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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP EVANDRO OLIVEIRA DE BRITO O DESENVOLVIMENTO DA ÉTICA NA FILOSOFIA DO PSÍQUICO DE FRANZ BRENTANO DOUTORADO EM FILOSOFIA SÃO PAULO 2012

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

EVANDRO OLIVEIRA DE BRITO

O DESENVOLVIMENTO DA ÉTICA NA FILOSOFIA DO PSÍQUICO DE FRANZ BRENTANO

DOUTORADO EM FILOSOFIA

SÃO PAULO 2012

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EVANDRO OLIVEIRA DE BRITO

O DESENVOLVIMENTO DA ÉTICA NA FILOSOFIA DO PSÍQUICO DE FRANZ BRENTANO

DOUTORADO EM FILOSOFIA

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de DOUTOR em Filosofia, sob a orientação do Prof. Doutor Mário Ariel Gonzáles Porta.

SÃO PAULO 2012

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Banca Examinadora:

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AGRADECIMENTOS

Sou grato a Deus e aos amigos que me apoiaram nessa caminhada.

Agradeço especialmente ao Prof. Dr. Mário Porta. Em primeiro

lugar, sou grato pelos “cheques em branco” que ele assinou. Espero começar a

“cobri-los” neste trabalho e saudar minha dívida em trabalhos futuros. Sou lhe

grato também pelas orientações objetivas e precisas, mas sou

fundamentalmente grato pelo incentivo à autonomia na pesquisa filosófica. Não

poderia deixar de mencionar duas coisas sem as quais este trabalho não teria

chegado ao fim. A primeira delas foi o incentivo para continuar o trabalho, ainda

que o prazo estivesse sido ultrapassado. A segunda foi a anedota da “mordida

do cachorro pequinês” e a ideia de que a força de um trabalho filosófico pode

estar na intuição de um problema que nunca deve ser abandonado

Agradeço a todos os amigos que contribuíram na árdua aquisição

das raríssimas obras brentanianas. À amiga Ana Beatriz Cerisara e André

Cerisara De Jongh, sou grato pelas cópias dos livros Vom ursprung sittlicher

erkenntnis (1969), Psychologie vom empirischen standpunkt, 3 v, (1971-1974),

Grundlegung und aufbau der ethik (1978), Kategorienlehre (1985). Ao amigo

Azddine Taine, mein Bruder, sou grato pelo auxílio prestado na aquisição das

principais obras brentanianas junto às bibliotecas da Heinrich Heine Universität

em Düsseldorf. Ao professor Celso Braida, sou grato pelo livro de Arthur

Rojszczak, From the act of judging to the sentence - The Problem of Truth

Bearers from Bolzano to Tarski. Ao professor Darlei Dall’agnol, sou grato pelo

artigo de Moore, Review of Franz Brentano‟s The Origen of the Knowledge of

Right and Wrong. Ao amigo e irmão Daniel Monteiro e Diana Garay, sou grato

pela cópia dos livros de Wundt, Sistema de filosofia cientifica, o sea,

fundamentos de metafisica basada en las ciencias positivas, 2 V, (1913), mas,

principalmente, pela acolhida na cidade de Córdoba e pelo auxilio prestado nas

bibliotecas da Univerdad Nacional de Córdoba. À amiga Eliane Santos, sou

grato pela cópia dos livros Deskriptive Psychologie e o livro de Chisholm,

Brentano and intrinsic value (1986). À amiga Gislene Santos, sou grato pelas

cópias dos livros de Wundt, Etica una investigacion de los hichos y leyes de la

vida moral, 3 V, (1917). À amiga Lia Vainer Schucman, sou grato pelas cópias

dos livros Von der mannigfachen Bedeutung des Seienden nach Aristoteles, El

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porvenir de la filosofia (1936), Vom Ursprung sittlicher Erkenntnis /

herausgegeben und eingeleitet von Oskar Kraus (1889) e (1921), Religion und

Philosophie: ihr Verhältnis zueinander (1954), Von der mannigfachen

Bedeutung des Seienden nach Aristoteles und ihre gemeinsamen Aufgaben

(1960). Sou grato, além disso, pela possibilidade de acessar a base de dados

da University of California Santa Barbara e pesquisar em 311 artigos escritos

pelos principais comentadores de Brentano. Ao admirável amigo Luiz

Hebeche, sou grato pela cópia do livro que amarrou este trabalho, Wahrheit

und evidenz: erkenntnistheoretische abhandlugen und briefe (1974). À amiga

Mirena dos Santos, sou grato pelo livro L‟origene de la connaissance moral

suive de la doctrine du jugement corret (2003).

Agradeço imensamente aos professores que aceitaram participar da

banca de avaliação deste trabalho na qualificação e na defesa final. Sou grato

também aos professores da Universidade Federal de Santa Catarina que me

aceitaram como aluno especial no curso de pós-graduação em filosofia.

Agradeço especialmente aos professores Arlene Reis, Celso Braida, Darlei

Dall’agnol, Luiz Hebeche e Marcos Müller Granzotto. Sou grato aos colegas

do programa de pós-graduação em Filosofia da PUC-SP, aos colegas do

Centro Universitário Municipal de São José, aos colegas do Departamento de

Metodologia de Ensino da UFSC vinculados ao projeto de ensino de filosofia no

E.E.B. Henrique Stodieck, especialmente aos professores Nestor Habkost,

Jason Lima e Silva e Aguinaldo Amaral.

Agradeço imensamente a todos que dedicaram parte de seu

precioso tempo para ler as versões iniciais e finais desta tese. À amiga Gislene

Santos, sou grato ainda pela revisão e auxílio na redação dos termos gregos e

pelas longas discussões sobre meu tema de pesquisa. À minha amiga Elise

Jaquim e ao amigo e professor Charles Feldhaus, sou grato pelo pronto

auxílio na revisão do abstract. Ao meu colega pesquisador e professor Ernest

Giusti, sou grato ainda pela análise e pelas sugestões pontuais para correção

das versões finais deste texto. Ao meu amigo Emerson Martins, sou grado

pelas cuidadosas observações sobre as partes iniciais do texto. Ao colega

Célio Escher, sou grato pela revisão final do texto principal.

Aos membros da minha família sou eternamente grato pelo apoio

emocional e financeiro. Agradeço especialmente a minha querida mãe Maria

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Rosa Brito, seu marido Manoel Reis e meus irmãos Ednan Brito e Eliana

Moiano, mas agradeço também a grande família Pereira que sempre me

recebeu de portas abertas a qualquer hora do dia ou da noite. Agradeço

aqueles amigos que escolhi como família quando morei na cidade de São

Paulo, Carolina Bianchi, Gabriel Bianchi, Eliane Santos, Ulises Sininho,

Amay e Fernando Monteiro e George França. Agradeço também aqueles

amigos que escolhi como família na minha ilha preferida. Muito obrigado

Gislene Vale Santos, Ana Beatriz Cerisara, Lia Vainer e a família Vainer

Schucman, Nara e Erick Sciasci, Daniel Monteiro e Diana Garay, Rogério

Lacerda e, principalmente, a minha família Morelli Matos, José Claudio, João

Carlos, Margarida, Janira e Georgina. Muito obrigado à família Jaquim e,

especialmente, à Elise Jaquim, não penas por me visitar no inverno de

Düsseldorf, mas também por me receber em Paris como membro da família.

Sou grato aos amigos “republicanos” com os quais dividi moradia nos anos de

pós-graduação. Entre eles, aos amigos de todas as horas José Cláudio

Matos, Fernando Monteiro, Graziela Barbosa, Marinês e Gabriel Angenot,

Nathalia Lambert, e Roberto Laufenschlager.

Sou grato de modo especial à amiga Lia Vainer Schucman por todo

auxílio prestado durante todos estes anos e, especialmente, obrigado por

resolver os detalhes burocráticos junto à secretaria do programa de pós-

graduação em filosofia da PUC-SP.

Finalmente, agradeço ao CAPEs pela bolsa parcial que serviu como

ajuda na concretização desta tarefa.

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Para o grande amigo

Luiz Hebeche.

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RESUMO Esta tese de doutorado tem como propósito comparar duas formulações

brentanianas da noção de valor moral e analisá-las a partir da filosofia do psíquico que lhes serve de base. Explicitaremos, desta maneira, o modo como as reformulações da noção de valor moral decorreram do desenvolvimento das descrições da atividade da consciência, apresentadas (ou pressuposta) por Brentano na primeira etapa de seu desenvolvimento intelectual (1874-1892). Explicitaremos, assim, que „valor moral‟, tal como foi apresentada por Brentano na obra Psicologia do ponto de vista empírico (1874), seria o resultado de uma solução aristotélico-tomista que visava resolver um problema epistemológico moderno. Como tal, o valor moral seria exclusivamente um sentimento. Explicitaremos, no entanto, que na obra Origem do conhecimento moral (1889) Brentano reformulou tal noção ao propor uma epistemologia moral não subjetivista que, orientada pelos trabalhos que compuseram a Psicologia descritiva (1888-1892), considerava o valor moral um conhecimento análogo ao juízo evidente. Esta tese está sustentada sobre a hipótese de que a teoria do conhecimento moral, formulada por Franz Brentano em 1889, resultou de duas mudanças específica. Por um lado, esta teoria resultou do abandono do conceito de objeto intencional, tomado como ponto arquimediano na formulação da Psicologia do ponto de vista empírico. Por outro lado, ela resultou da formulação do conceito de ato intencional, apresentado no contexto da formulação da Psicologia descritiva. A justificação desta hipótese interpretativa será apresentada por meio dos seguintes passos argumentativos. (1) Apresentaremos a teoria brentaniana do conhecimento moral publicada em 1889, na obra Origem do conhecimento moral, e (2) descreveremos os pressupostos epistemológicos fundamentais da Psicologia descritiva que sustentam esta teoria do conhecimento moral, caracterizados como reformulações conceituais efetuadas por Brentano na Psicologia do ponto de vista empírico. (3) Esta hipótese interpretativa será corroborada pela apresentação da incompatibilidade entre a ética do sentimento moral e a ética do conhecimento moral. Esta incompatibilidade, ainda, será evidenciada por meio da comparação entre as descrições brentanianas do ato psíquico de sentimento moral, vigente na Psicologia do ponto de vista empírico, e do ato psíquico de conhecimento moral caracterizado como preferência, vigente na Origem conhecimento moral. (4) Nossa análise implicará a seguinte conclusão. Ao abandonar os pressupostos da Psicologia do ponto de vista empírico, a teoria brentaniana do conhecimento moral baseou-se no pressuposto de que a noção de ato intencional estabelecia uma relação intrínseca e imediata chamada de consciência da preferência do moral, ou seja, o fenômeno psíquico de preferência.

Autor: Evandro Oliveira de Brito

Título: O desenvolvimento da ética na filosofia do psíquico de Franz

Brentano.

Palavras chaves: intencionalidade; objeto intencional; consciência; ética;

moral; filosofia da mente; Franz Brentano.

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ABSTRACT

This thesis aims to compare two of Brentano‟s formulations

regarding the notion of moral values and analyze them from the philosophy of the mind that serves as their base. I will explain in this way, how the reformulation of the notion of moral values arose from the development of descriptions of the activity of consciousness, presented (or assumed) by Brentano in the first stage of his intellectual development (1874-1892). I will explain, therefore, that moral values, as it was formulated by Brentano in the work Psychology from an empirical standpoint(1874), was the result of an Aristotelian-thomist solution aimed at solving a problem of modern epistemology. As such, the moral value would be only a moral sentiment. I will explain, however, that in The origin of the knowledge of right and wrong (1889) Brentano reformulated this notion by proposing a non-subjectivist moral epistemology, that guided by the works that made up the Descriptive psychology (1888-1892), considered the moral value analogous to a evident judgment. This thesis is supported by the assumption that the theory of moral knowledge, formulated by Franz Brentano in 1889, resulted from two specific changes. On one hand, this theory led to the concept of intentional object being abandoned, taken as the Archimedean point in the formulation of Psychology from an empirical standpoint. On the other hand, it resulted in the formulation of the concept of intentional act, presented in the context of the formulation of Descriptive psychology. The justification of this interpretive hypothesis will be presented through the following arguments: (1) I will present the Brentano‟s theory of moral knowledge, published in 1889 in the work The origin of the knowledge of right and wrong, and (2) I will describe the basic epistemological assumptions of Descriptive psychology who hold this theory of moral knowledge, characterized as conceptual reformulations made by Brentano in Psychology from an empirical standpoint. (3) This hypothesis will be supported by interpretive presentation of the incompatibility between the ethics of moral sentiment and ethics of moral knowledge. This incompatibility also will be supported by comparing the descriptions of Brentano‟s psychic act of moral feeling, present in Psychology from an empirical standpoint, and of Brentano‟s psychic act of moral knowledge characterized as preference, present in The origin of the knowledge of right and wrong. (4) My analysis will lead to the following conclusion. By abandoning the assumptions of the Psychology from an empirical standpoint, Brentano‟s theory of moral knowledge was based on the assumption that the notion of intentional act established an intrinsic and immediate relationship called the consciousness of moral‟s preference, or, the psychic phenomenon of preference.

Author: Evandro Oliveira de Brito

Title: The development of ethics in the Franz Brentano‟s‟ philosophy of

mind.

Keywords: intentionality; intentional object, consciousness, ethics,

morality, philosophy of mind; Franz Brentano.

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SUMÁRIO

O DESENVOLVIMENTO DA ÉTICA NA FILOSOFIA DO PSÍQUICO DE FRANZ

BRENTANO

INTRODUÇÃO CAPÍTULO I ............................................................................................................................................ 24 A TEORIA DO CONHECIMENTO MORAL: O PROBLEMA FUNDAMENTAL E SEU

CONTEXTO ............................................................................................................................................ 24

1.1 A defesa da tese acerca da origem do conhecimento moral (1889) na sociedade jurídica de Viena ......... 24

1.2 Chisholm e a indicação do fenômeno psíquico de preferência como pedra de toque da ética

brentaniana ...................................................................................................................................................... 27

1.3 As noções psíquicas de fins e meios como modo de indicação da intencionalidade no ato psíquico de

preferência. ...................................................................................................................................................... 35

1.4 A esfera psíquica da existência do bem: o erro de Aristóteles. .................................................................. 43

1.5 A proposta de superação do subjetivismo moral por meio da correta descrição dos fenômenos que

constituem a esfera psíquica. ........................................................................................................................... 50

CAPÍTULO II A ÉTICA DO SENTIMENTO MORAL COMO DESCRIÇÃO DO FENÔMENO PSÍQUICO DE AMOR E ÓDIO NAS FORMULAÇÕES TEÓRICAS DE 1874 ................................................. 55

2.1 Introdução .................................................................................................................................................. 55

2.2 A recepção da noção aristotélica de in-existência intencional do objeto como critério de distinção das

partes da alma na teoria aristotélica ............................................................................................................... 56

2.3 A definição brentaniana das três classes de fenômenos psíquicos orientanda pela dupla distinção

aristotélica entre pensamento e apetite ( e ). .............................................................................. 66

2.4 A dependência ontológica e epistemológica dos fenômenos de amor ou ódio como fundamento da

ética do sentimento moral. ............................................................................................................................... 80

2.5 O esboço de uma teoria do sentimento moral no contexto da Psicologia do ponto de vista empírico. ...... 91

CAPÍTULO III OS FUNDAMENTOS DA DESCRIÇÃO DOS FENÔMENOS PSÍQUICOS NO CONTEXTO DA PSICOLOGIA DESCRITIVA (1889) ........................................................................................... 112

3.1 Introdução ................................................................................................................................................ 112

3.2 A orientação cartesiana para a descrição das atividades da consciência em 1889................................. 114

3.3 A descrição das partes separáveis das atividades psíquicas por meio da análise das relações entre as

partes e o todo da consciência na Psicologia descritiva. ............................................................................... 119

3.4 A descrição das partes distinguíveis das atividades psíquicas por meio da análise das relações entre

as partes e o todo da consciência na Psicologia descritiva. .......................................................................... 123

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3.5 A reformulação da descrição cartesiana da atividade psíquica fundamental: as ideae. ......................... 141

3.6 A descrição cartesiana das atividades psíquicas baseadas em representações: os judicia e as

Voluntattes sive affectus ................................................................................................................................. 147

3.7 O critério brentaniano e a distinção cartesiana entre ideae e judicia ..................................................... 150

3.8 O critério brentaniano para a definição da evidência do juízo ................................................................ 152

3.9 O critério brentaniano para a fundamentação da teoria da verdade como evidência ............................. 155

CAPÍTULO IV A TEORIA ÉTICA DO CONHECIMENTO MORAL COMO DESCRIÇÃO DO FENÔMENO PSÍQUICO DE PREFERÊNCIA NAS FORMULAÇÕES TEÓRICAS DE 1889 ......................... 167

4.1 Introdução ................................................................................................................................................ 167

4.2 A indicação da fonte originária do conhecimento moral a partir da descrição da justeza dos

sentimentos de amor e ódio, estabelecido por meio de uma analogia para com a definição de justeza dos

juízos .............................................................................................................................................................. 169

4.3 A análise da definição tautológica de verdade como juízo justo e a distinção entre fenômenos

psíquicos de ordem superior e ordem inferior ............................................................................................... 174

4.4 A analogia entre juízo justo e amor justo como modo de indicar os fenômenos psíquicos de ordem

superior .......................................................................................................................................................... 190

4.5 O fenômeno psíquico da preferência como fundamento da teoria do conhecimento moral ..................... 197

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................................. 206

BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................................... 209 BIBLIOGRAFIA SECUNDÁRIA ......................................................................................................... 210 BIBLIOGRAFIA CONSULTADA........................................................................................................ 214

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O DESENVOLVIMENTO DA ÉTICA NA FILOSOFIA DO PSÍQUICO DE FRANZ

BRENTANO

INTRODUÇÃO

A obra clássica de Brentano dedicada à exposição de sua teoria

ética foi apresentada ao público germânico em 1889 e recebeu o título de

Origem do conhecimento moral (Ursprung sittlicher Erkenntnis). O propósito

dessa obra consistia em anunciar a consolidação da ética como uma ciência

positiva, no entanto, durante quase todo o ano de 1887, dois anos antes da

apresentação pública da teoria brentaniana, o então filósofo e futuro pai da

sociologia positivista francesa, Emilie Durkheim, realizou uma pesquisa

bibliográfica na Alemanha acerca do desenvolvimento de teorias que

concebiam a ética como uma ciência especial dotada de métodos e princípios

próprios1.

A pesquisa de Durkheim encontrou o debate acadêmico alemão em

torno dessa nova proposta dividido em três grandes perspectivas teóricas: a

proposta economista sociológica (que, ao analisar a distinção entre moral e

economia, afirmava que a primeira consistia na forma enquanto a segunda

consistia na matéria)2; a proposta jurídica de Rudolf von Ihering (unificadora do

direito positivo e filosofia do direito)3; e a proposta psicologista de Wilhelm

Wundt4. Ainda segundo a análise de Durkheim, dentre as obras que se

destacaram como alternativas originais, desvinculadas tanto da concepção

moral kantiana como da concepção utilitarista, estava uma obra do futuro

psicólogo e interlocutor de Brentano, Wilhelm Wundt (Ethik: Eine Untersuchung

der Tatsachen und Gesetze des sittlichen Lebens). A relevância desse estudo,

para nosso propósito, está no fato de que ele sintetiza o problema norteador

1 Cf. Durkheim, Émile. La science positive de la morale en Allemagne. Revue philosophique, 24, 1887, p.

33-142 e 275-284.

2 Conferir o capítulo Économistes et sociologistes em Durkheim, Émile. La science positive de la morale

en Allemagne, p. 5-16.

3 Conferir o capítulo Les juristes. M. Ihering em Durkheim, Émile. La science positive de la morale en

Allemagne, p. 17-24.

4 Conferir o capítulo Les moralistes. M. Wundt em Durkheim, Émile. La science positive de la morale en

Allemagne, p. 25-47.

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das teorias morais da época. Desse modo, o contexto do problema acerca da

moral enfrentado pelos pensadores alemães foi apresentado, então, por

Durkheim a partir da seguinte comparação com a produção intelectual

francesa:

Na França só se conhecem dois tipos de moral: a dos espiritualistas e kantianos, e a dos utilitaristas. Mas surgiu recentemente na Alemanha uma escola de teóricos morais que se propôs estudar a ética como uma ciência especial, com seu método e seus princípios. As diferentes ciências filosóficas tendem cada vez mais a se afastar umas das outras e a abandonar as grandezas e hipóteses metafísicas que sempre foram a sua raiz comum. Hoje a psicologia não é materialista e nem espiritualista. Por que o mesmo não poderia ser válido para a moral?

5

O que se explicitou imediatamente a partir da investigação de

Durkheim foi a relação entre a ética e a psicologia (enquanto filosofia do

psíquico ou filosofia da mente). Isso se deu na medida em que a ética foi

tomada como tarefa e a filosofia do psíquico foi tomada como fundamento

epistemológico. Assim, o modo como Brentano, dois anos mais tarde, se

vinculou a esse contexto especulativo pode ser primeiramente indicado nas

ressalvas que ele mesmo apontou na apresentação de sua teoria ética.

Em uma observação pontual encontrada no prólogo da obra de

1889, Brentano relembrou que essa publicação resultou da conferência

proferida em 23 de janeiro do mesmo ano para a Sociedade Jurídica de Viena.

Embora o título da conferência tivesse sido “Da sanção natural do justo e do

moral” (Von der natürlichen Sanktion für recht und sittlich), no contexto da

publicação, Brentano optou pela mudança de título com o intuito de apontar

mais precisamente o conteúdo analisado. Seu propósito consistia em

apresentar outro ponto de vista para o tema tratado, poucos anos antes na

mesma academia, por Rudolf von Ihering em seu discurso intitulado “Sobre a

gênese do sentimento de direito”. Esse novo ponto de vista sustentado pela

5 “Nous ne connaissons guère en France que deux sortes de morale: celle des spiritualistes et des kantiens

d'une part, celle des utilitaires de l'autre. Cependant il s'est depuis peu constitué en Allemagne une école

de moralistes qui a entrepris de constituer l'éthique comme une science spéciale, ayant sa méthode et

ses principes. Les différentes sciences philosophiques tendent de plus em plus à se détacher les unes des

autres et à se dégager des grandes hypothèses métaphysiques qui leur servaient de liens. La psychologie

n'est plus aujourd'hui ni spiritualiste ni matérialiste, pourquoi n'en serait-il pas de même de la morale?”

Durkheim, Émile. La science positive de la morale en Allemagne, p. 4.

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filosofia brentaniana do psíquico6 marcou explicitamente o combate ao

relativismo moral, bem como explicitou os problemas teóricos, acerca do

conhecimento moral, considerados relevantes no debate político e acadêmico

germânico na segunda metade do século XIX7.

Em uma segunda observação pontual acerca da suposta

apresentação pública acidental, bem como da publicação inesperada dessa

obra, Brentano ressaltou enfaticamente que se tratava de um trabalho original

constituído das duas características seguintes. Em primeiro lugar, esse

trabalho comportava os pontos de reformulações e aperfeiçoamento de sua

teoria apresentada na sua primeira grande obra intitulada Psicologia do ponto

de vista empírico (Psychologie vom empirischen Standpunkt). Em segundo

lugar, esse trabalho apontava para a elaboração de sua nova perspectiva

epistemológica de análise dos fenômenos psíquicos, definida de modo mais

preciso como Psicologia descritiva. Brentano anunciou essas duas

características por meio das seguintes palavras:

Erraria grandemente quem, julgando por sua causa acidental, considerasse minha conferência como uma obra passageira e momentânea. Pelo contrário, nela ofereço os frutos de uma meditação de muitos anos. De tudo que publiquei até agora, suas discussões são os produtos mais amadurecidos. Elas pertencem à esfera conceitual de uma Psicologia Descritiva, que dentro de pouco tempo espero poder dar publicidade em toda sua extensão. Então se verá – pelo tanto que me separo do tradicional e, sobre tudo, pelos aperfeiçoamentos essenciais que introduzi em minhas próprias opiniões já sustentadas em minha Psicologia do ponto de vista empírico – que meu extenso retraimento literário não obedeceu à ociosidade

8.

Em outras palavras, tratava-se aqui da indicação de que a

originalidade de tais reformulações possibilitou a formulação de uma teoria

acerca do conhecimento moral capaz de fundamentar sua ética. Partindo de

6 Cf. Brentano, Franz. Vom Ursprung Sittlicher Erkenntnis, p. 3.

7 Cf. Durkheim, Émile. La science positive de la morale en Allemagne, p. 4.

8 „Man würde irren, wenn man um des zufälligen Anstoßes willen den Vortrag für ein flüchtiges Werk

der Gelegenheit hielte. Er bietet Früchte von jahrelangem Nachdenken. Unter allem, was ich bisher

veröffentlicht, sind seine Erörterungen wohl das gereifteste Erzeugnis. Sie gehören zum

Gedankenkreise einer ‚Deskriptiven Psychologie„, den ich, wie ich nunmehr zu hoffen wage, in nicht

ferner Zeit seinem ganzen Umfange nach der Öffentlichkeit erschließen kann. Man wird dann an weiten

Abständen von allem Hergebrachten und insbesondere auch an wesentlichen Fortbildungen eigener, in

der ‚Psychologie vom empirischen Standpunkt„ vertretener; Anschauungen genugsam erkennen, daß

ich in meiner langen literarischen Zurückgezogenheit nicht eben müßig gewesen bin“. Brentano, Franz.

Vom Ursprung Sittlicher Erkenntnis, p. 3-4.

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15

evidências textuais e históricas, nossa tese compartilha a interpretação de que,

na perspectiva da ética, a originalidade dessas reformulações brentanianas

estava relacionada diretamente à possibilidade de se explicitar a evidência do

fenômeno psíquico de preferência, pois, tal como defendem Roderick Chisholm

e seus seguidores, o fenômeno psíquico de preferência passou a ser descrito

como evidente apenas nas teorias formuladas a partir de 18899. Assim, no que

se refere à ética brentaniana, portanto, nossa tese afirma a superação da teoria

do sentimento moral, encontrada na Psicologia do ponto de vista empírico

(1874), pela teoria da evidência do fenômeno de preferência, encontrada na

Origem do conhecimento moral (1889).

É imprescindível ressaltar, ainda, as considerações do filósofo inglês

George Moore, pois tais considerações se referem à originalidade filosófica

apresentada por Brentano na Origem do conhecimento moral. Moore não

apenas corroborou a originalidade da teoria brentaniana no prefácio de seu

Principia ethica, mas também resenhou a tradução inglesa dessa obra (The

Origin of the Knowledge of Right and Wrong, English translation by Cecil

Hague, 1902). Nesse trabalho, ele avaliou explicitamente as palavras com que

o filósofo alemão radicado na Áustria proclamou sua contribuição intelectual e

iniciou sua resenha com as seguintes afirmações:

Esta é de longe a melhor discussão acerca dos princípios mais fundamentais da ética do que qualquer outra que eu já conheci. O próprio Brentano está plenamente consciente de que fez um grande avanço na teoria da Ética (...) e sua convicção tanto na originalidade, como no valor do seu próprio trabalho, está completamente justificada

10.

O ponto relevante dessa afirmação de Moore demonstra a

confiança que Brentano adquiriu para reformular suas primeiras teses. Em

outras palavras, Brentano reconheceu que a proposta epistemológica

apresentada inicialmente na Psicologia do ponto de vista empírico deveria

9 Chisholm foi o primeiro a indicar essa mudança. Como veremos no decorrer desta tese, sua

interpretação defende que o abandono da noção de objeto intencional (tese ontológica de Brentano) está

na base da introdução da noção de fenômeno psíquico de preferência. Cf. Roderick M. Chisholm.

Brentano on descriptive psychology and the intentional, in: Phenomenology and existentialism, p. 1-24. 10

“This is far better discussion of the most fundamental principles of Ethics than any others with which I

am acquainted. Brentano himself is fully conscious that he has made a great advance in the theory of

Ethics (...) and his confidence both in the originality and in the value of his own work is completely

justified”. G. E. Moore, International Journal of Ethics, p. 115.

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16

passar por uma reformulação suficientemente consistente e capaz de redefinir

a sua filosofia do psíquico. Tratava-se, como veremos a seguir, daquilo que os

estudiosos de Brentano classificam como reformulação do ramo teórico de sua

teoria do conhecimento, chamado psicologia no sentido mais geral11. Além

disso, essa reformulação também sustentaria as reformulações dos três ramos

práticos da teoria do conhecimento, a saber: a estética, a lógica e a ética.

Acerca dessa tripartição cabe apresentar agora uma pequena observação.

Nossa análise se delineará sobre uma tese discutível, mas que não

será analisada, uma vez que não é o ponto central do nosso debate. Essa tese

afirma o status filosófico da psicologia no contexto da Psicologia do ponto de

vista empírico. Acerca desse ponto, adotaremos o consenso apresentado por

Linda McAlister12, Alfred Kastil13 e Lucie Gilson14, de que, ao menos

implicitamente, o estatuto da filosofia do psíquico, psicologia filosófica ou

filosofia da mente já se encontrava estabelecido, tal como foi efetivamente

explicitado por Brentano nas obras posteriores. Assim, como McAlister nos

lembra, já na Psicologia do ponto de vista empírico Brentano afirmava o

seguinte:

Permitam-me ressaltar, sem insistir muito nisto, que a psicologia contém as raízes da estética que, em um ponto mais avançado de desenvolvimento, indubitavelmente aperfeiçoará e aprimorará o olhar do artista. Do mesmo modo, basta dizer que a importante arte da lógica, na qual uma única melhora implica mil progressos científicos, tem também a psicologia como fonte. Além disso, a psicologia tem a tarefa de constituir-se como base científica para a teoria da educação, tanto do indivíduo como da sociedade. Juntamente com a estética e a lógica, a ética e a política procedem do campo da psicologia. E, assim, a psicologia parece ser a condição fundamental do progresso da humanidade precisamente no mesmo plano daquela que constitui sua dignidade essencial.

15

11

Cf. McAlister, Linda. The development of Franz Brentano‟s ethics, p. 10.

12 McAlister, Linda. The Development of Franz Brentano‟s Ethics, p. 10-12.

13 Kastil, Alfred. Die Philosophie Franz Brentano, p. 27-28.

14 Gilson, Lucie. La Psychologie descriptive selon Franz Brentano, p. 77.

15 „Nur ganz flüchtig weise ich darauf hin, wie in der Psychologie die Wurzeln der Ästhetik liegen, die

unfehlbar bei vollerer Entwickelung das Auge des Künstlers klären und seinen Fortschritt sichern wird.

Auch das sei nur mit einem Worte berührt, daß die wichtige Kunst der Logik, von der ein Fortschritt

tausend Fortschritte in der Wissenschaft zur Folge hat, in ganz ähnlicher Weise aus der Psychologie

ihre Nahrung zieht. Aber die Psychologie hat auch die Aufgabe, die wissenschaftliche. Grundlage einer

Erziehungslehre, des Einzelnen wie der Gesellschaft, zu werden. Mit Ästhetik und Logik erwachsen

auch Ethik und Politik auf ihrem Felde. Und so erscheint sie als Grundbedingung des Fortschrittes der

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17

É oportuno, ainda, indicar o contraponto dessa interpretação no

contexto da teoria ética brentaniana e colocar essa distinção de modo mais

objetivo.

No terceiro parágrafo do Grundlegung und Aufbau der Ethik,

parágrafo dedicado ao esclarecimento da distinção entre filosofia teórica e

prática, Brentano apresentou, tanto a distinção, como a clara relação de

dependência que se instituía explicitamente entre a ciência teórica e as

ciências práticas16. Colocada do lado teórico como ciência fundamental estava

a investigação filosófica do psíquico, concebida por Brentano como psicologia;

e colocadas do lado prático como ciências dependentes dos fundamentos da

filosofia do psíquico estavam a estética, a lógica e a ética. Brentano apresentou

essa distinção nos seguintes termos:

Para ser exato, a ética mantém o mesmo tipo de relação interna para com o braço teórico da filosofia, especificamente para com a psicologia, da mesma maneira que a agricultura e a medicina se relacionam com a química orgânica e a fisiologia. Mas existem outras disciplinas com o mesmo status na filosofia, a saber, estética e lógica. Cada uma tem a função de explicitar um ideal particular em sua própria perfeição psíquica. Existem três ideais, os quais correspondem aos três tipos básicos de atividades psíquicas: representações, juízos e interesses. A perfeição própria das representações é a beleza; dos juízos, a verdade; dos interesses (amor e ódio), bens morais

17.

No intuído de compreender o que está em jogo com a apresentação

dessas analogias, é interessante nos determos em outro argumento de

McAlister acerca dessa tese brentaniana. Em seu texto Sobre o futuro da

filosofia (Über die Zukunft der Philosophie), Brentano especificou novamente a

relação entre o ramo teórico e prático do conhecimento. Segundo McAlister,

existe aqui outro ponto além da distinção entre o ramo teórico (que comporta a

Menschheit gerade in dem, was vor allem ihre Würde ausmacht“. Brentano, Franz. Psychologie vom

empirisch Standpunkt, Erst Band, p. 30.

16 Cf. Brentano, Franz. Grundlegung und Aufbau der Ethik, p. 6-7.

17 „Gewiss ist ihre Beziehung zu den theorethischen Zweigen der Philosophie, insbesondere zur

Psychologie, ähnlich innig wie bei jenen zur organichen Chemie und Physiologie. Aber auch andere

praktische Disziplinen gehören in solcher Weise zum Gebiete der Philosophie, wie namentlich die

Ästhetik und die Logik. Jede hat die Aufgabe, einem besonderen Ideal, einer eigentümlichen

seelischen Vollkommenheit zu dienen. Es gibt drei solcher, entsprechend den drei psychischen

Grundklassen: Vorstellen, Urteilen und Interesses. Die eigentümliche Vollkommenheit des Vorstellens

ist die Schönheit, die des Urteils die Wahrheit, die des Interesses (Liebens und Hassens) die sittliche

Güte“. Brentano, Franz. Grundlegung und Aufbau der Ethik, p. 6.

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18

psicologia e a metafísica) e o ramo prático (que comporta a estética, a lógica e

a ética). Trata-se da dependência do conhecimento prático em relação ao

teórico. Desse modo, diz ela:

Ele (Brentano) considera que a filosofia é composta dos dois ramos teóricos (episteme no sentido aristotélico) psicologia e metafísica e dos três ramos práticos (tecnai) lógica, ética e estética. Certamente seria falacioso argumentar diretamente que, desde que alguma coisa é verdade para uma das partes da filosofia, ou seja, psicologia, que isto é verdade para a filosofia como um todo. No entanto, na visão de Brentano, a psicologia está em posição singular. Ele a define como o estudo dos fenômenos mentais e acredita que não se pode chegar às teorias corretas em qualquer outro ramo da filosofia (exceto por acidentes fortuitos) ao menos que se parta da correta consideração do fenômeno mental

18.

Essa tarefa filosófica que Brentano atribuiu à psicologia do final do

século XIX, orientada pelos critérios positivistas e empiristas, instituiu as linhas

gerais da filosofia brentaniana do psíquico. Não nos ocuparemos da

apresentação das especificidades que envolvem a defesa ou o ataque a tal

proposta. Interessa-nos apenas tomar como ponto de partida o fato de que, ao

propor uma análise filosófica do psíquico, Brentano reivindicou para essa

análise a tarefa da ontologia e da epistemologia. Como, no entanto, será

analisado no desenvolvimento desta tese, ao anunciar mudanças específicas

radicais na descrição da atividade psíquica [por exemplo: a) o abandono da

noção de objetos intencionais in-existentes19 e a formulação do conceito de ato

intencional; b) o abandono da noção de „verdade como correspondência‟ e a

formulação do conceito de „verdade como evidência‟], Brentano afirmou obter a

objetividade que apenas reivindicara em 1874, por meio de seus critérios

18

“He believes it (philosophy) to be composed of two theoretical branches, (episteme in the Aristotelian

sense), psychology and metaphysics, and three practical branches (tecnai), logic, ethics and aesthetics.

