o direito constrangido pelo risco: uma perspectiva do direito ambiental a partir da nanotecnologia

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  • 8/9/2019 O Direito constrangido pelo risco: uma perspectiva do Direito Ambiental a partir da nanotecnologia

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINACENTRO DE CINCIAS JURDICAS

    CURSO DE PS-GRADUAO EM DIREITO

    Ca p t u r a Cr p t ica :direito, poltica, atualidade______________________________

    Revista Discente do Curso de Ps-Graduao em Direitoda Universidade Federal de Santa Catarina

    Captura Crptica:direito, poltica, atualidade.Revista Discente do CPGD/UFSCUniversidade Federal de Santa Catarina (UFSC)Centro de Cincias Jurdicas (CCJ)Curso de Ps-Graduao em Direito (CPGD)Campus Universitrio TrindadeCEP: 88040-900. Caixa Postal n. 476.Florianpolis, Santa Catarina Brasil.

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    Exped ien te

    Conselho CientficoProf. Dr. Jess Antonio de la Torre Rangel (Universidad de Aguascalientes - Mxico)

    Prof. Dr. Edgar Ardila Amaya (Universidad Nacional de Colombia)Prof. Dr. Antonio Carlos Wolkmer (UFSC)

    Prof Dr Jeanine Nicolazzi Phillippi (UFSC)Prof. Dr. Jos Antnio Peres Gediel (UFPR)

    Prof. Dr. Jos Roberto Vieira (UFPR)Prof Dr Deisy de Freitas Lima Ventura (IRI-USP)

    Prof. Dr. Jos Carlos Moreira da Silva Filho (UNISINOS)

    Conselho Editorial

    Ademar Pozzatti Jnior (CPGD-UFSC)Camila Bibiana Freitas Baraldi (CPGD-UFSC)

    Carla Andrade Maricato (CPGD-UFSC)Danilo dos Santos Almeida (CPGD-UFSC)

    Felipe Heringer Roxo da Motta (CPGD-UFSC)Francisco Pizzette Nunes (CPGD-UFSC)Liliam Litsuko Huzioka (CPGD/UFSC)

    Lucas da Silva Tasquetto (CPGD-UFSC)Luziana Roesener (CPGD-UFSC)

    Marcia Cristina Puydinger De Fzio (CPGD-UFSC)Matheus Almeida Caetano (CPGD-UFSC)

    Moiss Alves Soares (CPGD-UFSC)Renata Rodrigues Ramos (CPGD-UFSC)

    Ricardo Prestes Pazello (CPGD-UFSC)Vincius Fialho Reis (CPGD-UFSC)

    Vivian Caroline Koerbel Dombrowski (CPGD-UFSC)

    Captura Crptica: direito poltica, atualidade. Revista Discente do Curso de Ps-Graduaoem Direito. n.2., v.1. (jul/dez. 2009) Florianpolis, Universidade Federal de Santa Catarina,2009

    Periodicidade Semestral

    ISSN 1984-6096

    1. Cincias Humanas Peridicos. 2. Direito Peridicos. Universidade Federal de Santa

    Catarina. Centro de Cincias Jurdicas. Curso de Ps-Graduao em Direito.

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    O Direito constrangido pelo risco: uma perspectiva doDireito Ambiental a partir da nanotecnologia

    Thas Emlia de Sousa Viegas

    Roberto de Oliveira Almeida

    Resumo: O desastre de Chernobyl, em 1986,consolidou a percepo pblica de que omundo ameaa a si mesmo. Foi a partir desse

    evento que Ulrich Beck construiu sua anliseda sociedade que qualificou como global e derisco. Sob tal marco terico, prope-se, nesseestudo, refletir acerca dos desafios que essasociedade global dos riscos impe aosinstrumentos jurdicos de proteo do meioambiente e ao prprio Direito Ambiental. que os problemas ambientais contemporneostm, na segunda modernidade, uma novaconfigurao, advinda do processo de

    modernizao. Os riscos que outrora afetavamsomente quem os produzia, agora tm o condode afetar todo o globo. Dentre os riscos degraves conseqncias que acompanham odesenvolvimento tcnico-cientfico, podem-severificar os oriundos da energia nuclear, dainsero de organismos geneticamentemodificados e o da utilizao nanomateriaispela indstria. A nanotecnologia que consistena habilidade de medir, ver, engendrar,produzir e aplicar materiais em escala inferior a

    100nm (cem nanmetros) oferece riscos namedida em que tais materiais j no obedecems leis tradicionais da fsica, gerando um altograu de imprevisibilidade acerca do seucomportamento na natureza e no corpohumano. Atualmente, a nanotecnologia no

    Abstract: After the incident at Chernobyl,1986, society started to face the reality ofliving on a world that endangers itself every

    day. When it comes to the second modernity or global risk society it became indispensableto Law that new environmental protectioninstruments were created. Among the reasonsthat pushed to these changes, the mostsignificant ones are the changes on the contentof the new environmental rights and thecontemporary environmental questions that arequalified by the element of risk, especiallywhen these risks are created through the

    modernization. Risk, that on the past wouldaffect only those who created it, nowendangers the whole globe. Among the majorconsequences risks that emerge of the scientificdevelopment, the most significant ones arerelated to the nuclear energy, geneticallymodified organisms and nanotechnology.Nanotechnology that consists on the ability tomeasure, see, engineer, product and applymaterials on a scale inferior to 100nm (ahundred nanometers) offers risks as long as

    the classical laws of physics do not apply onthese materials, increasing the uncertaintiesabout its behavior on environment and humanbody. Nowadays, there isnt any law orresolution that regulates nanotechnology whenit comes to its risks. On the Environmental

    Graduada em Direito pela Universidade Federal do Maranho (UFMA). Mestre em Direito pelaUniversidade Federal de Santa Catarina (USFC). Professora dos Cursos de Graduao em Direitoe de Ps-Graduao lato sensu em Direito Ambiental da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco

    (UNDB). Assessora no Tribunal de Justia do Estado do Maranho (TJMA). Acadmico do dcimo perodo do Curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco(UNDB).

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    regulamentada por nenhuma legislao ouresoluo especfica, no sendo considerada,para fins de responsabilizao segundo os

    preceitos do Direito Ambiental, uma ameaa aomeio ambiente ou sade humana. Alm disso,o debate acadmico sobre os riscos dananotecnologia , ainda, incipiente, mormentepara o Direito. O presente trabalho tem comoobjeto a anlise crtica dos instrumentos desalvaguarda do direito ao meio ambiente, nocontexto da sociedade global de risco,especificamente no que tange ao descompassodos instrumentos jurdicos de proteoambiental no trato dos riscos de graves

    conseqncias oriundos das nanotecnologias.

    Law context, its not considered a threat to theenvironment or human health. Also, theres nosignificant academic debate when it comes to

    nanotechnology risks. The present workintends to offer a critical analysis of theinstruments of environmental protection on theglobal risk society, especially regarding itsomission about nanotechnologys risks.

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    1)Consideraes iniciaisO acidente nuclear ocorrido em 1986, na cidade de Chernobyl,

    consolidou a percepo pblica de que o mundo ameaa a si mesmo. A partir dosurgimento de novas tecnologias, advindas da radicalizao dos processos demodernizao, o mundo entra em uma poca na qual a cincia j no maiscapaz de oferecer certezas. Neste cenrio, o desenvolvimento tecnolgicodesempenha um papel determinante no processo de produo de tais riscos.Trata-se de uma nova modernidade ps-industrial, perodo em que a cincia jno a detentora de certezas, tempo em que os riscos advindos do avano

    tecnolgico e da progressiva modernizao agora ameaam a todos, noimportando o local ou classe social. Tal perodo denominado por Ulrich Beckde segunda modernidade.

    No campo das cincias sociais, considera-se a necessidade de umasociologia cosmopolita, que abandone o Estado nacional enquanto espao deimaginao sociolgica, e que tenha como quadro de referncia algo totalmentenovo: o fenmeno da transnacionalizao. Esta abertura de fronteiras e a maior

    conexo entre os Estados nacionais trazem consigo uma nova revoluo docapital, inclusive com redefinio no mundo do trabalho. Este processo dedestruio criativa iniciada pela modernizao, que confronta as premissasfundamentais dos sistemas sociais e polticos da sociedade industrial, tem comoconseqncia a insuficincia das suas categorias para a anlise dos contornosdesta nova sociedade.

    As novidades tecnolgicas produzem riscos e instabilidades que soinseridos, de forma no refletida, na sociedade. Tais riscos possuem novascaractersticas que no se encaixam nas antigas categorias de risco da sociedadeindustrial. Suas conseqncias j no podem ser limitadas temporal ouespacialmente e a sua invisibilidade e imprevisibilidade escapam aosinstrumentos de controle, pondo em xeque todo o programa institucionalizadode clculo dos seus efeitos colaterais. Com a ampla democratizao dos riscos ea insuficincia das categorias da sociedade industrial para a anlise dos novoscontornos desta sociedade, Ulrich Beck oferece uma abordagem sociolgica que

    desloca o risco para o centro da teoria social. Estes passam a ser reconhecidosenquanto fatores determinantes para a compreenso da sociedadecontempornea.

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    Dentre os riscos de graves conseqncias advindos do processo demodernizao, possvel verificar os oriundos da produo e consumo de

    organismos geneticamente modificados, da utilizao da energia nuclear, do usode agrotxicos e da nanotecnologia. A nanotecnologia a capacidade de criar emanusear materiais de escala nanomtrica. Um nanmetro (1 nm) equivale bilionsima parte de um metro ou a milionsima parte de um milmetro. Umnanmetro um milmetro dividido por um milho.

