o designer e a producao do sentido-libre

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26 A IMAGEM NA IDADE MíDIA Raquel Gomes Noronha O designer e a produção de sentido na construção de iconografias

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O Designer e a Producao Do Sentido-libre

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  • 26

    A imAgem nA idAde mdiA

    Raquel gomes noronha

    O designer e a produo de sentido na construo de iconografias

  • 27

    neste artigo, pretendemos refletir acerca do papel do designer, entendendo-o como mediador no processo de construo de iconogra-fias a partir de sua atividade como intrprete e tradutor da representao da identi-dade cultural. iniciaremos nosso percurso explorando a prpria noo de iconografia objetivando aprofundar nossa reflexo sobre as categorias identi-dade, imagem e represen-tao, buscando refern-cias na Antropologia.

  • 28

    A imAgem nA idAde mdiA

    Abordaremos, ainda, a dicotomia matria-forma, si-

    tuando-a como uma questo fundamental para nossos

    estudos sobre a tangibilizao da cultura em imagens.

    Propomos como estudo de caso o projeto Iconogra-

    fias do Maranho1, nossa atual experincia de mapea-

    mento iconogrfico. Ao refletirmos sobre as etapas do

    processo de pesquisa a anlise e a sntese iconogrfi-

    ca2 estaremos problematizando acerca da produo e

    do consumo da cultura mais especificamente sobre a

    sua imagem no mbito da contemporaneidade.

    iCOnOgRAFiA: COnSTRUindO UmA CATegORiA

    Iconografia o ramo da Histria da Arte que

    trata do contedo temtico ou significado das

    obras de arte, enquanto algo diferente da sua for-

    ma. (PANOFSKY, 1982: 19). Em nossa abordagem,

    propomos uma ampliao do conceito. Considera-

    mos iconografia como um conjunto de imagens re-

    presentativo de uma coletividade, de um assunto,

    de um lugar: sua fauna, flora, elementos arquite-

    tnicos, a religio, as festas, os saberes e as pesso-

    as. Estamos falando de uma representao cole-

    tiva, categoria que aprofundaremos a seguir. Em

    uma iconografia, busca-se identificar que elemen-

    tos so estruturantes da vida social e constroem as

    relaes de significao em determinado grupo, ou

    qualquer outro recorte estabelecido para o mape-

    amento. Para Canclini (2004: 41), estes elementos

    que constroem o mundo das significaes, as rela-

    es de sentido, constituem a cultura.

    1. O projeto, que atualmente en-

    contra-se na sua quarta etapa, con-siste em construir

    tecnologias de inovao em pro-cessos e produtos a partir da icono-

    grafia da identi-dade local do Ma-

    ranho. Neste artigo, referimo-

    nos segunda etapa do proje-

    to, aprovada pelo edital do PROEXT-

    CULTURA 2008, e concluda em

    2009, abordando a cultura afroma-

    ranhense, incluin-do-se 5 grupos de bumba-meu-boi;

    2 tambores de crioula; 4 blocos

    afro e 2 casas reli-giosas, a partir de

    entrevistas com os agentes sociais

    envolvidos e ob-servao dos seus

    cotidianos.

  • 29

    A PROdUO dO SenTidO

    Em um mapeamento iconogrfico, o objetivo es-

    tabelecer prioridades, hierarquias sobre quais fenme-

    nos e artefatos constitutivos da sociedade possuem um

    carter diacrtico e evidenciam as suas peculiaridades.

    Ao representarmos graficamente um artefato de

    importncia simblica para determinado grupo, no

    temos o controle e nem o desejamos sobre a ma-

    nuteno nas relaes de significao dos sujeitos da

    pesquisa para com a representao que construimos

    deste artefato. Machado nos indica queO arteso da flauta conhece as entranhas

    de seu objeto, o modo como o instrumen-

    to produz escala musical, os segredos que

    determinam sua perfeio ou imperfei-

    o; o pintor pinta uma flauta fantasma-

    grica, da qual conhece apenas a aparn-

    cia externa. (MACHADO, 2001: 9)

    Podemos comparar a ao do pintor, tal qual en-

    tendida por Machado, ao trabalho de representao

    grfica de um designer. Essa atividade corriqueira-

    mente empreendida por esse profissional. Se tomar-

    mos a etimologia da palavra iconografia, temos, na sua

    origem grega, a construo: eikon, imagem + graphia,

    escrita. Escrita por meio da imagem.