It would, of course, fallacious to argue straightway that since something is true one of the parts of

philosophy, i.e. of psychology, that it is true of philosophy as a whole. Psychology, however, is in a

unique position in Brentano‟s view; he defines it as a study of mental phenomena and he believes that

you cannot arrive at correct theories in any of the other branches of philosophy (except by fortuitous

accident) unless you start from the correct account of mental phenomena. So, although psychology is

one among several branches of philosophy, it is the branch upon all other depends. It must be for this

reason that Brentano concludes that what is true of psychology is true of philosophy as a whole”. L.

McAlister, The development of Franz Brentano‟s ethics, p. 10.

19 Optamos pelo termo in-existência por entendermos que ele contempla o propósito brentaniano de

caracterizar a expressão como modo de existência-em e, com isso, elimina o equivoco que o termo

inexistência comporta ao sugerir o sentido de não existência para o referido termo. Agradeço a

orientação do Prof. Pedro Monticelli acerca deste ponto.

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19

empiristas20 e positivistas21 norteadores da Psicologia do ponto de vista

empírico.

Nossa tese tratará de estabelecer que, especificamente no caso do

conhecimento ético, essa reformulação propôs a destituição do estatuto

fundamental atribuído ao sentimento como base dos fundamentos da moral.

Trata-se, portanto, de explicitar o modo como a Origem do conhecimento moral

(1889) diluiu o estatuto que Brentano atribuiu ao sentimento, na publicação da

Psicologia do ponto de vista empírico (1874), ainda sob a influência de Hume e

de J. S. Mill. Nesse sentido, nossa tese tratará de corroborar a seguinte

reivindicação brentaniana sobre a originalidade filosófica do rompimento radical

e completo com o subjetivismo ético:

Ninguém determinou os princípios do conhecimento na ética como eu determino aqui, sobre a base de novas análises. Ninguém, sobretudo os que acreditaram dever outorgar ao sentimento uma participação nos fundamentos da moral, rompeu tão radical e completamente com o subjetivismo ético

22.

20

Acerca do seu comprometimento com o empirismo, diz Brentano, “O título que atribuí à minha obra

explicita por si mesmo o objeto e o método. Em psicologia eu coloco-me no ponto de vista empírico.

Meu único mestre é a experiência. Eu compartilho, portanto, com outros filósofos, a convicção de que

certa fonte de ideal não é incompatível com este ponto de vista”. [„Die Aufschrift, die ich meinem

Werke gegeben, kennzeichnet dasselbe nach Gegenstand und Methode. Mein Standpunkt in der

Psychologie ist der empirische: die Erfahrung allein gilt mir als Lehrmeisterin: aber mit anderen teile

ich die überzeugung, daß eine gewisse ideale Anschauung mit einem solchen Standpunkte wohl

vereinbar ist“]. Brentano, Franz. Psychologie vom empirisch Standpunkt, Erster Band, p. 1.

21 Sobre a relevância da filosofia positiva para o desenvolvimento científico da humanidade, conferir o

artigo Quatro fases da filosofia e seu estado atual (Die Vier Phasen der Philosophie und ihr

augenblicklicher Stand em traduções para o espanhol e inglês), onde Brentano destaca a superioridade

da posição histórica de Comte para com a história da filosofia. Conferir, ainda, a introdução de Münch

em seu artigo Brentano and Comte (p. 33–39). Em sua análise direta da filosofia comtiana, diz

Brentano, “[...] o que distingue nossa condição daquela dos céticos é nossa exigência de que é possível

conhecer a verdadeira relação que existe entre as coisas. Nós não podemos determinar o tamanho

absoluto de um objeto, mas nós podemos calcular seu tamanho relativo com precisão. Nós nunca

poderemos saber o absoluto momento no qual um evento ocorre, mas nós podemos ser capazes de

especificar quando ele ocorre em relação a outro evento” (Brentano, Franz. Augusto Comte, 114, in:

Dieter Münch, Brentano and Comte, p. 40). Outra citação análoga é apresentada por Kraus no prefácio

da Psicologia do ponto de vista empírico. “Neste ponto nós (Brentano se referindo a Comte)

permanecemos com os céticos. E que outro ponto existe que nos diferenciaria deles, se não a indicação

do reconhecimento da verdadeira relação entre as coisas? O tamanho de um corpo não é determinável,

mas podemos medir e calcular sua relação com exatidão... É assim que nos separamos dos céticos e

deles nos distanciamos em mil milhas“. [„In diesem Punkte müssen wir Alle (Comte und Brentano) zu

den Skeptikern stehen. Und was Anderes bleibt, das uns von ihnen unterscheiden könnte, wenn nicht

die Behauptung der Erkennbarkeit der wahren Verhältnisse der Dinge? - Die absolute Größe eines

Körpers ist nicht bestimmbar, die relative können wir mit Genauigkeit messen und berechnen; (...) Das

also ist, was uns von den Skeptikern trennt, und es entfernt uns von ihnen weit und auf tausend

Meilen“]. Brentano, Franz. Psychologie vom empirisch Standpunkt, Erster Band, p. LXXXIII.

22 „Keiner hat die Erkenntnisprinzipien der Ethik so bestimmt, wie es hier auf Grund neuer Analysen

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20

O exposto é suficiente para apresentar o problema que vamos

analisar no decorrer desta tese. Segundo a análise de Moore, exposta em sua

resenha do livro Origem do conhecimento moral, o problema é evidenciado a

partir de dois pontos, pois, mesmo proclamando o rompimento com o

subjetivismo ético, (1) a tese brentaniana consistia na afirmação de que “[...] o

que nós sabemos, quando sabemos que uma coisa é boa em si mesma, é que

o sentimento de amor dirigido a tal coisa (o prazer na tal coisa) é justo (richtig).

Similarmente, que uma coisa é má, é meramente outro modo de dizer que a

rejeição de tal coisa deve ser justa”23. Além disso, (2) essa tese central

apresentada por Brentano retomava os conceitos próprios das teorias éticas

baseadas no sentimento moral, tal como o sentimento de prazer e desprazer

arduamente criticado por ele mesmo. Indicado o problema, impõe-se de

imediato a necessidade de dissolução dessa aparente contradição por meio da

apresentação da teoria brentaniana acerca do conhecimento moral.

Como questão norteadora do capítulo primeiro, apresentaremos a

proposta teórica de Brentano encontrada na obra Origem do conhecimento

moral e indicaremos o modo como esta obra propôs a reformulação da ética,

ao tomar como base os fundamentos estabelecidos pela nova filosofia do

psíquico, ou seja, pela Psicologia descritiva. Em outras palavras, trataremos de

explicitar essa proposta teórica, de rompimento com o subjetivismo ético, a

partir da reformulação da descrição do fenômeno psíquico de sentimento

moral. Por isso, no primeiro capítulo desta tese, nós apresentaremos as

afirmações textuais de Brentano (1889) que apontam o caminho equivocado

percorrido por sua teoria do sentimento moral (1874). De modo mais

específico, sustentaremos que a noção aristotélica de in-existência do objeto

intencional foi a fonte do equívoco encontrado na fundamentação da psicologia

de 1874. Tal como indicaremos a partir de bases textuais, esse problema foi

enfatizado na confissão tardia do próprio Brentano, pois ele reconheceu ter

incorporado o erro da ética aristotélica à formulação das teses sustentadas nas

suas primeiras obras. Ainda no primeiro capítulo, apresentamos a proposta

geschehen mußte; keiner insbesondere, der das Gefühl bei der Grundlegung beteiligt glaubte, so

prinzipiell und vollständig mit dem ethischen Subjektivismus gebrochen“. Brentano, Franz. Vom

Ursprung Sittlicher Erkenntnis, p. 4.

23 Moore, George Eduard. Review of Franz Brentano‟s The Origen of the Knowledge of Right and Wrong.

In: International Journal of Ethics, p. 115.

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21

brentaniana para a solução desse problema. Essa proposta de solução tomou

como norte as considerações textuais de Brentano acerca da necessidade de

correção da teoria do sentimento moral, pois, segundo Brentano, foi preciso

apresentar uma descrição da atividade psíquica capaz de fundamentar “[...] o

fato de que juntamente com a experiência da atividade sentimental está unido

concomitantemente o conhecimento da bondade do objeto”24. Com esta

exposição da proposta brentaniana de fundamentação da ética, abriremos o

caminho investigativo para a análise do modo brentaniano de descrever a

atividade psíquica, tanto em 1874 como em 1889.

Assim, nos capítulos seguintes, exporemos o modo como a

formulação (1874) e a reformulação (1889) dos conceitos fundamentais da

psicologia brentaniana foram apresentadas como base da teoria do

conhecimento moral.

O segundo capítulo tratará da emergência da teoria brentaniana do

sentimento moral ao descrever os fundamentos da filosofia do psíquico

apresentados na obra Psicologia do ponto de vista empírico. De modo mais

específico, essa análise descreverá o modo como a interpretação brentaniana

da teoria aristotélica do desejo, orientada pela noção de in-existência do objeto

intencional, foi tomada como fundamento da teoria do sentimento moral de

1874. Essa análise explicitará o fato de que a filosofia brentaniana do psíquico

de 1874 fundamentava a teoria do sentimento moral da seguinte maneira. A

base para a formulação da teoria ética do sentimento moral estava na noção de

in-existência do objeto intencional. Por quê? Por três motivos:

(a) porque a noção de in-existência do objeto intencional era o

critério fundamental para a definição positiva do fenômeno

psíquico de amor e ódio;

(b) porque a noção de in-existência do objeto intencional

fundamentava a descrição do fenômeno psíquico do amor e ódio

como consequência do conhecimento causal (de que o amor a

um objeto-causa tem outro objeto como efeito);

24

„Daß mit der Erfahrung der als richtig charakterisierten Gemütstätigkeit auch die Erkenntnis der Güte

des Objekts immer zugleich gegeben ist“ Brentano, Franz. Vom Ursprung Sittlicher Erkenntnis, p. 79,

nota 28.

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22

(c) porque, com base na regra que se inferia de uma relação de

causa e efeito entre objetos amados, descrevia-se a ética como

a retidão do amor que se encontrava em conformidade com essa

sua regra25.

A apresentação dos três pontos acima mostrará que a noção de in-

existência do objeto intencional estabelecia a dependência da ética para com a

psicologia. Nossa análise explicitará essa dependência entre psicologia e ética

e mostrará textualmente que os equívocos encontrados na teoria do sentimento

moral decorriam dos princípios aristotélicos que fundamentavam a filosofia

brentaniana do psíquico em 1874. Assim, abriremos caminho para investigar os

limites que o aristotelismo, incorporado à teoria brentaniana de 1874,

estabeleceu para a formulação da ética concebida como uma teoria do

conhecimento moral.

O terceiro capítulo analisará sistematicamente a relação entre as

partes e o todo da consciência, caracterizadas pela descrição da atividade

psíquica utilizados na Psicologia descritiva. Essa análise explicitará o modo

como a nova filosofia do psíquico viabilizou o explícito propósito brentaniano de

levar a cabo a tarefa de reformulação da ética. Por quê? Porque o novo modo

de descrição das atividades psíquicas apresentou uma mudança radical na

filosofia brentaniana do psíquico. Essa nova descrição substituiu o fundamento

ontológico da noção de intencionalidade, encontrado na in-existência

intencional do objeto, por um fundamento epistemológico, encontrado no ato

intencional da consciência. De modo mais específico, tais descrições

elaboradas a partir de 1889 foram tomadas como atos intencionais e

apresentaram duas novas especificidades constituintes do juízo e do

sentimento. Trata-se, aqui, do fundamento epistemológico que instituiu a

evidência na atividade psíquica de julgar e o caráter análogo à evidência na

atividade de sentimento de amor e ódio. Por isso mesmo, esse fundamento

epistemológico estabeleceu as distinções entre: (a) o juízo evidente de ordem

superior e o juízo cego de ordem inferior; e (b) o sentimento de amor e ódio de

ordem superior e o sentimento de amor e ódio de ordem inferior.

25

Cf. Brentano, Franz. Vom Ursprung Sittlicher Erkenntnis, p. 79, nota 28.

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23

O quarto capítulo aprofundará a análise do fundamento

epistemológico que instituiu a evidência na atividade psíquica do sentimento.

Desse modo, explicitaremos a distinção entre o sentimento justo de ordem

superior, análogo ao juízo evidente, e o sentimento de ordem inferior, análogo

ao juízo cego. Tomaremos como base os resultados dessa distinção e

apresentaremos sua principal implicação: a possibilidade de descrição do

fenômeno psíquico de preferência como um tipo de atividade psíquica de

terceira classe, ao lado do sentimento de amor e ódio. Em outras palavras,

apresentaremos a descrição da atividade de sentimento justo de amor e ódio e,

com base nessa descrição, apresentaremos a natureza cognoscível da justa

eleição de um fim ou um meio que se toma como objeto. Desse modo,

poderemos concluir que a teoria brentaniana do conhecimento moral estava

baseada no fato de que a noção de ato intencional estabelecia uma relação

intrínseca e imediata chamada de consciência da preferência do moral sobre o

imoral ou fenômeno psíquico de preferência.

Restringindo o âmbito da análise aos trabalhos brentanianos

apresentados entre 1874-1892, nossa conclusão sustentará uma tese um

pouco mais precisa e cuidadosa, e, ao mesmo tempo, mais modesta que

aquela sustentada pela interpretação de Sanches Granado. Segundo Granado,

o período das conferências de 1889 marcou uma indecisão no pensamento

brentaniano, pois “Brentano parecia estar a cavalo entre uma definição

gnosiológica e uma definição ontológica da verdade, entre uma explicação pela

ratio cognoscendi ou pela ratio essendi” 26. Contra a tese de Granado, utilizada

como analogia para caracterizar a indecisão brentaniana acerca da moral, nós

sustentaremos que a solução para o problema da apreensão da justeza do

sentimento foi apresentada em 1889. Mesmo assim, no entanto, suas raízes

não se encontram na teoria ética ou na teoria do conhecimento, e sim na

psicologia brentaniana concebida como uma filosofia do psíquico. Desse modo,

a teoria brentaniana acerca da origem do conhecimento moral, inspirada na

futura Psicologia descritiva, rompeu com os pressupostos da Psicologia do

ponto de vista empírico, norteadores da teoria do sentimento moral.

26

Granados, Sergio Sánchez-Migallón. La ética de Franz Brentano, p. 118.

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24

CAPÍTULO I

A TEORIA DO CONHECIMENTO MORAL: O PROBLEMA

FUNDAMENTAL E SEU CONTEXTO

1.1 A defesa da tese acerca da origem do conhecimento moral (1889) na sociedade jurídica de Viena

A teoria brentaniana de 1889 tinha como propósito sustentar que há

uma regra que, em si e por si e por sua própria natureza, é cognoscível como

justa e obrigatória. Tratava-se, historicamente, da oposição entre Brentano e

Ihering, bem como do problema central que vinculou o debate entre a ética

brentaniana e a doutrina jurídica de Ihering27. Segundo a análise apresentada

por Brentano, o termo “natural” (utilizado no discurso jurídico para a

classificação dos fundamentos do direito por meio da expressão „direito

natural‟) comportava dois significados: (1) dado naturalmente ou inato, por

oposição àquilo que se adquire por meio de dedução ou experiência na

evolução histórica; (2) regra concebida em si e por si mesma como justa e

obrigatória28. Nessa análise, Brentano afirmou que a via para o

estabelecimento da teoria acerca do conhecimento moral estava na negação

do primeiro e afirmação do segundo sentido de „natureza‟, ou seja, na

afirmação da regra concebida em si e por si como justa. Ainda que fosse uma

bifurcação argumentativa, Brentano valeu-se dessa distinção para se opor ao

relativismo que sustentava a doutrina jurídica de Ihering, pois ele considerava

que tal relativismo era consequência direta da negação do sentido fundamental

de „natureza‟ (como regra concebida, em si e por si mesma, como justa e

obrigatória).

27

Para um esclarecimento acerca do desenvolvimento da teoria de Ihering até 1889, conferir

especialmente o capítulo intitulado Les juristes: M. Ihering, em Durkheim, Émile. La science positive

de la morale en Allemagne, p. 17-24.

28 Brentano, Franz. Vom Ursprung Sittlicher Erkenntnis, p. 7.

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25

Essa tomada de posição possuía, ainda, duas implicações. Por um

lado, ela negava a noção de princípios morais inatos e, também, negava os

princípios fundamentais tanto do jus naturae como do jus gentius29. Por outro

lado, ela afirmava a possibilidade de se estabelecer o fundamento acerca do

conhecimento do bom e do preferível a partir da descrição da estrutura

psíquica. Este último é um ponto que deve ser enfatizado, pois aqui há uma

indicação sutil do caminho argumentativo adotado por Brentano.

A recolocação do problema moral no contexto da descrição da

estrutura psíquica fazia parte da principal estratégia argumentativa de Brentano

para se afastar do relativismo da teoria de Ihering. Ali estava, dizia ele, “[...] o

ponto em que nos separamos de Ihering. Ao não com que Ihering responde às

perguntas acerca da existência de uma verdade moral, e de uma lei moral

universal e necessária, eu oponho um resoluto sim”30. As perguntas que

receberam essa resposta afirmativa por parte de Brentano foram colocadas do

seguinte modo:

[1] Há uma verdade moral ensinada pela própria natureza, independente de toda autoridade eclesiástica, política e, em geral, de toda autoridade social?

[2] Há uma lei moral natural no sentido de que esta lei, por sua natureza, tenha validade universal e necessária para todos os homens de todos os lugares e tempos, bem como para todas as

espécies de seres dotados de pensamento e sentimento?31

29

“Coincido completamente com Ihering quando este, seguindo o precedente de John Locke, nega todos

os princípios morais inatos. Além disso, concordando com ele, não concebo nem o estranho jus naturae

[quod natura ipsa omnia animália docuit (direito natural é o que a natureza ensinou a todos os

animais)], nem tampouco o jus gentium (caracterizado como direito natural da razão por resultar da

coincidência universal dos povos)”. [„Ich bin vollkommen mit Ihering einig, wenn er nach dem

Vorgange von John Locke alle angeborenen Moralprinzipien leugnet. Noch mehr, mit ihm glaube ich

weder an das barocke jus naturae, i. e. quod natura ipsa omnia animalia docuit, noch an das jus

gentium, an ein Recht, welches durch die allgemeine Übereinstimmung der Völker als natürliches

Vernunftrecht gekennzeichnet ist, wie die römischen Rechtslehrer es faßten“]. Brentano, Franz. Vom

Ursprung Sittlicher Erkenntnis, p. 7-8.

30 „Hier sind wir an der Stelle, wo ich mich mit Ihering veruneinige. Dem ‚Nein„, das er auch hier spricht,

setze ich ein entschiedenes ‚Ja„ entgegen“. Brentano, Franz. Vom Ursprung Sittlicher Erkenntnis, p. 9.

31 „(1) Gibt es eine unabhängig von aller kirchlichen lind politischen und überhaupt von aller sozialen

Autorität durch die Natur selbst gelehrte sittliche Wahrheit? (2) Gibt es ein natürliches Sittengesetz in

dem Sinne, daß es, seiner Natur nach allgemeingültig und unumstößlich, für die Menschen aller Orte

und aller Zeiten, ja für alle Arten denkender und fühlender Wesen Geltung hat (...)?“. Brentano, Franz.

Vom Ursprung Sittlicher Erkenntnis, p. 9.

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26

A resposta positiva atribuída por Brentano a essas questões exige

duas observações fundamentais. Seria plausível esperar que Brentano tivesse

seguido dois caminhos na sua refutação à doutrina jurídica de Ihering. O

primeiro deles afirmaria a verdadeira existência de uma realidade moral e

exigiria que a teoria brentaniana acerca do conhecimento moral apresentasse

uma fundamentação ontológica. O segundo caminho argumentativo afirmaria a

validade universal e necessária dessa lei moral e exigiria a apresentação de

uma fundamentação epistemológica. Essas, no entanto, não foram as questões

a que a teoria brentaniana de 1889 respondeu separadamente. Desse modo,

não foram questões tratadas e resolvidas em seus aspectos ontológicos ou

epistemológicos. Para Brentano, a fundamentação ontológica e epistemológica,

que norteava a teoria acerca do conhecimento moral, deveria ser explicitada a

partir da descrição da estrutura da consciência, ou seja, por meio de uma

análise filosófica do psíquico. Nesse sentido, a análise brentaniana mostrou

que a questão mais fundamental desconsiderada por Ihering, e que dissolvia as

duas questões acima, indagava pelo caráter cognoscível da lei moral na esfera

da atividade psíquica. Por isso, Brentano insistiu no questionamento contra a

teoria moral de Ihering do seguinte modo:

[3] Seu conhecimento (da lei moral válida universal e necessariamente) cai na esfera de nossas capacidades psíquicas? (...) Ao „Não‟ com que Ihering responde estas perguntas, eu oponho um resoluto „Sim‟. Quem de nós dois tem razão? Espero que a presente investigação sobre a sanção natural do moral e do justo

possa esclarecer32

.

O exposto até aqui basta para estabelecer que a descrição da

estrutura psíquica seja indicada, portanto, como o critério de determinação da

teoria acerca do conhecimento moral. Em outras palavras, segundo Brentano,

seria uma descrição da estrutura psíquica que exporia a existência de uma

sanção natural do moral e do justo.

32

„Fällt seine Erkenntnis in das Bereich unserer psychischen Fähigkeiten? (...) Dem 'Nein', das er auch

hier spricht, setze ich ein entschiedenes 'Ja' entgegen. Und wer von uns hier im Rechte sei, das wird

hoffentlich unsere heutige Untersuchung über die natürliche Sanktion für sittlich und recht ins klare

setzen“. Brentano, Franz. Vom Ursprung Sittlicher Erkenntnis, p. 9.

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27

1.2 Chisholm e a indicação do fenômeno psíquico de preferência como pedra de toque da ética brentaniana

Uma falha na estratégia de análise adotada por um grupo de

comentadores da ética brentaniana, particularmente aqueles que desenvolvem

a interpretação de Linda McAlister, tem sido o pouco cuidado na busca da

coerência interna entre as obras brentanianas. Esse descuido tem resultado

em análises que criam problemas inexistentes e recriam problemas dissolvidos.

De modo mais específico, podemos considerar que tal grupo de comentadores

não estabelece os seguintes pontos como critérios de análise: (a) as diferenças

teóricas existentes entre as fases do desenvolvimento do pensamento

brentaniano; e (b) as implicações das especificidades teóricas dessas fases no

contexto da filosofia prática (a estética, a lógica e a ética). Jonas Oslon, por

exemplo, em sua análise acerca do conceito brentaniano de prazer33, essencial

para a apresentação do fundamento ético, não concebe qualquer diferença nas

descrições dos fenômenos psíquicos do sentimento. Segundo Oslon, esses

conceitos são unívocos, sejam eles analisados no contexto da Psicologia do

ponto de vista empírico, à luz da noção de objeto intencional in-existente,

sejam eles analisados no contexto da Psicologia descritiva, à luz da noção de

ato intencional. De outro modo, mas ainda em função de uma análise que

mantém os mesmos fundamentos da interpretação para dois momentos

distintos da exposição teórica da ética brentaniana até 1889, McAlister insistiu

em sua tese doutoral, contra o próprio Brentano, que a ética brentaniana é

utilitarista34. Vejamos.

No prefácio de seu livro The development of Franz Brentano ethics,

McAlister afirmou que seu propósito era “[...] eliminar as imprecisões ao traçar

o desenvolvimento da ética brentaniana do primeiro ao último período”35. A

principal estratégia de análise adotada por McAlister estava no cuidado com os

argumentos apresentados na obra póstuma brentaniana intitulada Grundlegung

33

Cf. Olson, Jonas. Brentano on pleasure. In: Rabinowicz, W. Ronnow-Rasmussen, T. Patterns of value:

essays on axiology and formal value analysis, p. 138-44.

34 Cf. McAlister, Linda. The development of Franz Brentano‟s ethics, p. 133-140.

35 McAlister, Linda. The Development of Franz Brentano‟s Ethics, p. 2.

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28

und Aufbau der Ethik. Desse modo, ela analisou a última publicação da teoria

moral brentaniana da seguinte maneira:

Sua última filosofia moral, que começou a evoluir em torno da virada do século e reflete as mudanças ocorridas de modo geral em seu pensamento filosófico, não foi apresentada por Brentano em publicação ou de forma acabada. No entanto, ela pode ser sistematizada a partir das referências encontradas em papers e cartas encontradas em seu Nachlass. Ela também está refletida em um trabalho postumamente publicado com o título de Fundação e construção da ética (Grundlegung und Aufbau der Ethik). A forma da edição adotada neste livro torna muito obscuro o desenvolvimento dos cursos de Brentano sobre ética, oferecidos na Universidade de Viena entre 1876 e 1894, ainda que ela seja apresentada de forma mais detalhada que na (obra) Ursprung, a primeira filosofia ética de Brentano. Pois, a Professora Mayer-Hillebrand e o Professor Kastil Alfred, que trabalhou neste material antes dela, optaram por incorporar neste primeiro texto de Brentano a sua última visão ética. Aparentemente, eles tentaram editar todas as seções do primeiro texto que não estava de acordo com esta última visão. Em resumo, eles tentaram transformar um texto antigo em um tardio, reescrevendo virtualmente algumas de suas partes. Não é preciso dizer que o livro resultou em alguma coisa confusa, pois ele dá a impressão que Brentano expôs a mesma teoria ética por toda sua vida.

36

Essa declaração afirmou a preocupação de McAlister com as

imprecisões decorrentes das mudanças no desenvolvimento da ética

brentaniana. Mesmo assim, no entanto, apesar do compromisso de eliminar

tais imprecisões, McAlister ignorou as reformulações propostas por Brentano

para alguns conceitos fundamentais da ética até 1889. Por quê? Porque a obra

Origem do conhecimento moral (1889) foi a principal fonte utilizada por

McAlister para caracterizar o primeiro período da ética brentaniana. Desse

modo, a limitação está no fato de que o trabalho de McAlister concebeu

indistintamente a teoria do sentimento moral, proposta na Psicologia do ponto

36

“His later moral philosophy which began to evolve around the turn of the century, and which reflects

the changes taking place in his philosophical thought generally, was not set out by Brentano in any

published or polished form. It can, however, be pieced together from references in letters and in papers

from his extensive Nachlass. It is also reflected in a work published posthumously under the title

Grundlegung und Aufbau der Ethik. It is the form of editing adopted for this book which does so much

to obscure the development of Brentano‟s lectures on ethics delivered at the University of Vienna

between 1876 and 1894, and so it represents in a more detailed form than does Ursprung, Brentano‟s

early ethical philosophy. But Professor Mayer-Hillebrand and Professor Alfred kastil, who worked on

this material before her, have chosen to incorporate into this early text Brentano‟s later ethical views as

well, and they have apparently tried to edit out all those sections of the early text which do not agree

with these later views. In short they have tried to turn an early text into a later one by virtually

rewriting it in places. The resulting book is, needless to say, somewhat misleading, for it give the

impression that Brentano had expounded the same ethical theory throughout his life”. McAlister,

Linda. The development of Franz Brentano‟s ethics, p. 1-2.

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29

de vista empírico (1874) e a teoria do conhecimento moral, proposta na Origem

de conhecimento moral (1889).

Uma interpretação completamente diferente foi inaugurada pela

análise apresentada por Roderick Chisholm em 1967-937. Tratava-se, de modo

mais específico, de um dos seus primeiros trabalhos acerca da noção de

relação intencional no contexto da terceira classe de fenômenos psíquicos

(amor, ódio e preferência). Ainda que tal análise estivesse orientada por uma

bifurcação entre a fase brentaniana da Psicologia do ponto de vista empírico

(1874) e a fase brentaniana do Reísmo (1905), ela não excluiu a relevância das

reformulações indicadas como novidades na proposta da Psicologia Descritiva.

Pelo contrário, a própria teoria chisholmeana acerca do valor intrínseco tomou

por base a interpretação da obra brentaniana, analisada segundo esse

critério38.

Seguindo a linha interpretativa inaugurada por Chisholm, os recentes

estudos que abordam com atenção os textos publicados e as palestras

proferidas por Brentano entre 1889 – 1901 mostram que Brentano redefiniu os

conceitos fundamentais da sua ética39. Mulligan, por exemplo, considera que a

redefinição principal da ética está na eliminação da noção de diferença de

intensidade entre atividades psíquicas afetivas40. Ainda, segundo Mulligan,

“Brentano parece ter mudado sua noção de emoção pelo fato de ter se

colocado duas questões: Qual é a relação entre dor e amor? A emoção varia

37

Cf. Chisholm, Roderick M. Brentano on Descriptive Psychology and the Intentional, in:

Phenomenology and existentialism, p. 1-24.

38 Chisholm foi o primeiro a indicar essa mudança, tomando por base a introdução da noção de fenômeno

psíquico de preferência. Cf. Roderick M. Chisholm. Brentano on Descriptive Psychology and the

Intentional, in: Phenomenology and existentialism, p. 1 – 24.

39 Recentemente vários trabalhos têm apontado essa mudança, ainda que o objetivo não seja a análise da

ética brentaniana. Cf., por exemplo, Mulligan, Kevin. Brentano on the mind, in: The Cambridge

Companion to Brentano, Cambridge University Press, United Kingdon, 2004. p. 66-97. Além disso,

duas linhas de pesquisa convergentes têm se destacado pelo fato de vincularem essa mudança à origem

do positivismo lógico. Basta comparar a proposta de uma tradição filosófica austro-saxônica defendida

por Barry Smith (Austrian philosophy – the legacy of Franz Brentano. Chicago: Open Court

Publishing Company and Illinois: LaSalle, 1994.) e a linha de pesquisa história do brentanismo

fundada por Liliana Albertazzi (Immanent realism: an introduction to Brentano. Dordrecht: Springer,

2006).

40 “In his Psychology Brentano thinks that the relation I may stand in of hating one object more than some

other object should be understood in terms of differences of intensity between my simple affective

attitudes to these objects. This view, Brentano came to think, is wrong. “More” does not refer to a

relation between the intensities of two acts. But he continues to speak of preferring as a type of

comparison”. Mulligan, Kevin. Brentano on the mind, p. 86.

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30

em intensidade? Esses dois problemas são aspectos da questão: se, e em que

sentido, emoções „espirituais‟ superiores diferem das emoções sensórias ou

vitais inferiores?”41. O ponto relevante para a nossa tese está no fato de que

uma solução para tais problemas foi encontrada pelos seguidores de Chisholm

nos textos brentanianos de 1889 – 1901. Nessas fontes, esses comentadores

reconhecem a fundamentação da ética brentaniana como resultado da

substituição das bases oferecidas na Psicologia do ponto de vista empírico

pelas novas bases propostas pela vindoura Psicologia descritiva42. Então, o

que disse Chisholm afinal? Vejamos:

Agora nós podemos voltar à concepção brentaniana de intencional, começando com a doutrina da in-existência intencional que ele propôs em 1874 e abandonou subseqüentemente. Em sua Psychologie vom empirischen Standpunkt, publicada pela primeira vez em 1874, Brentano propôs a doutrina da in-existência intencional como um meio de distinção entre o mental ou psíquico e o físico (...). Nós temos aqui uma tese ontológica sobre a “in-existência intencional”, a qual Brentano abandonou posteriormente, e uma tese psicológica implicando que referência a um objeto é o que distingue entre o mental e o físico. Cada uma destas teses parece-me ser importante. A tese ontológica parece-me ser problemática e não, como Brentano pensou subseqüentemente, ser obviamente falsa. A tese psicológica parece-me ser verdadeira.

43

41

”Brentano seems to have changed his mind about the emotions as a result of asking himself two

questions: What is the relation between pain and love? Do emotions vary in strength? These two

problems are aspects of the question whether, and in what sense, higher, “spiritual” emotions differ

from lower, sensory or vital emotions”. Mulligan, Kevin. Brentano on the mind, p. 83.

42 Liliana Albertazzi concebe a relação entre a ética e a reformulação da filosofia do psíquico brentaniana

do seguinte modo. “Given that Brentano‟s ethical theory was also grounded in his descriptive

psychology, the problem of right and wrong linked closely with discussion of the nature of judgments

and emotions, which constituted the second and third classes of psychic phenomena. A reading of

Brentano‟s ethics may therefore usefully begin with his Psychologies, in particular its first two

volumes. Conversely, Brentano‟s lectures on ethics clarify a number of aspects of his descriptive

psychology left implicit or undefined in the volumes of the Psychologies (…) Regardless of its specific

argument, therefore, The Origin of our Knowledge of Right and Wrong was also a development of

Brentano‟s psychology from an empirical standpoint in that it introduced a more strongly descriptive

component (...) The danger of giving subjective colouring to an ethics based on a psychological

definition of good, and in particular on psychic acts of love and hate, was very evident to Brentano. He

also distinguished two different types of pleasure and displeasure relative to a particular object of

presentation: 1. a type of pleasure closely connected with habit, instinct and reaction to particular sense

impressions, and which differs among species and among individuals. 2. A type of pleasure connected

with acts of desiring something good or something bad. Once again, the feature that differentiates

between these two types of pleasure is not the content of the act of intentional reference but the nature

of the act itself, which is characterized as either right or wrong. L. Albertazzi, Immanent realism: an

introduction to Brentano, p. 296-299.

43 “Now we may turn to Brentano's conception of the intentional, beginning with the doctrine of

intentional inexistence which he propounded in 1874 and was subsequently to abandon. In his

Psychologie vom empirischen Standpunkt, first published in 1874, Brentano proposed .the doctrine of

intentional inexistence as a means of distinguishing the mental or psychical from the physical (…) We

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31

No momento oportuno exporemos as principais implicações que

essa interpretação de Chisholm impôs para a teoria da ética brentaniana.

Agora importa apenas considerar que ela tinha duas noções fundamentais da

Psicologia descritiva no seu horizonte. Assim, é interessante fazermos uma

breve apresentação.

A primeira delas é a noção de „relação intencional‟, que resultou da

reformulação da noção de „ato psíquico‟. Em 1890-1, no texto publicado com o

título de Psychognosie e incorporado como primeiro capítulo da obra Psicologia

descritiva, Brentano propôs a seguinte formulação para a noção de „relação

intencional‟.

Assim, a peculiaridade que, acima de tudo, é característica geral da consciência, é aquela que ela mostra sempre e em todo lugar, ou seja, em cada uma de suas partes, certo tipo de relação, relacionando um sujeito a um objeto. Esta relação também é referida como „relação intencional‟. A toda consciência pertence essencialmente uma relação. Como em toda consciência, dois correlatos podem ser encontrados aqui. Um dos correlatos é o ato de

consciência, o outro é aquilo para o qual ele está dirigido.44

A segunda noção relevante para nosso trabalho também foi

apresentada no texto Psychognosie. Trata-se da noção de „objeto imanente‟

apresentada como nova formulação da noção de „objeto intencional in-

existente‟:

Explicação do termo objeto: algo interno dado objetivamente. Não necessita corresponder a alguma coisa fora. Para evitar confusões, pode-se chamá-lo objeto existente-em (inwohnendes) ou imanente. É

algo (a) geral e (b) exclusivamente característico da consciência45

have here an ontological thesis concerning "intentional inexistence," which Brentano was later to

abandon, and a psychological thesis, implying that reference to an object is what distinguishes the

mental from the physical. Each of these theses seems to me to be important. The ontological thesis

seems to me to be problematic and not, as Brentano subsequently thought, to be obviously false. And

the psychological thesis seems to me to be true”. Chisholm, Roderick M. Brentano on Descriptive

Psychology and the Intentional, p. 6.

