o dia do julgamento

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O Dia do Julgamento Lucas Zanella

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Entertainment & Humor


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Page 1: O dia do julgamento

O Dia doJulgamento

Lucas Zanella

Page 2: O dia do julgamento

Às vezes, Peter odiava estar certo.

Naquele dia em questão, odiou ter falado “É,

até que pode ser!”. Por que não podia simplesmente

ter falado “Talvez seja apenas um helicóptero”?

Claro, ter falado em um helicóptero em vez

de um disco voador não teria mudado o que

acontecera depois. Era por volta da meia-noite, sua

aula acabara havia algum tempo, mas ele demorava

demais para chegar em casa.

Tirou do rosto o cabelo preto que o

incomodava os olhos e pôs o fone no ouvido. Colocou

Sweet Child O’ Mine para tocar e andava

despreocupado. Ou pelo menos tão despreocupado

quanto se podia andar naquela cidade. Na mochila

azul escura nas costas, seu computador.

A cidade em si já era famosa por roubos

durante o dia, e durante a noite, então...

Tirou do bolso o celular apenas para

responder a mensagem que a namorada o enviara.

Page 3: O dia do julgamento

Disse que estava logo chegando em casa. O player já

avançara para a próxima música do álbum que

comprara.

Enquanto a música tocava no fundo de sua

mente, ele tentava fixar os conteúdos aprendidos no

dia em seu cérebro. Ele certamente não entendia nada

de álgebra linear, mas teria uma prova na próxima

semana...

Andava pela calçada e não havia muitos

postes de luz por perto, mas isso não o preocupou. A

casa ao lado possuía uma cerca verde e a casa era

branca. O quintal era belo e não havia nenhum sinal

de vida dentro dela.

Já é muito tarde, ele finalmente percebeu,

todos devem estar dormindo.

O garoto de pouco mais de vinte anos não

era o mais inteligente de sua classe, mas com certeza

era o mais esforçado.

Na hora de fazer um trabalho em grupo, era

Page 4: O dia do julgamento

o que incentivava os outros a trabalharem, mas ele

mesmo não trabalhava. Não que não quisesse, ele

apenas não conseguia.

Como se houvesse uma força maligna o

fazendo não estudar. Ele queria estudar, sempre quis,

mas...

- Como é que falam? Querer não é poder?! -

disse ele enquanto olhava os dois lados da rua antes de

atravessá-la, apenas por costume, pois sabia que não

vinha ninguém.

Daquele novo lado da rua, andava ao lado de

uma casa aterrorizante e que certamente estava

abandonada, pois somente as janelas possuíam mais

teias de aranha do que uma aranha produzia em toda a

sua vida. Do outro lado da rua, o primeiro poste de luz

apareceu após quase um quilômetro de passos rápidos.

Não era a avenida, então não era exatamente

um “poste de luz”, mas sim um pedaço de metal com

uma lâmpada em cima. Peter pensou que um lampião

Page 5: O dia do julgamento

teria ficado mais bonito, e depois de refletir sobre o

pensamento, percebeu que realmente teria ficado.

Ele sentiu um calafrio e teve um arrepio por conta

disso. Odiava calafrios, eles lhe davam calafrios!

Olhou para o céu por um momento e soltou

um longo suspiro. Ficara na escola por pouco mais de

sete horas - precisava ir antes das aulas começarem

porque ajudava na biblioteca - e já estava com

saudades de Ana. A luz no mini-poste do outro lado

começou a cintilar e soltou um grito alto no início,

então ficou mais baixo, mas o barulho continuava.

Devia ser um mal contato nos fios internos.

Por um momento, Peter levou um susto.

Olhou com rapidez para o poste e seus olhos o traíram

fazendo-o ver um vulto atrás dele. Deu dois passos

para trás e bateu no muro que cercava a casa esquisita.

Assustou-se novamente, pois não havia percebido o

muro antes.

Page 6: O dia do julgamento

- Que droga, Peter, recomponha-se -

suspirou e voltou a andar.

Outra mensagem, essa um pouco mais

preocupada. Ana já começara a temer que o namorado

fora assaltado ou coisa pior. Graças a Deus, não. Foi o

que respondeu. Ele estava acostumado a falar daquilo,

mas não era religioso. A namorada, sim.

O casal improvável, era o que os amigos

diziam quando os dois estavam juntos.

