de abusos e ilegalidades ocorridos durante a disputa eleitoral

(RAMAYANA, 2011, p. 497). E, conforme esclarece Rodrigo Zilio, a prestação de contas

consiste em procedimento de caráter administrativo através do qual os candidatos e comitês

financeiros apresentam à Justiça Eleitoral os valores arrecadados na campanha, demostrando

as respectivas fontes, e indicam o destino dos gastos eleitorais (ZILIO, 2010, p. 387).

Nas eleições presidenciais as contas devem ser prestadas ao Tribunal Superior

Eleitoral (TSE), nas eleições gerais, ao Tribunal Regional Eleitoral (TRE) e nas eleições

municipais, ao Juiz Eleitoral16. As prestações de contas dos candidatos às eleições

majoritárias devem ser feitas por intermédio do comitê financeiro, já as dos candidatos às

eleições proporcionais podem ser feitas pelo comitê financeiro ou pelo próprio candidato,

conforme estabelecem os parágrafos do art. 28 da lei 9.504 de setembro de 199717 (BRASIL,

2013b).

Como explica Edson de Rezende Castro (CASTRO, 2008, p. 445), mesmo tendo o

candidato utilizado qualquer profissional para administrar os recursos financeiros de sua

campanha, será ele responsável pela veracidade das informações contidas na prestação de

contas da campanha, nos termos do art. 21 da Lei das Eleições (BRASIL, 2013b). Nessa

situação, o candidato responderá, inclusive, criminalmente, pois declarar falsamente doações

ou gastos, ou mesmo omitir tais dados, caracteriza um dos tipos previstos nos arts. 348 e

seguintes do Código Eleitoral (CASTRO, 2008, p. 445).

Importante ressaltar que mesmo o candidato renuncie à sua candidatura, desista, seja

substituído ou tenha seu pedido de registro indeferido, ele tem o dever de prestar as contas

referentes ao período em que participou do processo eleitoral, ainda que não tenha realizado

campanha, conforme o art. 35, §5º, da Resolução nº 23.376 de março de 2012, do Tribunal

Superior Eleitoral (BRASIL, 2013g). Caso o candidato venha a falecer, conforme o exposto

no art. 35, §6º, da Resolução nº 23.376 do TSE, “[...] a obrigação de prestar contas referentes

16 As peças e os documentos que instruem a prestação de contas devem ser remetidos à Justiça eletronicamente por meio do Sistema de Prestação de Contas Eleitorais (SPCE), disponibilizado pelo TSE. Conforme o art. 45, §2º, resolução nº 23.376 de março de 2012 do TSE, atendidas as formalidades exigidas pelo SPCE, é gerado um recibo, caso contrário, o sistema apontará a impossibilidade técnica de recepção das contas, fazendo-se necessária a sua reapresentação, sob pena de as mesmas serem julgadas não prestadas (BRASIL, 2013g). 17 Nas eleições majoritárias, a prestação de contas dos candidatos que encabeçarem a chapa deve englobar a dos respectivos vices e suplentes, ainda que estes tenham optado por abrir conta bancária específica (GOMES, 2010, p. 276).

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ao período em que realizou campanha, será do seu administrador financeiro e, na ausência

deste, no que for possível, da respectiva direção partidária.” (BRASIL, 2013g).

Nos termos do art. 29 da Lei das Eleições, a prestação de contas deve ser

encaminhada à Justiça Eleitoral até 30 dias após as eleições (BRASIL, 2013b). Havendo

segundo turno, as contas dos candidatos que o disputem, referentes aos dois turnos, podem ser

enviadas até o trigésimo dia posterior à sua realização (BRASIL, 2013b).

Recebidas as contas, dá-se início ao exame técnico das mesmas por parte dos órgãos

de auditoria e controle interno. A Justiça Eleitoral pode requisitar técnicos do Tribunal de

Contas da União, dos Estados e dos Tribunais e Conselhos de Contas dos Municípios, bem

como servidores ou empregados públicos do Município, ou nele lotados, ou ainda, pessoas

idôneas da comunidade, preferencialmente entre aqueles que possuírem formação técnica para

o exame das contas eleitorais, de acordo com o art. 46, da resolução nº 23.376 de março de

2012, do TSE (BRASIL, 2013g).

O processo de prestação de contas é público e, por isso mesmo, pode ser livremente

consultado por qualquer pessoa que, inclusive, dele pode obter cópia integral ou parcial,

ressalvada a existência de documento sobre o qual se deva guardar sigilo (GOMES, 2010, p.