    Quando designers escolhem um determinado fe-

    nmeno ou artefato pertencente a um grupo social

    para tangibiliz-los em imagens, devemos observar

    que tal fenmeno ou artefato uma instncia dinmi-

    ca, que foi produzida, circula e consumida na hist-

    ria social. No algo que aparea sempre da mesma

    maneira. Quando retiramos um artefato ou fenme-

    2. Adotamos a perspectiva me-todolgica de Erwin Panofsky (1982) para ca-racterizar as eta-pas de trata-mento da obra de arte, em nos-so caso, as ima-gens que repre-sentam a cultura afro-maranhen-se. O autor traba-lha com uma di-viso tridica a anlise pr-ico-

    nografica; a an-lise iconogrfica; e a sntese ico-nogrfica. Como o prprio au-tor prope, es-tas etapas no so estanques; se misturam em um processo orgni-co e interdepen-dente.

  • 30

    A imAgem nA idAde mdiA

    no de seu lugar3 de origem e promovemos uma desti-

    nao diversa da qual foi prevista por seus produtores,

    estamos estabelecendo um trnsito intercultural deste

    signo. Sobre sua experincia como pesquisador do ar-

    tesanato no Mxico, Canclini aponta que:Muitos artesos sabem que o objeto vai

    ser utilizado de modo diferente do origi-

    nal, mas, como precisam vender, adap-

    tam a concepo ou o aspecto do objeto

    artesanal para que seja usado mais facil-

    mente nesta nova funo, que talvez evo-

    que seu sentido anterior por causa da

    iconografia, ainda que seus fins pragm-

    ticos e simblicos predominantes par-

    ticipem de outro sistema sociocultural.

    (CANCLINI, 2004: 42)

    Estamos falando de circulao de bens e mensa-

    gens, e este movimento acarreta mudanas de signi-

    ficado. Este processo caracteriza a passagem de uma

    instncia social para outra.

    Quando escolhemos um artefato e o representa-

    mos graficamente, produzimos um cone daquele arte-

    fato. Este cone a sua representao. Se este cone for

    vendido impresso em uma camiseta para um turista, h

    um processo de ressignificao do cone: uma nova in-

    terpretao, mediada por uma interpretao anterior

    a do designer, que realizou a representao grfica.

    E esta a grande questo de nossa investigao:

    no ato de iconografar, como se escreve a imagem?

    Com que trao grfico o designer a partir de uma

    pesquisa de campo, de um sistema smico (RAFFES-

    TIN, 1993), e do uso sistmico dos elementos da co-

    3. Utilizamos a categoria lugar a partir da con-cepo de Marc

    Aug: O lugar antropolgico a

    construo con-creta e simblica

    do espao, que se refere casa, s aldeias, ou seja, aos lugares que

    tm sentido, que so identitrios,

    relacionais e his-tricos e que tra-

    zem subjacente o sentido de per-

    manncia [...] (AUG, 1994: 34).

  • 31

    A PROdUO dO SenTidO

    municao visual identifica, descreve, classifica e in-

    terpreta os seus sujeitos da pesquisa? Nosso objetivo

    entender qual essa linguagem capaz de transitar in-

    terculturalmente e cambiar entre o icnico e o simb-

    lico, entre a representao identitria construda a

    partir do entendimento da identidade local e as re-

    presentaes coletivas construdas a partir de refe-

    renciais simblicos diversos e heterogneos.

    Esta indagao torna-se mais obscura quando

    contextualizamos nossa anlise no mbito da con-

    temporaneidade, quando falamos de hibridizao da

    identidade e compartilhamento de cdigos culturais.

    Quando as fronteiras do sentido se tornam fluidas e

    todas essas relaes de trnsito no obedecem a uma

    sequncia linear.