44 “Vor allem also ist es eine Eigenheit, welche für das Bewußtsein allgemein charakteristisch ist, daß es

immer und überall, d.h. In jedem seiner ablösbaren Teile eine gewisse Art von Relation zeigt, welche

ein Subjekt zu einem Objekt in Beziehung setzt. Man nennt sie auch "intentionale Beziehung". Zu

jedem Bewußtsein gehört wesentlich eine Beziehung. Wie bei jeder Beziehung finden sich daher auch

hier zwei Korrelate. Das eine Korrelat ist der Bewußtseinsakt, das andere das, worauf er gerichtet ist”.

Brentano, Franz. Deskriptive psychologie, p. 21.

45 “Erläuterungen des Ausdrucks Objekt: etwas innerlich Gegenständliches ist gemeint. Draußen braucht

ihm nichts zu entsprechen. Zur Verhütung von Mißverständnissen mag man es "inwohnendes"

"immanentes" Objekt nennen. ' Es ist dies etwas a) allgemein und b) ausschließlich dem Bewußtsein

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32

Com a exposição dessas duas referências no texto brentaniano

pretendemos apenas situar a tese de Chisholm e indicar que ela reconheceu o

abandono, não apenas do conceito de objeto intencional in-existente, mas, de

modo mais apropriado, da própria teoria da imanência do objeto intencional in-

existente. Eis que ele diz:

O uso ontológico da palavra „intencional‟, portanto, parece enfraquecer seu uso psicológico. Objetos intencionalmente in-existentes foram concebidos como tentativa de compreender referência intencional, mas a tentativa não foi bem sucedida porque

os objetos assim concebidos eram intencionalmente in-existentes..46

Nesse sentido, também Chrudzimski e Smith reconhecem que “[...]

esta teoria da intencionalidade do objeto plenamente desenvolvida dominou a

leitura na Psicologia descritiva em 1890/1, na qual o objeto imanente é descrito

por Brentano como „correlato intencional‟”47. Ao tomarmos essa indicação,

podemos considerar que a formulação da teoria brentaniana do conhecimento

moral apontou o fato de que, em 1891, „intencional‟ já não era mais a

propriedade de um objeto, mas antes uma relação na qual a consciência se

encontrava.

É, portanto, em função desse abandono declarado por Brentano em

189148 que se impõe a necessidade de orientar a análise que se ocupa da ética

na direção dos conceitos formulados na Psicologia descritiva. Veremos, no

momento oportuno, a razão pela qual a noção de relação intencional,

pertencente à esfera teórica da Psicologia descritiva, permitiu a Brentano

descrever o fenômeno psíquico de preferência. No momento, é interessante

ressaltar que esse fenômeno, pertencente à terceira classe de fenômenos

psíquicos (amor e ódio), só foi reconhecido por Brentano a partir de 1889.

eigenes”. Brentano, Franz. Deskriptive psychologie, p. 22.

46 The ontological use of the word "intentional," therefore, seems to undermine its psychological use.

Intentionally inexistent objects were posited in the attempt to understand intentional reference, but the

attempt did not succeed-precisely because the objects so posited were intentionally inexistent.

Chisholm, Roderick M. Brentano on Descriptive Psychology and the Intentional, p. 12.

47 “This full-fledged object theory of intentionality dominates the lecture on Descriptive Psychology on

1890/1 in which the immanent object is referred to by Brentano as „intentional correlate”.

Chrudzimski, Arkadiusz e Smith, Barry. Brentano‟s ontology: from conceptualism to reism, p. 206.

48 Cf. Brentano, Franz. Deskriptive psychologie, p. 21.

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33

De fato, na primeira edição da Psicologia do ponto de vista empírico

(1874), Brentano utilizou o termo „preferência‟ (Vorzug) em seis passagens49,

no entanto em nenhum desses usos o termo preferência designava um

fenômeno psíquico de terceira classe. Do mesmo modo, o do verbo „preferir‟

(Vorziehen), que caracteriza o ato psíquico de preferência, não foi utilizado no

corpo do texto dessa edição. Sua introdução na Psicologia do ponto de vista

empírico ocorreu em 1911, no apêndice elaborado por Brentano para a

tradução italiana dessa obra.

O próprio Brentano reconheceu, no prefácio dessa tradução, que

esse trabalho consistia na segunda edição da obra clássica. Tal como

esclarece a citação a seguir, essa edição estava inalterada e foi composta

apenas pelos capítulos 5-9 do livro II. Além disso, ela foi enriquecida com notas

de rodapé e seguida de um apêndice projetado para demarcar as

reformulações conceituais que sua filosofia do psíquico teria sofrido:

Meu livro foi publicado há mais de trinta anos e as investigações tardias não alteraram as perspectivas expressadas ali, apesar de elas terem levado a desenvolvimentos adicionais ou, como ao menos eu mesmo acredito, às melhorias em alguns pontos muito importantes. Parecia impossível não mencionar essas inovações e, ao mesmo tempo, parecia aconselhável manter o formato original do meu trabalho e a forma na qual ele influenciou seus contemporâneos. Além disso, eu estava mais propenso a seguir este procedimento por reconhcer que muitos psicologistas eminentes, que tinham mostrado grande interesse na minha doutrina, estavam mais inclinados a recepcioná-la em sua primeira forma, que a seguir-me nas minhas novas linhas de pensamento. Então eu decidi reimprimir o texto antigo praticamente sem alterações e, ao mesmo tempo, completá-lo com algumas observações que podem ser encontradas parcialmente nas notas de rodapé, mas principalmente em um apêndice. Essas observações contêm uma defesa contra certos ataques de várias fontes à minha doutrina e desenvolvem os aspectos de minha doutrina, que, no meu próprio julgamento, necessitaram de

correções.50

49

Cf. Brentano, Franz. Psychologie vom empirisch Standpunkt, Erster Band, p. 10, 29 e 189, Zweite

Band, p. 9, 37, 99.

50 “Mehr als drei Dezennien waren seit dem Erscheinen meines Buches verflossen, und neue Forschungen

hatten bei mir zwar der Hauptsache nach die damals ausgesprochenen Ansichten bestehen lassen, aber

doch in manchem nicht unwichtigen Punkt zu einer Fortbildung oder, wie ich wenigstens glaube,

berichtigenden Modifikation geführt. Es schien mir unmöglich, dieselben unerwähnt zu lassen. Und

doch empfahl es sich zugleich, die Darlegung in ihrer ursprünglichen Gestalt, in der sie auf die

Zeitgenossen gewirkt hatte, beizubehalten; und dies um so mehr, als ich die Erfahrung gemacht hatte,

daß manche angesehene Psychologen, die meiner Lehre ernste Beachtung geschenkt, ihr mehr in der

früheren Fassung beizupflichten, als auf den neueingeschlagenen Wegen mir zu folgen geneigt waren.

So entschloß ich mich zu einer so gut wie unveränderten Wiedergabe des alten Textes, zugleich aber

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No que se refere especificamente ao conceito de preferência,

utilizado por Brentano para descrever uma parte do fenômeno psíquico de

sentimento a partir de 1889, é fundamental destacarmos uma observação

muito precisa do editor Oskar Kraus.

Kraus encontrou, na Psicologia do ponto de vista empírico, o critério

brentaniano utilizado para descrever a escolha de um objeto considerado

melhor ou mais valioso que outro. Ao analisar o texto brentaniano a seguir,

Kraus demarcou o grau de intensidade do amor ou ódio como o critério

determinante da escolha:

Nós podemos comparar umas com as outras as diferenças de graus de amor ou ódio, tal como nós podemos comparar diferentes níveis de convicções na afirmação e na negação. Assim como não há inconveniente em dizer que eu afirmo uma coisa com maior certeza do que eu nego alguma outra, eu também posso dizer que eu amo uma coisa mais do que eu amo outra. E eu posso determinar não apenas que a intensidade oposta é relativamente maior ou menor, mas também que a intensidade do prazer, desejo, volição e propósito é maior ou menor na relação de uma para com a outra. O prazer que eu tenho nisso é maior que o desejo que eu tenho por aquilo. Meu desejo de ver-te novamente não é tão forte como me propósito de

fazer-te conhecedor de minha desaprovação, etc.51

Segundo Kraus, esse critério brentaniano da intensidade do amor

precedeu à formulação do conceito de preferência. Por isso é interessante

ressaltar que a primeira aparição do termo „preferência‟ na Psicologia do ponto

de vista empírico ocorreu em 1924, na nota de rodapé introduzida por Kraus

para analisar a citação acima. Nessa análise, ele utilizou o termo „preferência‟

de três modos distintos.

zu seiner Bereicherung durch gewisse Bemerkungen, die ich zum Teil als Fußnoten, zum Teil aber,

und vorzüglich, als Anhang beifügte. Sie enthalten neben einer Verteidigung gegen gewisse Angriffe,

welche meine Lehre von anderer Seite erfahren, auch eine Angabe von solchen Momenten, für die ich

selbst eine Korrektur nötig finde“. Brentano, Franz. Psychologie vom empirisch Standpunkt, Zweiter

Band. p. 1-2.

51 “Wie die verschiedenen Stufen der überzeugung im Anerkennen und Verwerfen, so lassen auch die

Gradunterschiede im Lieben und Hassen sich miteinander vergleichen. Wie ich ohne Inkonvenienz

sagen kann, daß ich das eine mit größerer Gewißheit annehme, als ich das andere leugne: so kann ich

auch sagen, daß ich das eine in höherem Maße liebe, als ich das andere hasse.9) Und nicht bloß die

Stärke von Gegensätzen, sondern auch die von Freude und Verlangen und Willen und Vorsatz kann ich

im Verhältnis zueinander als größer und geringer bestimmen. Ich freue mich mehr darüber, als ich

nach jenem verlange; mein Verlangen ihn wieder zn sehen ist nicht so stark, als mein Vorsatz, ihn

meine Mißbilligung- empfinden zu lassen usf“. Brentano, Franz. Psychologie vom empirisch

Standpunkt, Zweiter Band. p. 107.

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35

Em primeiro lugar, Kraus utilizou o termo „preferência‟ para designar

o fenômeno psíquico descrito por Brentano como substituto da avaliação

comparativa do amor ou ódio. Assim, disse ele que, “[...] posteriormente,

Brentano concebeu tais diferenças de graus, não como uma avaliação

comparativa no amor e ódio tendo diferentes graus de intensidade, mas como

diferenças em uma espécie particular de atividade emocional, ou seja,

preferência” 52.

Em segundo lugar, Kraus apresentou a definição brentaniana do

termo „preferência‟ e indicou sua fonte bibliográfica. Desse modo, disse ele,

“[...] preferência é um „valor relativo‟, o qual está descrito detalhadamente na

Origem do conhecimento moral e no Ensaio suplementar V” 53.

Finalmente, ele indicou a relevância desse conceito para a sua

própria teoria e para a teoria econômica ao afirmar que “[...] preferências são

de especial importância para a teoria do valor, incluindo a teoria do valor

econômico”54.

Se, portanto, consideramos válido o caminho indicado por Kraus e

aberto por Chisholm, o conceito central resultante das reformulações

apresentadas a partir de 1889 foi o conceito que define a capacidade psíquica

da eleição do melhores meios e fins: a preferência, concebida como um tipo de

relação intencional descrita na Psicologia descritiva. Desse modo, enquanto

ramo prático da filosofia do psíquico, os estudos da ética brentaniana têm o

ponto de partida e o ponto de chegada nesse conceito.

1.3 As noções psíquicas de fins e meios como modo de indicação da intencionalidade no ato psíquico de preferência.

52

„Solche wertvergleichende Gradunterschiede im Lieben und Hassen hat Br. später nicht als Intensität

gefaßt, sondern als eine besondere Spezies der Gemütstätigkeit, nämlich als "Vorziehen"“. Brentano,

Franz. Psychologie vom empirisch Standpunkt, Zweiter Band. p. 290.

53 „Vorziehen ist ein "relatives Werten", das im "Ursprung sittlicher Erkenntnis" (Philos. BibI. 55) und

auch im Anhange unter V näher charakterisiert ist“. Brentano, Franz. Psychologie vom empirisch

Standpunkt, Zweiter Band. p. 290-291.

54 „Für die Wertlehre, auch die ökonomische, sind die "Bevorzugungen" von besonderer Wichtigkeit“.

Brentano, Franz. Psychologie vom empirisch Standpunkt, Zweiter Band. p. 291.

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36

As orientações de Chisholm e Kraus, apresentadas no ponto

anterior, permitem que o desenvolvimento da ética brentaniana seja

apresentado a partir da seguinte sistematização:

(1) O conceito de preferência foi o ponto de separação radical entre

a teoria ética brentaniana de 1889 e as concepções modernas que

fundamentaram a ética na noção de racionalidade prática.

(2) Analisando algumas concepções modernas, Brentano considerou

que o problema da eleição estava, por um lado, restrito à escolha dos meios e,

por outro, vinculado à pressuposição da existência ou não existência do fim em

si absoluto.

(3) Para afastar-se das concepções modernas, Brentano apresentou

a descrição da estrutura da consciência e concebeu as noções de fins e meios

a partir de uma análise filosófica do psíquico.

(4) O propósito da análise brentaniana não consistia apenas em

apresentar a origem psíquica dos conceitos de fins e meios. O propósito

consistia, fundamentalmente, em explicitar a relação existente entre o sujeito,

os fins e os meios, como uma relação constituinte da consciência, ou seja,

como um tipo de relação intencional.

(6) O conhecimento imediato desse tipo de relação intencional

caracteriza a origem de todo conhecimento moral.

O esquema acima, inspirado nas indicações de Kraus e Chisholm,

não pode ser totalmente compreendido se as três questões seguintes não

forem respondidas. São elas: (a) de que modo Brentano analisou as noções

modernas de „fins‟ e „meios‟?; (b) de que modo ele reformulou e relacionou tais

noções, ao concebê-las como um tipo específico de relação intencional própria

do contexto da filosofia do psíquico?; (c) de que modo a descrição da relação

entre meios e fins, caracterizada como um tipo de relação intencional da

consciência, origina todo o conhecimento moral? Se quisermos antecipar a

solução da nossa tese e apresentar uma única resposta para as três questões,

podemos dizer que Brentano reformulou as noções de meios e fins para poder

descrevê-las como partes de uma relação intencional da consciência. Por quê?

Porque, desse modo, Brentano pôde descrever a percepção interna do

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37

fenômeno psíquico de preferência como o conhecimento imediato da origem de

todo o conhecimento moral. Existem, no entanto, alguns detalhes que exigem

esclarecimentos.

Para compreendermos os detalhes envolvidos na argumentação

brentaniana, contextualizaremos primeiramente a análise dos conceitos de

„meios‟ e „fins‟, tal como foi apresentada na obra Origem do conhecimento

moral. Em seguida, apresentaremos o modo como Brentano propôs a

retomada da relação entre meios e fins no contexto da filosofia do psíquico.

Em sua análise acerca da noção de „meios‟, Brentano afirmou o

seguinte:

Os meios a que recorremos para conseguir um fim podem ser (a) diferentes e podem ser (b) justos ou injustos. (c) São justos os meios realmente aptos para nos conduzir ao fim

55.

Trata-se aqui de uma estratégia argumentativa brentaniana que

tomou como ponto de partida um elemento da ética racionalista moderna. Esse

elemento foi expresso por Kant na Fundamentação da metafísica dos costumes

(por meio da máxima “quem quer os fins, quer os meios”), no momento em que

Kant descreve e recusa a estrutura dos imperativos hipotéticos como

fundamento da moralidade56.

Para compreender o que Brentano pretendeu reestruturar é

interessante comparar o seguinte esclarecimento kantiano em uma passagem

da Fundamentação da metafísica dos costumes:

Quem quer os fins, quer também (na medida em que a razão tem influxo decisivo sobre as ações) os meios indisponivelmente necessários de alcançá-lo, e que estão em seu poder. Esta proposição é, no que diz respeito ao querer, analítica, porque o ato de querer um objeto, efeito de minha atividade, supõe já a minha causalidade, como causalidade de uma causa agente, isto é, o uso dos meios.

57

55

„Die Mittel, die wir ergreifen, um zu einem Zwecke zu gelangen, können verschieden und können bald

die richtigen, bald unrichtige Mittel sein. Richtig werden sie dann sein, wenn sie wirklich zu dem

Zwecke zu führen geeignet sind“. Brentano, Franz. Vom Ursprung Sittlicher Erkenntnis, p. 15.

56 Kant, Immanuel, Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 79.

57 Idem, Ibidem.

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38

A sutileza da argumentação kantiana consistia em demonstrar que

havia uma contradição teorética em supor a volição do fim sem que fosse

suposta imediatamente a volição do meio que o efetivasse, pois Kant entendia

que a atividade da vontade finita era sempre um dever e, no caso dos

imperativos hipotéticos, quem quisesse os fins deveria (necessariamente)

querer os meios para obtê-los, uma vez que a volição dos primeiros implicaria a

volição dos últimos. Por isso Kant concluiu que a necessidade teorética dos

imperativos hipotéticos demonstrava a possibilidade, ou as condições de

validade, desses imperativos. É, no entanto, fundamental explicitarmos o que

estava pressuposto, na argumentação kantiana, como base da sustentação

dessa tese.

Segundo Kant, em todo ato de querer um determinado fim, o fim que

se quer e a atividade de alcançá-lo são uma e a mesma coisa, pois, dizia ele,

“[...] representar-me uma coisa como um efeito que eu posso produzir de certo

modo, e representar-me a mim mesmo, em relação a este feito, como agindo

do mesmo modo, é de fato uma e a mesma coisa”58. Isso significava que a

atividade da vontade, ou seja, a espontaneidade prática da razão, ao constituir

o fim que se quer (chamado efeito), estabelece imediatamente os meios de

obtê-lo (chamado causa). Tratava-se, portanto, da descrição da relação entre

meios e fins a partir da categoria da relação (causalidade – dependência).

Para Brentano, essa descrição analítica da atividade espontânea da

vontade era apenas uma parte da ficção resultante do sistema kantiano, pois,

seguindo esse caminho, Kant não pôde apresentar a evidência empírica que

deveria sustentar as categorias do entendimento, bem como a origem empírica

de todo e qualquer conceito. A recusa de Brentano ao modo de análise

kantiano foi apresentada por meio das seguintes palavras:

Os conceitos “Querer”, “Concluir”, não são adquiridos por intuições sensíveis, a não ser que se tome o conceito de “Sensível” com uma generalidade tamanha que fique anulada toda distinção entre “Sensível” e “Supra-sensível”. Tais conceitos se originam em intuições de conteúdo psíquico. Da mesma origem procedem os conceitos de “Fim”, “Causa” (admitimos, por exemplo, entre nossa crença nas premissas e nossa crença na conclusão, uma relação causal), “Impossibilidade”, “Necessidade” (a adquirimos de juízos que não afirmam nem negam simplesmente de modo assertórico, mas,

58

Idem, Ibidem.

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39

como dizemos habitualmente, de modo apodítico), e muitos outros que alguns filósofos modernos, não tendo conseguido descobrir sua verdadeira origem, consideram como categorias dadas imediatamente

59.

O que Brentano estava delineando, portanto, separava-se totalmente

da proposta kantiana, pois não se tratava de explicitar a correlação entre meios

e fins determinada por um princípio de causalidade. Para essa análise do

psíquico, tratava-se, fundamentalmente, da descrição da relação intencional (a

qual foi explicitada nas últimas obras brentanianas como relação parte – todo)60

que envolve a atividade (psíquica) de eleição do meio necessário para a

obtenção do fim, diante da existência de uma diversidade de meios.

Entenda-se, no entanto, e é fundamental que isso seja ressaltado,

que o ponto central da análise brentaniana estava na consciência acerca do ato

psíquico de escolha desse meio, com o intuito de descrever o modo como se

dava o conhecimento da adequada ou justa escolha desse meio. Em outras

palavras, para Brentano existia uma relação intrínseca e imediata entre a

justeza do ato psíquico de escolha e a consciência acerca desse ato. Assim,

Brentano deslocou a questão acerca da eleição de um meio justo para a

questão acerca da natureza cognoscível da justa eleição desse meio. Segundo

59

„Die Begriffe ‚Wollen„, ‚Schließen„ werden nicht aus sinnlichen Anschauungen gewonnen; man müßte

denn den Begriff ‚sinnlich„ so allgemein fassen, daß aller Unterschied von ‚sinnlich„ und

‚Übersinnlich„ sich verwischte. Sie stammen aus Anschauungen psychischen Inhalts. Ebendaher

stammen die Begriffe ‚Zweck', ‚Ursache„ (wir bemerken z. B. zwischen unserem Glauben an die

Prämissen und unserem Glauben an den Schlußsatz eine ursächliche Beziehung), ‚Unmöglichkeit„ und

‚Notwendigkeit„ (wir gewinnen sie aus Urteilen, welche etwas nicht einfach assertorisch, sondern, wie

man sich auszudrücken beliebt, apodiktisch anerkennen oder verwerfen) und viele andere, welche

manche Moderne, denen die Erforschung des wahren Ursprungs mißlang, als von vornherein gegebene

Kategorien betrachten wollten“. Brentano, Franz. Vom Ursprung Sittlicher Erkenntnis, p. 53-54, nota

18.

60 É interessante antecipar aqui as seguintes observações de Liliana Albertazzi. “Another significant

aspect of Brentano‟s ethical analysis concerns value from the standpoint of the part/whole relation.

This analysis was subsequently reprised and developed by Husserl and Moore and it relates to the

difference between summmative wholes and organic wholes. Brentano argues that a whole made up of

goods is better than each of its parts. From this point of view, Brentano’s ethics is not mere a

mereological ethics in which the parts are what really matter. Each value whole is a point of

arrival which does not require further integration because a part is always a function of the

whole. The second point concerns the relationship between different wholes which are not parts of

each other. Brentano states that “One good is preferred to another good which is not a part of it but is

equal in every respect to a determination of its parts”. In other words, two value wholes are

comparable in respect to the quantity of value only if they are made up of values of the same kind.

From this point of view, it is impossible to conduct universal comparison among values, since these are

only comparable with respect to a particular region or category of value. A category of value consists

of those values that can join together in an organic whole: that is, a whole which is different from the

sum of its parts”. Albertazzi, Liliana, Immanent realism: an introduction to Brentano, p. 300.

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a análise de Chisholm, encontrava-se aqui o abandono do problema imposto

pela noção de „relação meio-fim‟ e iniciava-se o problema da cognição imediata

da „relação parte-todo‟, que seria esclarecido plenamente no trabalho póstumo

intitulado Sobre a consciência sensória e noética61. No momento, interessa-nos

o fato de que, no escopo da obra brentaniana de 1889, essa relação intrínseca

e imediata entre meio e fim foi chamada de consciência da preferência do

moral sobre o imoral ou, como apresentaremos detalhadamente no último

capítulo, fenômeno psíquico de preferência. É exatamente essa indicação que

encontramos no seguinte comentário:

E, assim, há de ser certa [consciência da] justeza interior aquilo que constitui a [consciência da] preferência essencial de certos atos da vontade sobre outros atos, sobre atos opostos, e aquilo que constitui

a preferência do moral sobre o imoral62

.

61

Segundo a análise de Chisholm, Brentano se vale de um caminho iniciado por Leibniz para solucionar a

falta de base empírica do conhecimento da relação de causa e efeito. A solução está, diz Chisholm, em

reconhecer a distinção entre vontade antecedente e vontade consequente como uma distinção própria

do ato psíquico de vontade. “According to the traditional distinction between antecedent will and

consequent will, one's attitude toward a compound situation is a consequence of one's attitude toward

its various components. The attitude toward the component states was referred to as one's antecedent

will; and the resulting attitude toward the compound state was referred to as a consequent will. Thus

Leibniz mentions the view of certain Christians, according to which God wills to save all men

according to his antecedent will, but not according to his consequent. The distinction enables him to

say that evil is never the object of God's antecedent will; it is, rather, part of the object of God's

consequent will. Brentano's version of this distinction is not, strictly speaking, a distinction between

types of willing, for he introduces the concept of will only at a later stage. His distinction pertains to

antecedent and consequent attitudes: There may be an antecedent and consequent pro attitude and there

may be an antecedent and consequent anti attitude. For example, a certain pleasurable activity may be

the object of an antecedent pro attitude. Considering just that object - considering it in and for itself

and as if alone - I desire the object as an end in itself. I may then consider the possibility of bringing

about that object. If I am reasonable, I will also consider the wider situation that, according to my

evidence, is most likely to result if I should try to bring about the pleasurable situation. The wider

situation includes the pleasurable activity as only one of its parts. It will also include any difficulties

that are thought to be involved in bringing about this activity, as well as the consequences one thinks

would result from this activity. Brentano observes that the antecedent attitudes may be distinguished

from the consequent attitudes in the following way. There is no irrationality or inconsistency in making

incompatible things the objects of one's antecedent attitudes. A person contemplating a career may

look favorably upon being a doctor and not a lawyer; and he may also look favorably upon being a

lawyer and not a doctor. There may thus be many such objects of the antecedent attitude. But there can

be only one object of the consequent attitude. Brentano says that, if a wider whole is loved in and for

itself, then any part of that whole is loved implicitly - even though that part may be hated in and for

itself. And he says that, if a wider whole is hated in and for itself, then any part of that whole is hated

implicitly - even though that part may be loved in and for itself”. Chisholm, Roderick M. Brentano and

Intrinsic Value, p. 20-21.

62 „Und so wird es denn auch eine gewisse innere Richtigkeit sein, welche den wesentlichen Vorzug

gewisser Akte des Willens vor andern und entgegengesetzten und den Vorzug des Sittlichen vor dem

Unsittlichen ausmacht“. Brentano, Franz. Vom Ursprung Sittlicher Erkenntnis, p. 3-4.

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41

Uma descrição análoga à escolha dos meios foi apresentada por

Brentano em sua análise da noção de „fins‟. Brentano também apresentou essa

descrição com o propósito de elucidar o estatuto exclusivamente psíquico de

todo e qualquer fim que pudesse existir.

Em certo sentido, Brentano recusou a noção moderna de fim em si

ou fim absoluto ao considerar que “[...] também os fins, os mais próprios e

últimos fins, podem ser diferentes”63. Partindo desse ponto, ele estabeleceu

que, sendo os fins últimos diferentes, também entre os próprios fins últimos

caberia eleição, pois “[...] esta eleição, dado que o fim último é o princípio que

dá a medida para tudo, é a mais importante de todas”64. Em outras palavras, ao

recusar a noção moderna de fim em si ou fim absoluto, Brentano pôde

equiparar analogamente a escolha dos fins à escolha dos meios e, também de

modo análogo, afirmar que o ponto central da análise estava na consciência

acerca do ato psíquico de escolha desse fim, pois o caráter em si do fim

elegido explicitava-se pela sua adequação ou justeza da sua escolha (que seria

um ato psíquico).

Assim como na análise dos meios, existiria aqui também uma

relação intrínseca e imediata entre a justeza do ato psíquico de escolha e a

consciência acerca desse ato. Assim, portanto, Brentano também deslocou a

questão acerca da eleição de um fim justo para a questão acerca da natureza

cognoscível da justa eleição do fim. Desse modo, assim como na análise da

escolha dos meios, também o problema ontológico e epistemológico da

escolha do fim em si foi trazido para o âmbito da análise do psíquico. E,

justamente nesse âmbito de análise, a questão acerca da natureza da eleição

dos fins justos foi tomada por Brentano como o conhecimento da justa

preferência ou do fenômeno psíquico da preferência.

Com base nessas distinções, Brentano pretendeu ter aberto o

caminho que o distanciou cada vez mais do subjetivismo moral sentimentalista,

que até mesmo a sua Psicologia do ponto de vista empírico não havia

63

„Aber auch die Zwecke, und zwar die eigentlichsten und letzten Zwecke, können verschieden sein“.

Brentano, Franz. Vom Ursprung Sittlicher Erkenntnis, p. 15.

64 „Also das steht fest: auch die letzten Zwecke sind verschieden; auch zwischen ihnen schwebt die Wahl;

und sie ist - da der letzte Zweck ein für alles maßgebendes Prinzip ist - die wichtigste unter allen“.

Brentano, Franz. Vom Ursprung Sittlicher Erkenntnis, p. 15.

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42

resolvido. Em outras palavras, para além dos motivos éticos fundados no

sentimento moral aos quais só foi possível atribuir a designação de crença,

Brentano apresentou o modo de conhecer a própria atividade psíquica de

preferir. Foi, portanto, o conhecimento do fenômeno psíquico de preferência

que recebeu a designação de motivo ético justo, pois o conhecimento desse

fenômeno estabeleceu o único sentido do termo sanção que Brentano

considerou válido. Tal como ele mesmo afirmou, “[...] a crença em dita

preferência é um motivo ético. O conhecimento de dita preferência é o motivo

ético justo, a sansão que confere consistência e validez à lei ética”65.

Esses pontos apresentados indicaram apenas que o conhecimento

da preferência se tornou a questão central da ética brentaniana a partir de

1889. Mesmo assim, no entanto, nossa apresentação não se deteve

suficientemente na exposição do modo como o fenômeno psíquico de

preferência origina o conceito de melhor e os demais conceitos éticos. Vejamos

como esse problema foi introduzido.

O problema da origem do conceito dos conceitos éticos foi colocado

por Brentano na Origem do conhecimento moral por meio das seguintes

questões:

Qual o fim é justo? Por qual deve ser decidido nossa eleição? Quando o fim está estabelecido e se trata apenas de eleger os meios, diremos “elege meios que, realmente, conduzam ao fim“. Mas quando se trata de eleger os fins, diremos “elege um fim que, razoavelmente, possa ser considerado como realmente exeqüível”. Mas esta resposta não é suficiente. Existem coisas exeqüíveis que devemos muito mais de evitar que não procurar. “Elege, pois, o melhor entre o acessível!” Esta será a única resposta conveniente. No entanto, esta resposta é obscura. O que significa isso “O melhor”? O que geralmente nós chamamos “Bom”? E como adquirimos o conhecimento de que uma

coisa é boa é melhor que a outra? 66

65

„Der Glaube an diesen Vorzug ist ein ethisches Motiv; die Erkenntnis dieses Vorzugs das richtige

ethische Motiv, die Sanktion, welche dem ethischen Gesetze Bestand und Gültigkeit verleiht“.

Brentano, Franz. Vom Ursprung Sittlicher Erkenntnis, p. 3-4.

66 „Welcher Zweck ist richtig? Für welchen soll sich unsere Wahl entscheiden? Wo der Zweck feststeht

und es sich nur um die Wahl von Mitteln handelt, werden wir sagen: wähle Mittel, die wirklich zu dem

Zwecke führen! Wo es sich um die Wahl von Zwecken handelt, werden wir sagen: wähle einen Zweck,

der vernünftigerweise für wirklich erreichbar zu halten ist. Aber diese Antwort genügt nicht; manches

Erreichbare ist vielmehr zu fliehen als zu erstreben: wähle das Beste unter dem Erreichbaren! Das wird

also allein die entsprechende Antwort sein. Aber sie (die Antwort) ist dunkel; was heißt das ‚das

beste„? Was nennen wir überhaupt ‚gut„? Und wie gewinnen wir die Erkenntnis, daß etwas gut und

besser ist als ein anderes?“. Brentano, Franz. Vom Ursprung Sittlicher Erkenntnis, p. 15 - 16.

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Brentano utilizou um argumento aparentemente circular, pois ele

supôs um modo justo de preferir e deslocou a indagação acerca do fim justo

para a um leque de possibilidades onde a resposta foi “elege aquilo que é o

melhor”. Ocorre, no entanto, que o ponto principal está no fato de que a

argumentação brentaniana exigiu uma definição eficiente do conceito de

melhor. Desse modo, a aparência de circularidade argumentativa se desfaz ao

apontar a necessidade de se elucidar a origem do conceito. Assim, tal como

havia feito ao deslocar a descrição dos conceitos de „fins‟ e „meios‟ para o

âmbito da atividade psíquica, Brentano também remeteu a descrição da origem

do conceito de „melhor‟ para o âmbito da atividade da consciência. Em outras

palavras, a origem do conceito de „melhor‟ resultaria da descrição de sua

experiência intuitiva concreta, ou seja, no modo como a filosofia do psíquico

descreveu o fenômeno psíquico da preferência.

Apresentaremos, de modo breve, a problematização brentaniana

dos fundamentos da ética encontrados na psicologia e o modo como ele que

retoma os conceitos de „bem‟ e „melhor‟.

1.4 A esfera psíquica da existência do bem: o erro de Aristóteles.

Desde a apresentação da Psicologia do ponto de vista empírico,

Brentano estava convicto de que a perspectiva empírica era a única via capaz

de explicitar os fundamentos do ramo teórico da filosofia67. Foi nessa

perspectiva que o problema da ética foi retomado na Origem do conhecimento

moral. Assim, ao indagar sobre “o que devemos aspirar? Qual fim é justo? Qual

67

“O título que atribuí à minha obra explicita por si mesmo o objeto e o método. Em psicologia eu me

coloco no ponto de vista empírico. Meu único mestre é a experiência. Eu compartilho, portanto, com

outros filósofos, a convicção que certa fonte de ideal não é incompatível com este ponto de vista”.

[„Die Aufschrift, die ich meinem Werke gegeben, kennzeichnet dasselbe nach Gegenstand und

Methode. Mein Standpunkt in der Psychologie ist der empirische: die Erfahrung allein gilt mir als

Lehrmeisterin: aber mit anderen teile ich die Überzeugung, daß eine gewisse ideale Anschauung mit

einem solchen Standpunkte wohl vereinbar ist“]. Brentano, Franz. Psychologie vom empirisch

Standpunkt, Erster Band, p. 1.

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é injusto?” e relembrar que, “como Aristóteles já nos fez notar, esta é a

pergunta mais própria e fundamental da ética”68, Brentano tinha como propósito

apontar a origem empírica dos conceitos da filosofia prática. Em outras

palavras, tratava-se de explicitar a origem dos conceitos práticos que

estruturam a ética, a partir da descrição das representações intuitivas

concretas que os constituem. Tratava-se, portanto, de demarcar a esfera de

origem de todo e qualquer conceito a partir da experiência que os

fundamentava69. Vejamos, por exemplo, como ele se referiu à possibilidade do

conhecimento acerca da origem do conceito de Bom e estendeu esse critério

de conhecimento para todo e qualquer conceito:

Para responder esta pergunta (acerca do problema fundamental da ética) de modo satisfatório devemos, primeiramente, indagar pela origem do conceito de bom, que, como a origem de todos nossos conceitos, deve estar em certas representações concretas intuitivas. Nós temos representações intuitivas de conteúdo físico que nos mostram qualidades sensíveis, determinadas espacialmente de modo particular. Desta esfera procedem os conceitos de cor, som, espaço e muitos outros. Mas, o conceito de bom não têm sua origem nesta esfera. É fácil reconhecer que este conceito, como o de verdadeiro - que em função da afinidade existente entre ambos aproximam-se razoavelmente -, procede das representações intuitivas de conteúdo

psíquico70

.

