o direito ao meio ambiente equilibrado

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IRIGARAY, C. T. H. . O direito ao Meio Ambiente Equilibrado e sua Interpretação Constitucional. In: Luiz Alberto Esteves Scaloppe. (Org.). Transformações no Direito Constitucional. 02 ed. Cuiabá: Fundação Escola, 2003, v. 2, p. 194-224 O Direito ao Meio Ambiente Equilibrado e sua Interpretação Constitucional Carlos Toeodoro José Hugueney Irigaray 1 Sumário: Introdução; 1. Peculiaridades da hermenêutica constitucional; 2. O Direito ao meio ambiente equilibrado como direito fundamental; 3. O Direito ao meio ambiente equilibrado na visão dos tribunais brasileiros; 4. Conclusão; 5. Bibliografia Introdução A crise ecológica é tema que ultrapassou os limites da discussão acadêmica. Os efeitos perversos da poluição e da degradação ambiental, estão exigindo a definição de políticas públicas consistentes, que limitem direitos e subordinem o exercício de atividades econômicas ao interesse coletivo. Por outro lado, a demanda pela melhoria da qualidade do meio ambiente não está mais restrita a biólogos, ecologistas e políticos, também as massas populares vêm, gradativamente, inserindo em sua agenda de reivindicações, o direito ao meio ambiente equilibrado. No plano internacional o reconhecimento dos chamados direitos humanos de terceira geração, contribuiu significativamente para a inserção desses direitos nas modernas Cartas Políticas. Nesse sentido, foi grande a influência dos Tratados e de outros documentos internacionais, como a Declaração de Estocolmo e o Relatório da Comissão Brundtlandt, no processo que culminou com a constitucionalização do direito ao meio ambiente equilibrado, em nosso País. Propõe-se neste trabalho, uma análise interpretativa do preceito constitu- cional, através do qual o direito ao meio ambiente equilibrado foi reconhecido em nossa Carta Magna. Mais que um exercício de hermenêutica, pretende-se demonstrar que no sistema constitucional brasileiro, a norma que prevê esse direito, tem natureza principial, conferindo a este, ainda, o status de direito fundamental. Uma análise das peculiaridades inerentes à nova hermenêutica constitucional, contextualizam a análise do princípio reconhecido, a partir das novas orientações metodológicas que podem levar à sua efetiva concretização. Esta abordagem se complementa com a análise panorâmica de alguns julgados relativos à matéria, objetivando demonstrar a amplitude e relevância que a matéria adquire no Direito Público, contemporaneamente. 1. Peculiaridades da Hermenêutica Constitucional O tema da interpretação é dos mais controvertidos na seara do Direito Constitucional. Até meados do século XX, poucos autores enfrentaram essa temática, que hoje adquire especial relevância, sobretudo a partir da renovação introduzida no 1 Professor da UFMT. Coordenador do Programa de Mestrado em Direito Agroambiental da UFMT. Procurador do Estado de Mato Grosso. Presidente do Instituto O Direito por um Planeta Verde.

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  • IRIGARAY, C. T. H. . O direito ao Meio Ambiente Equilibrado e sua Interpretao Constitucional. In: Luiz Alberto Esteves Scaloppe. (Org.). Transformaes no Direito

    Constitucional. 02 ed. Cuiab: Fundao Escola, 2003, v. 2, p. 194-224

    O Direito ao Meio Ambiente Equilibrado e sua Interpretao

    Constitucional

    Carlos Toeodoro Jos Hugueney Irigaray1

    Sumrio: Introduo; 1. Peculiaridades da hermenutica constitucional; 2. O Direito ao meio ambiente equilibrado como direito fundamental; 3. O Direito ao meio ambiente equilibrado na viso dos tribunais brasileiros; 4. Concluso; 5. Bibliografia

    Introduo A crise ecolgica tema que ultrapassou os limites da discusso acadmica.

    Os efeitos perversos da poluio e da degradao ambiental, esto exigindo a definio de polticas pblicas consistentes, que limitem direitos e subordinem o exerccio de atividades econmicas ao interesse coletivo. Por outro lado, a demanda pela melhoria da qualidade do meio ambiente no est mais restrita a bilogos, ecologistas e polticos, tambm as massas populares vm, gradativamente, inserindo em sua agenda de reivindicaes, o direito ao meio ambiente equilibrado.

    No plano internacional o reconhecimento dos chamados direitos humanos de terceira gerao, contribuiu significativamente para a insero desses direitos nas modernas Cartas Polticas. Nesse sentido, foi grande a influncia dos Tratados e de outros documentos internacionais, como a Declarao de Estocolmo e o Relatrio da Comisso Brundtlandt, no processo que culminou com a constitucionalizao do direito ao meio ambiente equilibrado, em nosso Pas.

    Prope-se neste trabalho, uma anlise interpretativa do preceito constitu-cional, atravs do qual o direito ao meio ambiente equilibrado foi reconhecido em nossa Carta Magna. Mais que um exerccio de hermenutica, pretende-se demonstrar que no sistema constitucional brasileiro, a norma que prev esse direito, tem natureza principial, conferindo a este, ainda, o status de direito fundamental.

    Uma anlise das peculiaridades inerentes nova hermenutica constitucional, contextualizam a anlise do princpio reconhecido, a partir das novas orientaes metodolgicas que podem levar sua efetiva concretizao.

    Esta abordagem se complementa com a anlise panormica de alguns julgados relativos matria, objetivando demonstrar a amplitude e relevncia que a matria adquire no Direito Pblico, contemporaneamente.

    1. Peculiaridades da Hermenutica Constitucional O tema da interpretao dos mais controvertidos na seara do Direito

    Constitucional. At meados do sculo XX, poucos autores enfrentaram essa temtica, que hoje adquire especial relevncia, sobretudo a partir da renovao introduzida no

    1 Professor da UFMT. Coordenador do Programa de Mestrado em Direito Agroambiental da UFMT. Procurador do Estado de Mato Grosso. Presidente do Instituto O Direito por um Planeta Verde.

  • IRIGARAY, C. T. H. . O direito ao Meio Ambiente Equilibrado e sua Interpretao Constitucional. In: Luiz Alberto Esteves Scaloppe. (Org.). Transformaes no Direito

    Constitucional. 02 ed. Cuiab: Fundao Escola, 2003, v. 2, p. 194-224

    Direito Constitucional com o advento da Constituio de Weimar, e tambm da atuao das Cortes Constitucionais que proliferam no mundo.

    Grande parte da resistncia tarefa de hermenutica constitucional, deveu-se ao positivismo jurdico, que equiparando Constituio e lei, excluiu da tarefa do intrprete a considerao dos princpios e valores que integram o contedo material da Constituio, e principalmente, dos direitos fundamentais.

    Bonavides observa que a insuficincia da velha hermenutica, aprisionada ao dedutivismo formalista, exclua da Cincia do Direito a considerao de princpios e valores, que formam o substrato estrutural da Constituio e sobretudo dos direitos fundamentais.

    Atribui Nova Hermenutica, uma mutao renovadora no constitucionalismo, com a criao cientifica de um novo Direito Constitucional, baseado em uma teoria material da Constituio, que rompe com o jusnaturalismo e o positivismo formalista, consagrando a tese de que a Constituio direito, e no idia, ou mero captulo da Cincia Poltica.

    Como bem assinala o citado autor, a Constituio mesmo a lei das Leis e o Direito dos Direitos; o cdigo de princpios normativos que fazem a unidade e o esprito do sistema, vinculado a uma ordem social de crenas e valores onde se fabrica o cimento de sua prpria legitimidade2.

    Esse reconhecimento marca uma ntida distino entre o velho Direito Constitucional e o constitucionalismo de renovao; na tradio do Estado liberal, o tema central para definio do Estado de Direito, era o da organizao jurdica dos Poderes; hoje o eixo principal se assenta na esfera dos direito fundamentais, o que levou alguns autores a identificar, na atualidade, uma hipertrofia desses direitos.

    Na verdade os direitos fundamentais, saram de uma posio secundria, onde permaneciam ossificados, o que repercutiu, naturalmente, no constitucionalismo, j que o desenvolvimento do contedo jurdico-objetivo dos direitos fundamentais, transformou a Constituio em ordenamento jurdico fundamental da sociedade, e no apenas do Estado. Bonavides aponta algumas consequncias desse processo:

    a) a irradiao e a propagao dos direitos fundamentais a toda a esfera do Direito privado; em rigor, a todas as provncias do Direito, sejam jusprivatistas, sejam juspubliscistas; b) a elevao de tais direitos categoria de princpios, de tal sorte que se convertem no mais importante plo de eficcia normativa da Constituio; c) a eficcia vinculante, cada vez mais enrgica e extensa, com respeito aos trs Poderes, nomeadamente o Legislativo; d) a aplicabilidade direta e a eficcia imediata dos direitos fundamentais, com perda do carter de normas programticas; e) a dimenso axiolgica, mediante a qual os direitos fundamentais aparecem como postulados sociais que exprimem uma determinada ordem de valores e ao mesmo tempo servem de inspirao, impulso e diretriz para a legislao, a administrao e a jurisdio; f) o desenvolvimento da eficcia inter privatos, ou seja, em relao a terceiros, com atuao no campo dos poderes sociais, fora, portanto, da rbita propriamente dita do poder Pblico ou do Estado, dissolvendo, assim, a exclusividade do confronto subjetivo imediato entre o direito individual e a mquina estatal; confronto do qual, nessa qualificao, os direitos fundamentais se desataram; g) a aquisio de um duplo carter, ou seja, os direitos fundamentais conservam a dimenso subjetiva da qual nunca podem se apartar, pois, se o fizessem, perderiam parte de sua essencialidade e recebem um aditivo, uma nova qualidade, um novo feitio, que

    2 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, 7 ed. So Paulo: Malheiros, 1988, p. 538

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    a dimenso objetiva, dotada de contedo valorativo decisrio, e de funo protetora to excelentemente assinalada pelos publicistas e juizes constitucionais da Alemanha; h) a elaborao do conceito de concretizao, de grau constitucional, de que se tm valido, com assiduidade, os tribunais constitucionais do Velho Mundo na sua construo jurisprudencial em matria de direitos fundamentais; i) o emprego do princpio da proporcionalidade vinculado hermenutica concretizante, emprego no raro abusivo, de que derivam graves riscos para o equilbrio dos Poderes, com os membros da judicatura constitucional desempenhando, de fato, e de maneira inslita, o papel de legisladores constituintes paralelos, sem possurem, para tanto, o indeclinvel ttulo de legitimidade; e j) a introduo do conceito de pr-compreenso, sem o qual no h concretizao3.