Sempre perguntavam como era possível

duas pessoas com visões religiosas diferentes

continuarem juntas após tanto tempo.

- Se você não quer discutir sobre política,

não fale sobre política! - era o que ele dizia, e era

verdade. Em todos os anos de namoro, nunca falaram

sobre religião. Para ele, esse era o segredo da

felicidade: se não quer perder o namoro porque torce

para um time e ela pra outro, nunca assistam a um

jogo de futebol juntos.

Page 7: O dia do julgamento

O calafrio voltou, e trouxe o irmão junto. Estava em

outra esquina, foi quando pensou que tivesse outro

poste de luz sobre ele, pois tudo ficara iluminado.

Retirou o fone dos ouvidos e olhou para

cima, protegendo os olhos.

- Que diabos? - ele disse para a luz clara

acima dele. - Será que... É, até que pode ser! Nunca

devemos descartar essa possibilidade - e soltou um

riso leve.

A luz começou a crescer, e ele começou a

temê-la.

- Que droga, Peter, recomponha-se - repetiu

para si, mas depois percebeu que devia sim temer a

luz.

Quando tirou as mãos dos olhos, percebeu

que tudo continuava branco, mas que não estava na

rua sendo iluminado por uma luz divina. Estava

dentro de algum lugar que não sabia onde era. O lugar

era enorme, e a fonte da luz não parecia, a princípio,

Page 8: O dia do julgamento

ser tão grande. Justamente por isso agora estava

considerando que poderia muito bem ter sido um

helicóptero voando extremamente baixo.

Será que é maior por dentro? Perguntou-se

e depois riu sobre a ideia. Não, isso é impossível até

mesmo para eles, com certeza!

- Ahem - ouviu o pigarro de alguém

irritado. Virou para trás e viu um humanoide (na

verdade, parecia humano) olhando para ele com olhos

irritados, como se estivesse querendo que o expediente

acabasse e pudesse ir para casa. - Aproxime-se!

Ele obedeceu, parte por maravilha pelo que

estava acontecendo e parte por conta do medo que

começara a sentir.

- Nome? - ele disse ao puxar um papel que

se parecia com um formulário.

- Hã... Peter Gollman - o homem de

cabelos castanhos e roubas brancas anotou no papel.

Estava sentado numa escrivaninha.

Page 9: O dia do julgamento

- Sexo?

- Masculino.

- Profissão?

- Estudante.

- Estado civil?

- Na... Solteiro! - lembrou-se de que

namoro não era exatamente considerado um estado

civil, pelo menos não naquele planeta.

- Muito bem, senhor Gollman. Agora, se o

senhor pudesse assinar aqui - virou a folha - e aqui.

Apenas questões legais.

- Claro - não fazia Direito, então assinou

sem ler, embora não fosse preciso.

- Ok, ok, muito obrigado. O senhor pode

passar e falar com o nosso líder, ele está logo atrás

daquela porta! - apontou para o fim do corredor

branco e pôs o formulário num envelope pardo.

- Hã... ok! - estava surpreendentemente

calmo com a situação, isso ele notou, mas não ficou

Page 10: O dia do julgamento

surpreso. Após tantas pesquisas sobre o assunto, tanto

para a faculdade quanto pessoais, se tivesse ficado

surpreso, aí sim seria uma surpresa.

Ele andou o longo corredor branco - cheio

de armários de arquivos dos dois lados - e seus tênis

faziam um pequeno barulho ao andar. Ele achou

aquilo um pouco irritante, mas não fez nada a respeito

- não achou que tirar os sapatos seria muito educado,

afinal, eles eram alienígenas, não japoneses.

Se bem que...

- Não, aquele cara não parece ser japonês! -

falou e olhou para o primeiro que lhe atendeu.

Quando ia bater a porta do suposto líder, ela

se abriu, exatamente como quando uma casa mal-

assombrada abre quando você está prestes a bater a

porta.

- Entre - uma voz marcante falou. - E feche

a porta atrás de si!

Ele o fez.

Page 11: O dia do julgamento

- Hã... Você que é o líder?

- Isto aí! - ele se virou na poltrona, também

branca, estava atrás de um holograma que mostrava

milhões de informações por segundo.

Peter não pôde o ver direito por conta de

todas as imagens e escritas, mas o homem parecia ser

pálido e ter a cabeça raspada. Deveria estar usando

uma gravata rosa claro com listras diagonais rosa

fortes e um paletó claro.

