o direito À moradia

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1 O DIREITO À MORADIA (ensaio) 1 Premissas socioeconômicas cingidas à origem dos sérios desarranjos sociais no país e que apontam para a solução orçamentária, e política, do problema habitacional; 2 Análise da base teórica e normativa fomentadora da plena viabilidade do direito à moradia como um dos mais relevantes direitos sociais; 3 A existência de uma estrutura jurídica apta a possibilitar a efetivação plena dos direitos sociais, em especial, o direito à moradia no ambiente judiciário; 4 Exemplificação prática de soluções jurídicas passíveis de implementação: conclusões. Palavras chave: direitos humanos, direito à moradia, direitos sociais. Wagner Giron de la Torre Defensor Público no Estado de São Paulo

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Page 1: O DIREITO À MORADIA

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O DIREITO À MORADIA (ensaio)

1 Premissas socioeconômicas cingidas à origem dos sérios desarranjos sociais

no país e que apontam para a solução orçamentária, e política, do problema

habitacional; 2 Análise da base teórica e normativa fomentadora da plena

viabilidade do direito à moradia como um dos mais relevantes direitos sociais;

3 A existência de uma estrutura jurídica apta a possibilitar a efetivação plena

dos direitos sociais, em especial, o direito à moradia no ambiente judiciário; 4

Exemplificação prática de soluções jurídicas passíveis de implementação:

conclusões.

Palavras chave: direitos humanos, direito à moradia, direitos sociais.

Wagner Giron de la Torre

Defensor Público no Estado de São Paulo

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“ (...) Posto diante de todos estes homens reunidos, de todas

estas mulheres, de todas estas crianças (sede fecundos,

multiplicai-vos e enchei a terra, assim lhes fora mandado),

cujo suor não nascia do trabalho que não tinham, mas da

agonia insuportável de não o ter, Deus arrependeu-se dos

males que havia feito e permitido, a um ponto tal que, num

arrebato de contrição, quis mudar o seu nome para um outro

mais humano. Falando à multidão, anunciou: "A partir de

hoje chamar-me-eis Justiça". E a multidão respondeu-lhe:

"Justiça, já nós a temos, e não nos atende". Disse Deus:

"Sendo assim, tomarei o nome de Direito". E a multidão

tornou a responder-lhe: "Direito, já nós o temos, e não nos

conhece". E Deus: "Nesse caso, ficarei com o nome de

Caridade, que é um nome bonito". Disse a multidão: "Não

necessitamos caridade, o que queremos é uma Justiça que se

cumpra e um Direito que respeite".

(José Saramago, in "Terra")

Os Desconcertos:

1 Para que não se diga que deixou-se aqui de falar das flores,

fica consignado que pela lógica do mercado - esse ente intangível, elevado, nestes

tempos neoliberais, a parâmetro primevo na valoração de todas as coisas - que

estamos a viver, segundo dados fornecidos pela conceituada e internacional agência

de aconselhamentos financeiros "AC Nilsen", em um país que na última década

elevou seu consumo em fraldas descartáveis ao patamar de 859%; cresceu também em

369% no consumo de "mistura para bolos"; 310% em alimentos para gatos; 273% na

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alimentação para cães; 201% o nicho mercantil para massas instantâneas; 176% em

cereais matinais e 81% o consumo de água mineral.

Insuflados por esses prodígios mercadológicos, os investidores

internacionais, ainda segundo aquela referida agência, vêem o Brasil como o 4º maior

mercado do mundo no segmento de "máquinas de lavar roupas", pois, por influxo

direto do liberalismo econômico que nos foi impingido nas últimas décadas,

atingimos a venerável soma de 1,3 milhão de lavadoras de roupa (82% mais do que o

desenvolvido Canadá); no mesmo período consumimos 8,02 trilhões de litros de

refrigerantes (343% mais do que o sobredito Canadá), feito que nos guindou ao 3º

maior "mercado" do mundo nesse meandro consumerista. Também geramos o

significativo montante de US$1,3 bilhão em alimentos diet ou light e US$ 1,2 bilhão

em Cds., constituindo o 5º maior mercado fonográfico do orbe terrestre e desde 2001

contávamos com 11 milhões de usuários da internet, equivalentes a 40% do total na

América Latina nessa área do mundo virtual1.

Em contraposição a todos esses feitos mercantis, que só

orgulho geram ao ingente capitalismo engendrado por nossas elites, malgrado, ainda,

as enormes benesses neoliberais acima expendidas, abarcamos, infelizmente, uma

vasta e esquecida nação de miseráveis, na qual as crianças são as que mais sofrem.

Como estamos já a perceber e ora por constatar, um rincão tão

próspero para dar de comer a cães e gatos, não é capaz de alimentar todos os seus

habitantes. Segundo a pesquisa intitulada "Mapa da Fome II", levada a efeito pela

Fundação Getúlio Vargas e divulgada em setembro de 2003, neste país vicejam

mais de 50 milhões de pessoas que vivem abaixo da linha da pobreza, ou seja, que

insistem em sobreviver com renda inferior a R$ 78,83 mensais, dos quais 6 milhões

são crianças, consoante informa a Unicef 2.

1 Marins, Luiz, "A Parte Cheia do Cálice Chamado Brasil", colhido da web em setembro de 2001. 2 "Folha Online", 23.10.2003.

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Esse número representa 10% da população infantil brasileira.

A pesquisa mostra, ainda, que mais de 15% das crianças brasileiras vivem sem

condições sanitárias básicas, e 2.908.341 crianças são objeto de trabalho ilegal 3.

Ainda a destoar do promissor cenário mercantil exposto linhas

atrás, O Brasil detém a 4ª maior concentração de renda do mundo 4, só perdendo para

Serra Leoa, República Centro-Africana e Suazilândia. Tal estudo mostra que os 10%

dos brasileiros mais pobres "vivem" com 0,9% da renda do país, enquanto que os 10%

mais ricos abocanham 47,2% dessa renda.

No índice de Desenvolvimento Humano - IDH, confeccionado

pela ONU, figuramos no 73º lugar5, pois contamos com 22.831.344 pessoas

absolutamente analfabetas segundo o PNAD - Pesquisa Nacional por Amostra de

Domicílios, realizada em 1999 pelo IBGE, afora os outros 33 milhões de analfabetos

funcionais.

Do contingente de pessoas com capacidade produtiva no país,

mais de 54%, ou 40,9 milhões de seres, não contribuem para o sistema de previdência

social, porque não contam com carteira profissional regularizada, e metade do corpo

assalariado pátrio angaria menos do que ínfimos 02 salários mínimos por mês 6.

Por essa senda de crônicos desarranjos sociais é que medram

as favelas, os desabrigos, a não-existência.

Como se antevê, o primeiro patamar rumo à miséria é o

desemprego. Dele brota a ausência de meios para o amparo de vivência digna, a

medrar os inexoráveis inadimplementos dos meios básicos de sobrevivência como 3 "Segundo Relatório de Direitos Humanos no Brasil", Min. da Justiça, 2002, p. 26. Ainda sobre o tema: Sydow, Enavize, “Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo”, contido no relatório “Direitos Humanos no Brasil- 2005), ed. Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, SP, 2005, p. 89. 4 índice GINI, elaborado pela Pnud - Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, publicado pela "Folha de São Paulo", em 24.07.2002, p. A-10. Já no quesito da desigualdade entre homens e mulheres, o Brasil ficou em 51º dentre 58 países pesquisados, atrás de países como Bangladesh (39) e Zimbábue (42º) – Folha online, 16.05.2005. 5 Relação do Pnud - Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, in Folha de São Paulo, 24.07.2002, p. A-11. 6 IBGE - Folha online, novembro de 2003. Paulo César Pedrini nos conta que em 2005, só na grande S. Paulo, a taxa de desemprego atingiu 58,5% dos mais pobres. Na faixa etária de 16 a 24 anos o desemprego

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contas de encargos afetos à água potável, (água potável!!!), energia elétrica,

alimentação, aluguel...até desembocar no desterro das vias públicas.

Da ausência de laboração digna, à assinalada miséria, o

caminho possui a dimensão de um átimo.

A existência sem abrigo materializa os efeitos extremos desse

processo de despersonificação em que vivem milhões de seres a palmilhar pelos

arrebaldes do país, num estado de mórbida invisibilidade social 7.

E aqui convergimos ao núcleo do tema proposto, atreito à

ausência de abrigo, já sendo oportuno demarcar que neste país há um déficit

habitacional - segundo indicadores oficiais - de 6.666.268 moradias 8.

Todavia, não podemos vislumbrar nesse índice um

incontestável marco revelador da verdade, não só pelas conhecidas distorções

subjacentes à toda informação oficial como, em especial, porque já foi anotado que

contamos com mais de 50 milhões de pessoas distantes em demasia da linha básica da

dignidade de vida, as quais, com certeza, se ressentem da ausência não só do que

comer como - ao que aqui interessa - de um comezinho teto para se abrigar.

Conforme relato do Movimento Nacional de Luta por

Moradia, 79,16% desse vasto agrupamento de sem-tetos estão concentrados nas

regiões metropolitanas, sendo que só em São Paulo - capital, existem mais de 2

é quase o dobro da população em geral. Cf. Pedrini, Paulo César, “O Trabalho no Brasil em 2005”, contido no relatório “Direitos Humanos no Brasil – 2005”, SP, 2005, p. 132. 7 Amaral, Sofia; em reportagem publicada na revista "Caros Amigos", nº 80, nov/2003, p.p. 26/27, nos conta sobre interessante dissertação de mestrado do estudante de psicologia da USP, Fernando Braga da Costa, que viveu como gari pelas ruas da cidade universitária a fim de desenvolver sua tese sobre a "invisibilidade pública" das pessoas que desempenham funções tidas como "subalternas" na sociedade. Sobre ela, relata Fernando que "É como se a pessoa passasse por um poste, por uma árvore. A invisibilidade pública é uma "cegueira psicossocial" sustentada pelos antagonismos de classe: enxerga-se apenas a função, e não a pessoa. E isso acontece tanto mais quanto menor for o sentimento de identificação, de comunidade que o "cego" tenha com o "invisível". Note-se que a pesquisa foi elaborada junto à pessoas que ostentavam, bem ou mal, uma função específica, por singela que fosse. O que falar então quando nos confrontamos com pessoas destituídas de tudo, inclusive de emprego, moradia, como se retrata no texto? 8 Cf. PNAD - Pesquisa Nacional por Amostra Domiciliar, IBGE, 1999. Vide, ainda, Osório, Letícia, in " Direito à moradia no Brasil", trabalho disponível no site www.direitoacidade.org.br, déficit até hoje não minorado, conforme constatado em junho de 2004 pelo Relator Especial da ONU para a questão da moradia, Sr. Miloon Khotari, observações contidas no mesmo sítio, consultado em set/2007.

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milhões de favelados convivendo diariamente com os perigos e pestilências afetos a

enchentes, esgoto a céu aberto, ameaças de desmoronamento, fome, etc...9

Já a esta altura podemos também assestar que não existe nada

pior do que a miséria.

Mas, em país tão pródigo - como visto - em ostentar

potencialidades mercantis nos mais variados segmentos do capitalismo, faltam - de

acordo com a retórica governamental - recursos para pelo menos amenizar esse

perverso caos social?

Cremos que não! Só nos primeiros cinco meses de 2003 o

governo federal, Estados e Municípios pagaram R$ 63,3 bilhões tão-só de juros de

uma mal arrevesada dívida externa que hoje se encontra no insolvível patamar de R$

1.191 trilhão, segundo fontes governamentais 10.

O montante acima repassado, sem repulsa alguma, aos

credores internacionais, expressam 10,12% do PIB e representam o dobro do que, no

mesmo período, foi destinado à todas as áreas tidas como sociais pelo governo

federal.

Só em 2004 foram gastos no adimplemento dessa mal

explicada dívida pública a soma de R$ 139 bilhões, conforme planilha orçamentária

da União, e nada, absolutamente nada, foi destinado para pelo menos se tentar aplacar

o estrondoso déficit habitacional do país 11.

O estrito cumprimento desses infindáveis encargos debitórios

a nós tributados pelos fundos monetários internacionais da vida, e tão bem cumpridos

por nossa submissa elite dirigente, não foi suficiente para sequer diminuir o ciclópico

9 Bertulezza, Alexandre e Renato, Marcelo, "Ocupar, resistir e morar", texto colhido do sítio do "Movimento Nacional de Luta por Moradia", em 10.10.2003. 10 dados disponíveis em: www.stn.fazenda.gov.br e www.jubileubrasil.org.br. 11 conferir gráfico com valores destinados à dívida externa no sítio www.jubileubrasil.org.br

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valor desse efuso e desmedido entorno de divisas públicas, representado que é por

essa malsinada dívida externa.

O economista Jorge Pereira Filho bem retrata esse descaminho

orçamentário ao relatar que " entre 1995 a 2002 o país pagou como serviço da dívida

externa 330 bilhões de dólares. Recebeu, emprestados, 273 bilhões de dólares, que

foram usados em sua maioria no pagamento dos juros desse endividamento. No final

das contas, o Brasil pagou 57 bilhões de dólares a mais do que recebeu emprestado. E,

mesmo assim, a dívida externa não diminuiu. Pelo contrário, aumentou 70 bilhões de

dólares" 12.

Mas a principal perversão desse turvo modelo econômico

eleito por nossas elites reside no incontestado fato de que, para arregimentar divisas

no objetivo de atender a voracidade dos "credores" internos e estrangeiros, o governo

restringe cumulativamente investimentos nas áreas sociais no desesperado afã de

colher os recursos necessários à solvência de uma dívida mal explicada em sua origem

e totalmente inexistente em sua atual dimensão 13.

E, para tentar revestir de aparente legalidade essa irrefreável

sangria de recursos públicos forja, à mercê de uma maioria docilmente cooptada no

congresso nacional, artifícios normativos como a DRU (Desregulamentação de

12 "Movimentos Sociais exigem cancelamento da dívida externa", site www.jubileubrasil.org.br . Apesar dos ingentes esforços de nossos governantes, a dívida externa brasileira só fez por aumentar ao longo dos anos. Quando de seu recôndito início, que coincidiu com a implantação da ditadura militar neste empobrecido rincão, seu valor era de US$ 2,5 bilhões. Para tornar possível o famigerado "milagre econômico" urdido pelos generais em seus labirintos, ela salta para US$ 13,8 bilhões só no governo Médici (1969-1973), aumentando para US$ 52,8 bilhões já na fase terminal do regime miliciano no escopo de insuflar o II Plano Nacional de Desenvolvimento, concebido na gestão Geisel (1974-79). Com as sucessivas crises internacionais do petróleo agregadas aos juros flutuantes constantes nas abusivas cláusulas pactuadas por nossos expertos generais, a dívida chega já na década de 90 ao impagável montante de US$ 241,2 bilhões ( em 99), e hoje, apesar dos incessantes adimplementos de seus mal explicados juros, serviços, amortizações e o sucateamento do patrimônio público via privatizações, avulta na absurda quantia de US$ 465 bilhões de dólares, incluindo as dívidas interna e externa. Em 1995 os gastos com juros da dívida eram de R$ 26 bilhões, valor que saltou para R$ 257 bilhões (42% do orçamento da união) só em 2005. Sobre esse histórico de aberrações econômicas vide artigo intitulado "Origem de nossa dívida externa", no boletim "auditoria da dívida", encontrado no sítio: www.jubileubrasil.org.br 13 Filho, Jorge Pereira, "Investimentos Sociais", onde enfatiza: "Nossa dívida é ilegítima. A maior parte dela foi contratada em regimes militares. É o que chamamos de Dívida Odiosa, no Direito Internacional, que pode ser contestada judicialmente. Não foram representantes do povo que contraíram essa dívida, mas sim ditadores. Por isso, não é justo que toda a população pague por isso". Artigo colhido do já referido site jubileubrasil.

