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O direito à moradia como parâmetro nas decisões do caso “Ocupação do Bubas”
Fabrício Luciano Kerber Betto1*
Lissandra Espinosa de Mello Aguirre2**
Resumo
O presente trabalho versa sobre o estudo do direito fundamental social à moradia e sua aplicação como parâmetro nas decisões proferidas na ação de reintegração de posse envolvendo a região da “Ocupação do Bubas”. O objetivo de pesquisar o direito à moradia se concentra na busca por informações que permitam melhor explicá-lo. Para tanto, averigua-se o seu reconhecimento e positivação e compreende-se seu conteúdo. A metodologia utilizada é a dedutiva, sendo aplicado o instrumental do levantamento bibliográfico. Será explorado também a ação de reintegração de posse n.º 0001128-90.2013.8.16.0030, popularmente conhecido na região de Foz do Iguaçu como “Ocupação do Bubas” à luz do direito à moradia. O estudo do caso é feito pela ilação entre o caso e o objeto da pesquisa. Assim, diante da importância do tema, este trabalho apresenta-se como uma contribuição ao debate democrático e uma chamada à reflexão sobre o direito à moradia. Palavras-chave: Direito à moradia. Dignidade Humana. Efetividade. Ocupação do
Bubas. Introdução
Este trabalho tem como foco a análise do direito à moradia, verificando-se a
sua natureza como direito fundamental social, seu reconhecimento e positivação e o
seu conteúdo intimamente ligado com a dignidade da pessoa humana.
O objetivo de pesquisar este direito se concentra na busca por informações que
permitam melhor explicá-lo e, de igual maneira, analisar a sua utilização como
parâmetro no caso da ação de reintegração de posse que envolveu a área conhecida
como “Ocupação do Bubas”, em Foz do Iguaçu, Paraná.
O trabalho é embasado na utilização do método dedutivo, focado na análise do
direito à moradia em sua leitura como direito fundamental. Para tanto, primeiramente
utilizou-se o instrumental do levantamento bibliográfico, com fins a selecionar a base
teórica existente, a qual foi analisada e revisada após seu fichamento bibliográfico.
1 Bacharel em Direito; Universidade Estadual do Oeste do Paraná; Foz do Iguaçu, Paraná, Brasil;
[email protected]. 2 Doutora em Direito; Universidade Estadual do Oeste do Paraná; Foz do Iguaçu, Paraná, Brasil;
De posse da base teórica inicialmente detectada e apreendida, seguiu-se à
análise da ação de reintegração de posse da “Ocupação do Bubas”. Com os dados
bibliográficos em mãos, foi feita a análise do caso à luz do referencial teórico revisado,
buscando-se estabelecer ilações sobre a reflexão do direito à moradia e o caso
concreto.
No primeiro tópico do trabalho, a questão central é compreender o que é o
direito à moradia. Para tanto, inicialmente, trabalha-se a sua percepção como direito
fundamental. Após, é tratado o seu reconhecimento e positivação e, por fim, realizada
análise sobre seu conteúdo.
No segundo tópico, é realizada a análise das decisões proferidas no caso da
“Ocupação do Bubas”. O caso é uma ação de reintegração de posse, em que o direito
à moradia dos réus, ocupantes do terreno, foi usado como fundamento no julgamento
em 1º grau pela 2ª Vara da Fazenda Pública da Comarca de Foz do Iguaçu, Paraná.
O direito fundamental social à moradia
O direito à moradia é um direito fundamental do homem e, como tal, é ligado à
dignidade humana. A ideia do direito à moradia se vincula ao desenvolvimento do
indivíduo em seus anseios mais basilares.
O qualificativo “fundamental” indica que se trata de situação jurídica sem a qual
a pessoa não se realiza, não convive e não sobrevive. Falando-se de direitos
fundamentais do homem, o qualificativo “do homem” indica que a todos devem ser
materialmente concretizados tais direitos, de forma igualitária, e não apenas
reconhecidos de maneira formal (SILVA, 2011, p. 178). Compreende-se que os
direitos fundamentais criam e buscam manter os pressupostos basilares de uma vida
com liberdade e com dignidade humana (BONAVIDES, 2009, p. 560).