    Das conseqncias apontadas pelo autor, algumas merecem destaque pela importncia que adquirem no quadro terico do novo constitucionalismo; certamente uma das mais relevantes o reconhecimento do carter principiolgico dos direitos fundamentais. A Constituio passa a ser considerada como um sistema normativo aberto de regras e princpios4.

    Enquanto mandamentos nucleares do sistema, os princpios diferenciam-se das regras pelo seu maior grau de abstrao: por serem vagos e indeterminados, constituindo espaos livres para a complementao e desenvolvimento do sistema, por no se limitarem a aplicar-se a uma determinada e precisa circunstncia, podendo concretizar-se num sem nmero de hipteses. Caracterizam-se tambm, por conterem os valores polticos e sociais fundamentais ditados pela sociedade, concretizados em diversas normas da Constituio ou cuja concretizao a constituio impe5.

    Essa dimenso axiolgica dos direitos fundamentais, no lhes retira a aplicabilidade direta e a eficcia imediata; ao contrrio, estes se converteram no mais importante plo de eficcia normativa da Constituio, na medida em que conservam sua dimenso subjetiva, ostentando ainda, uma dimenso objetiva, com contedo valorativo decisrio.

    Decorre tambm dessa nova configurao dos direitos fundamentais, a elaborao do conceito de concretizao, como contribuio do mtodo concretista, que oferece importante contribuio para a hermenutica constitucional, na medida em que supera a idia de mera interpretao, pressupondo que ocorre verdadeiramente um processo de construo de uma norma jurdica, quando se considera os elementos intrnsecos e extrnsecos ao texto da norma.

    Outros mtodos foram desenvolvidos para a interpretao da Constituio, mesmo porque os mtodos clssicos de interpretao so insuficientes, para concretizar, realizar e aplicar os preceitos constitucionais.

    Na medida em que esses preceitos so elevados a um patamar hierrquico-normativo superior s demais regras, constituindo-se ademais, em princpios e regras com elevado nvel de abstrao e carter essencialmente dinmico, faz-se mister que a interpretao desses preceitos ocorra em sintonia com a realidade normada.

    Nesse sentido, a observao de Canotilho, o Direito Constitucional uma cincia normativa, que no pode abdicar de uma metodologia e metdicas especficas,

    3 Idem, ibidem, p. 542. 4 CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1992, p. 171. 5 CARVALHO, Mrcia Hayde P. de . Hermenutica Constitucional. Mtodos e princpios especficos

    de interpretao. Florianpolis: Livraria e Editora Obra Jurdica, 1997. p.28.

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    essencialmente dirigidas ao processo de concretizao e aplicao das normas constitucionais6.

    A doutrina alem oferece importante contribuio hermenutica constitucional. Nas obras de constitucionalistas alemes esto as bases dos mtodos de interpretao constitucional mais difundidos na atualidade.

    Em linhas gerais, posto que no constituem o tema central deste trabalho, os principais mtodos de interpretao empregados no Direito Constitucional contemporneo, so: o mtodo integrativo, o mtodo tpico, e o mtodo concretista.

    No mtodo integrativo, ou cientfico-espiritual, cuja construo deve-se, preponderantemente, a Rudolf Smend, a interpretao deve considerar o sistema de valores sobre o qual se assenta o texto constitucional; assim a interpretao deve partir de uma articulao integrativa entre o texto legal e os valores reais da sociedade.

    No caso de interpretao dos direitos fundamentais, h que se dar uma nfase ao elemento histrico, pois como enfatiza Smend7, o sistema que conforma os direitos fundamentais, um todo fundamentado e condicionado historicamente, devendo portanto, ser objeto de um estudo puramente histrico. Segundo ele, a jurisprudncia no pode prescindir deste estudo por trs razes. Em primeiro lugar, porque a legitimidade que proporciona o sistema dos direitos fundamentais constitui uma definio do ordenamento jurdico positivo, e porque uma das tarefas principais do direito consiste em concretizar o tipo e o grau de legitimidade que possui um ordenamento jurdico positivo. Em segundo lugar, porque possvel encontrar neles certas regras para a interpretao do Direito positivo. E por ltimo, porque os direitos fundamentais, por pertencerem ao Direito especial, somente podem ser aplicados como tais, partindo do contexto global no qual se inserem.

    Atribui ainda, o mtodo integrativo, relevncia ao esprito da Constituio, aos princpios polticos, assim como aos fatores extra-constitucionais, entre os quais, a realidade existencial do Estado.

    Outro mtodo de inegvel importncia no novo constitucionalismo, trata-se do mtodo tpico, desenvolvido por Theodor Viehweg e Esser, que preocupa-se com as premissas, avaliando os prs e contras de cada uma das solues possveis para os problemas, escolhendo desse cotejo, a interpretao mais adequada para cada caso.

    Para David Pardo8 pensar o problema constitui o mago da tpica em suas consideraes acerca do mtodo, voltado exclusivamente para a soluo 6 CANOTILHO, J. J. Gomes. Ob. Cit. p. 53. 7 Traduo livre. Na edio espanhola: El sistema que conforman los derechos fundamentales, entanto

    que son un todo fundamentado e condicionado historicamente, debe ser objeto de un estudio puramente histrico. La jurisprudencia no puede prescindir de este estudio por tres razones. En primer lugar, porque la legitimidad que proporciona el sistema de los derechos fundamentales constituye una definicin del ordenamiento jurdico positivo y porque una de las principales tareas del derecho consiste en concretar el tipo y el grado de legitimidade que posee un ordenamiento jurdico positivo. En segundo lugar, porque es possible encontrar en ellos ciertas reglas para la interpretacin del Derecho positivo. Y por ltimo, porque los derechos fundamentales, en tanto que pertencen ellos mismos ao Derecho especial, slo pueden ser aplicados como tales,partiendo del contexto global en el que se insertan. IN: SMEND,Rudolf. DerechoConstitucional y Constitucin.Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1985, p, 233.

    8 PARDO, David Wilson de Abreu. Interpretao Tpica e Sistemtica da Constituio. IN: DOBROWOLSKI, Slvio (Organiz.) A Constituio no mundo globalizado. Florianpolis: Diploma Legal, 2000, p.57

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    peculiarmente adequada a cada caso, pensado como um problema em toda a sua complexidade. Segundo o autor, argumenta-se em favor da tpica que esta veio dar luz aos problemas do positivismo legalista e sua desgastada frmula de subsuno dos casos s premissas genricas do ordenamento jurdico, numa mecnica automatizada em que ao intrprete no restaria muito o que fazer. Aps reconhecer a pertinncia das crticas que se faz ao dedutivismo, caracterstico dos mtodos hermenuticos tradicionais, especialmente no positivismo jurdico, David Pardo conclui que no se reveste a tpica de caractersticas jusnaturalistas ontolgicas, como se representasse a volta de interminvel debate jusfilosfico ocidental. Antes, porquanto volvida concretamente para solucionar problemas traz o inafastvel trao de uma abertura completa, compatvel com todas as direes possveis do pensamento jurdico-filosfico.

    Tambm o mtodo concretista, foi desenvolvido por juristas alemes. Konrad Hesse, Friedrich Mller e Peter Hberle desenvolveram a base dessa metodologia, enriquecida tambm com importantes contribuies da Jurisprudncia da Suprema Corte norte-americana.

    Com efeito, graas ao papel da Suprema Corte nos EUA, com uma tcnica de interpretao construtiva, de inspirao sociolgica, a Constituio americana, embora formalmente rgida pode tornar-se pelo aspecto material, extremamente flexvel, possibilitando uma transio do Estado liberal ao Estado social, sem rupturas.

    Para Marcia Hayd de Carvalho a tarefa de concretizao composta de vrias etapas ou nveis de compreenso da norma que se interpreta: 1) a compreenso prvia ou antecipada do intrprete; 2) a individualizao, que estabelece antecipadamente um entendimento do contedo da norma individualizada, e 3) a resoluo do respectivo problema. Observa ainda a autora que a grande importncia do mtodo concretista, deriva do fato de seus autores tentarem explicar a Constituio sem perda de sua eficcia, e como ela realmente se apresenta, com vnculos materiais indissolveis, de modo a superar o divrcio entre a Constituio formal e a Constituio material9.

    Nesse sentido enfatiza Hesse que (...) a interpretao tem significado decisivo para a consolidao e preservao da fora normativa da Constituio (...) Se o direito e, sobretudo, a Constituio, tm sua eficcia condicionada pelos fatos concretos da vida, no se afigura possvel que a interpretao faa deles tbula rasa. Ela h de contemplar essas condicionantes, correlacionando-as com as proposies normativas da Constituio10

    No existe para Hesse, interpretao in abstrato, ela sempre dependente de um problema concreto.