    Os riscos envolvidos a partir da miniaturizao esto ligados,principalmente, s novas propriedades que os materiais em nanoescala podemadquirir. Qualquer material reduzido a nanopartculas pode, repentinamente,comportar-se de maneira completamente oposta de antes, o que faz com queas atividades que envolvam determinadas partculas adentrem o campo daimprevisibilidade. Materiais antes insolveis passam a ser solveis. Substnciasisolantes podem passar a conduzir energia. No s o comportamento daspartculas, como sua mobilidade completamente afetada: ao contrrio dasmicropartculas de maior tamanho, as nanopartculas tm acesso quase irrestritoao corpo humano.

    A nanotecnologia no regulamentada por nenhuma legislao ouresoluo especfica, no sendo considerada, para fins de responsabilizaosegundo os preceitos do Direito Ambiental, uma ameaa ao meio ambiente ou sade humana. Alm disso, o debate acadmico sobre os riscos dananotecnologia , ainda, incipiente, mormente para o Direito. Assim, pergunta-se: quais as conseqncias, para o Direito, da permanncia dos riscos oriundosda nanotecnologia margem do debate jurdico?

    O desafio que se impe a este trabalho, portanto, o de proceder anlisecrtica dos instrumentos de salvaguarda do meio ambiente, no contexto dasociedade global de risco, especificamente no que tange ao descompasso destesno trato dos riscos de graves conseqncias oriundos das nanotecnologias.

    Para tanto, o problema ser analisado a partir da teoria da sociedade derisco de Ulrich Beck, objeto do item inaugural deste trabalho. Em seguida,aborda-se a trajetria dos estudos do risco e sua centralidade na teoria dosocilogo alemo, para, em seguida, situar a nanotecnologia entre os riscos de

    graves conseqncias advindos do processo de modernizao.

    Aps, cuida-se dos riscos concernentes utilizao de nanomateriais pelaindstria. Primeiramente, a nanotecnologia ser localizada historicamente,

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    apresentando-se os seus conceitos fundamentais. Em seguida, serodemonstradas as suas principais aplicaes, inclusive no cotidiano. Por fim,

    sero apresentados os seus riscos quanto sade humana e ao meio ambiente,bem como as incertezas cientficas acerca do seu manejo seguro.

    Na seqncia, ser feita a anlise dos instrumentos de salvaguarda domeio ambiente, considerando que se vive numa sociedade global de risco.Aponta-se a maneira como o Direito Ambiental se relaciona com os problemasambientais qualificados pelo risco e, depois, discute-se o seu anonimato para odiscurso jurdico e sua conseqente invisibilidade para os instrumentos deproteo jurdica do meio ambiente.

    Por fim, questiona-se o papel do Direito Ambiental no trato dos conflitosenvolvendo os riscos advindos da nanotecnologia e em que medida o seuanonimato para o discurso jurdico ameaa os pilares epistemolgicos sobre osquais fundada a teoria jurdica contempornea.

    2)A sociedade global do risco2.1)Uma mudana de paradigmas

    A sociologia tem como objeto o estudo da sociedade. A construo edelimitao do objeto desta cincia, isto , o conceito de sociedade, se tornadifcil quando, ao contrrio da matria inanimada dos qumicos, esta secomporta de maneira difusa, nebulosa, presente em toda parte. Difcil, tambm,

    quando a percepo do conceito de sociedade foge apreenso imediata e vaide encontro s auto-interpretaes que fazem os agentes sociais. Com efeito, asociedade composta de agentes com capacidade de interpretarem a si mesmos,com objetivo de explicar e defender sua posio, tais quais sindicatos, entidadesde classes e partidos polticos.1

    O objeto da sociologia no uma sociedade, mas vrias (alem, italiana,inglesa). Como conseqncia, esta se organiza de acordo com os diversos

    1 BECK, Ulrich. Liberdade ou capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes Willms. Trad.Luiz Antnio Oliveira de Araujo. So Paulo: Editora UNESP, 2003. p. 8.

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    Estados nacionais: os Estados criadores, financiadores e reguladores dasociedade. Os socilogos acabam por incorrer num quadro de nacionalismo

    metodolgico: o nacionalismo leva a supor que h um nmero de naes, quevivem sua prpria cultura, cultura esta garantida pelo Estado nacional; a visosociolgica, por seu turno, orienta-se em direo ao continer desse mesmoEstado. Pensa-se, ento, no espao regulado pelo Estado como o espao no qualse encontram todos os elementos fundamentais para o diagnstico sociolgicodaquela sociedade. Em um momento posterior, os socilogos desenvolvemconceitos a partir da experincia daquela sociedade previamente analisada para,posteriormente, aplic-los s demais.2

    Este nacionalismo metodolgico funcionou sobremaneira para osclssicos. Karl Marx ao analisar a sociedade britnica do sculo XIX,desenvolveu sua crtica ao capitalismo como um todo.3 mile Durkheim, ao sequestionar acerca da coeso das sociedades modernas, e com o olhar voltadopara a Frana, desenvolveu a idia de solidariedade orgnica baseada na divisodo trabalho.4 Weber, em suas reflexes acerca da burocracia e racionalidadeobjetiva, desenvolveu conceitos universais com fundamento na realidadeeuropia do sculo XIX. No se deve olvidar que tal metodologia era consoantecom o seu espao experimental. Estes socilogos deram dinmica dasociedade industrial nascente uma forma conceitual que se difundiu pelo mundointeiro, mostrando-se fecunda em pesquisas empricas e principalmente no quediz respeito s conseqncias polticas. Pode-se dizer, assim, que os clssicosimpulsionaram a sociologia, colonizando outros pases e regies do mundo comsuas perspectivas sociolgicas.5

    Ante a modificao do espao experimental dos socilogos europeus do

    sculo XIX, principalmente por conta do fenmeno da globalizao, esseimperialismo conceitual ocidental se torna metodologicamente contestvel.Deve o universalismo clssico, enquanto forma de transposio de umasociedade para a sociedade, ser substitudo pela idia de globalidade, que

    2 Ibid., p. 9.3 Cf. MARX, Karl. O Capital. Trad. Gabriel Deville. 3. ed. Bauru: EDIPRO, 2008.

    4 Cf. DURKHEIM, mile. Da diviso do trabalho social. Trad. Eduardo Brando. 3. ed. SoPaulo: Martins Fontes, 2008.5 Ibid., p. 11.

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    consiste em extrair conceitos universais a partir de uma sociedade e confront-los com demais interpretaes.

    A sociologia, enraizada no mbito do Estado nacional e que a partir destedesenvolveu sua compreenso de si, continua a trabalhar com categoriasoriundas do horizonte experimental do sculo XIX, o que nos cega para aexperincia da segunda modernidade. Cabe sociologia questionar-se: at queponto suas categorias fundamentais se baseiam em pressupostos historicamenteobsoletos?

    H, por exemplo, trs princpios da sociologia que atualmente so

    questionveis. Primeiro, o do vnculo territorial da sociologia com o Estadonacional, que tem como fundamento a idia de que o agir social necessita de umsuporte territorial e que a proximidade geogrfica gera proximidade social.Entretanto, tal princpio no mais se aplica quando, atualmente, o social nomais depende do territorial. cada vez mais comum o isolamento de pessoasgeograficamente prximas, assim como a aproximao de pessoas distantes.6Em segundo lugar, h a suposio de uma coletividade social pr-fixada, emque o indivduo , quase sempre, determinado pela situao na qual se encontra.

    Tal princpio deve ser repensado frente s novas formas de individualizaopresentes na modernidade. O terceiro o princpio da evoluo, que se refere aoocidente como o grau mais elevado de socializao, tomando-o como superiors demais.7

    Com essa perspectiva evolucionista tratada no terceiro princpio, ficamais latente a insuficincia das categorias tradicionais da sociologia em analisar

    6

    A proximidade virtual e a no-virtual trocaram de lugar: agora a variedade virtual que setornou a realidade, segundo a descrio clssica de mile Durkheim: algo que fixa, que instituifora de ns certas formas de agir e certos julgamentos que no dependem de cada vontadeparticular tomada isoladamente; algo que deve ser reconhecido pelo poder de coero externae pela resistncia oferecida a todo ato individual que tende a transgredi-la. A proximidade no-virtual termina desprovida dos rgidos padres de comedimento e dos rigorosos paradigmas deflexibilidade que a proximidade virtual estabeleceu. Se no puder imitar aquilo que estatransformou em norma, a proximidade topogrfica vai se tornar um ato de transgresso quecertamente enfrentar resistncia. E assim se permite que a proximidade virtual desempenhe opapel de genuna e inalterada e a realidade real pela qual todos os outros pretendentes ao status derealidade devem se avaliar e ser julgados. BAUMAN, Zygmunt. Amor Lquido: sobre afragilidade das relaes humanas. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge ZaharEd., 2004. p. 82-83.7 BECK, 2003, op. cit., p. 18.

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    e se organizar em torno do progresso altamente imprevisvel e incontrolvelcomo o da segunda modernidade. Nos anos 80, os tericos da ps-modernidade

    se questionavam acerca do fim das grandes narraes da modernidade, inclusivecolocando em xeque os potenciais de idias, otimismo e o projeto que a mesmadesenvolveu. Segundo Anthony Giddens, o fim do sculo pode ser identificadocom sentimentos de desorientao e at mal-estar, a ponto de se declarar o fimda histria, ou o fim da modernidade. 8 O que se verifica, contudo, umprocesso de transio. No se pode imaginar que a primeira modernidadeacabou e que agora se vive uma experincia completamente diferente. Asmodernidades e a se incluem as experincias de pases de periferia e centro,

    assim como de oriente e ocidente convivem juntas, e tal comunho demodernidades deve ser apreendida, estudada, investigada confrontando-se osdiferentes projetos de modernizao.9

    Em que pese esta transio no-linear, possvel verificar quais so asprincipais mudanas relativas a esta nova experincia de modernidade.