    REPRESENTAO, IDENTIDADE e IMAGEM

    O uso da categoria representao apresenta-se

    com ambiguidade neste estudo. Ora falamos de re-

    presentao grfica, como sendo o resultado de uma

    interpretao grfica de um artefato ou fenmeno,

    ora falamos de representao coletiva, definida por

    Durkheim como modos de agir, de pensar e de sentir

    que apresentam a notvel propriedade de existir fora

    das conscincias individuais. (DURKHEIM, 1978: 88).

    Neste item, abordaremos as relaes destas duas

    categorias, que, por hora, diferenciamos: representa-

    o grfica e representao coletiva. A principal ques-

    to : como uma representao grfica torna-se uma re-

    presentao coletiva? Como o designer deve mediar este

    processo discursivo entre uma representao grfica e

  • 32

    A imAgem nA idAde mdiA

    uma representao coletiva, traduzindo os cdigos es-

    pecficos da linguagem verbal em cdigos visuais com-

    patveis e dialgicos, durante a interpretao sobre o

    que ser integrado a um mapeamento iconogrfico?

    Primeiramente, buscamos traduzir para o mbito

    do nosso projeto de pesquisa, as definies das cate-

    gorias identidade e imagem. Tomamos contribuies

    do campo do Design e emprstimos das bases episte-

    molgicas da Antropologia a fim de construirmos es-

    tas definies para uma metodologia de mapeamen-

    to iconogrfico. Traduzir a identidade cultural de uma

    comunidade, de um grupo social em uma imagem,

    uma marca visual, uma representao grfica, implica

    apreender as diferenas (sociais e visuais) nos limiares

    deste lugar. Entendemos identidade como algo que nos confere conforto e aqui-

    lo que nos tranqiliza, aquilo que co-

    mum a um grupo, a uma comunidade, a

    uma sociedade. A busca dessa identida-

    de tem a funo simblica de consolidar

    o pensamento sobre determinado assun-

    to, fato ou artefato, estabelecendo limia-

    res, fronteiras. A identidade uma repeti-

    o, que gera representaes, discursos. A

    categoria de identidade se materializa nas

    marcas que produz. A identidade torna-se

    uma caracterstica de superfcie. (NORO-

    NHA et al, 2008: sp)

    Um mapeamento iconogrfico coloca em relevo

    a materialidade dos artefatos, e neles poderemos en-

    contrar imagens autoconstrudas, ou seja, referncias

    sobre os sistemas smicos construdos sob a gide das

  • 33

    A PROdUO dO SenTidO

    disputas de poder nos lugares pesquisados e as estra-

    tgias de visibilidade destas identidades. no espao

    que propomos, durante a pesquisa, para que os agen-

    tes sociais falem, reflitam sobre seus artefatos e suas

    imagens de referncia, que os traos identitrios

    emergem, nos discursos sobre suas peculiaridades,

    nas fronteiras e limites das comparaes com os ou-

    tros grupos. O que os diferencia e funciona como trao

    diacrtico se converte em smbolo do grupo, e durante

    o processo da iconografia, traduzido em um cone.

    De forma complementar, tomamos a categoria

    imagem como estas marcas produzidas pela iden-

    tidade. Impresses plasmadas na (e pela) sociedade.

    Estamos falando de signos que so ao mesmo tempo

    produzidos e consumidos por essa sociedade. Mais a

    diante, teremos a oportunidade de aprofundar a dis-

    cusso sobre o fluxo de produo e consumo de repre-

    sentaes grficas, que, a partir daqui, tomamos como

    sinnimo de imagem. A imagem, conclui Plato, pode se parecer

    com a coisa representada, mas no tem a

    sua realidade. uma imitao de superf-

    cie, uma mera iluso de ptica, que fasci-

    na apenas as crianas e os tolos, os desti-

    tudos de razo. O pintor, portanto, produz

    um simulacro [eidolon, de onde deriva a

    palavra dolo], ou seja, uma representao

    do que no existe ou do que no verdade,

    engodo, imagem [eikon] destituda de rea-

    lidade (...) (MACHADO, 2001: 9).