    Assegurar a fora normativa da Constituio tarefa prioritria, sobretudo nos Estados que se caracterizam por crise polticas recorrentes e constantes mutaes na ordem constitucional. Essa questo tanto mais relevante, quando envolve a hermenutica de direito fundamental; toda a fora normativa da Constituio, deve ser dirigida para torn-los efetivos. Concretizar os direitos fundamentais, implica em

    9 CARVALHO, Mrcia H. P. de. Op. cit. p.64 10 HESSE, Konrad. A fora normativa da Constituio. Trad. Gilvan Ferreira Mendes. Porto Alegre:

    Srgio Antonio Fabris Editor, 1991, p. 22.

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    dilatar e aperfeioar o contedo dos mesmos, adequando-os s mudanas ocorridas na sociedade, de modo a torn-los efetivos e atuais.

    Hberle enfatiza o tema da efetividade dos direitos fundamentais, assinalando que esses direitos se generalizam e sua eficcia vinculante j escalou o sentido de declarao de valor meramente programtico, que tinham as garantias clssicas, para subir ao degrau da vinculatoriedade imediata das clusulas de realizao, as quais, por via de tarefas de Estado, so honradas mediante desenvolvimento de novas dimenses conferidas aos direitos fundamentais: da verso individual e objetivo-institucional para o umbral da prestao processual e da obrigao da prestao processual11.

    Todavia, pondere-se que essa vinculariedade imediata no se traduz em efetividade espontnea; esta deve ser fruto de um trabalho de hermeneutas. Especificamente com os direitos fundamentais, esse processo mais complexo e envolve outras singularidades, porquanto construdos, em geral, por meio de preceitos vagos e abertos, que envolvem valores e definies de primazias. No propsito, a afirmao de no se interpreta os direitos fundamentais, concretiza-se.

    A verdade que esse processo de integrao e concretizao exige uma certa diligncia criativa, pressupondo, a vinculao a uma teoria dos direitos fundamentais, e em ltima instncia, a uma concepo do Estado, necessariamente ideolgica.

    Hans Koch assinala a complexidade e peculiaridade na interpretao dos direitos fundamentais, que possuem uma estrutura normativa singular, exigindo, freqentemente, decises de prioridade, o que ressalta a importncia do emprego do princpio da proporcionalidade, pelo exegeta. Para Koch, na hermenutica desses direitos devem ser considerados os seguintes aspectos:

    O crculo de proteo que deve envolver cada direito fundamental, as respectivas reservas de lei, as normas legais preenchedoras dessas reservas, as normas jurdicas infralegais, sobretudo os decretos, as normas de legislao procedimentais e de competncia e os demais mandamentos da Constituio, tais como o pertinente ao princpio do Estado de Direito12.

    Mrcia Hayde de Carvalho13 apresenta um catlogo de princpios, encontrados nos principais doutrinadores que se contriburam para a construo dos novos mtodos da hermenutica constitucional, e que merecem ser observados na interpretao dos direitos fundamentais:

    1) Princpio da Unidade Constitucional: O intrprete deve considerar a Constituio na sua globalidade, harmonizando os espaos de tenso existentes entre as normas constitucionais a concretizar;

    2) Princpio das Bases Principiolgicas: Deve ser dada nfase aos princpios, que esto na base do sistema constitucional;

    3) Princpio do Efeito Integrador: Recomenda a priorizao da interpretao que favorea a integrao poltica e social e possibilitem o reforo da unidade poltica;

    4) Princpio da Proporcionalidade: Essencial proteo dos direitos fundamentais, compe-se dos seguintes sub-princpios: a) Adequao - busca do meio 11 HBERLE, P. Efectividade de los Derechos Fundamentales en el Estado Constitucional de los

    Derechos Fundamentales: Alemania, Espaa, Francia e Italia. Apud: BONAVIDES, Paulo. Ob. cit. p. 549.

    12 Koch, Hans. Die Breguendung von Grudrechtsinterpretionen. Apud: BONAVIDES, Paulo. Op. cit. p. 545.

    13 CARVALHO, Mrcia Hayde de. Ob. Cit. p. 71/79.

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    adequado para a realizao do interesse pblico; b) Necessidade - deve-se escolher o meio menos nocivo ao interesse dos cidados; c) Proporcionalidade stricto sensu - deve-se escolher o meio que, no caso especfico, melhor atenda ao conjunto de interesse em jogo;

    5) Princpio da Concordncia Prtica ou da harmonizao: Deve-se estabelecer limites e condicionamentos recprocos de modo a se conseguir uma harmonizao ou concordncia prtica entre os bens constitucionais;

    6) Princpio da Fora Normativa da Constituio: Deve-se dar preferncia aos pontos de vistas que possibilitem a atualizao da norma constitucional, garantindo a sua eficcia e permanncia;

    7) Princpio da Mxima Efetividade das Normas: Na Constituio no devem existir normas tidas por no jurdicas. norma constitucional deve ser atribudo o sentido que mais eficcia lhe d;

    8) Princpio do Contedo Implcito das Normas Constitucionais: Deve-se considerar tambm o contedo implcito das normas constitucionais;

    9) Princpio da Constitucionalidade Material: A interpretao deve aproximar a Constituio da realidade sobre a qual atua;

    10) Princpio da Constituio Aberta: Sendo a Constituio aberta, sua interpretao tambm dever s-lo;

    11) Princpio do Respeito ao Esprito e Ideologia da Constituio: um erro interpretar a Constituio sem levar em conta seu manancial poltico e ideolgico;

    12) Princpio da Obedincia Supremacia das Normas Constitucionais: A interpretao da Constituio pode ser conciliada com a legislao infraconstitucional, mas no pode ser restringida ou alterada por ela;

    13) Princpio da Excepcionalidade da Interpretao Restritiva: O critrio da interpretao restritiva uma excepcionalidade e s deve ser adotado, quando houver na prpria regra ou em outras regras constitucionais, um interesse especfico a ser protegido;

    14) Princpio da Imperatividade das Normas Constitucionais: os preceitos constitucionais so quase que invariavelmente imperativos;

    15) Princpio do Sentido Usual das Normas Constitucionais: As palavras expressas no texto constitucional devem ser tomadas em seu sentido usual, exceto quando dessa interpretao decorra contradies ou ambigidades;

    16) Princpio do Sistema Constitucional: os conceitos exgenos ao texto da Constituio, desde que nele inseridos, devem ser interpretados a partir do sentido que adquirem com sua insero no sistema constitucional.

    Konrad Hesse, tambm enumera alguns princpios da interpretao constitucional, que segundo ele possuem significado dirigente e limitador para a considerao dos pontos de vista a serem elaborados, quando da resoluo do problema. Segundo ele, devem ser empregados: o princpio da unidade da Constituio; o princpio da concordncia prtica; o critrio da exatido funcional; o princpio da relevncia dos pontos de vista elaborados, ou critrio do efeito integrador, e o princpio da fora normativa da Constituio.

    Sobre esse ltimo princpio, Hesse observa que (...) como a Constituio quer ser atualizada, mas as possibilidades e condies histricas dessa atualizao se transformam deve, na resoluo de problemas jurdico-constitucionais, ser dada a preferncia queles pontos de vista que, sob

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    os respectivos pressupostos, proporcionem s normas da Constituio fora de efeito timo14.

    Importante assinalar, que especificamente para a hermenutica dos direitos fundamentais, adquirem relevo, os princpios, da unidade constitucional, das bases principiolgicas, da proporcionalidade, da fora normativa da Constituio e da mxima efetividade de suas normas.

    Pode-se afirmar que a interpretao constitucional converteu-se em um importante instrumento de valorizao da Constituio, podendo contribuir sobremaneira para esta tenha ampliada sua fora normativa; e ela exerce tanto mais esta funo, quanto mais promova a materializao, no plano ftico, dos preceitos fundamentais, tornando reais e concretos os direitos constitucionalmente reconhecidos.

    Cabe hermenutica, uma importante misso de aproximar o texto da Constituio a seus destinatrios, forjando um sentimento constitucional que possa contribuir para a concretizao dos princpios nela consagrados.

    Valiosa a ponderao de Osmar Medeiros: O direito relao, e como relao deve estar ao alcance e disposio da sociedade para a qual pertence. No meio de um ordenamento jurdico eminentemente elitista e de cunho patrimonial, cuja classe majoritria lembrada com maior alcance apenas no Cdigo Penal, na Constituio que est o seu instrumento emancipatrio, ao qual deve ter amplo acesso, e o qual deve servir de fundamento e apoio a todas as suas lutas mais prementes. A Constituio, documento a ser levado s massas em atendimento s suas necessidades fundamentais, e das massas nascer conforme a realidade, numa dialtica onde o veculo interpretativo, mormente por parte daqueles operadores jurdicos que esto em contato direto com a populao, tem importncia definitiva. No basta dizer o direito, preciso viver o Direito e dar vida a este atravs da prxis, de forma emancipatria e participativa, sem que com isso signifique descurar de sua normatividade15.

    Essa exortao ainda mais apropriada, quando a hermenutica se volta para a interpretao de uma norma constitucional, conformadora do direito ao meio ambiente sadio, que vem associado previso do dever de conserv-lo.

    No Captulo seguinte, o dispositivo constitucional que prev esse direito analisado, visando demonstrar a extenso de seu contedo, e sua natureza jurdica, enquanto norma de direito fundamental.

    2. O Direito ao meio ambiente equilibrado como direito fundamental A previso constitucional de direitos, cuja titularidade difusa e

    indeterminada um fenmeno recente e representa uma tendncia do constitu-cionalismo contemporneo que vem ampliando a proteo coletividade com a incorporao de novos valores que emergem da crescente complexidade da vida social.