Há uma relação basilar entre os direitos fundamentais e a dignidade, que
consiste no fato de que as pessoas são titulares de direitos em função de sua inerente
dignidade. Logo, não se reconhecendo à pessoa humana os direitos fundamentais
que lhe são inerentes, nega-se a própria dignidade da pessoa humana (SARLET,
2010, p. 97).
Sarlet traz uma conceituação jurídica para a dignidade humana, destacando
uma face negativa e positiva:
Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão dos demais seres humanos (SARLET, 2001, p. 60).
Tem-se que o direito a uma morada, como direito fundamental, consiste em
uma condição mínima para a promoção de uma vida com dignidade, de manutenção
de saúde e bem-estar.
Quanto à percepção do direito à moradia como direito social, Bonavides
ressalta que:
Os direitos sociais fizeram nascer a consciência de que tão importante quanto salvaguardar o indivíduo, conforme ocorreria na concepção clássica dos direitos de liberdade, era proteger a instituição, uma realidade social muito mais rica e aberta à participação criativa e à valoração da personalidade que o quadro tradicional da solidão individualista, onde se formara o culto liberal do homem abstrato e insulado, sem a densidade dos valores existenciais, aqueles que unicamente o social proporciona em toda a plenitude (BONAVIDES, 2009, p. 565).
Percebe-se que os direitos sociais demonstram uma ruptura do individualismo,
passando a se observar as situações envolvendo a coletividade. Neste sentido, o
direito à moradia entendendo-se como direito social, permite a participação e
desenvolvimento do indivíduo em sociedade.
José Afonso da Silva (2011, p. 315) define o direito à moradia como ocupar um
lugar como residência para nele habitar. O direito à moradia é uma expressão da qual
se denota a vontade de que se garanta a todos um teto onde se abrigue com a família
de modo permanente, em uma habitação de dimensões adequadas, dignas. Para o
autor, essa qualificação é implícita devido à leitura sistêmica a ser observada, tendo
em vista a observância do princípio da dignidade humana.
Loreci Nolasco apresenta o direito à moradia como “posse exclusiva e, com
duração razoável, de um espaço onde se tenha proteção contra a intempérie e, com
resguardo da intimidade, as condições para a prática dos atos elementares da vida:
alimentação, repouso, higiene, reprodução, comunhão” (NOLASCO, s.d.).
O reconhecimento do direito à moradia no plano internacional e interno
possibilita a tutela da moradia como necessidade básica do cidadão, observando-se
os paradigmas da dignidade humana, da igualdade e de um mínimo existencial.
É neste sentido a previsão do direito à habitação no artigo 25 da Declaração
Universal dos Direitos Humanos, que o prevê como forma de garantir um padrão de
vida que assegure a saúde e o bem-estar do indivíduo (COMPARATO, 2008, p. 239).
Após a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, o direito à
moradia passou a ser reconhecido expressamente em diversos tratados e
documentos internacionais, destacando-se o Pacto Internacional sobre Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais e os Comentários Gerais nº 4 e 7, sobre o Direito à
Moradia Adequada e Despejos Forçados, redigidos pelo Comitê de Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais da Organização das Nações Unidas.