    A primeira modernidade tem como caractersticas fundamentais associedades do Estado nacional e as sociedades grupais coletivas (onde, apesar

    dos processos de individualizao e diferenciao, ainda h possibilidade de asociologia desenvolver e utilizar modelos de sociologia grupal). Na primeiramodernidade marcante a distino entre sociedade e natureza, esta concebidacomo fonte inesgotvel de recursos para o processo de industrializao. Acincia, enquanto produtora de certezas, trabalha com a possibilidade do totaldomnio dos recursos naturais pela humanidade. Pode-se dizer, tambm, que asociedade da primeira modernidade uma sociedade do pleno emprego, onde aparticipao social se define, essencialmente, pela participao no trabalho.

    Na segunda modernidade, h um esvaziamento do continer do Estadonacional. Ante os processos internos e externos de globalizao, a idia de umEstado nacional se torna questionvel. A noo de sociedade do trabalho esvaziada diante da nova dinmica capitalista, a do vnculo entre tecnologia deinformao e mercados mundiais. H, tambm, a intensificao dos processos

    8 GIDDENS, Anthony. A vida em uma sociedade ps-tradicional.In: BECK, Ulrich; GIDDENS,Anthony; LASH, Scott. Modernizao reflexiva: poltica, tradio e esttica na ordem socialmoderna. Trad. Magda Lopes. So Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1997, p. 73.9 BECK, 2003, op. cit., p. 19-20.

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    de individualizao, numa espcie de individualismo institucionalizado. Aoposio entre sociedade e natureza passa a ser questionvel diante da crise

    ecolgica. Inaugura-se um perodo em que a cincia no mais oferece certezas.Ao contrrio: o constante processo de modernizao d origem aos riscos degraves conseqncias.

    2.2)Globalidade, globalizao e globalismo: do Estado ao mercadoQuando se abandona o Estado nacional como princpio organizador da

    pesquisa, verifica-se um terreno de difcil apreenso pela sociologia. Ante estecenrio, h a necessidade de elaborar um novo espao de imaginaosociolgica partindo da idia de globalidade, isto , da vivncia de umaexperincia cotidiana global de um mundo globalizado. Concretamente, parte-seda conscincia de viver em um mundo que, ao longo do tempo, ameaa a simesmo. Para Ulrich Beck, grandes exemplos so o acidente na usina nuclear deChernobyl e a crise financeira dos mercados mundiais nos Estados asiticos.10

    A globalidade, assim como a experincia da segunda modernidade,

    experimentada de forma diferente em cada parte do mundo. Nos Estados Unidoso nacional acaba por coincidir com o global, no que se pode interpretar comouma demonstrao do imperialismo. Na Europa, por outro lado, a globalidade vista como uma ameaa sua soberania. J nos pases do em desenvolvimento,a globalidade traz consigo um novo apartheideconmico, transformando umsem-nmero de pessoas em uma legio de excludos.11

    H, para a sociologia, a necessidade de aceitar a globalidade e analis-la

    como uma experincia cultural desterritorializada. A sociologia passa a encararum novo desafio: no se pode mais analisar o mundo global e totalmente. Omundo, agora caracterizado como uma reunio de culturas e modernidadesdistintas e separadas, deve ser analisado sob a tica de uma sociologiacosmopolita. E como parte desta nova ordem conceitual, tambm j no se podemais imaginar a globalizao globalmente, j que esta experimentada de

    10 Ibid., p. 29.11 Ibid., p. 30.

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    forma distinta em cada local do globo, impondo uma redefinio no local que aexperimenta.12

    Existem duas formas de se pensar a globalizao. A primeira noo, quecorresponde globalizao aditiva, parte do pressuposto de que o Estadonacional ainda domina, sendo a esta apenas um ponto de vista adicional. O queexiste, para tal corrente, um Estado nacional interconectado com os demaisEstados nacionais. A outra, a noo substitutiva, parte do pressuposto de que oEstado nacional no existe mais. De que este foi substitudo, ante aglobalizao, por um novo Estado.13

    Ulrich Beck, em oposio s noes de globalizao aditiva ousubstitutiva da imagem do continer do Estado nacional, defende a tese de queesta deva ser entendida como uma globalizao interiorizada. No seudiagnstico da segunda modernidade, o continer do Estado nacional dilui a simesmo, adquirindo uma nova qualidade, desenvolvendo novas formas de vida,novos contextos de comunicao transnacional, novas instituies que surgemnos mais variados planos do social, da economia, do trabalho e nascomunidades polticas.14

    No contexto de uma sociedade cosmopolita, surge a necessidade de umnovo empirismo global-local da transnacionalidade que nasce no interior dosEstados. No se pode mais partir do pressuposto de que pases economicamentedesenvolvidos e em desenvolvimento constituem esferas isoladas ou que omundo ainda dividido em imprios separados e fechados uns aos outros. Asculturas esto cada vez mais mescladas, transformando o que antes eramsociedades homogneas em sociedades mundiais pluralistas. Para analisar esta

    sociedade mundial local essencial uma imaginao dialgica que coloque nocentro da ao a negociao de experincias contraditrias sejam na poltica,cincia ou economia. A segunda modernidade aflora num contexto de tenso: aabertura de fronteiras causa, tambm, um reflexo protecionista intelectual,poltico e tnico, o que Ulrich Beck denomina como movimentos nacionalistasbanais.15

    12 BECK, 2003, op. cit., p. 32.

    13 Ibid., p. 33.14 Idem.15 BECK, 2003, op. cit., p. 34.

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    Esta abertura de fronteiras e a conseqente conexo mais forte entre osEstados nacionais apresentam um quadro de referncia completamente novo,

    junto com uma nova etapa na histria do desdobramento global do poder. Estar-se-ia, diz Ulrich Beck, diante de uma nova revoluo do capital. Comparvel aoque foi a revoluo do capital na transio da sociedade estamental para asociedade industrial, a nova revoluo do capital que surge no movimento detransio da sociedade industrial para a sociedade global do risco caracterizada pela possibilidade de a economia agir desterritorializadamente.Enquanto a sociedade e o Estado continuam atrelados ao seu territrio, aeconomia ingressa em uma nova dimenso, podendo bater em retirada sempre

    que a situao no lhe for favorvel.16

    Com o advento das novas tecnologias,principalmente no que tange informatizao dos meios de produo, osfornecedores j no precisam se estabelecer em um s local, j que a produopassa a se dar em diversas partes do mundo.17 O fenmeno da deslocalizaodos processos produtivos decorrente da crescente segmentao do processoprodutivo e conseqente possibilidade de operar em rede, isto , a partir dainterligao entre diversas unidades produtivas. Assim, o processo produtivopassa a ser trasladado de uma sede a outra, em busca das melhores condies

    possveis.18

    Tal capacidade de subtrao visualizada nos casos em que as unidadesprodutivas se desmantelam e so relocalizadas rapidamente, de acordo com asua convenincia caracteriza o imperialismo da retirada. Isto porque, no atualcontexto econmico, o pior que pode ocorrer para um Estado a fuga de capital.A economia desterritorializada ganha fora, criando, onde antes havia o Estado,um vazio de poder. A economia adquire o poder de submeter os Estados

    16 Ibid., p. 43.17 O capital no conhece ptria; esta nova forma empresarial de organizao e concentrao docapital salta ademais por cima das fronteiras estatais. As empresas transnacionais operam atravsde numerosos pases ao mesmo tempo. Nos anos setenta seu nmero no superava poucascentenas. Em 1997 so mais de 40.000. (...) As companhias transnacionais representam umaconcentrao de capital, de poder e de capacidade de deciso imensos. So em si mesma umaimportantssima novidade organizativa. CAPELLA, Juan Ramn. Fruto proibido: umaaproximao histrico-terica ao estudo do Direito e do Estado. Trad. Gisela Nunes da Rosa eLdio Rosa de Andrade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 241.18 Ibid., p. 242.

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    obedincia das mximas neoliberais do mercado mundial. H, assim, a transiodo Estado para o mercado.19

    A globalizao, diz Ulrich Beck, precisa ser entendida de forma dialticae reflexiva. De um lado, h a globalizao enquanto transnacionalizao, isto ,uma conexo entre os variados espaos nacionais que leva ao surgimento de umnovo espao, no identificvel pelas antigas categorias. H, para ostransnacionais, uma crescente concentrao econmica, bem como umacrescente interdependncia entre naes isoladas. Tal fenmeno ante aimpossibilidade do capital em se instalar em todas as partes do mundo, assimcomo a falta de interesse em determinadas regies tambm gera seusexcludos.

    Por outro lado, a globalizao tambm deve ser entendida comolocalizao. Os agentes que operam em termos globais (empresas) soobrigados, em um determinado momento, a se situar em determinadas culturaslocais, se abrindo e se integrando s mesmas. Outro exemplo de redefinio dolocal imposto pela globalizao so as diversas culturas minoritrias emcrescimento constante, nos mais diversos locais do globo. Na cidade de So

    Paulo, por exemplo, a comunidade japonesa se concentra no bairro daLiberdade, enquanto a comunidade judaica tem uma presena bastante marcanteno bairro de Higienpolis. Em Nova Iorque, oLower East Side j representou amaior comunidade judaica do mundo e o bairro de Little Italy faz com que ositalianos se sintam na sua terra natal.

    Essa cultura da dispora representante da diversidade cultural quefundamenta, em grande parte, a segunda modernidade caminha lado a lado

    com o nivelamento das culturas imposto pelo globalismo. Este, podendo serentendido como a unio entre globalizao e neoliberalismo, comea a nivelaras mais variadas culturas: as grandes empresas, que satisfazem necessidadescomuns a diversos povos, investem numa estratgia de marketing que sirvatanto para uma cultura como para outra. importante ressaltar, contudo, que aglobalizao um fenmeno, enquanto o globalismo entendido como aideologia do rolo compressor.

    19 BECK, 2003, op. cit., p. 45.

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    2.3)Modernidade e riscoA globalizao representa a ambivalncia do processo de modernizao

    que se desenvolve na sociedade ps-industrial. Esta modernizao que dissolveos antigos modelos da sociedade industrial e que no pode ser apreendida pelasantigas categorias e mtodos da cincia social que se mostram insuficientesdiante da vastido e ambivalncia dos fatos a serem considerados tem comoprincipal caracterstica a reflexividade.