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Receitas da União) ou a Lei de "Responsabilidade Fiscal" 14, cujo objetivo maior é

permitir tudo para satisfazer os interesses econômicos embutidos nessa etérea ciranda

financeira, limitando ao máximo os investimentos sociais para tornar possível a

realização daqueles já acentuados interesses 15.

É por conta desse estado de coisas que observa Eduardo

Galeano que "a economia mundial é a mais eficiente expressão do crime organizado.

Os organismos internacionais que controlam a moeda, o comércio e o crédito,

praticam o terrorismo contra os países pobres e contra os pobres de todos os países,

com uma frieza profissional e uma impunidade que humilham o melhor dos lança-

bombas".16

E assim se afeiçoa estabelecido esse desacertado e infindo

ciclo, no qual o país, para conseguir atingir "as metas fiscais" delineadas por aqueles

indicados organismos monetários, passa a tomar emprestado do sistema financeiro

quantias imensas tão somente para pagar dívidas, emitindo, a tanto, títulos públicos à

custa de juros extorsivos no intento de atrair um número expressivo de "investidores",

acabando por destroçar a malha pública de serviços essenciais a fim de poder honrar

com o adimplemento das expressões econômicas contidas naqueles desarrazoados

títulos de crédito.

14 Lei Complementar nº 101/2000. 15 Benjamim, Cesar, "O Poder das Palavras", Rev. "Caros Amigos", ed. Casa Amarela, ano V, nº 58, jan. 2002, p. 13, enfatiza: "Outra recente mistificação desse tipo é a chamada Lei de Responsabilidade Fiscal. É fácil ver que, também aqui, o nome foi imaginado sob medida para impedir o debate: quem pode ser contra uma "lei de responsabilidade"? Ademais, o que ela diz parece ser coerente com a experiência de cada um: os governos (como chefes de família...) não podem gastar mais do que arrecadam. Não é simples? Não. Em primeiro lugar. há muitos anos o governo brasileiro arrecada em impostos muito mais do que gasta com salários, custeio e investimentos. Tem superávit primário. O déficit só aparece quando agregamos as despesas ao pagamento de juros ao capital financeiro. Como a lei não prevê - nem admite - a compressão destas despesas, mas sim das demais, ela poderia chamar-se "Lei da Prioridade do Uso de Recursos Públicos para Pagamento aos Bancos", ou "Lei que Declara que Educação e Saúde São Menos Importantes que Bancos", ou "Lei que Torna Intocáveis os Lucros do Sistema Financeiro, Nacional e Estrangeiro, mesmo às Custas de Cortes em Atividades Essenciais", ou simplesmente "Lei do Mais Forte" - nomes que, pelo menos, teriam o mérito de permitir um debate". 16 "De Pernas Pro Ar, A Escola do Mundo ao Avesso", 6ª edição, L&PM, Porto Alegre-RS, 2002, p. 6. Ainda com enorme pertinência ao que se tenta sustentar ao longo do texto, o escritor uruguaio sublinha que "Nos subúrbios do mundo, chefes de estado vendem saldos e retalhos de seus países, a preço de liquidação de fim de temporada, como nos subúrbios das cidades os delinqüentes vendem, a preço vil, o butim de seus assaltos", p.p.6/7.

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Com isso se fecha esse vicioso círculo, e, dele, exsurge a

miséria e suas variantes com incontida intensidade, se materializando através dos

guetos, das favelas, do analfabetismo, da fome, das prisões da vida e do mundo, tudo

a forjar os espaços de eliminação da dignidade e personificação humanas, mercê da

degradação total dos direitos teoricamente detidos por aquela vastidão de pessoas que,

do sistema, apenas sobram.

Para Hannah Arendt, a despersonificação (entendida como a

extinção civil da qual padece uma nação inteira de miseráveis neste vilipendiado país)

é o mal maior que se pode imputar ao gênero humano.

Pontifica ela que " a calamidade dos que não têm direitos

não decorre do fato de terem sido privados da vida, da liberdade ou da procura

da felicidade, nem da igualdade perante a lei ou da liberdade de opinião -

fórmulas que se destinavam a resolver problemas dentro de certas comunidades

- mas do fato de já não pertencerem a qualquer comunidade. Sua situação

angustiante não resulta do fato de não serem iguais perante a lei, mas sim de não

existirem leis para eles; não de serem oprimidos, mas de não haver ninguém mais

que se interesse por eles, nem que seja para oprimi-los".17

Forcejados num injusto sistema econômico que deles não quer

contato algum, esse vasto contingente de desterrados vaga por ai, perdido nessas

errâncias, à procura de uma trégua, ainda que breve, efêmera, nessa severa não-

existência que lhes foi legada.

São tão pacíficos e amplamente inofensivos, que vivem em

quase que completa invisibilidade social, como aqui já demarcado.

Milhões de pessoas - dentre as quais crianças - que culpa

alguma ostentam para justificar esse ininterrupto penar, essa vida sem qualquer laivo

17 "As Origens do Totalitarismo", Cia. das Letras, São Paulo, 1998, p. 329. Ainda sobre a opressão mediante a consolidação de um "Estado Policial" nestas terras do terceiro mundo, conferir Galeano, Eduardo, in "As Veias Abertas da América Latina", 36ª ed., Paz e Terra, São Paulo, 1994, pp. 303 e 304.

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de perspectiva, calcorreando por estradas ermas, sempre do lado de fora das imensas

cercas que divisam os latifúndios. Para elas, só olham, nada mais.

Mas ressuma inacreditável o temor vivenciado por nossas

elites quando esses excluídos resolvem, norteados por insólitas lideranças, se unirem

em movimentos reivindicativos de uma divisão menos pérfida das benesses sociais,

dado que, em meio a tanto sofrimento, às vezes percebem que não têm nada a perder,

a não ser as peias que os prendem à miséria.

Quando isso acontece, a plutocracia corre a invocar o aparato

da mídia e seus vassalos interlocutores, denunciando esse "hediondo crime lesa-

pátria", consistente na absurda vindicação bradada por esse descontrolado exército de

miseráveis por um mínimo de justiça.

Não tarda, e a persecução estatal às lideranças desses abruptos

movimentos é logo acionada. No correr de sua pesada engrenagem, a história nos

revela que, para o pobre, o patíbulo é sempre certo.18

18 1 A práxis do Estado para com o latifúndio: como clássico exemplo desse praxismo, fazemos uso da notícia veiculada pelo jornal a Folha de São Paulo, em 20.03.2002 dando conta de que o ex-líder do PFL(agora DEM) na Câmara, Dep. Federal Inocêncio de Oliveira - que foi já elevado ao cargo de Presidente da Câmara dos Deputados e liderou a bancada governista ao longo do império FHC - mantinha em sua Fazenda "Caraíbas", localizada na divisa dos municípios de Gonçalves Dias e Senador Alexandre Costa, no interior do Maranhão, cerca de 50 trabalhadores rurais em regime de escravidão, que ali laboravam há meses, em condições degradantes de sobrevivência. Noticiou-se agora, em novembro de 2003, que o referido parlamentar teria sido condenado pelo delito de exploração de mão-de-obra escrava em 1ª instância. Mas em função desses fatos lamentáveis e gravíssimos, nunca se soube se a Câmara dos Deputados, através de sua Corregedoria, teria pelo menos conjeturado em instaurar processo disciplinar contra o dito deputado pela patente concretização de ato violador do decoro parlamentar, ou mesmo se seu partido teria cogitado em, pelo menos apurar, a prática de tão hediondo crime. Segundo estimativa do Prof. norte-americano e consultor da ONU sobre formas de escravidão no mundo, Kevin Bales, há no Brasil cerca de 200mil pessoas submetidas à situação análoga a de escravo (Folha de S. Paulo, p. A14, 02.02.2004). Ainda sobre esse tenebroso tema, no início de 2004 três auditores fiscais do Min. do Trabalho mais o motorista que os conduzia em investigação sobre trabalho escravo, foram mortos por latifundiários em Unaí, município situado na região noroeste de Minas Gerais (Folha de S. Paulo,p. A4, 30.01.2004). 2 A práxis do Estado para com os movimentos sociais: Um dos líderes do Movimento Social dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, José Rainha Júnior, ficou preso, sob a custódia do estado de São Paulo, entre julho a meados de novembro de 2003, sob a acusação de "chefiar quadrilha" quando liderava movimento reivindicativo na área do Pontal do Paranapanema-SP. O Ministério Público do Estado, cumprindo rigorosamente os ditames que lhes foram impostos, acusou-o, ainda, do delito de furto de "moirões de cerca" quando da imputada "invasão", além de ter protagonizado o irremissível delito de portar uma "garrucha velha" no exercício ilegal daqueles "nefandos" fatos. Segundo a Folha Online" de outubro de 2003, sua Esposa Diolinda Alves de Souza também fora presa pelo braço armado do Estado no dia 10 daquele mês, sob a acusação da prática dos mesmos crimes tributados ao marido. 3 A práxis do Estado para com a vergonha: segundo o site do MST (www.mst.org.br) entre 1989 a 2001 foram presos pelas milícias estatais cerca de 2.170 trabalhadores rurais que lutavam pela reforma agrária no país. E a Comissão

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Sob o prisma da lógica que permeia o sistema concebido por

nossa classe dirigente, bradar por justiça social através de grupos de pessoas

destituídas de tudo, se afigura como intolerável crime de formação de "quadrilha ou

bando", eis que tais atividades, por demais "subversivas", afrontam a dogmática

tangente a guarnecer a sacrossanta propriedade privada e a suster uma mal forjada

retórica de "segurança jurídica". 19

Por esse roteiro de exclusões e insuportáveis injustiças, a

tensão social assoma como inevitável, e sob a histórica impunidade aqui tantas vezes

pontilhada, a oligarquia rural exprime uma pequena mostra do breviário de sua

indigência cultural ao distribuir panfleto na cidade de São Gabriel-RS, durante marcha

de trabalhadores sem-terra que ali se promovia, aconselhando os ruralistas,

"proprietários de aviões agrícolas, a pulverizar o acampamento do MST com cem

litros de gasolina", não sem observar que "sempre haverá uma vela acesa para

terminar o serviço".20

Como se é de notar, a lida pela igualdade substancial entre os

homens - por mais paradoxal que isso possa parecer - é ingrata, angustiante e severa. Pastoral da Terra - CPT, informa que só entre janeiro e agosto de 2005 foram assassinados no campo 28 trabalhadores rurais ligados aos movimentos sociais pela reforma agrária, sem nenhuma condenação dos autores ou mandantes desses homicídios, sem mencionar a triste morte da missionária Dorothy Stang, ocorrida em fevereiro de 2005, com enorme repercussão internacional. 19 Em artigo intitulado "Estado de Direito e reforma agrária", publicado no jornal "O Estado de São Paulo" de 11.03.2003, p. A-2, o então Secretário da Justiça de São Paulo, Alexandre de Moraes, teceu um rosário de objeções aos sucessivos atos de "invasão" promovidos pelo MST no país, porque tais atitudes ferem, segundo o autor do comentado texto, os "direitos fundamentais - entre eles o direito à propriedade privada e à segurança jurídica". 20 "Folha de São Paulo", "painel", p. A 4, de 20.06.2003. Esse breviário da perversidade de nossas elites foi publicado, na integra, na edição especial da revista "Caros Amigos", nº 18, setembro de 2003, sobre "Reforma Agrária", à p. 13, e, para nossa vergonha, ele diz: " Povo de São Gabriel, não permita que sua cidade tão bem conservada nestes anos seja agora maculada pelos pés deformados e sujos da escória humana. São Gabriel, que nunca conviveu com a miséria, terá agora de abrigar o que de pior existe no seio da sociedade. Nós não merecemos que essa massa podre, manipulada por meia dúzia de covardes que se escondem atrás de estrelinhas no peito, venha trazer o roubo, a violência, o estupro, a morte. Esses ratos precisam ser exterminados. Vai doer, mas, para as grandes doenças, fortes são os remédios. É preciso correr sangue para mostrarmos nossa bravura. Se queres a paz, prepara a guerra, só assim daremos exemplo ao mundo que em São Gabriel não há lugar para desocupados. Aqui é lugar de povo ordeiro, trabalhador e produtivo.Nossa cidade é de oportunidade para quem quer produzir e não há oportunidade para bêbados, ralé, vagabundos e mendigos de aluguel. Se tu, gabrielense amigo, possuis um avião agrícola, pulveriza à noite 100 litros de gasolina em vôo rasante sobre o acampamento de lona dos ratos. Sempre haverá uma vela acesa para terminar o serviço e liquidar com todos eles. Se tu, gabrielense amigo, és proprietário de terras ao lado do acampamento, usa qualquer remédio de banhar gado na água que eles usam para beber, rato envenenado bebe mais água ainda. Se tu, gabrielense amigo, possuis uma arma de caça calibre 22, atira

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Mas, por que tanto temor da igualdade?

A resposta a tão pertinente indagação é por demais complexa

para os estreitos objetivos demarcados neste modesto arrazoado.

O que se sabe, e aqui se pode antecipar, é que a igualdade

incomoda, porque já foi dito que toda pessoa é única, incomensuravelmente única.

Nas sempre precisas palavras de José Saramago "diz-se

que só odeia o outro quem a si mesmo se odiar, mas o pior de todos os ódios deve

ser aquele que leva a não suportar a igualdade do outro, e provavelmente será

ainda pior se essa igualdade vier a ser alguma vez absoluta".21

O Abrigo

2 É conhecido o conto de Nietzsche sobre um velho louco,

que, munido de uma candeia, saiu pelo mundo à procura de Deus. Após se defrontar

com enormes adversidades, ser exposto à injusta irrisão dos homens, a sofrer na carne

a ingrata sensação de ser considerado um estorvo, o atormentado candeeiro anunciou

então ao mundo que Deus estava Morto, e que as igrejas e ermidas não eram outra

coisa, senão criptas e mausoléus de Deus.22

de dentro do carro contra o acampamento, o mais longe possível. A bala atinge o alvo mesmo a 1.200 metros de distância". 21 in "O Homem Duplicado", cia. das letras, São Paulo, 2002, p. 297. 22 "A gaia ciência", aforismo o "Homem louco", citado por Junior, Oswaldo Giacoia, "Nietzsche", edição Publifolha, 2000, S.P., pp. 18/19.