275).

Durante esse processo, a Justiça Eleitoral aprecia o cumprimento pelos candidatos

dos dispositivos legais que disciplinam a arrecadação de recursos para as campanhas.

Exemplificativamente, analisa-se se foi utilizada apenas a conta bancária específica da

campanha e se a doações e os gastos foram efetuados somente depois da abertura da mesma.

Quanto aos doadores, é apurado se existe algum caracterizado dentre as fontes vedadas, bem

como se as doações de pessoas físicas e jurídicas se encontram dentro dos limites legais. É

averiguada também a regularidade quanto à emissão de recibos e quanto aos gastos eleitorais

que devem respeitar o teto estabelecido pela lei ou pelos partidos.

Se as contas forem devidamente apresentadas e não demonstrarem falhas quanto a

aspectos como os acima citados, serão aprovadas pela Justiça. Caso contrário, poderão ser

julgadas como não prestadas, aprovadas com ressalvas ou mesmos desaprovadas, conforme as

irregularidades verificadas. 5 DECISÕES QUANTO À PRESTAÇÃO DE CONTAS: APROVAÇÃO,

APROVAÇÃO COM RESSALVAS, DESAPROVAÇÃO E NÃO PRESTAÇÃO DE

CONTAS

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Nos termos do art. 30, da lei nº 9.504 de 1997, o julgamento pela Justiça Eleitoral das

contas dos candidatos eleitos deve ser feita até oito dias antes da sessão de diplomação18

(BRASIL, 2013b). Todavia, ressalta Zilio (2010, p. 389) quanto à ausência de disposição expressa de prazo para o julgamento de contas dos candidatos não-eleitos:

a exclusão da referência aos candidatos não eleitos estabelece, tão somente, que a prioridade de julgamento das contas será para os candidatos eleitos, não significando que haja dispensa da apresentação da prestação de contas aos candidatos não eleitos.

Segundo o art. 30 da Lei das Eleições, quatro podem ser as decisões quanto às contas

de campanha, quais sejam, aprovação, aprovação com ressalvas, rejeição e não prestação de

contas19 (BRASIL, 2013b). Esse exame e decisão das contas, apesar de resultado de um

processo administrativo, “[...] exara um juízo de mérito sobre a matéria, e não a uma mera

apuração formal.” (ZILIO, 2010, p. 389).

O julgamento por não prestação das contas pode acontecer em duas hipóteses. De

acordo com Zilio (2010, p. 392-393) [...] existem duas hipóteses de não-apresentação de contas: a) o candidato não apresentou as contas no prazo fixado em lei (30 dias após a eleição ― art. 29, III e IV, da Lei nº 9.504/97) e, após notificado pela Justiça Eleitoral (sob pena de crime de desobediência e de serem as contas julgadas não-prestadas), novamente não prestou as contas, no prazo de 72 (setenta e duas) horas (art. 26, §4º da Resolução nº 23.217/2010); b) o candidato apresentou as contas ‘desacompanhadas de documentos que possibilitem a análise dos recursos arrecadados e dos gastos eleitorais’ e cuja falta não seja suprida após o prazo de 72 horas, contados da intimação do responsável (art. 26, §6º, da Resolução nº 23.217/10).

A não prestação das contas impede que o candidato receba a certidão de quitação

eleitoral20, pré-requisito para a diplomação, ato no qual a Justiça Eleitoral anuncia

oficialmente os eleitos. O candidato não obterá a sua quitação eleitoral até o final da

legislatura e, após esse período, enquanto as suas contas não forem julgadas, nos termos do

art. 53, I, da Resolução nº 23.376 de março de 2012, do Tribunal Superior Eleitoral (BRASIL,

2013g).

A aprovação está prevista no art. 30, I, da lei nº 9.504 de setembro de 1997, e ocorre

quando a Justiça Eleitoral julga as contas integralmente regulares. Nas palavras de José Jairo

