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O Direito à Preguiça (1883)
e
Recordações pessoais sobre Karl Marx (1890)
Paul Lafargue
1842 - 1911
Médico e socialista francês, autor de várias obras sobre a história do
marxismo. Foi um dos fundadores do Partido Operário Francês em 1879.
Na 1ª Internacional ocupou o cargo de secretário correspondente para
Espanha entre 1866 e 1868 e foi membro fundador das secções francesa,
espanhola e portuguesa. Casou-se com Laura Marx, filha de Karl Marx
O Direito à Preguiça
Paul Lafargue
Escrito: na prisão de Saint Pélagie, 1883.
Primeira Edição: Charles Kerr and Co., Co-operative, 1883
Fonte: O Direito à Preguiça, Editora Kairós, 1980.
Tradução de J. Teixeira Coelho Netto.
HTML: por Alexandre Linares para The Marxists Internet Archive.
Introdução
O Sr. Thiers, no seio da Comissão sobre a Instrução Primária de 1849,
dizia:
"Quero tornar a influência do clero todo-poderosa, porque
conto com ele para propagar esta boa filosofia que ensina ao
homem que ele veio a este mundo para sofrer e não aquela
outra filosofia que, pelo contrário, diz ao homem: „Goza‟."
O Sr. Thiers formulava a moral da classe burguesa cujo egoísmo feroz
e inteligência estreita encarnou.
A burguesia, quando lutava contra a nobreza, apoiada pelo clero,
arvorou o livre exame e o ateísmo; mas, triunfante, mudou de tom e de
comportamento e hoje conta apoiar na religião a sua supremacia
econômica e política. Nos séculos XV e XVI, tinha alegremente retomado a
tradição pagã e glorificava a carne e as suas paixões, que eram
reprovadas pelo cristianismo; atualmente, cumulada de bens e de
prazeres, renega os ensinamentos dos seus pensadores, os Rabelais, os
Diderot, e prega a abstinência aos assalariados. A moral capitalista,
lamentável paródia da moral cristã, fulmina com o anátema o corpo
trabalhador; toma como ideal reduzir o produtor ao mínimo mais restrito
de necessidades, suprimir as suas alegrias e as suas paixões e condená-lo
ao papel de máquina entregando trabalho sem tréguas nem piedade.
Os socialistas revolucionários têm de recomeçar o combate que os
filósofos e os panfletários da burguesia já travaram; têm de atacar a
moral e as teorias sociais do capitalismo; têm de demolir, nas cabeças da
classe chamada à ação, os preconceitos semeados pela classe reinante;
têm de proclamar, no rosto dos hipócritas de todas as morais, que a terra
deixará de ser o vale de lágrimas do trabalhador: que, na sociedade
comunista do futuro que fundaremos "pacificamente se possível, senão
violentamente", as paixões dos homens terão rédea curta, porque "todas
são boas pela sua natureza, apenas temos de evitar a sua má utilização e
os seus excessos" (1), e só serão evitadas pelo seu mútuo contrabalançar,
pelo desenvolvimento harmônico do organismo humano, porque, diz o Dr.
Beddoe, "só quando uma raça atinge o seu ponto máximo de
desenvolvimento físico é que ela atinge o seu mais elevado nível de
energia e de vigor moral". Era esta também a opinião do grande naturista
Charles Darwin (2)
A refutação do direito ao trabalho, que reedito com algumas notas
adicionais, foi publicado no semanário L'Egalité de 1880, segunda parte.
Prisão de Sainte-Pélagie, 1883.
Paul Lafargue
Notas da Introdução:
(1) Descartes, As Paixões da Alma.
(2) Doutor Beddoe, Memoirs of the Anthropological Society; Ch. Darwin, Descent of man.
I - Um Dogma Desastroso
"Sejamos preguiçosos em tudo, exceto em amar e em beber, exceto em sermos
preguiçosos." LESSING
Uma estranha loucura se apossou das classes operárias das nações
onde reina a civilização capitalista. Esta loucura arrasta consigo misérias
individuais e sociais que há dois séculos torturam a triste humanidade.
Esta loucura é o amor ao trabalho, a paixão moribunda do trabalho,
levado até ao esgotamento das forças vitais do indivíduo e da sua
progenitora. Em vez de reagir contra esta aberração mental, os padres, os
economistas, os moralistas sacrossantificaram o trabalho. Homens cegos e
limitados, quiseram ser mais sábios do que o seu Deus; homens fracos e
desprezíveis, quiseram reabilitar aquilo que o seu Deus amaldiçoara. Eu,
que não confesso ser cristão, economista e moralista, recuso admitir os
seus juízos como os do seu Deus; recuso admitir os sermões da sua moral
religiosa, econômica, livre-pensadora, face às terríveis conseqüências do
trabalho na sociedade capitalista.
Na sociedade capitalista, o trabalho é a causa de toda a
degenerescência intelectual, de toda a deformação orgânica. Comparem o
puro-sangue das cavalariças de Rothschild, servido por uma criadagem de
bímanos, com a pesada besta das quintas normandas que lavra a terra,
carrega o estrume, que põe no celeiro a colheita dos cereais. Olhem para
o nobre selvagem, que os missionários do comércio e os comerciantes da
religião ainda não corromperam com o cristianismo, com a sífilis e o
dogma do trabalho, e olhem em seguida para os nossos miseráveis
criados de máquinas (1)
Quando, na nossa Europa civilizada, se quer encontrar um traço de
beleza nativa do homem, é preciso ir procurá-lo nas nações onde os
preconceitos econômicos ainda não desenraizaram o ódio ao trabalho. A
Espanha, que infelizmente degenera, ainda se pode gabar de possuir
menos fábricas do que nós prisões e casernas; mas o artista regozija-se
ao admirar o ousado Andaluz, moreno como as castanhas, direito e
flexível como uma haste de aço; e o coração do homem sobressalta-se ao
ouvir o mendigo, soberbamente envolvido na sua capa esburacada,
chamar amigo aos duques de Ossuna. Para o Espanhol, em cujo país o
animal primitivo não está atrofiado, o trabalho é a pior das escravaturas
(2) Os Gregos da grande época também só tinham desprezo pelo
trabalho: só aos escravos era permitido trabalhar, o homem livre só
conhecia os exercícios físicos e os jogos da inteligência. Também era a
época em que se caminhava e se respirava num povo de Aristóteles, de
Fídias, de Aristófanes; era a época em que um punhado de bravos
esmagava em Maratona as hordas da Ásia que Alexandre ia dentro em
breve conquistar. Os filósofos da antigüidade ensinavam o desprezo pelo
trabalho, essa degradação do homem livre; os poetas cantavam a
preguiça, esse presente dos Deuses: O Meliboe, Deus nobis hoec otia fecit
(3)
Cristo pregou a preguiça no seu sermão na montanha:
"Contemplai o crescimento dos lírios dos campos, eles não
trabalham nem fiam e, todavia, digo-vos, Salomão, em toda a
sua glória, não se vestiu com maior brilho."(4)
Jeová, o deus barbudo e rebarbativo, deu aos seus adoradores o
exemplo supremo da preguiça ideal; depois de seis dias de trabalho,
repousou para a eternidade.
Em contrapartida, quais são as raças para quem o trabalho é uma
necessidade orgânica? Os "Auvergnats"; os Escoceses, esses "Auvergnats"
das ilhas britânicas; os Galegos, esses "Auvergnats" da Espanha; os
Pomeranianos, esses "Auvergnats" da Alemanha; os Chineses, esses
"Auvergnats" da Ásia. Na nossa sociedade, quais são as classes que amam
o trabalho pelo trabalho? Os camponeses proprietários, os pequeno-
burgueses, uns curvados sobre as suas terras, os outros retidos pelo
hábito nas suas lojas, mexem-se como a toupeira na sua galeria
subterrânea e nunca se endireitam para olhar com vagar para a natureza.
E, no entanto, o proletariado, a grande classe que engloba todos os
produtores das nações civilizadas, a classe que, ao emancipar-se,
emancipará a humanidade do trabalho servil e fará do animal humano um
ser livre, o proletariado, traindo os seus instintos, esquecendo-se da sua
missão histórica, deixou-se perverter pelo dogma do trabalho. Rude e
terrível foi a sua punição. Todas as misérias individuais e sociais
mereceram da sua paixão pelo trabalho.
Notas do Capitulo 1:
(1) Os exploradores europeus param espantados diante da beleza física e da atitude orgulhosa dos homens das tribos nômades primitivas, não manchadas pelo que Paeppig chamava o "bafo envenenado da civilização". Ao
falar dos aborígenes das ilhas da Oceania, lord George Champbell escreve: "No mundo não há povo que impressione mais à primeira vista. A sua pele lisa e de um tom ligeiramente acobreado, os seus cabelos louros e ondulados, o seu belo e alegre rosto, numa palavra, toda a sua pessoa formava uma nova e esplêndida amostra do genus homo; o seu aspecto físico dava a impressão de uma raça superior à nossa." Os civilizados da Roma antiga, os Césares, os Tácitos, contemplavam com a mesma admiração os germanos das tribos comunistas que invadiam o Império Romano. - Tal como Tácito, Salviano, o padre do século V, a que chamaram o mestre dos bispos, apresentava os bárbaros como exemplo aos civilizados e aos cristãos: "Somos impudicos no meio do bárbaros, que são mais castos do que nós. Mais do que isso, os bárbaros ficam magoados com a nossa lascívia, os Godos não suportam que haja entre eles debochados da sua nação; entre eles, só os Romanos, pelo triste privilégio da sua nacionalidade e do seu nome, têm o direito de serem impuros. [A pederastia estava então em grande moda entre os pagãos e os cristãos...] Os oprimidos vão para junto dos bárbaros procurar a humanidade e um abrigo" (De Gubernatione Dei). - A velha civilização e o cristianismo nascente corromperam os bárbaros do velho mundo, tal como o cristianismo envelhecido e a moderna civilização capitalista corrompem os selvagens do novo mundo. O Sr. F. le Play, cujo talento de observador devemos reconhecer, mesmo quando se repelem as suas conclusões sociológicas, manchadas de prudhomismo filantrópico e cristão, diz no seu livro Les Ouvriers européens ("Os Operários Europeus") (1885): "A propensão dos Bachkires para a preguiça [os Bachkires são pastores seminômades da vertente asiática dos Urais], as distrações da vida nômade, os hábitos de meditação que fazem nascer nos indivíduos mais dotados comunicam por vezes a estes uma distinção de maneiras, uma subtileza de inteligência e de Juízo que raramente se notam no mesmo nível social numa civilização mais desenvolvida... O que mais lhes repugna são os trabalhos agrícolas; fazem tudo exceto aceitar a profissão de agricultor." De fato, a agricultura é a primeira manifestação do trabalho servil na humanidade. Segundo a tradição bíblica, o primeiro criminoso, Caim, é um agricultor.
(2) O provérbio espanhol diz: Descansar es salud (Descansar é saúde).
(3) Ó Melibeu, um Deus deu-nos esta ociosidade. Virgílio, Bucolicas (Ver apêndice).
(4) Evangelho segundo São Mateus, cap. VI.
II- Bençãos do Trabalho
Em 1770 apareceu em Londres um escrito anônimo intitulado: An
Essay on Trade and Commerce (1). Fez na época um certo barulho. O seu
autor, grande filantropo, indignava-se pelo fato de a plebe manufatureira
da Inglaterra ter metido na cabeça a idéia fixa de que na qualidade de
Ingleses todos os indivíduos que a compunham terem, por direito de
nascimento, o privilégio de serem mais livres e mais independentes do
que os operários de qualquer outro país da Europa. Esta idéia pode ter a
sua utilidade para os soldados cuja bravura estimula, mas quanto menos
os operários das manufaturas dela estiverem imbuídos, tanto melhor para
eles próprios e para o Estado. Os operários nunca deveriam considerar-se
independentes dos seus superiores. É extremamente perigoso encorajar
semelhantes manias num Estado comercial como o nosso, onde talvez
sete oitavos da população tenham pouca ou nenhuma propriedade. A cura
não será completa enquanto os nossos pobres da indústria não se
resignarem a trabalhar seis dias pela mesma soma que eles ganham
agora em quatro".
Assim, cerca de um século antes de Guizot, pregava-se abertamente
em Londres o trabalho como um travão às nobres paixões do homem.
"Quanto mais os meus povos trabalharem, menos vícios existirão,
escrevia Napoleão de Osterode no dia 5 de Maio de 1807. Eu sou a
autoridade [...] e estaria disposto a ordenar que ao domingo, passada a
hora dos ofícios divinos, as lojas estivessem abertas e os operários fossem
para o seu trabalho."
Para extirpar a preguiça e curvar os sentimentos de orgulho e de
independência que esta gera, o autor de Essay on Trade propunha
encarcerar os pobres nas casas ideais do trabalho (ideal workhouses) que
se tornariam "casas de terror onde se fariam trabalhar 14 horas por dia,
de tal maneira que, subtraído o tempo das refeições, ficariam 12 horas de
trabalho completas".
Doze horas de trabalho por dia, eis o ideal dos filantropos e moralistas
do século XVIII. Como ultrapassamos esse nec plus ultra! As oficinas
modernas tornaram-se casas ideais de correção onde se encerram as
massas operárias, onde se condena a trabalhos forçados, durante 12 e 14
horas, não só os homens, como também as mulheres e as crianças (2)
E dizer que os filhos dos heróis do Terror se deixaram degradar pela
religião do trabalho ao ponto de aceitarem depois de 1848, como uma
conquista revolucionária, a lei que limitava o trabalho nas fábricas a doze
horas; proclamavam, como um princípio revolucionário, o direito ao
trabalho. Que vergonha para o proletariado francês! Só escravos teriam
sido capazes de uma tal baixeza. Seriam necessários vinte anos de
civilização capitalista a um grego dos tempos heróicos para conceber um
tal aviltamento.
E se as dores do trabalho forçado, se as torturas da fome se abateram
sobre o proletariado, mais numerosas do que os gafanhotos da Bíblia, foi
ele que as chamou.
Este trabalho, que em Junho de 1848 os operários reclamavam de
armas na mão, impuseram-no eles às suas famílias; entregaram, aos
barões da indústria, as suas mulheres e os seus filhos. Com as suas
próprias mãos, demoliram o lar, com as suas próprias mãos, secaram o
leite das suas mulheres; as infelizes, grávidas e amamentando os seus
bebês, tiveram de ir para as minas e para as manufaturas esticar a
espinha e esgotar os nervos; com as suas próprias mãos, quebraram a
vida e vigor dos seus filhos. - Que vergonha para os proletários! Onde é
que estão essas bisbilhoteiras de que falam as nossas trovas e contos
antigos, ousadas nas afirmações, francas de boca, amantes da divina
garrafa? Onde estão essas mulheres prazenteiras, sempre apressadas,
sempre a cozinhar, sempre a cantar, sempre a semear a vida gerando a
alegria, dando à luz sem dores filhos sãos e vigorosos?... Temos hoje as
raparigas e as mulheres da fábrica, insignificantes flores de pálidas cores,
com um sangue sem rutilância, com o estômago deteriorado, com os
membros sem energia!... Nunca conheceram o prazer robusto e não
seriam capazes de contar atrevidamente como quebraram a sua concha! E
as crianças? Doze horas de trabalho para as crianças.