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13

Não havendo espaço aqui para incursionar nos

desdobramentos políticos do aparente niilismo inserido no sobredito texto 23, para o

que no momento nos interessa em face dos demarcados limites deste escrito, é que de

tal crônica derivaram implicações morais que foram utilizadas como premissas

fundantes para que os homens que detêm o poder e a ciência prenunciassem a

supremacia da razão humana sobre a moral.

Afinal, como sugerido na alegoria dardejada por Dostoiévski,

se Deus está morto, tudo é permitido!24

Estabelecidos então os pressupostos teóricos para o

desenvolvimento do grande salto rumo ao cientificismo, o homem rompeu com

limites éticos e morais na busca do enriquecimento econômico que desde o seu

nascedouro sempre se ancorou na exploração das grandes multidões de desvalidos,

sobras de mão-de-obra barata para conveniente utilização em prol da incessante busca

de concentração de renda, trespassando para a construção de impérios que

consolidariam a primazia do sistema capitalista, fundado, como visto, no iluminado

esteio predisposto pelas infinitas possibilidades imanentes à razão humana, até

desembocar no avanço tecnológico que nos últimos séculos mais matou do que

dignificou vidas.25

Na esteira desse desenvolvimento tecnológico e econômico,

não foram poucos os extermínios em massa consumados nos campos de concentração, 23 Sobre a discutida tendência política irradiada da filosofia nietzschiana, afirma Norberto Bobbio em sua obra "Direita Esquerda", Unesp, São Paulo, 1994, p. 49, ser ele um dos principais inspiradores do nazismo, aduzindo que " esta inspiração derivasse de uma má interpretação ou, como creio, de uma das interpretações possíveis, é um problema que não nos diz respeito aqui". Em sentido contrário, absolvendo o filósofo de qualquer inspiração ideológica no referido movimento político, conferir Junior, Oswaldo Giacoia, op. cit., pp. 72/74 e Japiassú, Hilton e Marcondes, Danilo, "Dicionário Básico de Filosofia", Zahar Editor, RJ, 2001, p. 195. 24 Cf."Irmãos Karamázovi", Nova Cultural, SP, 1995, em especial o antológico diálogo estabelecido entre os irmãos Ivã e Alieksei, à pp. 189/203. 25 Hobsbawm, Eric, "A era dos Extremos", 2ª ed., Cia. das Letras, S.P., 1995, à p. 22, após fazer um escorço histórico dos benefícios oriundos do avanço tecnológico do homem, que abreviou distâncias e praticamente anulou o tempo em termos, principalmente, do desenvolvimento dos meios de comunicações, ao analisar o trágico século XX não consegue reprimir a seguinte indagação: "Por que, então, o século terminara não com uma comemoração desse progresso inigualado e maravilhoso, mas num estado de inquietação?" Em seguida responde: "Não apenas porque sem dúvida ele foi o século mais assassino de que temos registro, tanto na escala, frequência e extensão da guerra que o preencheu, mal cessando por um

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14

as sucessivas guerras imperialistas submetendo, pela força bélica, a dignidade dos

povos do terceiro mundo, o aniquilamento da soberania dos países pobres e o

desrespeito à opinião pública mundial quando das atuais atividades genocídicas

perpetradas pelos impérios neoliberais sobre rincões que se situam na periferia do

mundo, forcejando desse insano exercício de poder um imensurável contingente de

mutilados, desempregados e analfabetos, a ponto de, não sem razão, afirmar Ernesto

Sabato, ao realizar uma reflexão sobre a atual conjuntura mundial, que, "chegamos à

ignorância por meio da razão".26

E como o senso moral do homem progride - se é que progride

- em ritmo infinitamente mais tardo do que a avidez econômica, política e bélica dos

que detêm o poder, é temeroso constatarmos que precocemente chegamos ao controle

dos conhecimentos básicos para o mais amplo aniquilamento através dos portentosos

artefatos nucleares, malgrado dois terços da população humana ainda não ter atingido

os rudimentos da cidadania27.

Diante desses desacertos, lamenta Norberto Bobbio que "a

arma total chegou cedo demais para a rusticidade dos nossos costumes, para a

superficialidade dos nossos juízos morais, para a imoderação das nossas ambições,

momento na década de 20, como também pelo volume único das catástrofes humanas que produziu, desde as maiores fomes da história até o genocídio sistemático". 26 "Antes do fim", Cia. das Letras, SP, 1999, p. 119. 27 Segundo a Unicef, mais de 01 bilhão de crianças estão sofrendo com a pobreza, o que significa mais da metade da população infantil do mundo. O estudo revelou que uma em cada três crianças no mundo vive em casas com chão de terra batida, com mais de 5 pessoas ocupando cada cômodo. Uma em cada cinco crianças no orbe, não tem acesso ao consumo de água potável. Meio bilhão de crianças não tem acesso a fontes precárias de informação como rádio, televisão, telefones, ou jornais. 134 milhões de crianças no mundo, entre 7 e 18 anos, nunca frequentaram uma escola. "Folha Online", 23.10.03. Ainda sobre o tema, noticia Trindade, José Damião de Lima , em seu antológico "História Social dos Direitos Humanos", ed. Peirópolis, S.P., 2002, p. 206, que "a riqueza mundial cresceu sete vezes entre 1948 e 1996, mas o número de pobres no mundo triplicou nesse período. Os 20% mais pobres do planeta detinham, ao término do século XX, apenas 1,1% das riquezas geradas, ao passo que os 20% mais ricos monopolizavam 82% dos ingressos mundiais. A quantidade de pobres cresce continuamente cerca de 25 milhões de pessoas por ano. Na Europa Oriental e na ex-União Soviética, as pessoas que vivem na pobreza passaram de 4 milhões em 1987 para 120 milhões em 1997. Por outro lado, os 447 indivíduos bilionários do planeta concentram em suas mãos renda equivalente à da metade dos habitantes da Terra (3 bilhões de pessoas) e as 200 maiores empresas multinacionais dominam 28% do valor produzido no mundo, enquanto empregam apenas 1% da força de trabalho". Diante desse quadro, indaga Eduardo Galeano: "como afogar explosões de rebelião das grandes maiorias condenadas? (...)Excluindo-se a caridade, sobra a polícia". in "As Veias Abertas da América Latina", Paz e Terra, 36ª, S.P., p. 304.

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15

para a enormidade das injustiças a que a maior parte da humanidade está submetida,

não tendo outra escolha além da violência ou a opressão".28

Mas além dessas já sublinhadas, outras hecatombes nos são

inoculadas pelo avanço neoliberal. Talvez uma mais perversa porque, como já

antecipado na parte primeira deste relato, tende a extinguir o que há de mais caro à

personalidade humana: o sentido da vida, a possibilidade de buscar a felicidade

através de um trabalho livremente escolhido.

Em plena era da propalada "modernidade", da "globalização"

e do "fim da história", sob a ótica economicista que nos domina, o labor humano se

tornou um produto totalmente descartável. O caminho para a nadificação plena foi

franqueado.

Como observa Viviane Forrester "houve, sem dúvida, tempos

de angústia mais amarga, de miséria mais acerba, de atrocidades sem medidas, de

crueldades infinitamente mais ostensivas; mas jamais houve outro tempo tão frio,

geral e radicalmente perigoso.

"Se a ferocidade social sempre existiu, ela tinha limites

imperiosos, porque o trabalho oriundo das vidas humanas era indispensável para

aqueles que detinham o poder. Ele não o é mais; pelo contrário, tornou-se

incômodo".29

Aqui chegando, e volvendo ao tema alhures anunciado, temos

que esse ajuntamento desmedido de seres despersonificados e em andrajos de que

estamos a falar, não tendo um lugar seguro que sirva de abrigo, vagam por aí em meio

à "paisagens abertas, desertos medonhos, léguas cansativas, caminhos tristonhos, que

fazem o homem se desenganar"...

28 "Diário de um Século", ed. Campus, RJ, 1998, p. 216. 29 "O Horror Econômico", Unesp., S.P., 1997, p. 136.

Page 16: O DIREITO À MORADIA

16

E por serem muitos, incomodam aos inclusos desse sinuoso

sistema, para o qual - pelo que até aqui ressumou evidenciado - não representam mais

do que um indesejado estorvo.

Mas, como a moral, o direito, para eles, também está morto?

Os desígnios da razão também solaparam o direito?

O que é o direito?

Será que o direito se restringe a guarnecer com incontida

liberdade os caminhos por onde flui o capital, sedimentado no inflexível apego à

imaculada propriedade privada?

Será que o direito se traduz, tão somente, nas excelsas

decisões que, à mercê dos já nominados imperativos econômicos e consagradas em

vinculantes súmulas, cotidianamente afrontam comandos constitucionais que

claramente tentam impor limites aos exorbitantes ganhos monetários, inibindo, ao

sistema financeiro, a extorsiva cobrança de seus lucros?

O direito se compraz, somente, no endurecimento das coimas

para com os pobres, ao tempo em que perpetua a impunidade dos bárbaros delitos

cometidos pela fidalguia?

O direito - tal qual os valores morais - é assim tão estranho à

dignidade humana, para tão-só ser reconhecido e encontrado no ordenamento jurídico

ordinário, concebido pelo ideário liberal-burguês tantas vezes já referido?

Não. Cremos que não.

Pretende-se aqui demonstrar que o direito, em que pese a

mutilação diária à qual é submetido por interpretações que não extrapolam o campo

Page 17: O DIREITO À MORADIA

17

infecundo do reducionismo positivista e das fórmulas jurídicas prontas30, ainda insiste

em pulsar, e a irradiar os meios adequados - embora várias vezes esquecidos - de se

tentar pelo menos amenizar as agressões defluentes dessas misérias todas.

Com efeito, em mais uma tentativa de minorar os tormentos

provindos dos enormes malefícios humanos, pincelados, aqui, em trôpegas linhas,

em dezembro de 1948, através da resolução nº 217 - A (III), da qual o Brasil foi

signatário, as Nações Livres do Mundo, reunidas em Assembléia, Proclamaram os

Direitos Universais do Homem, assim dispondo:

Art. I: Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade

e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir

em relação umas com as outras com espírito de fraternidade.

Art. II.1: Toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e

as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção

de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, opinião

política ou de outra natureza, origem nacional ou social,

riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.

...........................................................................

Art. III: Toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à

segurança pessoal.

30 Streck, Lenio Luis, "Hermenêutica Jurídica e(m) crise", 2ª ed., Livraria do Advogado, Porto Alegre-RS, 2000, sobre as anotadas receitas de "aplicação do direito", aduz: "Com um pouco de atenção e acuidade, pode-se perceber que grande parte das sentenças, pareceres, petições e acórdãos são resolvidos através de citações do tipo "Nessa linha, a jurisprudência é pacífica (e seguem-se várias citações padronizadas de números de RTs, RJTs), ou "Já decidiu o Tribunal tal que legítima defesa não se mede milimetricamente (RT 604/327), (...) São citados, no mais das vezes, tão-somente os ementários, produtos, em expressivo número, de outros ementários. Este problema tende a se agravar, na hipótese da aprovação do efeito vinculante para as súmulas. Com esse tipo de procedimento, são ignorados o contexto histórico e social no qual estão inseridos os atores jurídicos, bem como não se indaga a circunstância da qual emergiu a ementa jurisprudencial utilizada. Afinal de contas, se "a jurisprudência torrencial vem decidindo que..." ou a "doutrina pacificamente entende que...", o que resta a fazer? Consequência disso é que o processo de interpretação da lei passa a ser um jogo de cartas (re)marcadas", p. 73. Ainda sobre o mote, cf. Dallari, Dalmo de Abreu, "O Poder dos Juízes", S.P., Saraiva, 1996, p. 95, ressalta que "ao utilizar tantos modelos de interpretação da lei, (o magistrado) considera-se exonerado de responsabilidade, atribuindo ao legislador as injustiças que decorrem de suas sentenças".

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...........................................................................

Art.V: Ninguém será submetido a tortura, nem a tratamento

ou castigo cruel, desumano ou degradante.

Art. VI: Toda pessoa tem o direito de ser, em todos os

lugares, reconhecida como pessoa perante a lei.

...........................................................................

Art.VIII: Toda pessoa tem o direito de receber dos Tribunais

nacionais competentes recurso efetivo para os atos que

violem os direitos fundamentais que lhe sejam

reconhecidos pela Constituição ou pela lei.

...........................................................................

Art. XV: Toda pessoa tem direito a uma nacionalidade.

...........................................................................

Art.XVI.3: A família é o núcleo natural e fundamental da

sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do

Estado.

...........................................................................

Art.XXII: Toda pessoa, como membro da sociedade, tem

direito à segurança social e à realização, pelo esforço

nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a

organização e recursos de cada Estado, dos direitos

econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua

dignidade e ao livre desenvolvimento de sua personalidade.

Page 19: O DIREITO À MORADIA

19

Art. XXII: Toda pessoa tem direito ao trabalho, à livre

escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de

trabalho e à proteção contra o desemprego.

...........................................................................

Art.XXV.1: Toda pessoa tem direito a um padrão de vida

capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar,

inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados

médicos e os serviços sociais indispensáveis, o direito à

segurança, em caso de desemprego, doença, invalidez,

viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de

subsistência em circunstâncias fora de seu controle

2: A maternidade e a infância têm direito a cuidados e

assistência especiais. Toda criança, nascida dentro ou fora

do matrimônio, gozarão da mesma proteção...

Em outra oportunidade, desta feita em 1986, a Assembléia

Geral das Nações Unidas novamente se reuniu e, através da resolução n. 41/128,

proclamou a “Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento” preconizando que:

“O direito ao desenvolvimento é um direito humano inalienável, em virtude do

qual toda pessoa e todos os povos estão habilitados a participar do

desenvolvimento econômico, social, cultural e político, a ele contribuir e dele

desfrutar, no qual todos os direitos humanos e liberdades fundamentais possam

ser plenamente realizados”( art.1º), enfatizando, ainda, que “A pessoa humana é

o sujeito central do desenvolvimento e deveria ser participante ativo e

beneficiário do direito ao desenvolvimento”( art.2º.1).

Outorgaram, aos Estados, “o dever de formular políticas

nacionais adequadas para o desenvolvimento, que visem ao constante

aprimoramento do bem-estar de toda a população e de todos os indivíduos, com

base em sua participação ativa, livre e significativa no desenvolvimento e na

distribuição equitativa dos benefícios daí resultantes” ( art. 2º.3).