18 “É imperioso que a Justiça Eleitoral cumpra rigorosamente tal lapso, porquanto nenhum candidato eleito poderá ser diplomado até que suas contas sejam julgadas” (GOMES, 2010, p. 279). 19 José Jairo Gomes observa que é clara a influência da Lei Orgânica do Tribunal de Contas da União no sistema formulado pela lei eleitoral: “é nítida nesse sistema a influência da Lei n. 8.443/92 (Lei Orgânica do Tribunal de Contas da União – TCU). Com efeito, o artigo 15 desse diploma estabelece que o TCU, ao julgar as contas de administradores públicos, ‘decidirá se estas são regulares, regulares com ressalvas ou irregulares’. Esclarece o inciso II do artigo 16 que as contas são julgadas ‘regulares com ressalvas, quando evidenciarem impropriedade ou qualquer outra falta de natureza formal de que não resulta dano ao erário.” (GOMES, 2010, p. 277 -278). 20 A quitação eleitoral, segundo o art.11, § 7º da Lei das Eleições, abrangerá exclusivamente a plenitude do gozo dos direitos políticos, o regular exercício do voto, o atendimento a convocações da Justiça Eleitoral para auxiliar os trabalhos relativos ao pleito, a inexistência de multas aplicadas, em caráter definitivo, pela Justiça Eleitoral e não remitidas, e a apresentação de contas de campanha eleitoral (BRASIL, 2013b).

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Gomes (2010, p. 277), “infere-se, ainda, que não havendo erros formais nem materiais, a

solução inexorável será a aprovação das contas.”

A aprovação com ressalvas, expressa no art. 30, II (BRASIL, 2013b), é cabível

quando verificadas falhas nas contas que não lhes comprometam a regularidade. Essa previsão

dialoga com o Princípio da Proporcionalidade, conforme explica Gomes (2010, p. 278), [...] sob a inspiração do princípio da proporcionalidade ou razoabilidade (pelo qual a sanção deve ser proporcional à gravidade da conduta inquinada e à lesão perpetrada ao bem jurídico protegido) [...] opta-se por esta solução sempre que as contas prestadas pelos partidos, comitês e candidatos não estiverem inteiramente regulares, mas também não ostentarem falhas muito graves; ou seja, quando os erros materiais detectados forem de pequena monta ou insignificantes.

Nesse sentido, inclusive, a hipótese prevista no art. 30, §2º-A da Lei das Eleições

pode dar substrato à aprovação com ressalvas das contas. Segundo o referido dispositivo, “[...]

erros formais ou materiais irrelevantes no conjunto da prestação de contas, que não

comprometam o seu resultado, não acarretarão a rejeição das contas.” (BRASIL, 2013b).

Por fim, a desaprovação de contas se dá, nos termos do art. 30, III da Lei das

Eleições, “[...] quando verificadas falhas que lhes comprometam a regularidade” (BRASIL,

2013b). Há que se ter em mente, quando do julgamento das contas, o disposto no art. 30, §2º,

segundo o qual quaisquer erros materiais ou formais devidamente corrigidos21 não autorizam a rejeição de contas ou aplicação de sanção ao candidato ou seu partido (BRASIL, 2013b).

Ao longo dos últimos anos, após diversas discussões doutrinárias e jurisprudenciais,

assentou-se que apenas a situação de não prestação de contas eleitorais impede o candidato de

receber a quitação. Pelo exposto no art. 11, § 7º da Lei das Eleições, a certidão de quitação

eleitoral deverá informar se as contas de anterior campanha eleitoral do candidato foram

prestadas, não podendo valorar o mérito de seu julgamento pelo órgão da Justiça Eleitoral

(BRASIL, 2013b).

Nesse sentido, inclusive, o Tribunal Superior Eleitoral se manifestou em 2012,

reiterando que está consolidado o entendimento de que, para fins de obtenção

da quitação eleitoral, exige-se apenas a apresentação das contas de campanha, nos termos em

que dispõe o art. 11, § 7º, da Lei nº 9.504 de setembro de 199722.

Portanto, encaminhadas as contas à Justiça, independente se serem aprovadas, com

ou sem ressalvas, ou reprovadas, será conferida a quitação eleitoral ao candidato.

21 Seja após diligência da Justiça Eleitoral, ou correção por parte do candidato ou comitê financeiro , de acordo com o art. 30, §4º da lei nº 9.504 de setembro de 1997 (BRASIL, 2013b). 22 Para tanto, cf. BRASIL, 2013d.

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Diante disso, vislumbra-se a seguinte questão: sob aspectos práticos, o que distingue

os candidatos cujas contas devidamente apresentadas foram aprovadas, aprovadas com

ressalvas ou rejeitadas? 6 DIFERENÇAS PRÁTICAS DAS DIVERSAS DECISÕES SOBRE CONTAS

ELEITORAIS

Os julgamentos das contas de campanhas eleitorais ensejam, inegavelmente, efeitos

éticos sobre os candidatos, podendo ainda gerar repercussões entre os eleitores. Conforme os

ensinamentos de José Jairo Gomes (2010, p. 281), o candidato que tem suas contas aprovadas

é “[...] laureado pelo agir dentro das regras do jogo, angariando com seu comportamento

legitimidade e autoridade para exercer com dignidade o mandato conquistado”.