Esse argumento de Brentano apresenta a relação existente entre a

filosofia do psíquico e a ética ou, de modo mais preciso, a dependência da

ética para com a psicologia. Assim, ele ressalta o fato de que as mudanças e

68

„Was soll ich erstreben? Welcher Zweck ist richtig, welcher unrichtig? Das ist darum, wie schon

Aristoteles hervorhebt, die eigentlichste und hauptsächlichste Frage der Ethik“. Brentano, Franz. Vom

Ursprung Sittlicher Erkenntnis, p. 15 - 16.

69 Se, por um lado, a extensão da proposta brentaniana tem a pretensão de oferecer os fundamentos para a

elaboração de uma nova tábua de categorias, por outro lado, ele insiste que se trata da retomada de

questões apresentadas pelo filósofo de Estagira: “Aristóteles já conhecia esta verdade (conferir, por

exemplo, De Anima, III, 8). A idade média a manteve, mas não lhe atribuiu expressão feliz no

princípio: nihil est in intellectu quod non prius fuerit in sensu”. [„Schon Aristoteles war diese

Wahrheit bekannt (vergl. z. B. De Anim. III, 8). Das Mittelalter hielt sie fest, drückte sie aber nicht

glücklich aus in dem Satze: nihil est in intellectus, quod non prius fuerit in sensu“]. Brentano, Franz.

Vom Ursprung Sittlicher Erkenntnis, p. 53-54, nota 18..

70 „Um diese Fragen in befriedigender Weise zu beantworten, müssen wir vor allem den Ursprung des

Begriffs des Guten aufsuchen, der, wie der Ursprung aller unserer Begriffe, in gewissen konkret

anschaulichen Vorstellungen liegt. Wir haben anschauliche Vorstellungen physischen Inhalts; sie

zeigen uns sinnliche Qualitäten, in eigentümlicher Weise räumlich bestimmt. Aus diesem Gebiet

stammen die Begriffe der Farbe, des Schalles, des Raumes und viele andere. Der Begriff des Guten

aber hat nicht hier seine Quelle. Es ist leicht zu erkennen, daß er, wie der des Wahren, der ihm als

verwandt mit Recht zur Seite gestellt wird, den anschaulichen Vorstellungen psychischen Inhalts

entnommen ist“. Brentano, Franz. Vom Ursprung Sittlicher Erkenntnis, p. 16.

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as correções que Brentano apresentou na sua filosofia do psíquico tiveram

implicação direta na fundamentação da sua ética da preferência. Vejamos qual

foi o principal problema para a ética brentaniana estabelecido pela filosofia do

psíquico apresentada na obra Psicologia do ponto de vista empírico.

Ao analisar o modo como a Psicologia do ponto de vista empírico

ofereceu os fundamentos para a ética, Brentano reconheceu, indiretamente,

que ela incorporou um erro presente na ética aristotélica. A saber, a definição

aristotélica de bem em si. Assim, na elaboração da obra Origem do

conhecimento moral, Brentano apresentou um novo modo de conceber a noção

de bem em si e atacou o estagirita pelo fato de ter deixado escapar esse ponto.

Para entendermos esse problema, será preciso responder às seguintes

questões: Qual foi o erro que Aristóteles teria cometido e a filosofia

brentaniana do psíquico teria incorporado em 1874? Como esse erro pôde

ser solucionado em 1889 e por que essa solução permitiu a descrição da

experiência intuitiva concreta, presente no fenômeno psíquico da preferência?

O problema pode ser apresentado de modo objetivo. Segundo

Brentano, Aristóteles não percebeu que o bem em si deveria ser tomado no

sentido unitário estrito. Segundo ele, o estagirita equivocadamente tomou o

conceito unitário de bem em si a partir da sua noção de unidade por analogia.

Ou, nas palavras do próprio Brentano:

O conceito de bem (em si) é, assim, um conceito unitário em sentido estrito e, não como Aristóteles ensinava (em conseqüência de uma confusão que trataremos adiante), unitário em sentido meramente

análogo71

.

Esse é um ponto extremamente sutil, pois a crítica a Aristóteles é

fundamentalmente uma autocrítica. Veremos, no segundo capítulo, que

Brentano não havia se dado conta de que o conceito aristotélico de bem em

sentido análogo eliminava a possibilidade de uma fundamentação empírica da

ética na Psicologia do ponto de vista empírico. Em outras palavras, esse

conceito aristotélico de bem precisou ser reformulado e, só então, Brentano

71

„Der Begriff des (in sich selbst) Guten ist hiernach ein einheitlicher im strengen Sinne und nicht, wie

Aristoteles (infolge einer Verirrung, auf die wir noch zu sprechen kommen werden) lehrte, bloß in

analoger Weise einer“. Brentano, Franz. Vom Ursprung Sittlicher Erkenntnis, p. 62, nota 26.

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pôde descrever o fenômeno psíquico de preferência como uma representação

intuitiva concreta originária do conceito de melhor.

Ora, se de fato foi assim, cabe aqui um esclarecimento acerca do

motivo pelo qual o bem concebido como uma unidade de analogia inviabilizou a

possibilidade de fundamentar a ética da preferência na Psicologia do ponto de

vista empírico.

Em suas análises para a formulação das teorias que embasaram A

Origem do conhecimento moral (1889), Brentano confessou ter se dado conta

tardiamente do erro cometido por Aristóteles na fundamentação ontológica de

sua ética. De modo pontual, Brentano atribuiu a Aristóteles o exagero de ter

avançado para além da atividade psíquica, ao caracterizar o objeto correlato de

todo ato de desejo. A análise brentaniana ressaltou que, na interpretação

aristotélica, o status do bem em si era análogo ao status do objeto da

Metafísica. A dificuldade consistia no fato de que tal interpretação remetia à

famosa regressão ad infinitum, na medida em que seu status ontológico teria

que ser conhecido antecipadamente de algum modo72. Essas considerações

estão explícitas nos seguintes comentários:

Particularmente, é interessante o fato - que eu notei tardiamente - de que Aristóteles une o subjetivismo moral com o lógico de Protágoras, para refutá-los conjuntamente (Metafísica, K, 6, 1062, b 16-1063 a 5). Em contrapartida, as linhas que se seguem imediatamente dão a entender que Aristóteles caiu na tentação (sem dúvida bem explicada) de acreditar que conhecemos o bom como bom, independente da comoção da atividade sentimental (Ibidem, 29,

conferir De Ânima III, 9 e 10)73

.

Essa crítica brentaniana a Aristóteles tem um ponto muito sutil.

Brentano não acusou o estagirita tendo em vista aquilo que sua ética fez. Pelo

contrário, a acusação brentaniana apontou exatamente aquilo que a ética

aristotélica não conseguiu fazer, ao considerar que “[...] conhecemos o bom

72

Conferir especialmente a última parte da extensa nota 28 em Brentano, Franz. Vom Ursprung Sittlicher

Erkenntnis, p. 78.

73 „Interessant ist es insbesondere, daß (was ich erst nachträglich bemerkte) schon er den ethischen

Subjektivismus mit dem logischen des Protagoras zusammenstellt und beide gleichmäßig verwirft.

(Metaph. K, 6 p. 1062 b 16 und 1063 a 5.) Dagegen scheint es nach den nächstfolgenden Zeilen, als ob

Aristoteles der allerdings begreiflichen Versuchung erlegen sei, zu glauben, wir erkännten das Gute als

gut, unabhängig von der Erregung der Gemütstätigkeit (ebend. 29; vgl. De Anim. III, 9 u. 10)“.

Brentano, Franz. Vom Ursprung Sittlicher Erkenntnis, p. 78, nota 28.

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como bom, independente da comoção da atividade sentimental”74. Assim,

Brentano considerou que a ética aristotélica foi indiretamente responsável por

dois problemas filosóficos.

Em primeiro lugar, ela foi indiretamente responsável pela

impossibilidade de refutação total do subjetivismo protagórico e, por isso, ela

implicou o fortalecimento do subjetivismo moral75. Em segundo lugar, ela

obscureceu aquilo que Brentano colocou como noção central da ética, a saber,

o conhecimento da justeza (análoga à evidência dos atos de juízo) que

caracteriza o ato psíquico de amor e ódio, bem como o ato psíquico de

preferência. Em resumo, a interpretação de Brentano considerou que o

conceito aristotélico de bem em si revigorou o subjetivismo moral, na medida

em que não deu conta de explicitar a atividade psíquica própria do amor (ou da

74

Não se trata de uma consideração válida para a totalidade das obras aristotélicas ou mesmo para a

totalidade dos argumentos do estagirita. De fato, para Brentano, o corpus aristotélico oferece várias

passagens que, tomadas isoladamente, afirmam teses opostas à tese central. “Se deixamos de lado os

aristotélicos medievais e consideramos a própria doutrina de seu mestre, esta parece muito diferente.

Aristóteles reconhece que existe um apetite justo e outro injusto ( ), e

que o apetecido ( não é sempre o bom (

declara na Ética a Nicômaco, com o respeito ao prazer ( ), que nem todo prazer é bom, que

existe prazer no mal, prazer esse que é por sua vez mal (Ética a Nicômaco, X, 2). Na Metafísica

distingue uma espécie superior e outra inferior de desejo (( e e afirma que

aquilo que a espécie superior deseja por si mesmo é verdadeiramente bom (Metafísica

28). Aqui existe certa a aproximação com a concepção verdadeira. (...) Mas, Aristóteles está de acordo

com a verdadeira doutrina da origem de nosso conceito e conhecimento do bem quando, na ética a

Nicômaco (X, 2), refutando a opinião de que a alegria não pertence ao bem, acrescenta como

argumento que todos apetecem a alegria. E, acrescenta, „Pois, se apenas os irracionais a apetecessem,

existiria alguma justificação para refutar este fundamento. Mas, se também os a racionais o fazem,

como dizer algo contrário?‟. Essa manifestação também pode se relacionar com sua opinião errônea”.

[„Blicken wir von den mittelalterlichen Aristotelichen auf ihren Meister selbst zurück, so scheint seine

Lehre eine andere. Aristoteles erkennt an, daß es ein richtiges und ein unrichtiges Begehren

( ) gebe, und daß das Begehrte ( ) nicht immer das Gute

( ) sei. (De Anim. III, 10.) Ebenso erklärt er bezüglich der Lust ( ) in der

Nikomachischen Ethik, nicht jede sei gut; es gebe eine Lust am Schlechten, welche selbst schlecht sei

(Eth. Nikom. X, 2). In der Metaphysik unterscheidet er eine niedere und höhere Art von Begehren

( e ; was die höhere um seiner selbst willen begehre, sei in Wahrheit gut

(Metaph. , 7 p. 1072 a 28). Eine gewisse Annäherung an die richtige Anschauung dürfte hier bereits

erreicht sein. (...) Besser stimmt es mit der wahren Lehre vom Ursprung unseres Begriffes und unserer

Erkenntnis des Guten, wenn er Eth. Nikom. X, 2 gegen die Annahme, daß die Freude nicht zu dem

Guten gehöre, als Argument gelten läßt, daß alles nach ihr begehre, und beifügt: 'denn wenn nur die

unvernünftigen Wesen danach begehrten, so enthielte die Verwerfung dieser Begründung wohl eine

gewisse Berechtigung, wenn nun aber auch die vernünftigen es tun, wie sollte sich noch etwas dagegen

sagen lassen?' Doch läßt sich auch dieser Ausspruch mit seiner falschen Ansicht vereinigen“].

Brentano, Franz. Vom Ursprung Sittlicher Erkenntnis, p. 78, nota 28.

75 “Considerado a partir deste ponto de vista, Hume, o moralista do sentimento, aparece com vantagem

(sobre Aristóteles). Pois, pergunta com razão, como podemos conhecer que algo deve ser amado, se

não temos a experiência do amor?” [„Von dieser Seite betrachtet, erscheint der Gefühlsmoralist Hume

ihm gegenüber im Vorteil, welcher mit Recht betont: wie soll man erkennen, daß etwas zu lieben ist,

ohne die Erfahrung der Liebe?“]. Brentano, Franz. Vom Ursprung Sittlicher Erkenntnis, p. 79, nota 28.

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preferência) caracterizado como justo. Desse modo, Brentano concluiu que o

estagirita não evitou que se concebesse indistintamente, tanto o amor

caracterizado como justo, como o amor não caracterizado como justo76, e, por

isso, não superou o subjetivismo moral. Vejamos:

Segundo a análise brentaniana, esse único erro do estagirita gerou a

impossibilidade de se explicitar essa atividade psíquica fundamental para a

ética, no entanto sua análise mostrou que dois grupos de filósofos

sentimentalistas se valeram desse erro para formular os fundamentos da ética

tomando por base o subjetivismo moral: “Os primeiros, disse ele,

compreendem a coisa dizendo que todo agrado está caracterizado como justo.

Os segundos, dizendo que nenhum agrado está caracterizado como justo”77.

A análise brentaniana considerou que o segundo grupo tentou anular

por completo o conceito de bem como justamente agradável, descartando

qualquer atividade psíquica análoga a um conhecimento evidente do agrado.

Por esse motivo, esse segundo grupo entendeu que “[...] o termo 'digno de ser

desejado' (diferentemente de „desejável‟) seria um termo sem sentido”78. De

modo contrário, a análise brentaniana acerca dos fundamentos subjetivistas

tomados pelo primeiro grupo considerou que “[...] continua subsistindo o 'digno

de ser desejado' como um conceito especial, de modo que não há tautologia

em dizer: nada é desejável em si mesmo, que não seja em si mesmo digno de

ser desejado79, ou seja, bom”80.

76

Brentano, Franz. Vom Ursprung Sittlicher Erkenntnis, p. 78, nota 28.

77 „Die einen fassen die Sache so, als sei alles Gefallen, die anderen so, als sei kein Gefallen als richtig

charakterisiert“. Brentano, Franz. Vom Ursprung Sittlicher Erkenntnis, p. 73, nota 28.

78 „„Begehrenswert„ im Unterschied von ‚begehrbar„ ist ein Wort ohne Sinn. Brentano, Franz. Vom

Ursprung Sittlicher Erkenntnis, p. 73, nota 28.

79 “É patente que, sendo conseqüentes, deveriam ter sustentado isto e, de fato, assim o ensinaram. Aqui os

hedonistas têm o seu ponto extremo, e com eles, muitos outros. Por exemplo, na idade média encontra-

se a doutrina de São Tomás de Aquino, cuja grandeza foi novamente honrada por Ihering (v. Sum.

Theol., 1ª, q. 80 e q. 82, art. 2, ad 1)“. [„Offenbar müssen sie, konsequent, dieses behaupten und haben

es wirklich gelehrt. Die extremen Hedoniker gehören alle hierher, aber mit ihnen auch viele andere; im

Mittelalter z. B. findet sich die Lehre selbst bei dem von Ihering wieder in seiner Größe gewürdigten

Thomas von Aquino. (Vgl. z. B. Summ. theol., la qu. 80. qu. 82, art. 2 ad 1 u. ö.)”]. Brentano, Franz.

Vom Ursprung Sittlicher Erkenntnis, p. 73, nota 28.

80 „Den ersteren bleibt 'begehrenswert' wohl als ein besonderer Begriff bestehen, so daß es keine

Tautologie ist, wenn sie sagen: nichts ist in sich begehrbar, außer insofern es in sich begehrenswert, in

sich gut ist“. Brentano, Franz. Vom Ursprung Sittlicher Erkenntnis, p. 73, nota 28.

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Podemos, então, justificar o fato de que essa consequência do erro

de Aristóteles funcionou como pedra de toque para a construção da

argumentação brentaniana de 1889. Brentano se apoiou no fato de que essa

concepção permitiu a relativização do conhecimento da origem dos conceitos

de bem e mal. Assim, com outra face da mesma moeda, essa relativização do

conhecimento da origem desses conceitos sustentou, também, um subjetivismo

moral. Segundo a análise brentaniana81, tal subjetivismo moral era análogo ao

subjetivismo protagórico acerca dos conceitos de verdade e falsidade e, por

isso, precisou ser refutado. Desse modo, concluiu ele:

Assim como, de acordo com este subjetivista (Protágoras), na esfera do juízo cada um é a medida do todo, de modo que aquilo que é verdadeiro para um será ao mesmo tempo falso para outro. Do mesmo modo, os representantes da opinião segundo a qual apenas o bom pode ser amado e apenas um mau pode ser odiado, estão forçados propriamente a admitir que neste terreno cada um seja critério: para o bom, do que é bom em si; e para o mal, do que é mal em si. Desta maneira, uma mesma coisa seria ao mesmo tempo boa em si e má em si. Boa em si para todos os que a amam por si mesma e má em si para todos os que a odeiam por si mesma

82.

Esse subjetivismo protagórico que perpassou a maioria dos sistemas

de moral83 foi, para Brentano, o problema que sua ética dissolveu ao

apresentar a descrição da atividade psíquica própria do agrado caracterizado

como justo, frente ao agrado não caracterizado como justo. Para isso, a análise

brentaniana retornou à tese do mestre estagirita e propôs uma reformulação

81

O fundamento dessa relação de analogia entre relativismo e subjetivismo, atribuído por Brentano a

Protágoras, também deve ser concebido à luz da própria teoria brentaniana do psíquico tomada como

referência.

82 „Wie nach diesem Subjektivisten auf dem Gebiete des Urteils jeder das Maß von allem ist, so daß oft,

was für den einen wahr, für den anderen zugleich falsch sein müßte: so sind die Vertreter der Meinung,

nur Gutes könne geliebt, nur Schlechtes gehaßt werden, eigentlich genötigt anzunehmen, daß auf

diesem Gebiete jeder für alles maßgebend sei, für das Gute dafür, daß es in sich gut, für das Schlechte

dafür, daß es in sich schlecht sei, so daß oft etwas zugleich in sich gut und schlecht sein würde; in sich

gut für alle, die es um seiner selbst willen lieben, in sich schlecht für alle, die es um seiner selbst willen

hassen“. Brentano, Franz. Vom Ursprung Sittlicher Erkenntnis, p. 73-74, nota 28.

83 “A falsificação subjetivista do conceito de bem é tão reprovável como a falsificação subjetivista do

conceito de verdade e da existência em Protágoras. Mesmo que, no terreno do justamente agradável e

desagradável, o erro subjetivista se fecundou de modo mais fácil e, até o momento, tenho infectado a

maioria dos sistemas de moral”. [„Die subjektivistische Fälschung des Begriffs des Guten ebenso

verwerflich, als die subjektivistische Fälschung des Begriffs der Wahrheit und der Existenz bei

Protagoras verwerflich war, obwohl der subjektivistische Irrtum auf dem Gebiete des mit Recht

Gefallenden und Mißfallenden viel leichter Platz greift und bis heute die meisten ethischen Systeme

infiziert“]. Brentano, Franz. Vom Ursprung Sittlicher Erkenntnis, p. 74, nota 28.

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muito sutil, por entender que “[...] a tentação em que Aristóteles caiu é muito

bem explicável84”. Tratava-se, para Brentano, de corrigir tanto (1) a noção de

relação causal que determinava a concepção do amor como consequência do

conhecimento, como também (2) a noção de correspondência que determinava

o conhecimento da retidão do amor pela conformidade com sua regra. Vejamos

sua análise incisiva sobre esse ponto:

Dizia que a tentação em que Aristóteles caiu é muito bem explicável. Origina-se no fato de que juntamente com a experiência da atividade sentimental está unido concomitantemente o conhecimento da bondade do objeto. E pode ocorrer facilmente que a relação se inverta e se acredite que o amor é conseqüência do conhecimento e, ainda, que conhecemos a retidão do amor pela conformidade com

esta sua regra85

.

O ponto relevante está no fato de que a correção proposta pela

análise brentaniana se sustentou na relação intrínseca e concomitante entre

experiência da atividade sentimental e conhecimento da bondade do objeto

tomada como um fato.86 Para Brentano, portanto, foi o fato de não se

reconhecer que a experiência do amor e o conhecimento da bondade do objeto

ocorriam juntos que nos levou à “inversão” errônea cometida por seu mestre de

Estagira.

1.5 A proposta de superação do subjetivismo moral por meio da correta descrição dos fenômenos que constituem a esfera psíquica.

Ao apontar a relação análoga entre verdade e bem, Brentano tomou

sua própria teoria do psíquico como referência. Desse modo, a razão pela qual

84

„Ich sagte, die Versuchung, der Aristoteles erlegen, erscheine begreiflich”. Brentano, Franz. Vom

Ursprung Sittlicher Erkenntnis, p. 79, nota 28.

85 „Ich sagte, die Versuchung, der Aristoteles erlegen, erscheine begreiflich. Sie entspringt daraus, daß

mit der Erfahrung der als richtig charakterisierten Gemütstätigkeit auch die Erkenntnis der Güte des

Objekts immer zugleich gegeben ist. Da kann es denn leicht geschehen, daß man das Verhältnis

verkehrt und meint, man liebe hier infolge der Erkenntnis und erkenne die Liebe als richtig an der

Übereinstimmung mit dieser ihrer Regel“. Brentano, Franz. Vom Ursprung Sittlicher Erkenntnis, p. 79,

nota 28.

86 Brentano, Franz. Vom Ursprung Sittlicher Erkenntnis, p. 79, nota 28.

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o relativismo (da verdade) e o subjetivismo (do bem) são análogos e estão

concebidos na tese protagórica não deve ser procurada nos argumentos de

Protágoras ou no contexto de formulação de sua tese. Tratava-se, a partir

1889, de uma relação encontrada na descrição da unidade da consciência, ou

seja, na classificação brentaniana dos fenômenos psíquicos de representação,

de juízo e de amor ou ódio. A estratégia argumentativa brentaniana não

consistiu, no entanto, apenas na tomada da teoria ética do mestre estagirita

como boneco de palha e, indiretamente, sua teoria de 1874. Brentano

incorporou, a essa análise, uma análise acerca da teoria cartesiana do juízo

com a mesma finalidade. Em outras palavras, para descrever a justeza do ato

sentimental, a análise brentaniana apontou a existência de um erro análogo ao

de Aristóteles na teoria cartesiana dos juízos caracterizados como justos87.

Façamos aqui uma breve antecipação para estabelecer a relação entre

Aristóteles e Descartes.

Brentano considerou que Descartes não atribuiu a concepção da

justeza do juízo ao próprio ato de julgar. Por isso, Descartes precisou recorrer

às peculiaridades que envolvem as representações que estão na base do juízo

para explicitar um critério de verdade. De modo análogo, e seguindo a solução

proposta para o erro de Aristóteles, a análise brentaniana considerou que a

solução estava em corrigir a noção de correspondência, pois essa noção

determinava a concepção da verdade do juízo a partir da representação que

lhe serve de base. Vejamos como ele mesmo descreveu essa relação:

Não deixa de ser interessante comparar o erro que Aristóteles comete aqui, no que se refere à atividade sentimental caracterizada como justa, com o erro que vimos Descartes cometer com respeito ao juízo caracterizado como justo. Um e outro são essencialmente análogos. Em ambos os casos, o caráter distintivo é almejado, não no próprio ato caracterizado como justo, mas sim na peculiaridade da representação que lhes serve de base. Na verdade, parece-me que em seu tratado Des Passions existem muitas passagens que dão a entender que o próprio Descartes pensou nisto de modo muito semelhante ao de Aristóteles e essencialmente análogo à sua

doutrina do juízo evidente88

.

87

Idem, Ibidem.

88 „Es ist nicht ohne Interesse, den Fehler, den hier Aristoteles in betreff der als richtig charakterisierten

Gemütstätigkeit begeht, mit jenem zu vergleichen, dem wir bei Descartes hinsichtlich des als richtig

charakterisierten Urteils begegnet sind. Der eine ist dem anderen wesentlich analog; in beiden Fällen

wird der auszeichnende Charakter, statt in dem als richtig charakterisierten Akte selbst, vielmehr in der

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Se o problema dos erros aristotélico e cartesiano descrito pela

análise de Brentano pôde ser explicitado de modo simples, sua solução não

seguiu a mesma simplicidade. A complexidade da solução estava no fato de

que, contra toda tradição filosófica e contra sua teoria de 1874, Brentano não

apenas apresentou uma reformulação das teorias do juízo e do sentimento de

amor ou ódio, mas sustentou essas reformulações numa teoria mais radical da

verdade, resultante do abandono da teoria da in-existência intencional do

objeto. Em outras palavras, Brentano considerou que era preciso apresentar

uma teoria da verdade capaz de substituir o critério de correspondência (que

não escapa da regressão ad infinitum) pelo critério de evidência. Vejamos

como ele sistematizou o problema e preparou o terreno para a apresentação de

sua teoria ética:

Para não mencionar os que compartilham implicitamente, muitos hoje se aproximam ao erro de Descartes, acerca do que caracteriza a evidência, quando concebem a questão como se assegurassem um critério para cada juízo evidente. Assim, este critério teria que ser dado antecipadamente de algum modo, ou como conhecido - e isto nos levaria ao infinito - ou como dado na representação (e este é realmente o único que resta). Acerca disto se pode dizer no que a tentação para com semelhante erro era eminente e pode ter ajudado a enganar Descartes. O erro de Aristóteles se comete menos. Mas, é porque se dedicou menos atenção ao fenômeno da atividade sentimental caracterizada como justa que ao fenômeno do juízo caracterizado como justo. Se o primeiro era desconhecido em sua essência, o segundo não foi estudado de modo suficiente para que

fosse possível uma falsa interpretação de sua essência89

.

No cerne do problema acerca da não apreensão da justeza do juízo

e do sentimento de amor ou ódio estava a reformulação brentaniana da

descrição da estrutura da consciência apresentada inicialmente em 1874 na

Besonderheit der ihm zugrunde liegenden Vorstellung gesucht. In der Tat scheint mir in der

Abhandlung 'Les Passions' aus vielen Stellen ersichtlich, daß Descartes selbst die Sache hier ganz

ähnlich wie Aristoteles und wesentlich analog seiner Lehre vom evidenten Urteile gedacht habe“.

Brentano, Franz. Vom Ursprung Sittlicher Erkenntnis, p. 79, nota 28.

89 „Dem Irrtume Descartes' bezüglich des Charakteristischen der Evidenz kommen heutzutage viele nahe

(wenn man nicht lieber sagen will, daß sie ihn implicite geradezu teilen), wenn sie die Sache sich so

vorstellen, als halte man sich bei jedem evidenten Urteil an ein Kriterium. Dieses müßte dann

irgendwie vorher gegeben sein; entweder als erkannt - das würde aber ins Unendliche führen - oder

(und das bleibt eigentlich allein übrig) als in der Vorstellung gegeben. Auch hier kann man sagen, daß

die Versuchung zu solchem Mißgriff naheliege, und sie mag auch auf Descartes beirrend eingewirkt

haben. In den Irrtum des Aristoteles fällt man weniger; aber wohl nur darum, weil man überhaupt das

Phänomen der als richtig charakterisierten Gemütstätigkeit weniger als das des als richtig

charakterisierten Urteils in Betrachtung gezogen hat. Wenn man dieses in seinem Wesen verkannte, so

hat man jenes oft nicht einmal genügend bemerkt, um es in seinem Wesen zu mißdeuten“. Brentano,

Franz. Vom Ursprung Sittlicher Erkenntnis, p. 79-80, nota 28.

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Psicologia do ponto de vista empírico. Foi, portanto, como solução para o

problema da apreensão da justeza do sentimento, cujas raízes não se

encontravam na teoria ética ou na teoria do conhecimento, e sim na Psicologia

do ponto de vista empírico, que Brentano apresentou, em 1889, sua teoria

acerca da origem do conhecimento moral inspirada na “futura” Psicologia

descritiva.

Diante do exposto, podemos retomar o objetivo da nossa tese e

apresentar sistematicamente o modo como a fundamentação da ética emergiu

da estrutura da análise filosófica do psíquico. Para isso, trataremos de analisar

tanto o desenvolvimento da psicologia brentaniana (filosofia teórica) como

também a ética (filosofia prática), formuladas e reformuladas em função dessa

psicologia, com base nas seguintes distinções.

a) O desenvolvimento da filosofia brentaniana do psíquico:

- será analisado no capítulo II, tomando por base a noção

de in-existência intencional do objeto.

- em seguida, esse desenvolvimento será analisado no

capítulo III, tomando por base a noção de relação

intencional, constituinte de todo ato de consciência.

b) A formulação e reformulação da ética brentaniana:

- será analisada no capítulo II, tomando por base a

formulação da teoria do sentimento moral, fundada na

noção de in-existência intencional do objeto.

- em seguida, essa formulação e reformulação da ética

serão analisadas no capítulo IV, tomando por base a

formulação da teoria do conhecimento moral fundada na

noção relação intencional, constituinte da atividade da

consciência.

Embora sejam distinguidas, as análises desses dois aspectos do

desenvolvimento da filosofia do psíquico não se separam. Por isso, três

questões centrais são colocadas como norte da nossa análise:

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1) Como se estruturou a descrição brentaniana da atividade psíquica

apresentada na Psicologia do ponto de vista empírico em 1874 e, ainda, de que

modo essa estrutura psíquica fundamentou a ética do sentimento moral?

2) De que modo essa filosofia do psíquico, apresentada em 1874,

estava comprometida com os erros de Descartes e Aristóteles e, portanto,

impedida de explicitar a teoria do conhecimento moral?

3) De que modo as reformulações da filosofia do psíquico

brentaniana, antecipadas na Origem do conhecimento moral em 1889,

explicitaram, tanto a nova teoria do juízo (com base na noção radical de

verdade como evidência), como a teria do conhecimento moral?

Se quisermos apresentar uma única resposta para as três questões,

poderíamos dizer “pelo modo como a noção de „intencional‟ estabelece os

fundamentos ontológicos e epistemológicos no contexto de cada obra”, no

entanto, a complexidade que envolve essa noção exige que dediquemos pelo

menos um capítulo para cada uma dessas questões.

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CAPÍTULO II

A ÉTICA DO SENTIMENTO MORAL COMO DESCRIÇÃO DO

FENÔMENO PSÍQUICO DE AMOR E ÓDIO NAS FORMULAÇÕES TEÓRICAS DE 1874

2.1 Introdução

Argumentamos, no item 1.5 acima, que as formulações das teorias

que embasaram A origem do conhecimento moral (1889) estavam diretamente

relacionadas às correções que Brentano apresentou para a Psicologia do ponto

de vista empírico (1874). Baseando-nos em afirmações textuais de 1889,

sustentamos que a fundamentação psicológica da ética apresentada em 1874

estava equivocada, pois seguia o caminho errôneo do mestre de Estagira.

Brentano confessou não ter percebido esse erro no contexto da

formulação das suas primeiras obras. Tal erro consistia em (a) descrever o

fenômeno psíquico do amor como consequência do conhecimento (de uma

relação de causa e efeito entre objetos amados) e com base na regra que se

infere dessa relação, (b) descrever a ética como a retidão do amor que se

encontrava em conformidade com essa sua regra90. Segundo Brentano, o que

ainda não havia sido concebido pela teoria moral proposta na Psicologia do

ponto de vista empírico era “[...] o fato de que juntamente com a experiência da

atividade sentimental está unido concomitantemente o conhecimento da

bondade do objeto”.91

Estamos diante do ponto central de nossa tese. Sustentamos que

essa proposta de inversão na formulação da ética está diretamente relacionada

à inversão que Brentano apresentou na descrição da noção de relação

intencional. Seguindo a interpretação de Chisholm, tratava-se das

reformulações ontológicas e epistemológicas implicadas pela nova noção de

90

Conferir especialmente a última parte da nota 28. Brentano, Franz. Vom Ursprung Sittlicher

Erkenntnis, p. 79.

91 „Sie entspringt daraus, daß mit der Erfahrung der als richtig charakterisierten Gemütstätigkeit auch die

Erkenntnis der Güte des Objekts immer zugleich gegeben ist“. Brentano, Franz. Vom Ursprung

Sittlicher Erkenntnis, p. 79, nota 28.

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ato intencional. De modo mais específico, afirmamos que o abandono da

primeira noção de intencionalidade (descrita como in-existência intencional do

objeto tomado como correlato do ato) e a sua reformulação (como um ato

intencional da consciência referido a um objeto imanente) constituíram o

horizonte da passagem da teoria brentaniana do sentimento moral à ética como

teoria do conhecimento moral.

Para entendermos o modo como se deu essa inversão na

formulação da ética brentaniana, trataremos primeiramente de apresentar o

problema. Descreveremos o modo como a interpretação brentaniana da teoria

aristotélica do desejo, orientada pela noção de objeto intencional in-existente,

foi tomada como fundamento da teoria moral de 1874. Consequentemente,

descreveremos como o aristotelismo da própria teoria brentaniana estabeleceu

os limites para a formulação de uma ética concebida como uma teoria do

conhecimento moral. Essa exposição servirá de base para os próximos

capítulos. Em tais capítulos trataremos de descrever o modo como Brentano

propôs a dissolução desses limites éticos, ao redefinir a intencionalidade a

partir do ato psíquico. Essa proposta estava orientada por uma teoria da

verdade como evidência que se aplicava aos juízos e, de modo análogo, aos

sentimentos de amor e ódio. Em outras palavras, trataremos de descrever o

modo como as novas definições brentanianas de 1889 implicaram o abandono

(1) da noção de relação causal que determinava a concepção do amor como

consequência do conhecimento; e, também, (2) da noção de correspondência

que determinava o conhecimento da retidão do amor pela conformidade com

sua regra.

2.2 A recepção da noção aristotélica de in-existência intencional do objeto como critério de distinção das partes da alma na teoria aristotélica

É extremamente relevante considerarmos dois fatos acerca da teoria

brentaniana de 1874: (1) Brentano afirmou que sua teoria estava diretamente

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57

orientada por uma das teses aristotélicas acerca da distinção das partes da

alma. Nosso objetivo em 2.2 é esclarecer esse primeiro ponto; (2) Brentano

seguiu essa orientação aristotélica para estabelecer a sua classificação dos

fenômenos psíquicos. Nosso objetivo em 2.3 será esclarecer esse segundo

ponto. Vejamos os detalhes do primeiro ponto.

Brentano apresentou, nos textos aristotélicos, três teorias acerca da

classificação dos fenômenos psíquicos. Sua análise considerou que todas

essas teorias eram decorrentes de modos possíveis de divisão da atividade

psíquica, no entanto apenas um desses modos de divisão oferecia a condição

necessária e suficiente para a classificação positivista desses fenômenos.

Tratava-se, segundo Brentano, da diversidade de modos de referência da

consciência a um objeto intencional in-existente. Assim, importa-nos explicitar

os argumentos que justificaram sua escolha, pois Brentano reconheceu

explicitamente essa orientação por meio das seguintes afirmações:

Das classificações consideradas restam apenas as que têm por princípio divisório a diversa referência ao objeto imanente da atividade psíquica, ou a modalidade diversa de sua existência intencional. Este ponto de vista foi o que Aristóteles preferiu, em relação a todos os outros, ao ordenar a matéria. E, ainda, o ponto que vários outros pensadores desta última década adotaram, conscientemente ou não e uns mais freqüentemente que outros, ao proceder sua divisão básica dos fenômenos psíquicos. O que mais distingue os fenômenos psíquicos dos físicos é o fato de que nos primeiros algo está objetivamente inerente. Por isso é bem compreensível que as diferenças mais profundas no modo como algo lhes é objetivo constituam as melhores diferenças de classe entre eles mesmos. Quanto mais a psicologia se desenvolveu, mais se reconheceu que as propriedades comuns e as leis dependem das diferenças fundamentais no modo de se referir ao objeto, mais que quaisquer outras.