O miséria! - Mas todos os Jules Simon da Academia das Ciências
Morais e Políticas, todos os Germiny da jesuitaria, não teriam podido
inventar um vício mais embrutecedor para a inteligência das crianças,
mais corruptor dos seus instintos, mais destruidor do seu organismo do
que o trabalho na atmosfera viciada da oficina capitalista.
A nossa época é, dizem, o século do trabalho; de fato, é o século da
dor, da miséria e da corrupção.
E, no entanto, os filósofos, os economistas burgueses, desde o
penosamente confuso Augusto Comte até ao ridiculamente claro Leroy-
Beaulieu; os intelectuais burgueses, desde o charlatanescamente
romântico Victor Hugo até ao ingenuamente grotesco Paul de Kock, todos
entoaram cantos nauseabundos em honra do deus Progresso, o filho mais
velho do Trabalho. Ao ouvi-los, a felicidade ia reinar sobre a terra: já se
sentia a sua chegada.. Iam aos séculos passados vasculhar o pó e a
miséria feudais para trazerem sombrios contrastes às delícias dos tempos
presentes. - Acaso nos fatigaram, esses saciados, esses satisfeitos,
outrora ainda membros da domesticidade dos grandes senhores, hoje
criados de pena da burguesia, generosamente alugados; acaso nos
fatigaram com o camponês do retórico La Bruyere? Ora, eis o brilhante
quadro dos prazeres proletários no ano do progresso capitalista de 1840,
pintado por um dos deles, pelo Dr. Villermé, membro do Instituto, o
mesmo que, em 1848, fez parte daquela sociedade de sábios (Tiers,
Cousin, Passy, Blanqui, o acadêmico, estavam lá) que propagou nas
massas os disparates da economia e da moral burguesa.
É da Alsácia manufatureira que fala Villermé, da Alsácia dos Kestner,
dos Dolífus, essas flores da filantropia e do republicanismo industrial. Mas
antes que o doutor esboce diante de nós o quadro das misérias
proletárias, escutemos um manufatureiro alsaciano, o Sr. Th. Mieg, da
Casa Dolífus, Mieg e C.ª, descrevendo a situação do artesão da antiga
indústria:
"Em Mulhouse, há cinqüenta anos (em 1813, quando nascia a
moderna indústria mecânica), os operários eram todos filhos do solo, que
habitavam a cidade ou as aldeias próximas e possuíam quase todos uma
casa e muitas vezes um pequeno terreno." (3)
Era a idade de ouro do trabalhador. Mas então a indústria alsaciana
não inundava o mundo com os seus tecidos de algodão e não tornava
milionários os seus DolIfus e os seus Koechlin. Mas vinte e cinco anos
depois, quando Villermé visitou a Alsácia, o minotauro moderno, a oficina
capitalista tinha conquistado a região; na sua bulimia de trabalho
humano, tinha arrancado os operários dos seus lares para melhor os
torcer e para melhor espremer o trabalho que continham. Era aos
milhares que os operários acorriam ao apito da máquina.
"Um grande número, diz Villermé, cinco mil em dezassete mil, eram
obrigados, pela carestia das rendas, a instalar-se nas aldeias vizinhas.
Alguns habitavam a duas léguas e um quarto da manufatura onde
trabalhavam.
Em Mulhouse, em Dornach, o trabalho começava às cinco horas da
manhã e acabava às cinco horas da tarde tanto no Verão como no Inverno
[...]. Era preciso vê-los chegar todas as manhãs à cidade e vê-los partir à
noite. Há entre eles uma multidão de mulheres pálidas, magras,
caminhando de pés descalços por cima da lama e que, à falta de guarda-
chuva, trazem, atirados sobre a cabeça, quando chove ou neva, os
aventais e as saias de cima para protegerem o rosto e o pescoço, e um
número mais considerável de crianças pequenas não menos sujas, não
menos pálidas e macilentas, cobertas de farrapos, todas engorduradas do
óleo dos teares que lhes cai em cima enquanto trabalham. Estas últimas,
melhor preservadas da chuva pela impermeabilidade das suas roupas,
nem sequer têm no braço, como as mulheres de que acabamos de falar,
um cesto onde estão as provisões do dia; mas trazem na mão, ou
escondem debaixo do seu casaco ou como podem, o bocado de pão que
os deve alimentar até à hora do seu regresso a casa.
Assim, à fadiga de um dia de trabalho excessivamente longo, visto
que tem pelo menos quinze horas, vem juntar-se para estes desgraçados
a das idas e vindas tão freqüentes, tão penosas. Daqui resulta que à noite
chegam a suas casas oprimidos pela necessidade de dormir e que no dia
seguinte saem antes de terem repousado completamente para se
encontrarem na oficina à hora da abertura."
Eis agora as cubículos onde se amontoavam aqueles que habitavam
na cidade:
"Vi, em Mulhouse, em Dornach e nas casas vizinhas, dessas
miseráveis instalações onde dormiam duas famílias cada uma a seu canto,
sobre a palha colocada sobre o tijolo e retida por duas tábuas... Esta
miséria em que vivem os operários da indústria do algodão no distrito do
Alto-Reno é tão profunda, que produz este triste resultado: enquanto que
nas famílias dos fabricantes, mercadores de panos, diretores de fábricas,
metade das crianças atinge os vinte e um anos, essa mesma metade
deixa de existir antes mesmo de completar os dois anos nas famílias de
tecelões e de operários de fábricas de fiação de algodão."
Falando do trabalho da oficina, Villermé acrescenta:"Não é um
trabalho, uma tarefa, é uma tortura e infligem-na a crianças de seis a oito
anos. [...] É esse longo suplício de todos os dias que mina sobretudo os
operários nas fábricas de fiação de algodão."
E, a propósito da duração do trabalho, Villermé observa que os
forçados das galés só trabalhavam dez horas, os escravos das Antilhas
uma média de nove horas, enquanto que existia na França que tinha feito
a Revolução de 1789, que tinha proclamado os pomposos Direitos do
Homem, manufaturas onde o dia de trabalho era de dezasseis horas, nas
quais davam aos operários uma hora e meia para as refeições (4).
O miserável aborto dos princípios revolucionários da burguesia! O
lúgubre presente do seu deus Progresso! Os filantropos proclamam
benfeitores da humanidade aqueles que, para se enriquecerem na
ociosidade, dão trabalho aos pobres; mais valia semear a peste ou
envenenar as fontes do que erguer uma fábrica no meio de uma povoação
rústica. Introduzam o trabalho de fábrica, e adeus alegria, saúde,
liberdade; adeus a tudo o que fez a vida bela e digna de ser vivida (5)
E os economistas continuam a repetir aos operários: Trabalhem para
aumentar a fortuna social! E, no entanto, um economista, Destutt de
Tracy, responde-lhes: nas nações pobres que o povo está à sua vontade;
é nas nações ricas que de um modo geral ele é pobre.
E o seu discípulo Cherbuliez continua:
"Os próprios trabalhadores, ao cooperarem na acumulação dos
capitais produtivos, contribuem para o acontecimento que, mais tarde ou
mais cedo, os deve privar de uma parte do seu salário."
Mas, ensurdecidos e tornados idiotas pelos seus próprios berros, os
economistas continuam a responder: Trabalhem, trabalhem sempre para
criarem o vosso bem-estar! E, em nome da bondade cristã, um padre da
Igreja Anglicana, o reverendo Townshend, prega: "Trabalhem, trabalhem
noite e dia! Ao trabalharem, fazem crescer a vossa miséria e a vossa
miséria dispensa-nos de vos impor o trabalho pela força da lei. A
imposição legal do trabalho exige demasiado esforço, demasiada violência
e faz demasiado estardalhaço; a fome, pelo contrário, não só é uma
pressão calma, silenciosa, incessante, como também o móbil mais natural
do trabalho e da indústria, ela provoca também os mais poderosos
esforços."
Trabalhem, trabalhem, proletários, para aumentar a fortuna social e
as vossas misérias individuais, trabalhem, trabalhem, para que, tornando-
vos mais pobres, tenham mais razão para trabalhar e para serem
miseráveis. Eis a lei inexorável da produção capitalista.
Porque, ao prestarem atenção às insidiosas palavras dos economistas,
os proletários se entregaram de corpo e alma ao vício do trabalho,
precipitam toda a sociedade numa destas crises de superprodução que
convulsionam o organismo social. Então, porque há superabundância de
mercadorias e penúria de compradores, as oficinas encerram e a fome
fustiga as populações operárias com o seu chicote com mil loros. Os
proletários, embrutecidos pelo dogma do trabalho, não compreendem que
é o supertrabalho que infligiram a si próprios durante o tempo da pretensa
prosperidade a causa da sua miséria presente, em vez de correrem ao
celeiro de trigo e de gritarem: "Temos fome e queremos comer!... Sim,
não temos nem uma moeda, mas, pobres como estamos, fomos nós quem
ceifou o trigo e vindimou a uva... " - Em vez de cercarem os armazéns do
Sr. Bonnet de Jujureux, o inventor dos conventos industriais, e de clamar:
"Sr. Bonnet, aqui estão as vossas operárias ovalistas (6), moulineuses
(7), fiandeiras, tecedeiras, elas tremem de frio nos seus tecidos de
algodão passajados de modo a condoer os olhos de um judeu e, no
entanto, foram elas que fiaram e teceram os vestidos de seda das cocotes
de toda a cristandade. As desgraçadas, trabalhando treze horas por dia,
não tinham tempo de pensar na "toilette", agora, elas estão
desempregadas e podem ostentar um grande luxo com as sedas que
trabalharam. Mal perderam os dentes de leite, dedicaram-se à sua fortuna
e viveram na abstinência; agora, elas têm tempos de lazer e querem
gozar um pouco dos frutos do seu trabalho. Vamos, Sr. Bonnet, entregue
as suas sedas, o Sr. Harmel fornecerá as suas musselinas, o Sr. Pouyer-
Quertier os seus paninhos, o Sr. Pinet as suas botinas para os seus
queridos pezinhos frios e húmidos... Vestidas dos pés à cabeça, dar-vos-á
prazer contemplá-las. Vamos, nada de hesitações o Sr. é amigo da
humanidade, não é verdade? E cristão ainda por cima! Ponha à disposição
das suas operárias a fortuna que estas lhe construíram com a carne da
sua carne. - É amigo do comércio? - Facilite a circulação das mercadorias;
eis consumido-res acabados de encontrar; abra-lhes créditos ilimitados. É
obrigado a fazê-lo a negociantes que não conhece de parte nenhuma, que
não lhe deram nada, nem sequer um copo de água. As suas operarias
pagarão como puderem: se, no dia do vencimento, elas fogem e deixam
protestar a letra, leva-las-á à falência e, se elas não tiverem nada para
penhorar, exigirá que elas lhe paguem em orações: elas enviá-lo-ão ao
paraíso, melhor do que os seus sacos negros com o nariz cheio de
tabaco."
Em vez de se aproveitarem dos momentos de crise para uma
distribuição geral de produtos e uma manifestação universal de alegria, os
operários, morrendo à fome, vão bater com a cabeça contra as portas da
oficina. Com rostos pálidos e macilentos, corpos emagrecidos, discursos
lamentáveis, assaltam os fabricantes: "Bom Sr. Chagot, excelente Sr.
Schneider, dêem-nos trabalho, não é a fome, mas a paixão do trabalho
que nos atormenta!" E esses miseráveis, que mal têm forças para se
manterem de pé, vendem doze e catorze horas de trabalho duas vezes
mais barato do que quando tinham trabalho durante um certo tempo. E os
filantropos da indústria continuam a aproveitar as crises de desemprego
para fabricarem mais barato.
Se as crises industriais se seguem aos períodos de supertrabalho tão
fatalmente como a noite se segue ao dia, arrastando atrás de si o
desemprego forçado, e a miséria sem saída, também levam à bancarrota
inexorável. Enquanto o fabricante tem crédito, solta a rédea à raiva do
trabalho, faz empréstimos, volta a fazer empréstimos para fornecer
matéria-prima aos operários. Tem de se produzir, sem refletir que o
mercado se obstrui e que, se as mercadorias não chegarem a serem
vendidas, as suas ordens de pagamento acabarão por se vencer.
Encurralado, vai implorar ao Judeu, lança-se a seus pés, oferece-lhe o seu
sangue, a sua honra. "Um bocadinho de ouro ser-lhe-ia mais útil,
responde o Rothschild, tem 20 000 pares de meias em armazém, valem
vinte soldos, compro-lhas por quatro soldos." Obtidas as meias, o Judeu
vende-as a seis e a oito soldos e embolsa as bulicosas moedas de cem
soldos que não devem nada a ninguém: mas o fabricante recuou para
melhor saltar. Chega finalmente o degelo e os armazéns despejam-se;
lança-se então tanta mercadoria pelas janelas que não se sabe como é
que elas entraram pela porta. É em centenas de milhões que se cifra o
valor das mercadorias destruídas: no século passado, queimavam-nas ou
lançavam-nas à água (8).
Mas antes de chegar a esta conclusão, os fabricantes percorreram o
mundo à procura de colocação para as mercadorias que se amontoavam;
forçam o seu governo a anexar Congos, a apoderar-se de Tonquim, a
demolir com fogo dos canhões as muralhas da China, para aí darem saída
aos seus tecidos de algodão. Nos séculos passados, era um duelo de
morte entre a França e a Inglaterra para saber quem teria o privilégio
exclusivo de vender na América e nas Indias. Milhares de homens jovens
e vigorosos purpurearam os mares com o seu sangue durante as guerras
coloniais dos séculos XV, XVI e XVII.
Os capitais abundam como as mercadorias. Os financeiros já não
sabem onde colocá-los; vão então para as nações felizes que passeiam ao
sol a fumar cigarros pôr caminhos de ferro, construir fábricas e importar a
maldição do trabalho. E esta exportação de capitais franceses termina
uma bela manhã em complicações diplomáticas: no Egito, a França, a
Inglaterra e a Alemanha estavam prestes a agarrar-se pelos cabelos para
saber quais os usurários que seriam pagos em primeiro lugar; em guerras
no México para onde são enviados os soldados franceses exercerem a
profissão de oficial de diligências para encobrir más dívidas (9).