Segundo o autor, a aprovação com ressalvas apresenta caráter moral, e aponta a

existência de irregularidades que, no entanto, não chegam a deslustrar o mandato. Já a

desaprovação das contas “[...] traz em si a mácula da ilicitude, do opróbrio, da reprovação da

consciência ético-jurídica. Significa que a campanha não foi conduzida dentro da legalidade

esperada e, sobretudo, exigida de qualquer ente estatal.” (GOMES, 2010, p. 281).

Entretanto, além dos efeitos morais e das possíveis repercussões negativas entre os

eleitores, indaga-se se existem outras consequências para os candidatos e o que os diferencia

dependendo da decisão proferida a respeito de suas contas - aprovação, com ou sem ressalvas,

ou se reprovação.

Conforme exposto no tópico anterior, a aprovação com ressalvas e a rejeição das

contas de campanha não impedem o candidato de receber a quitação eleitoral. No entanto, as

irregularidades verificadas nas contas podem fundamentar a propositura da Ação de Captação

ou Gastos Ilícitos de Recursos, prevista no art. 30-A da Lei das Eleições (BRASIL, 2013b),

em face dos candidatos eleitos. Nesse sentido já se manifestou o Tribunal Superior

Eleitoral em 2012:

AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. PRESTAÇÃO DE CONTAS. DESAPROVAÇÃO. QUITAÇÃO ELEITORAL. ART. 11, § 7º, DA LEI Nº 9.504/97. INCONSTITUCIONALIDADE. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA. INOCORRÊNCIA. DESPROVIMENTO. 1. Nos termos da jurisprudência do TSE, exige-se apenas a apresentação das contas de campanha para fins de obtenção da quitação eleitoral. 2. Essa orientação não viola os princípios da moralidade, probidade e da transparência. Com efeito, na hipótese de serem constatadas eventuais irregularidades quanto à arrecadação e gastos dos recursos de campanha, essas poderão fundamentar a representação de que cuida o art. 30-A da Lei nº

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9.504/97, cuja condenação atrai a inelegibilidade prevista no art. 1º, I, j, da LC nº 64/90. Precedentes. 3. O TSE já decidiu inexistir afronta ao princípio da segurança jurídica decorrente do que assentado no pedido de reconsideração na Instrução nº 1542-64. Isso porque as regras do jogo eleitoral não foram alteradas em prejuízo dos candidatos, tendo prevalecido, acerca do tema, o mesmo entendimento aplicado ao pleito de 2010. Precedente. 4. Agravo regimental a que se nega provimento. (BRASIL, 2012, grifos nossos).

Segundo o referido art. 30-A, são legitimados para propor a Ação de Captação ou

Gastos Ilícitos de Recursos os partidos políticos e as coligações eleitorais (BRASIL, 2013b).

No entanto, como bem lembra Marcos Ramayana, deve ser acrescentado o cabimento da ação

pelo Ministério Público, cuja legitimação possui origem constitucional, quando lhe é

conferida atribuição para a “defesa do regime democrático” (RAMAYANA, 2011, p. 517).

Esse entendimento, inclusive, já foi consolidado na jurisprudência do Tribunal Superior

Eleitoral (BRASIL, 2013f).

A propositura da ação em questão deve observar o princípio da proporcionalidade, já

desenvolvido nesse trabalho, de forma que a captação irregular de insignificante quantidade

de dinheiro não deve ser considerada para se ter a procedência do pedido (RAMAYANA,

2011, p. 515). Caso contrário, aceita a ação e comprovados captação ou gastos ilícitos de

recursos, para fins eleitorais, será negado diploma ao candidato, ou cassado, se já houver sido

outorgado, nos termos do §2º, do art. 30-A (BRASIL, 2013b).

As irregularidades apontadas nas contas de campanha aprovadas com ressalvas ou

reprovadas também podem fundamentar a Ação de Investigação Judicial Eleitoral, prevista

no art. 22, da Lei Complementar 64 de maio de 1990, também conhecida como a Lei das

Inelegibilidades (BRASIL, 2013c). Se no exame das contas for verificada a hipótese de abuso

de poder econômico, cumpre ao legitimado ativo propor a representação baseada no referido

dispositivo (RAMAYANA, 2011, p. 514).