92

92

„Es bleiben von den betrachteten Klassifikationen noch diejenigen übrig, welche die verschiedene

Beziehung zum immanenten Gegenstande der psychischen Tätigkeit oder die verschiedene Weise

seiner intentionalen Existenz zum Einteilungsgrunde haben. Dieser Gesichtspunkt war es, den

Aristoteles bei der Anordnung des Stoffes vor allen übrigen bevorzugte, und den häufiger als

irgendeinen anderen auch die verschiedensten Denker späterer Zeit, mehr oder minder bewußt, bei der

Grundeinteilung der psychischen Phänomene einnahmen. Die psychischen Phänomene unterscheiden

sich von allen physischen durch nichts so sehr als dadurch, daß ihnen etwas gegenständlich inwohnt.

Und darum ist es sehr begreiflich, wenn die am tiefsten greifenden Unterschiede in der Weise, in

welcher ihnen etwas gegenständlich ist, zwischen ihnen selbst wieder die vorzüglichsten

Klassenunterschiede bilden. Je mehr die Psychologie sich entwickelte, um so mehr hat sie auch

gefunden, daß an die fundamentalen Unterschiede in der Weise der Beziehung zum Objekt sich mehr

als an irgendwelche andere gemeinsame Eigentümlichkeiten und Gesetze knüpfen“. Brentano, Franz.

Psychologie vom empirisch Standpunkt, Zweiter Band, p. 32 – 33.

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58

Para esclarecer os detalhes envolvidos nos argumentos desta

citação será preciso apresentar alguns pontos centrais da análise brentaniana.

Brentano ocupou-se, primeiramente, de analisar os principais

trabalhos que tratavam da classificação dos fenômenos psíquicos. Essa tarefa

resultou na descrição da história do debate acerca desse tema desde Platão

até Wundt, Lotze, Bain, J. S. Mill, entre outros93. Além disso, essa análise

apresentou dois pontos relevantes e complementares como resultado. Por um

lado, ela reconheceu que apenas quatro maneiras distintas de classificação

dos fenômenos psíquicos perpassaram as obras filosóficas dedicadas à

investigação do tema. Por outro lado, ela afirmou que três dessas distinções

foram apresentadas primeiramente nas obras de Aristóteles94. As palavras de

Brentano são as seguintes:

Ele (Aristóteles) havia dividido as atividades psíquicas, primeiramente, (a) na medida em que algumas estão aderidas ao corpo e outras não estão unidas a ele; (b) em seguida, pensando-as como, em parte, comuns ao homem e aos animais e, em parte, exclusivamente próprio do homem; e, por último (c) segundo a distinta modalidade de in-existência intencional ou, como poderíamos dizer, segundo a distinta modalidade da consciência. Vemos este último princípio divisório aplicado com especial freqüência em todas as épocas.

95

Segundo a análise, os critérios aristotélicos de divisão das atividades

psíquicas seriam: (a) por aderência ou não aderência ao corpo; (b) por

pertencimento exclusivo ou não exclusivo ao homem; (c) pela distinção na

93

Conferir especialmente o capítulo V do Livro II da Psicologia do ponto de vista empírico (1874) ou sua

reedição no capítulo I do Livro II da edição de 1911, intitulado Olhada sobre os primeiros ensaios de

uma classificação dos fenômenos psíquicos [Überblick über die vorzüglichsten Versuche einer

Klassifikation der psychischen Phänomene]. Brentano, Franz. Psychologie vom empirisch Standpunkt,

Zweiter Band, p. 3-27.

94 Além dos três modos aristotélicos, Brentano descreve que “a isto se agrega ainda o principio da

segunda divisão de Bain, que divide os fenômenos psíquicos em fenômenos primitivos e em

fenômenos derivados destes por evolução” [„Hierzu kommt dann noch das Prinzip der zweiten

Einteilung von Bain, welche die Psychischen Erscheinungen in primitive und in solche zerlegt, welche

sich aus primitiven entwickeln“]. Brentano, Franz. Psychologie vom empirisch Standpunkt, Zweiter

Band, p. 27. Não nos ocuparemos aqui desta divisão, uma vez que ela nos desviaria dos nossos

propósitos.

95 „Er hatte die psychischen Tätigkeiten geschieden: einmal, insofern er sie teils an dem Leibe haftend,

teils nicht an ihn gebunden glaubte; dann, insofern er sie teils dem Menschen mit den Tieren gemein,

teils ihm ausschließlich eigentümlich dachte, und endlich nach dem Unterschied der Weise der

intentionalen Inexistenz oder, wie wir sagen könnten, nach dem Unterschiede der Weise des

Bewußtseins. Das letzte Einteilungsprinzip sehen wir besonders häufig und zu allen Zeiten

angewandt“. Brentano, Franz. Psychologie vom empirisch Standpunkt, Zweiter Band, p. 27.

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modalidade de referência ao objeto intencional in-existente. Brentano apontou,

então, dois problemas: (1) o critério da aderência e o critério do pertencimento

não eram efetivamente distintos; (2) o critério da aderência e o critério do

pertencimento se valiam da percepção indireta para definir os fenômenos

psíquicos. Por questões metodológicas, apresentaremos apenas os detalhes

do primeiro problema.

Brentano sustentou que o critério da aderência (ou não aderência ao

corpo) distinguia os fenômenos psíquicos em função do seu pertencimento à

parte mortal ou à parte imortal da alma. Disse ele:

Aristóteles acreditava que certas faculdades da alma são exclusivamente próprias do homem, e as considerava imateriais. Em contra partida, considerava aquelas (faculdades) comuns aos animais como faculdades de um órgão corporal. Assim, admitindo a exatidão de suas concepções, esta divisão isola no primeiro membro aqueles fenômenos que, na natureza, aparecem isolados dos demais.

96

Em outras palavras, uma parte dos fenômenos psíquicos seria

considerada atividade do órgão central, enquanto a outra parte seria

considerada atividade imaterial desvinculada do corpo, no entanto as

atividades psíquicas não aderidas ao corpo pertenceriam exclusivamente ao

homem.

A continuação da análise brentaniana explicitou que o critério do

pertencimento está baseado na maior ou menor extensão dos fenômenos

psíquicos. O critério distinguiria as três partes da alma, tal como Brentano

descreve na citação a seguir.

Assim, ele enumera uma parte vegetativa da alma, uma sensitiva e uma intelectiva. A primeira, que abraça os fenômenos da nutrição, do crescimento e da reprodução, seria comum a todos os seres vivos terrestres, inclusive as plantas. A segunda, que abraça os sentidos e a fantasia, os outros fenômenos afins e as emoções, é segundo ele específica dos animais. Finalmente, acredita que a terceira, que compreende o pensamento superior e a vontade, é exclusivamente peculiar ao homem dentre os seres vivos terrestres

97.

96

“Denn Aristoteles glaubte gewisse Seelenvermögen dem Menschen ausschließlich eigen, und hielt diese

für immateriell, die allgemein animalischen dagegen für Vermögen eines körperlichen Organes. Es

sondert also, wenn wir die Richtigkeit seiner Anschauungen voraussetzen, jene Einteilung in dem

ersten Gliede Erscheinungen für sich ab, welche auch in der Natur von den anderen isoliert auftreten“.

Brentano, Franz. Psychologie vom empirisch Standpunkt, Zweiter Band, p. 30.

97 „Er zählt darum einen vegetativen, sensitiven und intellektiven Teil der Seele auf. Der erste, der die

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Apesar da indicação dos três modos de atividades psíquicas, a

análise brentaniana insistiu que a aplicação moderna desse critério aristotélico

estabelecia uma divisão polarizada, pois Brentano considerava que os

modernos distinguiram apenas entre aqueles fenômenos psíquicos comuns aos

animais e aqueles peculiares ao homem. Assim, ele denominou essa aplicação

de redução moderna da clássica divisão tripartite da atividade anímica.

De fato, Brentano reconheceu que a concepção aristotélica originária

enumerava na alma as partes vegetativa, sensitiva e intelectiva, no entanto,

disse ele, “[...] em conseqüência das restrições que o conceito de atividade

psíquica experimentou na posteridade, o primeiro dos três membros cai

inteiramente fora de seu campo”98. Segundo a análise brentaniana, e tomando

por base o sentido moderno da expressão, a teoria aristotélica acabou

dividindo as atividades psíquicas, relevantes para a ciência moderna, nos

grupos das atividades comuns aos animais e daquelas peculiares ao homem.

O que, no entanto, estava em jogo para Brentano era apenas a

divisão das atividades psíquicas. Assim, ainda que se tenha reduzido a

atividade a dois modos, esse critério distinguia entre as atividades psíquicas

desvinculadas de um corpo (humano ou animal) e as atividades vinculadas a

tal corpo. Assim, portanto, como considerou Brentano, “[...] estes membros

coincidem como os membros da primeira (divisão) e o grau de universalidade

de sua existência define sua ordem”99.

Brentano tinha um propósito específico para o resultado dessa

análise. Ele pretendia refutar cabalmente os dois primeiros modos aristotélicos

de divisão dos fenômenos psíquicos, pois, disse ele, “[...] as circunstâncias em

que alguns são funções de um órgão e outros não, faz esperar que cada uma

Phänomene der Ernährung, des Wachstums und der Erzeugung in sich schließt, soll allen irdischen

lebenden Wesen, auch den Pflanzen, gemeinsam zukommen. Der zweite, der Sinn und Phantasie und

andere verwandte Erscheinungen und mit ihnen die Affekte enthält, gilt ihm als der spezifisch

animalische. Den dritten endlich, welcher das höhere Denken und Wollen in sich begreift, glaubt er

unter den irdisch lebenden Wesen dem Menschen ausschließlich eigentümlich“. Brentano, Franz.

Psychologie vom empirisch Standpunkt, Zweiter Band, p. 7.

98 „Aber infolge der Beschränkung, welche der Begriff der psychischen Tätigkeit später erfuhr; fällt das

erste der drei Glieder gänzlich außerhalb ihres Bereiches“. Brentano, Franz. Psychologie vom

empirisch Standpunkt, Zweiter Band, p. 7.

99 „Diese Glieder fallen mit den Gliedern der ersten zusammen. Ihre Ordnung aber bestimmt der Grad der

Allgemeinheit ihres Bestehens“. Brentano, Franz. Psychologie vom empirisch Standpunkt, Zweiter

Band, p. 7.

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das classes revelará importantes propriedades e leis comuns. Mas a opinião

aristotélica, sobre a base das quais a divisão seria aceitável, contém muitos

pontos impugnáveis”100. Podemos sintetizar a impugnação brentaniana destes

pontos do seguinte modo.

Primeiramente, Brentano questionou a validade da divisão dos

fenômenos psíquicos em comuns aos animais e peculiares ao homem. Ele

considerou que seria necessário explicitar uma diferença realmente qualitativa

entre os dotes psíquicos dos homens e dos animais. Entretanto, a história da

filosofia mostrou a impossibilidades de tal divisão, pois existiam várias posições

controversas acerca dessas diferenças qualitativas. Para Brentano, o problema

central estava nas principais vantagens oferecidas por essa divisão. A saber:

(1) o estudo isolado de uma parte de nossos fenômenos psíquicos; e (2) a

possibilidade de inferência de leis gerais a partir deles. O problema consistia no

fato de que a validade desse estudo era questionada em um ponto elementar:

o conhecimento acerca da vida psíquica dos animais só poderia ser obtido de

modo indireto. Segundo Brentano, esse obstáculo comprometeu os critérios de

ordenação dos fenômenos psíquicos segundo uma filosofia positiva.

Exposta a análise e o problema que dela derivava, Brentano

recorreu ao próprio Aristóteles para desconsiderar a validade desses modos de

divisão dos fenômenos psíquicos, pois, disse ele, “[...] esta circunstância,

agregada ao desejo de não estabelecer hipóteses não provadas, dissuadiu o

próprio Aristóteles de empregá-la como divisão básica, na exposição

sistemática de sua doutrina da alma”101. Em outras palavras, Brentano apoiou-

100

„Aristoteles schied die psychischen Phänomene in solche, welche dem Menschen mit den Tieren

gemein, und solche, welche ihm eigentümlich seien. Stellen wir uns auf den Standpunkt der

Aristotelischen Lehre, so wird diese Einteilung in vieler Hinsicht vorzüglich scheinen. Denn

Aristoteles glaubte gewisse Seelenvermögen dem Menschen ausschließlich eigen, und hielt diese für

immateriell, die allgemein animalischen dagegen für Vermögen eines körperlichen Organes. Es

sondert also, wenn wir die Richtigkeit seiner Anschauungen voraussetzen, jene Einteilung in dem

ersten Gliede Erscheinungen für sich ab, welche auch in der Natur von den anderen isoliert auftreten;

und der Umstand, daß die einen Funktionen eines Organs sind, die anderen nicht, läßt erwarten, daß

jede der beiden Klassen wichtige gemeinsame Eigentümlichkeiten und Gesetze zeigen werde. Aber

die Aristotelischen Ansichten, auf Grund deren die Einteilung sich empfehlen würde, enthalten gar

manches, was bestritten werden kann“. Brentano, Franz. Psychologie vom empirisch Standpunkt,

Zweiter Band, p. 30.

101 „Dieser Umstand sowohl als auch der Wunsch keine unerwiesenen Voraussetzungen zu machen, hat

selbst Aristoteles abgehalten, sie bei der systematisch geordneten Darlegung seiner Seelenlehre als

Grundeinteilung zu verwenden“. Brentano, Franz. Psychologie vom empirisch Standpunkt, Zweiter

Band, p. 31.

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se nos critérios da argumentação aristotélica para refutar as duas primeiras

possibilidades de divisão básica dos fenômenos que caracterizavam a

atividade psíquica. Assim, o caminho está aberto para a exposição do terceiro

modo de divisão.

Para Brentano, a divisão das atividades psíquicas segundo a

modalidade de referência ao objeto intencional in-existente era o fundamento

da doutrina aristotélica da alma. Ele apresentou dois motivos fundamentais

para sustentar essa afirmação.

Primeiramente, ela era capaz de agrupar todas as atividades

psíquicas, de modo exaustivo, em apenas duas classes. Assim, poderíamos

dizer, por meio de uma expressão brentaniana, que, segundo Aristóteles,

pensamento e apetite ( e ) dividiam todo o universo dos fenômenos

psíquicos. Isso está exemplificado na citação abaixo:

Outra divisão capital dada por Aristóteles distingue os fenômenos psíquicos (tomando a expressão em nosso sentido) em pensamento e apetite, e , no sentido mais amplo. Esta divisão cruza

com a anterior, na medida em que é objeto de nossa consideração. Aristóteles compreende na classe do pensamento a percepção sensível e a fantasia, a memória e a previsão empírica, além das supremas atividades intelectuais, como a abstração, a formação de juízos universais e a dedução científica. Os desejos e tendências superiores, assim como os impulsos ínfimos e todos os sentimentos e emoções. Em suma, os fenômenos psíquicos que não estão incluídos na primeira classe ficam compreendidos na classe do apetite.

102

De fato, um dos pontos relevantes na análise brentaniana da teoria

acerca da alma era a divisão exaustiva das atividades psíquicas em duas

classes. Esse, no entanto, não era o critério fundamental, pois se tratava de

uma derivação de outro critério mais radical. Em outras palavras, o

fundamental para Brentano não era o fato de que Aristóteles apresentava uma

teoria onde os fenômenos da atividade psíquica estavam divididos em

102

„Eine andere Haupteinteilung, die Aristoteles gibt, scheidet die psychischen Phänomene, - das Wort in

unserem Sinne genommen, - in Denken und Begehren, und , im weitesten Sinne. Diese

Einteilung kreuzt sich bei ihm mit der vorigen, so weit sie für uns in Betracht kommt. Denn in der

Klasse des Denkens faßt Aristoteles mit den höchsten Verstandesbetätigungen, wie Abstraktion,

Bildung allgemeiner Urteile und wissenschaftlicher Schlußfolgerung, auch Sinneswahrnehmung und

Phantasie, Gedächtnis und erfahrungsmäßige Erwartung zusammen. In der des Begehrens aber sind

ebenso das höhere Verlangen und Streben wie der niedrigste Trieb, und mit ihnen alle Gefühle und

Affekte, kurzum alles, was von psychischen Phänomene der ersten Klasse nicht einzuordnen ist,

begriffen“. Brentano, Franz. Psychologie vom empirisch Standpunkt, Zweiter Band, p. 7-8.

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pensamento e desejo ( e ), mas o fato de que essa teoria

apresentava o fundamento dessa divisão e estabelecia o critério para a

classificação de qualquer fenômeno psíquico. Assim, o critério encontrado foi a

diferença de modo de referência ao objeto intencional in-existente na

consciência. Em outras palavras, a análise brentaniana encontrou, na teoria

aristotélica, o modo de dividir os fenômenos que caracterizam a atividade

psíquica. Essa divisão estava explícita na diferença existente entre os modos

que o pensamento e o apetite comportam na sua referência a tal objeto

intencional in-existente. Somente por isso, as diferenças no modo de referência

ao objeto intencional in-existente foram tomadas como o critério fundamental. A

citação a seguir descreve a proclamação desse encontro:

Se indagarmos o que moveu Aristóteles a unir, mediante esta divisão, o que a divisão anterior havia separado, descobrimos facilmente que foi certa semelhança que a representação e a aparência sensíveis mostram com a representação e as certezas intelectuais, conceituais, assim como os apetites inferiores com as tendências superiores. Encontrou aqui e ali a mesma modalidade de in-existência intencional, para dizê-lo com uma expressão que tomamos anteriormente dos escolásticos. O mesmo princípio determinou que atividades, que a divisão anterior havia unido, fossem separadas em classes diversas. Pensamento e apetite divergem na referência ao objeto e Aristóteles apontou a diferença entre ambas as classes justamente nisso. Não as concebia endereçadas a objetos diversos, mas aos mesmos objetos, embora de modo diverso. Em seu livro sobre a alma e em sua Metafísica

103, disse claramente que uma

mesma coisa é objeto do pensamento e do apetite, e depois de recebida na faculdade de pensar, move o apetite.

104

Tratemos com mais detalhes o que acaba de ser estabelecido.

Voltemos à citação anterior, onde Brentano fez a proclamação do critério de

103

Brentano refere-se às passagens de De Anima, III, 10 e Metafísica, A, 7.

104 „Wenn wir untersuchen, was Aristoteles dazu geführt habe, vermöge dieser Einteilung zu verbinden,

was die frühere Einteilung geschieden hatte: so erkennen wir leicht, daß ihn dabei eine gewisse

Ähnlichkeit bestimmte, welche das sinnliche Vorstellen und Scheinen dem intellektuellen,

begrifflichen Vorstellen und Fürwahrhalten und ebenso das niedere Begehren mit dem höheren

Streben zeigt. Er fand hier und dort, um es mit einem Ausdrucke, den wir schon früher einmal den

Scholastikern entlehnten, zu bezeichnen, die gleiche Weise der intentionalen Inexistenz. Und aus dem

selben Prinzipe ergab sich dann auch die Trennung von Tätigkeiten, welche die frühere Einteilung

verbunden hatte, in verschiedene Klassen. Denn die Beziehung auf den Gegenstand ist bei Denken

und Begehren verschieden. Und darein eben setzte Aristoteles den Unterschied der beiden Klassen.

Nicht auf verschiedene Objekte glaubte er sie gerichtet, sondern auf dieselben Objekte in

verschiedener Weise. Deutlich sagte er, sowohl in seinen Büchern von der Seele als in seiner

Metaphysik, daß dasselbe Gegenstand des Denkens und Begehrens sei und, zuerst im Denkvermögen

aufgenommen, da das Begehren bewege“. Brentano, Franz. Psychologie vom empirisch Standpunkt,

Zweiter Band, p. 8 - 9.

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divisão dos fenômenos psíquicos, pois ela apresentou dois pontos relevantes

para a formulação da teoria moral brentaniana de 1874.

No primeiro ponto dessa citação, Brentano ressaltou que se tratava

sempre do mesmo objeto intencional in-existente.105 As atividades psíquicas

referiam-se a esse mesmo objeto intencional de dois modos distintos:

entendendo-o ou apetecendo-o. Assim, se o objeto era único, eram os modos

de relação para com esse objeto que deveriam diferir. Assim, portanto, todo e

qualquer apetecer deveria consistir num tipo de relação específica para com o

objeto apetecido.

Com a exposição desse ponto, alcançamos nosso primeiro objetivo.

Ele consistia em apresentar o modo como Brentano encontrou o critério

positivo capaz de definir a totalidade da classe dos fenômenos psíquicos como

o modo de referência do apetite a algo bom-mau. Tal como se evidencia na

citação a seguir, esse foi o fio condutor da clássica orientação aristotélico-

tomista, presente em outras partes da Psicologia do ponto de vista empírico:

Aristóteles falou aqui com uma clareza que não deixa nada a desejar. „Bom‟ e „apetecível‟ são termos sinônimos para ele. „O objeto do apetite‟ ( ), diz ele em seus livros da alma, „é o bom ou o

que aparece como bom‟. E, no começo de sua Ética, explica: „toda ação e toda eleição parece tender a algo bom, pelo qual se designou o bom, com razão, como aquilo a que todos tendem‟

106. Por isso

identifica-se, também, a causa final com o bem107

. Esta teoria

105

“Esta expressão tem sido mal compreendida, acreditando que se trata de proposição e persecução de

um fim. Assim, teria sido melhor evitá-la. Os escolásticos usam ainda com mais freqüência a

expressão „objetivo‟, em vez de „intencional‟. Trata-se do fato de que para o objeto psiquicamente

ativo, e como tal, algo está presente em sua consciência de certo modo, seja como meramente

pensado, seja como apetecido, evitado ou outro modo semelhante. Se dei preferência à expressão

„intencional‟, foi porque considerava maior ainda o perigo de cometer um equívoco se designasse o

pensado com os termos de pensado como „ser objetivo‟. Pois, os modernos costumam chamar ser real

sendo aquilo que existe na realidade em contraposição aos „fenômenos meramente subjetivos‟, aos

quais nenhuma realidade se emana”. [„Dieser Ausdruck ist in der Art mißverstanden worden, daß man

meinte, es handle sich dabei um Absicht und Verfolgung eines Zieles. So hätte ich vielleicht besser

getan, ihn zu vermeiden. Die Scholastiker gebrauchen weit häufiger noch statt "intentional" den

Ausdruck "objektiv". In der Tat handelt es sich darum, daß etwas für das psychisch Tätige Objekt und

als solches, sei es als bloß gedacht oder sei es auch als begehrt, geflohen oder dergleichen,

gewissermaßen in seinem Bewußtsein gegenwärtig ist. Wenn ich dem Ausdruck "intentional" den

Vorzug gab, so tat ich es, weil ich die Gefahr eines Mißverständnisses für noch größer hielt, wenn ich

das Gedachte als gedacht "objektiv seiend" genannt hätte, wo die Modernen, im Gegensatz zu "bloß

subjektiven Erscheinungen", denen keine Wirklichkeit entspricht, das wirklich Seiende so zu nennen

pflegen“]. Brentano, Franz. Psychologie vom empirisch Standpunkt, Zweiter Band, p. 8-9.

106 Brentano refere-se às passagens das seguintes obras: De Anima., III, 10; Ética à Nicômaco, I, I;

Metafísica., A, 7; Retórica., I, 6.

107 Brentano refere-se especificamente à Metafísica, A, 10 e seguintes.

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subsistiu na Idade Média. Tomas de Aquino ensinava, com todo clareza, que assim como o pensamento entra em relação com um objeto enquanto cognoscível, o apetite entra em relação com ele enquanto bom

108. Deste modo, pode suceder que um e o mesmo

objeto seja objeto de atividades psíquicas heterogêneas.109

Façamos apenas mais uma consideração acerca dos argumentos

aristotélicos expostos acima. Brentano ressaltou que, em tais argumentos,

existia uma prioridade do entendimento sobre o apetite. Isso significava que o

entendimento era condição de possibilidade do apetite. Em outras palavras,

nesse critério aristotélico de divisão e classificação das atividades psíquicas,

Brentano encontrou algo além da definição positiva de fenômenos psíquicos

utilizada em sua Psicologia do ponto de vista empírico. Ele encontrou o critério

que deveria (1) ordenar a disposição do fenômeno psíquico pertencente à

classe do sentimento e (2) estabelecê-lo como fenômeno dependente da

atividade do entendimento. Tratava-se, portanto, como ele descreve na citação

a seguir, da dependência relativa de todo apetite para com as representações:

A diversidade de base dos fenômenos psíquicos, bem como sua expansão sobre um círculo mais ou menos amplo de seres dotados de psique, foi o fundamento da divisão anterior. Sua distinta relação ao objeto imanente é o (fundamento) desta divisão. A ordem de sucessão dos membros está determinada pela independência relativa dos fenômenos. As representações pertencem à primeira classe, pois uma representação é a condição necessária de todo apetite.

110

É manifesto, segundo a citação acima, que Brentano saltou sobre

problemas ontológicos e epistemológicos fundamentais. Um desses problemas

108

Brentano refere-se à Súmula Teológica, P. I. Q. 80. A. 1 ad 2.

109 „Aristoteles spricht hier mit einer Deutlichkeit, die nichts zu wünschen Übrig läßt. „Gut„ und

„begehrbar„ sind ihm gleichbedeutende Ausdrücke. „Der Gegenstand des Begehrens„

(„ “), sagt er in seinen Büchern von der Seele, „ist das Gute oder das als gut

Erscheinende„; und am Anfange seiner Ethik erklärt er: „Jede Handlung und jede Wahl scheint nach

einem Gute zu streben; weshalb man mit Recht das Gute als dasjenige bezeichnet hat, wonach alles

strebt. Daher identifiziert er auch die Zweckursache mit dem Guten. Dieselbe Lehre erhielt sich dann

im Mittelalter. Thomas von Aquin lehrt mit aller Klarheit, daß, wie das Denken zu einem Objekt als

erkennbarem, das Begehren zu ihm als gutem in Beziehung trete. So könne es geschehen, daß ein und

dasselbe Gegenstand ganz heterogener psychischer Tätigkeiten sei“. Brentano, Franz. Psychologie

vom empirisch Standpunkt, Zweiter Band, p. 92.

110 „Wie also bei der früheren Einteilung die Verschiedenheit des Trägers der psychischen Phänomene so

wie die Verbreitung über einen weiteren oder engeren Kreis psychisch begabter Wesen den

Einteilungsgrund bildete, so bildet ihn bei dieser der Unterschied in ihrer Beziehung auf den

immanenten Gegenstand. Die Ordnung der Aufeinanderfolge der Glieder ist durch die relative

Unabhängigkeit der Phänomene bestimmt. Die Vorstellungen gehören zur ersten Klasse; ein

Vorstellen aber ist die notwendige Vorbedingung eines jeden Begehrens“. Brentano, Franz.

Psychologie vom empirisch Standpunkt, Zweiter Band, p. 9.

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estava na imediata identificação da noção aristotélica de pensamento ( ) à

sua noção de representação. Veremos que Brentano formulou um novo

conceito de representação e o definiu como classe fundamental dos fenômenos

psíquicos. Nosso interesse específico, aqui, está no fato de que esse salto tem

implicação direta na teoria do sentimento moral que emerge da psicologia de

1874.111

Podemos, agora, apresentar nosso próximo passo argumentativo.

Explicitaremos como Brentano seguiu essa orientação aristotélica para

estabelecer a sua classificação dos fenômenos psíquicos. De modo mais

específico, descrevermos o modo como Brentano ampliou o critério que

estabeleceu a bipartição aristotélica entre pensamento e apetite ( e

) para apresentar as três classes de fenômenos psíquicos. A

apresentação desse ponto será fundamental para esclarecer que a atividade

psíquica de sentimento era valorativa e não cognitiva. Por isso Brentano

descreveu a referência do ato psíquico de sentimento como uma “experiência”

valorativa do objeto intencional in-existente.

2.3 A definição brentaniana das três classes de fenômenos psíquicos orientanda pela dupla distinção aristotélica entre pensamento e apetite ( e ).

Para anunciar a recepção do critério aristotélico de divisão das

partes da alma, Brentano lançou o seguinte questionamento. “Qual é o caráter

positivo que podemos, então, indicar? Ou, por acaso não existe qualquer

111

Conforme a teoria brentaniana de 1889, como elucidaremos no final deste capítulo, o que está em jogo

é o fato de que, em 1874, a descrição da consciência atribui evidência apenas à primeira classe dos

fenômenos psíquicos. As demais classes – juízos e sentimento – possuem sua validade epistemológica

orientada pela noção de verdade como referência. Em outras palavras, tomados à luz da descrição do

conceito de verdade (evidência – correspondência), os critérios aristotélicos de descrição dos

fenômenos psíquicos não são recebidos da mesma maneira nas teorias de 1874 e 1889. Assim, é

justamente em função dessa explícita orientação pelos critérios aristotélicos de classificação dos

fenômenos psíquicos, sugerida principalmente na dependência de todo apetite para com a

representação, que Brentano reconhece, em 1889, o fato de que sua primeira teoria estava

impossibilitada de apresentar uma ética como teoria do conhecimento.

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definição positiva válida conjuntamente para todos os fenômenos

psíquicos?”112. A resposta brentaniana para essas questões reintroduziu a

noção aristotélica como critério positivo de classificação dos fenômenos

psíquicos.

Não nos é possível discutir aqui a questionável validade dessa

reintrodução, pois isso fugiria aos propósitos do nosso trabalho113. Podemos,

no entanto, esclarecer a seguinte questão: – Por que Brentano identificou a

divisão aristotélica das partes da alma à sua classificação dos fenômenos

psíquicos? A resposta para esta questão tem uma importância significativa

para a nossa tese, pois ela apresenta o problema que Brentano estava

tentando resolver. Por isso, é interessante ressaltar que a estratégia de

Brentano consistiu em buscar soluções histórico-filosóficas para os problemas

científicos enfrentados pela filosofia do psíquico no final do século XIX.

Além dos debates com Aristóteles e outros pensadores da história

da filosofia, a Psicologia do ponto de vista empírico tinha a pretensão de

cientificidade. Isso significa que ela estava ocupada com a resolução dos

problemas científicos de sua época. Para indicar o tipo de problema enfrentado

por Brentano nessa obra, basta apresentar dois obstáculos existentes na sua

fundamentação. O primeiro obstáculo estava no fato de que o objeto da

psicologia não estava definido. O segundo obstáculo estava no fato de que seu

método científico não estava plenamente estabelecido. Por isso, a Psicologia

do ponto de vista empírico apresentava-se como solução para esses dois

obstáculos. A solução para o primeiro obstáculo estava na definição positiva do

fenômeno que se constituiria como objeto de estudo da psicologia empírica.

Em outras palavras, a definição positiva de fenômenos psíquicos. A solução

para o segundo obstáculo estava na definição do tipo de percepção que

112

„Welches positive Merkmal werden wir nun anzugeben vermögen? Oder gibt es vielleicht gar keine

positive Bestimmung, die von allen psychischen Phänomenen gemeinsam gilt?“. Brentano, Franz.

Psychologie vom empirisch Standpunkt, Erster Band, p. 112.

113 De fato, o debate sobre a reintrodução dos critérios aristotélicos está aberto, ainda que recentes estudos

tenham tentado consolidar essa interpretação. Para uma análise contra essa interpretação, ver

Spiegelberg, Herbert. „Intention‟ and „intentionality‟ in the scholastics, Brentano and Husserl, 1976.

Para uma análise favorável a essa interpretação, ver: Sorabji, Richard. From Aristotle to Brentano.

The development of the concept of intentionality, 1991, p. 227-259; Marras, Ausonio. Scholastic roots

of Brentano‟s conception of intentionality, 1976. p. 128-139; George, Rolf. e Koehn, Glen. Brentano‟s

relation to Aristotle, 2004. p. 20 – 44.

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68

apreenderia empiricamente esse fenômeno psíquico. Algumas considerações

sobre o modo como Brentano apresenta a definição positiva de fenômenos

psíquicos bastarão para esclarecer a recepção do referido critério aristotélico.

O ponto de partida brentaniano para a definição positiva dos

fenômenos psíquicos foi a diferença entre esses fenômenos e os fenômenos

físicos. Na Psicologia do ponto de vista empírico, Brentano analisou o debate

histórico científico acerca do caráter extenso dos fenômenos físicos e, por

contraposição, encontrou a primeira definição de fenômenos psíquicos. Tal

como mostra a citação abaixo, essa definição tomou por base os argumentos

de A. Bain e tinha uma peculiaridade. Ela afirmava o caráter não extenso dos

fenômenos psíquicos a partir do caráter extenso dos fenômenos físicos.

Vejamos:

A. Bain deu recentemente a mesma definição. “A esfera do objeto ou mundo objetivo (externo) – disse – fica circunscrita exatamente por uma propriedade: a extensão. O mundo da experiência subjetiva (o mundo interno) carece desta propriedade. Diz-se de uma árvore ou de um riacho que possui uma magnitude extensa. Um prazer não tem longitude, largura nem espessura e de modo algum é uma coisa extensa. Um pensamento ou uma idéia podem referir-se às magnitudes extensas. Mas não se pode dizer acerca deles, que tenham uma extensão em si mesmo. Tampouco podemos dizer que um ato voluntário, um apetite, uma crença, preencham um espaço em certas direções. Assim, quando se cai na esfera do sujeito, chama-se inextenso. Usando, pois, como ocorre comumente, o nome de espírito para a totalidade das experiências internas, podemos defini-lo negativamente mediante um único fato: mediante a carência de extensão”

114.

Façamos algumas observações. Embora fosse uma definição

negativa, ela tinha três virtudes argumentativas: (1) ela era uma definição

unitária; (2) ela unificava a classe dos fenômenos psíquicos; (3) ela distinguia

114

(Brentano indica como fonte bibliográfica dessa citação a introdução ao cap. 1 da obra Mental science

de Bain). „Dieselbe Bestimmung gibt neuerdings A. Bain: Das Gebiet des Objekts oder die objektive

(äußere) Welt, sagt er, ist genau umschrieben durch ein e Eigentümlichkeit, die Ausdehnung. Die Welt

der subjektiven Erfahrung (die innere Welt) entbehrt dieser Eigentümlichkeit. Von einem Baume oder

von einem Bache sagt man, er besitze eine ausgedehnte Größe. Ein Vergnügen hat nicht Länge, Breite

oder Dicke; es ist in keiner Hinsicht ein ausgedehntes Ding. Ein Gedanken oder eine Idee mag sich

auf ausgedehnte Größen beziehen, aber man kann nicht von ihnen sagen, sie hätten eine Ausdehnung

in sich selbst. Und ebensowenig können wir sagen, daß ein Willensakt, eine Begierde, ein Glauben

einen Raum nach gewissen Richtungen erfülle. Daher spricht man von Allem, was in das Bereich des

Subjekts fällt, als von dem Unausgedehnten. Gebraucht man also, wie es gemeiniglich geschieht, den

Namen Geist für die Gesamtheit der inneren Erfahrungen, so können wir ihn negativ durch eine

einzige Tatsache definieren, durch den Mangel der Ausdehnung“. Brentano, Franz. Psychologie vom

empirisch Standpunkt, Erster Band, p. 121.

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entre os fenômenos psíquicos e os fenômenos físicos. A análise brentaniana

valeu-se dessa distinção entre fenômenos e apresentou os dois próximos

passos da argumentação. O primeiro deles consistiu na necessidade de

redefinir a noção de (ser) representado. Brentano propôs que fenômeno físico

seria sinônimo de (ser) representado. O segundo consistiu na necessidade de

redefinir a noção de representação. Brentano propôs que, em alguns casos,

fenômeno psíquico seria sinônimo de representação. Vejamos como ele

chegou a essa definição.