    A abordagem platnica nos interessa na medida

    em que amplia a distncia entre a imagem e seu ob-

  • 34

    A imAgem nA idAde mdiA

    jeto, entre significante e significado, afastando da pri-

    meira os significados simblicos e apenas conside-

    rando apenas a imitao da superfcie. A partir da

    derivao eikon cone iconografia, ao propormos

    uma ampliao do sentido da categoria iconografia,

    incluindo as etapas cognitivas do processo de cons-

    truo da imagem, estamos trazendo para o signifi-

    cante imagem estes processos e operaes semiticas.

    Sob a perspectiva platnica, de que a imagem um si-

    mulacro, ela agora, a partir desta proposta de amplia-

    o de sentido, contempla no apenas a visualidade

    mas tambm o pensamento e as hierarquizaes ope-

    racionalizadas no momento do mapeamento icono-

    grfico, e assim nos afastamos da idia de que imagem

    representao do que no existe, e forjamos, no seu

    bojo, a unio das duas formas de representao que

    desejamos problematizar: representaes coletivas e

    representaes grficas.

    O designer, quando inserido em um campo de

    pesquisa, tem uma dupla tarefa acerca da categoria re-

    presentao: apreender as representaes dos sujeitos

    de sua pesquisa, por meio da vivncia no lugar da pes-

    quisa e constatar preferncias, gostos, novas formas

    de fazer, o saber local (smbolos da identidade cultu-

    ral), que podem ser inspiradores, servindo como re-

    ferncia ao seu projeto; e representar, traduzir em lin-

    guagem grfica (ou imagens, ou cones da identidade

    cultural) as representaes coletivas destes sujeitos.

    Quando estes cones da identidade cultural so

    lanados ao consumo, com a sua transformao em

    produtos, acontece um novo processo de traduo, o

    da sua apreenso por parte de quem os consome co-

  • 35

    A PROdUO dO SenTidO

    nhecendo pouco ou mesmo no conhecendo a sua di-

    menso simblica enquanto representao coletiva da

    cultura de um grupo social. O que difere nesta apre-

    enso destes signos onde, em que lugar eles foram

    consumidos. A partir de qual sistema smico eles sero

    ressemantizados? Se h uma relao de territorialida-

    de (RAFFESTIN, 1993) no ato do consumo ou se foram

    consumidos no no-lugar. Assim, o sentido da repre-

    sentao reelaborado:Os recursos simblicos e seus diversos

    modos de organizao tm a ver com os

    modos de auto-representar-se e de repre-

    sentar os outros nas relaes de diferen-

    a e desigualdade, ou seja, nomeando ou

    desconhecendo, valorizando ou desquali-

    ficando. (CANCLINI, 2004: 46)

    A iconografia do artefato ou fenmeno represen-

    tado passa a ser o signo que informa. E como, no des-

    terro, esses signos ainda comunicam a sua identidade?

    A imagem deixa de ser a representao iconogrfica e

    passa a ser o smbolo em si.

    Assim, em trnsito, ela deixa de se relacionar com

    seu artefato ou fenmeno diretamente e ento ocor-

    re um processo de ressemantizao. A interpretao

    do signo se constri a partir de um referencial distan-

    te, de segunda, terceira, quarta mo. Acreditamos que

    essa remisso s representaes dos outros opera se-

    gundo as sistematizaes que Foucault (2004) realiza

    acerca dos jogos de remisses. Perde-se a noo de ori-

    gem, os discursos4 so ns em uma rede de muitos ou-

    tros discursos. No est claro de qual lugar de fala o

    discurso parte.

    4. Entendemos por discurso mui-to mais do que a fala. Como in-dica Foucault (2004), o discurso vai alm do seu sentido lingusti-co. no seu sen-tido mais amplo, como construo de saberes, prti-cas, instituies, aes e reaes, que utilizaremos o conceito no de-correr deste tra-balho.