É, bem descritivo para alguém que não

conseguia ver direito, mas esse era o superpoder de

Peter. Não que fosse adiantar alguma coisa caso os

alienígenas resolvessem o atacar, mas...

- Quem é você? - perguntou.

- O líder, você não ouviu?

- Não, digo... quem é você?

- Ah. Posso garantir que não sou marciano.

Não sei porque, mas sempre que chego em um planeta

eles perguntam se sou de Marte... Pergunta estúpida!

Page 12: O dia do julgamento

- É que tem uma lenda...

- Os marcianos já não moram mais em

marte!

- Ah. Bom pra eles, pois acabamos de enviar

um robô pra lá!

- É? E o que ele descobriu?

- No geral, nada, mas mandou a foto de

umas pedras maneiras pra cá!

- Pois saiba que nossos robôs também nos

enviaram umas fotos de vocês!

- Vocês tem robôs aqui? - pareceu surpreso

com a pergunta, embora soubesse que não era

improvável.

- Digamos que... não existem assim tantos

humanos quanto vocês gostariam. Mas de todos os

cinco bilhões, todos são humaníssimos.

- Mas a gente tem muito mais do que

cinco... Ah. Saquei!

- Nós tentamos entrar em contato com o

Page 13: O dia do julgamento

líder de vocês, mas não o encontramos! - informou e

começou a mexer o dedo no ar, controlando o

holograma.

- É bem a cara dele... Espera, quem vocês

achavam que era nosso líder?

- Hã... Ah, ok, nós abduzimos a primeira

pessoa que vimos. Feliz agora?

- Na verdade, um pouco triste, nós

provavelmente não temos um líder para o planeta.

Temos líderes para os países, mas nada para todos eles

ao mesmo tempo...

- Viu só? É exatamente por isso que lá nós

temos os países, mas então temos uma associação que

designa um líder para o mundo. Assim estamos

seguros, sabe, se um OVNI cai num país com um

presidente de merda, ele não vai conseguir destruir o

planeta ao mandar os ET’s se foderem.

- E essa associação escolheu você para ser o

líder do país? - perguntou.

Page 14: O dia do julgamento

- Eu sou o mais carismático! - pareceu ter

agarrado o paletó e o ajeitado.

O bonzão, pensou Peter.

- Huh. Bom, desculpe se eu estiver

parecendo um pouco rude, mas... o que vocês querem

aqui?

- Ah. Sim... Nós estamos fazendo uma

limpa, destruindo alguns planetas desabitados,

começamos com o que vocês chamam de... Júpiter.

Passamos por Plutão e o pessoal lá disse que nós não

deveríamos destruí-los.

- Plutão não é um planeta!

- Ah, sim, eu estou agora acessando a sua...

Inter.. Inter... Net. É, esse é o nome que vocês deram.

Meio esquisito, mas tudo bem, acabei de ver a matéria

em um site de ciências. Os plutonianos também

sabiam disso, disseram que até mesmo estão em guerra

com vocês por conta disso!

Page 15: O dia do julgamento

- Bom, nós ainda não fomos atacados, não

que eu saiba! - tentou se lembrar de algo impossível.

- Eles não são assim tão evoluídos, mas eu

tomaria cuidado!

- Obrigado pela dica!

O líder sentou-se na poltrona e abriu

algumas pastas no holograma.

- Vocês são... Terra. Nomezinho capenga,

não? Se eu fosse vocês, teria pego o nome de Júpiter

pra esse aqui e dado Terra para aquele. Terra... Terra...

Terra... Ah, vejo que nem mesmo seria necessário te

chamar aqui, garoto, já tenho o veredito final aqui. Se

eu fosse você, protegeria os olhos quando voltar lá

embaixo, a explosão pode te deixar cego - e pensou por

um momento, depois riu. - Não que isso vá importar,

né? Você vai encontrar Muhajick logo, logo. Ops,

desculpe... É... Deus. Não, Alá. Não, Zeus. Não, Buda.

Não.. Uau, vocês realmente não se decidiram, não é?

- É... Espera. Você vai nos explodir?

Page 16: O dia do julgamento

- Claro. Estamos tirando daqui os planetas

inúteis!

- Mas nós não somos inúteis, e nem

desabitados, como você pode ver.. Temos sete bilhões.

Ah, cinco bilhões de humanos lá embaixo!