Brentano aceitou, em certo sentido, o critério de Bain e afirmou que

todos os fenômenos físicos deveriam ser caracterizados por sua extensão.

Esse critério colocou uma virada importante. Além dos fenômenos dos

sentidos, os produtos da fantasia ou imaginação também caíram sob essa

classe de fenômenos físicos. Isso significa que, segundo essa definição, uma

sereia pensada e um centauro pensado seriam fenômenos físicos115.

Brentano valeu-se da definição negativa dos fenômenos psíquicos,

como não extensos e não localizados espacialmente, e afirmou que eles se

impunham por contraposição aos físicos. Nesse caso, disse ele, “[...]

imediatamente os fenômenos (psíquicos) seriam definíveis frente aos físicos,

com a mesma exatidão, como aqueles fenômenos que não têm extensão nem

determinação local”116. As atividades psíquicas, como atos psíquicos de

pensar, atos psíquicos de julgar e atos psíquicos de querer, seriam exemplos

de fenômenos psíquicos, pois não seriam extensos ou localizados.

115

A simplicidade dessa afirmação é mera aparência. Não é possível, no entanto, retomar o debate sobre

os problemas que ela levanta. Insistiremos apenas no ponto destacado por Linda McAlister em sua

análise da carta enviada por Brentano a Anton Marty (17 de março de 1905). “Though written during

Brentano's later philosophical period, the crucial parts of this letter refer back to his earlier position

which he attempts to clarify. He says: it has never been my view that the immanent object is identical

with thought-of object, what we think is the object or thing and not the thought of object. If, in our

thought, we contemplate a horse, our thought has as its immanent object – not a contemplated horse,

but a horse. And strictly speaking only the horse – not the contemplated horse – can be called an

object. ["Es ist aber nicht meine Meinung gewesen, dass das immanente Objekt vorgestelltes Objekt

sei. Die Vorstellung hat nicht vorgestelltes Ding, sondern das Ding, also z.B. die Vorstellung eines

Pferdes nicht vorgestelltes Pferd, sondern Pferd, zum (immanenten, d.h. Allein eigentlich Objekt zu

nennenden) Objekt.]“. McAlister, Linda. The Development of Franz Brentano‟s Ethics, p. 22-23.

116 „Und auch die psychischen wären dann den physischen gegenüber mit derselben Exaktheit als

diejenigen Phänomene zu bestimmen, welche keine Ausdehnung und örtliche Bestimmtheit zeigen“.

Brentano, Franz. Psychologie vom empirisch Standpunkt, Erster Band, p. 121.

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Esse passo argumentativo de Brentano estabeleceu dois pontos

fundamentais. Um desses pontos foi a relação intrínseca entre esses dois tipos

de fenômenos. O outro ponto foi a impossibilidade de se definir um dos

fenômenos sem ter como referência direta o outro. Assim, a argumentação

brentaniana mostrou que só havia um modo de compreender essa relação.

Para isso, seria preciso reformular a noção de representação. Desse modo, o

próximo passo argumentativo formulou uma noção relacional de representação,

ou seja, uma relação entre representação e (ser) representado.

Brentano estabeleceu que o conceito de representação deveria ser

atribuído exclusivamente aos fenômenos psíquicos. Por representação, disse

ele a seguir, dever-se-ia entender apenas o ato de representar, ou seja, a

própria atividade da consciência. Desse modo, representação não seria o

representado, ou seja, o fenômeno físico, mas o ato psíquico que “contém” o

representado na medida em que está relacionado com ele. Suas palavras

foram as seguintes:

Mas este estar presente, de cada uma das coisas nomeadas, é precisamente um estar representado em nosso sentido. Um semelhante estar representado se encontra sempre que algo aparece à consciência: seja amado, odiado ou considerado com indiferença; seja reconhecido, rechaçado ou – não sei me expressar de modo melhor que dizendo – representado, em uma completa abstenção de juízo. Tal como nós usamos a palavra representar, pode-se dizer que ser representado equivale a aparecer, ser fenômeno.

117

Alguns exemplos apresentados por Brentano ajudam esclarecer o

que foi estabelecido. Podemos dizer que a audição de um som se constituiria

tanto de um fenômeno físico como de um fenômeno psíquico. Sendo assim, o

som ouvido seria um fenômeno físico na medida em que consistiria naquilo que

estaria representado “na” consciência118. Por sua vez, o ato de ouvir o som

117

„Allein jenes Gegenwärtig-sein jedes einzelnen der genannten Dinge ist eben schon ein Vorgestelltsein

in unserem Sinne. Und ein solches kommt Überall vor, wo etwas im Bewußtsein erscheint: mag es

gehaßt oder geliebt oder gleichgültig betrachtet; mag es anerkannt oder verworfen oder, bei völliger

Zurückhaltung des Urteils - ich kann mich nicht besser ausdrücken als -, vorgestellt werden. Wie wir

das Wort vorstellen gebrauchen, ist vorgestellt werden so viel wie erscheinen“. Brentano, Franz.

Psychologie vom empirisch Standpunkt, Erster Band, p. 114.

118 “Exemplos de fenômenos físicos são: uma cor, uma figura, uma paisagem que vejo; um acorde que

ouço; o calor, o frio, o odor que sinto; e as coisas semelhantes que me aparecem na fantasia. Estes

exemplos bastarão para tornar intuitiva a distinção de ambas as classes”. [“Beispiele von physischen

Phänomen dagegen sind eine Farbe, eine Figur, eine Landschaft, die ich sehe; ein Akkord, den ich

höre; Wärme, Kälte, Geruch, die ich empfinde; sowie ähnliche Gebilde, welche mir in der Phantasie

erscheinen. Diese Beispiele mögen hinreichen, den Unterschied der beiden Klassen anschaulich zu

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seria um fenômeno psíquico119 e se constituiria como a atividade de

representação (ou seja, a audição) do fenômeno físico representado (ou seja,

do som). Assim, portanto, enquanto fenômeno psíquico, a representação

deveria ser entendida sempre como uma atividade ou ato da consciência. Por

sua vez, enquanto fenômeno físico, o correlato do ato deveria ser entendido

sempre como aquilo que é representado120. Por mais que parecesse trivial,

machen“]. Brentano, Franz. Psychologie vom empirisch Standpunkt, Erster Band, p. 112.

119 “Toda representação, mediante sensação ou fantasia, oferece um exemplo de fenômeno psíquico. Aqui

eu entendo por representação, não aquilo que é representado, mas o ato de representar. A audição de

um som, a visão de um objeto colorido, a sensação de calor ou frio, assim como os estados

semelhantes da fantasia, são exemplos aos quais aludo. Do mesmo modo é também (exemplo) o

pensamento de um conceito geral, sempre que tenha lugar realmente. Todo juízo, todo recordo, toda

prospecção, toda conclusão, toda convicção ou opinião, toda dúvida é um fenômeno psíquico. Como

também o é todo movimento anímico, alegria, tristeza, medo, esperança, valor, covardia, cólera, amor,

ódio, apetite, volição, intento, assombro, admiração, desprezo, etc.” [„Ein Beispiel für die psychischen

Phänomene bietet jede Vorstellung durch Empfindung oder Phantasie; und ich verstehe hier unter

Vorstellung nicht das, was vorgestellt wird, sondern den Akt des Vorstellens. Also das Hören eines

Tones, das Sehen eines farbigen Gegenstandes, das Empfinden von warm oder kalt, sowie die

ähnlichen Phantasiezustände sind Beispiele, wie ich sie meine; ebenso aber auch das Denken eines

allgemeinen Begriffes, wenn anders ein solches wirklich vorkommt. Ferner jedes Urteil, jede

Erinnerung, jede Erwartung, jede Folgerung, jede Überzeugung oder Meinung, jeder Zweifel - ist ein

psychisches Phänomen. Und wiederum ist ein solches jede Gemütsbewegung, Freude, Traurigkeit,

Furcht, Hoffnung, Mut, Verzagen, Zorn, Liebe, Haß, Begierde. Willen, Absicht, Staunen,

Bewunderung', Verachtung, usw“]. Brentano, Franz. Psychologie vom empirisch Standpunkt, Erster

Band, p. 111 - 112.

120 É fundamental relembrar que a preocupação de Brentano é a definição empírica de fenômeno psíquico.

Por isso mesmo, salta aos olhos a simplicidade dessa definição, quando comparada às análises que os

interlocutores e os próprios pupilos de Brentano apresentaram posteriormente. Cabe, no entanto,

antecipar duas distinções clássicas que ainda não aparecem nas obras brentanianas de 1874. Tal como

foram apresentadas por Twardowski, são aquelas elaboradas por Zimmermann e Höfler. Segundo

Twardowski, a distinção de Zimmermann estabelece que “[...] faz-se necessário somente, quando se

fala do fato de qualquer coisa ser representada, acrescentar se ela é representada na representação

ou pela representação. No primeiro caso, o que é significado com o representar é o conteúdo de

representação; no segundo, é o objeto da representação” (Twardowski, K. Para a doutrina do

conteúdo e do objeto das representações, Uma investigação psicológica, p. 63). Ainda segundo

Twardowski, “[...] mesmo evitando-se assim a confusão do ato psíquico com seu conteúdo, resta

ainda por ser superada uma ambigüidade sobre a qual Höfler chamou atenção. Após ele pronunciar-

se sobre a relação com um conteúdo, própria dos fenômenos psíquicos, ele continua 1. O que nós

chamamos ‘conteúdo da representação e do juízo’ encontra-se inteiramente no interior do sujeito,

tal como o ato de representação e de juízo. 2. As palavras ‘Gegestand’ e ‘Object’ são usadas em

dois sentidos: por um lado, para aqueles existentes em si (an sich Bestehende), ... para o qual nosso

representar e julgar igualmente se dirigem, por outro lado, pela ‘imagem’ (Bild) psíquica ‘em’ nós

existente mais ou menos aproximada daquela real (Realen), aquela quase-imagem (mais

precisamente: signo) idêntica ao que em (1) denomina-se conteúdo. Em contraposição ao

Gegenstand ou objeto, suposto como independente do pensamento, denomina-se o conteúdo de um

representar e julgar (igualmente, sentir e querer) também o objeto o ‘objeto imanente ou

intencional’ desse fenômeno psíquico” (Twardowski, K. Para a doutrina do conteúdo e do objeto

das representações, Uma investigação psicológica, p. 63). Se, no entanto, de um lado Brentano não

distingue explicitamente conteúdo e objeto, cabe aqui antecipar uma distinção entre objeto que se

institui a partir da descrição da percepção interna. A saber: a distinção dos correlatos do ato em objeto

primário e objeto secundário. Acerca dessa distinção, diz Twardowski que “[...] as expressões objeto

primário e objeto secundário encontram em Brentano num sentido ligeiramente diferente (do dele).

Pois embora Brentano designe como objeto primário o objeto da representação, tal como é feito aqui

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essa redefinição do conceito de representação tinha duas implicações

epistemológicas.

Em primeiro lugar, ela foi suficiente para redefinir a linha de

demarcação que separa o universo dos fenômenos psíquicos e dos fenômenos

físicos. De modo mais específico, todo fenômeno que se constituía como

correlato de um ato de consciência passava a fazer parte do universo dos

fenômenos físicos,. Por exemplo, na medida em que vejo o vermelho ou sinto

calor, o vermelho ou o calor representado se constitui num correlato do meu

ato psíquico, ou seja, em um correlato de uma representação. Foi exatamente

desse modo que, enquanto representado, todo o correlato do ato foi definido

como fenômeno físico.

Em segundo lugar, é de fundamental importância reconhecer que,

assumindo essa definição brentaniana, a constituição do fenômeno físico se

dava a partir da atividade que caracterizava o fenômeno psíquico. Apenas mais

uma ressalva. Existia uma dependência epistemológica dos fenômenos físicos

para com os psíquicos que se manifestava a partir da descrição do estatuto

privilegiado dos psíquicos frente aos físicos. Esse privilégio decorreu do caráter

evidente com que se dava a apreensão imediata dos fenômenos psíquicos121.

Voltaremos a esse ponto no devido lugar.

Até o momento, esclarecemos como a análise brentaniana superou

o obstáculo imposto para a psicologia do século XIX ao definir positivamente

seu objeto, no entanto há algo mais. A definição positiva de fenômenos

psíquicos como representações não estava completa. A análise brentaniana

ainda precisou apresentar sua característica principal, pois, tal como sustenta a

citação a seguir, os fenômenos psíquicos se definiam positivamente de duas

maneiras: (1) ou eram representações, compreendidos sempre como atos de

(na obra de Twardowski), ele entende por objeto secundário de uma representação o ato e o conteúdo

tomados em conjunto, na medida em que ambos, durante a atividade de representar um objeto, são

apreendidos pela consciência interna, e aí a representação torna-se assim consciente”. Twardowski,

Kasimir. Para a doutrina do conteúdo e do objeto das representações, Uma investigação psicológica,

p. 62-63, nota 2.

121 Não é possível, nesta tese, fazermos uma exposição dos pressupostos epistemológicos que

fundamentam essa dependência, pois migraríamos da ética para a psicologia brentaniana. Por isso,

deixemos aberta essa questão. Voltaremos a ela, ao menos indiretamente no final do capítulo V, no

contexto da apresentação da teoria brentaniana do ato psíquico.

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representar; ou (2) eram atividades da consciência que tinham por base

representações:

Assim, tentaremos dar uma explicação do fenômeno psíquico de outro modo mais unitário. Para este propósito apresenta-se uma determinação da qual fizemos uso anteriormente, quando dizíamos que designávamos com o nome de fenômenos psíquicos, tanto as representações como todos aqueles fenômenos cujo fundamento está formado por representações. Apenas necessitamos advertir que uma vez mais entendemos por representação, não o representado, mas o ato de representá-lo. Mas o ato de representar forma o fundamento, não do ato de julgar meramente, mas também do ato de apetecer e de qualquer outro ato psíquico. Nada pode ser julgado, nada tampouco apetecido, nada esperado ou temido, se não for representado. Deste modo, a determinação dada compreende todos os exemplos aduzidos de fenômenos psíquicos e, em geral, todos os fenômenos pertencentes a esta esfera

122.

E, acerca das peculiaridades que envolvem essa definição, é

importante fazermos mais uma ressalva. Embora essa fosse uma definição

positiva, é fundamental ressaltarmos que ela não era uma definição unitária,

pois dividia o universo dos fenômenos psíquicos em dois grupos123. Em outras

palavras, essa definição estabeleceu que a representação propriamente dita

constituiria, por si só, uma classe de fenômeno psíquico, formando, assim, o

primeiro grupo. Havia ainda, no entanto, em função da própria definição, duas

outras classes de fenômenos psíquicos que formavam o segundo grupo. Eram

elas a classe dos juízos e a classe dos sentimentos de amor e ódio. Essas

duas classes de fenômenos psíquicos se definiam exclusivamente como tal

pelo fato de estarem necessariamente baseadas em representações

(entendendo sempre como ato de representar e não como aquilo que é

representado).

122

„Doch wir wollen noch in einer anderen und einheitlicheren Weise eine Erklärung des psychischen

Phänomens zu geben suchen. Hierfür bietet sich uns eine Bestimmung dar, von der wir schon früher

Gebrauch machten, indem wir sagten, mit dem Namen der psychischen Phänomene bezeichneten wir

die Vorstellungen, sowie auch alle jene Erscheinungen, für welche Vorstellungen die Grundlage

bilden. Daß wir hier unter Vorstellung wiederum nicht das Vorgestellte, sondern das Vorstellen

verstehen, bedarf kaum der Bemerkung. Dieses Vorstellen bildet die Grundlage des Urteilens nicht

bloß, sondern ebenso des Begehrens, sowie jedes anderen psychischen Akte. Nichts kann beurteilt,

nichts kann aber auch begehrt, nichts kann gehofft oder gefürchtet werden, wenn es nicht vorgestellt

wird. So umfaßt die gegebene Bestimmung alle eben angeführten Beispiele psychischer Phänomene

und überhaupt alle zu diesem Gebiete gehörigen Erscheinungen“. Brentano, Franz. Psychologie vom

empirisch Standpunkt, Erster Band, p. 112.

123 Cf. Brentano, Franz. Psychologie vom empirisch Standpunkt, Erster Band, p. 120.

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Tal como manifesta a citação a seguir, Brentano considerou como

condição sine qua non de todo juízo ou sentimento, enquanto tipos especiais

de fenômenos psíquicos, a existência da atividade fundamental da consciência

chamada representação:

Portanto, podemos considerar como uma definição indubitavelmente justa dos fenômenos psíquicos, aquela que (estabelece): ou eles são representações; ou eles descansam sobre as representações que lhes servem de base (no sentido explicado). Com isso, teríamos dado uma segunda definição de seus conceitos, divisíveis em menos membros que a primeira. No entanto, não é inteiramente unitária, pois nos apresenta os fenômenos psíquicos divididos em dois grupos.

124

A questão que se colocou a Brentano, a partir da definição

apresentada acima, indagava pelos fundamentos dessa definição. Em outras

palavras, como a análise brentaniana fundamentou essa definição tripartite,

positiva e unificadora? A resposta brentaniana para esta questão estava na

introdução do critério aristotélico de divisão das partes da alma.

De fato, Brentano considerou que se tratava de uma reintrodução

desse critério, pois “[...] os antigos psicólogos já haviam chamado a atenção

para uma afinidade especial de caráter analógico existente entre os fenômenos

psíquicos e que os fenômenos físicos não participam” 125. A análise brentaniana

esclareceu que, ao definir positivamente os fenômenos psíquicos, a noção

relacional de representação encontrava seu fundamento na retomada do

conceito de objeto intencional in-existente em todo ato psíquico. A citação

abaixo traz a clássica solução apresentada na Psicologia do ponto de vista

empírico:

Todo fenômeno psíquico está caracterizado por aquilo que os escolásticos da idade média chamaram de in-existência intencional (ou mental) de um objeto e que nós chamamos, se bem que com expressões não inteiramente inequívocas, a referência a um conteúdo, a direção a um objeto (pelo qual não se deve entender aqui

124

„Wir dürfen es demnach als eine unzweifelhaft richtige Bestimmung der psychischen Phänomene

betrachten, daß sie entweder Vorstellungen sind, oder (in dem erläuterten Sinne) auf Vorstellungen als

ihrer Grundlage beruhen. Hierin hätten wir also eine zweite, in wenigere Glieder zerfallende

Erklärung ihres Begriffes gegeben. Immerhin ist sie nicht ganz einheitlich, da sie vielmehr die

psychischen Phänomene in zwei Gruppen geschieden uns vorführt“. Brentano, Franz. Psychologie

vom empirisch Standpunkt, Erster Band, p. 120.

125 „Nichtsdestoweniger haben schon Psychologen älterer Zeit auf eine besondere Verwandtschaft und

Analogie aufmerksam gemacht, die zwischen allen psychischen Phänomenen bestehe, während die

physischen nicht an ihr Teil haben“. Brentano, Franz. Psychologie vom empirisch Standpunkt, Erster

Band, p. 124.

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uma realidade), ou a objetividade imanente. Todo fenômeno psíquico contém algo em si como seu objeto, ainda que nem todos do mesmo modo: na representação há algo representado; no juízo há algo admitido ou rechaçado; no amor, amado; no ódio, odiado; no apetite, apetecido, etc.

126.

É importante fazermos uma consideração sobre a sutileza da

estratégia argumentativa de Brentano. Ao estabelecer o critério aristotélico

como fundamento, sua análise pôde avançar para além da distinção entre o

pensamento ( ) e o desejo ( ) proposta por Aristóteles. Brentano

distinguiu três modalidades de referência ao objeto intencional in-existente. Por

isso, como descreve a citação a seguir, sua análise justificava as três

classificações de fenômenos psíquicos:

Para expor nossa opinião sem mais tardar, sustentaremos também que é preciso distinguir três classes capitais de atividades psíquicas, atendendo a sua diversa modalidade de sua referência a seu conteúdo. Mas estes três gêneros não são os mesmo que se estabelecem comumente e, na falta de expressões mais adequadas, designamos o primeiro com o nome de representação, o segundo como o nome de juízos e o terceiro com o nome de emoção, interesse ou amor. Todas estas denominações são susceptíveis de equívoco, pois todas são empregadas em um sentido mais estreito.

127

Se, como está expresso, a análise brentaniana foi além da teoria

aristotélica, será preciso responder à seguinte questão: – Como a análise

brentaniana pôde explicitar três classes de fenômenos psíquicos se ela utilizou

o mesmo critério com que Aristóteles distinguiu duas partes da alma? Brentano

considerava que sua classificação não era uma refutação ao trabalho de

Aristóteles, pelo contrário, ele entendeu que a distinção dos fenômenos

126

„Jedes psychische Phänomen ist durch das charakterisiert, was die Scholastiker des Mittelalters die

intentionale (auch wohl mentale) Inexistenz eines Gegenstandes genannt haben, und was wir, obwohl

mit nicht ganz unzweideutigen Ausdrücken, die Beziehung auf einen Inhalt die Richtung auf ein

Objekt (worunter hier nicht eine Realität zu verstehen ist) oder die immanente Gegenständlichkeit

nennen würden. Jedes enthält etwas als Objekt in sich. obwohl nicht jedes in gleicher Weise. In der

Vorstellung ist etwas vorgestellt. in dem Urteile ist etwas anerkannt oder verworfen, in der Liebe

geliebt, in dem Hasse gehaßt, in dem Begehren begehrt usw“. Brentano, Franz. Psychologie vom

empirisch Standpunkt, Erster Band, p. 124 - 125.

127 „Um sogleich unsere Ansicht auszusprechen, so halten auch wir dafür, daß hinsichtlich der

verschiedenen Weise ihrer Beziehung zum Inhalte drei Hauptklassen von Seelentätigkeiten zu

unterscheiden sind. Aber diese drei Gattungen sind nicht dieselben wie die, welche man gemeiniglich

aufstellt, und wir bezeichnen in Ermangelung passenderer Ausdrücke die erste mit dem Namen

Vorstellung, die zweite mit dem Namen Urteil, die dritte mit dem Namen Gemütsbewegung, Interesse

oder Liebe! Keine dieser Benennungen ist von der Art, daß sie nicht mißverständlich wäre; vielmehr

wird jede häufig in einem engeren Sinne angewandt“. Brentano, Franz. Psychologie vom empirisch

Standpunkt, Zweiter Band, p. 33.

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psíquicos em três classes seguiu plenamente a orientação do mestre de

Estagira. Vejamos como sua análise esclareceu essa possibilidade:

Brentano propôs que a parte da alma definida por Aristóteles como

pensamento ( ) poderia ser analisada, mais uma vez, pelo critério

aristotélico da referência ao objeto intencional in-existente. Ao analisar o

pensamento ( ) segundo esse critério, a análise brentaniana apresentou

duas modalidades de referência ao objeto intencional in-existente. Eram elas,

as representações e os juízos. No caso, no entanto, a sutileza da analise não

estava em negar o fato de que os juízos supunham representações. Pelo

contrário, para Brentano se tratava de estabelecer dois pontos fundamentais.

Em primeiro lugar, era preciso apresentar o duplo modo de referência ao objeto

intencional in-existente na consciência: (a) como meramente representado; ou

(b) como afirmado ou negado. Em segundo lugar, era preciso apresentar, por

analogia à relação de dependência do desejo ( ) para com o pensamento

( ), a dependência da modalidade do juízo para com a modalidade de

representação. Assim, Brentano sintetizou a analogia do seguinte modo:

Afirmamos que todo objeto julgado é recebido na consciência de um duplo modo: como representado e como afirmado ou negado. A relação seria análoga àquela que a grande maioria dos filósofos, e Kant não menos que Aristóteles, admite entre a representação e o apetite, com razão, como vimos. Nada é apetecido que não seja representado. Mas o apetite é uma segunda modalidade, inteiramente nova e peculiar, da referência ao objeto. Uma segunda classe inteiramente nova da percepção do objeto na consciência. Nada é, tampouco, julgado que não seja representado. Mas sustentamos que, enquanto o objeto de uma representação se converte em objeto de um juízo afirmativo ou negativo, a consciência entra em uma classe completamente nova de referência.

128

Analisemos com um pouco mais de precisão alguns pontos que

acabam de ser afirmados na citação acima. É ponto pacífico que se trata aqui

128

„Wir behaupten vielmehr, daß jeder Gegenstand, der beurteilt werde, in einer doppelten Weise im

Bewußtsein aufgenommen sei, als vorgestellt und als anerkannt oder geleugnet. So wäre denn das

Verhältnis ähnlich dem, welches mit Recht, wie wir sahen, von der großen Mehrzahl der Philosophen,

und von Kant nicht minder als von Aristoteles, zwischen Vorstellen und Begehren angenommen wird.

Nichts wird begehrt, was nicht vorgestellt wird; aber doch ist das Begehren eine zweite, ganz neue

und eigentümliche Weise der Beziehung zum Objekte, eine zweite, ganz neue Art von Aufnahme

desselben ins Bewußtsein. Nichts wird auch beurteilt, was nicht vorgestellt wird; aber wir behaupten,

daß, indem der Gegenstand einer Vorstellung Gegenstand eines anerkennenden oder verwerfenden

Urteils werde, das Bewußtsein in eine völlig neue Art von Beziehung zu ihm trete“. Brentano, Franz.

Psychologie vom empirisch Standpunkt, Zweiter Band, p. 38.

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da orientação aristotélica utilizada por Brentano para descrever, em sua

Psicologia do ponto de vista empírico, a representação como aquela atividade

psíquica fundamental, que se constituía como base dos juízos e dos

sentimentos. Havia, no entanto, algo mais.

Em 1874, o ponto fundamental da tese brentaniana estava no papel

que o objeto imanente exercia na consciência, em função do estatuto

ontológico que lhe era atribuído pelo modo intencional de in-existência. Em

outras palavras, embora Brentano considerasse que o aspecto característico

de cada uma das classes fundamentais da atividade psíquica consistia no

modo peculiar de referência ao objeto imanente, a especificidade da tese de

1874 estava no fato de que esses mesmos modos diversos de referência eram

ainda ontologicamente dependentes do objeto imanente. Assim, não apenas as

representações, mas também os juízos e os sentimentos, eram descritos, em

1874, como atividades psíquicas de referência, dependentes ontologicamente

do modo intencional de in-existência do objeto imanente ao qual se dirigiam.

Assim, portanto, a Psicologia do ponto de vista empírico não podia descrever

os juízos evidentes e a preferência superior, pois a intensidade do objeto

intencional in-existente na representação era o critério da referência do juízo e

do sentimento. Voltaremos a esse ponto no lugar devido.

Estabelecido e fundamentado o conceito positivo de fenômeno

psíquico, a análise brentaniana apresentou sua extensão e sua aplicação.

Assim, Brentano afirmou, na citação abaixo, que, mesmo se tratando sempre

de um único objeto imanente, “o objeto está concebido na consciência

duplamente, como representado e como afirmado ou negado”129:

Se houvéssemos reconhecido isto desde o início, não haveria ocorrido a ninguém a idéia de distinguir as representações e os juízos dizendo que o conteúdo das primeiras é a idéia simples e o conteúdo dos últimos uma idéia composta. Pois, na verdade, não existe a menor diferença no que diz respeito ao conteúdo. O que afirma, o que nega e o que incerto pergunta, tem o mesmo objeto na consciência. O último, representando-o meramente. Os dois primeiros, representando-o e ao mesmo tempo admitindo-o ou rechaçando-o.

129

„Er ist dann doppelt im Bewußtsein aufgenommen, als vorgestellt und als für wahr gehalten oder

geleugnet“. Brentano, Franz. Psychologie vom empirisch Standpunkt, Zweiter Band, p. 38.

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78

Todo objeto que é conteúdo de uma representação pode ser conteúdo de um juízo, segundo as circunstâncias.

130

Esse critério estendeu-se, também, à classe dos sentimentos. E, tal

como afirmou Brentano na comparação citada abaixo, “[...] do mesmo modo,

quando o apetite se dirige a ele, o objeto é inerente como representado e, ao

mesmo tempo, como apetecido”131:

Comparamos, com esta finalidade, a relação entre a representação e o juízo com a relação entre as duas classes de fenômenos cuja profunda diversidade na referência ao objeto está fora de dúvida: com a relação entre as representações e os fenômenos de amor e ódio. Assim como um objeto, ao mesmo tempo representado e amado ou ao mesmo tempo representado e odiado, está intencionalmente na consciência de um duplo modo, também ocorre o mesmo com um objeto que, ao mesmo tempo, representamos e afirmamos ou que, ao mesmo tempo, representamos e negamos. Todas as circunstâncias são análogas aqui e ali. Todas mostram que, no primeiro caso, uma segunda modalidade de consciência fundamentalmente distinta se acrescenta à primeira modalidade, assim como sucede também no outro caso.

132

Deixaremos para o momento oportuno a análise do problema que se

impõe de imediato para a teoria brentaniana de 1874, a saber: a

impossibilidade de explicar os juízos negativos verdadeiros. Por ora,

analisemos, com um pouco mais de precisão, a orientação aristotélica adotada

por Brentano para a classificação dos fenômenos psíquicos da terceira classe.

130

„Hätte man dies von Anfang erkannt, so wäre wohl niemand auf den Gedanken gekommen,

Vorstellungen und Urteile dadurch zu unterscheiden, daß der Inhalt der ersteren ein einfacher, der

Inhalt der letzteren ein zusammengesetzter Gedanke sei. Denn in Wahrheit besteht hinsichtlich des

Inhaltes nicht der geringste Unterschied. Der Bejahende, der Verneinende und der ungewiß Fragende

haben denselben Gegenstand im Bewußtsein; der letzte, indem er ihn bloß vorstellt, die beiden ersten,

indem sie ihn zugleich vorstellen und anerkennen oder verwerfen. Und jedes Objekt, das Inhalt einer

Vorstellung ist, kann unter Umständen auch Inhalt eines Urteils werden“. Brentano, Franz.

Psychologie vom empirisch Standpunkt, Zweiter Band, p. 68.

131 „Wie er, wenn die Begierde auf ihn sich richtet, als vorgestellt zugleich und als begehrt ihm

innewohnt“. Brentano, Franz. Psychologie vom empirisch Standpunkt, Zweiter Band, p. 38.

132 „Vergleichen wir zu diesem Zwecke das Verhältnis von Vorstellung und Urteil mit dem Verhältnis

zwischen zwei Klassen von Phänomenen, deren tiefgreifende Verschiedenheit in der Beziehung zum

Objekt außer Frage steht: nämlich mit dem Verhältnis zwischen Vorstellungen und Phänomenen von

Liebe oder Haß. So sicher es ist, daß ein Gegenstand, der zugleich vorgestellt und geliebt, oder

zugleich vorgestellt und gehaßt wird, in zweifacher Weise intentional im Bewußtsein ist: so sicher gilt

dasselbe auch in betreff eines Gegenstandes, den wir zugleich vorstellen und anerkennen, oder

zugleich vorstellen und leugnen. Alle Umstände sind hier und dort analog; alle zeigen, daß, wenn in

dem einen, auch in dem anderen Falle eine zweite, grundverschiedene Weise des Bewußtseins zu der

ersten hinzugekommen ist“. Brentano, Franz. Psychologie vom empirisch Standpunkt, Zweiter Band,

p. 65.

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79

Explicitamente orientado pela atividade psíquica classificada por

Aristóteles como desejo ( ), Brentano assumiu sem ressalvas esse

critério para a terceira classe de fenômenos psíquicos. Essa assunção está

descrita do seguinte modo:

Pois bem, creio que algo é amado – ou, dito com mais exatidão, algo é amado ou odiado - em todo ato pertencente a esta terceira classe, tomado no sentido que a palavra tem no segundo caso. Assim como todo juízo toma um objeto por verdadeiro ou falso, também de um modo análogo todo fenômeno pertencente à terceira classe toma um objeto por bom ou mau.

133

Essa descrição, bem como a analogia entre a atividade psíquica do

juízo e a atividade psíquica de amor e ódio apresentou um ponto que ainda não

havíamos explicitado. Tal como sustentou Brentano no final da citação acima, a

especificidade existente em cada um dos modos de referência ao objeto

imanente implicava consequências específicas. Por um lado, se a atividade

psíquica de juízo consistia no modo de referência que afirmava ou negava o

objeto imanente, então decorria dessa mesma atividade a tomada

(conhecimento) do objeto imanente à consciência como verdadeiro ou falso.

Por outro lado, se a atividade psíquica de amor e ódio consistia no modo de

referência que ama ou odeia o objeto imanente, então também decorria dessa

mesma atividade a tomada (experiência) do objeto imanente à consciência

como bom ou mau. É de estrema relevância ressaltar esse ponto, pois ele

estabeleceu o norte da teoria do sentimento moral apresentada em 1874. Em

outras palavras, o fundamento da teoria do sentimento moral estava na in-

existência intencional do objeto imanente e não, como será proposto em 1889,

na relação intencional constituinte do ato de consciência. Assim, portanto, a

Psicologia do ponto de vista empírico tinha sua tese desenvolvida sobre o

pressuposto de que o objeto imanente possuía os pressupostos ontológicos

que permitiam o seu conhecimento como verdadeiro ou falso, assim como esse

mesmo objeto imanente possuía os pressupostos ontológicos que permitiam a

sua experiência como bom ou mau. Tratava-se, em 1874, de uma descrição do

133

„In einem Sinne wie dem, welchen das Wort in dem zweiten Falle hat, glaube ich nun, daß in jedem

Akte, der zu dieser dritten Klasse gehört, etwas geliebt, genauer gesprochen etwas geliebt oder gehaßt

wird. Wie jedes Urteil einen Gegenstand für wahr oder falsch nimmt, so nimmt in analoger Weise

jedes Phänomen, welches der dritten Klasse zugehört, einen Gegenstand für gut oder schlecht“.

Brentano, Franz. Psychologie vom empirisch Standpunkt, Zweiter Band, p. 36.

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valor de verdade e uma descrição do valor moral do objeto imanente orientada

pelo estatuto ontológico que ele possuía.

2.4 A dependência ontológica e epistemológica dos fenômenos de amor ou ódio como fundamento da ética do sentimento moral.

A formulação da noção positiva de fenômenos psíquicos abriu o

caminho para a análise do debate entre Brentano e outro pensador que, além

de Aristóteles, exerceu um papel fundamental na Psicologia do ponto de vista

empírico. Trata-se de Augusto Comte, pois ele estabeleceu os critérios de

cientificidade para a filosofia positiva. Como enfatizamos no ponto anterior, a

fundação da psicologia como ciência foi o problema específico que Psicologia

do ponto de vista empírico pretendeu resolver. Por isso, a apresentação do

método e a definição positiva do objeto de tal ciência foram as principais

tarefas de Brentano. As palavras com que Brentano iniciou sua obra de 1874

enfatizaram esse compromisso:

O título que atribuí à minha obra explicita por si mesmo o objeto e o método. Em psicologia eu me coloco no ponto de vista empírico. Meu único mestre é a experiência. Eu compartilho, portanto, com outros filósofos, a convicção que uma certa fonte de ideal não é incompatível com este ponto de vista

134.

Segundo a análise de Dieter Münch, foi o aristotelismo de

Brentano135 que o levou a se familiarizar com a filosofia concebida a partir do

espírito científico136. Sob a influência do mestre de Estagira, Brentano foi

134

„Die Aufschrift, die ich meinem Werke gegeben, kennzeichnet dasselbe nach Gegenstand und

Methode. Mein Standpunkt in der Psychologie ist der empirische: die Erfahrung allein gilt mir als

Lehrmeisterin: aber mit anderen teile ich die Überzeugung, daß eine gewisse ideale Anschauung mit

einem solchen Standpunkte wohl vereinbar ist“. Brentano, Franz. Psychologie vom empirisch

Standpunkt, Erster Band, p. 1.