  • 36

    A imAgem nA idAde mdiA

    O grau de eficincia desta traduo da identida-

    de em imagem a eficincia da representao est

    associado ao nvel de aproximao do designer com

    os sujeitos da pesquisa, ou seja, o quo inserido o de-

    signer estar no sistema smico do grupo social em

    questo. Para Raffestin, A representao proposta aqui , portan-

    to, um conjunto definido em relao aos

    objetivos de um ator. No se trata, pois,

    do espao, mas de um espao cons-

    trudo pelo ator, que comunica suas in-

    tenes e a realidade material por inter-

    mdio de um sistema smico. Portanto,

    o espao representado no mais o es-

    pao, mas a imagem do espao, ou me-

    lhor, do territrio visto e/ou vivido. em

    suma, o espao que se tornou territrio

    de um ator desde que tomado numa re-

    lao social de comunicao. (RAFFES-

    TIN, 1993: 147, grifo nosso)

    Desta forma, a construo do sistema smico est

    relacionada com a apropriao do espao, portanto,

    associada categoria de territorialidade. Mas esta re-

    lao, no mbito da produo e do consumo da cul-

    tura, parece-nos extremamente voltil, sem limia-

    res definidos. Estamos falando de territorialidade em

    tempos de dispora (HALL, 2003). Essa possibilida-

    de nos leva a pensar na construo de inmeras redes

    de significaes sobre o mesmo artefato ou fenme-

    no, que, longe de sua origem, assume conotaes di-

    versas. As posies dos agentes sociais no espao re-

    velam as relaes de comunicao que Raffestin nos

    evidenciou: uma estrutura tridica, baseada nos agen-

  • 37

    A PROdUO dO SenTidO

    tes, suas representaes e prticas sobre um espao/

    tempo, e a consequente interao entre esses agentes,

    formando tessituras conjuntos de relaes de poder,

    simtricas ou assimtricas.

    O COnSUmO dA RePReSenTAO

    Neste item, partimos da definio de intercultu-

    ralidade de Canclini para analisar as relaes de po-

    der envolvidas no ato da apreenso das representaes

    coletivas dos grupos sociais e a sua traduo na for-

    ma de representao grfica. Observaremos como es-

    tes cones transformam-se em artefatos e permeiam

    a dimenso sociomaterial da sociedade. Ao cambia-

    rem entre representao coletiva e representao gr-

    fica, em um movimento orgnico, sem limites ou re-

    gras, as imagens adquirem um significado intrnseco,

    que Panofsky define como mundo dos valores simb-

    licos (PANOFSKY, 1982). Ao se tornarem uma apro-

    priao de uma pessoa ou grupo ou mesmo de toda

    uma comunidade, essa imagem comunica um senti-

    do convencional, compartilhado por aquelas pessoas.

    A construo deste significado intrnseco muitas vezes

    mediada pelo designer que, ento, torna-se a figura

    estratgica, considerando a atribuio de valor simb-

    lico aos objetos a partir dos estudos sobre a magia, de

    Mauss (2003).

    Para Canclini, a interculturalidade remete con-

    frontao e ao entrelaamento, quilo que sucede

    quando os grupos entram em relaes de troca. (...)

    [A interculturalidade] implica que os diferentes so

    o que so, em relaes de negociao, conflito e em-

  • 38

    A imAgem nA idAde mdiA

    prstimos recprocos. (CANCLINI, 2005: 17). Se o ob-

    jetivo de uma iconografia levar signos identitrios

    de determinado grupo social para um pblico maior

    que no vivencia as prticas sociais no lugar onde elas

    acontecem, o que ocorre uma ressignificao des-

    tes cones. E, em um processo de distanciamento en-

    tre os detentores do signo identitrio, passando pela

    traduo realizada pelo designer a representao e

    chegando recepo deste signo por uma pessoa que

    no tenha uma memria de uma experincia prvia

    do artefato ou fenmeno em questo, temos um pro-

    cesso de alienao do carter icnico daquele signo.

    cone bandei-rinhas, em dois momentos, no

    seu lugar, no bar-raco do Boi da Floresta, na sua

    origem, e no des-terro, na passa-

    rela do desfile de apresentao de produtos, re-alizado na Feira do Empreende-dor (07/11/09),

    exemplificando o processo do trn-sito intercultural

    do signo.