Page 20: O DIREITO À MORADIA

20

Conclamou-se os Estados a “tomarem medidas firmes para

eliminar as violações maciças e flagrantes dos direitos humanos dos povos e dos

seres afetados por situações tais como as resultantes de apartheid a fim de ser

realizado o direito ao pleno desenvolvimento, assegurando, inter alia, igualdade

de oportunidades para todos no acesso aos recursos básicos de educação,

serviços de saúde, alimentação, habitação, emprego e distribuição equitativa de

renda...” (Arts. 5º e 8º do mesmo diploma normativo).

Em linhas gerais, todos esses princípios já haviam sido

consolidados em Assembléia precedente, ocorrida em 1966, cuja ata foi aprovada

pela Resolução n. 2.200-A(XXI), e ratificada pelo Brasil em 24 de janeiro de 1992,

onde se estabeleceu o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e

Culturais.

Nessa oportunidade os Estados - participantes, inclusive o

Brasil, reconheceram “o direito de toda pessoa de ter a possibilidade de ganhar a

vida mediante um trabalho livremente escolhido ou aceito sendo obrigação dos

Estados a adoção de medidas apropriadas à salvaguarda desses direitos” (Art.

6º).

Os Estados - partes nesse Pacto também reconheceram “o

direito de toda pessoa de gozar de condições de trabalho justas e favoráveis, que

lhe assegurem, dentre outros fatores, uma existência decente” (Art. 7º, alíneas a,

inciso II).

Além de toda essa gama de direitos existe um outro, talvez

menos dispendioso para o Estado, embora da mesma forma negligenciado.

Um direito comezinho, vulgar, desses que de tão singelos

quase que passam desapercebidos ante nossos olhos. É o direito que toda criança

deveria ter de ser vista como objeto primordial, prioritário, fundamentador de

todos os atos e decisões tomados pelo Poder Público, tribunais, autoridades

Page 21: O DIREITO À MORADIA

21

administrativas ou órgãos legislativos dos Estados, para pô-las à salvo de todas

as formas de opressão. ( arts. 2º e 3º da convenção sobre os direitos da criança

de 1989, subscrita pelo Brasil em 1990).

Além desses conclamas, podemos assegurar que o direito à

habitação, tema principal deste ensaio, é garantido por uma malha infinda de

dispositivos encontrados em vários tratados, como, por exemplo, no artigo 5º, "e",

da Convenção Internacional para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação

Racial de 1965; no artigo 9, 2, da Declaração sobre Raça e Preconceito Racial de

1978; Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a

Mulher, em seu artigo 14, 2, "h", também no artigo 27,3, da Convenção sobre

Direitos da Criança de 1989, na Declaração sobre Assentamentos Humanos de

Vancouver, 1976, seçãoIII, 8 e capítulo II (A.-3); na Agenda 21 sobre Meio

Ambiente e Desenvolvimento elaborada em 1992, capítulo 7 (6) e na Agenda

Habitat, de 1996, além, é claro, dos instrumentos internacionais antes expendidos.

Mas será que toda essa messe de princípios se mostra

suficiente para suplantar os “absolutos” preceitos legais que guarnecem o sacrossanto

direito à propriedade privada?

Os instrumentos internacionais de proteção aos Direitos

Humanos não podem ser vistos como mero acervo de boas intenções, daquelas que

não extrapolam o letargo característico do arcabouço das inutilidades jurídicas.

Pelo contrário, são eles princípios informadores do próprio

Direito Constitucional dos Povos, funcionam como contrapeso assegurador de

direitos e garantias mínimas a serem observados na consolidação do estatuto social.

Não vigem, portanto, só no plano formal, pois ganharam

concretitude e status de preceitos constitucionais ao serem incorporados

expressamente no texto da atual constituição, tanto assim, que o art. 4º da Lei

Maior impõe ao país a regência de suas relações internacionais pautada, dentre

outros princípios, pela prevalência dos direitos humanos (v. inc. II), já que

Page 22: O DIREITO À MORADIA

22

vivemos em um Estado Democrático de Direito que tem por um de seus

fundamentos a dignidade da pessoa humana (cfr. art. 1º, III da C.F.), e que

ostenta, dentre seus objetivos fundamentais a construção de uma sociedade

livre, justa e solidária; garantidora do desenvolvimento nacional através da

erradicação da pobreza e da marginalização, mediante a redução das

desigualdades sociais, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e

quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º e incisos).

Neste nosso país todos são iguais perante a Lei, garantindo-se

a efetividade do direito à Honra em meio a outros interesses primordiais à pessoa

humana, pois, aqui, ninguém será submetido a tratamento desumano ou

degradante (art.5, “caput” e III).

Neste nosso país, a propriedade atenderá sua função

social, e em caso de iminente perigo público a autoridade competente poderá

usar da propriedade particular, assegurando ao proprietário indenização

posterior (mesmo art., incs. XXII e XXV).

Aqui, no nosso país, a todos são assegurados direitos

sociais básicos como educação, saúde, trabalho, lazer, segurança e previdência

social, garantindo-se a todos, sem distinção alguma, um salário mínimo capaz de

atender às necessidades vitais básicas e às de sua família como moradia,

alimentação, vestuário, educação, saúde, etc...(arts. 6º e 7º, IV), e todos esses

princípios e direitos têm, segundo explicita a Constituição, aplicação imediata,

independentemente de qualquer regulamentação (§ 1º do Art. 5º).

Entornadas por nosso legislador todas essas justas promessas,

haveria de se fechar o ciclo com a garantia máxima de que “os direitos e garantias

expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos

princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República

Federativa do Brasil seja parte”.(Art. 5º, §2º).

Page 23: O DIREITO À MORADIA

23

Esta incorporação dos direitos humanos ao texto

constitucional não faz do Brasil um caso isolado.

Como noticia ANTONIO AUGUSTO CANÇADO

TRINDADE, ex-juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos, “nos

últimos anos o impacto de instrumentos internacionais de proteção dos direitos

humanos tem-se feito sentir em algumas Constituições. Ilustração pertinente é

fornecida pela Constituição Portuguesa de 1976, que estabelece que os direitos

fundamentais nela consagrados “não excluem quaisquer outros constantes das

leis e das regras aplicáveis de direito internacional”, e acrescenta: “Os preceitos

constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser

interpretados e integrados em harmonia com a Declaração Universal dos

Direitos do Homem” (Artigo 16,1 e 2). A disposição da Constituição da

Alemanha - com emendas até dezembro de 1983 - segundo a qual “as normas

gerais do Direito Internacional Público constituem parte integrante do direito

federal e sobrepõem-se às leis e constituem fonte de direitos e obrigações para os

habitantes do território federal ( Artigo 25), pode ser entendida como

englobando os direitos e obrigações consagrados nos instrumentos de proteção

internacional dos direitos humanos”. 31

Em continuação, salienta referido jurista que “o disposto no

art. 5º, § 2º da Constituição Brasileira de 1988 se insere na nova tendência de

Constituições latino-americanas recentes de conceder um tratamento especial ou

diferenciado também no plano do direito interno aos direitos e garantias individuais

internacionalmente consagrados.

"(...)A tendência constitucional contemporânea de dispensar

um tratamento especial aos tratados de direitos humanos é, pois, sintomática de uma

escala de valores na qual o ser humano passa a ocupar posição central. Um papel

importante está aqui reservado aos advogados de supostas vítimas de violações

de direitos humanos, particularmente nos países em que aquela tendência ainda

não se tenha acentuado com vigor: no intuito de buscar a redução de

Page 24: O DIREITO À MORADIA

24

considerável distância entre o reconhecimento formal, e a vigência real, dos

direitos humanos, consagrados não só na Constituição e na lei interna como

também nos tratados de proteção, cabe aos advogados invocar estes últimos,

referindo-se às obrigações internacionais que vinculam o Estado no presente

domínio de proteção, de modo a exigir dos juízes e tribunais, no exercício

permanente de suas funções, que considerem, estudem e apliquem as normas

dos tratados de direitos humanos, e fundamentem devidamente suas decisões”.32

Nessa linha de raciocínio pontifica LUIZ VICENTE

CERNICCHIARO, ex-ministro do Superior Tribunal de Justiça, que “ (...) O

Direito não se confunde com a lei. A lei deve ser expressão do Direito.

Historicamente, nem sempre o é. A lei, muitas vezes, resulta de prevalência de

interesses de grupos, na tramitação legislativa. Apesar disso, a Constituição

determina: “Ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão

em virtude de lei.

“Aparentemente, a lei (sentido material) seria o ápice da

pirâmide jurídica. Nada acima dela! Nada contra ela! A Constituição,

entretanto, registra também voltar-se para “assegurar o exercício dos direitos

sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem estar, o desenvolvimento, a

igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna,

pluralista e sem preconceito, fundada na harmonia social...” (Preâmbulo).

Ainda que não o proclamasse, assim cumpria ser. Não se pode desprezar o

patrimônio político da humanidade! A lei precisa ajustar-se ao princípio. Em

havendo divergência, urge prevalecer a orientação axiológica. O Direito volta-se

para realizar valores. O Direito é o trânsito para concretizar o justo.

"O Judiciário, visto como Poder, não se subordina ao

Executivo ou ao Legislativo. Não é servil, no sentido de aplicar a Lei, como

alguém que cumpre uma ordem (nesse caso, não seria Poder). Impõe-se-lhe

31 "Instrumentos Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos", revista editada pelo Centro de Estudos da PGE/SP, 1996, p.18. 32 op. cit., pp. 21/23.

Page 25: O DIREITO À MORADIA

25

interpretar a Lei conforme o Direito. Adotar posição crítica, tomando como

parâmetro os princípios e a realidade social.

"(...)O Juiz é o grande crítico da lei: seu compromisso é

com o Direito! Não pode ater-se ao positivismo ortodoxo. O Direito não é

simples forma! O magistrado tem compromisso com a Justiça, no sentido de

analisar a lei e constatar se, em lugar de tratar igualmente os homens, mantém a

desigualdade de classes. (...) Em havendo discordância entre o Direito e a lei,

esta precisa ceder espaço àquele”. 33

E, indiscutivelmente, ao par de uma leitura mais atenta da

carta de princípios inserta no texto constitucional, aflora cristalina a constatação de

que o real senso do justo perseguido pelo estatuto social por ela proclamado -

embora, como visto, nem sempre obedecido - coincide com a primazia da dignidade

humana, que deveria ser a justa medida valorativa na concretização de todos os atos

estatais.

Sobre o tema afeto à eficácia das garantias

fundamentais gravadas na Constituição, pontifica FLÁVIA PIOVESAN,

ao adotar a concepção de Ronald Dworkin: (. . .) que o ordenamento

jurídico é um sistema no qual, ao lado das normas legais, existem

princípios que incorporam as exigências de justiça e dos valores éticos.

Estes princípios constituem o suporte axiológico que confere coerência

e estrutura harmônica a todo o sistema jurídico. O sistema jurídico

define-se, pois, como uma ordem axiológica ou teleológica de

princípios jurídicos que apresentam verdadeira função ordenadora, na

medida que salvaguardam valores fundamentais. A interpretação das

normas constitucionais advém, desse modo, de critério valorativo

extraído do próprio sistema constitucional”. 34

E acrescenta “ quão acentuada é a preocupação da

Constituição em assegurar os valores da dignidade e do bem-estar da pessoa humana, 33 "Direito Alternativo", artigo publicado na Revista "Consulex", nº 7, pp. 36/37.

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26

como imperativo de justiça social. Na lição de Antonio Enrique Pérez Lunõ: 'Os

valores constitucionais possuem uma tripla dimensão: a) fundamentadora – núcleo

básico e informador de todo o sistema jurídico-político; b) orientadora – metas ou fins

pré-determinados, que fazem ilegítima qualquer disposição normativa que persiga fins

distintos, ou que obstaculize a consecução daqueles fins enunciados pelo sistema

axiológico constitucional; e c) crítica – para servir de critério ou parâmetro de

valoração para a interpretação de atos ou condutas. (...) Os valores constitucionais

compõem, portanto, o contexto axiológico fundamentador ou básico para a

interpretação de todo o ordenamento jurídico; o postulado-guia para orientar a

hermenêutica teleológica e evolutiva da Constituição; e o critério para medir a

legitimidade das diversas manifestações do sistema de legalidade'. Neste sentido, o

valor da dignidade da pessoa humana impõem-se como núcleo básico e informador de

todo o ordenamento jurídico, como critério e parâmetro de valoração a orientar a

interpretação e compreensão do sistema constitucional”. 35

Arrematando: “atente-se ainda que, no intuito de reforçar a

imperatividade das normas que traduzem direitos e garantias fundamentais, a

Constituição de 1988 institui o princípio da aplicabilidade imediata dessas normas, nos

termos do art. 5º, parágrafo 1º. Este princípio realça a força normativa de todos os

preceitos constitucionais referentes a direitos, liberdades e garantias fundamentais,

prevendo um regime jurídico específico endereçado a estes direitos. Vale dizer, cabe

aos Poderes Públicos conferir eficácia máxima e imediata a todo e qualquer preceito

definidor de direito e garantia fundamental. Este princípio tenta assegurar a força

dirigente e vinculante dos direitos e garantias de cunho fundamental, ou seja, objetiva

tornar tais direitos prerrogativas diretamente aplicáveis pelos Poderes Legislativo,

Executivo e Judiciário. No entender de Canotilho, o sentido fundamental desta

aplicabilidade direta está em reafirmar que 'os direitos, liberdades e garantias são

regras e princípios jurídicos, imediatamente eficazes e actuais, por via direta da

Constituição e não através da auctoritas interpositio do legislador. Não são simples

norma normarum mas norma normata, isto é, não são meras normas para a produção

34 “Direitos Humanos e o Direito Constitucional”, ed. Max Limonad, S.P., 1996, p. 60. 35 op.cit., p.59.

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27

de outras normas, mas sim normas diretamente reguladoras de relações jurídico-

materiais' ”. 36

Para não dizerem que estamos sós, o nobre Juiz Federal

ANTONIO FRANCISCO PEREIRA, titular da 8ª Vara Federal de Belo

Horizonte, com a consciência voltada para essas aspirações, em pioneira e

antológica sentença, cunhada ante caso transido do mesmo drama humano aqui

tantas vezes sublinhado, assim proveu:

“Várias famílias (aproximadamente 300 - fl. 10)

invadiram uma faixa de domínio ao lado da Rodovia BR

116, na altura do KM 405.8, lá construindo barracos de

plástico preto, alguns de adubo, e agora o DNER quer

expulsá-los do local. “Os réus são indigentes”, reconhece a

autarquia, que pede reintegração liminar de posse do

imóvel. E aqui estou eu, com o destino de centenas de

miseráveis nas mãos. São os excluídos, de que nos fala a

Campanha da Fraternidade deste ano.