135 Uma descrição das relações entre os conceitos da psicologia aristotélica e a psicologia brentaniana é

apresentado por Münch como boneco de palha do seu argumento que pretende estabelecer a

influência de Comte na psicologia de Brentano. Cf. Münch, Dieter. Brentano and Comte, p. 33-38.

136 Conferir especialmente a introdução de Münch em seu artigo Brentano and Comte (p. 33-39). Sobre a

relevância da filosofia positiva para o desenvolvimento científico da humanidade, conferir o artigo

Quatro fases da filosofia e seu estado atual (Die Vier Phasen der Philosophie und ihr

augenblicklicher Stand), onde Brentano destaca a superioridade da posição histórica de Comte para

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envolvido na compreensão da filosofia empírica, especialmente a assim

chamada filosofia positiva desenvolvida por Comte. Como consequência dessa

aproximação, Münch considera que a teoria brentaniana dos fenômenos

psíquicos foi uma resposta para a questão: „Como podemos lidar com

fenômenos psíquicos no contexto da filosofia positiva?‟. Em outras palavras,

Brentano estava tentando resolver um problema gestado dentro da própria

filosofia positiva e que buscava estabelecer a lei da fundação da psicologia

como ciência137.

Ao seguirmos a interpretação aberta por Münch, dois pontos

explicitam claramente a base comtiana utilizada por Brentano para estabelecer

o método e o objeto da Psicologia proposta. A saber: (1) o compromisso crítico

com a cientificidade moderna de evitar pressuposições metafísicas138; e (2) o

compromisso positivista de restringir os objetos da ciência aos fenômenos para

instituir, de modo cada vez mais geral, as leis que explicam as relações entre

eles139. Por questões metodológicas, analisaremos apenas esse segundo

ponto, pois o debate acerca da exclusão das pressuposições metafísicas não

faz parte do nosso tema.

com a história da filosofia.

137 Münch, Dieter. Brentano and Comte, p. 36.

138 Esse é um ponto delicado, no entanto é fundamental relevar que, na Psicologia do ponto de vista

empírico, Brentano abdica da pretensão transcendente em função dos limites epistemológicos do

método que pretende utilizar. Assim, a realidade dos fenômenos físicos deve ser rejeitada a partir da

perspectiva empírica e seu alcance. Nesses termos, diz Brentano, “[...] não é, pois, correta a hipótese

de que um fenômeno físico, como os que se encontram intencionalmente em nós, exista fora do

espírito e encerre realmente uma contradição. Apenas a comparação de um com outro resultam em

conflitos que provam claramente como aqui nenhuma existência real corresponde à intencional. E

sendo assim, até onde nossa experiência alcança, não erramos em negar aos fenômenos físicos toda

existência distinta da intencional”. [„Nicht also das ist richtig, daß die Annahme, es existiere ein

physisches Phänomen, wie die, welche intentional in uns sich finden, außerhalb des Geistes und in

Wirklichkeit, einen Widerspruch einschließt, nur eines mit dem anderen verglichen, zeigen sie

Konflikte, welche deutlich beweisen, daß der intentionalen hier keine wirkliche Existenz entspricht“.

Brentano, Franz. Psychologie vom empirisch Standpunkt, Erster Band, p. 132.

139 “De início, certos fenômenos evidentes e conhecidos pareciam prover uma explicação de realidades

secretas. Reconhecidos posteriormente como mais obscuros que todos os demais, começaram a

despertar assombro e curiosidade. Os grandes pensadores da antiguidade consagraram a eles o melhor

de suas atividades. No entanto, não se estabeleceu consenso ou clareza acerca deles. Estes são

precisamente os fenômenos que converti em meu objeto de estudo. Neste trabalho proponho esboçar,

em termos gerais, um quadro exato de suas características e leis”. [“Was im Anfang, wohlbekannt

und offenbar, für das Verborgene die Erklärung schien, und was später, vor anderem geheimnisvoll,

Staunen und Wißbegier erweckte; woran die großen Denker des Altertums am meisten mit Eifer sich

abmühten, und worüber Eintracht und Klarheit noch heute am wenigsten erzielt sind: das sind die

Erscheinungen, die auch ich wieder forschend betrachtete, und von deren Eigentümlichkeiten und

Gesetzen ich hier, in allgemeinen Zügen, ein berichtigtes Bild zu geben suche]. Brentano, Franz.

Psychologie vom empirisch Standpunkt, Erster Band, p. 5.

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Ora, para a filosofia positiva, as ciências eram as ciências dos

fenômenos, pois elas estabeleciam as leis gerais da relação entre eles140. É

nessa ótica que a psicologia como ciência dos fenômenos psíquicos deve ser

observada. Assim, no entanto, uma questão se impõe de imediato: Qual é o

critério da filosofia positiva recepcionado por Brentano no que se refere às leis

que governam as relações entre os fenômenos psíquicos? Tal como expõe a

exigência de Comte, na citação a seguir, tratava-se da generalidade, da

simplicidade e da independência recíproca:

Existe, a este respeito, uma ordem invariável e necessária que nossos diversos gêneros de concepção seguiram e tiveram de seguir em sua progressão, e cuja consideração exata é o complemento indispensável da lei fundamental precedentemente enunciada. Esta ordem será o assunto especial da próxima lição. Basta-nos, por hora, saber que se conforma com a natureza diversa dos fenômenos e que se determina por seu grau de generalidade, de simplicidade e de independência recíprocas, três considerações que, embora distintas, concorrem no mesmo fim.

141

Ao vincular essas exigências comtianas à sua orientação aristotélica,

Brentano reconheceu a existência de uma relação hierárquica entre os

fenômenos psíquicos. Com base em passagens da Psicologia do ponto de

vista empírico, apresentaremos a descrição das distintas atividades da

consciência a partir dos seguintes critérios comtianos: a independência relativa,

a simplicidade e a generalidade da classe. Cabe ressaltar que esse critério

explicitou o fundamento ontológico para a ética do sentimento moral de 1874.

140

Em sua análise direta da filosofia comtiana, diz Brentano: “[...] o que distingue nossa condição daquela

dos céticos é nossa exigência de que é possível conhecer a verdadeira relação que existe entre as

coisas. Nós não podemos determinar o tamanho absoluto de um objeto, mas nós podemos calcular seu

tamanho relativo com precisão. Nós nunca poderemos saber o absoluto momento no qual um evento

ocorre, mas nós podemos ser capazes de especificar quando ele ocorre em relação a outro evento”

(Brentano, Franz. Augusto Comte, p. 114, in: D. Münch, Brentano and Comte, p. 40). Outra citação

análoga é apresentada por Kraus no prefácio da Psicologia do ponto de vista empírico. “Neste ponto

nós (Brentano se referindo a Comte) permanecemos com os céticos. E que outro ponto existe que nos

diferenciaria deles, se não a indicação do reconhecimento da verdadeira relação entre as coisas? O

tamanho de um corpo não é determinável, mas podemos medir e calcular sua relação com exatidão...

É assim que nos separamos dos céticos e deles nos distanciamos em mil milhas“. [„In diesem Punkte

müssen wir Alle [Comte und Brentano] zu den Skeptikern stehen. Und was Anderes bleibt, das uns

von ihnen unterscheiden könnte, wenn nicht die Behauptung der Erkennbarkeit der wahren

Verhältnisse der Dinge? - Die absolute Größe eines Körpers ist nicht bestimmbar, die relative können

wir mit Genauigkeit messen und berechnen; die absolute Zeit eines Ereignisses ist uns unbekannt, das

Früher und Später können wir vielleicht auf Stunde und Minute angeben. Das also ist, was uns von

den Skeptikern trennt, und es entfernt uns von ihnen weit und auf tausend Meilen“]. Brentano, Franz.

Psychologie vom empirisch Standpunkt,Erster Band, p. 132.

141 Comte, Augusto. Curso de filosofia positiva, p. 14

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Em outras palavras, a ordem hierárquica proposta por Brentano, mediante os

três critérios positivistas, explicitou a dependência ontológica do sentimento

para com o juízo e do juízo para com a representação. Vejamos

detalhadamente como Brentano apresentou essa descrição.

Brentano analisou separadamente cada uma das três classes de

fenômenos psíquicos (representação, juízo e sentimento) para verificar a sua

adequação ao critério positivista. O resultado de sua análise mostrou que o

fenômeno psíquico de representação possuía um caráter universal e

necessário. Essas universalidade e necessidade encontravam-se no modo de

referência do ato de representar o objeto intencional in-existente. Tal como

afirmou Brentano, na citação a seguir, essa característica fazia com que a

representação fosse a atividade psíquica fundamental:

Não quero dizer que o juízo e o amor não estejam representados de algum modo em todo estado psíquico, ressaltamos isto agora mesmo. Mas assinalamos ao mesmo tempo certa diferença de generalidade, de modo que o objeto primário só está presente de um modo necessário e universal na consciência, no modo de inerência (in-existência) intencional que é próprio do ato de representar.

142

Segundo a análise brentaniana, a evidência desse argumento

decorria do seguinte fato. Uma vez aceito o critério aristotélico de divisão das

atividades psíquicas, “[...] é possível pensar sem contradição em um ente que,

sem a faculdade do juízo e do amor, estivesse provido apenas da faculdade de

representação, mas não o contrário”143. As representações, por si só e ainda

que em caráter fictício, permitiriam a inferência de leis que descreveriam essa

única atividade psíquica, tal como revelavam algumas de nossas atividades

psíquicas144.

142

„Ich sage dies nicht, als wollte ich leugnen, daß auch Urteil und Liebe in jedem psychischen Zustande

irgendwie vertreten seien; dies haben wir vielmehr soeben noch ausdrücklich hervorgehoben. Aber

wir haben dennoch zugleich einen gewissen Unterschied der Allgemeinheit bemerkt, insofern das

primäre Objekt notwendig und allgemein nur in der dem Vorstellen eigenen Weise der intentionalen

Einwohnung im Bewußtsein gegenwärtig ist“. Brentano, Franz. Psychologie vom empirisch

Standpunkt, Zweiter Band, p. 127.

143 „Auch könnte man sich ohne Widerspruch ein Wesen denken, welches, ohne Vermögen für Urteil und

Liebe, allein mit dem Vermögen der Vorstellung ausgestattet wäre, nicht aber umgekehrt“. Brentano,

Franz. Psychologie vom empirisch Standpunkt, Zweiter Band, p. 127.

144 "As leis do curso das representações, em uma ficção psíquica semelhante, poderiam ser algumas das

leis cujo influxo se revela atualmente em nossa vida psíquica”. [„Die Gesetze des Vorstellungslaufes

bei einer solchen psychischen Fiktion könnten einige von den Gesetzen sein, die auch jetzt in unserem

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Façamos uma observação importante. A argumentação brentaniana

que estamos analisando se desenvolveu à luz do seguinte pressuposto. Os

fenômenos psíquicos de representação possuíam um estatuto epistemológico

privilegiado. Tratava-se da descrição do modo como a consciência apreendia

imediatamente todo ato de representar, por meio de uma coconsciência que

acompanhava o próprio ato. Brentano explicitou a evidência desse ato psíquico

por meio de um juízo existencial que, não se caracterizando como atribuição de

verdade ou falsidade, se restringia a reconhecer a representação do fenômeno

físico.

Ora, a representação era o ato evidente de referência ao objeto

intencional in-existente. Desse modo, as regras que podiam ser inferidas a

partir da atividade de representação constituíam leis gerais, segundo os

critérios positivistas. Tais leis, no entanto, descreviam exclusivamente a relação

direta entre intensidade da excitação física e a intensidade da sensação145.

A aplicação prática dessa lei elementar estabeleceu, por exemplo,

que a única intensidade encontrada nas representações era a maior ou menor

vivacidade e nitidez do fenômeno. Desse modo, a atividade de representação

comportava, por esse mesmo motivo, os três critérios exigidos para a atividade

psíquica fundamental: “Ela é [diz Brentano] o mais simples dos três fenômenos

psíquicos, uma vez que o juízo e o amor comportam sempre uma

representação”146. Por isso mesmo, “[...] é a mais independente na medida em

que é a base das restantes e, precisamente por isso, este fenômeno é também

o mais geral” 147.

Ao aplicar esses critérios às classes dos juízos e de sentimentos, a

análise brentaniana reconheceu o seguinte. Mesmo que tais fenômenos

tivessem necessariamente por base as representações, os juízos estariam

numa situação de independência relativa para com os sentimentos, pois,

psychischen Leben ihren Einfluß offenbaren“]. Brentano, Franz. Psychologie vom empirisch

Standpunkt, Zweiter Band, p. 127-128.

145 Cf. Brentano, Franz. Franz. Psychologie vom empirisch Standpunkt, Erster Band, p. 98-99.

146 „Sie ist das einfachste der drei Phänomene, indem Urteil und Liebe immer eine Vorstellung in sich

schließen“. Brentano, Franz. Psychologie vom empirisch Standpunkt, Zweiter Band, p. 127.

147 „Sie ist ebenso das unabhängigste unter ihnen, da sie die Grundlage der übrigen ist; und ebendarum ist

dieses Phänomen auch das allgemeinste“. Brentano, Franz. Psychologie vom empirisch Standpunkt,

Zweiter Band, p. 127.

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argumenta ele, “[...] não existiria contradição na idéia de um ente que unisse a

atividade do juízo com a de representação, mas carecesse de todo movimento

de amor ou ódio”148. Como esse era um caso possível, a análise brentaniana

também considerou possível a complementação das leis da representação

pelas leis do juízo. Em outras palavras, as leis específicas inferidas a partir da

atividade do juízo poderiam ser acrescentadas àquelas inferidas a partir da

pura atividade de representação. Esclareçamos esse ponto de outra maneira.

Argumentamos que a aplicação prática da lei elementar inferida da

atividade de representação permitiu estabelecer a maior ou menor nitidez e

vivacidade acerca do fenômeno. Podemos dizer, então, que a essa lei

elementar acrescentavam-se agora as leis do conhecimento (lógica). Tais leis,

determinantes dos critérios da atribuição de verdade ou falsidade, seriam

inferidas a partir da atividade psíquica do juízo. Além disso, embora menos

independente, menos simples e menos geral que a representação, o juízo seria

considerado relativamente mais independente, mais simples e mais geral que o

sentimento de amor e ódio. Em função dos critérios positivistas, diz Brentano a

seguir, esta última classe seria aquela que dependeria de todas as demais,

sendo por isso a menos simples e geral:

Em relação à independência, em relação à simplicidade e também, por isso mesmo, em relação à generalidade, esta classe encontra-se atrás da classe do juízo. Ainda que, no que se refere à generalidade apenas no sentido, naturalmente, em que se pode falar de uma diferença de generalidade na representação e no juízo.

149

A análise brentaniana descreveu o sentimento de amor ou ódio

como dependente epistemologicamente do juízo e, na medida em que o juízo

dependia ontologicamente da representação, essa dependência se estendeu

também à atividade psíquica de sentimento de amor ou ódio. Detenhamo-nos

um pouco mais nessa última descrição. O que nos interessa, de modo

148

„Der Gedanke eines Wesens, das mit der Tätigkeit zum Vorstellen die zum Urteilen verbände, aber

ohne jede Regung der Liebe oder des Hasses bliebe, enthält keinen Widerspruch“. Brentano, Franz.

Psychologie vom empirisch Standpunkt, Zweiter Band, p. 128.

149 „In bezug auf Unabhängigkeit, in bezug auf Einfachheit, und eben darum auch in bezug auf

Allgemeinheit steht also diese Klasse der des Urteiles nach; an Allgemeinheit natürlich nur in dem

Sinne, in welchem allein auch bei Vorstellung und Urteil von einem Unterschiede der Allgemeinheit

gesprochen werden konnte“. Brentano, Franz. Psychologie vom empirisch Standpunkt, Zweiter Band,

p. 128-129.

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específico, são as consequências que resultaram da aplicação desse critério à

representação e ao juízo, pois essas consequências se impuseram sobre a

definição do fenômeno de amor ou ódio. Distinguiremos, para isso, dois pontos

da argumentação brentaniana.

O primeiro ponto relevante trata da natureza do juízo pressuposto

em toda atividade psíquica de amor ou ódio. Brentano ressaltou que, ao

analisarmos o sentimento a partir de uma relação com o juízo, saltava aos

olhos uma diferença manifesta acerca do tipo de juízo pressuposto na atividade

psíquica do sentimento de amor e ódio. Em suas palavras exemplificadoras,

disse ele, “[...] não é certamente necessário que quem ama algo creia que este

algo exista ou que possa existir, mas todo amor é um querer que algo seja”150.

Brentano esclareceu, a partir desse exemplo, um dos sustentáculos de sua

ética como teoria do sentimento moral (1874). Segundo sua análise, o ato de

querer pressupunha um juízo ou crença, não acerca do objeto desejado, mas

acerca de uma relação causal, pois, quando um ato de amor desencadeava

outro ato de amor, ou quando uma coisa era amada por amor de outra coisa,

existia sempre o juízo ou crença pressuposta de que uma coisa amada possuía

certa relação (causal) com a outra151. Isso se explica perfeitamente a partir de

outro exemplo que ele apresentou:

Segundo o juízo sobre a existência ou a não existência, a verossimilhança ou a inverossimilhança, daquilo que se ama, o ato de amor é alegria, tristeza, esperança, temor e outras muitas formas que ainda toma. Parece inconcebível que um ente esteja dotado com a faculdade do amor e do ódio, sem ter parte na (faculdade) do juízo.

152

O segundo ponto relevante trata da dependência (epistemológica)

que a atividade psíquica de amor e ódio tinha para como as leis inferidas a

partir das atividades psíquicas de representação e juízo. Em outras palavras,

150

„Es ist gewiß nicht nötig, daß derjenige, welcher etwas liebt, glaubt, daß es existiere, oder auch nur

existieren könne; aber dennoch ist jedes Lieben ein Lieben, daß etwas sei“. Brentano, Franz.

Psychologie vom empirisch Standpunkt, Zweiter Band, p. 128.

151 Brentano, Franz. Psychologie vom empirisch Standpunkt, Zweiter Band, p. 127 - 128.

152 „Je nach dem Urteile über das Sein oder Nichtsein, die Wahrscheinlichkeit oder Unwahrscheinlichkeit

dessen, was man liebt, ist der Akt der Liebe bald Freude, bald Trauer, bald Hoffnung, bald Furcht, und

nimmt so noch mannigfache andere Formen an. So scheint es in der Tat undenkbar, daß ein Wesen

mit dem Vermögen der Liebe und des Hasses begabt wäre, ohne an dem des Urteiles Teil zu haben“.

Brentano, Franz. Psychologie vom empirisch Standpunkt, Zweiter Band, p. 128.

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sobre o pressuposto de que todo sentimento tinha por base um juízo e este,

por sua vez, uma representação, estava o fato de que seria impossível

estabelecer qualquer lei de sucessão para os fenômenos de amor ou ódio se

eles não estivessem baseados em juízos. Reconhecemos essa consequência

da análise brentaniana na descrição abaixo, que tratou dos aspectos análogos

existentes entre os juízos e os sentimentos:

Passemos ao último ponto da comparação: as leis da sucessão dos fenômenos. Mesmo que os juízos não se mostrem independentes das leis gerais do curso das representações, eles apresentam ainda outras leis especiais que não podem ser derivadas daquelas. Já ressaltamos que estas leis constituem as principais bases psicológicas da lógica. Diríamos, então, que no amor ou ódio acontece algo análogo. De fato, estes fenômenos não são independentes, nem das leis do curso das representações, nem das gêneses e sucessões dos juízos. No entanto, eles também mostram leis especiais e originais em sua sucessão e desenvolvimento, as quais formam as bases psicológicas da ética

153.

Ora, se o juízo era o pressuposto fundamental da atividade psíquica

de amor e ódio, bem como das leis éticas inferidas a partir dessa atividade

psíquica, então é fundamental que apresentemos o modo como Brentano os

descreve.

Um modo de apresentar a teoria brentaniana dos juízos é analisar

sua proposta de reforma da lógica vigente. Nessa proposta, a lógica

encontrava seu fundamento em juízos que não eram definidos como

conhecimento no sentido clássico do termo (S é P), mas como predicações

existenciais. Essas predicações existenciais descreviam o modo de referência

da atividade psíquica dos juízos ao objeto intencional in-existente ((S é P)é) e

((S)é). Eram esses juízos existenciais, portanto, que estariam na base do

sentimento de amor e ódio e de suas leis. Vejamos os detalhes dessa teoria:

153

„Wenden wir uns zu dem letzten Punkte des Vergleiches, zu den Gesetzen der Sukzession der

Erscheinungen. Bei den Urteilen, obwohl sie von den allgemeinen Gesetzen des Vorstellungslaufes

sich keineswegs unabhängig zeigen, kommen doch noch andere, besondere Gesetze hinzu, welche aus

ihnen nicht abgeleitet werden können. Wir bemerkten bereits, daß diese Gesetze die vorzügliche

psychologische Grundlage der Logik ausmachen. Bei Liebe und Haß, sagten wir damals, sei etwa

ähnliches der Fall; und in der Tat sind zwar diese Phänomene weder von den Gesetzen des

Vorstellungslaufes noch von denen der Entstehung und Sukzession der Urteile unabhängig; aber

dennoch zeigen auch sie besondere unableitbare Gesetze ihrer Aufeinanderfolge und Entwickelung,

welche die psychologische Grundlage der Ethik bilden“. Brentano, Franz. Psychologie vom empirisch

Standpunkt, Zweiter Band, p. 109.

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88

Ao tomar por base os fundamentos teóricos da sua Psicologia do

ponto de vista empírico, a análise brentaniana propôs a reformulação dos

ramos práticos da psicologia. A lógica, que até então fora concebida como

teoria do silogismo, deveria ser reformulada. Em outras palavras, Brentano

propôs uma correção para as clássicas proposições universais afirmativas e

negativas, bem como para as proposições particulares afirmativas e negativas.

De fato, tais correções estavam orientadas pela própria teoria brentaniana do

juízo existencial que descrevia a evidência imediata da percepção interna.

Assim, os juízos a serem reformulados seriam, disse ele, “[...] os particulares

afirmativos, os universais negativos e os erroneamente chamados universais

afirmativos e particulares negativos”154. A análise brentaniana, portanto, propôs

uma redução para as proposições que constituíam o quadrado de oposições do

silogismo, pois Brentano considerava que, “[...] como a redução anterior à

forma existencial permite reconhecer claramente, nenhum juízo afirmativo é

universal (ou teríamos que chamar de universal ao juízo com matéria

individual), nenhum juízo negativo é particular”155.

O que está em jogo nesse ponto é algo bem simples quando

consideramos que a lógica era, também, um ramo da psicologia empírica, pois

seus fundamentos deveriam estar circunscritos às atividades da consciência.

Se isso fosse considerado, a especificidade estaria em inferir a nova teoria do

silogismo a partir da atividade básica do juízo, pois essa atividade consistia na

atribuição mais radical de verdade.

A questão é objetiva: Que descrição do ato psíquico daria origem à

verdade? Como resposta, Brentano descreveu o juízo como uma atribuição de

valor de verdade ao ato psíquico (ou relação) que se refere ao objeto

intencional in-existente, “orientado” (por isso mesmo) pelo estatuto ontológico

do objeto que ele contém (de certo modo). Isto significava, dizia ele, que “[...]

quem assente a algo, não apenas admite o objeto, mas também, à pergunta

154

„Die partikulär bejahenden, die allgemein verneinenden, und die irrtümlich sogenannten allgemein

bejahenden und partikulär verneinenden“. Brentano, Franz. Psychologie vom empirisch Standpunkt,

Zweiter Band, p. 57.

155 „In Wahrheit ist, wie die obige Rückführung auf die existentiale Formel deutlich erkennen läßt, kein

bejahendes Urteil allgemein es müßte denn ein Urteil mit individueller Materie allgemein genannt

werden) und kein verneinendes Urteil partikulär“. Brentano, Franz. Psychologie vom empirisch

Standpunkt, Zweiter Band, p. 57.

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sobre se o objeto deve ser admitido, admitirá também a admissibilidade do

objeto, ou seja, a verdade do objeto (pois a expressão bárbara não significa

outra coisa)” 156. Nesse sentido, essa era também uma descrição da estrutura

do juízo que, no entanto, rompia como o modelo clássico da predicação „A é B‟.

Tratava-se aqui, por analogia ao fundamento epistemológico da percepção

interna, de um tipo de predicação existencial de inspiração aristotélica. Cabe

ressaltar que Brentano a apresentou pela primeira vez em sua tese doutoral, ao

descrever o sentido impróprio do ser como verdadeiro. Naquele contexto,

tratava-se de uma predicação do tipo [(A é B)é], ou ainda, [(A)é]. No momento

oportuno, trataremos do modo como as leis lógicas são inferidas a partir do

juízo existencial. No momento, basta indicar sua origem.

Analisemos, agora, a questão de modo inverso. Se, como descreveu

Brentano, o estatuto epistemológico do conhecimento estava assegurado aos

juízos, então como seria possível descrever a experiência sentimental de amor

ou ódio? Além disso, como seria possível inferir e explicitar as leis que regem a

sucessão das atividades psíquicas de sentimento? Em outras palavras, como a

psicologia empírica de 1874 compreendeu esse problema e, com isso,

apresentou a ética do sentimento moral como sua solução?

Ora, a análise brentaniana sustentou taxativamente que o

conhecimento estava circunscrito à esfera dos juízos157. Desse postulado

decorreu, por um lado, que seria impossível obter tal conhecimento a partir da

natureza dos fenômenos de amor, fossem eles prazer ou dor, desejo ou temor.

Assim como era inconcebível, também, no âmbito de uma Psicologia do ponto

de vista empírico, a possibilidade de que tais sentimentos fossem inatos.

Existia, no entanto, aquilo que Brentano concebeu, em 1874, como uma

vantagem teórica: a implicação de que as experiências próprias das atividades

156

„Wer etwas für wahr hält, nicht bloß den Gegenstand anerkennt, sondern dann, auf die Frage, ob der

Gegenstand anzuerkennen sei, auch das Anzuerkennensein des Gegenstandes, d. h. (denn nichts

anderes bedeutet der barbarische Ausdruck) die Wahrheit des Gegenstandes ebenfalls anerkennen

wird“. Brentano, Franz. Psychologie vom empirisch Standpunkt, Zweiter Band, p. 89-90.

157 “Vimos como nas representações não há nem virtude e nem maldade, por um lado, e nem

conhecimento nem erro, por outro. Os dois últimos aparecem com os fenômenos do juízo. Os

primeiros encontram-se exclusivamente na esfera do amor e do ódio, como já dissemos”. [„Wir sahen,

wie in den Vorstellungen einerseits weder Tugend noch sittliche Schlechtigkeit, anderseits weder

Erkenntnis noch Irrtum liegt. Mit den Phänomenen des Urteilens kommen die letzten beiden hinzu;

das erste Paar dagegen liegt, wie schon gesagt, ausschließlich in dem Gebiete der Liebe und des

Hasses“]. Brentano, Franz. Psychologie vom empirisch Standpunkt, Zweiter Band, p. 108.

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psíquicas de sentimento de amor ou ódio se referiam às experiências

constituídas por existências e ações reais de um gênero especial de forças. Em

outras palavras, Brentano considerava que “[...] a força de certos fenômenos de

amor para a realização dos objetos aos quais estão dirigidos, é, pois, uma

condição prévia da volição”158. Essa dependência impunha-se, então, como

uma tentativa de dar conta do problema ético no contexto da Psicologia do

ponto de vista empírico. Seu fundamento encontrava-se, como descreveu

Brentano no texto a seguir, não apenas na unidade da terceira classe de

fenômenos psíquicos, mas também na dependência epistemológica dessa

classe de fenômenos para com os juízos:

Se a volição supõe a experiência de um influxo dos fenômenos de amor na produção do objeto amado, isto supõe evidentemente que também os fenômenos de amor, que não podem ser chamados de volições, se revelarão eficazes de modo análogo à volição, ainda que em um grau mais debilitado. Pois se semelhante eficiência pertencesse exclusivamente à volição, ficaríamos enredados em um círculo fatal. A volição suporia a experiência da volição, enquanto, naturalmente, de modo contrário, também esta experiência suporia a volição. Mas, a coisa é muito diferente se o mero desejo de certos sucessos tem por conseqüência sua realização. Então pode se repetir, com a modificação que o conhecimento desta eficiência o confere, ou seja, como volição.

159

É interessante ressaltar, novamente, como esse ponto estava em

jogo na transição entre a teoria ética de 1874 e 1889. Retomemos, então, o

problema que Brentano se empenhou em refutar na citação acima.

Ora, o que estava sendo exigido para evitar o círculo vicioso era o

fato de que a vontade não poderia supor a experiência da volição, assim como

158

“A força de certos fenômenos de amor para realizar os objetos aos quais estão dirigidos é, pois, uma

condição prévia da volição. Apenas ela (ainda quando não se considere a faculdade de agir como a

faculdade mesma de querer, como fez Bain) dá, de certo modo, a capacidade para esta”. [“Somit ist

die Kraft gewisser Phänomene der Liebe zur Verwirklichung der Gegenstände, auf welche sie

gerichtet sind, eine Vorbedingung des Wollens, und gibt, auch wenn man nicht, wie Bain es getan hat,

das Vermögen zu handeln als das Vermögen der Wollens selbst betrachtet, in gewisser Weise erst die

Fähigkeit zu ihm“]. Brentano, Franz. Psychologie vom empirisch Standpunkt, Zweiter Band, p. 115.

159 „Wenn das Wollen die Erfahrung eines Einflusses von Phänomenen der Liebe zur Hervorbringung des

geliebten Gegenstandes voraussetzt, so setzt es offenbar voraus, daß auch Phänomene der Liebe,

welche kein Wollen genannt werden können, ähnlich wie das Wollen, wenn auch vielleicht in

schwächerem Grade, sich wirksam erweisen. Denn würde eine solche Einwirkung sich ausschließlich

an das Wollen knüpfen, so würde man in einen verhängnisvollen Zirkel verwickelt. Das Wollen würde

die Erfahrung des Wollens voraussetzen, während natürlich umgekehrt auch diese das Wollen

voraussetzt. Anders, wenn auch schon das bloße Verlangen nach gewissen Ereignissen ihr Eintreten

zur Folge hat; es kann dann mit der Modifikation, welche die Kenntnis von dieser Kraftbeziehung ihm

gibt, d. i. als Wollen sich wiederholen“. Brentano, Franz. Psychologie vom empirisch Standpunkt,

Zweiter Band, p. 116.

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a experiência da volição não poderia supor a vontade. Como um modo de

evitar esse círculo vicioso, Brentano apresentou um tipo de solução que ele

mesmo reconhece, no contexto da formulação da sua teoria do conhecimento

moral de 1889, como o erro de Aristóteles. Como havíamos afirmado em partes

anteriores, Brentano é confesso acerca do reconhecimento tardio desse erro e

orientou sua nova teoria moral de 1889 pela necessidade de reformular o que

aqui ficava estabelecido. À luz da análise tardia do próprio Brentano, essa tese

de 1874 se ocupava de dois pontos. Descrever (a) o fenômeno psíquico do

amor como consequência do conhecimento (de uma relação de causa e efeito

entre objetos amados) e, com base na regra que se inferia dessa relação, (b)

descrever a ética como a retidão do amor que se encontrava em conformidade

com essa sua regra160.

O que, de fato, ainda não havia sido concebido pela teoria ética

proposta na Psicologia do ponto de vista empírico era, como já indicamos

acerca da análise brentaniana de 1889, o fato de que “[...] juntamente com a

experiência da atividade sentimental está unida concomitantemente o

conhecimento da bondade do objeto”.161 Em outras palavras, o círculo vicioso,

que Brentano rejeitava em 1874, foi retomado como um círculo virtuoso

descrito a partir da teoria da evidência do juízo e do sentimento superior,

tornando-se a tese central em 1889.

A análise exposta até o momento é suficiente para a apresentação

do esboço da teoria brentaniana do sentimento moral, ainda que ela se

encontre apenas imbricada nos argumentos que fundamentam a Psicologia do

ponto de vista empírico.

2.5 O esboço de uma teoria do sentimento moral no contexto da Psicologia do ponto de vista empírico.

160

Brentano, Franz. Vom Ursprung Sittlicher Erkenntnis, p. 79, nota 28.

161 „Daß mit der Erfahrung der als richtig charakterisierten Gemütstätigkeit auch die Erkenntnis der Güte

des Objekts immer zugleich gegeben ist“. Brentano, Franz. Vom Ursprung Sittlicher Erkenntnis, p. 79,

nota 28.

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Fazia parte do projeto da Psicologia do ponto de vista empírico

apresentar uma teoria do sentimento moral fundada na descrição da atividade

psíquica do sentimento de amor ou ódio. Ocorreu, no entanto, que essa tarefa,

que foi projetada para ocupar o livro V dessa mesma obra, nunca foi cumprida.

Os dois principais motivos teóricos que justificam esse abandono já foram

mencionados ao longo deste trabalho e serão analisados no próximo capítulo.

A saber: (1) a reformulação da noção de relação intencional, uma vez que

Brentano substituiu a noção in-existência intencional do objeto imanente pela

noção de ato intencional; (2) a reformulação da noção de verdade, uma vez

que Brentano passou a distinguir verdade como evidência e verdade como

correspondência no âmbito da atividade psíquica de juízos e, de modo análogo,

no âmbito da atividade psíquica de sentimentos. Mesmo assim, ainda que a

Psicologia do ponto de vista empírico apresente uma ética rudimentar e

também refutada pelo próprio autor, sua retomada consiste em uma etapa

indispensável para a compreensão daquela que foi apresentada em seu lugar.

Vejamos como os poucos detalhes antecipados explicitamente por Brentano

estruturaram a proposta de uma ética fundada em uma teoria do sentimento

moral.

Uma apresentação sistemática dos elementos fundamentais que

estruturaram o esboço dessa ética pode ser proposta na seguinte ordem:

a) A descrição da unidade da terceira classe de fenômenos

psíquicos (sentimento de amor e ódio). Tal descrição estabeleceu que todos

os atos psíquicos de sentimento consistiam numa referência ao caráter bom ou

mau do objeto intencional in-existente como conteúdo de consciência.

b) A especificidade de cada modo de referência da consciência

ao objeto intencional in-existente. Essa especificidade definiu a experiência

do sentimento de amor e ódio como uma experiência valorativa moral. Assim,

ficava eliminada a possibilidade de conhecimento no âmbito da atividade

psíquica do sentimento.

c) A descrição da inferência das leis éticas a partir dos juízos

(ou crenças) de relações causais que determinam o valor moral da

vontade.

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Tomemos cada um desses pontos separadamente e vejamos o

modo como Brentano se valeu dos fundamentos da sua Psicologia do ponto de

vista empírico para indicar as bases da ética como teoria do sentimento moral.

a) A descrição da unidade da terceira classe de fenômenos

psíquicos (sentimento de amor e ódio). Tal descrição estabeleceu que todos

os atos psíquicos de sentimento consistiam numa referência ao caráter bom ou

mau do objeto intencional in-existente como conteúdo de consciência.