Estas misérias individuais e sociais, por muito grandes e numerosas
que sejam, por eternas que pareçam, desaparecerão como as hienas e os
chacais à aproximação do leão, quando o proletariado disser: "Quero
isso." Mas para que ele venha a ter consciência da sua força, é preciso
que o proletariado calque aos pés os preconceitos da moral cristã,
econômica, livre-pensadora; é preciso que ele regresse aos seus instintos
naturais, que proclame os Direitos da Preguiça, milhares de vezes mais
nobres e sagrados do que os tísicos Direitos do Homem, digeridos pelos
advogados metafísicos da revolução burguesa; que ele se obrigue a
trabalhar apenas três horas por dia, a mandriar e a andar no regabofe o
resto do dia e da noite.
Até aqui, a minha tarefa tem sido fácil, tinha apenas de descrever
males reais que todos nós conhecemos muito bem infelizmente. Mas
convencer o proletariado de que a palavra que lhe inocularam é perversa,
que o trabalho desenfreado a que se dedica desde o início do século é o
mais terrível flagelo que já alguma vez atacou a humanidade, que o
trabalho só se tornará um condimento de prazer da preguiça, um exercício
benéfico para o organismo humano, uma paixão útil ao organismo social,
quando for prudentemente regulamentado e limitado a um máximo de
três horas por dia, é uma tarefa árdua superior às minhas forças; só
fisiologistas, higienistas, economistas comunistas poderão empreendê-la.
Nas páginas que se seguem, limitar-me-ei a demonstrar que, atendendo
aos meios de produção modernos e à sua potência reprodutiva ilimitada,
tem de se dominar a paixão extravagante dos operários pelo trabalho e
obrigá-los a consumir as mercadorias que produzem.
Notas do Capitulo 2:
(1)Um ensaio sobre o negócio e o comércio.
(2) No primeiro congresso de beneficência realizado em Bruxelas, em 1857, um dos mais ricos manufatureiros
de Marquette, perto de Lilie, o Sr. Scrive, aplaudido pelos membros do congresso, contava com a mais nobre satisfação de um dever cumprido: "Introduzimos alguns meios de distração para as crianças. Ensinamo-lhe a cantar durante o trabalho, a contar também enquanto trabalham: isto distrai-as e faz-lhes aceitar com coragem aquelas doze horas de trabalho que são necessárias para lhes proporcionar os meios de existência" - Doze horas de trabalho, e que trabalho! impostas a crianças que não têm doze anos! - Os materialistas lamentarão sempre que não haja um inferno para nele pôr estes cristãos, esses filantropos, carrascos da infância!
(3) Discurso pronunciado na Sociedade Internacional de Estudos Práticos de Economia Social de Paris em Maio
de 1863 e publicado em L'Economiste français da mesma época.
(4) L.-R. Villermé, Tableau de l'État Physique et Moral des Ouvriers dans les Fabriques de Coton, de Laine et de
Soie (Quadro do Estado Físico e Moral dos Operários nas Fábricas de Algodão, de Lá e de Seda), 1840. Não era pelo fato dos Koechlin e de outros fabricantes alsacianos serem republicanos, patriotas e filantropos protestantes que tratavam desta maneira os seus operários; porque Blanqui, o acadêmico, Reybaud, o protótipo de Jerôme Paturot, e Jules Simon, o mestre Jacques político, constataram as mesmas amenidades para a classe operária nos fabricantes muito católicos e muito monárquicos de Lilie e de Lyon. Trata-se de virtudes capitalistas que se harmonizam às mil maravilhas com todas as convicções políticas e religiosas.
(5) Os índios das tribos guerreiras do Brasil matam os seus doentes e os seus velhos; testemunham a sua
amizade acabando com uma vida que já não é animada por combates, por festas, por danças. Todos os povos primitivos deram aos seus estas provas de afeição: os Messagetas do mar Cáspio (Heródoto), bem como os Wens da Alemanha e os Celtas da Gália. Nas igrejas da Suécia, ainda há pouco se conservavam davas chamadas davas familiares que serviam para libertar os parentes das tristezas da velhice. Como estão degenerados os proletários modernos para aceitarem com paciência as terríveis misérias do trabalho de fábrica!
(6) Ovaliste: operário que torna as sedas ovais.
(7) Moulineur: operário que fia e torce mecanicamente Os fios de seda crua.
(8) No congresso industrial realizado em Berlim em 21 de Janeiro de 1879, avaliava-se em 568 milhares de
francos o prejuízo que a indústria de ferro tinha sofrido na Alemanha durante a última crise.
(9) La Justice, do Sr. Clemenceau, na sua parte financeira, dizia a 6 de Abril de 1880: "Ouvimos defender a opinião de que, à excepção da Prússia, os milhares da guerra de 1870 foram igualmente perdidos pela França, e isto sob a forma de empréstimos periódica mente emitidos para o equilíbrio dos orçamentos estrangeiros; esta é também a nossa opinião." Avalia-se em cinco mil milhões o prejuízo dos capitais ingleses nos empréstimos às Repúblicas da América do Sul. Os trabalhadores franceses não só produziram os cinco mil
milhões pagos ao Sr. Bismarck, como continuam a servir os juros da indenização de guerra aos Oluvier, aos Girardin, aos Bazaine e outros portadores de títulos de rendimento que originaram a guerra e a derrota. No entanto, resta-lhes um prêmio de consolação: esses milhões não ocasionarão guerra de recuperação.
III - O que se Segue à Superprodução
Um poeta grego do tempo de Cícero, Antiparos, cantava deste modo a
invenção da azenha (para moer os cereais): ia emancipar as mulheres
escravas e voltar a trazer a idade de ouro:
"Poupai o braço que faz girar a mó, ó moleiras, e dormi
tranqüilamente! Que o galo vos avise em vão de que já é dia!
Dao impôs às ninfas o trabalho das escravas e ei-las que
saltitam alegremente sobre a roda e eis que o eixo agitado
rola com os seus raios, fazendo rodar a pesada pedra rolante.
Vivamos da vida dos nossos pais e ociosos regozijemo-nos
dos dons que a deusa nos concede."
Infelizmente, os tempos livres que o poeta pagão anunciava não
vieram; a paixão cega, perversa e homicida do trabalho transforma a
máquina libertadora em instrumento de sujeição dos homens livres: a sua
produtividade empobrece-os.
Uma boa operária só faz com o fuso cinco malhas por minuto, alguns
teares circulares para tricotar fazem trinta mil no mesmo tempo. Cada
minuto à máquina equivale, portanto, a cem horas de trabalho da
operaria; ou então cada minuto de trabalho da máquina dá à operária dez
dias de repouso. Aquilo que se passa com a indústria de malhas é mais ou
menos verdade para todas as indústrias renovadas pela mecânica
moderna. Mas que vemos nós? A medida que a máquina se aperfeiçoa e
despacha o trabalho do homem com uma rapidez e uma precisão
incessantemente crescentes, o operário, em vez de prolongar o seu
repouso proporcionalmente, redobra de ardor, como se quisesse rivalizar
com a máquina. Ó concorrência absurda e mortal!
Para que a concorrência do homem e da máquina tomasse livre curso,
os proletários aboliram as sábias leis que limitavam o trabalho dos
artesãos das antigas corporações; suprimiram os dias feriados (1) Porque
os produtores de então só trabalhavam cinco dias em sete, julgavam eles
então, assim o contam os economistas mentirosos, que viviam só de ar e
de água fresca? Ora vamos! Eles tinham tempos livres para gozar as
alegrias da terra, para fazer amor, para se divertirem, para se
banquetearem em honra do alegre deus da Mandriice. A triste Inglaterra,
engaiolada no protestantismo, chamava-se então a "alegre Inglaterra"
(Merry England).
Rabelais, Quevedo, Cervantes, os autores desconhecidos dos
romances picarescos, fazem-nos crescer água na boca com as suas
narrativas daquelas monumentais patuscadas (2) com que se regalavam
então entre duas batalhas e duas devastações e nas quais tudo "era
medido aos pratos". Jordaens e a escola flamenga escreveram-nas nas
suas alegres telas. Sublimes estômagos gargantuescos, que é feito de
vós? Sublimes cérebros que abarcáveis todo o pensamento humano, que é
feito de vós? Estamos muito diminuídos e muito degenerados. A vaca
atacada de raiva, a batata, o vinho com fucsina e a aguardente prussiana
sabiamente combinados com o trabalho forçado debilitaram os nossos
corpos e diminuíram os nossos espíritos. E foi então que o homem
encolheu o seu estômago e que a máquina alargou a sua produtividade, é
então que os economistas nos pregam a teoria malthusiana, a religião da
abstinência e o dogma do trabalho? Mas era preciso arrancar-lhes a língua
e deitá-la aos cães.
Porque a classe operária, com a sua boa fé simplista, se deixou
doutrinar, porque, com a sua impetuosidade nativa, se precipitou
cegamente para o trabalho e para a abstinência, a classe capitalista
achou-se condenada à preguiça e ao prazer forçado, à improdutividade e
ao superconsumo. Mas, se o supertrabalho do operário magoa a sua carne
e atormenta os seus nervos, ele também é fecundo em dores para o
burguês.
A abstinência à qual a classe produtiva se condena Obriga os
burgueses a dedicarem-se ao superconsumo dos produtos que ela
manufatura desordenadamente. No início da produção capitalista, há um
ou dois séculos, o burguês era um homem ajuizado, de hábitos razoáveis
e calmos; contentava-se com a sua mulher ou quase; bebia e comia
moderadamente. Deixava aos cortesãos e às cortesãs as nobres virtudes
da vida debochada. Hoje, não há filho de arrivista que não se julgue
obrigado a desenvolver a prostituição e a mercurializar o seu corpo para
dar um objetivo ao trabalho que os operários das minas de mercúrio se
impõem; não há burguês que não se farte de capões trufados e de Laffitte
navegado, para encorajar os criadores de La Fleche e os vinhateiros do
Bordelais. Nesta profissão, o organismo deteriora-se rapidamente, os
cabelos caem, os dentes descarnam-se até à raiz, o tronco deforma-se, o
ventre entripa-se, a respiração complica-se, os movimentos tornam-se
pesados, as articulações tornam-se anquilosadas, as falanges enodam-se.
Outros, demasiado fracos para suportar as fadigas do deboche, mas
dotados da bossa do prudhomismo, dessecam o seu cérebro como os
Garnier da economia política, como os Acolias da filosofia jurídica, a
elucubrar grossos livros soporíficos para ocupar os tempos livres dos
compositores e dos tipógrafos.
As mulheres da alta sociedade têm uma vida de mártir. Para provarem
e fazerem valer as "toilettes" feéricas que as costureiras se matam a
fazer, andam de manhã à noite de um lado para o outro, de um vestido
para outro; durante horas abandonam a sua cabeça oca aos artistas
capilares que, a todo o custo, querem saciar a sua paixão pelos montões
de postiços. Apertadas nos seus espartilhos, pouco à vontade nas suas
botinas, decotadas de maneira a fazer corar um sapador, voltejam noites
inteiras nos seus bailes de caridade para recolherem alguns soldos para os
pobres. Santas almas!
Para desempenhar a sua dupla função social de não produtor e de
superconsumidor, o burguês teve não só de violentar os seus gostos
modestos, perder os seus hábitos de trabalho de há dois séculos e
entregar-se a um luxo desenfreado, às indigestões trufadas e aos
deboches sifilíticos, mas também teve de subtrair ao trabalho produtivo
uma enorme massa de homens para conseguir ajudantes.
Eis alguns números que provam como é colossal essa diminuição de
forças produtivas: de acordo com o recenseamento de 1861, a população
de Inglaterra e do País de Gales compreendia 20066244 pessoas, das
quais 9 776259 do sexo masculino e 10289965 do sexo feminino. Se
deduzirmos os que são demasiado velhos ou demasiado novos para
trabalhar, as mulheres, os adolescentes e as crianças improdutivas, em
seguida as profissões ideológicas como por exemplo governantes, polícia,
clero, magistratura, exército, prostituição, artes, ciências, etc., depois as
pessoas exclusivamente ocupadas a comer o trabalho de outrem sob a
forma de renda fundiária, de juros, de dividendos, etc., restam por alto
oito milhões de indivíduos dos dois sexos e de todas as idades, incluindo
os capitalistas que funcionam na produção, no comércio, na finança, etc.
Nesses oito milhões contam-se:
Trabalhadores agrícolas (incluindo os pastores, os criados e criadas de
lavoura que habitam na quinta) - 1098261
Operarios de fábricas de algodao, de lã, de câ nhamo, de linho, de
seda, de malha - 642607
Operários de minas de carvao e de metal - 565 835
Operários metalúrgicos (alto-fornos, laminadores, etc.) - 396998
Classe doméstica - 1 208648
"Se somarmos o número dos trabalhadores têxteis ao dos das
minas de carvão e de metal, obteremos o total de 1 208442;
se somarmos os primeiros e os das fábricas metalúrgicas,
temos um total de 1 039 605 pessoas; ou seja, de ambas as
vezes um número inferior ao dos modernos escravos
domésticos. Eis o magnífico resultado da exploração
capitalista das máquinas." (3)
A toda esta classe doméstica, cuja grandeza indica o grau atingido
pela civilização capitalista, tem de se acrescentar a numerosa classe dos
infelizes exclusivamente dedicados à satisfação dos gostos dispendiosos e
fúteis das classes ricas, lapidadores de diamantes, rendeiras, bordadoras,
encadernadores de luxo, costureiras de luxo, decoradores das casas de
recreio, etc. (4)
Uma vez acocorada na preguiça absoluta e desmoralizada pelo prazer
forçado, a burguesia, apesar das dificuldades que teve nisso, adaptou-se
ao seu novo estilo de vida. Encarou com horror qualquer alteração. A
visão das miseráveis condições de existência aceites com resignação pela
classe operária e a da degradação orgânica gerada pela paixão depravada
pelo trabalho aumentava ainda mais a sua repulsa por qualquer imposição
de trabalho e por qualquer restrição de prazeres.
Foi precisamente então que, sem ter em conta a desmoralização que a
burguesia tinha imposto a si própria como um dever social, os proletários
resolveram infligir o trabalho aos capitalistas. Ingénuos, tomaram a sério
as teorias dos economistas e dos moralistas sobre o trabalho e
maltrataram os rins para infligir a sua prática aos capitalistas. O
proletariado arvorou a divisa: Quem não trabalha, não come; Lyon, em
1831, levantou-se pelo chumbo ou pelo trabalho, os federados de 1871
declararam o seu levantamento a revolução do trabalho.