A Ação de Investigação Judicial Eleitoral pode ser proposta em face de candidatos

não eleitos23 por qualquer partido político, coligação, candidato ou pelo Ministério Público

Eleitoral. Esses legitimados devem relatar fatos e indicar provas, indícios e circunstâncias e

pedir abertura de investigação judicial para apurar uso indevido, desvio ou abuso do poder

econômico ou do poder de autoridade, ou utilização indevida de veículos ou meios de

comunicação social, em benefício de candidato ou de partido político, nos termos do art. 22,

da Lei de Inelegibilidades (BRASIL, 2013c).

23 Segundo Ramayana, em relação aos candidatos eleitos, deve-se propor a Ação de Impugnação ao Mandato Eletivo, com base no art. 14, §§ 10 e 11 da Constituição Federal (RAMAYANA, 2011, p. 514).

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Em caso de procedência, segundo o art. 22, XIV, da lei complementar 64, de maio de

1990, será cominada ao candidato e aos demais responsáveis a sanção de inelegibilidade pelo

período de oito anos, além da remessa dos autos ao Ministério Público Eleitoral, para

instauração de processo disciplinar, se for o caso, e de ação penal (BRASIL, 2013c).

Portanto, como bem esclarece Rodrigo Zilio, a rejeição de contas, por si só, não tem

qualquer efeito sobre o candidato eleito, sendo necessário o ajuizamento da respectiva ação

eleitoral para o afastamento do mandato eletivo (ZILIO, 2010, p. 393). E quanto aos

candidatos que tiveram suas contas de campanha aprovadas com ressalvas, não se vislumbra

consequência dessa diversa.

De fato, como em ambas as situações não se têm prejudicada a quitação eleitoral, que

é pré-requisito para investidura no cargo eletivo conquistado, esse somente será afastado em

consequência da Ação de Captação ou Gastos Ilícitos de Recursos e da Ação de Investigação

Judicial Eleitoral. E, como já exposto anteriormente, as referidas ações podem ser propostas

com base nas irregularidades em geral, detectadas na apreciação das contas de campanha,

independente de serem aprovadas com ressalvas ou desaprovadas.

Entretanto, adentrando-se na análise da aprovação sem ressalvas, constata-se que a

propositura dessas ações eleitorais não se fundamenta exclusivamente nas irregularidades das

contas de campanhas detectadas pela Justiça.

Como bem expõe Edson Rezende de Castro, é certo que quase nunca essas

irregularidades saltam da própria prestação de contas, posto que candidatos e comitês a

elaboram com auxílio de profissionais, que vão naturalmente omitir fontes ilícitas e,

igualmente, gastos proibidos (CASTRO, 2008, p. 449). Dessa forma, pode haver candidatos

que, mesmo com as contas aparentemente acertadas, agiram ilegalmente na arrecadação e

aplicação de recursos na campanha eleitoral.

A detecção dessas ilicitudes, no entanto, segundo Castro, torna-se possível a partir de

diligências a serem implantadas nos autos a requerimento do Ministério Público, de ofício

pelo juiz ou ainda em diligências extra-autos (CASTRO, 2008, p. 449). O autor desenvolve a

hipótese de rejeição das contas aparentemente regulares, caso sejam comprovadas as

ilegalidades por meio das diligências durante a prestação. Entretanto, constata-se também que

eventuais irregularidades não perceptíveis nas contas, depois de apuradas, podem ensejar a

propositura de ações eleitorais em face do candidato, ainda que suas contas tenham já tenham

sido aprovadas.

Nesse sentido, em 2012, o Tribunal Superior Eleitoral reiterou o provimento a uma

Ação de Investigação Judicial Eleitoral, proposta pelo Ministério Público em face de

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candidato que teve suas contas de campanha aprovadas. No caso em tela, verifica-se abuso de

poder econômico na contratação de cabos eleitorais: Ação de investigação judicial eleitoral. Abuso do poder econômico. Contratação de cabos eleitorais. 1. Tendo em vista o conjunto de fatores assinalados pela Corte de origem - tais como número de cabos eleitorais contratados, respectivo percentual em face do eleitorado da localidade, diferença de votos entre o primeiro e o segundo colocados e gasto despendido pelos investigados em campanha - e o fato de se tratar de pequeno município e, ainda, de campanha eleitoral alusiva à renovação de pleito, está correta a conclusão das instâncias ordinárias quanto caracterização de abuso do poder econômico. 2. A eventual licitude da arrecadação e gastos efetuados em campanha ou mesmo a aprovação das contas não afastam, por si, o abuso do poder econômico, porquanto o que se veda é o uso excessivo desses recursos, de modo a influenciar o eleitorado e afetar a normalidade e legitimidade do pleito. Recurso especial não provido. (BRASIL, 2013e, grifos nossos)