    Martin Mateo reconhece que o aspecto ideolgico foi um fator decisivo na constitucionalizao do direito ao meio ambiente equilibrado, alertando para o risco

    14 HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da Repblica Federal da Alemanha. Trad.

    Luis Heck. Porto Alegre: Srgio Antonio Fabris, 1998, p. 68 15 MEDEIROS, Osmar Fernando de. Concretizao Hermenutica da Constituio: na Busca de uma

    Tpica Vivel. IN: DOBROWOLSKI, Slvio. Ob. cit., p. 100.

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    Constitucional. 02 ed. Cuiab: Fundao Escola, 2003, v. 2, p. 194-224

    de que por trs do modismo em que se converteu a matria ambiental, ocultem responsabilidades e interesses em jogo. No h como negar que uma eficaz proteo do equilbrio ecolgico pressupe a adoo de medidas com repercusso social, vale dizer, fundadas em critrios ideolgicos.

    Defender o meio ambiente pois, uma deciso eminentemente poltica, embora as justificativas para escolha de uma ou outra estratgia de ao possa, isto sim, vir mascarada.

    Partilhando dessa mesma opinio, Javier Galvez.16 salienta que as distintas orientaes ideolgicas sobre o particular tem servido para substancializar o tema, evitando que se converta em constitucionais as prescries sobre o meio ambiente simplesmente para proteg-las por razes prticas frente ao legislador ordinrio. Sua insero nesse terreno no decorre apenas da necessidade de se levar ao convencimento da necessidade de constitucionalizar os problemas ambientais, mas sim precisar que esta matria reveste-se de fundamental significao, o que justifica a garantia de sua rigidez constitucional.

    Esse componente ideolgico foi igualmente analisado por Siqueira Castro que assinalou ser, o movimento ecolgico, a ltima porta aberta para a inalcanada unio dos homens, a esperana que restou para a utopia da sociedade fraterna e autogestionria"; assinalou tambm, com propriedade, que

    (...) a ideologia do ecossistema, ao contrrio daqueles reinados da filosofia poltica e existencialista, no traduz uma opo voluntria e facultativa, em face das valoraes individuais acerca do papel do homem no tempo e no espao. Traduz, sim, uma ideologia compulsria e decisiva, fadada a condicionar para sempre as formas de vida na terra e a prpria sobrevivncia da espcie humana17.

    O reconhecimento constitucional do direito ao meio ambiente sadio e equilibrado, efetivou-se com o advento da Constituio Federal, promulgada em 1988, que contempla esse direito em seu artigo 225, verbis:

    Art. 225 Todos tm direito ao meio ambiente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial sadia qualidade de vida impondo-se ao Poder Pblico e coletividade o dever de defend-lo e preserv-lo para as presentes e futuras geraes. 1 Para assegurar a efetividade desse direito incumbe ao Poder Pblico: I - preservar e restaurar os processos ecolgicos essenciais e prover o manejo ecolgico das espcies e ecossistemas; II - preservar a diversidade e a integridade do patrimnio gentico do pas e fiscalizar as entidades dedicadas pesquisa e manipulao de material gentico; III - definir , em todas as unidades da Federao, espaos territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alterao e a supresso

    16 Traduo livre. GALVEZ, Javier. Comentrios a la Constitucion, Org. FALLA, Fernando Garrido.

    Editorial Civitas, Madrid, 1985, p. 811(No original: "las distintas orientaciones ideolgicas sobre el particular han servido para sustancializar el tema, evitando que se convirtieran en constitucionales las prescripciones sobre el medio ambiente simplesmente para protegerlas por razones prcticas frente ao legislador ordinario. Su aportacin en dicho terreno no ha consistido tan slo en llevar al convencimiento de la necesidad de constitucionalizar los problemas del medio ambiente, sino en precisar que esta materia reviste una significacion fundamental que justifica la garantia de su rigidez constitucional").

    17 CASTRO, Carlos R. de Siqueira. O Direito Ambiental e o Novo Humanismo Ecolgico, Revista Forense n 317, Rio de Janeiro, Forense, 1992, p. 65.

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    permitidas somente atravs de lei, vedada qualquer utilizao que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteo; IV - exigir, na forma da lei, para instalao de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradao do meio ambiente, estudo prvio de impacto ambiental, a que se dar publicidade; V - controlar a produo, a comercializao e o emprego de tcnicas, mtodos e substncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente; VI - promover a educao ambiental em todos os nveis de ensino e a conscientizao pblica para a preservao do meio ambiente; VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as prticas que coloquem em risco sua funo ecolgica, provoquem a extino de espcies ou submetam os animais crueldade; 2 Aquele que explorar recursos minerais fica obrigado a recuperar o meio ambiente degradado, de acordo com soluo tcnica exigida pelo rgo pblico competente, na forma da lei. 3 As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitaro os infratores, pessoas fsicas ou jurdicas, a sanes penais e administrativas, independentemente da obrigao de reparar os danos causados. 4 A Floresta Amaznica brasileira, a Mata Atlntica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira so patrimnio nacional e sua utilizao far-se-, na forma da lei, dentro de condies que assegurem a preservao do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais. 5 So indisponveis as terras devolutas ou arrecadadas pelo Estado, por aes discriminatrias necessrias proteo dos ecossistemas naturais. 6 As usinas que operem com reator nuclear devero ter sua localizao definida em lei federal, sem o que no podero ser instaladas.

    Observa Jos Afonso da Silva18 que o dispositivo constitucional que integra o Captulo reservado ao meio ambiente em nossa Constituio federal compreende trs conjuntos de normas.

    O caput do art. 225 compreende a norma matriz, (norma-princpio) onde est cristalizado o direito de todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

    No pargrafo 1, com seus incisos, esto consignados os instrumentos de garantia da efetividade do direito assegurado no caput do artigo. Constituem, na acepo do autor, normas-instrumentos da eficcia do princpio, que conferem ao Poder Pblico os princpios e instrumentos para sua atuao na garantia do citado direito.

    Os demais pargrafos do art. 225 compreende um conjunto de determinaes particulares, relacionadas a alguns setores considerados primordiais pelo Constituinte.

    Como assinalado, o reconhecimento do carter principiolgico dos dispositivos constitucionais orientados para a proteo do meio ambiente, reveste-se de importncia, na medida em que estes repercutem sobre as demais normas do sistema, alm de exercerem grande influncia na interpretao do direito.

    lvaro Luiz Valery Mirra assinala que os princpios definem e cristalizam determinados valores sociais, e vinculam toda a atividade de interpretao e aplicao do Direito. So eles que fixam a unidade e coerncia das normas que integram o sistema legislativo ambiental, servindo de critrio bsico para a exata inteligncia e interpretao de tais normas. 18 SILVA, Jos Afonso. Direito Ambiental Constitucional. So Paulo: Malheiros Editores, 1994, p. 31.

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    Dos dispositivos constitucionais atinentes matria ambiental, lvaro Mirra19 extrai os seguintes princpios jurdicos positivados:

    1. Princpio da indisponibilidade do interesse pblico na proteo do meio ambiente: Enquanto bem de uso comum do povo (art. 225/CF) o meio ambiente um bem que pertence coletividade e no integra o patrimnio disponvel do Estado;

    2. Princpio da interveno estatal obrigatria na defesa do meio ambiente: Decorre da natureza indisponvel do meio ambiente;

    3. Princpio da participao popular na proteo do meio ambiente: Ainda o art. 225, caput da Constituio Federal atribui tambm coletividade o dever de proteger o meio ambiente;

    4. Princpio da garantia do desenvolvimento econmico e social ecologicamente equilibrado: A ordem econmica deve observar o princpio da defesa do meio ambiente (art. 170, VI/CF);

    5. Princpio da funo social e ambiental da propriedade: reconhecida na Constituio federal nos arts. 5, inc. XXIII, 170, inc. III e 186, inc. II;

    6. Princpio da avaliao prvia dos impactos ambientais das atividades de qualquer natureza: Expresso no art. 225 1, inc. IV, da Constituio Federal;

    7. Princpio da responsabilizao das condutas e atividades lesivas ao meio ambiente: A Constituio Federal prev, no caso de danos causados ao meio ambiente, a responsabilizao civil, administrativa e penal dos infratores, cumulativamente (art. 225 3);

    8. Princpio do respeito identidade, cultura e interesses das comunidades tradicionais e grupos formadores da sociedade: decorre de previso expressa no art. 216 da Constituio Federal.

    Cumpre assinalar, que os princpios elencados por lvaro Mirra, decorrem de um direito fundamental, reconhecido no caput do art. 225 da Constituio Federal. Reside nessa norma um princpio constitucional impositivo20, na medida em que o reconhecimento de um direito fundamental est associado imposio, ao Estado e coletividade, de tarefas necessrias sua efetivao.

    Cumpre observar ainda que a previso do direito ao meio ambiente equilibrado, associado ao dever de conserv-lo, representa historicamente, o reconhecimento de um interesse difuso, que somente agora ganha, entre ns, status constitucional21.

    Rodolfo Mancuso, em obra anterior Constituio, j observara que os interesses difusos, assim como as liberdades pblicas, de um estgio fluido, ascenderam ordem normativa e, mais recentemente esto sendo guindados a uma

    19 MIRRA, lvaro Luiz Valery. Princpios Fundamentais de Direito Ambiental. Revista de Direito

    Ambiental vol. 2. So Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1996, p. 54 e ss. 20 Observada a classificao proposta por Canotilho (ob. cit) 21 Rodolfo Mancuso conceitua, analiticamente, os interesses difusos, observando que so "interesses

    metaindividuais que no tendo atingido o grau de agregao e organizao necessrio sua afetao institucional junto a certas entidades ou rgos representativos dos interesses j socialmente definidos, restam em estado fluido dispersos pela sociedade civil como um todo, podendo, por vezes, concernir a certa coletividade de contedo numrico indefinido". (in: Interesses Difusos, So Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1988, p. 105).