Na concepção do Pacto Internacional dos Direitos Sociais, Econômico e
Culturais de 1966, os direitos sociais, econômicos e culturais têm uma aplicação
denominada como progressiva. Pelo texto do documento, são direitos que estão:
condicionados à atuação do Estado, que deve adotar todas as medidas, tanto por esforço próprio como pela assistência e cooperação internacionais, principalmente nos planos econômicos e técnicos, até o máximo de seus recursos disponíveis, com vistas a alcançar progressivamente a completa realização desses direitos (art. 2º, § 1º, do Pacto). (PIOVESAN, 2013, p. 252)
O Comentário Geral nº 4 sobre Direito à Moradia Adequada de 12 de dezembro
de 1991 e o Comentário Geral nº 7 sobre Despejos Forçados de 16 de maio de 1997,
redigidos pelo Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da Organização
das Nações Unidas são importantes para a definição do conteúdo englobado pelo
direito à moradia. Estes documentos possuem uma grande relevância pois trazem a
interpretação do direito à moradia num conceito de moradia adequada, representando,
neste sentido, avanço em seu reconhecimento:
Segundo o ponto de vista do Comitê, o direito à habitação não deveria ser interpretado em um sentido estreito ou restritivo que o equipare com, por exemplo, o abrigo provido por meramente haver um teto sobre a cabeça de cada um ou que veja o abrigo exclusivamente como uma mercadoria. Diferentemente, deveria ser visto mais propriamente como o direito de viver, em algum lugar, com segurança, paz e
dignidade. [...] Como a Comissão sobre Assentamentos Humanos e a Estratégia Global para Habitação para o ano 2000 afirmaram, ‘habitação adequada significa privacidade adequada, espaço adequado, segurança, iluminação e ventilação adequadas, infraestrutura básica adequada e localização adequada em relação ao trabalho e facilidades básicas, tudo a um custo razoável’. (BRASIL, 2013, p. 34)
Assim, o direito à moradia é composto de um conteúdo material, apresentados
como elementos básicos, componentes que devem ser observados para a concepção
de uma moradia digna. Os elementos de uma moradia digna são elencados e
descritos justamente no Comentário nº 4 da Comissão da ONU para Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais.
O primeiro é a segurança jurídica da posse, que deve ser garantida
independentemente da natureza e de sua origem. Deste modo, deve ser assegurado
a proteção à posse contra despejos forçados, perseguições e demais ameças, com o
Estado tomando as medidas destinadas a conferir segurança jurídica à posse dessas
pessoas e famílias (CESCR, 1991).
Esta posse que deve ser protegida é o domínio fático que a pessoa exerce
sobre a coisa, sendo considerado possuidor pela atual legislação brasileira, o
indivíduo que tem de fato o exercício de algum dos poderes inerentes à propriedade
(usar, gozar, dispor e reaver). Exemplificando, são considerados como possuidores,
o locatário, o comodatário, o ocupante, dentre outros, que podem se valer das ações
possessórias, até mesmo contra o proprietário (TARTUCE; SIMÃO, 2010, p. 48-50).
Quanto à segurança jurídica da posse em si, observa-se que o código civil brasileiro
não traz qualquer definição.
Desta forma, “a posse sem segurança jurídica implica o morador não ter
proteção legal para viver com dignidade, segurança e paz; as famílias vivem sob temor
e ameaças de despejo, o que impede melhor planejamento familiar e investimentos
na melhora da habitação” (SAULE JUNIOR, 2005, p. 33).
O segundo elemento de uma moradia adequada é a disponibilidade de
serviços, materiais, instalações e infraestrutura. Estes elementos estão relacionados
à garantia da saúde, segurança, conforto e nutrição, que envolve o fornecimento de
água potável, saneamento básico, energia, iluminação, armazenamento de alimentos,
coleta de lixo drenagem local e serviços de emergência (CESCR, 1991).
Nesta mesma perspectiva, a condição de habitabilidade da moradia também é
destacada pelo documento. A moradia não será adequada quando não for capaz de
garantir a segurança física dos ocupantes. A moradia deve constituir um espaço
adequado, que proteja contra o frio, umidade, calor, chuva, vento, e outras ameaças
à saúde, pois frisa-se que a moradia deficiente e condições de vida inadequadas estão
associadas a maior mortalidade e taxas de morbidade (CESCR, 1991).
Percebe-se, dessa maneira, que o direito à moradia é associado a outros
direitos básicos do indivíduo, como pode se observar do apontamento de Nelson
Saule Júnior:
O direito à moradia derivado do direito a um nível de vida adequado configura a sua indivisibilidade e interdependência e inter-relacionamento como direito humano, por exemplo, com o direito de liberdade de escolha de residência, o direito de liberdade de associação (como as de moradores de bairro, vila e comunidades de base), com o direito de segurança (casos de despejos e remoções forçadas ou arbitrárias, ilegais), o direito de privacidade da família, casa e correspondência, com o direito a higiene ambiental e o direito de desfrutar o mais elevado nível de saúde física e mental (SAULE JÚNIOR, 1997, p. 67).