  • 39

    A PROdUO dO SenTidO

    Como dissemos anteriormente, a imagem deixa de ser

    a representao iconogrfica e passa a ser o smbolo

    em si. Transforma-se em um objeto, ou, melhor dizen-

    do, em um artefato. Sobre a palavra artefato, Cardoso

    nos expe uma curiosa etimologia, que nos leva a rela-

    cionar os termos artefato e feitio:Para explorar melhor essa questo do de-

    sign como uma espcie de fetichismo, vale

    a pena mais uma visita ao pas das etimo-

    logias. Lembrando que fetichismo deriva,

    na sua origem indireta, do vocbulo por-

    tugus feitio, faz-se relevante examinar

    mais detidamente esta ltima palavra. Fei-

    tio se relaciona ao particpio passado fei-

    to, no sentido de coisa-feita, tanto que na

    sua acepo como adjetivo artificial, fac-

    tcio, postio ou falso, como em prolas

    feitias. O sentido mais comum que atri-

    bumos hoje palavra, como substantivo,

    o de bruxaria, cuja origem est na idia

    de um trabalho feito contra algum. Pois

    justamente nessa idia do trabalho fei-

    to que reside o ponto comum entre feitio,

    arte e design. Feitio, feito e factcio tm

    a sua origem comum no adjetivo latim fac-

    tittius, que significa artificial. (...) Existe um

    paralelo conceitual importantssimo entre

    esse mau sentido de feito com arte e o bom

    sentido da mesma idia, que se expressa em

    latim por arte factus, que d origem ao nos-

    so artefato. (CARDOSO, 2001: 29)

    Aps o percurso descrito por Cardoso, propomos

    um aprofundamento na discusso sobre o papel do de-

    signer ao atuar como um mediador de representaes.

  • 40

    A imAgem nA idAde mdiA

    Um fenmeno social, representado por um desig-

    ner na forma de uma imagem, circula e sofre uma s-

    rie de re-interpretaes ao longo de seu percurso na

    sociedade. Adquire um valor de uso, que pode ser o de

    converter-se em um im de geladeira, estampado com

    uma imagem de bumba-meu-boi. Adquire um valor

    de troca, pois passa a ter um valor de mercado, rela-

    cionando trabalho e produo, traduzido por um pre-

    o em moeda corrente. Essas seriam tradues em um

    nvel sociomaterial, processos nos quais o designer

    est tradicionalmente envolvido. Questes estticas e

    formais, relacionadas aos materiais e aos usos do pro-

    duto, envolvendo os meios de produo e seus custos,

    chegando ao preo final do produto.

    Porm, os objetos possuem, segundo Baudrillard

    (1974), mais duas dimenses que se relacionam s re-

    presentaes deste artefato, que se denominam va-

    lor signo e valor smbolo: o primeiro diz respeito aos

    elementos semiticos do produto, que o diferen-

    ciam dos demais, como o uso das cores, o acabamen-

    to do azulejo, o fato de ter sido pintado mo ou ter

    sido impresso em serigrafia, enfim, as caractersticas

    que agregam outros valores sem ser os de uso. O valor

    smbolo est vinculado aos rituais, ao fato, por exem-

    plo, de ser presenteado com um im de azulejo de So

    Lus, por uma pessoa querida que visitou a cidade.

    Este fato confere a este artefato sentido distinto, que o

    torna no-permutvel porque nasce da relao entre

    as pessoas entre si e entre elas e os artefatos.

    A partir de convenes e simbolismos, credencia-

    mos os artefatos a ingressarem na sociedade e a cons-

    titurem o seu amlgama, suas relaes de sentido, que

  • 41

    A PROdUO dO SenTidO

    cone da corei-ra D. Analice no trnsito intercul-tural: (1)no mo-mento da anlise pr-iconogrfica, o contato com a prpria ima-gem; (2) a repre-sentao grfica, no momento da anlise iconogr-

    fica; (3)a imagem convertida em produto, na pas-sarela, na Feira do Empreende-dor (07/11/09) e (4) na oficina de serigrafia, quan-do D. Analice re-produz a prpria imagem, na for-ma de camiseta.