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    posio hierrquico normativa superior, sendo reconhecidos em inmeros textos constitucionais22.

    Esse processo ocorreu em nosso pas, com relativa celeridade, talvez sob o influxo de importantes documentos internacionais que tratam do tema, assim como a influncia das Cartas Constitucionais promulgadas em vrios pases, aps a II Guerra Mundial.

    Assim, a redao adotada pelos Constituintes brasileiros, ao assegurarem, na

    Carta Magna, o interesse ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, acompanha a recomendao da Organizao das Naes Unidas, consubstanciada na clebre Conferncia realizada em Estocolmo (1972).

    No houve pois, nesse aspecto pioneirismo na Constituio brasileira de 1988, j que tanto nos Princpios da Declarao de Estocolmo, como no Pacto Internacional dos Direitos Econmicos, Sociais e Culturais firmado em Nova Iorque, no ano de 1975, o reconhecimento do direito ao meio ambiente equilibrado, vem associado previso do dever de conserv-lo.

    Constam da Declarao do Meio Ambiente, adotada pela Conferncia das Naes Unidas, em Estocolmo(1972), entre outros, os seguintes princpios:

    Princpio I O homem tem o direito fundamental liberdade, igualdade e ao desfrute de condies de vida adequada em um meio cuja qualidade lhe permite levar uma vida digna e gozar de bem-estar e tem a solene obrigao de proteger e melhorar esse meio para as geraes presentes e futuras. (...) Princpio II Os recursos naturais da terra inclusos o ar, a gua, a terra, a flora e a fauna e especialmente as amostras representativas dos ecossistemas naturais devem ser preservados em benefcio das geraes presentes e futuras, mediante uma cuidadosa planificao ou regulamentao segundo seja mais conveniente.23

    Essa formulao, conjugando o direito/dever foi adotada tambm pela Constituio portuguesa de 1976 ( art. 66,1 ) e, posteriormente, pela Constituio espanhola de 1978 ( art. 45,1 ). Em ambas coexistem o direito positivo ao estatal e o direito negativo absteno de aes lesivas ao meio ambiente.

    Assinala, a propsito, Jos Afonso da Silva24: A Declarao de Estocolmo abriu caminho para que as constituies supervenientes reconhecessem o meio ambiente ecologicamente equilibrado como um direito fundamental entre os direitos sociais do homem, com sua caracterstica de direitos a serem realizados e direitos a no serem perturbados.25

    22 Esse processo de constitucionalizao dos interesses difusos fora por ele antevisto, quando afirmou:

    "Poder haver um momento no qual um interesse difuso, fora de ser continuamente revelado e exercitado no seio da comunidade, venha a ganhar foros de uma liberdade pblica, a nvel constitucional, expressa ou implicitamente" (in MANCUSO, Rodolfo, ob. cit. p.85).

    23 Declarao Sobre o Ambiente Humano. Coletnea da Legislao Federal do Meio Ambiente. Braslia: IBAMA, 1992, p. 25.

    24 SILVA, Jos Afonso. Ob. Cit., p. 44. 25 Comentando tambm essa dupla dimenso do direito ao ambiente na Constituio portuguesa,

    Canotilho e Vital Moreira ressaltam que esse preceito "reconhece e garante expressamente a dupla natureza implcita na generalidade dos chamados direitos sociais, simultaneamente direitos a serem realizados e direitos a no serem pertubados (in CANOTILHO, J. J. Gomes & MOREIRA, Vital. Constituio da Repblica Portuguesa Anotada, 2 edio, vol. I, Coimbra Editora, 1984, p. 348).

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    No outra a concluso de Galves26, para quem esta explcita conjuno entre direito e dever se deve tanto a exigncias tcnico jurdicas da articulao do preceito em relao ao que lhe seguem, como a postulados que derivam da prpria mecnica do meio ambiente. Com efeito, para desfrutar de um determinado meio ambiente imprescindvel a esta finalidade a participao ativa do meio humano, relacionado permanentemente ou ocasionalmente com o meio ambiente em questo.

    O caput do artigo 225 constitui-se num verdadeiro pice do captulo dedicado questo ambiental na Constituio Federal, o qual, por sua abrangncia e preciso tcnica, veio incorporar-se na ampla maioria das Constituies estaduais.

    Nesse dispositivo dois aspectos estruturais de grande repercusso jurdica merecem ser salientados. Ao reconhecer o direito ao meio ambiente equilibrado, os constituintes conjugaram a locuo "todos" com a expresso "geraes presentes e futuras".

    Conquanto essa conjugao guarde estreita relao com as recomendaes aprovadas por ocasio da Conferncia de Estocolmo, a previso constitucional de um interesse difuso, com tal dimenso, possui consequncias no plano jurdico que exigem detido exame.

    De longe, a mais importante est na legitimao internacional para a defesa ambiental, com o conseqente redimensionamento do clssico conceito de soberania e implicaes tambm no direito processual ptrio. A "todos" assegura a Constituio o direito previsto no art. 225 da Constituio, incluindo a estrangeiros, pessoas fsicas ou jurdicas, sem qualquer distino27.

    Ao constitucionalizar esse direito, a Assemblia Constituinte no o restringiu a brasileiros e estrangeiros aqui residentes, estendeu-o a todos, permitindo desse modo que entidades ambientalistas de outros pases possam acionar no Brasil qualquer agente poluidor.

    A experincia j demonstrou que os problemas ambientais desconhecem fronteiras, repercutindo no raramente em pases vizinhos, ou mesmo distantes, como nos exemplos das chuvas cidas provocadas pelas indstrias siderrgicas do meio oeste americano que atingem as florestas canadenses, ou mesmo, a contaminao radioativa, conseqncia de acidente nuclear da Ucrnia, que atingiu Sucia e Esccia. Conciliar esta nova realidade, caracterizadora de uma ecologia transnacional28, com ordenamentos jurdicos nacionais baseados no conceito

    26 Traduo livre. GALVEZ, Javier. Comentrios a la Constitucion. In FALLA, Fernando Garrido el

    alli , Madrid: Civitas, 1985, p. 811 (No original: "Esta explcita conjuncin entre derecho e deber se debe tanto a exigencias tecnico jurdicas de la articulacin del precepto en relacin con los dos inmediatos que le siguen, como a postulados que derivam de la propria mecanica del medio ambiente. En efecto, para desfrutar de un determinadi medio ambiente es imprescindible a esta finalidade la participacion activa del medio humano relacionado permanente u ocasionalmente com el medio ambiente en cuestin").

    27 Embora a expresso "todos" compreenda, face a sistemtica jurdica atual, apenas os humanos, nicos titulares de direitos, j se pondera serem tambm os outros animais detentores do direito ao meio ambiente equilibrado. Conquanto tal debate transcenda para o plano filosfico, a questo tomou contorno jurdico com o voto vencido do Ministro Douglas da Suprema Corte americana que "exigiu legitimidade de pedir no s para as rvores e aves como tambm em nome de matrias inanimadas prestes a serem espoliadas" (in GUIMARES JR. Renato, ob. cit., p. 165).

    28 A expresso ecologia transnacional cunhada por PETER F. DRUCKER, designa esse fenmeno da atualidade: a conscincia ecolgica e as polticas ecolgicas j transcendem as fronteiras nacionais. Druker reconhece que a proteo do meio ambiente hoje requer leis ecolgicas internacionais,

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    tradicional de soberania, tem criado alguns problemas jurdicos, como ocorrido no Brasil, ainda antes do advento da Carta de 1988.

    Entre ns, um tpico exemplo de conflito transnacional, deu-se no curso da construo da usina nuclear de Angra dos Reis, quando associaes ambientalistas americanas propuseram, em Washington, a ao civil n 1.867/72, contra o Secretrio de Estado americano, o Banco de Exportao-Importao e a extinta Comisso de Energia Atmica, visando impedir a exportao de reatores e combustveis nucleares at que fosse processado o estudo de impacto ambiental. Embora j iniciadas as obras, o estudo de impacto ambiental foi feito e a ao civil julgada ao final procedente.

    Esse fato ocorrido a quase duas dcadas e pouco conhecido no Brasil, pelo inexplicvel sigilo com que se trata, ainda hoje, a questo nuclear, motiva-nos a conjecturar acerca do destino de tal demanda se proposta em nosso pas, antes da promulgao da Constituio, que reconheceu legitimao internacional para a defesa do meio ambiente.

    De qualquer forma, a Constituio Federal reconheceu, com a redao dada ao dispositivo em exame, a responsabilidade internacional por danos ao meio ambiente, j anteriormente prevista na Declarao de Estocolmo, que contempla em seu postulado 21 a "causa indenizatria governamental".

    Ainda quando ao "caput" do art. 225, outro aspecto relevante a "solidariedade diacrnica com as geraes futuras", expressa na parte final do dispositivo e que guarda curiosa similitude com o "Goa Guidelines on Intergenerational Equity", publicado tambm de 1988 pela Organizao das Naes Unidas.

    O documento da ONU sintetiza toda uma construo doutrinria hoje conhecida como Teoria da Eqidade Intergeraes, reforando, em bom momento, a necessidade de se preservar o patrimnio natural para as geraes futuras.

    No campo terico, advogando a existncia de um fideicomisso entre geraes Edith Brow Weiss notabilizou-se internacionalmente ao defender a instituio de um "ombudsman" para as futuras geraes.

    No faltam crticas a essa eqidade entre geraes; a principal delas se baseia no crescente desenvolvimento tecnolgico que poder, no futuro, recuperar danos ambientais hoje tidos como irreversveis. Ora, se o conceito de dano irreversvel pode eventualmente ser relativo, no autoriza tal constatao, o saque aos recursos naturais sem solidariedade s futuras geraes, mesmo porque a extino de espcies sem margem de dvidas, irreversvel.