A estes ímpetos de furor bárbaro, destrutivo de todo o prazer e de
toda a preguiça burguesas, os capitalistas só podiam responder com uma
repressão feroz, mas sabiam que, se tinham conseguido reprimir estas
explosões revolucionárias, não tinham afogado no sangue dos seus
gigantescos massacres a absurda idéia do proletariado de querer infligir o
trabalho às classes ociosas e fartas, e foi para desviar essa infelicidade
que se rodearam de pretorianos, de polícias, de magistrados, de
carcereiros mantidos numa improdutividade laboriosa. Já não se podem
ter ilusões sobre o caráter dos exércitos modernos, são mantidos em
permanência apenas para reprimir "o inimigo interno"; e assim que os
fortes de Paris e de Lyon não foram construídos para defender a cidade
contra o estrangeiro, mas para o esmagar no caso de revolta. E se fosse
preciso um exemplo sem réplica, citemos o exército da Bélgica, desse país
de Cocagne do capitalismo; à sua neutralidade é garantida pelas potências
européias e, no entanto, o seu exército é um dos mais fortes em
proporção da população. Os gloriosos campos de batalha do bravo
exército belga são as planícies do Borinage e de Charleroi, é no sangue
dos mineiros e dos operários desarmados que os oficiais belgas
ensangüentam as suas espadas e ganham os seus galões. As nações
européias não tem exércitos nacionais, mas sim exércitos mercenários,
que protegem os capitalistas contra o furor popular que os queria
condenar a dez horas de mina ou de fábrica de fiação.
Portanto, ao apertar o cinto, a classe operária desenvolveu para além
do normal o ventre da burguesia condenada ao superconsumo.
Para ser aliviada no seu penoso trabalho, a burguesia retirou da classe
operária uma massa de homens muito superior à que continuava dedicada
à produção útil e condenou-a, por seu turno, à improdutividade e ao
superconsumo. Mas este rebanho de bocas inúteis, apesar da sua
voracidade insaciável, não basta para consumir todas as mercadorias que
os operários, embrutecidos pelo dogma do trabalho, produzem como
maníacos, sem os quererem consumir e sem sequer pensarem se se
encontrarão pessoas para os consumir.
Em presença desta dupla loucura dos trabalhadores, de se matarem
de supertrabalho e de vegetarem na abstinência, o grande problema da
produção capitalista já não é encontrar produtores e multiplicar as suas
forças, mas descobrir consumidores, excitar os seus apetites e criar-lhes
necessidades fictícias. Uma vez que os operários europeus, que tremem
de frio e de fome, recusam usar os tecidos que eles próprios tecem, beber
os vinhos que eles próprios colhem, os pobres fabricantes, como
espertalhões, devem correr aos antípodas para procurar quem os usará e
quem os beberá: são centenas de milhões e de biliões que a Europa
exporta todos os anos para os quatro cantos do mundo, para populações
que não têm nada que fazer com esses produtos (5) Mas os continentes
explorados já não são suficientemente vastos, são necessários países
virgens. Os fabricantes da Europa sonham noite e dia com a África, com o
lago sariano, com o caminho de ferro do Sudão, seguem com ansiedade
os progressos dos Livingstone dos Stanley, dos Du Chailiu, dos de Brazza;
de boca aberta, escutam as histórias mirabolantes desses corajosos
viajantes. Que maravilhas desconhecidas encerra o "continente negro"!
Campos são plantados de dentes de elefantes, rios de óleo de coco
arrastam no seu curso palhetas de ouro, milhões de cus negros, nus como
o rosto de Dufaure ou de Girardin esperam pelos tecidos de algodão para
aprenderem a decência, pelas garrafas de aguardente e pelas bíblias para
conhecerem as virtudes da civilização.
Mas tudo é insuficiente: o burguês que se farta, a classe doméstica
que ultrapassa a classe produtiva, as nações estrangeiras e bárbaras que
se enchem de mercadorias européias; nada, nada pode conseguir dar
vazão às montanhas de produtos que se amontoam maiores e mais altas
do que as pirâmides do Egito: a produtividade dos operários europeus
desafia todo o consumo, todo o desperdício. Os fabricantes, doidos, já não
sabem que fazer, já não conseguem encontrar matéria-prima para
satisfazer a paixão desordenada, depravada, que os seus operários têm
pelo trabalho. Nos nossos distritos onde há lã, desfiam-se trapos
manchados e meio podres, fazem-se com eles panos chamados de
renascimento, que duram o mesmo que as promessas eleitorais; em Lyon,
em vez de deixar à fibra sedosa a sua simplicidade e a sua flexibilidade
natural, sobrecarregam-na de sais minerais que, ao acrescentarem-lhe
peso, a tornam friável e de pouco uso. Todos os nossos produtos são
adulterados para facilitar o seu escoamento e abreviar a sua existência. A
nossa época será chamada a idade da falsificação, tal como as primeiras
épocas da humanidade receberam os nomes de idade da pedra, idade de
bronze, pelo caráter da sua produção. Os ignorantes acusam de fraude os
nossos piedosos industriais, enquanto que na realidade o pensamento que
os anima é o de fornecer trabalho aos operários, que não conseguem
resignar-se a viver de braços cruzados. Estas falsificações, que têm como
único móbil um sentimento humanitário, mas que rendem soberbos lucros
aos fabricantes que as praticam, se são desastrosas para a qualidade das
mercadorias, se são uma fonte inesgotável de desperdício de trabalho
humano, provam a filantrópica habilidade dos burgueses e a horrível
perversão dos operários que, para saciarem o seu vicio do trabalho,
obrigam os industriais a abafar os gritos da sua consciência e até mesmo
a violar as leis da honestidade comercial.
E, no entanto, apesar da superprodução de mercadorias, apesar das
falsificações industriais, os operários atravancam o mercado em grandes
grupos implorando: trabalho! trabalho! A sua superabundância devia
obrigá-los a refrear a sua paixão; pelo contrário, ela leva-a ao paroxismo.
Mal uma possibilidade de trabalho se apresenta, logo se atiram a ela;
então são doze, catorze horas que reclamam para estarem fartos até à
saciedade e no dia seguinte ei-los de novo na rua, sem mais nada para
alimentarem o seu vicio. Todos os anos, em todas as indústrias, os
despedimentos surgem com a regularidade das estações. Ao
supertrabalho perigoso para o organismo sucede-se o repouso absoluto
durante dois ou quatro meses; e, não havendo trabalho, não há a ração
diária. Uma vez que o vício do trabalho está diabolicamente encavilhado
no coração dos operários; uma vez que as suas exigências abafam todos
os outros instintos da natureza; uma vez que a quantidade de trabalho
exigida pela sociedade é forçosamente limitada pelo consumo e pela
abundância de matéria-prima, por que razão devorar em seis meses o
trabalho de todo o ano? Porque não distribuí-lo uniformemente por doze
meses e forçar todos os operários a contentar-se com seis ou cinco horas
por dia, durante o ano, em vez de apanhar indigestões de doze horas
durante seis meses? Seguros da sua parte diária de trabalho, os operários
já não se invejarão, já não se baterão para arrancarem mutuamente o
trabalho das mãos e o pão da boca; então, não esgotados de corpo e de
espírito, começarão a praticar as virtudes da preguiça.
Embrutecidos pelo seu vício, os operários não conseguiram elevar-se à
inteligência deste fato segundo o qual, para ter trabalho para todos era
preciso racioná-lo como à água num navio em perigo. No entanto, os
industriais, em nome da exploração capitalista, já há muito que pediram
um limite legal do dia de trabalho. Perante a Comissão de 1860 sobre o
ensino profissional, um dos maiores manufatureiros da Alsácia, o Sr.
Bourcart, de Guebwiller, declarava:
"O dia de trabalho de doze horas era excessivo e devia ser
reduzido para onze e aos sábados devia-se suspender o
trabalho às duas horas. Posso aconselhar a adoção desta
medida embora pareça onerosa à primeira vista;
experimentamo-la nos nossos estabelecimentos industriais há
já quatro anos e demo-nos bem e a produção média, longe de
diminuir, aumentou."
No seu estudo sobre as máquinas, o Sr. F. Passy cita a seguinte carta
de um grande industrial belga, o Sr. M. Ottavaere:
"As nossas máquinas, embora sejam as mesmas que as das
fábricas de fiação inglesas, não produzem o que deveriam
produzir e o que produziriam essas mesmas máquinas em
Inglaterra, embora as fábricas de fiação funcionem menos
duas horas por dia. [...] Trabalhamos todos duas longas horas
a mais, estou convencido de que, se trabalhássemos onze
horas em vez de treze, teríamos a mesma produção e, por
conseguinte, produziríamos mais economicamente. "
Por outro lado, o Sr. Leroy-Beaulieu afirma que "um grande
manufatureiro belga observa muito bem que nas semanas em que calha
um dia feriado a produção não é inferior às das semanas normais" (6).
Aquilo que o povo, logrado na sua ingenuidade pelos moralistas,
nunca ousou, ousou-o um governo aristocrático. Desprezando as elevadas
considerações morais e industriais dos economistas, que, como as aves de
mau agoiro, cacarejavam que diminuir uma hora ao trabalho das fábricas
era decretar a ruína da indústria inglesa, o governo de Inglaterra proibiu
por lei, estritamente observada, trabalhar mais de dez horas por dia; e,
depois disso tal como antes, a Inglaterra continua a ser a primeira nação
industrial do mundo.
Eis a grande experiência inglesa, eis a experiência de alguns
capitalistas inteligentes, ela demonstra irrefutavelmente que, para
reforçar a produtividade humana, tem de se reduzir as horas de trabalho e
multiplicar os dias de pagamento e os feriados, e o povo francês não está
convencido. Mas se uma miserável redução de duas horas aumentou em
dez anos a produção inglesa em cerca de um terço (7), que ritmo
vertiginoso imprimiria à produção francesa uma redução geral de três
horas no dia de trabalho? Os operários não conseguem compreender que,
cansando-se excessivamente, esgotam as suas forças antes da idade de
se tornarem incapazes para qualquer trabalho; que absorvidos,
embrutecidos por um único vício, já não são homens, mas sim restos de
homens; que matam neles todas as belas faculdades para só deixarem de
pé, e luxuriante, a loucura furiosa do trabalho.
Ah! como papagaios de Arcádia repetem a lição dos economistas:
"Trabalhemos, trabalhemos para aumentar a riqueza nacional." O idiotas!
é porque trabalhais demais que a ferramenta industrial se desenvolve
lentamente. Deixai de vociferar e escutai um economista; ele não é um
águia, não é o Sr. L. Reybaud, que tivemos a felicidade de perder há
alguns meses:
"De um modo geral, é na base das condições de mão-de-obra
que se regula a revolução nos métodos de trabalho. Enquanto
a mão-de-obra fornece os seus serviços a baixo preço,
esbanjam-na; procuram poupá-la quando os seus serviços se
tornam mais caros." (8)
Para forçar os capitalistas a aperfeiçoarem as suas máquinas de
madeira e de ferro, é preciso elevar-se os salários e diminuir as horas de
trabalho das máquinas de carne e osso. As provas? Podemos fornecê-las
às centenas. Na fábrica de fiação, o tear mecânico (self acting mule) foi
inventado e aplicado em Manchester, porque os fiandeiros se recusavam a
trabalhar tanto tempo como antes.
Na América, a máquina invadiu todos os ramos da produção agrícola,
desde o fabrico da manteiga até à sacha dos trigos: porquê? Porque o
Americano, livre e preguiçoso, preferiria morrer mil vezes a ter a vida
bovina do camponês francês. A lavra, tão penosa na nossa gloriosa
França, tão rica de aguamentos, é, no Oeste americano, um agradável
passatempo ao ar livre que se pratica sentado, fumando descuidadamente
o seu cachimbo.
Notas do Capitulo 3:
(1) No Antigo Regime, as leis da Igreja garantiam ao trabalhador 90 dias de descanso (52 domingos e 38 dias feriados) durante os quais era estritamente proibido trabalhar. Era o grande crime do catolicismo, a causa principal da irreligião da burguesia industrial e comercial. Na Revolução, mal esta foi senhora da situação, aboliu os dias feriados e substituiu a semana de sete dias pela de dez. Libertou os operários do jugo da Igreja
para melhor os submeter ao jugo do trabalho. O ódio pelos dias feriados só aparece quando a moderna burguesia industrial e comerciante ganha corpo, entre os séculos XV e XVI. Henrique IV pediu a sua redução ao Papa; este recusou, porque "uma das heresias que correm atualmente diz respeito às festas" (carta do cardeal d'Ossat). Mas, em 1666, Perefixe, arcebispo de Paris suprimiu 17 na sua diocese. O protestantismo, que era a
religião cristã adaptada às novas necessidades industriais e comerciais da burguesia, preocupou-se menos com o descanso popular; destronou no céu os santos para abolir na terra as suas festas. A reforma religiosa e o livre pensamento filosófico não eram senão pretextos que permitiram à burguesia jesuíta e voraz escamotear os dias de festa do popular.
(2) Estas festas pantagruélicas duravam semanas. Don Rodrigo de Lara ganha a sua noiva expulsando os Mouros de Calatrava-a-velha e o Romancero narra que:
Las bodas fueron en Burgos, Las tornabodas en Salas: En bodas y tornabodas Passaron siete semanas Tantas
vienen de las gentes, Que no caben por las plazas...(As bodas foram em Burgos, o regresso das bodas em Salas; em bodas e regresso de bodas passaram sete semanas; acorrem tantas pessoas que não cabem nas praças...) Os homens destas bodas de sete semanas eram os heróicos soldados das guerras da independência.
(3) Karl Marx, O Capital, t. III.
(4) "A proporção segundo a qual a população de um pais é empregada como doméstica, ao serviço das classes abastadas, indica o seu progresso em riqueza nacional e em civilização.)" (R. M. Martin, Ireland before and after the Union, 1818.) Gambetta, que negava a questão social, depois de já não ser advogado pobre do Café Procope, queria certamente referir-se a essa classe doméstica sempre crescente quando ele reclamava o
advento das novas camadas sociais.
(5) Dois exemplos: o governo inglês, para agradar aos países indianos que, apesar das fomes periódicas que desolam o país, teimam em cultivar a dormideira em vez de arroz ou de trigo, viu-se obrigado a empreender guerras sangrentas para impor ao governo chinês a livre introdução do ópio indiano. Os selvagens da Polinésia, apesar da mortalidade que daí adveio, viram-se obrigados a vestirem-se e a embriagarem-se à inglesa para consumirem os produtos das destilarias da Escócia e das tecelagens de Manchester.
(6) Paul Leroy-Beaulieu, La Question Ouvriere au XIV siecle, 1872.
(7) Eis, segundo o célebre estatístico R. Giffen, do Departamento de Estatística de Londres, a progressão
crescente da riqueza nacional da Inglaterra e da Irlanda em: 1814 - ela era de 55 mil milhões de francos 1865- 162,5 mil milhões de francos 1875- 212,5 mil milhões de francos
(8) Louis Reybaud, Le Coton, son Régime, ses Problêmes, 1863.