"Repito, isto não é ficção. É um processo. Não estou lendo

Graciliano Ramos, José Lins do Rego ou José do

Patrocínio. Os personagens existem de fato. E incomodam

muita gente, embora deles nem se saiba direito o nome. É

Valdico, José, Maria, Gilmar, João Leite (João Leite???).

Só isso para identificá-los. Mais nada. Profissão, estado

civil ( CPC art 282, II) para que, se indigentes já é

qualificativo bastante? Ora é muita inocência do DNER

se pensa que vou desalojar este pessoal, com a ajuda da

polícia, de seus moquiços, em nome de uma mal

arrevesada segurança nas vias públicas. O autor esclarece

que quer proteger a vida dos próprios invasores, sujeitos

36 idem, p.63/4.

Page 28: O DIREITO À MORADIA

28

a atropelamento. Grande opção! Livra-os da morte sob as

rodas de uma carreta e arrojá-os para a morte sob o

relento e as forças da natureza. Não seria pelo menos mais

digno - e menos falaz - deixar que eles mesmos

escolhessem a maneira de morrer, já que não lhes foi

dado optar pela forma de vida?

"O Município foge a responsabilidade 'por falta de

recursos e meios de acomodações' (fl. 17-v). Daí esta

brilhante solução: aplicar a Lei. Só que, quando a lei

regula as ações possessórias, mandando defenestrar os

invasores (art. 920 e segts. do CPC) ela - COMO TODA

LEI - tem em mira o homem comum, o cidadão médio,

que, no caso, tendo outras opções de vida e de moradia

diante de si, prefere assenhorar-se do que não é dele, por

esperteza, conveniência, ou qualquer outro motivo que

mereça a censura da lei e, sobretudo, repugne a

consciência e o sentido do justo que os seres da mesma

espécie possuem. Mas este não é o caso no presente

processo. Não estamos diante de pessoas comuns, que

tivessem recebido do Poder Público razoáveis

oportunidades de trabalho e de sobrevivência digna. Não.

Os 'invasores' ( propositadamente entre aspas)

definitivamente não são pessoas comuns, como não são

milhares de outras que 'habitam' as pontes, viadutos e até

redes de esgoto de nossas cidades. São párias da sociedade

(hoje chamados de excluídos, ontem de descamisados),

resultado do perverso modelo econômico adotado pelo

país. Contra este exército de excluídos, o Estado (aqui,

através do DNER) não pode exigir a rigorosa aplicação da

lei (no caso, reintegração de posse), enquanto ele próprio -

o Estado - não se desincumbir, pelo menos razoavelmente,

da tarefa que lhe reservou a Lei Maior. Ou seja, enquanto

Page 29: O DIREITO À MORADIA

29

não construir - ou pelo menos esboçar - 'uma sociedade

livre, justa e solidária' (CF, art. 3º, I), erradicando a

'pobreza e a marginalização'(n. III), 'promovendo a

dignidade da pessoa humana' (art. 1º, III), assegurando a

todos 'a existência digna', conforme os ditames da Justiça

Social (art. 170), emprestando à propriedade sua 'função

social' (art. 5º, XXIII, e 170, III), dando à família, base da

sociedade, 'especial proteção' (art. 226), e colocando a

'criança e o adolescente a salvo de toda a forma de

negligência, discriminação, exploração, violência,

maldade e opressão'( art.227)...”37

O Anseio

3 É curioso observar como não faltam argumentos para se

cumprir o óbvio, ou seja, que os dispositivos constitucionais, em especial aqueles

tangentes à emprestar esteio ao princípio básico da prevalência da dignidade humana,

existem justamente para serem cumpridos, efetivados, sacralizados.

Mas, conforme observação sempre atual, assestada por Karl

Marx "até agora, os filósofos só fizeram interpretar o mundo de maneiras diferentes:

cabe então transformá-lo".38

Porém, a transformação social no campo do direito, não

obstante a clareza dos preceitos constitucionais que ordenam a construção de uma

sociedade igualitária, justa, fraterna, erigida sobre a primazia da dignidade humana,

insiste em não ser aceita.

37 Sentença colhida do site www.dcc.unicamp.com.br

Page 30: O DIREITO À MORADIA

30

Por mais completos e vítreos que se apresentem os

dispositivos constitucionais que apontem para o combate à pobreza e a

marginalização, que direcionem o sentido do Estado para o aspecto fundamental do

fortalecimento daquela dignidade tantas vezes degradada pelos atos próprios de

governo, o raso normativismo incutido na dogmática jurídica reinante impede a

efetiva materialização das garantias elencadas naquelas primordiais normas, entre as

quais se encontra o direito à moradia, sob uma malsinada retórica de

"programaticidade" a caracterizar esses enunciados.

Como asseverou Dalmo de Abreu Dallari, ao comentar a

ossificação do direito pelo pragmatismo positivista dominante, que na aplicação do

ordenamento jurídico refuta qualquer interpretação axiológica dos enunciados

normativos, "desse modo a procura do justo foi eliminada e o que sobrou foi um

apanhado de normas técnico-formais, que sob a aparência de rigor científico,

reduzem o direito a uma superficialidade mesquinha. Essa concepção do direito é

conveniente para quem prefere ter a consciência anestesiada e não se angustiar com a

questão da justiça".39

Contudo, quando se refere a imperativos econômicos,

financeiros, patrimoniais, essa "programaticidade" nunca é lembrada para refrear a

eficácia dos dizeres constitucionais, e, mais das vezes, tais interesses são atendidos

pelos tribunais mesmo sob patente violação a comandos cravados na constituição.

Incrível, mas ela - as "normas constitucionais programáticas"

- só vêm à baila quando estamos por discutir a efetividade de preceitos que procuram

dignificar a existência humana.

Já disse Fernandez-Largo que el comprender es un ver

entorno.40

38 apud Wilson, Edmund, "Rumo à Estação Finlândia", Cia. das Letras, S.P., 1989, p. 125. 39 "O legalismo expulsou a justiça", jornal da Associação Juízes para a Democracia, nº 16, jan.fev. 99, p.3. 40 Apud Streck, Lenio Luiz, "Hermenêutica Jurídica e(m) Crise", livraria do advogado, Porto Alegre, 2ª ed., 2000, 209.

Page 31: O DIREITO À MORADIA

31

E do simples ver em torno, confrontando-nos com o

desagregado cenário social aqui tantas vezes delineado, é impossível deixar de

perceber a significância que nesses tempos de caos humano ganham os tratados

internacionais e os preceitos constitucionais que lhes são sucedâneos, regentes dos

direitos sociais, culturais e econômicos, sem os quais as garantias atreitas aos direitos

civis e políticos meramente formais, que visam, apenas, impor ao Poder Público

simples abstenções, não passam de um inane roteiro de palavras vãs.41

Ademais, avulta mais do que evidenciada a total superação

do discurso urdido em meio a dogmática jurídica tradicional em se tentar infirmar a

efetividade dos dispositivos constitucionais despontantes dos direitos sociais, à

mercê da ultrapassada retórica de serem tais normas "meramente programáticas",

mesmo porque, como ressaltado, o próprio texto constitucional, no § 1º de seu artigo

5º expressamente municia os preceitos geradores dos direitos fundamentais com a

amplitude inerente aos enunciados revestidos de eficácia plena.42

Corrobora Carlos Weis que "também por força do que dispõe

o § 1º do artigo 5º, as normas que definem os direitos econômicos, sociais e culturais

devem ser interpretadas no sentido de garantir-lhes aplicação imediata, gerando

direitos para seus titulares. Interpretando esta disposição, José Afonso da Silva o

entende como uma 'norma-síntese' da concepção constitucional de que os direitos

humanos (compreendidos os 'direitos fundamentais: individuais, coletivos, sociais, de

nacionalidade e políticos') só cumprem sua finalidade se as normas que os expressem

tiverem efetividade".43

41 Weis, Carlos, "O Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais", artigo inserido na coletânea "Direitos Humanos: construção da liberdade e da Igualdade", editada pelo Centro de Estudos da PGE/SP, em 1998. "Seja como for, a tentativa de se partir os direitos humanos em duas categorias com importância desigual, foi posta por terra menos de dois anos após a adoção dos pactos Internacionais, na Conferência Mundial realizada em Teerã em 1968, na qual se afirmou peremptoriamente a indivisibilidade e a interdependência dos direitos humanos: "Como os direitos humanos e as liberdades fundamentais são indivisíveis, a realização dos direitos civis e políticos sem o gozo dos direitos econômicos, sociais e culturais torna-se impossível".p.296. 42 Streck, Lenio Luiz, op. cit., p. 219, aduz: "Para a elaboração de um discurso crítico, torna-se indispensável negar a inegabilidade dos pontos de partida (Ferraz Jr) no qual se assenta o discurso dogmátio. Cometendo infidelidades dogmáticas, há que se Ter claro, por exemplo, que, no campo da aplicabilidade das normas constitucionais, não há um dispositivo que seja, em si mesmo, programático ou de eficácia contida ou limitada, como o quer o discurso jurídico dominante. Ora, um dispositivo terá ou não determinada eficácia a partir do processo de produção de sentido que exsurgirá do processo hermenêutico e que dependerá do jogo de forças que se travará no respectivo campo jurídico". 43 op. cit., p. 309.

Page 32: O DIREITO À MORADIA

32

Ainda na vereda de sustentar o óbvio, e com Lenio Streck

podemos asserir que não há texto constitucional abstrato, universalizante, pois, 'a

Constituição constitui, a Constituição vincula, a Constituição estabelece as condições

do agir político-estatal'.44

Luís Roberto Barroso nos empresta um bem acabado perfil

do significado do que se está por tentar expor, ao pontificar que " a constituição,

como é corrente, é a lei suprema do Estado. Na formulação teórica de Kelsen, até

aqui amplamente aceita, a Constituição é o fundamento de validade de toda a ordem

jurídica. É ela que confere unidade ao sistema, é o ponto comum ao qual se

reconduzem todas as normas vigentes no âmbito do Estado. De tal supremacia

decorre o fato de que nenhuma norma pode subsistir validamente no âmbito de um

Estado se não for compatível com a Constituição".45

E no centro de tantos axiomas, não é demais concluir que

qualquer ato estatal, seja ele normativo, administrativo, judicante que afronte

os dogmas constitucionais e impeçam a concretização do princípio republicano

atreito ao fortalecimento da dignidade da pessoa humana, como, às escâncaras,

o são, por exemplo, os sucessivos contratos de aditamento da inexplicada e

eterna dívida pública do país, as leis que, como a de "responsabilidade fiscal",

inibem a estruturação do cambaleante aparato de serviços essenciais afetos ao

Estado, sobrepujando, em benefício direto daqueles que vivem a parasitar o

erário público, a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais

prometidos em inúmeros tratados que, como se disse, foram solenemente

subscritos por este país, todos esses atos, como afirmado, se afiguram

inegavelmente inconstitucionais, porque francamente contrários aos preceitos

garantistas embutidos no ordenamento constitucional.

Como observa Alexandre Morais da Rosa: "é que a

Constituição, como norma-mãe (fundamento de validade material e formal do

sistema), deve ser suprema. Todos os dispositivos e interpretações possíveis devem

perpassar pelo seu controle formal e material, não podendo ser infringida ou 44 "Hermenêutica...", p. 288.

Page 33: O DIREITO À MORADIA

33

modificada ao talante dos governos públicos. (...) J.J. Gomes Canotilho ensina que 'a

parametricidade material das normas constitucionais conduz à exigência da

conformidade substancial de todos os atos do Estado e dos poderes públicos com as

normas e princípios hierarquicamente superiores da Constituição' ".

Continua referido constitucionalista a dizer que: "é dever

primevo dos atores jurídicos a compreensão adequada da Constituição Federal,

concretizando-a na sua maior extensão possível, primordialmente no tocante aos

Direitos Fundamentais. Existe a necessidade orgânica de convergência das práticas

jurídicas e sociais aos regramentos Constitucionais relativos aos Direitos

Fundamentais, estabelecendo-se, portanto, um sistema de garantias simultâneo de

preservação e realização. Essa é uma das tarefas do ator jurídico garantista no Estado

Democrático de Direito: tutelar materialmente os direitos e garantias individuais e

sociais".46

Para Luigi Ferrajoli "a sujeição do juiz à lei não é de fato,

como no velho paradigma juspositivista, sujeição à letra da lei, qualquer que seja o

seu significado, ma sim sujeição à lei somente enquanto válida, ou seja coerente com

a Constituição. (...) Daí deriva que a interpretação judicial da lei é também sempre

um juízo sobre a própria lei, relativamente à qual o juiz tem o dever e a

responsabilidade de escolher somente os significados válidos, ou seja, compatíveis

com as normas constitucionais substanciais e com os direitos fundamentais por elas

estabelecidos".47

Reforçando o sentido das premissas precedentemente

sublinhadas, enfatiza Lenio Luiz Streck que "a modernidade propôs uma dupla

possibilidade para a humanidade. Por uma delas, a realização da razão seria o

desenvolvimento universal para um sistema social que concretizasse o princípio da

"igualdade formal", através da crescente redução das desigualdades reais no mundo

moderno. Tal não aconteceu. Ao contrário, o que ocorreu foi a pós-modernidade

aprofundar a irracionalidade, aumentar as diferenças sociais e consolidar relações 45 "Interpretação e Aplicação da Constituição", S.P., Saraiva, 1998, p. 54. 46 "O que é Garantismo Jurídico", ed. Habitus, Florianópolis-SC, 2003, p.p.37/38.

Page 34: O DIREITO À MORADIA

34

cada vez mais alienadas. Foi isso o que os homens modernos fizeram da sua história.

A razão foi assaltada no sentido de ser despida de sua vocação humanizadora (Tarso

Genro). Os legados da modernidade longe estão de serem realizados no Brasil.

"O Direito - conclui o mencionado jurista - como um desses

principais legados - visto como instrumento de transformação social e não como

obstáculo às mudanças sociais - formalmente encontrou guarida na Constituição de

1988. A forma desse veículo de acesso à igualdade prometida pela modernidade foi a

instituição do estado Democrático de Direito, que, porém, longe está de ser

efetivado. É despiciendo dizer que o Estado Social-Providência (ainda) não ocorreu

no Brasil. O propalado welfare state, no Brasil, foi (e é) um simulacro. O Estado

interveio na economia para concretizar riquezas. O Direito, por sua vez, foi (e

continua sendo) utilizado para sustentar essa 'missão' (secreta) do Estado, na medida

em que este é entendido em sua função (meramente) ordenadora/absenteísta.