    A sugesto de Weiss, inserida no documento de Goa, parcialmente suprida em nossa Constituio com o fortalecimento do Ministrio Pblico. As demais recomendaes do guia sobre eqidade intergeraes guardam igualmente grande semelhana com os incisos do artigo 225 1, da Carta Magna Nacional .

    Vale acrescentar que, ao reconhecerem o direito ao meio ambiente equilibrado, no definiram os Constituintes o que seja meio ambiente, subsistindo destarte, o conceito normativo dado pela Lei que define a Poltica Nacional do Meio Ambiente (Lei n 6.938/81), ao qual se acrescenta nos termos do preceito

    advertindo: "Somente acordos transnacionais podero impedir, quanto mais reverter, a destruio ambiental nos pases em desenvolvimento" ( in Novas Realidades, Pioneira, p. 112 ).

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    constitucional, tratar-se de bem de uso comum do povo e essencial sadia qualidade de vida29.

    Como consectrio dessa ampliao, alm do expresso dever de defesa e preservao do meio ambiente imposto coletividade, a doutrina ressalva a existncia de limites aos utentes desses bens de uso comum, assinalando que o uso comum geral, por sua prpria essncia, supe nele a compatibilidade de todos os cidados. Como complementar a este princpio de compatibilidade deve reger o de prioridade, sempre que mediante este o uso geral se converta em abusivo, e tendo em conta que subsiste sempre a possibilidade da Administrao em regular a forma desse uso, afim de alcanar melhor a compatibilidade.30

    Compatibilizar o uso dos recursos naturais com a preservao do meio ambiente equilibrado, em um pas que detm inmeros records em matria de degradao, trata-se de um desafio no apenas para a o Poder Pblico, mas tambm para a coletividade.

    A Constituio reconhece o direito-dever de desfrutar-preservar de um meio ambiente sadio, fornecendo ademais novas ferramentas para a efetivao desse direito; resta cada brasileiro a responsabilidade de exercer efetivamente sua cidadania, reconhecendo como intrnseca a essa tarefa, a defesa de nosso patrimnio natural.

    Importante ressaltar que a participao poltica do cidado, em defesa da qualidade de vida pode se efetivar, hoje, em vrias instncias, que vo desde a iniciativa legislativa, at a presena em rgos colegiados, em audincias pblicas e a propositura de aes populares, mandado de segurana coletivo entre outros remdios judiciais.

    Todavia, malgrado o inegvel avano, a previso constitucional do direito ao meio ambiente equilibrado, inserida na Carta de 1988, no significa, de per si a soluo para os dramticos problemas ambientais do pas.

    Em verdade, a questo da eficcia dessas normas de proteo ambiental consagradas nas novas Constituies, envolve algumas questes complexas. Foroso reconhecer que, do ponto de vista da normatividade no se pode estabelecer uma hierarquia entre esses dispositivos e aqueles que consagram os direitos e garantias individuais. No dizer de Canotilho, o direito ao meio ambienta equilibrado um autntico "direito subjetivo inerente ao espao existencial do cidado".

    Adverte porm o mestre portugus, que embora se possa reconhecer nesse direito a mesma densidade subjetiva dos direitos, liberdades e garantias; distinguem-se do ponto de vista da operatividade, na medida em que esses novos preceitos ao

    29 A expresso "bem de uso comum do povo" corresponde no direito espanhol expresso "bem de uso

    comum geral". Trata-se de categoria que pode ser deduzida pela prpria natureza do bem, em concreto, no suscitando maiores indagaes, embora deva-se admitir que o exame da natureza jurdica do direito dos particulares a esse uso comum constituiu-se em tema de longa controvrsia, superado hoje com a introduo do conceito de interesse difuso. Sobre essa polmica doutrinria ver: AMARAL, Diogo Freitas do. A Utilizao do Domnio Pblico Pelos Particulares. Lisboa: Coimbra Editora, 1965.

    30 Traduo livre de GAMIR, R. Parejo & OLIVER, J. M. Rodrigues. Leciones de Domnio Pblico. Madrid: Libreria ICAI, 1976, p. 53 (No original: "el uso comm general, por prpia esencia, supone la compatibilidad en l de todos los ciudadanos. (...) Como complementrio a este principio de compatibilidad deve regir el de prioridad, siempre que mediante ste el uso general no se convierta en abusivo, y teniendo en cuenta la possibilidad de la Administracion, subsistente siempre, de regular, la forma de dicho uso a fin de lograr mejor la compatibilidad).

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    invs de se articularem enquanto pretenso de omisso, exigem, ao contrrio, uma interveno ativa do Poder Pblico como forma de proteger o interesse difuso assegurado pela norma.

    Outra particularidade, apontada por Canotilho, refere-se ao fato de que os direitos sociais, entre os quais inclui o autor o direito ao meio ambiente e a qualidade de vida, no se traduzem em justiciabilidade imediata, mas sim no "estabelecimento de imposies constitucionais dirigidas fundamentalmente aos rgos de direo poltica, dependendo, por conseguinte, das vrias estratgias polticas tendentes concretizao dos fins e tarefas constitucionalmente definidos".

    Como decorrncia dessas especificidades, ressalta Canotilho que "o problema da operatividade dos direitos econmicos, sociais e culturais confronta-se com a relativizao destes mesmos direitos, pois uma otimizao dos direitos a prestaes pressupe a "interpositio" do legislador e a subordinao da efetividade concreta dos direitos em questo a uma "reserva econmica do possvel", eventualmente interpretada pelos rgos de direo poltica segundo os modelos poltico-econmicos portadores dos seus programas de ao.31

    Destarte, embora se possa reconhecer que o direito ao meio ambiente equilibrado no tenha uma normatividade diminuda em face das garantias previstas tambm na Constituio, foroso admitir que a realizao desse direito esbarra em complexos problemas de operatividade prtica, e

    (...) embora ao dever jurdico-constitucional do legislador no corresponda uma pretenso jurdico-subjetiva, autonomamente acionvel, o legislador no pode deixar de suportar uma censura de intensidade equivalente interferncia ou coao ilcita no mbito dos direitos, liberdades e garantias32.

    Outro aspecto, igualmente relevante, est no reconhecimento do direito ao meio ambiente sadio, como um dos direito fundamentais, abrangido portanto, pela proteo reservada ao ncleo intangvel da Constituio Federal.

    Com efeito, nossa Carta Magna estabeleceu em seu art. 5 2, que os direitos e garantias nela expressos no excluem outros decorrentes dos princpios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que o Pas seja signatrio, conforme estabelecido no dispositivo retro:

    Art. 5 (...) 2 Os direitos e garantias expressos nesta Constituio no excluem outros decorrentes do regime e dos princpios por ela adotados ou dos tratados internacionais em que a Repblica Federativa do Brasil seja parte.

    Aplica-se na interpretao desse dispositivo, o princpio do contedo implcito das normas constitucionais, para considerar que integra o rol dos direitos fundamentais, aqueles explicitamente arrolados no artigo 5 da Constituio Federal, como tambm aqueles implicitamente assim considerados.

    Alm de constar do Ttulo reservado Ordem Social, na Constituio brasileira, e nessa condio, poder ser considerado um direito social, o direito ao meio ambiente equilibrado insere-se entre os direitos fundamentais, tambm por fora da j

    31 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional, Coimbra: Almedina, 1986, p. 512. 32 Uma primeira reao possvel, nessa hiptese, segundo o constitucionalista portugus, o

    desencandeamento do processo de inconstitucionalidade por omisso (in CANOTILHO, J. J. Gomes. Idem. Ibidem).

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    mencionada Declarao do Meio Ambiente, adotada pela Conferncia das Naes Unidas, em Estocolmo (1972).

    Enquanto direito fundamental, o direito ao meio ambiente equilibrado deve ser considerado tambm como clusula ptrea, no podendo ser objeto de deliberao, a proposta de emenda tendente a aboli-lo (art. 60 4, IV).

    Com efeito, no supramencionado dispositivo, a Constituio Federal de 1988 prev um elenco de clusulas tambm denominadas de super-constitucionais, atravs de um compromisso maximizador que permitiu a constitucionalizao de variados interesses de demandas substantivas.

    Trata-se de um tema tormentoso, na esfera do Direito Pblico. Segundo Oscar Vieira33, esse processo (infrao constituinte) uma resposta s diversas experincias autoritrias de nossa histria; alerta porm, o autor, que esse engessamento da ordem jurdica cria limitaes dinmica social abrindo espao para freqentes rupturas34 .

    Observa ainda que esses dispositivos super-constitucionais, se mal formulados ou interpretados podem constituir-se em instrumento antagnico democracia, mas se bem construdos e aplicados, podero favorecer a continuidade da jornada. Para Oscar Vieira, devem merecer a proteo super-constitucional:

    1. os direitos que conferem autonomia privada a cada indivduo, bem como as garantias necessrias para que essas liberdades sejam preservadas;

    2. a instituio do estado de Direito, que garanta o princpio da legalidade; 3. um rol de direitos essenciais para que a igualdade e dignidade dos

    cidados, enquanto seres racionais e autnomos seja mantida, e 4. os direitos sociais, econmicos e culturais bsicos. Certamente o direito ao meio ambiente equilibrado, deve ser considerado no

    rol dos direito essenciais para a preservao da vida e da dignidade do ser humano. Com efeito, no podemos nos esquecer, que a proteo legal do meio

    ambiente, iniciou-se no nosso Pas, a partir do momento em que os nveis de poluio e contaminao, na cidade de Cubato, provocaram o nascimento de crianas com alteraes mutagnicas, incluindo o nascimento de fetos sem crebro. Tambm no demais lembrar, que os desequilbrios ambientais, podem comprometer a prpria continuidade da vida na terra, conforme o repetido alerta de conceituados cientistas.