A economicidade é outro fator que deve ser considerado, compreendendo-se
como custos financeiros associados à moradia, que devem ser verificados a um nível
que a obtenção e satisfação de outras necessidades não sejam comprometidas, de
modo que os gastos sejam suportáveis. A moradia não será adequada caso o custo
ameace a satisfação de outras necessidades. Deste modo, o documento determina
que os Estados Partes estabeleçam subsídios habitacionais para aqueles que não
têm condições de obter habitação e, ainda, que os inquilinos sejam protegidos
apropriadamente contra aumentos desproporcionais (CESCR, 1991).
A acessibilidade também é elencado como aspecto do conteúdo material do
direito à moradia, de forma que as necessidades específicas de grupos
desfavorecidos devem ser levados em conta, com acesso aos recursos habitacionais.
O comentário da Comissão exemplifica como grupos desfavorecidos os idosos,
crianças, pessoas com deficiência física, doentes terminais, indivíduos HIV-positivos,
pessoas com problemas médicos persistentes, doentes mentais, vítimas de desastres
naturais, pessoas que vivem em áreas propensas a desastres e outros grupos,
ressaltando que tais devem ter um certo grau de prioridade nas ações habitacionais
(CESCR, 1991).
Aqui, pode-se ressaltar o “processo de especificação do sujeito de direito”, que
integra a concepção contemporânea de cidadania. Com este processo, o sujeito do
direito não é mais visto de forma abstrata e geral, mas passa a ser visto por suas
peculiaridades e especificidades, fundados em categorizações ligadas ao gênero,
idade, etnia, raça (PIOVESAN, 2009, p. 327-328).
O penúltimo elemento do conteúdo material diz respeito à localização da
moradia, o que também está interligado com os critérios da disponibilidade de serviços
e infraestrutura e a habitabilidade. A moradia adequada deve estar em um local que
permita o acesso à oportunidade de emprego, serviços de saúde, escolas, creches e
outras instalações sociais. Também não deve se localizar em locais poluídos, nem na
proximidade imediata de fontes de poluição que ameaçam a direito à saúde dos
moradores (CESCR, 1991).
O documento traz, enfim, o critério de adequação cultural, de maneira que a
moradia e o modo de sua construção respeitem a identidade e diversidade cultural
dos moradores (CESCR, 1991).
Tendo em vista todo esse conteúdo material do direito à moradia, fica evidente
a compreensão do direito à moradia, como direito a uma moradia adequada,
justamente em contrariedade de que o direito à moradia se resumiria ao abrigo de um
teto. A moradia é adequada quando, além de proteger das intempéries, também provê
à pessoa os meios necessários à sobrevivência de forma digna (BELTRAMELLI,
2013, p. 93-95).
No âmbito nacional, a moradia é reconhecida como direito social, previsto no
artigo 6º da Constituição Federal de 1988, vindo a ser expressamente previsto e
incluído no rol de direitos sociais da Constituição vigente com a Emenda
Constitucional 26, de 14/02/2000.
Assim, o direito à moradia, como direito fundamental e social, sempre será
encarado pelo prisma do princípio da dignidade da pessoa humana e todos os
aspectos que este princípio traz, visto que a dignidade da pessoa humana é
fundamento da República Federativa do Brasil (artigo 1º, inciso III) e a construção de
uma sociedade livre, justa e solidária e a promoção do bem de todos são alguns de
seus objetivos.
O direito à moradia como parâmetro nas decisões do caso “Ocupação do
Bubas”
A Ocupação do Bubas se localiza em Foz do Iguaçu, Paraná, na região do
Porto Meira, zona sul do Município. Em 2017, a ocupação contava com mais de mil
famílias, o equivalente a 5 mil pessoas, tornando-se a maior ocupação urbana do
Paraná, com 40 hectares de extensão (UNILA, 2017).
A Ocupação se iniciou em janeiro de 2013, quando algumas famílias ocuparam
o terreno. Como a notícia do início da ocupação do imóvel se espalhou de forma
rápida, logo outras famílias se direcionaram para o imóvel, aumentou-se
aceleradamente o número de ocupantes da área (PAISAGENS PERIFERICAS, 2018).