"O que existe, pois, é uma imensa dívida social a ser

resgatada. Considerando-se que a fórmula do estado Democrático de Direito destina-

se, justamente, para instrumentalizar o Direito como um campo privilegiado na

concretização dos direitos sociais mediante o deslocamento do foco de decisão do

Poder Executivo e do Legislativo para o Judiciário - e levando-se em conta que a

maioria dos direitos previstos na Constituição ainda não se realizou, é possível

afirmar que a dogmática jurídica tem obstaculizado a realização/efetivação desses

direitos".48

Sedimentadas assim todas essas premissas que convergem

na inexorável constatação de que todos os atos de império do Estado (sejam eles

de cunho governamental, contratual, legiferante ou mesmo judicial) que

impliquem em empeços à materialização de toda essa vasta gama de direitos

sociais tendentes a construção de uma sociedade justa e solidária, erradicadora

da miséria e da marginalização e edificante da supremacia da dignidade

humana sobre todas as coisas, todos eles ressumam francamente

inconstitucionais, devendo, ao que interessa ao tema aqui expendido, serem

47 "O Direito como sistema de garantias", inserido "Novo em Direito", obra coordenada por Oliveira Júnior, José Alcebíades, livraria do advogado, Porto Alegre-RS, 1997, p.90/91. 48 op. cit., pp. 215/216.

Page 35: O DIREITO À MORADIA

35

assim reconhecidos, mediante a tutela jurisdicional a ser emitida por influxo do

controle difuso em qualquer processo judicial cuja questão seja desta forma

suscitada.

Aqui, a primeira consequência prática visando a

concretização dos direitos sociais cronicamente sonegados ao povo, que se procura

abordar neste arrazoado.

Ancorando estas induções, argumenta Alexandre Morais da

Rosa que " diante dessa nova conformação, pode o ator jurídico analisar a norma

isoladamente e deixar de aplicá-la por não ser válida em face do caso específico,

apesar de válida em outra situação jurídica. Significa a possibilidade da resistência

constitucional , autorizada pela legítima possibilidade de opinião

material/constitucional sobre a norma jurídica".49

Ou, de acordo com o que se tem insistentemente sustentado,

pondera o mesmo jurista que "nesse pensar, compete especificamente ao magistrado,

no modelo garantista, renunciar à função de boca repetidora da lei ou mesmo

decorativa desta. O magistrado, no modelo positivista tradicional, possui relação

formal com a Constituição, demitindo-se - até inconscientemente, às vezes - do

dever ético-político de absoluta intimidade com o texto constitucional. Esse

magistrado é um burocrata informado pelo arsenal técnico disponibilizado pela

dogmática jurídica, valorizador da forma, em desfavor da substância. Acredita, ainda,

que a forma é a garantia da eficácia do direito, sem qualquer valoração, cumprindo as

normas simplesmente porque existem e têm vigência (aspecto meramente formal).

Continua interpretando a Constituição à luz do Código Civil. Renuncia ao

irrenunciável: o seu poder-dever de controlar difusamente a constitucionalidade

49 " O que é o Garantismo Jurídico",...,p. 50. Ainda sobre a possibilidade do controle administrativo da constitucionalidade de lei pelo próprio Executivo, enuncia Binenbojm, Gustavo, "A Nova Jurisdição Constitucional Brasileira", Renovar, RJ, 2001, p. 211, que "no desempenho de sua função administrativa, entretanto, também o Poder Executivo interpreta e aplica a Constituição. Assim, ao verificar uma incompatibilidade entre normas de diferente hierarquia que se apliquem à mesma situação fática, deve o Poder Executivo optar por cumprir a norma hierarquicamente superior", donde se segue que o discurso oficial para justificar a ausência de investimentos sociais neste país por conta dos mal urdidos "limites prudenciais" encontrados na "lei de responsabilidade fiscal" não passa de infundada falácia.

Page 36: O DIREITO À MORADIA

36

material do ordenamento infraconstitucional, tranquilizando-se com a mera

concordância formal com a Lei Maior".50

Por outro ângulo - e agora adentrando à segunda proposição

aqui sustentada - todos os direitos sociais, econômicos e culturais encravados na

Constituição e também constantes dos incontáveis instrumentos internacionais de

direitos humanos firmados pelo país - dentre os quais o específico direito à

moradia - geram uma obrigação positiva ao Estado (entendido aqui em sentido

amplo), de cuja inobservância deriva o irreprimível direito subjetivo de qualquer ser

habitante destas paragens em postular, via tutela jurisdicional , a mais ampla e justa

indenização em face do Estado, diante do insistente e histórico descumprimento

daquela messe de direitos fundamentais universalmente entoados.

Não se ignora aqui o aspecto progressivo da eficácia

normativa embutida nos vários tratados internacionais regentes dos direitos sociais,

econômicos e culturais, ordenando aos Estados pactuantes a corporificação desses

direitos à população vitimizada em escala condizente com seus recursos materiais.51

Mas - como repisado na primeira parte deste escrito -também

não podemos olvidar que contamos com a disponibilidade necessária de recursos

materiais aptos a resgatar a grande maioria da população do sempiterno estado de

indigência ao qual foi relegada em função única das sucessivas implementações de

políticas econômicas incontestavelmente equivocadas e perversas, impostas ao país

por nossos gestores, caminhos esses que só não são alterados em razão da ausência

de vontade política do estamento social que sempre deteve o poder.

A manutenção desse modelo político-econômico excludente

ofende de forma direta os ditames constitucionais que visam a consolidar uma

sociedade justa e solidária, dignificando a pessoa humana como escopo essencial

desta enfermiça república, valores esses que foram guindados, pela norma

50 op. cit., pp. 81/82. 51 Sobre esse específico enfoque, cf. Weis, Carlos, op. cit, onde pondera que "(...) a eficácia das normas de direitos sociais, de outra forma, depende da ação estatal, geralmente complexa e que requer ações coordenadas, dando-se de forma progressiva e limitada pelas possibilidades materiais", p. 312.

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37

constitucional, ao aporte axiológico que deveria ser indissociável de qualquer ato

porventura concebido ou consumado pelo Poder Público.

Mas lastimavelmente não o é. Por isso vivemos a

testemunhar esse circundante estado de desagregação social, já tantas vezes

delimitado ao longo deste arrazoado.52

Portanto pode-se afirmar que o Estado, representante

máximo da sociedade, corporificado pela União, gestora suprema da política

social, econômica e habitacional neste país (artigo 21, IX e XX c.c. 170 da CF),

perpetra cotidianamente ato ilícito, tanto por ação como por omissão, ao

suprimir da infinda legião de miseráveis que vivem por estas terras as mínimas

e mais parcas perspectivas de vida, fazendo eclodir, em meio ao cenário que até

aqui se está a descrever, a possibilidade de ser dada concretude, mediante a

tutela jurisdicional, do direito assegurado pelo artigo 37, § 6º da Carta

Republicana, regulador da responsabilidade objetiva estatal quanto aos danos

decorrentes de sua inércia ou desastrosa atuação.53

Não é preciso muito esforço interpretativo para chegarmos à

conclusão de que o direito à moradia materializa um dos mais importantes direitos

sociais encontrados na enorme gama de instrumentos internacionais de direitos

humanos subscritos por esta pátria, eis que um abrigo minimamente adequado é o

ponto de partida para uma vivência digna, ao largo da marginalização e do

desamparo tão frequentes nos dias que correm.

52 Ainda Weis, em que pese as considerações acima, acentua que uma das funções dos instrumentos asseguradores dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais consiste, precisamente, em servir como "um empecilho ao retrocesso da política social do Estado que, tendo alcançado um certo nível de proteção dos respectivos direitos, não pode retroceder e com isso baixar o padrão de vida da comunidade"., op. cit, p. 312. 53 Pfeiffer, Roberto A Castellanos e Agazzi, Anna Carla, "Integração, Eficácia e Aplicabilidade do Direito Internacional dos Direitos Humanos no Direito Brasileiro", artigo inserido na coletânea de textos "Direitos Humanos: Construção da Liberdade e da Igualdade", editado pelo Centro de Estudos da PGE/SP, 1998, p. 223, sobre as principais consequências da aplicabilidade imediata dos direitos estatuídos nos referidos tratados, aduzem que: "1 todas as disposições que estabeleçam direitos, exceto se não fornecerem os parâmetros mínimos necessários ao seu exercício, são imediatamente exigíveis; 2 São inválidas todas as disposições legais cujo conteúdo contrarie normas estabelecidas nos tratados, pouco importando se as mesmas sejam ou não auto-executáveis; 3 Nas obrigações de prestar, de o Estado cumprir garantias, o desatendimento pode ser impugnado, por intermédio, por exemplo, de ação civil pública. Assim, também essa espécie de omissão pode render ensejo à impugnação judicial".

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38

Por conta dessa relevância, José Afonso da Silva pontifica

que o conteúdo do direito à moradia "envolve não só a faculdade de ocupar uma

habitação. Exige-se que seja uma habitação de dimensões adequadas, com

condições de higiene e conforto que preserve a intimidade pessoal e a

privacidade familiar, como se vê na Constituição Portuguesa (art. 65). Em

suma, que seja uma habitação digna e adequada, como quer a Constituição

Espanhola (art. 47). (...) É que a compreensão do direito à moradia, como

direito social, agora inserido expressamente em nossa Constituição, encontra

normas e princípios que exigem que ele tenha aquelas dimensões. Se ela prevê,

como um princípio fundamental, a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III),

assim como o direito à intimidade e à privacidade (art. 5º, XI), então tudo isso

envolve, necessariamente, o direito à moradia. Não fosse assim seria um direito

empobrecido".54

E guardando indisfarçável conexão ao até agora asseverado,

arremata o apontado jurista: "tal direito consiste no direito de obter uma moradia

digna e adequada, revelando-se como um direito positivo de caráter prestacional,

porque legitima a pretensão do seu titular à realização do direito por via de ação

positiva do Estado."55

Em suma, frente à histórica inefetivação dos direitos sociais

por nosso corpo dirigente, o instrumento jurídico apto a materializar o acesso ao

direito à moradia a qualquer pessoa (ou coletividade de pessoas) que vivencie a

situação de exclusão a esse definido e tão significativo bem, reside na possibilidade

de, através de uma demanda indenizatória, postular, em face da União, a mais

completa e justa reparação desse sonegado direito, cujo quantum deverá ser definido

através de oportuna liquidação por arbitramento 56 ou mesmo delimitado, mediante

perícia no bojo mesmo do correspectivo processo judicial, e deverá traduzir um valor

que reflita o custo necessário para a edificação de moradia adequada, a ser erigida

em terreno dotado de todos os equipamentos urbanos indispensáveis à propiciar ao

54 "Curso de Direito Constitucional Positivo", Malheiros, SP, 19ª ed. 55 op. cit., mesma pág. 56 artigo 606, II, CPC.

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postulante uma existência digna, conforme as promessas constitucionais tantas vezes

entoadas.

Os administrados - aviltados contribuintes - não irão, com

certeza, se queixar dessa penalização, pois, para eles, a civilidade do ente maior da

sociedade - que é o Estado - é muito mais importante do que qualquer obra pública

inútil, como tantas que existem por aí.

Nas expressivas palavras de Rodolfo Bulrich “...é

necessário que a coletividade suporte e indenize os danos cometidos por seus

governantes. Assim se assegurará também o progresso político do país, porque

sabendo o eleitor que os erros ou faltas dos que o governam se traduzirão em

encargos que ele próprio há de suportar, será mais cuidadoso na eleição dos

seus candidatos e tomará mais zelo do que toma na atualidade nas questões

políticas ou administrativas que interessam à marcha da nação”. 57

O provimento indenizatório assim proferido, servirá,

também, para afastar a eterna impressão de injustiça, que historicamente se

arraigou sobre o consciente coletivo – e com vasto anteparo de razões –

exsurgindo um outro relevantíssimo escopo jurisdicional, intitulado por

doutrinadores da envergadura de Cândido R. Dinamarco como escopo social da

jurisdição, que visa eliminar a litigiosidade contida decorrente daquela

sensação de descrédito do modelo estatal de distribuição de justiça, obrigando o

Estado a cumprir perante a sociedade seus direitos e principalmente suas

obrigações, pois, “na medida em que a população confie em seu Poder

Judiciário, cada um de seus membros tende a ser sempre mais zeloso dos

próprios direitos e se sente mais responsável pela observância dos alheios”. 58

57 Apud Dias, José de Aguiar. "Da Responsabilidade Civil", Forense, RJ, 1994, vol. II, p.557.

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40

O Mirante

4 Ficou assentado linhas atrás que compreender é ver em

torno.

Estamos já inseridos - pelo menos sob o prisma cronológico -

no século XXI, e, transpostos mais de 18 anos da promulgação da extensa carta de

direitos sociais alinhavada na Constituição de 1988, não conseguimos, ainda, superar

a barbárie circundante, ou pelo menos amenizar seus efeitos, consolidando o

processo civilizador do país graças, em muito, à inobservância dos Direitos Sociais

titularizados pela ampla maioria vitimizada, cujo martírio aqui tanto foi pontuado.

O Poder Judiciário, salvo restrita exceção de seus

componentes, historicamente se mostrou refratário ao enfrentamento dessa enorme

gama de desarranjos sociais subjacentes à relação jurídica-processual, uma vez que

dogmatizado pelos estéreis cânones do positivismo ortodoxo-legalista, sempre viu

nessa atroz realidade um mero conjunto de fatores "destituídos de relevância

jurídica", consoante disforme ressonância solfejada do discurso jurídico dominante.

A temática foi bem examinada por Lédio Rosa de Andrade,

que ponderou: "Qualquer reflexão geral sobre o Direito que despreze a realidade

socioeconômica do país onde o mesmo é aplicado estará fadada a ser mero exercício

intelectual sobre a irrealidade, gratuita ficção, uma ilusão, uma quimera, sem a

mínima importância para as pessoas e para a história real".59

Para se ter uma idéia da práxis cotidiana do Judiciário,

referido jurista nos conta que: "na década de oitenta, os principais conflitos

resolvidos pelo Poder Judiciário foram referentes às seguintes categorias: questões

trabalhistas, problemas criminais, separação conjugal, desocupação de imóveis,

pensão alimentícia, conflito de vizinhança, conflito pela posse da terra, cobrança de

58 "A Instrumentalidade do Processo", RT, SP, 2ª ed., 1990, pp. 224/5. 59 "Introdução ao Direito Alternativo Brasileiro". Ed. Livraria do Advogado, Porto Alegre-RS, 1996, p. 19.

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dívidas e herança, dizendo respeito a três áreas distintas do Direito, quais sejam:

Trabalhista, Criminal e Civil".60

A despolitização dos temas levados à discussão no âmbito do

sistema judiciário levou ao inelutável retrocesso na concretude dos Direitos Sociais,

Econômicos e Culturais, contribuindo, em grande escala, para dimensionar ainda

mais o enorme abismo de desigualdades sociais caracterizador da sociedade

brasileira.