    2.3.1)Reflexividade na segunda modernidadeO confrontamento das premissas fundamentais do sistema social e

    poltico da sociedade industrial decorrente da sua prpria modernizao. Nose trata de revoluo ou crise. Em verdade, o sucesso da modernizao iniciaum processo de destruio criativa da civilizao industrial. A modernizaoreflexiva dissolve as premissas e os contornos da sociedade e abre o caminhopara uma nova modernidade.

    Por reflexividade deve-se entender uma constante autoconfrontao comos efeitos da sociedade de risco. Isto se deve pelo fato de que a transio dasociedade industrial para o perodo de risco da modernidade ocorre de maneiradespercebida, no constituindo uma opo que se possa escolher ou rejeitar nodecorrer dos processos de disputas polticas. Assim, diante dessa transioautnoma, despercebida e indesejada, podem-se verificar efeitos da sociedadede risco que no so assimilados pelos padres institucionais da sociedadeindustrial. 20 Nesta, os conflitos acerca da distribuio de bens (empregos, renda,

    seguridade social) constituam um tema central. Na sociedade do risco, aocontrrio, surgem conflitos de responsabilidade distributiva, isto , conflitosacerca da distribuio, controle, preveno e legitimao dos riscos decorrentesdo avano tecnolgico e cientfico.21

    20 Neste ponto, Beck toma como referencial emprico os pases industrializados que j superaramproblemas de escassez de bens.21

    BECK, Ulrich. A reinveno da poltica: rumo a uma teoria da modernizao reflexiva. In:BECK, Ulrich; GIDDENS, Anthony; LASH, Scott. Modernizao Reflexiva: poltica, tradio eesttica na ordem social moderna. Trad. Magda Lopes. So Paulo: Editora da UniversidadeEstadual Paulista, 1997. p. 17.

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    O processo de modernizao torna-se um problema na medida em que asinstabilidades e riscos so oriundos das novidades tecnolgicas e

    organizacionais introduzidas, de forma no refletida, na sociedade. Comeam atomar corpo, na sociedade de risco, as ameaas produzidas na evoluo dasociedade industrial, levando ao surgimento da necessidade de redefinir ospadres relativos responsabilidade, segurana, controle e distribuio dasconseqncias dos danos. Nesta nova poca, devem ser levadas em contatambm as ameaas potenciais, que escapam percepo sensorial e no podemser determinadas pela cincia.

    Nesse contexto, o conceito de risco se torna fundamental para oentendimento das caractersticas, limites e transformaes do projeto demodernidade. A partir das contribuies de Anthony Giddens e Ulrich Beck,principalmente, que os riscos deixaram de representar uma mera temticasubdisciplinar das cincias sociais para representar um elemento fundamental nacompreenso da sociedade contempornea.

    Para melhor compreenso da transio do risco ao centro da teoria socialcontempornea, cabe uma anlise pormenorizada da sua trajetria. Em primeiro

    lugar, sero analisados os estudos tcnico-quantitativos, para em seguidaverificar o tratamento da temtica dos riscos pelos construtivistas. Por ltimo,ser analisado o seu papel na teoria da sociedade global do risco de UlrichBeck.

    2.3.2)O risco margem da teoria social

    A partir dos anos 60, estudos tcnicos e quantitativos de risco comearama ser realizados dentro de disciplinas como toxicologia, epidemiologia,psicologia e engenharias. Por meio desta abordagem, o risco considerado umevento adverso, uma atividade com probabilidades objetivas de causar danos epode ser estimado atravs de clculos quantitativos de nveis de aceitabilidadeque permitem estabelecer padres. Formula-se, nessa abordagem estritamentetcnica, o conceito de risco aceitvel, que representa o nvel de risco que podeser utilizado como patamar para atividades voluntrias. O argumento central

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    dessa abordagem no sentido de que a sociedade pode estabelecer um nvel derisco aceitvel, como parte de uma troca entre riscos e benefcios.22

    Este estudo tcnico-quantitativo abrange trs temas: estimao (fontes,intensidade, freqncia, durao e conseqncias para populaes afetadas),comunicao (para a sociedade, com objetivo de diminuir a distncia dapercepo entre leigos e peritos) e administrao (formulao de polticaspblicas de legislao e regulao) dos riscos.

    Nos anos 70 e 80, vrias crticas foram feitas a este mtodo. Os principaispontos atacados foram a falta de dados cientficos suficientes para determinar os

    riscos sade oriundos da exposio e as divergncias de opinio entre oscientistas acerca de como interpretar as evidncias e as incertezas dosresultados. Em que pesem os esforos do mtodo quantitativo para responder scrticas, sobretudo a partir da identificao de atributos extras dos riscos(voluntariedade, familiaridade, controlabilidade, efeitos imediatos), tais crticaspersistiram.

    2.3.3)A apropriao dos riscos pela teoria social: socioconstrutivismo eanlise cultural dos riscos

    Mary Douglas, em crtica s anlises tcnicas, desenvolveu a teoriacultural dos riscos, centrada em uma viso socioconstrutivista segundo a qual osindivduos so organizadores ativos de suas percepes, impondo seusignificado aos fenmenos. Douglas inicia suas anlises acerca do risco a partirde Pureza e Perigo23, quando verifica que h uma relao entre restriesalimentcias e ordem social: independentemente de quais forem os riscosobjetivos, organizaes sociais iro reforar os perigos para reforarem tambma ordem religiosa, poltica e moral, mantendo-as coesas.

    Com Aaron Wildavsky24, Douglas trouxe o tema dos riscos para o campodo debate poltico e moral. Partindo da premissa de que na seleo dos riscos

    22 GUIVANT, Julia S. A Trajetria das Anlises de Risco: da periferia ao centro da teoria social.Revista Brasileira de Informaes Bibliogrficas ANPOCS. N 46, 1998, p. 3-38.23 Cf. DOUGLAS, Mary. Purity and danger: an analysis of conceptions of pollution and taboo.Londres: Earthcan, 1996.24 Cf. DOUGLAS, Mary; WILDAVSKY, Aaron. Risk and culture: and essay on the selection oftechnical and environmental dangers. Berkeley, CA: University of California Press, 1982.

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    relevantes nem sempre a evidncia cientfica teria papel esclarecedor,Wildavsky e Douglas elevaram os fatores sociais e culturais a um papel central

    no processo de escolha. Ao questionarem como os peritos pretendem atingirnveis aceitveis de segurana, passaram a levar em conta o fator cultural: quoseguro suficientemente seguro para determinada cultura?

    No seu entendimento, no h como algum ser qualificado como perito.Sustentam Douglas e Wildavsky que h uma impossibilidade de se conhecertudo em relao aos riscos. Isto porque, com o crescente avano cientfico etecnolgico e com o conseqente surgimento de novas reas de conhecimento,h um aumento na distncia entre o que j se conhece e o que desejvelconhecer. Pela necessidade de lidar com as incertezas, a perspectiva tcnica erraao super-intelectualizar os processos decisrios e super-enfatizar osimpedimentos dos leigos, ora classificados como irracionais.25

    Se os riscos aos quais os seres humanos esto expostos so reais esuficientemente assustadores, por que a poluio ambiental e ecolgica temganhado mais destaque do que os demais? Para Douglas e Wildavsky, aresposta para este questionamento est na escolha que a sociedade faz acerca

    das suas instituies e seu modo de vida. Valores comuns levam a medoscomuns, induzindo a escolha dos riscos a fazer parte de um processo scio-cultural que no guarda relao com o carter objetivo dos mesmos. O fato deos riscos serem percebidos e administrados de acordo com princpios e valoresda ordem social impede que esses possam ser tratados com ferramentasmetodolgicas quantitativas.26

    Como analisar, ento, a relao entre a forma em que o pblico escolhe

    os riscos a serem temidos e as escolhas feitas pelas organizaes sociais dasquais eles pertencem? Os autores fazem uma anlise a partir do contrasteexistente entre as formas centrais de organizao social (burocracia e mercado)e a periferia (grupos dissidentes). Estas formas de organizao compreendemambientes sociais variados onde os indivduos interiorizam alguns valores ecomportamentos.

    Criticada pela simplicidade da tipologia utilizada, Douglas retomou umatipologia mais complexa. So identificadas formas de organizao social que

    25 GUIVANT, 1998, op. cit., p. 5.26 Idem.

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    representam quatro tipos de racionalidades. A aceitabilidade dos riscos medida de acordo com a percepo dos mesmos enquanto ameaa organizao

    social. A tipologia mais complexa de Douglas compreende uma burocraciacentralizada (estima e administra os riscos segundo os peritos), a comunidade(instituies locais), os indivduos competitivos (cujo consentimento negociado) e os indivduos atomizados ( margem do debate).27

    Tal tipologia foi aplicada posteriormente na anlise de como diferentesindivduos enfrentam os riscos segundo a credibilidade e confiana nosgeradores da informao e administradores de segurana. Foram analisados, porexemplo, os riscos da indstria nuclear: geraram hostilidade pblica os altosnveis de burocratizao, distncia, incontrolabilidade, dependncia doconhecimento dos peritos e ausncia de um processo decisrio aberto. Quandoda anlise das biotecnologias, foi verificado que no s esto envolvidasincertezas como tambm h certezas contraditrias, ou seja, o conflito entre osque aceitam ou no a introduo de organismos geneticamente modificados nanatureza tem origem cultural.28

    A maior contribuio de Mary Douglas para a anlise dos riscos foi

    chamar ateno para a necessidade, pelas polticas regulatrias e preventivas, dereconhecer que h uma pluralidade de racionalidades entre os leigos e que estesno se diferenciam muito dos peritos. Isto porque as questes culturais alm,simplesmente, das questes cientficas devem ser levadas em consideraonos processos decisrios.