    1

    3

    2

    4

  • 42

    A imAgem nA idAde mdiA

    organizam a vida social e as relaes de significao. Ao

    designer, cabe o papel de ser o mensageiro, o mediador

    entre as relaes de poder e as relaes de sentido, exer-

    cendo o seu papel de interpretao de cdigos culturais

    e a sua traduo em cdigos materiais.

    Ao interpretar a cultura, o designer faz as vezes do

    feiticeiro. Mauss, em seus estudos sobre a magia e a

    relaes entre as pessoas e os smbolos mgicos, nos

    aponta que a imagem est para a coisa assim como a

    parte est para o todo. Dito de outro modo, uma sim-

    ples figura , fora do contato e de toda comunica-

    o direta, integralmente representativa. (MAUSS,

    2003:104). No caso da representao em magia, h

    uma srie de leis que regem a relao entre a pessoa

    ou coisa e a sua representao, no que tange s pro-

    priedades mgicas.

    No nosso caso, so as convenes do sistema s-

    mico do lugar no qual estamos inseridos como pes-

    quisadores que norteiam e indicam que partes da-

    quele todo (a cultura) podem ser alienadas, para que,

    mesmo no desterro do trnsito intercultural, uma ima-

    gem tenha autonomia sgnica, ainda que seja para sig-

    nificar conceitos demasiadamente distantes do seu lu-

    gar de origem.A natureza essencial dos trabalhos de de-

    sign no reside nem em seus processos,

    nem em seus produtos, mas em uma con-

    juno muito particular de ambos: mais

    precisamente, na maneira em que os pro-

    cessos de design incidem sobre seus pro-

    dutos, investindo-os de significados

    alheios sua natureza intrnseca. Esta ao

    de investimento, que pretendo enquadrar

  • 43

    A PROdUO dO SenTidO

    aqui dentro de uma categoria um tanto es-

    drxula, que denominarei, contrariando o

    senso comum da palavra, de fetichismo dos

    objetos. (CARDOSO, 2001: 17)

    Quando estas imagens so consumidas, elas ne-

    cessariamente so uma apropriao de segunda-mo.

    Quando um interpretante constri a sua relao de co-

    municao com o artefato, ele a realiza a partir do seu

    prprio sistema smico, que pode ser prximo ou dis-

    tante simblica ou fisicamente do contexto inicial

    da produo do sentido. Quando este artefato produ-

    zido por um designer, ainda somam-se a ele as repre-

    sentaes deste profissional, que, enquanto mediador e

    tradutor, transita entre as representaes coletivas das

    pessoas que foram suas informantes e as suas prprias

    representaes. Sobre uma informao inicial, novas

    camadas de sentidos so superpostas, sem anular as

    anteriores. A produo e o consumo da cultura so pro-

    cessos que transformam matria em forma, e nova-

    mente forma em matria, e assim sucessivamente. Per-

    de-se a noo de origem e de destino: um artefato que

    agora um n central da teia de significado, daqui a al-

    guns instantes apenas um ponto secundrio. A teia

    de significados complexa, no tem incio nem fim, e o

    trnsito entre o cone e o smbolo acontece simultanea-

    mente, sem regras ou limites pr-estabelecidos.

    inFORmAO e eXPeRinCiA

    Como observamos no item anterior, em um ma-

    peamento iconogrfico o designer busca nas represen-

  • 44

    A imAgem nA idAde mdiA

    taes dos grupos sociais a matria para construir suas

    representaes. Ento, o design um dos mtodos de

    dar forma matria e de faz-la aparecer como apa-

    rece, e no de outro modo. Existe, portanto, uma in-

    teno projetual. Propomos, no mbito do projeto Ico-

    nografias do Maranho, tratar as representaes dos

    grupos sociais que estamos pesquisando como artefa-

    tos ou fenmenos, para englobar as dimenses ditas

    materiais e intangveis do patrimnio5. Tanto os artefa-

    tos como os fenmenos possuem uma existncia ma-

    terial, ainda que representem manifestaes conside-

    radas intangveis6. Portanto, a cultura a matria sobre

    a qual o designer constri a iconografia. Essa represen-

    tao grfica (iconografia) traduz as marcas diacrti-

    cas dos grupos sociais pesquisados. Para Flusser, a rea

    do Design fruto de um processo de codificao da ex-

    perincia. Todo artefato produzido por meio da ao

    de dar forma matria seguindo uma inteno. In-for-

    mar, no sentido etimolgico, dar forma a algo.