Essa postura acrítica no exercício da jurisdição é totalmente

incompatível com a construção e luta pela consolidação do prometido Estado Social

de Direito, estampado na Constituição Federal, ambiente este em que, também

como afirmado alhures, o centro de discussões garantidor da primazia dos Direitos

Fundamentais deveria ser o próprio Judiciário.

No presente tema, a bem da verdade, as tentativas de

materializar os Direitos Sociais nos meandros da tutela jurisdicional do Estado são

inegavelmente tímidas, circunscritas à cominação dirigida ao Poder Público para

implementação de creches ou pré-escolas sonegadas à população carente 61,

distribuição gratuita de medicamentos aptos a combater graves enfermidades62,

muito embora embotadas pelo reacionarismo reinante dentro do sistema.63

60 Andrade, Lédio Rosa de. op. cit, p. 95. Nessa mesma obra, baseado em dados fornecidos por Gilberto Dimenstein, deixou consignado que: "intervenção da justiça, conforme apurou a Pesquisa Nacional de Amostragem Domiciliar (PNAD) em 1991, é preponderante nos conflitos por pensão alimentícia (73,2%), questões trabalhistas (66,6%) e nos conflitos pela posse da terra (51,3%). (...)No conjunto de todos esses conflitos, apenas 33% das pessoas envolvidas em algum tipo de conflito buscaram o Judiciário para a solução de seus problemas. Não espanta portanto que, conforme pesquisa de opinião do Datafolha, publicada em 12.3.94, 35% dos brasileiros tivessem considerado o Judiciário como 'regular', 25% como 'ruim e péssimo' e apenas 25% como 'ótimo ou bom'"., op. cit. p. 94. 61 Exemplo marcante desse tipo de tutela pode ser extraído da arrojada sentença proferida pelo magistrado catarinense Alexandre Morais da Rosa, nos autos da Ação Civil Pública nº 038.03.008229-0, desenvolvida perante a Vara da Infância e Juventude da comarca de Joinvile, datada de 12.05.2003, na qual o ínclito julgador impôs à municipalidade de Joinvile a obrigação de imediata instalação de 24 Ceis - Centro de Educação Infantil e 14 Jardins de Infância, visando atender 2.948 crianças excluídas de tão essencial prestação de serviço público. 62 Corporificando o Direito à Vida, encontramos inúmeras decisões obrigando o Estado a dispensar gratuitamente medicamentos de combate à AIDS: TJSP, apel. Cível nº 24.332-0; Agravo Instrumento nº 22.239-5; JTJ 188/227; Ação Civil Pública nº 053.00.002474-3, da 1ª Vara da fazenda Pública de São Paulo; para combate à Esclerose Lateral Amitrófica - ELA: STF, AG nº 238.328-RS, rel. Min. Marco Aurélio, DJU 11.5.99; STJ Resp. 249.026-PR, rel. Min. José Delgado, DJU 26.6.2000; STJ - MS nº 11.183-PR, j. em 22.8.2000, 1ª Turma, rel. Min. José Delgado; e, visando distribuir "Interferon Peguilado",

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Tangenciando o assunto para uma abordagem mais próxima

ao tema dominaste neste estudo, podemos concluir que nos conflitos agrários o

Poder Judiciário sempre serviu como instrumento de controle do poderio daqueles

que dominam o latifúndio em desfavor dos miseráveis sem opção de vida ou de

abrigo, pois suas decisões sempre apegaram-se à superproteção do dogma maior

afeto à prevalência da propriedade privada (compreendida aqui em sentido lato)

sobre qualquer outro direito.

Habitamos em um dos últimos rincões que ainda não

estabeleceu ou mesmo iniciou o processo de reforma agrária, tendente a debelar a

aviltante concentração de terras sedimentada em sua infinda extensão continental,

aglutinadora dos latifúndios construídos, mais das vezes, através de atividades

ilegais na ocupação da terra e à mercê da histórica exploração das minorias de

miseráveis radicados em seus limites.

Conforme acentua César Benjamim "os números são

avassaladores. Numa ponta, quase 53% dos proprietários detêm menos de 3% da

área, enquanto menos de 1% detêm 44% da área (a concentração, na verdade, é

muito maior, pois esses números deixam de fora milhões de famílias de

trabalhadores rurais que não têm nenhuma terra). O mesmo IBGE informa que os

estabelecimentos com menos de 10 hectares usam 65% de sua área com lavouras,

enquanto os estabelecimentos com 10 a 100 hectares usam 28%. Grosso modo, eles

correspondem à agricultura familiar. Já os estabelecimentos com 1.000 a 10.000

hectares usam 6% de sua área, enquanto os com mais de 10.000 hectares mantêm

plantios em apenas 2% das terras que ocupam. Na média, o Brasil utiliza com

lavouras apenas 14% de sua área agricultável total, mantendo na ociosidade mais de

para combate à Hepatite C, cf. MS nº 1048/053.01.017161-7, da 2ª Vara da Fazenda Pública da comarca de São Paulo, j. em 7.3.01, dentre outros exemplos. 63 Representando a ingente resistência ao avanço na concretização dos Direitos Sociais, transcrevemos aqui triste decisão emitida pelo juiz de direito titular da 7ª Vara da Fazenda Pública da Comarca de São Paulo que, na Ação Cominatória nº 968/01, aos 26.7.2001, indeferiu pedido de Antecipação da Tutela Jurisdicional postulada por portadores de HIV em estágio avançado da moléstia, visando a obtenção de coquetel de medicamento tendente a lhes emprestar sobrevivência, assim amparando sua decisão: "(...)Por outro lado não há fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação. Todos somos mortais. Mais dia, menos dia, não sabemos quando, estaremos partindo, alguns, por seu mérito, para ver a face de Deus. Isto não pode ser tido por dano. Daí o indeferimento da antecipação da tutela".

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10 milhões de hectares bons. Tal uso pouco intensivo da terra, como se vê, tem

relação direta com a predominância da grande propriedade."64

Aprofundando esse enfoque, ressalta Lédio Rosa de Andrade

que" as brutais diferenças sociais não são frutos só da concentração de renda. Um

outro fator importante é a má distribuição da terra e a falta de uma reforma agrária.

O Brasil é um país de 8.511.996,3 Km2, e 80% desta imensidão de terras, ou seja,

6.809.597Km2, pertencem a 10% de fazendeiros. Existem fazendas, de propriedade

de uma só pessoa, maiores que países. Isto faz do Brasil uma das nações com maior

índice de concentração da propriedade da terra na atualidade.

"Nesse tema - continua mencionado jurista - ocorre uma

grande contradição no discurso dos defensores da propriedade privada como um

Direito Natural. Natural significa um direito do ser humano pelo simples fato de ser

um ser humano. É prévio ao Estado e ao Direito. É algo assim como o respirar ( em

relação ao comer já se não pode mais falar), um direito essencial à própria vida. Ora,

se realmente a propriedade é um Direito Natural então, dentro de sua lógica, seria

um Direito de todos, pois já se acabou a época em que se afirmava, no discurso

católico, não terem os negros alma e, portanto, não possuírem direitos. Não mais se

pode aceitar serem algumas pessoas inferiores (como as mais variadas formas de

escravos), sem personalidade jurídica, negando-se-lhes a qualidade de sujeitos do

Direito Positivo e, também, de sujeitos do intitulado Direito Natural. Os dados

apresentados, entretanto, demonstram o contrário, ou seja, ser este "direito natural"

só para uns poucos, e isto significaria serem uns mais naturais em relação aos

outros."65

E mesmo ante esse conturbado panorama social, o Judiciário -

volta-se a repetir, salvo raras exceções - quando instado a decidir sobre conflitos de

terras, via de regra originados de ocupações promovidas por movimentos

reivindicatórios da justa distribuição de propriedades rurais improdutivas, sempre e

sempre decide liminarmente em prol dos latifundiários, sem ao menos avaliar se

64 "A questão Agrária no Brasil", artigo colhido do sítio do Fórum Social Mundial, www.portoalegre2002.org.br em setembro de 2001, p. 5. 65 Op. cit., p. 47.

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presentes estão os requisitos autorizativos da emissão da tutela cautelar em favor

daqueles que titularizam os títulos de domínio sobre a área ocupada.66

Em matéria de liminar nas ações de reintegração de posse

preleciona Clito Fornaciari Júnior que " para a concessão de liminar de reintegração,

o juiz deve ser rigoroso ao máximo no exame dos seus requisitos, dado que criará

uma modificação no estado jurídico; diferentemente se dá quando a liminar versa

sobre manutenção. Em síntese, na dúvida, há que se manter a situação fática

reinante."67

Tradicionalmente, porém, não é isso o que testemunhamos no

histórico de atuação do sistema judiciário mercê dos conflitos pela posse das terras,

mais das vezes, ociosas.68

Não que se exija dos julgadores, quando instados a apreciar

pedidos reintegratórios em caráter liminar, formulados pelos titulares do domínio,

um maior apreço, nesse momento processual, aos dogmas constitucionais e supra-

estatais que procuram colmatar abrigo aos preceitos direcionados à primazia da

dignidade humana.

66 Sobre a natureza cautelar da decisão liminar em ações possessórias, conferir Júnior, Clito Fornaciari, in "O Procedimento das Chamadas Ações Possessórias", artigo contido na obra "Posse e Propriedade", coord. por Yussef Said Cahali,ed. Saraiva, São Paulo, 1987, p. 193. Ainda sobre o mote, é sempre oportuna a observação de LÉDIO ROSA DE ANDRADE no sentido de que "nessas lides o habitual é a prestação jurisdicional em favor dos proprietários, quase sempre reintegrados ou mantidos na posse, de forma liminar e em despachos lacônicos, quando a ação ajuizada é de cunho possessório, ou imitidos, no caso de ação dominical. O fato de os autores dessas demandas serem poucos, quando não uma pessoa ou um casal, e os réus serem muitos, chegando a se tratar de uma vila ou pequena comunidade, nunca importou aos juízes cumpridores da lei. Estes também nunca titubearam em requisitar a força pública ( Polícia Militar, Polícia Federal e Polícia Civil) para desalojar esses lavradores, mesmo tendo como resultado a morte ou lesões corporais, corolários tidos como sem importância, necessários, lógicos e normais." Op. cit., p. 208. 67 Op. cit., p. 193. 68 Em maio de 2007, na cidade de Pindamonhangaba-SP, uma empreendedora do ramo imobiliário ajuizou, de forma fragmentária, cerca de 60 ações de reintegração de posse visando a evacuação forçada de cerca de 90 famílias (aproximadas 400 pessoas) de incontáveis casas abandonadas, há anos, num conjunto habitacional esquecido nos arrebaldes daquela urbe. A autora dessas ações sequer se deu ao luxo de individualizar, qualificar, como ordena o art. 282,II, CPC, os réus dessas ações possessórias, endereçando sua pretensão em face do que chamou de “invasores desconhecidos”. Mesmo em vista de tão gritante afronta ao direito básico de informação e de ampla defesa, todos os órgãos jurisdicionais da citada comarca outorgaram liminares de reintegração de posse contra todas essas famílias, sem sequer designar audiências prévias de justificação, fato que motivou a Defensoria Pública na região a ajuizar a Ação Civil Pública nº 445.01.2007.007161-0, questionando não só esse vilipêndio aos direitos constitucionais mais básicos ao contraditório como, também, vindicando a condenação da municipalidade a efetivar o direito à moradia digna a todo esse contingente de pobres.

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Não. Não se está a exigir tanto.

Está-se somente pondo em discussão o bom senso para se

espancar a estrondosa falta de critério que norteia o constante e irrefletido

deferimento de liminares em favor dos latifundiários, via de regra frente a mera

notícia de que algum grupo ou até famílias de desterrados estariam a ocupar

determinada área habitualmente esquecida na mais franca ociosidade e

imprestabilidade social.

Ainda que se seguisse o dogmatismo padrão ordenador da

prática judicante em lides como essas, haveríamos de concluir que tão constantes

tutelas, correntemente inconsistentes, em prol do simples pleito daqueles que

somente provam título de propriedade sem jamais comprovar, de antemão, algum

resquício de exercício possessório hígido e produtivo sobre a sorte de terras

ocupadas por quem nada têm, são - até mesmo frente ao arcabouço hermenêutico

legalista-positivista preponderante - amplamente injustas e violadoras desses

demarcados pressupostos orientadores da emissão dos provimentos jurisdicionais de

cunho assecuratório.

Pois, em sendo a liminar em ações possessórias uma espécie

do gênero cautelar, sua concessão deveria resguardar-se, no mínimo, da avaliação

primeva sobre a presença da real necessidade de o titular do domínio postulante da

proteção possessória ter acesso imediato, em detrimento de incontável número de

famílias e pessoas destituídas de um mínimo e mais parco rudimento de moradia, à

posse de terras que, como insistentemente ocorre em nosso cotidiano, estão há anos,

décadas, resplandecendo no mais absoluto abandono.

Em regra, inexistem os pressupostos autorizadores da emissão

das tutelas de urgências nesses considerados casos, porquê ausentes o periculum in

mora subliminar ao tema assecuratório.

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Ou seja, se o latifundiário há anos não necessitou do contato

direto com aquela sorte de terras até então abandonada em inútil e improdutivo

ermo, porquê então, tão-só frente a notícia de eventual "invasão" da área por

ajuntamento humano desvinculado de qualquer meio de sobrevivência digna irá, tão

repentinamente, ser reconduzido, em caráter liminar, ao objeto de um domínio há

décadas abandonado?

Será que mesmo em razão das enormes necessidades sociais

ostentadas por essa legião de miseráveis que habitualmente implementam essas

consideradas ocupações, os proprietários - e tão somente por sê-los - não podem

aguardar o definitivo desfecho do processo possessório sem fruirem dessas medidas

assecuratórias liminares, costumeiramente emitidas de maneira patentemente

lacônica?

Em face do acentuado abandono e improdutividade dos

latifúndios, pergunta-se onde está o vínculo de necessidade na retomada liminar de

terras ociosas, num quadrante imemorial de tempo envoltas no mais completo

esquecimento?

Precisamente diante dessa dimensão macroeconômica e

jurídica dos conflitos sociais é que se está por exigir, na liça pela sacralização do

justo, um mínimo de anteparo crítico nas decisões judiciais.69

Pensamento significativo do que se está por sustentar ao longo

deste escrito pode ser encontrado na declaração de voto do magistrado gaúcho José

Maria Rosa Tesheiner, componente do Tribunal de Alçada do Estado do Rio Grande

69 Wolkmer, Antonio Carlos. "Introdução ao Pensamento Jurídico Crítico". Ed. Saraiva, SP, 3ª ed., 2001, p. 174, pontifica que: "(...)As questões político-ideológicas compreendem a decodificação prática das formas repressivas do poder institucionalizado nas normas disciplinares, a exata percepção das "estruturas/funções" da legalidade no espaço de correlações de forças e de dominação do Estado burguês-capitalista, a recuperação da dimensão "política" do "jurídico" enquanto estratégia de dessacralização e efetiva experimentação social etc. Tal problematização insere-se na originalidade do projeto articulador de uma "crítica jurídica" adaptada à realidade do capitalismo periférico e aos sistemas jurídicos caracterizados por estruturas colonizadas, dependentes e subdesenvolvidas. A construção de uma formulação jurídica "teórico-prática", atinente às formações sociais periféricas do terceiro mundo, passa pelo rompimento com os critérios de cientificidade que mantêm a dogmática jurídica tradicional, pela redefinição das vertentes político-socieconômicas que sustentam os paradigmas racionais de "crítica jurídica", elaborados por matizes européias e norte-americanas, mas desvinculados das experiências sociais e históricas da periferia capitalista".