    A partir e paralelamente aos trabalhos de Douglas, houve uma difusodas anlises sociais sobre os riscos. Relaes entre leigos e peritos e questes

    acerca do controle dos riscos so questes centrais nas anlises feitas pelosconstrutivistas acerca das divergncias entre os atores sociais envolvidos nasquestes ambientais. As pesquisas sociais, alm de iluminarem as anlises sobreos riscos, enriquecem bastante a partir das mesmas.

    Para James F. Short, a interdisciplinaridade deveria modificar a teoria docomportamento racional que influenciou a anlise dos riscos em sua origem.No se trata, contudo, da negao da racionalidade da ao social na percepodos riscos e processos decisrios. Trata-se da necessidade de mostrar como as

    27 Ibid., p. 7.28 Ibid., p. 8.

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    percepes do risco constroem-se em funo do grau de confiabilidade dasinstituies responsveis pela determinao e administrao dos riscos.29

    2.3.4)Os riscos no centro da teoria social: Ulrich Beck e AnthonyGiddens

    A partir do desastre da usina nuclear de Chernobyl, em 1986, a sociedadese viu s voltas com um mundo que oferece mais riscos medida que semoderniza. O projeto de uma sociedade enquanto controladora dos efeitoscolaterais oriundos do processo de industrializao j no pode ser aplicado

    realidade da segunda modernidade. Com Ulrich Beck, o risco foi elevado aocentro da teoria social, j que no seu trabalho este tido como um elemento-chave para entender a sociedade contempornea.

    O risco, para Ulrich Beck, um conceito relativamente novo. Em quepese a possibilidade de se entender a sociedade como uma resposta a todos osperigos possveis, s com a modernidade que nasce o conceito de risco.Assim, h uma distino entre riscos e perigos. Estes ltimos esto ligados a

    pocas mais remotas, em que a humanidade se via merc de catstrofesnaturais ou interveno dos deuses. Isto porque os perigos compreendem todasas ameaas que no so interpretadas como condicionadas pelos seres humanos.O conceito de risco, por outro lado, surge com as decises humanas, isto , sooriginados pelo processo civilizacional e modernizao progressiva. Acivilizao que busca tornar previsveis as imprevisveis conseqncias dassuas decises, que busca controlar o incontrolvel e sujeitar os efeitos colateraisa medidas preventivas acaba por criar o risco.30

    A partir do momento em que so concebidas respostas institucionais paraos perigos, isto , quando estes se tornam calculveis por respostasinstitucionais adequadas, que surge o risco. Como exemplo, Beck cita osprimrdios da navegao comercial intercontinental. quele tempo, o risco eraentendido como ousadia e estava umbilicalmente ligado noo de segurana.Para os primeiros comerciantes e aventureiros que se lanavam conquista dodesconhecido, havia uma grande probabilidade de seus navios naufragarem, o

    29 Ibid., p. 11.30 BECK, 2003, op. cit., p. 115.

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    que pode ser entendido como um perigo. Quando este destino individual passoua ser visto como a possvel experincia comum de um determinado grupo, ou

    seja, como um problema que afetava e ameaava a existncia deempreendimento comercial intercontinental, criou-se uma caixa comumdestinada a pagar uma indenizao em caso de naufrgio. Nesse momento,quando foi criada uma resposta institucional para o perigo, este se transformouem risco, isto , um problema coletivamente solvel.31

    Niklas Luhmann sugere que os riscos sejam interpretados como ospossveis danos decorrentes de uma deciso. Quando os danos so relacionadosa causas fora do prprio controle, estes so tidos como perigos. Os perigosenglobam, tambm, as decises de outras pessoas, grupos e organizaes. Dessamaneira, a mesma ao pode ser tida como risco para alguns e perigo paraoutros. A ttulo exemplificativo: o motorista que dirige em alta velocidadeassume um risco para si ao mesmo tempo que representa um perigo aosdemais.32

    Levando-se em conta o padro conceitual estabelecido por Beck, odesenvolvimento das foras produtivas, isto , a industrializao, pode ser

    entendida como o processo de surgimento dos riscos e das respostasinstitucionais a eles. Entre os sculos XVIII a XX, o processo de distribuiodas conseqncias dos riscos foi negociado e institucionalizado, de forma quedesempenhou um papel fundamental para o otimismo desenvolvimentista.Assim, o progresso sempre esteve umbilicalmente ligado possibilidade decompensao dos seus efeitos colaterais atravs de um programainstitucionalizado.33

    Na sociedade de risco, contudo, esse otimismo desenvolvimentista confrontado pela mudana substancial na qualidade dos riscos. Isto porque oclculo do risco pressupe um acidente, isto , um acontecimento delimitadosocial, espacial e temporalmente. Para o socilogo alemo, tal modelo perdevalidade, principalmente, partir de Chernobyl, onde as conseqncias doacidente j no puderam mais ser delimitadas. Os riscos oriundos das novas

    31 Idem.

    32 BRUSEKE, Franz Josef. A tcnica e os riscos da modernidade. Florianpolis: Ed. da UFSC,2001, p. 40.33 BECK, 2003, op. cit., p. 118.

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    tecnologias presentes na segunda modernidade fazem com que j no sejapossvel determinar o grupo de pessoas afetadas por um acidente, tampouco

    delimitar territorialmente as conseqncias e muito menos precisar at quandoestas perduraro. O imprevisvel j no pode ser antecipado e no h respostasinstitucionalizadas para o mesmo. Assim, fundamental que haja umdesprendimento das antigas categorias do risco.34

    A sociedade da primeira modernidade partia do princpio de que os riscose suas conseqncias podiam ser tecnicamente superados. Contudo, aradicalizao dos processos de modernizao gera conseqncias que pem emxeque todo o programa institucionalizado de clculo dos efeitos colaterais.Tanto na elaborao cientfica dos acidentes quanto nas instituies centrais na proteo contra catstrofes, previso da assistncia mdica ou dos custos no se percebe a distncia que separa os riscos da primeira dos riscos globais dasegunda modernidade. Os riscos da segunda modernidade so imperceptveis einterpretados contraditoriamente pelos especialistas. J no mais possvel,para os leigos, distinguir o perigoso do inofensivo. Como conseqncia, todosficam merc de especialistas e instituies que se contradizem nas questesmais elementares do dia-a-dia.35

    Ao contrrio dos riscos da primeira modernidade, os riscos da segundaso imperceptveis. Um acidente em uma mina ou o naufrgio de um navio eraum acontecimento perceptvel. A poluio emanada da chamin de uma fbricatambm. Agora, na sociedade tecnologicamente perfeita da segundamodernidade, onde os riscos da primeira foram institucionalizados erelativamente superados, surgem novos riscos que escapam percepoimediata dos afetados. Estes, por sua vez, j no so mais os operrios ou

    marinheiros que se submetiam aos riscos voluntariamente: agora, os afetadosso consumidores ou at mesmo pessoas que no possuem qualquer ligaocom a origem desses perigos. H uma separao radical entre os que geram osriscos e os que se vem obrigados a suportar suas conseqncias.

    Para exigir reparao, cabe aos afetados buscar as causas do dano. Estas,por sua vez, surgem num contexto por demais complexo, o que acaba porfrustrar quaisquer pretenses das vtimas. Isto porque os riscos j no so mais

    34 Ibid., p. 119.35 Ibid., p. 120.

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    localizveis espacial ou temporalmente: o caso, por exemplo, do lanamentode uma diversidade de produtos txicos no ar por diversas indstrias. Como

    estabelecer o nexo de causalidade entre a conduta de cada uma destas e acondio mdica de suas potenciais vtimas? Como relacionar causa econseqncia se esta for tardia, ou seja, se a vtima apresentar uma doenaapenas vinte anos depois da exposio? Ante a impossibilidade de seestabelecer tal nexo e na ausncia de culpados, no h punio. Quando o riscose torna invisvel e no localizvel, suas conseqncias j no podem sermanejadas pelos instrumentos clssicos de jurisdio, tendo como conseqnciaum estado de crise de legitimao da prpria sociedade. Isso acontece pelo fato

    de que a segurana dos seus membros uma das legitimaes mais importantesda sociedadeagora j no pode ser garantida.36

    A confiabilidade nas instituies passa a ser questionada a partir dosconflitos de risco, isto , quando as diversas pretenses de racionalidade queparticipam da definio social do risco se contradizem. A racionalidadeinstitucionalizada decorrente das concluses produzidas por cientistas que semantm presos s antigas categorias no reconhece os riscos sem rigorosasevidncias. A instncia jurdica, quando impossibilitada de estabelecer qualquernexo de causalidade, tambm no reconhece a existncia dos mesmos. Osafetados, por sua vez, detectam o potencial de ameaa e se organizam emmovimentos sociais, utilizando de instrumentos diversos como outroscientistas ou estatsticos para se insurgirem contra a negao institucional.Esses conflitos geram um esvaziamento no ncleo de legitimidade dasinstituies na medida em que os riscos se ampliam e se diversificam com oaval do Estado o que tem como conseqncia a crise de confiana.37

    Esse novo quadro de incertezas conhecidas onde as relaes causais sso comprovadas em quadros extremos permeado por opiniescontraditrias. E no desenrolar dessa luta pela definio dos riscos, das suasvtimas e das suas causas, h uma srie de conseqncias tanto no mbitopoltico como econmico. Isto porque, na nova dinmica dos riscos, a riquezano significa mais uma preveno contra os mesmos e, cedo ou tarde, osprprios causadores sero vtimas. Como exemplo, pode-se citar empresas do

    36 Ibid., p. 122.37 Ibid., p. 126.

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    setor qumico ou que trabalham com organismos geneticamente modificados(OGMs). Tais empresas investem em pesquisas e em especialistas para que

    estes convenam a sociedade de que no h risco, e assim constroem mercadosno mundo inteiro. Quando surgem interpretaes diversas daqueles riscos, asempresas so obrigadas a suportar a queda no valor das suas aes.38

    Tais conflitos de risco, resultantes da insuficincia dos arranjosinstitucionais, denotam o quadro de irresponsabilidade organizada instaurado.Os que deveriam ser responsabilizados esto livres para a irresponsabilidade. Osinstrumentos utilizados para estabelecer a culpa ainda so os mesmos daprimeira modernidade, mantendo-se presos lgica das racionalidades tcnica emdica que por sua vez so constantemente adaptadas aos interesses de lucro.Com o esvaziamento do ncleo de legitimidade do Estado, um novo conceito derisco e novas respostas institucionais a ele se tornam centrais para que oprocesso de modernizao tenha continuidade.