- Eu sei, eu sei. Mas se você pensar pelo

meu lado... Aqui - ele colocou para Peter algumas

imagens da pasta Terra-5b. O garoto as viu no

holograma.

“Como você pode ver, não andam cuidando

muito bem do planeta de vocês... Eu não daria muitos

anos pra esse galo velho, não. O oxigênio vai acabar

muito logo, pois, se você der uma olhada nessa

imagem aqui, já não tem muitas árvores como

antigamente, quando viemos pela primeira vez. Não

eu, claro, mas a minha civilização. Ei, olha aqui...

Vocês nem tinham saído da água ainda!

“E também nessa planilha aqui você pode

ver que há muitas mortes ocorrendo nessa Terra. Sério,

Page 17: O dia do julgamento

cara, quem é o retardado que mata um dos seus? Se

tivessem matado alguns dos robôs a gente até

entenderia, é que vocês ainda são primitivos, então

estariam com medo, mas olha... São pessoas como

vocês! Humaníssimos.

“E olha esse período aqui. Sabe o que a

gente fez quando queríamos que outros fizessem algo

por nós? A gente criou robôs. Naquela época eles

ainda eram quase nada, agora eles pensam e tem

emoções, a gente evoluiu, claro. Mas olha vocês...

Usando outros humanos pra cumprir o trabalho

pesado! A gente podia até ter robôs, mas eles eram

mais companheiros do que escravos!

“Sabe quanto tempo durou a discussão sobre

os direitos dos robôs lá no meu planeta? Três dias e

todo mundo entrou em acordo, vocês tão nessa há

décadas! Hoje os robôs ganham o mesmo salário que

nós e podem casar, namorar ou qualquer outra coisa

com quem quiserem, seja o parceiro um robô ou não.

Page 18: O dia do julgamento

“Ah, me lembro como se fosse hoje a nossa

época de idiotas, achando que podíamos julgar os

robôs. Sabe, vou até confessar, eu era um desses que

não queria que os robôs tivessem o direito de se casar

com um de nós, mas então saí dessa nuvem de

ignorância e percebi que isso não atrapalha em nada

na minha vida!”

- Mas.. É que... Não, mas... Mesmo assim,

vocês... Vocês não podem nos destruir só por conta

disso, há pessoas que não são como essas aqui na Terra,

eu te garanto!

- Claro que há, mas essas são poucas, e

acabam quase sempre sendo mortas ao defender os

outros... Clássico movimento de primitivos!

- Não podem nos matar apenas porque

somos fracos! - protestou Peter.

- Olhe de novo para o holograma, garoto,

matar e se aproveitar dos outros por serem fracos é só

o que vocês tem feito.

Page 19: O dia do julgamento

Peter obedeceu. Olhou o holograma e então

afastou os olhos.

- Me desculpe - sentiu uma gota de lágrima

passar pelo seu rosto.

- Ah. Droga, nós somos bonzinhos demais!

- o líder pareceu estar furioso consigo mesmo. - Olha,

eu vou dar para vocês outra chance. Assim como

demos antes, apenas porque vocês ainda não são muito

evoluídos. Mas nós vamos voltar, Peter Gollman, disso

pode ter certeza. E se voltarmos ainda no seu tempo,

me certificarei de que você seja chamado!

- Obrigado, líder! - Peter disse e desejou ter

um líder como aquele em seu planeta.

O homem sentou em sua poltrona

novamente.

- E como saberemos quando voltarão?

- Vocês não sabem, é aí que está a

pegadinha. Melhor começar a cuidar bem do planeta e

uns dos outros logo, pois pode ser amanhã, ou depois...

Page 20: O dia do julgamento

Ele continuou falando. Peter cobriu os olhos

por conta da luz que voltara. A voz do líder começou a

ficar afastada.

Ou depois, ou depois, ou depois, a voz dizia.

Quando baixou os braços, percebeu que

estava de volta na rua. Continuou andando rumo a sua

casa, decidido de que faria o melhor de agora em

diante.

Ele só torcia para não aparecer numa das

estatísticas a serem mostradas para o próximo

representante da Terra. Torcia para não ser morto ao

tentar defender os outros. Mas acima de tudo, torcia

para que tivesse algo bom para dizer a eles quando

voltassem.

Estava cético por enquanto, mas isso logo

mudaria. Tudo muda, como dissera o jardineiro

enquanto plantava flores.