IV - Para Nova Música, Nova Canção
Se, diminuindo as horas de trabalho, se conquista para a produção
social novas forças mecânicas, obrigando os operários a consumir os seus
produtos, conquistar-se-á um enorme exército de forças de trabalho. A
burguesia, liberta então da sua tarefa de consumidor universal, apressar-
se-á a licenciar a barafunda de soldadas, de magistrados, de vigaristas, de
proxenetas, etc., que retirou do trabalho útil para a auxiliar a consumir e
a desperdiçar. É então que o mercado do trabalho ficará a transbordar, é
então que será necessária uma lei de ferro para proibir o trabalho: será
impossível encontrar trabalho para este bando de anteriores improdutivos,
mais numerosos do que os piolhos da madeira. E a seguir a eles será
necessário pensar em todos aqueles que proviam as suas necessidades e
gostos fúteis e dispendiosos. Quando já não houver mais lacaios e
generais a quem dar galões, mais prostitutas livres e casadas para cobrir
de rendas, mais canhões para furar, mais palácios para construir, será
necessário impor, através de leis severas, às operárias e aos operários de
passamanaria, de rendas, de ferro, de construção civil, higiênicos passeios
em escaler e os exercícios coreográficos para o restabelecimento da sua
saúde e o aperfeiçoamento da sua raça. Desde que os produtos europeus
consumidos no local não sejam transportados para o diabo, será preciso
que os marinheiros, as tripulações, os camionistas se sentem e aprendam
a passar o tempo na ociosidade. Os bem-aventurados Polinésios poderão
então entregar-se ao amor livre sem recear os pontapés da Vênus
civilizada e os sermões da moral européia.
Há mais. Para encontrar trabalho para todos os não valores da
sociedade atual, para deixar a ferramenta industrial desenvolver-se
indefinidamente, a classe operária deverá, tal como a burguesia, violentar
os seus gostos abstinentes e desenvolver indefinidamente as suas
capacidades consumidoras. Em vez de comer por dia uma ou duas onças
de carne dura, quando a comer, comerá alegres bifes de uma ou duas
libras; em vez de beber moderadamente mau vinho, mais papista que o
papa, beberá grandes e profundos copázios de bordéus, de borgonha, sem
batismo industrial, e deixará a água para os animais.
Os proletários meteram na cabeça infligir aos capitalistas dez horas de
forja e de refinaria; eis o grande erro, a causa dos antagonismos sociais e
das guerras civis. Será necessário não impor o trabalho mas proibi-lo.
Será permitido aos Rothschild e aos Say provarem que foram durante
toda a sua vida perfeitos velhacos; e se eles jurarem que querem
continuar a viver como perfeitos velhacos, apesar do arrebatamento geral
pelo trabalho, serão registados e, nas respectivas câmaras, receberão
todas as manhãs uma moeda de vinte francos para os seus pequenos
prazeres. As discórdias sociais desaparecerão. Os que vivem dos
rendimentos, os capitalistas, serão os primeiros a unir-se ao partido
popular, uma vez convencidos de que, longe de se lhes querer mal, se
pretende pelo contrário livrá-los do trabalho de superconsumo e de
desperdício pelo qual foram esmagados desde o seu nascimento. Quanto
aos burgueses incapazes de provar os seus títulos de velhacos, deixá-los-
ão seguir os seus instintos: existe um número suficiente de profissões
nojentas para os colocar Dufaure limparia as latrinas públicas; Galliffet
assassinaria os porcos sarnosos e os cavalos inchados; os membros da
comissão das graças, enviados a Poissy (1), marcariam o bois e os
carneiros para abater; os senadores, ligados às pompas fúnebres, farão
de gatos-pingados. Para outros, encontrar-se-ão profissões à altura da
sua inteligência. Lorgeril e Broglie rolharão as garrafas de champanhe,
mas seriam amordaçados para não se embriagar; Ferry, Freycinet, Tirard,
destruiriam os percevejos e os vermes dos ministérios e de outros
albergues públicos No entanto, será necessário por os dinheiros públicos
fora do alcance dos burgueses por se recear os hábitos adquiridos.
Mas tirar-se-á uma dura e longa vingança dos moralistas que
perverteram a natureza humana, beatos falsos, santarrões, hipócritas "e
outras seitas de pessoas como estas que se disfarçaram para enganar o
mundo. Porque, dando a entender ao popular comum que não se
ocuparam senão em contemplações e devoção, em jejuns e macerações
da sensualidade, senão realmente para sustentar e alimentar a pequena
fragilidade da sua humanidade: pelo contrário, zombam. E Deus sabe de
que maneira! Et Curios simulant sed Bacchnalia vivunt (2). Podeis lê-lo
em grandes letras e em iluminuras nos seus focinhos vermelhos e no seu
ventre saliente, quando não se perfumam de enxofre" (3).
Nos dias de grandes festas populares, onde, em vez de comerem pó
como nos 15 de Agosto e nos 14 de Julho dos burgueses, os comunistas e
os coletivistas fizeram andar as garrafas e os presuntos e voar as taças,
os membros da Academia das Ciências Morais e Políticas, os padres de
vestes longas e curtas da igreja econômica, católica, protestante, judaica,
positivista e livre pensadora, os propagadores do malthusianismo e da
moral cristã, altruísta, independente ou submetida, vestidos de amarelo,
segurarão na vela até se queimarem os dedos e viverão em fome junto
das mulheres gaulesas e das mesas carregadas de carnes, de frutos e de
flores e morrerão de sede juntos dos tonéis destapados. Quatro vezes por
ano, quando as estações mudarem, tal como aos cães dos amoladores
ambulantes, encerrá-los-ão nas grandes rodas e durante dez horas
obrigá-los-ão a moer vento. Os advogados e os legistas sofrerão a mesma
pena.
Num regime de preguiça, para matar o tempo que nos mata segundo
a segundo, haverá sempre espetáculos e representações teatrais; é um
trabalho adotado especialmente para os nossos burgueses legisladores.
Organizá-los-emos em bandos que percorrem as feiras e as aldeias, dando
representações legislativas. Os generais, com botas de montar, o peito
agaloado de atacadores, de crachás, de cruzes da Legião de honra, irão
pelas ruas e pelas praças, recrutando as boas pessoas. Gambetta e
Cassagnac, seu compadre, farão a pantominice da porta. Cassagnac, em
fato de gala de mata-mouros, revirando os olhos, torcendo o bigode,
cuspindo a estopa inflamada, ameaçará todos com a pistola do pai e cairá
num buraco mal lhe mostrem um retrato de Luílier; Gambetta discorrerá
sobre a política externa, sobre a pequena Grécia que o endoutoriza e
largará fogo à Europa para roubar a Turquia; sobre a grande Rússia que o
estultifica com a compota que ela promete fazer com a Prússia e que
deseja a oeste da Europa feridas e inchaços para enriquecer a leste e
estrangular o niilismo no interior; sobre o Sr. Bismarck, que foi bastante
bom para lhe permitir que se pronunciasse sobre a amnistia... depois,
desnudando a sua vasta barriga pintada a três cores, tocará nela a
chamada e enumerará os deliciosos animaizinhos, as verdelhas, as trufas,
os copos de Margaux e de Yquem que tragou para encorajar a agricultura
e manter alegres os eleitores de Belleville.
Na barraca, começar-se-á pela Farsa Eleitoral.
Diante dos eleitores com cabeças de madeira e orelhas de burro, os
candidatos burgueses, vestidos como palhaços, dançarão a dança das
liberdades políticas, limpando a face e o posfácio com os seus programas
eleitorais de múltiplas promessas e falando com lágrimas nos olhos das
misérias do povo e com voz de bronze das glórias da França; e as cabeças
dos eleitores gritam em coro e solidamente: hi han! hi han!
Depois começará a grande peça: O Roubo dos Bens da Nação.
A França capitalista, enorme fêmea, de face peluda e de crânio calvo,
deformada, com carnes flácidas, balofas, deslavadas, com olhos sem vida,
ensonada e bocejando, está reclinada num canapé de veludo; a seus pés,
o Capitalismo industrial, gigantesco organismo de ferro, com uma
máscara simiesca, devora mecanicamente homens, mulheres, crianças,
cujos gritos lúgubres e terríveis enchem o ar; a Banca com focinho de
fuinha, com corpo de hiena e mãos de harpia, rouba-lhe habilmente do
bolso as moedas de cem soldos. Hordas de miseráveis proletários
descarnados, escoltados por gendarmes, de sabre desembainhado,
expulsos pelas fúrias que os zurzem com os chicotes da fome, trazem
para os pés da França capitalista montes de mercadorias, barricas de
vinho, sacos de ouro e de trigo. Langlois, com os calções numa mão, o
testamento de Proudhon na outra, o livro do orçamento entre os dentes,
põe-se à frente dos defensores dos bens da nação e monta a guarda. Uma
vez depostos os fardos, mandam expulsar os operários à coronhada e a
golpes de baioneta e abrem a porta aos industriais, aos comerciantes e
aos banqueiros.
De cambolhada, eles precipitam-se sobre o monte, tragando tecidos
de algodão, sacos de trigo, lingotes de ouro, despejando pipas; sem
poderem mais, sujos, nojentos, ficam prostrados nos seus excrementos e
nos seus vômitos... Então ribomba o trovão, a terra agita-se e entreabre-
se, surge a Fatalidade histórica; com o seu pé de ferro ela esmaga as
cabeças daqueles que soluçam, cambaleiam, caem e já não podem fugir,
e com a sua grande mão derruba a França capitalista, estupefacta e
suando de medo.
Se, desenraizando do seu coração o vício que a domina e avilta a sua
natureza, a classe operária se erguesse com a sua força terrível, não para
reclamar os Direitos do Homem, que não são senão os direitos da
exploração capitalista, não para reclamar o Direito ao Trabalho, que não é
senão o direito à miséria, mas para forjar uma lei de bronze que proíba
todos os homens de trabalhar mais de três horas por dia, a Terra, a velha
Terra, tremendo de alegria, sentiria saltar nela um novo universo... Mas
como pedir a um proletariado corrompido pela moral capitalista uma
resolução viril?
Tal como Cristo, a triste personificação da escravatura antiga, os
homens, as mulheres, as crianças do Proletariado sobem penosamente há
um século o duro calvário da dor: desde há um século que o trabalho
forçado quebra os seus ossos, magoa as suas carnes, dá cabo dos seus
nervos; desde há um século que a fome torce as suas entranhas e alucina
os seus cérebros!... Ó Preguiça, tem piedade da nossa longa miséria! Ó
Preguiça, mãe das artes e das nobres virtudes, sê o bálsamo das
angústias humanas!
Notas do Capitulo 4:
(1) Poissy: Prisão Central.
(2) Simulam ser Curius e vivem como nas Bacanais (Juvenal).
(3) Pantagruel, t. II, Cap. LXXIV.
Apêndice
Os nossos moralistas são pessoas muito modestas; se inventaram o
dogma do trabalho, duvidam da sua eficácia para tranqüilizar a alma,
regozijar o espírito e manter o bom funcionamento dos rins e outros
órgãos; querem experimentar a sua utilização nos populares, in anima vili
antes de o voltar contra os capitalistas, cujos vícios têm como missão
desculpar e autorizar.
Mas, filósofos de quatro tostões a dúzia, porquê preocupardes-vos
assim a elucubrar uma moral cuja prática não ousais aconselhar aos
vossos senhores? O vosso dogma do trabalho, do qual vos mostrais tão
orgulhosos, quereis vê-lo escarnecido, amaldiçoado? Abramos a história
dos povos antigos e os escritos dos seus filósofos e dos seus legisladores.
"Não posso afirmar, diz o pai da história, Heródoto, que os
Gregos receberam dos Egípcios o desprezo que têm pelo
trabalho, porque encontro o mesmo desprezo estabelecido
entre os Trácios, os Citas, os Persas e os Lídios; numa
palavra, por que, na maior parte dos bárbaros, aqueles que
aprendem as artes mecânicas e até mesmo os seus filhos são
considerados como os últimos cidadãos.. - Todos os Gregos
foram educados nestes princípios, especialmente os
Lacedemónios." (1)
"Em Atenas, os cidadãos eram verdadeiros nobres que só se
deviam ocupar da defesa e da administração da comunidade,
como os guerreiros selvagens de onde tinham origem.
Devendo, portanto, estar livres todo o tempo para velar, com
a sua força intelectual e física, pelos interesses da República,
encarregavam os escravos de todo o trabalho.
O mesmo sucedia com a Lacedemónia, onde até as mulheres
não deviam nem fiar nem tecer para não se furtarem à sua
nobreza." (2)
Os Romanos só conhecem duas profissões nobres e livres, a
agricultura e as armas; todos os cidadãos viviam por direito à custa do
Tesouro, sem poderem ser obrigados a prover à sua subsistência por
nenhum dos sordidae artes (designavam assim os misteres) que
pertenciam por direito aos escravos. Brutus, o Velho, para levantar o
povo, acusou sobretudo Tarquínio, o tirano, de ter feito dos artesãos e dos
pedreiros cidadãos livres (3).
Os filósofos antigos discutiam entre si sobre a origem das idéias, mas
estavam de acordo se se tratava de abominar o trabalho.
"A natureza, diz Platão, na sua utopia social, na sua Republica
modelo, a natureza não fez nem o sapateiro nem o ferreiro;
essas ocupações degradam as pessoas que as exercem, vis
mercenários, miseráveis sem nome que pelo seu próprio
estado são excluídos dos direitos políticos. Quanto aos
mercadores acostumados a mentir e a enganar, só serão
suportados na cidade como um mal necessário. O cidadão que
se tiver aviltado pelo comércio será perseguido por esse
delito. Se se provar a acusação, será condenado a um ano de
prisão. A punição será duplicada em cada reincidência." (4)
No seu Económico, Xenofonte escreve:
"As pessoas que se dedicam aos trabalhos manuais nunca são
elevadas a altos cargos e é razoável. Condenadas na sua
grande parte a estar sentadas todo o dia, algumas mesmo a
suportar um fogo contínuo, não podem deixar de ter o corpo
alterado e é muito difícil que o espírito não se ressinta disso. "
"Que pode sair de honroso de uma loja? - confessa Cícero - e
o que é que o comércio pode produzir de honesto? Tudo o que
se chama loja é indigno de um homem honesto [...] uma vez
que os mercadores não podem ganhar sem mentir, e o que há
de mais vergonhoso do que a mentira? Portanto, deve-se
encarar como algo de baixo e de vil o mister de todos aqueles
que vendem o seu esforço e a sua indústria, porque todo
aquele que dá o seu trabalho por dinheiro vende-se a si
mesmo e põe-se ao nível dos escravos." (5)
Proletários, embrutecidos pelo dogma do trabalho, compreendeis a
linguagem destes filósofos, que escondem de vós com cioso cuidado: -
Um cidadão que dá o seu trabalho em troca de dinheiro degrada-se ao
nível dos escravos, comete um crime, que merece anos de prisão?