    Em que pese o debate exaustivo acerca dos possveis riscos sadehumana e meio ambiente oriundos dos agrotxicos39, transgnicos ou clulas-tronco 40 , existem novas tecnologias que ainda no figuram no centro das

    discusses e sequer foram reguladas pela legislao ptria. o caso dananotecnologia.

    3)Nanotecnologia e riscos de graves consequncias3.1)O incio da miniaturizao

    A possibilidade de manipulao de materiais em escala nanomtrica foiaventada em 1959, a partir da apresentao do fsico Richard Feynman, noencontro anual da Sociedade Americana de Fsica. Em sua palestra intituladaH mais espao l embaixo (Theres plenty of room at the bottom), Feynman

    38 Ibid., p. 130.39 Cf. GUIVANT, Julia S. Reflexividade na Sociedade de Risco:conflitos entre leigos e peritossobre os agrotxicos.In: HERCULANO, Selene. (Org.). Qualidade de vida e riscos ambientais.Niteri: Editora da UFF, 2000, p. 281-303.40 Cf. ADI/3510 Ao Direta de Inconstitucionalidade.

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    defende a inexistncia de quaisquer obstculos tericos construo dedispositivos bastante pequenos, compostos por elementos igualmente diminutos.

    O termo nanotecnologia, entretanto, s veio a ser utilizado somente em 1974,quando Norio Taniguchi, pesquisador da Universidade de Tokyo, referiu habilidade de engendrar materiais precisamente ao nvel nanomtrico.41

    Os termos nanotecnologia, nanocincia, nanomateriais e demaisvariaes so derivados da palavra grega nano, que significa ano. Umnanmetro (1nm) o equivalente a um bilionsimo de um metro. Em outraspalavras, pode-se dizer que um nanmetro o equivalente a um milmetrodividido por um milho. Apesar da dificuldade de imaginar medidas em taisescalas, pode-se estabelecer algumas comparaes: uma pulga possui1.000.000nm (um milho de nanmetros); um fio de cabelo humano, por suavez, possui 80.000nm (oitenta mil nanmetros); um glbulo vermelho possuicerca de 7.000nm (sete mil nanmetros); bactrias possuem 1.000nm (milnanmetros).42

    Os termos nanotecnologia e nanocincia so utilizados de maneiradistinta em diversos estudos, apesar de no haver diferenas substanciais entre

    os mesmos, isto , que impeam o bom entendimento da temtica. A primeirasignifica a habilidade de medir, ver, prever, engendrar, produzir e aplicarmateriais em escala nanomtrica, alm de explorar as novas propriedades dosmateriais em nanoescala. A nanocincia, por outro lado, preocupa-se em estudaro fenmeno e a manipulao de materiais em escala nanomtrica, cujaspropriedades diferem significativamente das dos materiais de maior escala. Aolongo deste trabalho, respeitar-se- tal distino.

    41 THE ROYAL SOCIETY AND THE ROYAL ACADEMY OF ENGINEERING. Nanoscienceand nanotechnologies: opportunities and uncertainties. Plymouth: Latimer Trend Ltd., 2004. p.5. Disponvel em: http://www.nanotec.org.uk/finalReport.htm. Acesso em: 16 de fevereiro 2009.42

    SWISS REINSURANCE COMPANY. Nanotechnology: small matter, many unknowns.Zurich: SwissRe, 2004. p. 5. Disponvel em:http://www.swissre.com/INTERNET/pwsfilpr.nsf/vwFilebyIDKEYLu/ULUR-5YNGET/$FILE/Publ04_Nanotech_en.pdf. Acesso em: 13 de abril de 2009.

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    3.1.1)Nanomateriais: informaes fundamentaisSomente nos ltimos anos que o uso sistemtico e a manipulao de

    nanopartculas individuais foram possveis. Ferramentas mais sofisticadasforam desenvolvidas para investigar e manipular nanomateriais, como omicroscpio de tunelamento (scanning tunnelling microscope, STM), inventadoem 1982, e o microscpio de fora atmica (atomic force microscope, AFM), de1986. Tais instrumentos, alm de terem possibilitado a visualizao desuperfcies em escala atmica, tambm permitiram o manuseio e construo deestruturas nanomtricas ainda rudimentares.43 Em 1990, Don Eigler e Erhard

    Schweizer manusearam tomos de xennio e conseguiram gravar, sobre umasuperfcie de nquel, a logomarca da IBM.44

    As diversas tcnicas de manipulao dos nanomateriais esto divididasem duas abordagens: de cima para baixo (top-down techniques) e de baixo paracima (bottom-up techniques). A primeira, de cima para baixo, engloba astcnicas de produo de nanomateriais que tem como ponto de partida umagrande partcula, que reduzida at o formato e tamanho desejados. Talprocesso envolve um gasto expressivo de energia e produz uma grande

    quantidade de dejetos, alm do uso significativo de recursos naturais. Nasegunda abordagem, de baixo pra cima, estruturas maiores so construdastomo a tomo, molcula por molcula. possvel, nesta abordagem, o uso datcnica de auto-organizao, que consiste na unio espontnea de diversoscomponentes, criando novos materiais.45

    Para que sejam considerados de nanoescala e, por conseguinte, para quesejam objeto de estudo da nanocincia, os materiais devem possuir no mximo

    100nm.46

    Em se tratando de abordagem de cima para baixo (top-downtechniques), pode-se considerar um nanomaterial aquele que foi reduzido a100nm ou menos. Partindo-se da abordagem inversa, de baixo para cima(bottom-up techniques), a unio de nanopartculas no deve exceder este

    43 THE ROYAL SOCIETY AND THE ROYAL ACADEMY OF ENGINEERING, 2004, op. cit.,p. 16.44 Ibid., p. 6.

    45 SWISS REINSURANCE COMPANY, 2004, op. cit., p. 9.46 THE ROYAL SOCIETY AND THE ROYAL ACADEMY OF ENGINEERING, 2004, op. cit.,p. 8.

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    patamar. Tal escala deve ser atingida em, no mnimo, uma dimenso. Porexemplo: existem nanomateriais, como revestimentos e camadas especiais, que

    chegam a atingir alguns centmetros de rea, j que so utilizados emsuperfcies. Contudo, tais materiais so considerados nanomtricos pelo fato deapresentarem profundidade nanomtrica, chegando a possuir somente um tomode espessura.

    possvel verificar materiais em nanoescala de somente uma, duas ou emtodas as trs dimenses. Os nanomateriais unidimensionais so aqueles quepossuem somente uma dimenso em escala nanomtrica. Em geral a dimenso a profundidade, como se pode verificar em filmes ultrafinos, camadas erevestimentos de superfcies. Algumas camadas e revestimentos chegam apossuir somente uma molcula ou um tomo de profundidade, apesar depossurem uma rea de cobertura relativamente extensa. Exemplos denanomateriais unidimensionais so os revestimentos em dixido de titnioativado, projetados para repelir gua e bactrias de superfcies auto-limpantes.Tambm existem revestimentos prova de arranhes que so significativamenteaprimorados a partir do uso de camadas intermedirias em nanoescala.47

    Nanomateriais bidimensionais so aqueles que possuem duas dimensesem escala nanomtrica (largura e profundidade, e.g.) e possuem uma dimensoestendida (altura, e.g.). Nanotubos de carbono, nanofios, biopolmeros enanotubos inorgnicos se encaixam nesta categoria. Nanotubos so estruturascilndricas, cujo dimetro no ultrapassa os 100nm, cujos maiores atrativos sosuas propriedades fsicas e qumicas, como resistncia, durabilidade econdutividade.48

    A nanoescala em trs dimenses representada por partculas quepossuem um raio no maior do que 100nm e no ultrapassam este limite emnenhuma dimenso. Materiais que pertenam escala nanomtrica em todas assuas dimenses so denominados nanopartculas. So exemplos denanopartculas os fulerenos, que so compostos por sessenta tomos de carbonoorganizados em 20 hexgonos e 12 pentgonos, cujo formato comparado a

    47 Ibid., p. 10.48 Ibid., p. 8.

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    uma bola de futebol. Por serem ocos, podem desempenhar a funo de veculospara remdios e contrastes, bem como para lubrificantes de superfcies.49

    3.1.2)Nanomateriais naturais e artificiaisPartculas em nanoescala no so novas e sempre estiveram presentes na

    natureza. Por exemplo, os polmeros macromolculas construdas a partir desubunidades de menor escala vm sendo manuseados por industriais desde oincio do sculo XX, a despeito do desconhecimento dos estudiosos acerca daexistncia de partculas to diminutas. Nanocristais de sal so detectveis nosventos dos oceanos. Motores a diesel emitem milhes de partculas de carbonono ar, assim como cigarros e velas. O leite (com os colides) outro exemplo,bem como as protenas que controlam processos biolgicos. Nanopartculas,alm de surgirem naturalmente, so criadas h milhares de anos enquantoresultado da combusto ou do cozer de alimentos.50

    Deve-se ressaltar, porm, que h uma diferena substancial entre asnanopartculas encontradas na natureza e as artificialmente manufaturadas.