Acontece que, de acordo com a sentença de primeiro grau, em 13 de janeiro
de 2013, os proprietários do imóvel compareceram perante a autoridade policial para
noticiar o fato, relatando que do dia 13 para 14 de janeiro, ocorreu uma grande invasão
em seu imóvel, no período noturno.
Deste modo, a área ocupada foi objeto de ação de reintegração de posse com
pedido liminar que transitou, primeiramente, na 2ª Vara Cível da Comarca de Foz do
Iguaçu, e, após decisão declarando incompetência, na 2ª Vara da Fazenda Pública da
mesma Comarca, com o número 0001128-90.2013.8.16.0030, sendo a petição inicial
apresentada em 17/01/2013.
Em 22/01/2013, o juízo da 2ª Vara Cível da Comarca de Foz do Iguaçu
concedeu a medida liminar aos autores e determinou a desocupação voluntária ou
forçada do imóvel, ensejando a expedição de mandado de reintegração de posse em
favor dos autores, nos termos do Código de Processo Civil.
Como fundamento para a decisão, o magistrado esclareceu que os autores
provaram os requisitos necessários para a reintegração da posse exigidos pelo artigo
561 do Código de Processo Civil, quais sejam, a posse, o esbulho praticado pelos
réus e a perda da posse.
Afirmou também que os particulares (no caso, os réus) não detinham atribuição
para decidir se uma propriedade está ou não cumprindo sua função social e, a partir
disto, não poderiam tomar quaisquer medidas, já que comprometeriam a segurança
jurídica e cometeriam um atentado contra o próprio Estado ao usurpar sua função.
Verifica-se que a afirmação do magistrado levou em consideração apenas a
oponibilidade erga omnes do direito de propriedade. Isto porque a conduta dos réus
não teria observado o direito de propriedade dos autores, ferindo, deste modo, tal
direito.
Assim concluiu o magistrado na decisão:
Portanto, da análise dos elementos trazidos aos autos conclui-se pela verossimilhança da alegação da parte autora, no sentido de que, efetivamente, detinha a posse legítima dos imóveis descritos na inicial e que realmente houve o esbulho praticado, o que torna possível o deferimento da medida liminar postulada.
Logo, na decisão que concedeu a liminar, foi tutelado o direito de propriedade
do autor, de modo que lhe foi restituído a sua faculdade de usar o bem.
Dessa maneira, observa-se que nesta primeira decisão, não foi realizada
nenhuma menção ao direito à moradia das famílias que estavam ocupando o imóvel.
Embora o juízo tenha ressaltado que a propriedade deve cumprir sua função
social, afirmando que “importa considerar que é ponto assente, na doutrina e
jurisprudência, que a propriedade, seja ela rural ou urbana, deve cumprir sua função
social”, podendo-se afirmar que houve o reconhecimento da existência de uma
questão social relacionada com o direito à moradia no caso concreto, pois se remete
à moradia como expressão da função social da propriedade, não se considerou uma
ponderação entre o direito de propriedade e o direito à moradia.
Assim, parece que somente o direito de propriedade foi analisado, sendo o
direito à moradia dos ocupantes desconsiderado, pois não ocorreu uma explicação
em relação a porque um direito se sobrepõe ao outro.
Cumpre salientar que o presente estudo não possui o objetivo de advogar
necessariamente pela primazia do direito à moradia sobre o direito de propriedade.
Entretanto, espera-se que em casos como o da Ocupação do Bubas seja o direito à
moradia ao menos ponderado, tendo em vista que como direito fundamental é
premissa para a preservação da dignidade humana.
Entretanto, a liminar concedida não foi cumprida. Conforme apontado na
sentença de primeiro grau, o Estado do Paraná não respondeu ao comando judicial,
sendo que era seu dever legal cumprir a ordem.
Em março de 2013, o Estado do Paraná reconheceu que não possuía efetivo
para dar cumprimento ao determinado. Mesmo com a intimação pessoal do
Comandante da Polícia Militar em Foz do Iguaçu, sob pena de multa pessoal, a
decisão não foi cumprida, tendo sido informado cinco vezes que a Polícia Militar não
possuía condições de cumprir a ordem, pois não possuía o efetivo.