A hipocrisia cristã e o utilitarismo capitalista não tinham pervertido
estes filósofos das Repúblicas antigas; dirigindo-se a homens livres,
expunham ingenuamente o seu pensamento. Platão, Aristóteles, esses
pensadores gigantes, cujos calcanhares os nossos Cousin, os nossos Caro,
o nossos Simon só podem atingir pondo-se nas pontas dos pés, queriam
que os cidadãos das suas Repúblicas ideais vivessem na maior ociosidade,
porque, acrescentava Xenofonte, "o trabalho tira todo o tempo e com ele
não há nenhum tempo livre para a República e para os amigos". Segundo
Plutarco, o grande título de Licurgo, "o mais sábio dos homens" para
admiração da posteridade, era ter concedido a ociosidade aos cidadãos da
República proibindo-os de exercer qualquer mister (6) .
Mas, responderão os Bastiat, os Dupanloup, os Beaulieu e companhia
da moral cristã e capitalista, esses pensadores, esses filósofos
preconizavam a escravatura. - Perfeitamente, mas acaso podia ser de
outro modo atendendo às condições econômicas e políticas da sua época?
A guerra era o estado normal das sociedades antigas; o homem livre
devia dedicar o seu tempo a discutir os assuntos de Estado e a velar pela
sua defesa, os misteres eram então demasiado primitivos e demasiado
grosseiros para que, ao praticá-los, se pudesse exercer a profissão de
soldado e de cidadão; para possuírem guerreiros e cidadãos, os filósofos e
os legisladores deviam tolerar os escravos nas Repúblicas heróicas. - Mas
os moralistas e os economistas do capitalismo não preconizam o
salariado, a escravatura moderna? E a que homens concede a escravatura
capitalista a ociosidade? - Aos Rothschild, aos Schneider, às Sr.as
Boucicaut, inúteis e prejudiciais, escravos dos seus vícios e dos seus
criados.
"O preconceito da escravatura dominava o espírito de
Pitágoras e de Aristóteles", escreveu-se desdenhosamente; e
no entanto Aristóteles previa que "se cada utensílio pudesse
executar sem intimação, ou então por si só, a sua função
própria, tal como as obras-primas de Dédalo se moviam por si
mesmas ou tal como os tripés de Vulcano que se punham
espontaneamente ao seu trabalho sagrado; se, por exemplo,
as lançadeiras dos tecelões tecessem por si próprias, o chefe
de oficina já não teria necessidade de ajudantes, nem o
senhor de escravos".
O sonho de Aristóteles é a nossa realidade. As nossas máquinas a
vapor, com membros de aço, infatigáveis, de maravilhosa e inesgotável
fecundidade, realizam por si próprias docilmente o seu trabalho sagrado;
e, no entanto, o gênio dos grandes filósofos do capitalismo continua a ser
dominado pelo preconceito do salariado, a pior das escravaturas. Ainda
não compreendem que a máquina é o redentor da humanidade, o Deus
que resgatará o homem das sórdidas artes e do trabalho assalariado, o
Deus que lhe dará tempos livres e a liberdade.
Notas do Apêndice:
(1) Heródoto, t. II, trad. Larcher, 1876.
(2) Biot, De l'Abolition de l'Esclavage Ancien en Occident, 1840.
(3) Tito Lívio, L. 1.
(4) Platão, Repúblicas, 1. V.
(5) Cícero, Des Devoirs, 1, tít. II, cap. XLII.
(6) Platão, República, V e As Leis, III; Aristóteles, Política, II e VII; Xenofontes, Económico, IV e VI; Plutarco,
Vida de Licurgo.
Recordações Pessoais Sobre Karl Marx
Paul Lafargue
Setembro de 1890
Primeira Edição : Des souvenirs sur K. Marx publiés par l'un de ses plus proches
collaborateurs - et son gendre. Paru dans Die Neue Zeit, IX Jhrg., 1890-1891, pp. 10-17,
37-42.
Tradução: Abguar Bastos, no livro "A Filosofia de Carlos Marx", Editora Vitória. Revisão
de Edison Cardoni, para edição "O Capital de Karl Marx", Conrad Editora.
Primeira Edição:...
Transcrição: Alexandre Linares.
HTML: Fernando Araújo, janeiro 2009.
He was a man, take him for all is all,
I shall not look upon his like again.
(Shakespeare – Hamlet, Ato I, Cena 2)
I
Vi Marx, pela primeira vez, em fevereiro de 1865. A Internacional
havia sido fundada em 28 de setembro de 1864, no comício do St.
Martin‟s Hall, em Londres. Eu vinha de Paris para tomar conhecimento dos
progressos da nossa jovem organização. M. Toloin, hoje Senador da
República burguesa e um de seus delegados na Conferência de Berlim,
havia me dado uma carta de apresentação.
Eu tinha, então, 24 anos. Jamais esquecerei a impressão que me
causou este primeiro encontro. Nessa época, achava-se Marx debilitado
fisicamente. Trabalhava no primeiro volume de O Capital, que só veio a
ser publicado dois anos depois, em 1867. Ele temia não poder terminar a
obra e procurava receber cordialmente os jovens, a quem dizia:
“Eu preciso preparar os homens que, depois de mim,
continuarão a propaganda comunista”.
Marx é um desses raros seres que ocupam, ao mesmo tempo, o
primeiro plano na ciência e na vida pública. De tal maneira ele exercia
essas duas atividades, que era difícil saber o que se projetava em primeiro
lugar: se o homem de ciência ou o lutador socialista. Considerando que
toda a ciência deve ser cultivada por si mesma e que nas investigações
científicas jamais se deve temer as conclusões a que se pode chegar, ele
era da opinião de que, se o homem de ciência não quiser ocupar um plano
secundário, deve participar incessante e ativamente da vida pública, sem
fazer do seu gabinete de trabalho ou do seu laboratório um esconderijo,
antes se atirando às lutas sociais e políticas de sua época.
“A ciência não deve significar apenas um prazer egoístico”,
dizia Marx. “Os que têm a oportunidade de se consagrar aos
estudos científicos deverão ser os primeiros a pôr seus
conhecimentos a serviço da humanidade.” Uma de suas frases
favoritas era: “Trabalhar pela humanidade”.
Ainda que se comovesse profundamente com os sofrimentos das
classes trabalhadoras, não foram considerações de ordem sentimental que
o levaram ao comunismo. Impelira-o até aí as conclusões de seus estudos
de história e economia política. Entendia que todo espírito imparcial, não
influenciado pelo interesse privado ou pelos preconceitos de classe,
deveria chegar a essas mesmas conclusões.
Se não levava idéias preconcebidas para o estudo da evolução
econômica e política das sociedades humanas, ao escrever assumia,
entretanto, a firme intenção de difundir o resultado de suas investigações
como base científica do movimento socialista que, até essa época, se
perdia entre as nuvens da utopia. Só se apresentava em público em busca
da vitória do proletariado, que tem por missão histórica instaurar o
comunismo logo que possa tomar em suas mãos a direção política e
econômica da sociedade...
A atividade de Marx não dizia respeito apenas ao seu país de origem:
“Sou cidadão do mundo, dizia, “e trabalho onde me encontro”.
Com efeito, para onde quer que fosse conduzido pelos acontecimentos
e pelas perseguições políticas, na França, na Bélgica e na Inglaterra, ele
participava ativamente dos movimentos revolucionários que se
desenvolviam.
Contudo, menos que o agitador incansável e incomparável, era, de
início, o homem de ciência que eu via nele, aquele que pude observar
trabalhando num quarto do Maitland Park Road, local para onde
constantemente afluíam camaradas de todos os cantos do mundo
civilizado, que vinham se esclarecer com o mestre do pensamento
socialista. O aposento de Marx possui seu sentido histórico. É preciso
conhecê-lo para penetrar na intimidade da vida intelectual de Marx.
Estava situado no primeiro pavimento e o largo balcão, por onde
penetrava abundante luz, dava para o parque. De um e de outro lado da
lareira e de frente para a janela, estavam as estantes repletas de livros,
pacotes de jornais e manuscritos. Diante da lareira, de um dos lados da
janela, viam-se duas mesas cobertas de papéis, livros e jornais. No centro
da sala, na parte mais clara, havia uma mesa singela, de 1 metro de
comprimento por 17 centímetros de largura, e uma poltrona de madeira.
Entre ela e as estantes, diante da janela, via-se um divã de couro que
Marx utilizava para descansar, de vez em quando. Sobre a lareira, havia
também livros misturados com cigarros e maços de tabaco, retratos de
suas filhas, de sua companheira, de Wilhelm Wolff e de Friedrich Engels.
Marx era fumante inveterado. “O Capital”, dizia-me, “jamais me dará
o que já gastei em fumo enquanto o escrevia”. Gastava muitos fósforos.
Distraído, com tanta freqüência deixava o cachimbo ou o cigarro se
apagar que, para reacendê-los, desperdiçava incrível quantidade de
fósforos.
Não permitia que ninguém lhe arrumasse – ou, melhor, lhe
desarrumasse – os papéis. Na realidade, essa desordem era apenas
aparente. Tudo estava no seu devido lugar. Encontrava sempre sem
esforço o livro ou o papel que necessitasse. No decurso de uma conversa,
interrompia-se com freqüência para mostrar num livro uma passagem ou
cifra que queria citar. Estava tão identificado com o ambiente de seu
aposento que os livros lhe obedeciam como partes do próprio corpo.
Na maneira de dispor seus livros, ele não dava importância à simetria
formal. Volumes de todo tamanho, misturados a folhetos, confundiam-se
pitorescamente. Não os arrumava de acordo com as dimensões, mas
levando em conta o assunto. Para Marx, os livros representavam
instrumentos de trabalho e não objetos de luxo. Afirmava:
“Os livros são meus escravos e hão de servir-me de acordo
com meus desejos e com toda a pontualidade”.
Sem levar em conta o formato ou a beleza gráfica, maltratava os
livros, dobrava-os em ângulo, borrava-os e sublinhava tal ou qual trecho.
Não fazia anotações nos livros, mas marcava-os com um ponto de
exclamação ou interrogação quando o autor passava das medidas. Seu
sistema de sublinhar permitia-lhe ir ao assunto sempre que julgasse
oportuno. Tinha o costume de reler seus cadernos de anotações e as
passagens sublinhadas nos livros, guardando os assuntos fielmente na
memória, que era de uma extraordinária precisão. Exercitou-a desde a
adolescência. Seguindo os conselhos de Hegel, decorava versos escritos
em línguas desconhecidas para ele.
Sabia de cor as obras de Heine e Goethe e citava, de memória,
trechos desses autores. Lia poetas de todas as literaturas européias.
Anualmente, relia Ésquilo no texto grego original. Considerava Ésquilo e
Shakespeare os dois maiores gênios dramáticos de todos os tempos.
Dedicou-se a estudar profundamente a obra de Shakespeare, por quem
sentia admiração sem limites. Conhecia o caráter de todas as personagens
criadas pelo dramaturgo inglês. Da sua devoção ao poeta de Hamlet
compartilhava toda a família, tanto que suas filhas conheciam de cor os
trabalhos de Shakespeare.
Depois de 1848, querendo se aperfeiçoar no conhecimento da língua
inglesa, pesquisou e classificou as expressões de Shakespeare. Fez o
mesmo com parte da obra do polemista inglês William Cobbert, a quem
grandemente se afeiçoara. Entre seus poetas favoritos, contavam-se
Dante e Robert Burns. Tinha verdadeiro prazer em ouvir as filhas
recitarem-lhe fragmentos de sátiras ou madrigais do poeta escocês.
Curvier, esse infatigável trabalhador a serviço da ciência, instalara, no
Museu de Paris, que dirigia, vários laboratórios para seu uso pessoal. Cada
laboratório destinava-se a um fim especial e continha livros, instrumentos
e material anatômico adequados. Quando Curvier se sentia fatigado com
determinada pesquisa, passava a outro laboratório, aí continuando outro
tipo de estudo. Essa simples troca de atividade representava para ele
saudável repouso.
Marx, trabalhador tão incansável quanto Curvier, não dispunha de
meios para instalar tantos laboratórios. Sua forma de descansar era
passear pelo quarto. Seus passos como que estavam impressos no tapete,
já desgastado, desde a porta até a janela.
De quando em quando, estirava-se no divã e lia um romance. Às
vezes, lia dois ou três de uma vez, andando de um lado para outro. Como
Darwin, era grande leitor de romances. Tinha preferência pelos do século
XVIII, interessando-se, em particular, por Tom Jones, de Fielding. Os
autores contemporâneos seus de que mais gostava eram Paul de Kock,
Charles Lever, Alexandre Dumas, pai, e Walter Scott, cuja obra Old
Mortalítis considerava magistral. Admirava as narrações alegres e de
aventuras. Cervantes e Balzac eram também autores de sua predileção.
Em Dom Quixote via os derradeiros dias da cavalaria andante, que teve
seus méritos transformados em objeto de chacota e escárnio, por parte do
nascente mundo burguês. Sentia tal interesse por Balzac que se propunha
escrever uma obra crítica sobre A Comédia Humana “logo que terminasse
seus trabalhos sobre economia”.
Balzac não foi só o historiador da sociedade de seu tempo, mas
também o criador de tipos proféticos que, na época de Luís Felipe,
existiam apenas em estado embrionário, só se desenvolvendo
completamente ao tempo de Napoleão III.
Marx lia com perfeição todas as línguas européias e escrevia em três:
alemão, francês e inglês, causando admiração aos nativos dessas línguas.
“Um idioma estrangeiro é uma arma nas lutas da vida”, dizia muitas
vezes. Tinha muita facilidade em adquirir conhecimentos de qualquer
idioma. Aos 50 anos, começou a estudar o russo e, ainda que esta língua
nada tivesse em comum com a etimologia das línguas que conhecia, em
seis meses já lia trechos de escritores e poetas russos, como Gogol,
Puchkin e Chtcherín. O que o levou a aprender o russo foi o desejo de ler
diretamente os documentos de comissões de inquérito oficiais cuja
divulgação era proibida pelo Governo do Tzar em virtude das terríveis
revelações que continham. Amigos devotados enviavam essa
documentação a Marx, que, seguramente, foi o único economista da
Europa Ocidental que pode conhecê-la.