    Partculas de sal, por exemplo, so solveis em gua. Se inaladas, ao entraremem contato com o tecido, imediatamente se dissolvem e perdem a sua forma.Partculas oriundas de processos de combusto, apesar de insolveis, tm umagrande tendncia aglomerao, formando micropartculas de diferentespropriedades. Nanopartculas artificialmente manufaturadas possuempropriedades bem diferentes das naturais e isso constitui o seu grande atrativo.Ao contrrio das naturais, elas tm tendncia disperso, dado o seurevestimento peculiar. A lgica simples: a fim de evitar que nanopartculas se

    aglomerem e formem micropartculas o que geraria uma perda depropriedades alcanadas com a miniaturizao estas so revestidas de maneiraespecial. Assim, no importando quanto tempo passe, as nanopartculasartificiais continuam reativas e bastante mveis.51

    49 Ibid., p. 10.50 Ibid., p. 6.51 SWISS REINSURANCE COMPANY, 2004, op. cit., p. 13.

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    3.2)Nanomateriais e suas aplicaesNanomateriais interessam indstria por vrios motivos. Partculas

    menores do que 50nm j no so regidas pelas clssicas leis da fsica, mas dafsica quntica. Isso significa que nanopartculas podem assumir outraspropriedades ticas, magnticas e eltricas, o que as distingue substancialmentedas partculas maiores da mesma famlia. Tambm, devido dimensoreduzida, a razo entre massa e superfcie diferenciada. Quanto menor umcorpo, maior a superfcie em relao sua massa, o que significa dizer que,quanto menor a partcula, mais tomos existiro na sua superfcie e menos

    tomos em seu interior.52

    Por exemplo, uma partcula de 30nm possui somente5% dos seus tomos na sua superfcie, enquanto uma partcula de 3nm possui50%. Pelo fato de reaes qumicas catalticas e de crescimento ocorrerem nassuperfcies, os nanomateriais se tornam bem mais reativos do que os mesmosmateriais em largas partculas.53

    Nanotecnologia, combinada com biotecnologia, formam os pilares quesustentam os rpidos avanos em diversas reas da medicina. Tais progressosem nanoescala podem ser vislumbrados quando nanomateriais passivos ou

    ativos so utilizados para aplicar drogas em locais e momentos desejados. Istoreduz efeitos colaterais, levando a uma melhor resposta do organismo e utilizao de menores dosagens. O desenvolvimento e a aplicao dananotecnologia na medicina englobam diversas reas: diagnstico, aplicao dedrogas, regenerao de tecidos, reparao de leses, prteses, dentre outras.

    No que diz respeito ao diagnstico, h pesquisas em torno de marcadores(contrastes) em nanoescala. Tais marcadores so teis para a deteco de clulas

    cancergenas e, conseqentemente, para antecipao do tratamento. Outraferramenta construda com o uso de nanotecnologia so os laboratrios emchips, que consistem em laboratrios portteis para a obteno de diagnsticos,sendo aplicados na preveno e controle de doenas, bem como na monitoraodo prprio meio ambiente.54

    52 Ibid., p. 12.53

    THE ROYAL SOCIETY AND THE ROYAL ACADEMY OF ENGINEERING, 2004, op. cit.,p. 7.54 GREENPEACE ENVIRONMENTAL TRUST. Future Technologies, Todays Choices:Nanotechnology, Artificial Intelligence and Robotics; A technical, political and institutional map

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    Atualmente, empresas farmacuticas j utilizam da nanotecnologia paraaumentar a eficcia de medicamentos e reduzir efeitos colaterais. Os princpios

    ativos das drogas so manipulados de modo a caberem em cavidadesminsculas das substncias que os transportaro para as clulas. Substnciascomo beta-ciclodextrina ou HDL sinttico ( Hight Density Lipoprotein) ocolesterol bom j so largamente utilizadas em antiinflamatrios,antialrgicos, anticidos e no tratamento de determinados tipos de cncer.

    Estudos do ano de 2001 j indicavam que nanopartculas entre 50nm e100nm seriam ideais para o tratamento do cncer, eis que partculas maiores nopenetrariam com a mesma eficcia nos tumores. No tratamento da AIDS,grandes avanos so obtidos a partir das nanocpsulas, que desviam do sistemaimunolgico, possibilitando o direcionamento de agentes teraputicos a locaisespecficos. No tratamento da diabetes, um sistema de aplicao de insulinavem sendo desenvolvido a partir do uso combinado entre nanomateriais porosose sensores.55

    Para a construo de prteses, existem nanomateriais que representamuma alternativa liga de titnio e cido inoxidvel utilizada em implantes

    ortopdicos e vlvulas cardacas. Em alguns casos, estas ligas tradicionais nochegam a durar o equivalente ao tempo de vida do paciente. Por outro lado, oxido de zircnio nanocristalino resistente, prova de biocorroso ebiocompatvel, demonstrando-se ideal para prteses. Carbetos de silcio, porserem leves e resistentes, so ideais para a construo de vlvulas cardacas.56

    Alm da aplicao em diversas reas da medicina e na indstriafarmacutica, a nanotecnologia tambm empregada pelas empresas de

    protetores solares, que utilizam dixido de titnio e xido de zinco, cujoprincipal atrativo a possibilidade de absorver e refletir raios ultra-violetas aomesmo tempo em que so transparentes luz visvel. 57 Cosmticos, comocremes hidratantes e antienvelhecimento, tm seus princpios ativos reduzidos

    of emerging technologies. Londres: Greenpeace Environmental Trust, 2003, p. 28. Disponvelem: http://www.greenpeace.org.uk/MultimediaFiles/Live/FullReport/5886.pdf. Acesso em 13 deabril de 2009.55 Idem.

    56 THE ROYAL SOCIETY AND THE ROYAL ACADEMY OF ENGINEERING, 2004, op. cit.,p. 12.57 Ibid., p. 10.

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    nanoescala, facilitando a chegada s camadas mais profundas da pele sem quesuas propriedades sejam perdidas pelo caminho.

    Nanopartculas tambm j esto presentes em cremes dentais.Nanocristais de prata e hidroxiapatita (composto de fosfato e clcio) soutilizados para a recuperao de dentes danificados. Tais materiais aderem aosdentes durante a escovao, ajudando na recomposio do esmalte cujasirregularidades so freqentes, porm invisveis e garantindo proteo contradesgastes futuros.

    No ramo da informtica, desde 1997, a indstria de eletrnicos vem

    utilizando a nanotecnologia na produo dos telefones celulares, cujas funesbsicas de agenda e despertador dependiam dos poucos bytes comportados pelosmicrochips. No ano de 2000, surgiram os primeiros MP3players com memriaflash, cuja capacidade de armazenamento chegava a somente 1Gb (umgigabyte). Dado o avano considervel nesse campo, o mercado da telefoniacelular caminhou no sentido da reduo dos aparelhos, aumento significativo dacapacidade de armazenamento de dados e insero de novas funes, comoacesso internet e cmera fotogrfica.

    Em 2002, a instituio ETC Group, por ocasio da publicao de umestudo, afirmou que em 2012 todo o mercado de informtica (eletrnicos,magnticos e ticos inclusos) seria dependente de nanomateriais.58 Tal previsovem se mostrando acertada na medida em que os recentes lanamentos da reada informtica, em sua grande maioria, utilizam a nanotecnologia. Modernosmicroprocessadores, memrias flash, microchips e monitores em LCD (cristallquido), atualmente, dependem de nanotubos de carbono para que sejam

    produzidos.Nanomateriais tambm so utilizados pela engenharia, na produo de

    revestimentos e superfcies. Nanopartculas de dixido de silcio so largamenteutilizadas em vidros, dada a sua capacidade de absorver a luz, gerando, assim,propriedades anti-reflexos. Vidros revestidos de dixido de titnio ativado, porsua vez, possuem propriedades auto-limpantes e anti-bacterianas. 59Nanopartculas de cermica tm sido utilizadas no aumento da resistncia das

    58 GREENPEACE ENVIRONMENTAL TRUST, 2003, op. cit., p. 22.59 THE ROYAL SOCIETY AND THE ROYAL ACADEMY OF ENGINEERING, 2004, op. cit.,p. 11.

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    tintas de automveis, enquanto as de argila as deixam mais leves, resultando emeconomia de combustvel e natural benefcio ao meio ambiente.60

    Alm de revestimentos em nanoescala e tintas, nanomateriais tambmesto presentes em lubrificantes. Nanopartculas de cido brico diminuemconsideravelmente o atrito entre superfcies e se mantm quimicamente estveisquando misturadas em leos de uso industrial.

    Como mencionado anteriormente, nanotubos de carbono constituem umagrande evoluo na indstria da informtica. No obstante, j so vislumbradasalgumas aplicaes de tal matria-prima em maior escala. Por possurem

    propriedades mecnicas de grande importncia, como resistncia e leveza(chegam a ser cem vezes mais resistentes do que o ao, com um sexto do peso),os nanotubos de carbono vm sendo estudados como potenciais substitutos decompostos atualmente utilizados, como ligas metlicas e fibras de carbono. Istoinfluenciaria sobremaneira a produo de automveis e construo deaeronaves.61

    Os avanos nanotecnolgicos podem trazer mudanas substanciais nosetor energtico, principalmente em termos de iluminao, armazenamento,gerao e economia de energia. No que diz respeito iluminao, mudanassignificativas so esperadas no setor para os prximos dez anos.Semicondutores utilizados na fabricao de diodos emissores de luz podem seresculpidos em nanoescala, o que deve levar reduo de mais de 10% doconsumo de energia em todo o mundo.62

    O armazenamento e a gerao de energia tambm se tornaram maiseficientes. Nanopartculas de on ltio contriburam para a reduo no tamanho e

    aumento da capacidade dos dispositivos de armazenamento. Na fabricao declulas fotoeltricas capazes de gerar energia a partir da luz do Sol polmeros e clulas nanocristalinas aumentam a eficincia e reduo de custosdos materiais. Por conta da grande rea de superfcie, possibilitam o aumento daabsoro de energia a partir da utilizao de menor espao.63

    60 Idem.

    61 THE GREENPEACE ENVIRONMENTAL TRUST, 2003, op. cit., p. 15.62 GREENPEACE ENVIRONMENTAL TRUST, 2003, op. cit., p. 27.63 Ibid., p. 30.