Ressalte-se que do deferimento da liminar até esta última negativa da Polícia
Militar, passaram-se quatro meses, tempo que possibilitou ainda mais a expansão do
número de ocupantes do imóvel. Assim, a ocupação de poucas famílias, constituída
apenas de barracos de lona, em abril de 2013, já haviam se transformado em casas
de madeira ou de alvenaria.
Em 06/03/2014, houve a declaração de incompetência da Vara Cível,
determinando-se a remessa à 2ª Vara da Fazenda Pública de Foz do Iguaçu.
Pode-se afirmar que o processo buscou inspiração em ideais da justiça
restaurativa ao ser conduzido, e como bem afirmado pelo magistrado em sua
sentença de primeiro grau.
A Justiça Restaurativa se funda no pressuposto de que, como indivíduos, as
pessoas estão interligadas, e o que cada uma faz afeta todas as outras pessoas ao
seu redor. A justiça restaurativa “nos faz lembrar da importância dos relacionamentos,
nos incita a considerar o impacto de nosso comportamento sobre os outros e as
obrigações geradas pelas nossas ações. Ela enfatiza a dignidade que todos
merecemos” (ZEHR, 2008, p. 265).
Dois são os pontos em que se observa essa perspectiva. Primeiro, verifica-se
a partir dos esforços em realização de audiências de conciliação públicas, o que
gerava o debate na sociedade como um todo.
Segundo, a atenção para a problemática da moradia enfrentada pelos
membros da ocupação, e a consequente integração dos moradores. Isto porque o
Bubas passou a receber professores e estudantes da UNILA a partir de 2015 para
realizar levantamentos sobre a ocupação e promover o significado do direito à
moradia. Frise-se que houve elaboração de relatório destinado à Defensoria Pública,
para que esta pudesse atuar da melhor forma no caso. Além do mais, o relatório
possibilitou que 845 moradores fossem localizados e citados, fazendo parte da ação
(UNILA, 2017).
Após várias diligências, o juízo entendeu pela desnecessidade de instrução
probatória, decidindo por julgar o caso antecipadamente, em 27/04/2017, mais de
quatro anos após o início do processo.
Assim, na sentença de primeiro grau, primeiramente, o magistrado confirmou
que os autores provaram os requisitos exigidos pelo artigo 561 do Código de Processo
Civil, promovendo a ratificação da liminar deferida pelo juízo da 2ª Vara Cível.
Também apontou na sentença uma dupla violação de direitos realizada pelo
Estado:
Esse mesmo Estado, que violou os direitos dos autores ao não dar cumprimento à ordem de reintegração, viola também os direitos dos requeridos, posto que não lhes materializa o direito humano fundamental da moradia, pois em todo o período que os autos tramitaram não desapropriou a área nem providenciou outra.
Este apontamento do magistrado refere-se à omissão do estado que, ao não
cumprir a liminar que determinava a reintegração de posse, feriu o direito de
propriedade dos autores, que não tiveram garantido o determinado por decisão
judicial, mas na mesma proporção fere o direito à moradia dos requeridos.
Fere o direito à moradia principalmente porque um dos requisitos para a
garantia da moradia digna é a segurança jurídica da posse. No caso concreto, desde
o início da ocupação não há como se afirmar que havia moradia digna para os
ocupantes da área, justamente porque viviam em constante ameaça, sendo que
poderiam ser retirados de sua morada a qualquer instante.
Ainda, quanto à inércia do estado citada pelo magistrado em relação a
promover a desapropriação da área, evidencia-se o papel da desapropriação como
instrumento viabilizador do direito à moradia, porquanto seria hipótese de
desapropriação por interesse social, tendo em vista o objetivo da efetivação do direito
à moradia dos ocupantes.
Adiante, após a ratificação de que os requisitos para a concessão da
reintegração estavam preenchidos, o magistrado aponta que o juiz não deve se ater
apenas à estrita legalidade, mas deve reconhecer a existência de valores
constitucionais e convencionais que são superiores, devendo sempre buscar a
proteção integral dos direitos humanos. Deste modo, reconhece no caso o conflito
entre o direito de propriedade e o direito à moradia, buscando-se solucionar o conflito
sem que nenhum dos dois seja anulado.