Além dos poetas e romancistas, Marx tinha um modo original de se
distrair a matemática. A álgebra era para ele como um conforto moral e
lhe serviu de refúgio nos momentos mais difíceis e dolorosos de sua
agitada existência. Durante a última enfermidade de sua mulher, foi-lhe
impossível ocupar-se de seus trabalhos científicos. E o único meio que
encontrou para subtrair-se à dor que lhe causava a doença da
companheira foi refugiar-se no árido campo da matemática.
Foi durante esse período de sofrimentos morais que ele escreveu um
trabalho sobre cálculo infinitesimal, obra de grande valor, segundo os
matemáticos que a conheceram. No campo das matemáticas superiores,
Marx recuperava o movimento dialético em sua forma mais lógica e mais
simples. Era de opinião de que uma ciência não podia verdadeiramente
desenvolver-se senão quando pudesse utilizar a matemática.
A biblioteca de Marx, que se compunha de mais de mil volumes,
reunidos cuidadosamente durante uma longa vida consagrada às
investigações científicas, não lhe bastava. Durante anos, foi freqüentador
assíduo da biblioteca de do British Museum, em Londres, cujo extenso
catálogo apreciava.
Seus próprios adversários eram obrigados a reconhecer a extensão e
a profundidade de seus conhecimentos, não só na sua especialidade
característica, a economia política, mas também no que se refere à
história, à filosofia e à literatura universal.
Ainda que se deitasse tarde da noite, levantava-se entre oito e nove
da manhã, tomava café, lia os jornais e permanecia no seu gabinete de
trabalho até a madrugada. Seu labor não era interrompido senão para
comer e passear, de tarde, em Hampstead Heath, quando o tempo o
permitia. De dia, repousava no sofá durante uma ou duas horas. Na sua
juventude, passava noites inteiras entregue ao trabalho
Para ele, o trabalho se tornou uma verdadeira paixão, a ponto de
fazê-lo esquecer as refeições. Era preciso insistir para que se alimentasse.
Logo que acabava de comer, atirava-se novamente ao trabalho. Comia
pouco e, como tivesse pouco apetite, estimulava-o com pratos
condimentados de vários modos: presunto, pescado, caviar, pepinos. A
pouca atividade do estômago contrastava com a da cabeça.
Pelo cérebro, sacrificava todo o corpo. Pensar era sua maior alegria.
Ouvi-o, muitas vezes, repetir as palavras de Hegel, seu mestre de filosofia
dos tempos da juventude:
“Até o pensamento criminoso de um bandido é maior e mais
nobre do que todas as maravilhas do céu”.
Tão contínuo e extenuante era seu trabalho intelectual e esse modo
de vida tão incomum que, para suportá-lo, precisava de uma constituição
física privilegiada. E, de fato, Marx era solidamente construído. Estatura
além da mediana, ombros largos, peito bem desenvolvido e corpo
proporcional, com exceção do tronco, um pouco longo em relação às
pernas, o que é muito freqüente entre os judeus. Se, na juventude,
houvesse feito exercícios físicos, teria sido extraordinariamente forte. O
único exercício que praticava regularmente era andar a pé. Podia ficar
andando ou escalando colinas por horas inteiras, tagarelando e fumando,
sem demonstrar a menor fadiga. Mesmo enquanto trabalhava, ficava
andando no gabinete. Sentava por curtos momentos para anotar alguma
coisa que lhe ditava o cérebro, sempre em perpétua atividade. Gostava de
falar enquanto andava, parando, uma vez ou outra, ao surgir um tema
interessante.
Acompanhei-o durante anos em seus passeios por Hampstead Heath.
Foi percorrendo os prados que adquiri meus conhecimentos de economia.
Talvez sem se dar conta disso, Marx desenvolvia perante mim o conteúdo
de seu primeiro volume de O Capital na mesma ordem em que o escrevia.
Assim que voltávamos dos passeios, eu sempre fazia meu melhor
esforço para anotar o que ele havia dito. No começo, eu tinha muita
dificuldade em acompanhar o fio de seu pensamento, tão profundo e
complexo. Infelizmente, perdi essas preciosas anotações. Depois da
Comuna, a polícia apoderou-se dos papéis que eu tinha em Paris e
Bordeaux.
A perda que mais lastimo é das anotações que fiz uma tarde, após
ouvir, de Marx, com a riqueza de demonstrações e seu brilho peculiar, a
genial teoria do desenvolvimento da sociedade humana. Como se um véu
se rasgasse ante meus olhos, compreendi, pela primeira vez em minha
vida, a lógica da história e as causas materiais das manifestações,
aparentemente tão contraditórias, do desenvolvimento da sociedade e do
pensamento humanos. Fiquei como atordoado e, durante anos, guardei a
mais forte das impressões.
O mesmo efeito causei aos socialistas de Madrid, quando reconstitui,
ante eles, com meus parcos recursos, essa teoria, a mais genial das
teorias de Marx, uma das mais geniais, sem dúvida, que já brotou de um
cérebro humano.
Marx recordava-se de uma inesgotável multiplicidade de fatos
históricos e das ciências naturais, assim como de teorias filosóficas, de
conhecimentos e observações amealhadas no curso de um longo trabalho
intelectual e dos quais ele se servia admiravelmente. A qualquer
momento, podia-se perguntar a Marx as coisas mais variadas, na certeza
de que se obteriam respostas sempre oportunas. Seu cérebro era como
um navio de guerra ainda no porto, mas com a caldeira em ebulição,
sempre pronto a partir não importava em qual direção do oceano do
pensamento.
O Capital revela, por certo, uma inteligência de vigor e riqueza
extraordinários, mas para mim, como para todos os que conheceram Marx
de perto, nem O Capital, nem outra de suas obras, refletia a envergadura
de seu gênio e de seu saber, que, de fato, estava muito acima do que
escreveu.
Trabalhei com ele. Apesar de não passar de um secretário a quem ele
ditava os textos, pude observar sua maneira de pensar e escrever. O
trabalho, para ele, era, ao mesmo tempo, fácil e difícil: fácil, porque os
fatos e as idéias referentes aos temas se atropelavam em seu espírito;
difícil, precisamente em razão dessa abundância de referências que
embaraçava e tornava mais longa a exposição completa de suas idéias.
Dizia Vico:
“As coisas só são corpos para Deus, que tudo sabe; para os
homens, que só vêm o exterior, não passam de superfícies”.
Marx captava os fenômenos à maneira da divindade, à maneira de
Vico. Não via apenas a dimensão superficial das coisas. Penetrava nelas,
estudava todos os elementos, as ações e reações recíprocas, isolava um
por um desses elementos e pesquisava-lhes a evolução e o
desenvolvimento. Em seguida, passava ao estudo do meio ambiente e
observava efeitos e reciprocidades. Ele remontava à origem do objeto de
estudo, às transformações, evoluções e revoluções que eles haviam
sofrido para alcançar, enfim, seus efeitos mais longínquos. Não se detinha
no fenômeno isolado, mas relacionava-o com o ambiente. Via a
complexidade do mundo em perpétua atividade.
Queria expressar toda a vitalidade desse mundo em suas ações e
reações, tão variadas e em contínua transformação. Escritores da escola
de Flaubert e dos Goncourt queixam-se das dificuldades que a realidade
apresenta para ser refletida com exatidão. E, no entanto, o que eles
pretendem fixar é apenas a dimensão superficial de que nos fala Vico, a
impressão produzida pelas coisas. A atividade literária de Flaubert e dos
Goncourt é simples jogo infantil comparada ao trabalho de Marx. Era
preciso extraordinária potência intelectual para apreender a realidade e
capacidade artística não menos extraordinária para descrevê-la.
Marx nunca estava satisfeito com o que produzia. Vivia
constantemente fazendo mudanças e sempre achava que a expressão era
inferior à concepção.
Ele reunia as duas qualidades do pensador genial. Sabia como
ninguém dissecar os diversos elementos componentes de um objeto e,
descobrindo sua íntima harmonia, reconstruí-lo, depois, magistralmente,
em todos o seus detalhes e formas diferentes de desenvolvimento. Suas
demonstrações não se apoiavam em abstrações como o acusam os
economistas incapazes de pensar. Marx não empregava o método dos
geômetras que, depois de ter tirado suas definições do meio ambiente,
abstraem completamente a realidade quando se trata de deduzir
conseqüências. Não se encontra em O Capital uma definição única, uma
fórmula única, mas sim uma série de análises extremamente criteriosas,
revelando as nuanças mais sutis e até as menores diferenças.
Marx começa comprovando o fato evidente de a riqueza das
sociedades em que predomina o modo de produção capitalista aparecer
como uma imensa acumulação de mercadorias. A mercadoria – fato
concreto e não abstração matemática – é, pois, o elemento, a célula da
riqueza capitalista. Marx vira e revira a mercadoria, examina-a em todos
os sentidos, penetra-lhe o interior, e, afinal, um atrás do outro, desdobra-
lhe todos os segredos, dos quais os economistas oficiais não tinham a
menor idéia, ainda que tais segredos sejam mais numerosos e mais
profundos que os mistérios da religião católica. Depois de examinar a
mercadoria em todos os seus aspectos, ele descobre a relação que se
estabelece entre elas com a troca. Chega logo à produção e suas
condições históricas. Estudando as diferentes formas da mercadoria,
mostra como ela passa de uma a outra e como uma determina
necessariamente a outra. O desenvolvimento lógico dos fenômenos está
apresentado com arte tão perfeita que quase se poderia crer que Marx o
inventou. E, no entanto, ele tudo deduziu e outra coisa não fez senão
expressar o movimento dialético da mercadoria.
Marx sempre foi extremamente consciencioso em seus trabalhos. Não
se utilizava jamais de um fato, uma cifra ou de uma data sem que se
apoiasse nas fontes mais autorizadas. Não se satisfazia com informações
de segunda mão, mas procurava sempre as fontes, qualquer que fosse o
esforço que isso lhe custasse.
Era capaz de ir à biblioteca do British Museum para comprovar o mais
insignificante fato. Seus críticos nunca puderam acusá-lo da menor
inexatidão ou provar que, em alguma de suas demonstrações, se apoiasse
em fatos que não resistissem ao mais rigoroso exame.
O hábito de ir às origens, levou-o a ler autores muito pouco
conhecidos e por ninguém citados, a não ser por ele. O Capital contém tal
quantidade dessas citações que não é de admirar ver-se alguém tentado a
crer que o autor assim o fez por prazer ou vaidade de fazer brilhar seus
conhecimentos. No entanto, nada mais injusto:
“Exerço a justiça histórica”, e, dizia Marx “e dou a cada qual o
que lhe pertence”.
Considerou, com efeito, que era seu dever indicar o autor, por mais
desconhecido ou pouco importante que fosse, que fora o primeiro a
expressar uma idéia ou a fazê-lo da melhor maneira.
Sua consciência literária era tão severa quanto sua consciência
científica. Não só jamais se basearia em fato de que não tivesse plena
certeza, como não se permitiria abordar pontos que não tivesse estudado
a fundo. Só publicava alguma coisa após refazê-la tantas vezes quantas
julgasse necessário, até atingir a forma adequada. Não podia suportar a
idéia de oferecer ao público um estudo insuficientemente trabalhado. Para
ele, era verdadeiro martírio ser obrigado a mostrar seus manuscritos
antes do último toque. Tão forte era esse sentimento, que, um dia, me
disse que preferiria queimar seus manuscritos a deixá-los incompletos.
Seus métodos de trabalho impunham-lhe tarefas das quais seus
leitores não poderão ter a menor idéia. Assim se explica que, para
escrever aquelas vinte páginas de O Capital sobre a legislação trabalhista
inglesa relativa à proteção do trabalho, se obrigasse a estudar toda uma
biblioteca de “livros azuis”, que continham os relatórios das comissões de
inquérito e dos inspetores de fábricas da Inglaterra e da Escócia. Leu
todos esses livros, do princípio ao fim, segundo se pode atestar pelos
numerosos sinais a lápis que neles fez. Achava que tais informes
perfilavam entre os documentos mais importantes que existiam para o
estudo do regime de produção capitalista e, a propósito, tinha opinião tão
elevada dos homens que os elaboraram que duvidava que se pudesse
encontrar em qualquer outro país da Europa “homens tão capazes e tão
imparciais quanto os inspetores de fábrica da Inglaterra”. Não lhes
regateou sua estima no prefácio de O Capital.
Foi considerável o material encontrado por Marx naqueles livros azuis.
Muitos dos membros da Câmara dos Comuns, como da Câmara dos
Lordes, para os quais eram distribuídos, não utilizavam esses livros a não
ser, por assim dizer, como alvos, sobre os quais atiravam, para medir,
conforme o número de páginas que a bala atravessasse, a força de
percussão da arma. Houve quem vendesse tais livros a peso. Foi o melhor
que fizeram, pois permitiram a Marx, pelo menos, comprá-los a baixo
preço na casa de um comerciante de Long Acre, onde costumava ir de
tempos em tempos para passar em revista livros e papeladas. Dizia o
professor Beesly que Marx era o homem que mais utilizara os inquéritos
oficiais da Inglaterra, oferecendo-os ao conhecimento do mundo. Beesly
dizia isso porque, sem dúvida, não sabia que, antes de 1845, Engels
extraíra numerosos documentos dos livros azuis, com que enriqueceu sua
obra sobre a situação da classe operária na Inglaterra.
II
Para conhecer e amar o coração que batia no nobre peito do sábio,
era preciso vê-lo, nas tardes de domingo, quando, fechados os livros e
cadernos, ficava entre os seus, rodeado de amigos. Nesses momentos,
revelava-se o companheiro mais agradável que se podia imaginar. Estava
sempre disposto a rir, cheio de alegria e bom humor. Seus olhos negros,
sombreados por espessas sobrancelhas, brilhavam de contentamento e
jovial ironia, toda vez que ouvia uma boa frase espirituosa ou alguma
réplica pertinente.
Era pai doce, terno e indulgente. “Os filhos deviam educar os pais”,
costumava dizer. Nunca fez sentir aos filhos, que o amavam com loucura,
a mais insignificante partícula de autoridade. Não lhes dava ordens, mas
pedia-lhes as coisas por obséquio, persuadindo-os a não fazer aquilo que
fosse contrário aos seus desejos. Apesar disso, era obedecido como
poucos pais o seriam. Suas filhas viam nele um amigo e o tratavam com
camaradagem. Não o chamavam de “pai”, mas sim de “Mouro”, apelido
que lhe haviam dado por causa de sua cor mate, de sua barba e cabelos
negros. Em compensação, desde antes de 1848, os membros da Liga dos
Comunistas chamavam-no de “pai Marx”, apesar de ele ainda não ter 30
anos nessa época.
Muitas vezes acontecia passar horas inteiras brincando com as filhas.
Elas não esqueciam as batalhas navais travadas dentro de um barril, com
os incêndios de frotas inteiras de barcos de papel, que Marx construía e
queimava, com enorme entusiasmo das pequenas.