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    A despeito do perfeito funcionamento de tais mecanismos de defesa e daprvia existncia de nanopartculas naturais, novos questionamentos devem ser

    feitos quando da absoro de nanopartculas artificiais. Com o tamanhoreduzido, alto grau de reatividade e grande rea de superfcie, materiais queseriam considerados inofensivos podem representar um grande perigo para osseres humanos. Como tais partculas se comportam no organismo? Quais osefeitos nocivos da absoro de nanopartculas pelo corpo humano? O destinocomum de todas as partculas a corrente sangunea? possvel, se presentesna corrente sangunea, a absoro destas pelos rgos?

    Nanopartculas, se inaladas, podem causar danos completamentediferentes dos causados por partculas de maiores tamanhos. Em primeiro lugar,dado o seu tamanho reduzido, nanopartculas podem penetrar maisprofundamente nos pulmes. Existem evidncias cientficas de quedeterminadas partculas escapam defesa do sistema respiratrio e, aoatingirem os alvolos (onde ocorrem as trocas gasosas), penetram na correntesangunea. Alm da possibilidade de penetrao de nanopartculas na correntesangunea e do acesso irrestrito aos demais rgos, o sistema respiratrio podeser danificado pela simples presena das mesmas. Isto devido ao fato de quematrias que eram consideradas inofensivas quando em maior tamanho, podemser consideradas perigosas quando em nanoescala, a exemplo do ltex.

    Tal nocividade conseqncia direta de dois fatores. O primeiro, relativo sobrecarga dos fagcitos (clulas encarregadas de eliminar matria estranha aosistema respiratrio). Isto ocorre quando os invasores excedem a capacidadede defesa das clulas. Como conseqncia, h inflamaes nos tecidospulmonares e o enfraquecimento do seu sistema imunolgico, o que deixa o

    organismo mais propenso a infeces.67

    A reatividade dos nanomateriais, a depender do seu revestimento, podecausar danos qumicos ao tecido que com eles estiver em contato. Talreatividade devida presena de radicais livres, que so tomos que possuemum nmero reduzido de eltrons. Estes tomos furtam eltrons de clulasvizinhas para aperfeioar sua prpria estrutura, criando, assim, outro radicallivre. Este novo radical livre tambm ir furtar eltrons das outras clulas, e

    assim por diante, gerando uma reao em cadeia. A formao de radicais livres

    67 SWISS REINSURANCE COMPANY, 2004, op. cit., p. 16.

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    comum em um organismo saudvel, onde existem, inclusive, enzimasresponsveis pela sua eliminao. Porm, tais processos ocorrem localmente e

    em um ambiente quimicamente equilibrado. Os radicais danosos, cujos efeitosso intensificados por fatores exgenos (nanopartculas reativas, radiao, raiossolares, e.g.), prejudicam tal equilbrio qumico do organismo e podemcontribuir para a formao de tumores.68

    A possibilidade de absoro de nanopartculas pela pele ainda objeto dedebate entre especialistas. Como mencionado anteriormente, o mercado decosmticos, protetores solares e bronzeadores que utilizam nanomateriais crescente. Contraditoriamente, a cincia ainda apresenta resultados inconclusos:de um lado, afirmado que nanopartculas previamente marcadas foramencontradas na corrente sangunea, enquanto outras pesquisas apontam nosentido de que tais materiais no conseguem sequer ultrapassar a camada maissuperficial da pele.69

    A terceira via de acesso ao corpo humano o trato intestinal. O sistemadigestivo possui duas funes bsicas: ingesto de alimentos e expulso dematrias indesejadas pelo organismo. As substncias desejadas so digeridas

    por enzimas e absorvidas pelas clulas do intestino, enquanto as nocivas aoorganismo so mantidas no trato intestinal e eliminadas na forma de fezes oupela via dos ndulos linfticos.

    Nanopartculas so absorvidas pelas placas de Peyer, que consistem emndulos de tecidos linfticos associados ao intestino. Estes ndulos absorvempartculas maiores em bolhas e as transporta aos vasos linfticos, onde soeliminadas pelo organismo. O problema relacionado aos nanomateriais que

    estes, ao penetrarem no sistema linftico, podem chegar corrente sangunea.

    70

    Quando as nanopartculas transpem a barreira de tais rgos de acesso

    ou quando so inseridas deliberadamente na corrente sangunea (medicamentose contrastes), uma nova srie de questionamentos emerge. Partculas estranhas,quando presentes no sistema circulatrio, so absorvidas por fagcitosespecializados e so expulsas do organismo. Entretanto, tal regra no se aplicaaos nanomateriais. Nanopartculas de tamanho inferior a 200nm no so

    68 Idem.69 Ibid., p. 19.70 Ibid., p. 20.

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    absorvidas por fagcitos, mas, surpreendentemente, por clulas que sequerdesempenham a funo de defesa. Uma vez absorvidas por tais clulas

    (glbulos vermelhos, e.g.), podem transitar pelo organismo de maneira livre eirrestrita. Corao, medula, ovrios, fgado, msculos e at mesmo o crebro omais protegido rgo do corpo humano so penetrados, sem maioresdificuldades, por nanopartculas presentes no sangue.71

    Nanomateriais que atingem a corrente sangunea se acumulam,principalmente, no fgado. A sua presena pode desencadear processosinflamatrios, leses ao seu tecido e, a depender do grau de reatividade dasnanopartculas, tambm possvel que se formem tumores.

    3.4)Nanomateriais e o meio ambientePor conta das tcnicas de produo e da grande disseminao dos

    nanomateriais, estes podem ser despejados na gua ou no ar e, em ltimainstancia, o solo e os lenis freticos podem ser atingidos. Alm disso,nanopartculas vm sendo utilizadas, cada vez mais, em materiais descartveis,

    o que torna inevitvel o seu contato com o meio ambiente quando estes soreciclados ou eliminados como lixo. Por constiturem uma nova classe demateriais no-biodegradveis, as conseqncias para o meio ambiente e o seucomportamento a longo prazo so difceis de prever.

    Em que pese a inexistncia de certezas cientficas acerca docomportamento das nanopartculas no meio ambiente, possvel imaginaralguns cenrios a partir do conhecimento j produzido acerca das demais formas

    de poluio. No que diz respeito possibilidade de disseminao atmosfrica,por exemplo, estudos sobre poluio indicam que o nmero de partculasultrafinas no ar est diretamente relacionado ao ndice de mortalidade dapopulao. As partculas estudadas, contudo, eram oriundas do diesel, cujastendncias naturais so de agregao e repouso. Por outro lado, nanopartculasartificiais permanecem no ar por muito mais tempo, o que pode agravar adisseminao, alm de serem nocivas aos humanos.

    71 Ibid., p. 22.

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    Nanopartculas tambm podem contribuir para o aumento da distribuiode poluentes no solo. Esta concluso foi obtida atravs da observao dos

    colides, cujas propriedades permitem a sua unio com poluentes insolveis emgua e metais pesados. Por serem menores e apresentarem maior rea desuperfcie, uma maior quantidade de poluentes pode se unir s nanopartculas,sendo absorvidos em maior quantidade e em maior velocidade pelo solo.72

    A partir das incertezas cientficas, emergem cenrios mais pessimistas. Oque aconteceria se nanopartculas altamente txicas fossem espalhadas pelomeio ambiente? Seria possvel retir-las de circulao? Haveria algumapossibilidade de remov-las da gua, solo ou ar?

    A eliminao de nanopartculas do meio ambiente um grande desafiopara os cientistas, j que os procedimentos at ento estudados so de alto custoe inadequados para a utilizao em larga escala. A remoo de nanopartculasdos lquidos, por exemplo, s possvel atravs de centrifugao ouultrafiltragem. No primeiro procedimento, partculas so separadas atravs dafora centrfuga oriunda de altas rotaes. Na ultrafiltragem, lquidos sopressionados contra uma membrana semipermevel.73

    Filtros de purificao atualmente utilizados em prdios e fbricaspossuem poros grandes demais para a reteno de nanopartculas. Problemasrelativos presso do ar e ao bloqueio dos poros por partculas maiores devemser superados para que os nanomateriais possam ser retidos.

    Neste cenrio de ausncia de certeza cientfica (ou, pelo menos, decertezas cientficas contraditrias) em torno dos riscos relacionados nanotecnologia, emerge o debate sobre a invisibilidade do tema para o discurso

    jurdico, anonimato este parcialmente resultante das lacunas de conhecimentoquanto s tecnologias infinitesimais.

    72 Ibid., p. 29.73 Ibid., p. 30.

  • 8/9/2019 O Direito constrangido pelo risco: uma perspectiva do Direito Ambiental a partir da nanotecnologia

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    CAPTURA CRPTICA: direito, poltica, atualidade. Florianpolis, n.2., v.1., jul./dez. 2009

    C

    CRevista Discente do Curso de Ps-Graduao em Direitoaptura

    rptica Universidade Federal de Santa Catarina

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    4)O direito ambiental constrangido pelo risco4.1)A nanotecnologia enquanto um novo paradigma tcnico-econmico

    O desenvolvimento econmico e industrial ocorre de maneira cclica.Uma anlise histrica dos dados demonstra que este marcado por grandespicos e vales, que representam momentos de grande expresso econmicaacompanhados por momentos de recesso. A partir dos estudos de Schumpeter,foi possvel verificar que os ciclos econmicos so consubstanciados emprocessos de destruio criativa. Tais processos explicam a dinmica dos ciclosatravs de ondas de inovaes que revolucionam a estrutura econmica v