    Finalmente, h que se considerar que o direito vida digna a matriz de todos os direitos fundamentais do homem, ele que deve orientar todas as formas de atuao no campo da tutela do meio ambiente. Como assinala Jos Afonso da Silva,

    (...) o direito vida h de estar acima de quaisquer outras consideraes como as de desenvolvimento, como as de respeito ao direito de propriedade, como as da iniciativa privada. Tambm estes so garantidos no texto constitucional, mas a toda evidncia, no podem primar sobre o direito fundamental vida, que est em jogo quando se discute a tutela da qualidade do meio ambiente. que a tutela

    33 VIEIRA, Oscar. A Constituio como Reserva de Justia. In Lua Nova n 42, So Paulo: CEDEC,

    1997, p. 53/97. 34 Tambm Manoel Gonalves Ferreira Filho questiona a significao e o alcance das Clusulas

    Ptreas afirmando que a intocabilidade dessas clsusulas, que petrificam o texto brasileiro, no um dogma. In: Significao e alcance das Clusulas Ptreas. Cadernos de Direito Constitucional e Cincia Poltica n 13. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, p. 5/8.

  • IRIGARAY, C. T. H. . O direito ao Meio Ambiente Equilibrado e sua Interpretao Constitucional. In: Luiz Alberto Esteves Scaloppe. (Org.). Transformaes no Direito

    Constitucional. 02 ed. Cuiab: Fundao Escola, 2003, v. 2, p. 194-224

    da qualidade do meio ambiente instrumental no sentido de que, atravs dela, o que se protege um valor maior: a qualidade da vida.35

    Outro aspecto importante que deve ser considerado na interpretao do direito ao meio ambiente equilibrado, a possibilidade de coliso desse direito, com outros bens jurdicos protegidos constitucionalmente.

    Argumenta-se freqentemente que a abrangncia reconhecida ao direito ao meio ambiente equilibrado, colide com o exerccio do direito de propriedade; isso tem ocorrido, sobretudo quando as restries impostas pela necessidade da tutela ambiental, implicam, em limitaes administrativas ao direito de propriedade. Assim por exemplo, a criao de uma rea de preservao ambiental (APA), no implica na desapropriao da rea abrangida, mas impede o proprietrio de exercer determinadas atividades econmicas, em razo do interesse pblico. Nessa hiptese, argumenta-se que o princpio do meio ambiente equilibrado estaria em coliso com os princpios da propriedade e da livre iniciativa.

    Robert Alexy assinala que na hiptese de coliso de princpios, um dos princpios deve ceder ao outro, o que no significa a invalidao do princpio descartado, ou que nele tenha que se introduzir uma clusula de exceo. Pondera, o autor, que nos casos concretos, os princpios possuem peso diferente, devendo prevalecer, na interpretao, o princpio de maior peso36.

    No exemplo assinalado, estamos diante de uma aparente coliso de princpios, facilmente superada com uma interpretao da Constituio que leve em considerao os princpios da unidade da Constituio, do sistema constitucional e da concordncia prtica ou harmonizao.

    Verifica-se no texto constitucional que a propriedade rural s exerce sua funo social quando atende o requisito da utilizao adequada dos recursos naturais disponveis e preservao do meio ambiente (art. 186, II); tambm a ordem econmica, fundada na livre iniciativa, deve observar, como princpio, a defesa do meio ambiente (art. 170, VI); donde se conclui que inexiste coliso de princpios; bastando que tais dispositivos sejam harmonizados, para o reconhecimento da supremacia do direito ao meio ambiente, no exemplo apresentado.

    Nesse sentido, no estando inviabilizada a explorao econmica do imvel, ou, conforme as palavras do pelo Ministro Celso de Mello37, no implicando em esvaziamento do contedo econmico da propriedade, no cabe ao proprietrio do imvel protegido, a indenizao por desapropriao indireta.

    Embora a constitucionalizao do direito ao ambiente equilibrado, no Brasil, seja um fenmeno recente, todo um sistema legal de proteo a este direito, foi estruturado no plano infraconstitucional. Inmeras aes esto sendo propostas com vistas proteo desse direito, na esfera civil e penal.

    No Captulo seguinte, algumas decises judiciais so apresentadas, objetivando demonstrar a abrangncia que est alcanando o direito ao meio ambiente equilibrado, no ordenamento jurdico brasileiro.

    3. O Direito ao meio ambiente equilibrado na viso dos tribunais

    brasileiros 35 SILVA, Jos Afonso. Op. cit. p. 44 36 ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios

    Constitucionales, 1993, p. 89. 37 RE n 134,297-8 SP.

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    Constitucional. 02 ed. Cuiab: Fundao Escola, 2003, v. 2, p. 194-224

    Inicialmente cabe assinalar que a consagrao do direito ao meio ambiente sadio um fenmeno recente; o captulo do meio ambiente, inserido em nossa Carta Magna no encontra precedente em nosso ordenamento constitucional e constitui-se inegvel avano, se comparado regulamentao constitucional de outros pases, razo pela qual, no se pode contar com uma doutrina ou mesmo uma jurisprudncia sedimentadas.

    Destarte, desde o advento da Carta de 1988, o reconhecimento constitucional do direito ao meio ambiente sadio e equilibrado, suscitou a edio de inmeros diplomas legais, regulamentando amplamente a matria no plano infraconstitucional, o que levou alguns autores, como dis Milar, a cunhar a expresso poluio legislativa, tal a quantidade e abrangncia dos diplomas legais que regulamentaram a matria em seus mltiplos aspectos.

    Acompanhando esse esforo de implementao do citado direito, inmeras aes esto sendo propostas, em sua maioria, objetivando a cessao de prticas, ou condutas, deletrias ao meio ambiente, ou ainda, a reparao de danos ambientais.

    Aos poucos vem se consolidando uma jurisprudncia firme no sentido de assegurar a supremacia do interesse pblico sobre o particular, reconhecendo ainda, o dever do Estado de promover a proteo do meio ambiente.

    A expresso meio ambiente, consoante conceito normativo, apresentado pela Lei de Poltica nacional do Meio Ambiente (Lei n 6.938, de 31.08.81) , compreende: o conjunto de condies, leis, influncias e interaes de ordem fsica, qumica e biolgica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas (art. 3, I).

    Trata-se de conceito extremamente abrangente, que est sendo interpretado em toda sua amplitude, compreendendo, segundo a doutrina, o meio ambiente natural, o meio ambiente artificial e o meio ambiente cultural.

    Certo que a abrangncia do direito ao meio ambiente equilibrado, tem suscitado a propositura de aes com os mais diversificados pedidos, englobando temas variados como poluio atmosfrica, contaminao de recursos hdricos, resduos slidos, ordenamento territorial, desmatamentos, maus-tratos fauna, danos ao patrimnio paisagstico, reparao de dano ambiental, entre outros.

    Os julgados abaixo transcritos so ilustrativos do amplo aspecto que a jurisprudncia, em matria ambiental, est tomando aps o advento da Carta de 1988.

    Dano ao patrimnio natural, cultural e paisagstico

    AO CIVIL PBLICA ATIVIDADE GARIMPEIRA DANO AO MEIO AMBIENTE ZONAS DECLARADAS DE PROTEO AMBIENTAL DEFINITIVA RESTRIES FUNO SOCIAL Ao civil pblica. Atividade garimpeira no Rio Vermelho e seus afluentes. Dano ao meio ambiente e ao patrimnio cultural e paisagstico. Proibio de no fazer (...) 2. Conceitua-se o meio ambiente como a interao do conjunto de elementos naturais, artificiais e culturais que propiciam o desenvolvimento equilibrado da vida humana. Por via da ao civil pblica, promove-se a defesa de bens culturais e patrimoniais coletivos, cuja proteo hoje tratada como de ordem pblica, segundo dispe a Lei maior do Pas (art. 225). 3. As propriedades circunscritas na zona declarada de proteo ambiental definitiva, continuam garantidas como propriedade privadas, porm seu uso sofre as restries determinadas pela sua funo social (CF art. 5 XXII e XXIII) Apelo Improvido (Apelao Cvel 28.606 TJ/GO Ver. Dir. Ambiental 1/189).

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    Desmatamento de rea legalmente protegida

    AO CIVIL PBLICA INDENIZAO DESMATAMENTO DE REA DE PRESERVAO PERMANENTE PROVA IRREFUTVEL CONDENAO PARA RECOMPOSIO DA REA EM SEU ESTADO ANTERIOR AO JULGADA PROCEDENTE RECURSO NO PROVIDO (TJSP APELAO 144.513.1-6 3 CMARA CIVIL)

    Desfigurao da paisagem

    AO DE ANULAO DE REGISTRO DE LOTEAMENTO Desfigurao da paisagem e danos a recursos naturais da regio (Sentena no processo 697/85 1 vara da Comarca de So Sebastio-RJ).

    Poluio sonora

    AO CIVIL PBLICA PRETENSO DE CONDENAO DA R AO CUMPRIMENTO DE OBRIGAO DE FAZER CONSISTENTE EM CESSAR A ATIVIDADE DEGRADADORA DO MEIO AMBIENTE, COM A PARALIZAO IMEDIATA E INTEGRAL DA EMISSO DE POLUIO SONORA ADMISSIBILIDADE PROVA NOS AUTOS DA EMISSO DE RUDOS ACIMA DO PERMITIDO NO ESTABELECIMENTO DA R MULTA CORRETAMENTE APLICADA RECURSO IMPROVIDO (TJSP 4 Cmara Cvel Apelao Cvel 004.939-5/2).

    Poluio por resduos slidos

    AO CIVIL PBLICA Dano Ambiental Lixo Destinao final Ao procedente para compelir a Municipalidade a fazer aterro sanitrio e a no depositar detritos noutro local Recurso no provido (TJSP Ap. Civ. N 113.882-1).