Situação análoga é observada quanto a Ação de Captação ou Gastos Ilícitos de

Recursos (BRASIL, 2013b). A Justiça Eleitoral, também em 2012, já se manifestou no

sentido de que essa pode ser proposta, independente da aprovação das contas de campanha

eleitoral. Conforme esclareceu o Tribunal Regional de Sergipe (SERGIPE, 2013), o

julgamento da prestação de contas da campanha é independente da ação por captação ou gasto

ilícito de campanha, de modo que aprovação ou desaprovação das contas não impede o

candidato de ser punido, caso seja detectada infração ao artigo 30-A da lei 9.504 de setembro

de 199724 (BRASIL, 2013b).

Assim, o fato de o candidato ter suas contas aprovadas pela Justiça Eleitoral não o

isenta de eventualmente responder tanto por captação e aplicação ilícita recursos, como por

abuso de poder econômico. 7 CRÍTICAS À APLICAÇÃO DAS DECISÕES QUANTO A PRESTAÇÃO DE

CONTAS

A partir das questões até agora desenvolvidas, percebe-se que inexistem diferenças

práticas imediatas que permitam responsabilizar os candidatos conforme as irregularidades

presentes nas contas de campanha. Uma vez que essas sejam apresentadas à Justiça, os

candidatos receberão a quitação eleitoral e poderão tomar posse do cargo eletivo conquistado,

independentemente de suas contas terem sido aprovadas com ressalvas ou desaprovadas.

Nesse ponto, inclusive, se igualam aos candidatos que tiveram suas contas integralmente

aprovadas.

24 Para tanto, cf. SERGIPE, 2013.

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A responsabilização pela arrecadação e aplicação irregular de recursos ocorrerá

apenas em eventual ação eleitoral ajuizada em face do candidato, com base nas

irregularidades constatadas na prestação de contas. Nesse ponto existiria um fator distintivo,

tendo-se em vista que apenas as contas aprovadas com ressalvas e rejeitadas apresentam

vícios aptos a fundamentar a representação contra os candidatos, o que isentaria aqueles que

tiveram suas contas aprovadas integralmente. No entanto, como bem se mostrou, a prestação

de contas é independente da ação de captação ou gastos ilícitos de recursos e da ação de

investigação judicial eleitoral, de forma que mesmo os candidatos cujas contas foram

aprovadas poderão responder por irregularidades percebidas por outros meios.

Louvável essa última previsão, uma vez que, apenas porque as contas foram

aprovadas, não pode haver presunção absoluta de legalidade da movimentação financeira

durante a campanha eleitoral. Como esclarecido, as piores irregularidades não estão

estampadas nos documentos encaminhados à Justiça. No entanto, esse fator evidencia a

inexistência das diferenças práticas imediatas aqui perquiridas: ao final, todos os candidatos

que prestarem suas contas eleitorais – não importando elas serem aprovadas, com ou sem

ressalvas, ou desaprovadas - receberão a quitação eleitoral, pré-requisito para a diplomação,

mas poderão, eventualmente, sofrer representação na Justiça Eleitoral.

Outro ponto importante que suscita questionamentos diz respeito às ressalvas. A não

ser pelo fato de fundamentarem possíveis ações eleitorais contra os candidatos, nenhuma

outra consequência jurídica é observada. A princípio, o instituto tem se mostrado como uma

sanção essencialmente moral, o que não é a regra no direito.

Nesse momento, fundamental relembrar os ensinamentos do jusfilósofo Norberto

Bobbio, que distinguiu as sanções morais das sanções jurídicas. Segundo o autor, as sanções

morais são puramente interiores e produzem no sujeito que descumpriu determinada norma

um sentimento de culpa, um estado de desconforto, de perturbação, talvez de angústia, que na

linguagem da ética é chamado de “remorso” ou arrependimento” (BOBBIO, 2007, p. 135).

Bobbio esclarece que as sanções morais são pouco eficazes para garantir o

cumprimento de uma norma, na medida em que mostram sua funcionalidade em um número

limitado de indivíduos, os que são capazes de experimentar satisfações e insatisfações

íntimas. No entanto, como bem observa o autor, são exatamente esses indivíduos que menos

desrespeitam as normas, de forma que a sanção moral não alcançará aqueles que realmente

interessam. Afinal, em um indivíduo que não tenha nenhuma inclinação ao respeito das

normas morais, a sanção interior não produz nenhum efeito (BOBBIO, 2007, p. 136).