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do Sul, no excerto abaixo transcrito, que exprime uma sensibilidade humana rara,

que lhe acentua a peculiaridade, a beleza e a justiça:

"Esta não é uma possessória igual a tantas outras em que são

indivíduos os que contendem. Aqui, é uma coletividade que se

apresenta como ré. Busca-se reintegrar na posse uns poucos e

demitir da posse uma comunidade, uma vila. Essa a

peculiaridade a destacar desde logo, porque não se encontra na

lei solução expressa para a hipótese como a presente.

O Direito, ensina Miguel Reale, não se restringe apenas às

normas, mas compreende também fatos e valores. Assim,

uma visão integral do Direito exige, não só no plano da

filosofia, mas também e muito mais no da prática judicial,

que os julgamentos levem em conta não só as normas legais,

estabelecidas para resolver casos que usualmente costumam

ocorrer, mas também os novos fatos sociais, não previstos nas

leis e que devem ser objeto de valoração contemporânea, não

necessariamente igual à que fariam os que legislam no

passado.

Lembra Helmut Coing (Fundamentos de Filosofia del

Derecho) que três são as funções do Juiz: a de aplicar as leis,

que é a mais frequente; a de integrar o direito, através da qual

se colmam lacunas e, finalmente, a mais importante, a de fazer

justiça. Para o juiz, o valor 'justiça' deve estar no ápice da

hierarquia dos valores. Constitui, talvez, deformação

imputável ao positivismo jurídico a circunstância de no forum

indagar-se tanto a respeito da solução legal, e tão menos da

solução justa.

Ora, colocado na balança da Justiça, de um lado os interesses

de três casais, para os quais a área em litígio representa muito,

mas não é fundamental, e, de outro, os de noventa ou mais

famílias, para as quais essa mesma área é condição de vida

digna, parece não ser difícil determinar para que lado pende a

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balança. O Judiciário, por ser Poder, não pode ficar apenas na

posição subalterna de obediência a comandos emitidos pelos

demais Poderes. Deve colaborar com o Legislativo e o

Executivo na solução dos problemas sociais, especialmente

quando se apresentam hipóteses que não se prestam à edição

de normas abstratas, exigindo solução concreta, caso a caso.

Não pode o Judiciário ser injusto, aguardando que sobrevenha

lei justa, máxime quando o legislador se omite, temeroso das

consequências que possam advir da emissão de norma geral,

perigo que o Judiciário pode enfrentar, porque suas decisões

não são leis, valendo apenas para o caso. Opus justiae pax. É,

então, de se perguntar qual a solução mais consentânea com a

paz social. E a resposta, mais uma vez, pende para os

'vileiros', especialmente se levada em conta a crise econômica

que ora atravessamos, com levas de trabalhadores sem

emprego, sem casa e sem comida.

Afirmou-se, no início, não se encontrar na lei solução expressa

para o caso dos autos, o que não é verdade, porque a

Constituição, que é a Lei Maior e prepondera sobre qualquer

outra, consagra a função social da propriedade."70

Mas a decisão acima é, ainda, minoritária. Como noticiado, o

que prevalece no campo judicial é a proteção ao latifúndio. E tanto isso é verdade

que ordens judiciais de desterro forçado são uma constante, e talvez uma das

principais afrontas ao direito básico de moradia no país.71

Por conta das deletérias conseqüências das execuções dessas

ordens de desterro que Nelson Saule Júnior, Letícia Osório e Patrícia de Menezes

Cardoso nos relatam, em texto intitulado “Por um Plano Nacional de Combate aos

70 Apud Andrade, Ledio Rosa de. Op. cit., pp. 209/210. 71 O caso de evacuação judicial em massa mais conhecido por conta de suas graves conseqüências, se deu em Goiânia, no assentamento “Sonho Real”,em fevereiro de 2005 quando, no cumprimento de ordem judicial de retirada dos assentados, 24 pessoas foram feridas pelo aparato militar sempre presente na esteira medrada da execução desses atos, além de produzir 2 mortes, até hoje impunes. Sobre o tema, ver relato “Direitos Humanos no Brasil-2005”, ed. da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, SP, 2005, p. 137.

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Despejos e Deslocamentos Forçados”, que “(...) Os Estados que ratificaram o Pacto

Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), como é o caso

do Brasil, estão obrigados a “utilizar todos os meios apropriados para promover e

defender o direito à moradia e o proteger contra despejos forçados. Isso pode ser

atingido por um conjunto de ações visando a revisão da legislação nacional de forma

a melhor compatibilizá-la com os princípios e normas internacionais de direitos

humanos, da Constituição Federal e do Estatuto da Cidade (Lei Federal nº

10.257/2001). A compatibilização da legislação nacional tem o objetivo de proibir a

prática de despejos forçados e violentos e propor proteções processuais para garantir

proteção e consulta à população afetada”.72

Ofertando propostas concretas para a plena efetivação desses

direitos, tais articulistas externam que: “Como premissa para a adoção dessas

medidas é de observar o Comentário Geral nº 7 sobre o Direito à Moradia

(E/C.12/1997/4) das Nações Unidas relativo ao Pacto Internacional dos DHESC.

Este comentário constitui-se na interpretação legal principal sobre o direito de ser

protegido contra despejos forçados adotado pelo Comitê DESC em 1997. Esse

comentário detalha o que os governos, proprietários e instituições devem fazer para

prevenir despejos forçados:

“Os despejos forçados são incompatíveis com os dispositivos

do PIDESC;

Um despejo forçado é “a remoção permanente ou temporária

de indivíduos, família e/ou comunidades, contra sua vontade,

das casas e/ou terras que ocupam. A proibição de despejos

forçados não se aplica, entretanto, aos despejos

implementados pela força de acordo com a lei e em

conformidade com as disposições dos Tratados e Pactos de

Direitos Humanos”;

Os despejos forçados, em geral, violam outros direitos

humanos, tais como direito à vida, o direito à segurança da

72 “Por um plano nacional de combate aos despejos e deslocamentos forçados”, artigo contido no Relatório de “ Direitos Humanos no Brasil -2005”, SP, 2005, p. 138.

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pessoa, o direito à não-interferência na privacidade, família e

moradia, e o direito ao exercício pacífico de suas posses.

Antes de implementar qualquer tipo de despejos, os governos

devem assegurar que todas as alternativas viáveis foram

exploradas em processos de consulta às pessoas afetadas,

com objetivo de evitar, ou no mínimo minimizar, o emprego

da força.

Os despejos não podem resultar em indivíduos sem moradia

ou vulneráveis a violações de outros direitos humanos, e

quando aqueles afetados não puderem encontrar uma solução

por eles próprios, o Estado devem adotar as medidas

adequadas, utilizando o máximo dos recursos disponíveis

para assegurar alternativas adequadas de moradia,

reassentamento ou acesso à terra produtiva”.73

Como se percebe, propostas claras e factíveis para a

minoração desse infausto drama imanente aos desterros compulsórios,

cotidianamente impingidos à população pobre nesta pátria, existem aos borbotões. O

que falta é vontade política, seja do executivo, legislativo ou judiciário, para

implementá-las.

E assim expulsos do campo, não resta à multidão de

desvalidos alternativas de rumo que não coincidam com o caminho direcionado à

superpovoada periferia dos centros urbanos, onde acabam sendo absorvidos pelas

aglomerações humanas ali já cronicamente forcejadas das perversões da política

econômica engendrada pela classe dirigente, criando as condições onde se gesta todo

esse caos social circundante.

73 Op. Cit. Pp.138/139. Esse estudo visa propor ao Ministério das Cidades a criação de grupo de trabalho visando delinear um projeto de lei que regulamente o despejo forçado no país, e que passe, obrigatoriamente, pela capacitação dos membros do Judiciário a lidarem com esse tipo de demanda, pela construção de regras processuais civis e penais que venham a assegurar a proteção ao direito à moradia e da dignidade de vida da população de baixa renda afligida por essas decisões, de forma a garantir a defesa processual e orientação jurídica dessas populações, e a não concessão de liminares sem oitiva da comunidade envolvida.

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É sempre bom relembrar que, conforme dados oficiais

ofertados pela Prefeitura de São Paulo, entre 1991 a 2000 a capital paulista ganhou

464 novas favelas. Como consignado alhures, hoje são mais de 2 milhões de

favelados. Em 1991 eram 891.673 pessoas sobrevivendo em tão rústicos e

degradados habitáculos.

Nosso enfermiço modelo econômico tem o ingrato dom de

gerar 74 novos favelados por dia. Enquanto que na última década a população

cresceu cerca de 8%, os favelados, só na exemplificada capital, cresceram no

patamar de 30%.74

Portando, impossível querer-se operar o direito ignorando esse

caótico desconcerto social.

Nessa ordem de idéias, resulta totalmente possível concretizar-

se o direito à moradia através da tutela jurisdicional do Estado, seja desconstituindo

atos e normas que se revelem atentatórios à materialização e avanço dos direitos

sociais, seja pela via da ação indenizatória em face do Estado (lato senso) ou mesmo

pelo manejo de tutelas específicas, como, enfim, sustentado neste relato.75 74 Anton Fon Filho bem observa que: “Torna-se repetitivo, a cada ano, referir o incremento da favelização em cidades como São Paulo (de 1.200 mil pessoas, em 1990, para 2 milhões, em 2000), do cortiçamento (1 milhão de moradores) e das moradias precárias (cerca de três milhões). Anatole France, numa observação sobre a suposta igualdade jurídica, advertia que esta era a garantia de que tanto um pobre como um rico poderiam morar em baixo de uma ponte, ou de que ambos seriam igualmente sancionados por subtraírem um pedaço de pão. A sociedade desigual já de há muito se permite, com a omissão, complacência ou conivência do aparelho policial, um esforço de demonstrar que o escritor francês não passou, com sua ironia, nem perto do que se reserva para quem é posto nos devãos do capitalismo. Se há alguns anos um punhado de bem-nascidos em Brasília ateou fogo a um índio que dormia num ponto de ônibus, e alegaram em sua defesa que acreditavam que fosse apenas um mendigo, em 2004 seis moradores de rua foram assassinados sem que até agora se tenha identificado os criminosos”.“Na Rua, sem direito a direitos”, artigo contido no relatório “Direitos Humanos no Brasil-2005”, editado pela Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, SP, 2005, p. 148. 75 Não se ignora também as recentes introduções na seara da regularização fundiária urbana implementadas pelo advento da Lei nº 10.257/01, conhecida como "Estatuto das Cidades", que em seu art. 10 criou a figura da usucapião coletiva, legitimando a tanto, como substituto processual, as associações de moradores (juntamente com os próprios possuidores legitimados, é óbvio) , bem como introduziu no ordenamento jurídico interno, apesar dos vetos apostos por FHC aos artigos 15 a 20 do referido diploma normativo, a relevantíssima figura da "concessão de Uso Especial para Fins de Moradia" sobre imóveis públicos, pois, apesar dos apontados vetos restou incólume o artigo 56 da citada lei, que introduziu item novo ao artigo 167, I (item 37) da Lei nº 6.015/73, possibilitando, com isso, o reconhecimento do direito de habitar determinado imóvel público, via concessão de uso, por ato administrativo ou por sentença que vierem a proteger tal direito, atos concessivos esses que, inclusive, poderão ser registrados à margem da correspectiva matrícula. Tal direito é também regulamentado pela medida provisória nº 2.220, de 4 de setembro de 2001. Na órbita da implementação do direito à moradia, a Defensoria Pública do Estado de

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Pois, para os fins que inspiraram todo o aparato normativo que

estatui tal direito, como lembra Alexandre Morais da Rosa, já "não é suficiente,

portanto, a existência de belíssimas declarações de Direitos a-políticos, a-históricos

e imunizados ideologicamente. Necessita-se da crescente mobilização no processo

de atribuição de sentido, inserido no campo político - daí a jurisdicionalização das

esperanças/promessas constitucionais - tendentes a concretizá-los, para que não se

tornem vazias as promessas, dissolvidas nos percalços do mundo e da vida".76

E nesta sina de emprestar fiel correspondência às antológicas

palavras de José Saramago que serviram de epígrafe ao presente, é que se delineou

este escrito, em busca, quem sabe, de um direito que respeite, de uma justiça que

cumpra...

E pondo termo a este já extenso arrazoado - pelo que se

externa escusas - ficamos com as não menos sublimes reflexões tecidas pelo

saudoso Norberto Bobbio que, sobre as vicissitudes aqui tantas vezes exortadas,

enunciou: "Alguma vez aconteceu que um pequeno grão de areia levado pelo

vento detivesse a máquina. Mesmo que exista um milésimo de milésimo de

probabilidade de que o pequeno grão, levado pelo vento, vá parar na mais

delicada das engrenagens, detendo o movimento, a máquina que estamos

construindo é demasiado monstruosa para que não valha a pena desafiar o

destino".77

São Paulo, através de seu núcleo especial de habitação e urbanismo, já manejou uma série de ações coletivas como a mencionada Ação Civil Pública nº 583.53.2006.126528-0, visando a condenação da municipalidade de S. Paulo a constituir linhas de crédito habitacional a um enorme contingente de favelados vítimas de ordens de desocupação em massa, ou mesmo uma outra ACP, ajuizada em face do ato normativo municipal n. 01/07, que permite a demolição de casas, ou quaisquer espécies de habitações, localizadas em loteamento irregular sem o devido processo legal, demanda essa intentada em setembro/2007, noticiada no síte www.defensoria.sp.gov.br. ; ou ainda outra importante vitória da Defensoria Regional de Sorocaba, cuja intervenção logrou impedir o despejo de cerca de 1.200 pessoas moradoras do conjunto habitacional “Jd. Santo André II” naquela localidade. Atuação semelhante foi implementada também pela Defensoria Regional de Santo Amaro, através do Defensor Público Eduardo Luis Figueira, para impedir o desterro injusto de 50 famílias sujeitas à reintegração liminar de posse emitida pela 6ª Vara Cível do foro regional de Santo Amaro. 76 op. cit., p. 100. 77 "Diário de um século", p. 216.

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