Para tanto, foi considerado que a garantia do direito à moradia da população
ocupante, que não foi realizada pelo Estado do Paraná por meio da desapropriação,
passa a ter uma predominação sobre o direito de propriedade dos autores da ação, já
que houve verdadeira formação de um bairro na área em litígio, que teve uma
destinação social de moradia popular dada pelos ocupantes.
Conclui o magistrado sua decisão:
Assim, não resta outra solução ao presente caso que não a improcedência do pedido de reintegração de posse, sem prejuízo, de que busquem os autores, nas vias próprias, a indenização junto ao Estado do Paraná pela afetação indevida dos imóveis, causada por sua omissão em, no momento oportuno, dar cumprimento da liminar.
Verifica-se, portanto, que a confirmação da liminar para a reintegração da
posse restaria em grande prejuízo humano, demonstrando-se acertada a sentença de
primeiro grau.
Considerando-se que na época da prolatação da sentença, em 27/04/2017, a
área era ocupada por aproximadamente 5 mil pessoas, tendo se transformado em um
bairro não oficial da cidade, sendo inclusive mapeado, com ruas e logradouros
organizados (UNILA, 2017), seria inviável o cumprimento de uma reintegração sem
grave violação aos direitos humanos, sem promover graves danos à dignidade
humana dos moradores do Bubas.
Entende-se que a desapropriação da área por interesse social, para que se
possa efetivamente garantir o direito à moradia, é a solução mais adequada.
Deste modo, também deve ser assegurado aos proprietários, autores da ação
de reintegração de posse, a justa indenização pela desapropriação.
Embora com a não procedência da reintegração a segurança jurídica da posse
seja mais garantida, não há como se afirmar que está garantido aos moradores do
Bubas o direito à moradia, tendo em vista todos os requisitos que a moradia digna
engloba (infra-estrutura, segurança, acessibilidade...).
Entretanto, entende-se que a improcedência da ação ora analisada representa
um grande avanço na luta dos cidadãos moradores da região pelo acesso à moradia
digna.
Considerações Finais
A dignidade da pessoa humana está ligada a condições mínimas necessárias
para que o indivíduo tenha uma vida respeitável. Uma das condições mínimas para a
existência da pessoa humana é o acesso a condições de moradia adequada.
O direito à moradia é direito fundamental social previsto no artigo 6° da
Constituição Federal de 1988, e sua observância está fortemente ligada aos
fundamentos e objetivos da República, especialmente com a dignidade humana. A
ideia do direito à moradia se vincula ao desenvolvimento do indivíduo em seus anseios
mais basilares.
Vê-se que, em evolução, o direito à moradia é lido como direito à moradia
adequada, de modo que não se deve entendê-lo apenas como o abrigo em um teto,
mas sim a disponibilização da habitação do indivíduo em um ambiente adequado,
garantindo-se a segurança jurídica da posse, disponibilidade de serviços,
acessibilidade e infraestrutura.
Desta forma, ele também está vinculado a outros direitos fundamentais, como
o direito à saúde, à segurança, à educação, revelando as características da
indivisibilidade e da interdependência dos direitos fundamentais.
Ademais, foi realizada a análise do caso concreto que se mostrou
extremamente relevante e influente no Município de Foz do Iguaçu. É o caso da
Ocupação do Bubas.
O caso é uma ação de reintegração de posse, onde se verificou a utilização do
direito à moradia como fundamento para se negar a reintegração na sentença de
primeiro grau e garantir o direito à moradia dos ocupantes do terreno.
No caso concreto, foi analisado a aplicação do direito à moradia, concluindo-se
que, embora a improcedência do pedido não seja significado da efetivação do direito
à moradia em sua concepção como adequada, representa um grande avanço na luta
dos cidadãos moradores da região pelo acesso à moradia digna.
Assim, o direito fundamental à moradia digna é um meio de realização pessoal,
que, quando garantido, proporciona o desenvolvimento do indivíduo, já que engloba
um conjunto de condições que refletem na sua imagem como cidadão.
Referências Bibliográficas
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