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Quanto às sanções jurídicas, Bobbio esclarece que essas têm como uma das

finalidades resolver a questão da ineficácia da sanção moral. A sanção jurídica é uma resposta

externa e institucionalizada, tendo-se em vista que o grupo social regula os comportamentos

dos consociados e a reação aos comportamentos contrários. A sanção jurídica é regulada em

geral com as mesmas formas e através das mesmas fontes de produção das regras primárias

(BOBBIO, 2007, p. 140).

Bobbio esclarece que não há nenhum legislador que, para obter o respeito às normas

que emana, confie exclusivamente na operatividade da sanção interior (BOBBIO, 2007, p.

137). No entanto, no ordenamento jurídico brasileiro vislumbra-se uma exceção a essa

previsão do jusfilósofo. Afinal, a legislação eleitoral tem confiado que a reprovação com

ressalvas das contas dos candidatos, uma sanção essencialmente interna, é capaz de garantir o

cumprimento das normas legais que regem a arrecadação e os gastos de recursos nas

campanhas eleitorais. Com fulcro nos ensinamentos de Bobbio, a possibilidade de uma sanção

moral não fará que todos os candidatos respeitem os dispositivos legais que regem o

financiamento de campanhas nos Brasil. Haverá aqueles que pouco (ou nada) irão se afligir

com as ressalvas, não havendo nesse aspecto, portanto, consequência para as irregularidades

apontadas em suas contas eleitorais.

As repercussões da aprovação com ressalvas das contas entre os eleitores também é

outra matéria que enseja ponderações. Questiona-se se isso realmente ocorre de maneira

significativa, uma vez que, encerradas as eleições, os eleitores se voltam para o desempenho

dos candidatos eleitos, olvidando-se do período da campanha eleitoral. Quanto a isso, lembre-

se a aprovação recorde em 2012 do governo da presidente Dilma Rousseff25, cujas contas de

campanha foram aprovadas com ressalvas pelo Tribunal Supremo Eleitoral26.

Além disso, não se pode presumir que todos os eleitores acompanharam o

julgamento da prestação de contas dos seus candidatos, de forma a emitirem juízos de valor a

respeito da matéria. Inegável que, apesar de público, o processo de prestação de contas ainda

não desperta considerável interesse dos eleitores, diferentemente do que ocorre em outras

fases do processo eleitoral, como as propagandas eleitorais ou a votação. Na prática, a etapa

25 De acordo com a pesquisa CNI/IBOPE sobre a avaliação do governo, realizada em dezembro de 2012, 62% da população brasileira considera o governo da presidente Dilma bom ou ótimo (CONFEDERAÇÃO NACIONAL DA INDÚSTRIA, 2012, p. 7). 26 As contas da campanha da candidata eleita para o cargo de Presidente da República, Dilma Vana Rousseff, foram aprovadas com ressalvas pelo TSE em virtude de irregularidades nas receitas no valor de R$ 676.675,56, o que representa 0,48% da receita total declarada de R$ 135.530.844,32 (cento e trinta e cinco milhões, quinhentos e trinta mil, oitocentos e quarenta e quatro reais e trinta e dois centavos), e nas despesas no valor de R$ 36.626,20, equivalentes a 0,02% da despesa declarada de R$ 153.093.181,16 (cento e cinquenta e três milhões, noventa e três mil, cento e oitenta e um reais e dezesseis centavos) (BRASIL, 2010).

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da prestação de contas tem sido desenvolvida entre os candidatos e seus contadores e

advogados e a Justiça Eleitoral, não se vislumbrando qualquer mecanismo realmente eficiente

que permita a interação com os eleitores.