    O designer cria a forma para acondicionar a mat-

    ria. A essa forma, ou melhor dizendo, a esta frma, da-

    mos o nome de linguagem. a forma que faz o material

    aparecer. Mapear iconografias, no sentido strictu, for-

    malizar (informar) as representaes sobre a cultura.

    Essa linguagem, que na verdade um processo

    de estilizao, constitui-se de representaes coletivas

    (smbolos da cultura identidade) convertidos em re-

    presentaes grficas (cones da cultura imagem).

    Porm o processo no cessa nesta primeira conver-

    so. Ele continua, com o consumo destas imagens,

    com o seu trnsito intercultural, com as novas esti-

    lizaes provocadas com as transformaes de ima-

    5. As questes sobre as noes de patrimnio,

    suas dimenses materiais e in-

    tangveis no m-bito do centro antigo de So

    Lus foram am-plamente dis-

    cutidas e apro-fundadas em:

    NORONHA, 2007.

    6. Ver mais so-bre a materiali-

    dade das dimen-ses imateriais do patrimnio

    em GONALVES, 2003.

  • 45

    A PROdUO dO SenTidO

    gens em objetos, com usos diferenciados dos atribu-

    dos em sua origem, na sua territorialidade. Quando

    uma imagem consumida no desterro, ela assume

    uma significao diferente, sem os referenciais sim-

    blicos do contexto na qual foi criada. De um cone

    de determinado grupo social, a imagem consumida

    passa a ser novamente um smbolo, uma conveno,

    sem uma ligao direta (icnica) com uma tessitura

    original. Novos valores de uso, troca, signo e smbo-

    lo so atribudos a esta imagem-artefato-fenmeno.

    Enquanto linguagem, o processo de estilizao

    pode ser considerado uma traduo, uma representa-

    o de uma realidade a partir de traos caractersticos

    de registro, de gnero ou de perodo. A entra o trao

    grfico do designer, ou a sua capacidade de interpre-

    tar e traduzir a matria. O texto considerado desconstrutivamente

    como o lugar para a produo de significados

    de um modo interativo e dinmico, que envol-

    ve o leitor em determinaes sociais, culturais

    e institucionais e em uma multiplicidade de in-

    terpretaes possveis e anlises baseadas em

    diferentes formaes de leitura para diferentes

    propsitos crticos. (SANTAELLA, 2007:60)

    Onde lemos texto, proponho que leiamos imagem,

    ou representao. Nessa linha, a anlise de uma imagem

    tambm a anlise das interaes entre vrias posies

    subjetivas e das intertextualidades e histrias a que essas

    posies se filiam. Quanto mais o designer se aprofun-

    dar na experincia da cultura que ele ir interpretar, mais

    apto a traduzi-la ele estar. Disso resulta uma viso do

    texto como bricolagem, mltiplos fragmentos que se su-

  • 46

    A imAgem nA idAde mdiA

    turam a realidades sociais e culturais por meios institu-

    cionais e culturais. (SANTAELLA, 2007:60)

    O designer como autor, transcende a sua funo

    de intrprete-tradutor. Ele deixa sua marca na repre-

    sentao, ou seja, suas prprias representaes sobre

    a cultura. No processo de in-formar, estamos atuando

    de forma ativa na construo do sentido. Estamos es-

    tabelecendo hierarquias e classificaes, estamos no-

    meando, dando forma matria. Estamos construindo

    discursos a partir de um lugar privilegiado de fala. Ao

    darmos forma matria, estamos produzindo modelos,

    que passaro a ser repetidos, reinterpretados e reposi-

    cionados sob as estruturas de fora da sociedade. O reencontro com a prpria

    imagem e a afir-mao da iden-

    tidade: orgulho e auto-estima.

  • 47

    A PROdUO dO SenTidO

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