Suas filhas não lhe permitiam trabalhar aos domingos. Era um dia
reservado para elas. Quando fazia bom tempo, toda a família ia passear
no campo. Detinham-se nas pousadas do caminho para beber cerveja de
gengibre e comer pão e queijo. Quando as filhas eram pequenas,
procurava distraí-las, durante o passeio, contando-lhes intermináveis
histórias de fadas, para que o caminho lhes parecesse mais curto. O
próprio Marx inventava tais estórias enquanto andavam, que se tornavam
mais longas na razão direta da extensão do caminho. De maneira que as
meninas, atentas aos contos, esqueciam as fadigas.
Marx possuía incomparável veia poética. Foram poesias os seus
primeiros trabalhos literários. Sua mulher guardava, cuidadosamente, as
obras que ele traçara na mocidade. Porém, não as mostrava a ninguém.
Os pais de Marx haviam sonhado encaminhar o filho na carreira de
homem de letras e de professor. Eles estimavam que Marx estava
reduzindo suas possibilidades ao consagrar suas energias à agitação
socialista e ao estudo de economia política, ciência, na época, muito pouco
admirada na Alemanha.
Marx prometeu às filhas que lhes escreveria um drama sobre os
Gracos. Infelizmente, não pôde cumprir a palavra. Seria interessante ver
como ele, a quem chamavam “o cavaleiro da luta de classes”, trataria
aquele trágico e grandioso episódio da luta de classes do mundo antigo.
Marx alimentou grande números de projetos que não pôde realizar.
Propunha-se, por exemplo, escrever uma Lógica e uma História da
Filosofia, que haviam sido, quando jovem, seus estudos favoritos.
Precisaria viver cem anos para executar seus projetos literários e dar ao
mundo uma parte dos inumeráveis tesouros guardados em seu cérebro.
Durante toda sua vida, sua mulher foi uma companheira na
verdadeira acepção da palavra. Conheceram-se crianças e cresceram
juntos. Marx ainda tinha 17 anos, quando ficaram noivos. Tiveram que
esperar nove anos para se casar, o que fizeram em 1843, não se
separando mais desde então. A senhora Marx morreu pouco tempo antes
do marido. Embora nascida e educada no seio de uma família de
aristocratas alemães, ninguém mais do que ela tinha o sentimento da
igualdade. Não existiam para ela diferenças ou categorias sociais.
Em sua casa e à sua mesa, recebia e fazia sentar operários com suas
roupas de trabalho, tratando-os com a mesma cortesia com que trataria
um príncipe. Grande número de operários, de todos os países, gozaram de
sua amável hospitalidade e, hoje, estou mesmo persuadido de que
nenhum deles jamais desconfiou que quem os recebia com tanta
simplicidade e franca cordialidade descendia, pelo lado materno, da
família dos duques de Argyll, e que seu irmão fora ministro do rei da
Prússia. Ela abandonara tudo para acompanhar o seu Marx e nunca,
mesmo nos dias da mais extrema miséria, lamentou o que fizera.
Seu espírito era vivo e jovial. Manejava a pena com facilidade. As
cartas que escreveu aos seus amigos são verdadeiras obras de arte e
revelam originalidade e vivacidade espiritual. Receber uma carta da
senhora Marx era uma felicidade. Jean-Philippe Becker publicou muitas
delas. Henri Heine, o impiedoso satírico, se temia a ironia de Marx, era,
por outro lado, grande admirador da inteligência fina e penetrante da
mulher. Na época em que o casal Marx vivia em Paris, Heine visitava-o
com assiduidade. Marx tinha opinião tão elevada a respeito da inteligência
e do espírito crítico da mulher, que – dizia-me em 1866 – sempre a punha
a par de seus escritos e dava grande valor às suas observações. Era a
senhora Marx quem passava a limpo os manuscritos de Marx, preparando-
os para a impressão.
A senhora Marx teve muitos filhos. Três deles morreram na infância,
durante o período de privações que a família atravessou depois da
revolução de 1848, quando, refugiada em Londres, teve que se abrigar
nos casebres de Dean Street, perto de Soho Square. Eu só conheci as três
filhas. Quando, em 1865, fui, pela primeira vez, apresentado em casa de
Marx, Leonor, a mais moça, que se tornou a senhora Aveling, era uma
jovem encantadora, com temperamento de rapaz. Marx costumava dizer
que a esposa se equivocara quanto ao sexo dessa filha, ao apresentá-la
ao mundo como mulher. As outras moças constituíam o mais belo e
harmonioso contraste que se possa imaginar. A mais velha, a senhora
Longuet, tinha, como o pai, a cor mate e negríssimos cabelos e olhos. A
segunda, senhora Lafargue, era loura e tinha a pele clara. Sua opulenta
cabeleira brilhava como se, nela, o Sol fizesse seu ocaso; parecia-se muito
com a mãe.
Além das pessoas a que acabamos de nos referir, a família Marx
contava com mais uma pessoa importante: a senhorita Helena Demuth.
Procedia de uma família de camponeses e era bem nova quando entrou
para o serviço da senhora Marx, ainda muito antes de ela se casar. Helena
Demuth não quis abandonar a patroa mesmo depois do matrimônio com
Marx. Era tão devotada à família Marx que esquecia de si mesma.
Acompanhou a senhora Marx e seu marido por todas as suas viagens pela
Europa e compartilhou das expulsões e vicissitudes.
Ela era o gênio bom da casa e sabia atravessar as situações mais
difíceis. Graças à sua habilidade e medidas de ordem e economia, a
família Marx não se viu obrigada a privar-se do mínimo necessário à
existência. Sabia fazer tudo: cozinhava, arrumava a casa, vestia as
crianças, costurava com o auxílio da senhora Marx. Era, ao mesmo tempo,
a economista e a governanta da casa que dirigia. As meninas queriam-na
como segunda mãe e Helena, por sua vez, exercia sobre elas uma
autoridade maternal, porque lhes tinha uma afeição maternal. A senhora
Marx tratava Helena como amiga íntima, e Marx tinha por ela especial
consideração: disputavam partidas de xadrez, as quais Marx, muitas
vezes, perdia.
A dedicação de Helena para com a família Marx era cega. Tudo que os
Marx faziam estava certo e nada a convencia do contrário. Quem
criticasse Marx já podia contar com a inimizade de Helena, como podia
contar com sua maternal proteção quem merecesse as simpatias da
família. Tutelava, por assim dizer, toda a família Marx. Helena sobreviveu
ao casal. Em seguida, passou a trabalhar na casa de Engels, a quem
conhecera na mocidade e a quem dedicava o afeto que sentia pelos Marx.
Por outro lado, Engels era como um ramo da família Marx, cujas filhas
chamavam-no de segundo pai. Era o alter ego de Marx. Durante muito
tempo, esses dois nomes gloriosos, que a história reunirá para sempre,
viveram ligados na Alemanha. Realizaram os dois, em nosso século, essa
amizade ideal que os poetas antigos celebravam. Desde a juventude se
desenvolveram juntos e paralelamente, vivendo na mais íntima comunhão
de idéias e sentimentos. Participaram da mesma agitação revolucionária
e, tanto tempo quanto puderam, permaneceram e trabalharam juntos.
Seria provável que trabalhassem em comum a vida inteira, se os
acontecimentos não os obrigassem a viver separados cerca de vinte anos.
Depois do fracasso da revolução de 1848, Engels viu-se forçado a seguir
para Manchester, enquanto Marx era obrigado a permanecer em Londres.
Continuaram, entretanto, a comunicar-se quase diariamente, emitindo
opiniões sobre o que ia acontecendo, política e economicamente, assim
como dando conta de sua atividade intelectual. Logo que foi possível,
Engels trocou Manchester por Londres, passando a morar a uma distância
de apenas dez minutos da casa de Marx. E, desde 1870 até a morte do
amigo, Engels não passou um só dia em que não o visse e, cada um,
alternadamente, era encontrado na casa do outro.
No dia em que Engels anunciou sua vinda para Londres, houve
verdadeira festa na casa de Marx. Não se falou noutra coisa muito tempo
antes e muito tempo depois de sua chegada. Marx ficou tão impaciente
que nem podia trabalhar. Os dois permaneceram a noite inteira bebendo e
fumando, sendo pouco o tempo para contarem reciprocamente os fatos
ocorridos desde a data em que haviam se separado.
A opinião de Engels estava, para Marx, acima de qualquer outra, pois
era o único homem que considerava com capacidade de ser seu
colaborador. Para ele, Engels era uma audiência completa. Para persuadi-
lo, para ganhá-lo para suas idéias, nenhum trabalho lhe parecia
demasiado longo.
Vi-o, uma vez, revolvendo livros e manuseando-os, de ponta a ponta,
até encontrar referência a certos fatos, que eram necessários exumar,
para modificar a opinião de Engels no que se referia a um ponto sem
importância, de que já me esqueci, da cruzada política e religiosa dos
albigenses. Para Marx, era um triunfo conquistar a aquiescência de
Engels.
Marx orgulhava-se do amigo. Descrevia-me com satisfação todas as
qualidades morais e intelectuais de Engels. Levou-me a Manchester
exclusivamente para me apresentá-lo.
Enchia-se de admiração pela extraordinária variedade de
conhecimentos científicos de Engels. Estava sempre a temer que o amigo
fosse vítima de algum acidente.
“Tenho medo”, dizia-me, “que lhe ocorra alguma desgraça,
durante uma dessas caçadas em que tão apaixonadamente
toma parte e que o levam a cavalgar e transpor os campos a
galope.”
Marx era tão bom amigo quanto esposo e pai. Mas é preciso também
dizer que ele teve a felicidade de encontrar na mulher, nas filhas, em
Helena e em Engels criaturas que mereciam ser amadas por um homem
como ele.
III
Marx, que começara como um dos chefes da burguesia radical, viu-se,
logo após, abandonado, no momento em que sua oposição se tornou
decisiva, e tratado como inimigo desde que se tornou comunista. Depois
de o insultarem, caluniarem e expulsarem de sua terra natal, organizaram
contra ele e seus trabalhos a conspiração do silêncio. O 18 Brumário, que
demonstrou que, de todos os historiadores e homens políticos do ano de
1848, Marx foi o único que compreendeu e expôs claramente as
verdadeiras causas e conseqüências do golpe de Estado de 2 de dezembro
de 1851, permaneceu completamente ignorado. Nenhum só jornal
burguês noticiou o aparecimento desse trabalho, apesar de sua
atualidade.
O mesmo aconteceu com Miséria da Filosofia, resposta à Filosofia da
Miséria, de Proudhon, assim como com a Crítica da Economia Política. Mas
essa conspiração do silêncio, que durou quinze anos, não deu em nada
com a criação da Internacional e o aparecimento do primeiro volume do O
Capital. A partir dessa ocasião, Marx não podia mais ser ignorado. A
Internacional progredia incessantemente e o eco de seus atos repercutiam
no mundo inteiro. Marx se colocara em último plano, deixando outros
ocuparem a cena principal, mas logo se descobriu que era ele o
verdadeiro dirigente e criador de tudo aquilo.
Na Alemanha, fundara-se o Partido Social Democrata, que cresceu
rapidamente, a ponto de se transformar numa força que Bismarck se
esforçou por conquistar, antes de passar à repressão. Schweizer, o
partidário de Lassalle, publicou uma série de artigos muito apreciados por
Marx e por meio dos quais O Capital se tornou conhecido do público
proletário. Por proposta de Jean-Phillippe Becker, o Congresso da
Internacional decidiu chamar a atenção dos socialistas de todos os países
sobre O Capital, que ele chamava de “Bíblia da classe operária”.
Depois da insurreição de 18 de março de 1871, em que se quis ver o
dedo da Internacional, e depois da derrota da Comuna de Paris, que o
Conselho Geral da Internacional defendeu contra a campanha de calúnias
da imprensa burguesa de todos os países, o nome de Marx tornou-se
célebre em todo o mundo.
Ele foi, então, reconhecido como o teórico irrefutável do socialismo
científico e como o organizador do primeiro movimento operário
internacional. O Capital tornou-se o livro obrigatório dos socialistas de
todos os países. Todos os jornais socialistas e os operários popularizaram
seus ensinamentos. Na América, durante uma greve monstro em Nova
York, publicaram-se trechos sob a forma de panfletos para encorajar os
operários a resistir e para lhes demonstrar a justeza de suas
reivindicações.
O Capital foi traduzido para as principais línguas européias: russo,
francês e inglês. Publicaram-se resumos em alemão, italiano, francês,
espanhol e holandês. Toda vez que, na Europa ou na América, os
adversários da teoria de Marx tentavam refutar suas teses, os
economistas-socialistas encontravam, imediatamente, a resposta
adequada com que lhes fechavam a boca. O Capital é, hoje, realmente,
aquilo que o Congresso da Internacional designava por “Bíblia operária”.
Os cuidados que Marx dedicava ao movimento socialista não lhe
davam folga para levar adiante sua atividade científica. A morte da mulher
e da filha mais velha, a senhora Longuet, exerceu influência funesta para
a marcha de seus trabalhos.
Era profundo o afeto que Marx sentia pela esposa, cuja beleza lhe fora
motivo de orgulho e alegria e cuja bondade e espírito de sacrifício o
haviam ajudado a suportar as privações materiais, eterna companheira de
sua agitada vida de socialista revolucionário. A enfermidade, que acabou
levando a vida da senhora Marx, também terminou por abreviar os dias do
marido. Durante o tempo em que durou aquela longa e dolorosa doença,
Marx, esgotado pelas emoções, vigílias, falta de ar e de exercícios,
contraiu uma bronquite que quase o levou.
A senhora Marx faleceu a 2 de dezembro de 1881, comunista e
materialista, como ela foi durante a vida. Não se assustou com a morte.
Quando sentiu que se aproximava o fim, exclamou: “Karl, as forças me
abandonam”. Essas foram suas últimas palavras. Foi sepultada, a 5 de
dezembro, no cemitério de Highgate, na seção dos “malditos”
(unconsacrated ground, terra profana). De acordo com os hábitos de toda
sua vida, em concomitância com os de Marx, evitaram-se solenidades no
enterro. Só alguns amigos íntimos acompanharam os restos mortais à sua
última morada. Antes de descer o caixão, Engels, o velho e querido amigo
de Marx, pronunciou um discurso à beira do túmulo.
Desde a morte de sua companheira, a vida de Marx não foi mais que
uma cadeia de sofrimentos físicos e morais, que suportou estoicamente e
que se agravaram ainda mais com a morte da filha mais velha, a senhora
Longuet, morte essa sobrevinda repentinamente, um ano mais tarde.
Desde esse momento, Marx perdeu de vez a saúde. Morreu, em sua mesa
de trabalho, a 14 de março de 1883, com 65 anos de idade.