Por fim, diante de todas essas ponderações, compreende-se que a prestação de contas

de campanha tem servido como um alerta e um mero parâmetro para possível representação

em face dos candidatos, sem qualquer consequência prática imediata. Caso as contas

apresentadas estejam regulares, o candidato receberá a quitação e tomará posse do cargo

conquistado, cabendo as mesmas implicações quando as contas apontarem algum vício. No

entanto, nessa segunda situação, as ressalvas e a rejeição das contas aumentarão a

possibilidade de uma representação contra o candidato, que pode ser promovida por partido,

por coligações e pelo Ministério Publico. Quanto ao último, no entanto, tendo-se em vista a

sua função de custus legis, questiona-se a coerência dessa situação. Enquanto fiscal da lei, o

Ministério Público deve estar atento à arrecadação e aplicação de recursos desde o início da

campanha, independente de ressalvas e rejeição das contas examinadas posteriormente. 8 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho se propôs a analisar as decisões quanto às prestações de contas

eleitorais ― aprovação, aprovação com ressalvas, desaprovação e não prestação —, tendo-se

em vista o contexto amplo da reforma política no Brasil, especificamente o financiamento e a

prestação de contas das campanhas eleitorais. Para tanto, inicialmente enquadrou-se a

temática dentro do campo da democracia e da reforma política, prosseguindo-se na análise da

legislação que regula o financiamento e a prestações de contas das campanhas. Ao final,

foram analisadas jurisprudências, que evidenciaram aspectos práticos do tema, e

desenvolvidas críticas quanto à natureza e à aplicação das decisões.

Quanto às deficiências que permeiam o assunto, ressaltou-se indiferença entre a

aprovação, aprovação com ressalvas e rejeição de contas quanto à quitação eleitoral. É

suficiente a apresentação das contas de campanha, mesmo se essas forem posteriormente

rejeitadas, para que o candidato obtenha o seu certificado de quitação com a Justiça Eleitoral.

Em nenhuma das três hipóteses referidas, consequentemente, tem-se prejudicada a

diplomação.

Além disso, verificou-se que também independentemente da decisão tomada pela

Justiça Eleitoral quanto às contas do candidato, ele pode vir a sofrer as consequências de uma

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ação eleitoral, seja ela a ação de captação ou gastos ilícitos de recursos ou ação de

investigação judicial eleitoral.

Também questionou-se a utilização da aprovação com ressalvas como uma sanção

moral estabelecida pelo direito. Conforme demonstrado, com base nos ensinamentos de

Norberto Bobbio, há relevante diferença entre a sanção jurídica e a sanção moral, não

cabendo ao direito incutir sanções morais dentro do ordenamento jurídico. Ainda questionou-

se a repercussão dessa sanção, visto que grande parte dos eleitores não acompanha a prestação

de contas de campanha, preferindo avaliar o desempenho dos candidatos eleitos ― utilizou-se

como exemplo a aprovação recorde da presidenta da República, que teve suas contas de

campanha aprovadas com ressalvas.

Por fim, indagou-se a relevância da aprovação com ressalvas e rejeição de contas

como sinal de alerta para o Ministério Público para a proposição de ações eleitorais contra os

candidatos. Para ideal cumprimento de sua função, o Ministério Público deve estar sempre

atento às movimentações financeiras nas campanhas independentemente dos julgamentos

proferidos posteriormente na Justiça Eleitoral.

O trabalho, portanto, focou-se em revelar as indiferenças existentes entre as decisões

judiciais sobre as contas das campanhas. Além disso, teve como objetivo demonstrar a

importância da prestação de contas como um dos objetos (correntemente esquecidos) da

reforma política. Não se pretendeu aqui propor a solução definitiva para os problemas

apresentados, mas evidenciar que eles existem, de forma que sejam considerados no amplo

quadro de reforma do sistema político-representativo brasileiro. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AVRITZER, Leonardo; ANASTASIA, Fátima. Introdução. In: AVRITZER, Leonardo; ANASTASIA, Fátima (org.). Reforma Política no Brasil. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. p. 11-13.

BOBBIO, Norberto. Teoria Geral do Direito. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

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BRASIL. Lei das Inelegibilidades. Lei Complementar nº 64, de 18 de maio de 1990. Estabelece, de acordo com o art. 14, § 9º da Constituição Federal, casos de inelegibilidade, prazos de cessação, e determina outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 21 mai. 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp64.htm>. Acesso em: 16 mar. 2013c.

BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Agravo Regimental em Recurso Especial Eleitoral. Prestação de Contas. Desaprovação. Agravo Regimental em Recurso Especial Eleitoral nº 1434, Tribunal Superior Eleitoral Plenário, Brasília, DF, 06 de setembro de 2012, Relatora Min. Luciana Christina Guimarães Lóssio. Publicado em sessão em 06 set. 2012. Disponível em: <http://www.lexml.gov.br/urn/urn:lex:br:tribunal.superior.eleitoral;plenario:acordao;agr.respe :2012-09-06;respe-1434>. Acesso em: 14 mar. 2013d.

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