    Configurao de delito

    COMPETNCIA CRIME CONTRA A FAUNA JUSTIA FEDERAL. A caa ou apanha das espcies de nossa fauna silvestre foi elevada categoria de crime federal com o advento da Lei n. 7.653/88, logo, as condutas desta natureza afetam bens ou interesses da Unio, o que convoca, para o feito, a competncia da Justia federal, merc do art. 109, IV da CF/88 (Ccomp. 3.369-9-SC, RSTJ, 43:25). CRIME CONTRA O MEIO AMBIENTE - POLUIO DO RIO PARNABA VIOLAO DO ART. 15 DA LEI 6.938/81. Comete o crime previsto no art.15 da Lei 6.938/81 o proprietrio de curtume que lana no rio matrias orgnicas putrefactas, matrias no biodegradveis, substncias txicas, poluindo-o, criando assim, uma situao de perigo para a vida humana, animal e vegetal (TRF 1 Reg. 3 T. Ap. 95.01.11586-0-PI, RT 729:651). CRUELDADE CONTRA ANIMAIS INDIVDUOS QUE, A GOLPE DE ENXADA, QUEBRAM A PERNA DE EQUINO, ABANDONANDO-O SEM SOCORRO. Protege a lei os animais no s por sentimento de piedade como tambm para educar o esprito humano, a fim de evitar que a prtica de atos de

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    crueldade possa transformar os homens em seres insensveis ao sofrimento alheio, tornando-os tambm cruis para com os semelhantes (RT 295/343).

    Em que pese a aparente unanimidade em torno da importncia do meio

    ambiente, a questo ambiental polariza. O interesse pela concretizao do direito ao meio ambiente equilibrado, conflita com a cupidez de grupos econmicos, de interesses imediatistas, quando no enfrenta resistncias de ordem cultural.

    Um exemplo de conflitos de ordem cultural, foi resolvido recentemente, pelo Supremo Tribunal Federal, quando este apreciou, em recurso extraordinrio, deciso proibindo a farra do boi em Santa Catarina.

    Tratando-se de prtica, que integra o patrimnio da cultura aoreana, a farra do boi, estaria, em princpio protegida pelo art. 216 da Constituio Federal, que define o patrimnio cultural, incumbindo o Poder Pblico de promov-lo e proteg-lo (art. 216, 1). Ocorreu, na hiptese uma coliso de princpios, e a tradio aoreana, cedeu ao princpio que assegura a proteo da fauna e da flora, vedando as prticas que submetam animais crueldade (art. 225, 1, VII-CF).

    A deciso do Supremo foi amplamente divulgada em outdoors (abaixo transcrito) afixados nas rodovias catarinenses, mas certamente enfrenta resistncia de segmentos populares, evidenciando os conflitos que a interpretao do direito ao meio ambiente sadio pode suscitar.

    A farra do boi crime, inclusive em mangueires. O Supremo Tribunal Federal decidiu e o Governador Amin confirma: A farra do boi inconstitucional e contrria ao interesse pblico. Outdor afixado nas ruas de Florianpolis-SC

    Sobre essa polmica, posicionou-se um leitor do Dirio Catarinense, atravs

    de carta enviada coluna do leitor: A respeito da polmica da farra do boi, acho que a violncia ali contida muito relativa, pois de origem cultural. O espetculo violento, sem dvida, mas est sendo condenado porque pertence a uma cultura mais fraca que a altamente globalizada, cnica e manipuladora cultura de massa. Hoje no possvel imaginar os aoreanos denunciando a violncia do mundo, dos miserveis jogados na rua (...).38

    O argumento no de todo descabido; mesmo porque no se conhece nenhuma deciso da Corte Suprema reconhecendo a inconstitucionalidade da misria a que se encontra submetida considervel parcela do povo brasileiro. Resta ainda, saber como o Supremo Tribunal Federal ir se posicionar quanto aos rodeios na prspera Barretos-SP, que movimentam milhes, tambm s custas do sofrimento de animais.

    Finalmente, exemplifica o confronto entre o direito constitucionalizado e o interesse de segmentos empresariais, resistentes proteo ambiental, a presso exercida por setores da indstria paulista, contra a nova Lei dos Crimes Ambientais (Lei n. 9.605/98), que sofreu forte revs com a edio da Medida Provisria n.

    38 Carta de leitor do Jornal Dirio Catarinense(23.04.2000 p. 62).

    A farra do boi crime, inclusive em mangueires. O Supremo Tribunal Federal decidiu e o Governador Amin confirma: A farra do boi inconstitucional e contrria ao interesse pblico.

    Outdoor afixado nas rodovias de Santa Catarina

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    Constitucional. 02 ed. Cuiab: Fundao Escola, 2003, v. 2, p. 194-224

    1.710, em 07 de agosto de 1998 (atual MP n. 1.874-14, de 26/08/99). Atravs da citada medida, o Presidente da Repblica autoriza os rgos ambientais a celebrarem termo de compromisso com os infratores das normas ambientais, outorgando a estes uma moratria de at seis anos, para que se adeqem aos padres ambientais da legislao, que vigora desde 1976, ao mesmo tempo que suspende as sanes administrativas impostas aos poluidores anistiados.

    Alm de inoportuna, porquanto editada em pleno processo eleitoral que culminou com a reeleio do atual Presidente, a referida medida provisria flagrantemente inconstitucional; primeiro por no se caracterizar a urgncia e relevncia exigidas pelo art. 62 da Constituio Federal; e, principalmente, por representar uma inadmissvel transao sobre bens indisponveis sade e meio ambiente; o que se constitui em ofensa Constituio e sobretudo moralidade pblica39.

    Que magistrado condenar uma empresa, por crime de poluio, quando esta apresenta, em sua defesa, um termos de ajustamento que lhe autoriza cultivar seu passivo ambiental por at seis anos e portanto, a continuar operando em desacordo com os padres ambientais ?

    Os desdobramentos dessa questo, so uma incgnita; ilustram, contudo, os desafios que a concretizao do direito ao meio ambiente equilibrado, enfrentar nestes tempos de globalitarismo neoliberal40.

    4. CONCLUSO

    A abordagem panormica das peculiaridades da hermenutica constitucional, evidenciou a inadequao dos mtodos exegticos tradicionais para a interpretao das normas constitucionais, posto que incapazes de captar o sentido das clusulas no raros principiais de uma Constituio, ou o alcance normativo pluridimensional de um direito fundamental.

    Os direitos fundamentais, entre os quais se insere o direito ao meio ambiente equilibrado, possuem uma dimenso histrica, e exercem alm da funo de resistncia e defesa do cidado, tambm a funo participativa. A interpretao visa apenas atualiz-los, ampliando-lhes a fora normativa.

    A concretizao do direito ao meio ambiente equilibrado, atravs da Nova hermenutica constitucional, ser tanto mais efetiva, quanto mais lograr aproximar o texto da Constituio de seus destinatrios, contribuindo para forjar um sentimento constitucional, e envolver a coletividade na tarefa que lhe foi constitucionalmente atribuda junto com o poder pblico, defender o meio ambiente e preserv-lo, para as presentes e futuras geraes.

    Os desafios so enormes, sobretudo, nesse contexto de mundializao do capital, onde os Direitos Sociais so empecilho expanso do mercado globalizado. A insurgncia do neoliberalismo, que pensa possvel a concretizao da democracia

    39 Ver a propsito, Carta aberta ao Presidente Fernando Henrique Cardoso, intitulada "A Sade dos

    Brasileiros e o Meio Ambiente em Primeiro Lugar", dos participantes do 1 Encontro Nacional do Ministrio Pblico de Meio Ambiente, realizado nos dias 12/14 de agosto de 1998, em Florianpolis-SC.

    40 A expresso regimes globalitrios foi empregada pelo diretor do Le Monde Diplomatique, para expressar essa nova forma de totalitarismo, que se assenta no dogma da globalizao e do pensamento nico, no qual a sociedade, sem escolha, deve se submeter razo competitiva e direo ditada pelo mercado.

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    Constitucional. 02 ed. Cuiab: Fundao Escola, 2003, v. 2, p. 194-224

    apartada da realizao dos direitos fundamentais, est tendo, como conseqncia, um processo de inefetivao desses direitos e sobretudo de esvaziamento dos direitos sociais, atravs das chamadas reformas do Estado. Nesse quadro, ao hermeneuta, incumbe buscar mecanismos que possam assegurar a efetividade desses direitos, proporcionando s normas constitucionais fora de efeito timo.

    Esse esforo de concretizao, na rea ambiental, da maior relevncia, pois, se por um lado, contamos com um texto constitucional e um amplo rol de leis consideradas internacionalmente avanadas; por outro lado, todo esse acervo institucional se mostra anmico, no em quantidade, mas na fora poltica e na capacidade de realizar o interesse pblico.

    Oportuna a anlise do prof. Erni Seibel, (...)uma poltica ambiental necessita de esferas efetivamente pblicas (no sentido do bem comum) para que sua efetivao tenha resultados concretos e eficazes, social e ambientalmente. Isto contrape-se ao fato de que as estruturas de poder cristalizadas no aparato pblico, principalmente governamentais, atuam sempre na direo da privatizao da ao poltica administrativa que acaba por comprometer os resultados das polticas pblicas (...)41

    O que se traduz em uma prtica j consagrada em nosso meio, onde os lucros so privatizados, socializando-se os prejuzos.

    De toda sorte, nossa Carta Magna oferece os instrumentos jurdicos para um grande avano em termos de poltica ambiental, mas imprescindvel que esses avanos encontrem eco na sociedade civil, traduzindo-se, em ltima instncia, no fortalecimento da cidadania.

    6 - BIBLIOGRAFIA

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