O ponto de partida da argumentação brentaniana estava na

necessidade de esclarecer o modo como a unidade da classe dos fenômenos

psíquicos de sentimento de amor e ódio estabelecia a virtude e a maldade

moral. A dificuldade a ser superada estaria, então, em estabelecer que atos

aparentemente díspares, como o sentimento e a vontade, eram constituídos do

mesmo tipo de referência ao objeto intencional in-existente. A saber, aquela

referência que experiencia o caráter bom ou mau do objeto imanente. Brentano

considerou que a questão estava em descrever também para o sentimento a

valoração moral própria da vontade. Como explicita a citação a seguir,

importava que a origem do bom ou mau fosse atribuída a toda a classe dos

fenômenos psíquicos de sentimento de amor e ódio:

Vimos como nas representações não há nem virtude e nem maldade, por um lado, e nem conhecimento nem erro, por outro. Os dois últimos aparecem com os fenômenos do juízo. Os primeiros encontram-se exclusivamente na esfera do amor e do ódio, como já se dissemos. Mas, será que se encontram em apenas uma das duas classes em que dividiu tal esfera: na esfera da vontade, mas não na esfera dos sentimentos?

162

Esse foi o primeiro problema colocado pela análise brentaniana. De

fato, esse problema foi apresentado sobre um pressuposto teórico. Sua

possibilidade de solução encontrava-se nos fundamentos da Psicologia do

ponto de vista empírico, pois ela descrevia o modo como a experiência interna

162

„Wir sahen, wie in den Vorstellungen einerseits weder Tugend noch sittliche Schlechtigkeit, anderseits

weder Erkenntnis noch Irrtum liegt. Mit den Phänomenen des Urteilens kommen die letzten beiden

hinzu; das erste Paar dagegen liegt, wie schon gesagt, ausschließlich in dem Gebiete der Liebe und des

Hasses. Findet es sich nun vielleicht nur in der einen der beiden Klassen, in welche man das Gebiet

zerlegt hat, in dem Willen, nicht aber in dem der Gefühle?“. Brentano, Franz. Psychologie vom

empirisch Standpunkt, Zweiter Band, p. 108.

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apreendia imediatamente as diversas atividades da consciência. Para, no

entanto, dar conta de sua efetiva solução e, com isso, estabelecer o alicerce da

ética enquanto ramo da psicologia empírica, Brentano retomou o problema com

o propósito de especificar as relações internas existentes entre os tipos de atos

que caracterizavam os fenômenos psíquicos de amor ou ódio. Assim, sua

análise precisou descrever o modo como o bom e o mau emergiam em todos

os atos psíquicos de terceira classe.

Sua análise argumentativa tinha dois ramos. Por um lado, Brentano

analisou alguns atos psíquicos para explicitar a impossibilidade da separação

entre os atos de sentimento e os atos de vontade. Por outro lado, sua análise

explicitou os atos intermediários que, estando diretamente ligados aos atos de

sentimento e aos atos de vontade, evidenciavam a natureza contígua dos

fenômenos psíquicos de terceira classe. Abordaremos o modo como Brentano

apresentou essa solução a partir do seguinte exemplo:

Tomemos como exemplo a seguinte série: tristeza – anelo do bem não possuído, esperança de que nos ocorra, desejo de procurá-lo, decisão de empreender a aventura, resolução voluntária à ação. Um dos extremos é um sentimento, o outro é uma volição. Ambos parecem distar muito. Mas, se consideramos os membros intermediários e comparamos unicamente os próximos, não encontramos em todas as partes a coesão mais intima e um trânsito quase imperceptível?

163

Como estabeleceu Brentano na citação acima, a condição básica

para que sentimento e vontade pudessem ser concebidos em uma mesma

classe era a identidade no modo de referência ao objeto intencional in-

existente. Assim, ainda que estivessem distribuídos nos dois extremos, deveria

existir uma série de atos psíquicos diversos situados entre o sentimento de

prazer e a vontade (de ação), bem como uma série de atos psíquicos opostos

situados entre o sentimento de dor e a vontade (de omissão).

Ora, como Brentano pretendeu estabelecer a ética a partir dos

fundamentos da Psicologia do ponto de vista empírico, seu caminho

163

„Betrachten wir als Beispiel die folgende Reihe: Traurigkeit - Sehnsucht nach dem vermißten Gute -

Hoffnung, daß es uns zuteil werde - Verlangen, es uns zu verschaffen - Mut, den Versuch zu

unternehmen - Willensentschluß zur Tat. Das eine Extrem ist ein Gefühl, das andere ein Willen; und

sie scheinen weit voneinander abzustehen. Wenn man aber auf die Zwischenglieder achtet und immer

nur die nächst-stehenden miteinander vergleicht, zeigt sich da nicht überall der innigste Anschluß und

ein fast unmerklicher Übergang?“. Brentano, Franz. Psychologie vom empirisch Standpunkt, Zweiter

Band, p. 84-85.

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argumentativo estava restrito às descrições das atividades psíquicas

estabelecidas pelo discurso em primeira pessoa. Isso significava que não havia

espaço para deduzir os atos particulares de terceira classe do ato psíquico de

sentimento de amor e ódio. Assim, impossibilitado de apresentar uma

demonstração, Brentano recorreu, com o exemplo apresentado acima, às

expressões da linguagem ordinária. Essa estratégia argumentativa indicou que

as atividades psíquicas intermediárias estavam dispostas em uma série que

ligava o sentimento à vontade164. Em um extremo estaria o sentimento da

tristeza, como anseio por um bem não possuído. Como atos psíquicos

intermediários, que se aproximam cada vez mais à vontade, estariam: (1) a

esperança de que tal bem se efetive; (2) o desejo de procurá-lo; (3) decisão de

empreender a sua busca; e, finalmente, (4) a resolução pela ação voluntária165.

Esses exemplos fundavam-se na unidade que a terceira classe de

fenômenos psíquicos comportava. Assim, ao considerar que essa unidade se

explicitava por meio da descrição da estrutura da consciência, Brentano

estabeleceu que o bom e o mau resultavam tanto do sentimento como da

vontade. Em outras palavras, sua análise estabeleceu que, assim como havia

uma vontade moralmente boa e moralmente má, havia também sentimentos

moralmente bons e moralmente maus166.

Estabelecido esse primeiro ponto do esboço da teoria do sentimento

moral, cabe apresentar uma das dificuldades apontada pelo próprio Brentano.

Tratava-se da proposta de utilização de termos da linguagem corrente com um

164

“Dizemos: „sinto anseio‟; „sinto esperança‟; „sinto a necessidade de proporcionar-me isto‟; „sinto

coragem para empreender a busca‟; o único que ninguém diria é que sente uma resolução da vontade”.

[„Wir sagen: 'ich fühle Sehnsucht', 'ich fühle Hoffnung', 'ich fühle ein Verlangen, mir dieses zu

verschaffen', 'ich fühle Mut, dieses zu versuchen'; - nur, daß er einen Willensentschluß fühle, wird

wohl keiner sagen“]. Brentano, Franz. Psychologie vom empirisch Standpunkt, Zweiter Band, p. 85.

165 Cf. Brentano, Franz. Psychologie vom empirisch Standpunkt, Zweiter Band, p. 85.

166 Acerca desse ponto, Brentano afirma o seguinte: “[...] se vê facilmente que este não é o caso. Pois,

assim como há uma vontade moralmente boa e moralmente má, há também sentimentos moralmente

bons e moralmente maus, como, por exemplo, a compaixão, a gratuidade, o heroísmo, a inveja, a

crueldade, a covardia, etc. Por causa da já indicada falta de clara delimitação, ignorou-se até que ponto

alguns destes exemplos não pertencem antes ao domínio da vontade. No entanto, apenas um deles

bastaria para nosso fim“. [„Man erkennt leicht, daß dies nicht der Fall ist, sondern daß es wie einen

sittlich guten und sittlich schlechten Willen, auch sittlich gute und sittlich schlechte Gefühle gibt, wie

z. B. Mitleid, Dankbarkeit, Heldenmut, Neid, Schadenfreude, feige Furcht ust. Wegen des

besprochenen Mangels deutlicher Abgrenzung weiß ich freilich nicht, in wie weit einer einzelne von

diesen Beispielen vielleicht lieber zum Gebiete des Willens rechnet; aber auch nur ein e s von ihnen

würde zu unserem Zwecke genügen“]. Brentano, Franz. Psychologie vom empirisch Standpunkt,

Zweiter Band, p. 108.

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sentido estritamente rigoroso. Para Brentano, seria necessário que termos

como 'virtude' e 'maldade' fossem compreendidos no sentido estrito. O

desenvolvimento da Psicologia do ponto de vista empírico estabeleceria o

sentido rigoroso desses termos, sob pena de inviabilizar a ética como ramo da

psicologia:

Honramos, com o nome de virtude, apenas certos atos indicados, nos quais é amado o verdadeiramente amável, ou odiado o verdadeiramente odioso; e, do mesmo modo, atribuímos o nome de maldade apenas a certos atos indicados, nos quais tem lugar uma conduta oposta. Os atos de amor e ódio, nos quais uma conduta correspondente parece natural, não se designa como virtuoso. Poderíamos, talvez, mostrar como estes conceitos podem ser alargados até serem aplicáveis com uma plena generalidade. Mas, basta havermos demonstrado que, tal como os aplicamos comumente, não oferecem nenhum apoio à distinção usual entre sentimento e vontade.

167

Mesmo diante das dificuldades teóricas encontradas pelo próprio

Brentano, fica esboçado o primeiro ponto da ética. A saber: a classe das

atividades psíquicas do sentimento de amor e ódio, como um todo, experiencia

o bom ou mau próprio do objeto intencional in-existente.

b) A especificidade de cada modo de referência da consciência

ao objeto intencional in-existente. Essa especificidade definiu a experiência

do sentimento de amor e ódio como uma experiência valorativa moral. Assim,

ficou eliminada a possibilidade de conhecimento no âmbito da atividade

psíquica do sentimento.

Para estabelecer o segundo ponto fundamental de sua ética,

Brentano valeu-se, mais uma vez, da analogia que distinguia entre juízos e

sentimentos (amor e ódio). Essa analogia especificava a natureza do valor

originado a partir da relação sentimental ao objeto intencional in-existente.

Nesse ponto, a análise brentaniana não se ocupava meramente de descrever o

admitir ou o rechaçar, próprios do juízo, e nem o amar ou o odiar, próprios do

167

„Nur gewisse ausgezeichnete Akte, in welchen das wahrhaft Liebenswürdige geliebt, das wahrhaft

Hassenswürdige gehaßt wird, ehren wir mit dem Namen Tugend; und ebenso legen wir nur gewissen

ausgezeichneten Akten, in welchen ein entgegengesetztes Verhalten stattfindet, den Namen

Schlechtigkeit bei. Akte von Liebe und Haß, bei welchen ein entsprechendes Verhalten

Reibstverständlich erscheint, werden wir nicht als tugendhaft bezeichnen. Wir könnten vielleicht

zeigen, wie sich die Begriffe zu einer vollkommen allgemeinen Anwendbarkeit entschränken ließen.

Doch genügt es uns hier, dargetan zu haben, daß sie so, wie man sie gemeiniglich anwendet,

wenigstens der Üblichen Unterscheidung von Gefühl und Willen keine Stütze bieten“. Brentano,

Franz. Psychologie vom empirisch Standpunkt, Zweiter Band, p. 108. (nota *).

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sentimento. Tratava-se de uma aplicação desse princípio estabelecido na

Psicologia do ponto de vista empírico. Assim, o propósito de tal analogia era

estabelecer que o bom e o mau fossem conteúdos de um ato psíquico de amor

ou ódio, assim como a verdadeiro e falso seriam conteúdos do juízo. Por isso,

como explicita a seguinte citação, o ato judicativo de admissão ou de rechaço

do objeto imanente era análogo ao ato sentimental de amor ou de ódio para

com tal objeto imanente:

Assim como a natureza geral do juízo consiste na admissão ou rechaço de um fato, assim o caráter geral da esfera que ocupamos agora consiste também, segundo o testemunho da experiência interna, em certo admitir ou rechaçar, embora não no mesmo sentido, mas em sentido análogo. Do mesmo modo que algo pode ser conteúdo de um juízo, e enquanto verdadeiro é admitido ou falso rechaçado, também pode ser conteúdo de um fenômeno da terceira classe fundamental, e enquanto bom pode ser grato (no sentido mais amplo da palavra) ou como mau, ingrato. Se ali se tratava da verdade e falsidade de um objeto, aqui se trata de seu valor ou não valor.

168

Cabe aqui uma observação para que não se confunda o que

estamos analisando e para que possamos desencadear o próximo ponto da

análise a partir do que foi estabelecido até agora. Se o que foi apresentado

nesses dois pontos sugere a existência de uma proposta brentaniana de uma

ética do valor, não podemos situar essa proposta para além dos fundamentos

da Psicologia do ponto de vista empírico. Isso significaria abandonar o critério

aristotélico de divisão das classes de fenômenos constituintes da atividade

psíquica. Se, portanto, essa ética se fundou no sentimento de amor e ódio, sua

elaboração exigiu a análise de dois pontos para que ela não fosse interpretada

como uma teoria do conhecimento. A saber: (a) a descrição do modo como a

atividade da terceira classe experienciava o bom ou o mau no conteúdo

intencionalmente in-existente na consciência; e, fundamentalmente, (b) a

descrição do modo como essa atividade psíquica apreendia sua relação

psíquica ao bom ou mau e a define como valor moral.

168

„Wie die allgemeine Natur des Urteils darin besteht, daß eine Tatsache angenommen oder verworfen

wird, so besteht nach dem Zeugnisse der inneren Erfahrung auch der allgemeine Charakter des

Gebietes, welches uns jetzt vorliegt, in einem gewissen Annehmen oder Verwerfen; nicht in

demselben, aber in einem analogen Sinne. Wenn etwas Inhalt eines Urteils werden kann, insofern es

als wahr annehmlich oder als falsch verwerflich ist, so kann es Inhalt eines Phänomens der dritten

Grundklasse werden, insofern es als gut genehm (im weitesten Sinne des Wortes) oder als schlecht

ungenehm sein kann. Es handelt sich, wie dort um Wahrheit und Falschheit, hier um Wert und Unwert

eines Gegenstandes“. Brentano, Franz. Psychologie vom empirisch Standpunkt, Zweiter Band, p. 88-

89.

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O próprio Brentano foi incisivo acerca desse ponto, dizendo

expressamente: “[...] acredito que ninguém entenderá minhas palavras como se

eu quisesse dizer que os fenômenos desta classe são atos de conhecimento,

por meio dos quais se percebe bondade e maldade, valor ou não valor de

certos objetos”169.

Retomemos outra comparação que Brentano apresentou entre os

juízos e os sentimentos. Ela possibilita uma análise mais detalhada dos tipos

de valorações. Primeiramente, vejamos as especificidades que caracterizavam

a atribuição da verdade ou falsidade por meio do modo de referência que

admitia ou rechaçava o conteúdo intencional in-existente em uma

representação:

Quando dissemos que todo juízo que admite é assentimento e todo juízo que rechaça é dissentimento, isto não significa que aquele consista em uma predicação da verdade com respeito ao assentido, nem este em uma predicação da falsidade com relação ao dissentido. Nossas explicações anteriores demonstraram que o significado destas expressões é uma modalidade especial da recepção intencional de um objeto, uma modalidade especial da referência psíquica a um conteúdo de consciência. O que há de exato é que quem assente a algo, não apenas admite o objeto, mas também, à pergunta sobre se o objeto deve ser admitido, admitirá também a admissibilidade do objeto, ou seja, a verdade do objeto. A expressão de assentimento se explica assim e a expressão de dissentimento se explicará de um modo análogo.

170

Como veremos nos próximos capítulos, a Psicologia do ponto de

vista empírico limitou seus argumentos, pois não apresentou a distinção entre

juízos evidentes e juízos cegos. O argumento apresentado na citação acima

esclareceu, no entanto, o sentido específico da referência psíquica do juízo na

169

„Ich glaube, niemand wird meine Worte so verstehen, als wollte ich sagen, die Phänomene dieser

Klasse seien Erkenntnisakte, vermöge deren Güte oder Schlechtigkeit, Wert oder Unwert in gewissen

Gegenständen wahrgenommen werde“. Brentano, Franz. Psychologie vom empirisch Standpunkt,

Zweiter Band, p. 89.

170 „Wenn wir sagen, jedes anerkennende Urteil sei ein Fürwahrhalten, jedes verwerfende ein

Fürfalschhalten, so bedeutet dies also nicht, daß jenes in einer Prädikation der Wahrheit von dem

Fürwahrgehaltenen, dieses in einer Prädikation der Falschheit von dem Fürfalschgehaltenen bestehe;

unsere früheren Erörterungen haben vielmehr dargetan, daß, was die Ausdrücke bedeuten, eine

besondere Weise intentionaler Aufnahme eines Gegenstandes, eine besondere Weise der psychischen

Beziehung zu einem Inhalte des Bewußtseins ist. Nur das ist richtig, daß, wer etwas für wahr hält,

nicht bloß den Gegenstand anerkennt, sondern dann, auf die Frage, ob der Gegenstand anzuerkennen

sei, auch das Anzuerkennensein des Gegenstandes, d. h. (denn nichts anderes bedeutet der barbarische

Ausdruck) die Wahrheit des Gegenstandes ebenfalls anerkennen wird. Und damit mag der Ausdruck

'Fürwahrhalten' zusammenhängen. Der Ausdruck 'Fürfalschhalten' aber wird in analoger Weise sich

erklären“. Brentano, Franz. Psychologie vom empirisch Standpunkt, Zweiter Band, p. 89-90.

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99

teoria brentaniana de 1874. Tratava-se de uma atribuição de valor de verdade

ao ato psíquico (relação) que se referia ao objeto intencional in-existente. Essa

atribuição de valor de verdade estava “orientada” (por isso mesmo) pelo objeto

que ela continha (de certo modo), pois era nesse sentido que a verdade do

objeto deveria ser concebida e não como uma predicação da verdade acerca

de um sujeito (S é verdade).

Por analogia, a análise brentaniana estendeu esses critérios aos

atos psíquicos que experienciavam bondade ou maldade no conteúdo de uma

representação. Vejamos como argumentou o próprio Brentano:

Do mesmo modo, as expressões „ser grato como bom‟ e „ser ingrato como mal‟ que usamos aqui de modo análogo, não significam, para nós, que, nos fenômenos desta classe, a bondade seja atribuída a uma coisa grata como boa ou a maldade a uma ingrata como má. Entretanto, significam uma modalidade especial da referência da atividade psíquica a um conteúdo. O que há de exato, aqui também, é que aquela pessoa cuja consciência se refere deste modo a um conteúdo, em conseqüência disso afirmará a pergunta sobre se o objeto é de tal natureza que se pode entrar na referência correspondente com ele. O que não significa nada mais que atribuir-lhe bondade ou maldade, valor ou não valor. Um fenômeno desta classe não é um juízo, como „isto se deve amar‟ ou „isto se deve odiar‟, mas é um ato de amor ou de ódio.

171

O argumento da página anterior explicitou o sentido em que a

verdade do objeto deveria ser concebida. Por meio da descrição análoga ao

modo como se dava aquela atividade psíquica do juízo, esse argumento

descreveu a atribuição de valor moral. Tratava-se da atribuição de valor

(bondade ou maldade) ao ato psíquico (relação) que se refere ao objeto

intencional in-existente. Essa atribuição de valor moral estava “orientada” (por

isso mesmo) pelo objeto que ela continha (de certo modo). Esse, portanto, era

o sentido em que o valor moral do objeto deveria ser concebido e não como

uma predicação deôntica acerca do sujeito (S deve-se amar).

171

„Ebenso bedeuten uns denn die Ausdrücke, die wir hier in analoger Weise gebrauchen, 'als gut

genehm sein', 'als schlecht ungenehm sein', nicht, daß in den Phänomenen dieser Klasse Güte einem

als gut Genehmen, oder Schlechtigkeit einem als schlecht Ungenehmen zugeschrieben werde,

vielmehr bedeuten auch sie eine besondere Weise der Beziehung der psychischen Tätigkeit auf einen

Inhalt. Nur das ist auch hier richtig, daß einer, dessen Bewußtsein sich in solcher Weise auf einen

Inhalt bezieht, die Frage, ob der Gegenstand von der Art sei, daß man zu ihm in die betreffende

Beziehung treten könne, infolge davon bejahen wird; was dann nichts anderes heißt, als ihm Güte oder

Schlechtigkeit, Wert oder Unwert zuschreiben. Ein Phänomen dieser Klasse ist nicht ein Urteil: 'dies

ist zu lieben', oder 'dies ist zu hassen' (das wäre ein Urteil über Güte oder Schlechtigkeit); aber es ist

ein Lieben oder Hassen“. Brentano, Franz. Psychologie vom empirisch Standpunkt, Zweiter Band, p.

90.

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100

Apenas mais uma observação acerca dos pressupostos da

Psicologia do ponto de vista empírico que fundamentam essa descrição. Essa

valoração moral era, por si só, uma experiência imediata da própria atividade

psíquica do sentimento de amor e ódio, tal como estabelecia a percepção

interna de todo ato psíquico. Em outras palavras, a percepção interna, que

garantia a divisão das atividades psíquicas, consistia também na experiência

imediata da valoração descrita acima. Não se atentar para esse ponto, como

insistiu o próprio Brentano em argumentos análogos ao citado abaixo, significa

não reconhecer os critérios fundamentais da sua teoria de 1874:

Repito, pois, agora, no sentido das explicações dadas e sem o receio de ser mal interpretado, que nos fenômenos desta classe tratamos da bondade e da maldade, do valor e do não valor dos objetos, analogamente como tratamos da verdade e da falsidade nos juízos. Esta referência característica ao objeto é a que, como sustento, a percepção interna nos dá a conhecer, de um modo imediato e evidente, no apetite e na volição, assim como em tudo que chamamos de sentimento ou emoção.

172

Em resumo, a análise brentaniana exposta descreveu o ato psíquico

de sentimento como fonte originária da valoração moral. Em função dessa

descrição, Brentano deparou-se com outra exigência básica de toda ciência

positiva: a possibilidade de inferência de leis gerais a partir das relações

estabelecidas entre os fenômenos psíquicos. Passamos, portanto, ao terceiro

ponto.

c) A inferência das leis da ética a partir dos juízos (ou crenças)

de relações causais que determinam o valor moral da vontade

Ainda que tenha indicado expressamente o caminho, Brentano não

se ocupou, explicitamente, do estabelecimento desse terceiro ponto no esboço

de sua ética, no entanto as linhas gerais, que circunscreveram a origem e o

universo de aplicação das leis da ética, estavam imbricadas nos argumentos

que fundamentavam a unidade da classe do sentimento de amor e ódio. Em

172

„Im Sinne der gegebenen Erläuterungen wiederhole ich also jetzt ohne Besorgnis mißverstanden zu

werden, daß es sich analog wie bei den Urteilen um Wahrheit oder Unwahrheit bei den Phänomenen

dieser Klasse um Güte und Schlechtigkeit, um Wert oder Unwert der Gegenstände handelt. Und diese

charakteristische Beziehung zum Objekte ist es, die, wie ich behaupte, bei Begehren und Wollen

sowie bei allem, was wir Gefühl oder Gemütsbewegung nennen, die innere Wahrnehmung in gleich

unmittelbarer und evidenter Weise erkennen läßt“. Brentano, Franz. Psychologie vom empirisch

Standpunkt, Zweiter Band, p. 90.

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101

outras palavras, Brentano considerou que “[...] o amor e o ódio, ainda que não

sejam independentes das leis do curso das representações, estão submetidos

a leis especiais de sucessão e desenvolvimento, que constituem as bases

psicológicas da ética”173.

É interessante ressaltar outro ponto. A pergunta acerca de quais

eram essas leis especiais da ética, que complementariam as leis de sucessão

dos fenômenos, era recorrente no último capítulo da Psicologia do ponto de

vista empírico. Foram, no entanto, sempre evasivas as respostas ali

apresentadas. Brentano sempre remeteu ao quinto capítulo (não publicado) da

obra. Apesar dessa obscuridade acerca da questão, é possível estabelecer o

modo como Brentano propôs a inferência das regras fundamentais que

regeriam a sucessão e o desenvolvimento no âmbito da atividade psíquica de

amor e ódio. Vejamos o que disse Brentano:

Passemos ao último ponto da comparação: às leis da sucessão dos fenômenos. Ainda que não se mostrem independentes das leis gerais do curso da representação, os juízos apresentam, ainda, outras leis especiais que não podem ser derivadas daquelas. Já observamos que estas leis constituem as principais bases psicológicas da lógica. Dizemos, então, que no amor e ódio ocorre algo análogo. De fato, estes fenômenos não são independentes, nem das leis do curso de representações, nem das gêneses e sucessões dos juízos. No entanto, eles também mostram leis especiais e originais em sua sucessão e desenvolvimento, as quais formam as bases psicológicas da ética.

174

Analisaremos separadamente as considerações de Brentano. À luz

do que já foi explicitado a partir da Psicologia do ponto de vista empírico,

existiriam leis que governariam cada um dos âmbitos dos fenômenos

173

„Obwohl von den Gesetzen des Vorstellungslaufes nicht unabhängig, unterliegen doch Liebe und Haß,

als eine besondere, in der ganzen Weise des Bewußtseins grundverschiedene Gattung von

Phänomenen, noch besonderen Gesetzen der Sukzession und Entwickelung, welche vornehmlich die

psychologische Grundlage der Ethik ausmachen“. Brentano, Franz. Psychologie vom empirisch

Standpunkt, Zweiter Band, p. 67-68.

174 „Wenden wir uns zu dem letzten Punkte des Vergleiches, zu den Gesetzen der Sukzession der

Erscheinungen. Bei den Urteilen, obwohl sie von den allgemeinen Gesetzen des Vorstellungslaufes

sich keineswegs unabhängig zeigen, kommen doch noch andere, besondere Gesetze hinzu, welche aus

ihnen nicht abgeleitet werden können. Wir bemerkten bereits, daß diese Gesetze die vorzügliche

psychologische Grundlage der Logik ausmachen. Bei Liebe und Haß, sagten wir damals, sei etwa

ähnliches der Fall; und in der Tat sind zwar diese Phänomene weder von den Gesetzen des

Vorstellungslaufes noch von denen der Entstehung und Sukzession der Urteile unabhängig; aber

dennoch zeigen auch sie besondere unableitbare Gesetze ihrer Aufeinanderfolge und Entwickelung,

welche die psychologische Grundlage der Ethik bilden“. Brentano, Franz. Psychologie vom empirisch

Standpunkt, Zweiter Band, p. 109.

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psíquicos: representação; juízo; e sentimento de amor e ódio. Diretamente

orientada pelo positivismo comtiano, a análise brentaniana apresentou cada

uma delas e mostrou o acréscimo da lei posterior em relação à anterior.

i) As leis gerais da representação. A análise brentaniana

descreveu as representações como relações básicas da consciência (relação

psíquica de referência ao objeto intencional). A partir de um conjunto de

relações básicas (representações) inferiam-se as regras gerais que governam

a relação direta entre intensidade da excitação física e a intensidade da

sensação. Isso explica o fato de que, em 1874, Brentano considerava que o

aumento ou diminuição da vivacidade e nitidez dos fenômenos era descrito

como única intensidade das representações. Tratava-se, assim, de uma

descrição do modo como as leis de sucessão dos fenômenos eram inferidas a

partir da atividade de representação175.

No próximo capítulo apresentaremos as consequências do

desenvolvimento dessa investigação para a própria teoria brentaniana. Por ora

nos restringimos a especular um pouco mais a consequência da ligação entre

os postulados da lógica brentaniana176 e a atividade psíquica do juízo.

ii) As leis gerais do juízo como leis básicas da lógica. Afirmamos

acima que Brentano concebeu o juízo como uma atribuição de valor de

verdade ao ato psíquico (relação) que se referia ao objeto intencional in-

existente. Essa atribuição de valor de verdade estava “orientada” (por isso

mesmo) pelo objeto que ela continha (de certo modo). Isso significava, dizia

ele, que “[...] quem assente a algo, não apenas admite o objeto, mas também,

à pergunta sobre se o objeto deve ser admitido, admitirá também a

175

Cf. Brentano, Franz. Franz. Psychologie vom empirisch Standpunkt, Erster Band, p. 98-99.

176 Acerca da lógica de Brentano, é fundamental relevarmos as seguintes considerações de Peter Simon.

“Brentano was versed in the logical doctrines of Aristotle, the Scholastics, and the British empiricists.

He was not a specialized logician, nor did he have any great interest in logic for its own sake or for its

history: his main interests were metaphysical, ethical, and psychological. His logic was a by-product

of these interests developed for teaching at the Universities of Würzburg and Vienna. He was an

admirer and correspondent of John Stuart Mill, whose 1843 A System of Logic for some time held

back the tide of mathematization in deductive logic while promoting inductive methods. Brentano did

not keep up with contemporary developments in logic. He conceived early in his career an antipathy

to mathematical logic, because he associated it with Hamilton‟s (to Brentano wildly erroneous)

doctrine of the quantification of the predicate, and he thereafter ignorantly opposed the idea of treating

logic with mathematical methods as if it must always make such an error”. Simon, Peter. Judging

correctly: Brentano and the reform of elementary logic, p. 46.

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admissibilidade do objeto, ou seja, a verdade do objeto” 177. A descrição dessa

atividade psíquica constituinte da base de todo juízo, dissemos, consistia

naquela predicação existencial de inspiração aristotélica do tipo [(A é B) é], ou,

ainda, [(A) é].

Esse modo brentaniano de descrever a atividade psíquica do juízo

impôs algumas implicações para as leis especiais constituintes da lógica, pois

tais leis seriam inferidas a partir das regras encontradas pela percepção interna

no conjunto dos atos psíquicos de juízo existencial178. Uma vez inferidas, essas

leis seriam agregadas às leis básicas de sucessão dos fenômenos, tal como

determinava a orientação do positivismo comtiano. Assim como descreve a

citação abaixo, as leis da lógica deveriam ser uma universalização das regras

que governariam as operações dos juízos:

Pois bem, é necessária apenas esta concessão que todos nossos oponentes fazem no tocante à cópula, para inferir dela, com necessidade, que não se pode atribuir outra função ao „existe‟ e „não existe‟ da proposição existencial. Pois, pode-se mostrar de modo evidente que toda proposição categórica pode ser traduzida em uma proposição existencial, sem nenhuma alteração de sentido e, assim, o „existe‟ e o „não existe‟ da proposição existencial ocupa o lugar da cópula. Eu quero esclarecer isto por meio de exemplos. A proposição categórica „algum homem está enfermo‟ tem o mesmo sentido da proposição existencial „um homem enfermo existe‟ ou „há um homem enfermo‟. A proposição categórica „nenhuma pedra é viva‟ tem o mesmo sentido da proposição existencial „uma pedra viva não existe‟ ou „não há pedras vivas‟. A proposição categórica „todos os homens são mortais‟ tem o mesmo sentido da proposição „um homem imortal não existe‟ ou „não há um homem imortal‟. A proposição categórica „algum homem não é culto‟ tem o mesmo sentido da proposição existencial „um homem inculto existe‟ ou „há um homem inculto‟. Como as quatro classes de juízos categóricos que os lógicos trataram de distinguir estão representadas nos quatro exemplos escolhidos, a possibilidade da transformação verbal das proposições categóricas em proposições existenciais fica provada universalmente.

179

177

„Nur das ist richtig, daß, wer etwas für wahr hält, nicht bloß den Gegenstand anerkennt, sondern dann,

auf die Frage, ob der Gegenstand anzuerkennen sei, auch das Anzuerkennensein des Gegenstandes,

(...) die Wahrheit des Gegenstandes ebenfalls anerkennen wird“. Brentano, Franz. Psychologie vom

empirisch Standpunkt, Zweiter Band, p. 89-90.

178 Cf. Brentano, Franz. Franz. Psychologie vom empirisch Standpunkt, Zweiter Band, p. 56-57.

179 „Wohlan denn, - es bedarf nicht mehr als dieses Zugeständnisses, welches unsere Gegner allgemein

inbetreff der Copula machen, um daraus mit Notwendigkeit zu folgern, daß auch dem 'ist' und 'ist

nicht' des Existentialsatzes keine andere Funktion zugeschrieben werden könne. Denn aufs

Deutlichste läßt sich zeigen, daß jeder kategorische Satz ohne irgend welche Änderung des Sinnes in

einen Existentialsatz übersetzt werden kann, und daß dann das 'ist' und 'ist nicht' des Existentialsatzes

an die Stelle der Copula tritt. Ich will dies an einigen Beispielen nachweisen. Der kategorische Satz

'irgendein Mensch ist krank' hat denselben Sinn wie der Existentialsatz 'ein kranker Mensch ist' oder

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104

Esse é o esboço da sua nova teoria silogística e Brentano utilizou-o

para exemplificar o modo como se daria a inferência das leis da lógica. Antes

de apresentarmos a analogia entre a origem dessas leis da lógica e das leis da

ética, resumamos o que se estabeleceu com o exposto neste ponto.

A argumentação brentaniana tomou com ponto de partida a regra

geral que governaria a relação psíquica dos juízos ao objeto intencional, ou

seja, o ponto de partida era a regra oriunda daquele tipo de juízo existencial

que afirma ou nega o conteúdo do ato psíquico. Brentano propôs fundar a

(nova) lógica180 ao estabelecer que “[...] as verdadeiras proposições afirmativas

são a chamada particular afirmativa e a chamada particular negativa”181. Por

isso mesmo, “[...] as proposições verdadeiramente negativas, às quais

pertencem também as universais negativas, não contêm, naturalmente, a

admissão do sujeito, pois não afirmam nada, mas negam”182. Estabelecidos

esses pontos, a análise brentaniana afirmou que a lógica passava a vigorar sob

um conjunto de novas regras.183 Desse modo, tal como sintetiza Stegmüller,

'es gibt einen kranken Menschen'. Der kategorische Satz 'kein Stein ist lebendig' hat denselben Sinn

wie der Existentialsatz 'ein lebendiger Stein ist nicht' oder, 'es gibt nicht einen lebendigen Stein'. Der

kategorische Satz 'alle Menschen sind sterblich' hat denselben Sinn wie der Existentialsatz 'ein

unsterblicher Mensch ist nicht' oder 'es gibt nicht einen unsterblichen Menschen'. Der kategorische

Satz 'irgendein Mensch ist nicht gelehrt' hat denselben Sinn wie der Existentialsatz 'ein ungelehrter

Mensch ist' oder 'es gibt einen ungelehrten Menschen'. Da in den vier Beispielen, die ich wählte, die

sämtlichen vier Klassen von kategorischen Urteilen, welche die Logiker zu unterscheiden pflegen,

vertreten sind, so ist die Möglichkeit der sprachlichen Umwandlung der kategorischen Sätze in

Existentialsätze dadurch allgemein erwiesen“. Brentano, Franz. Psychologie vom empirisch

Standpunkt, Zweiter Band, p. 56-57.

180 Existem alguns estudos de Peter Simon que analisam a formalização existencial da proposta do

silogismo brentaniano. Entre esses estudos está o trabalho Judging correctly: Brentano and the reform

of elementary logic, in: The Cambridge Companion to Brentano, p. 45-95. Apresentá-los aqui seria,

porém, fugir dos propósitos da nossa tese.

181 „Die in Wahrheit affirmativen sind nach dem (…) partikulär bejahenden und verneinenden“. Brentano,

Franz. Psychologie vom empirisch Standpunkt, Zweiter Band, p. 58, (nota *).

182 „Die in Wahrheit negativen Behauptungen, zu welchen auch die allgemein bejahenden gehören,

enthalten selbstverständlich nicht die Anerkennung des Subjekts, da sie ja Überhaupt nicht etwas

anerkennen, sondern verwerfen“. Brentano, Franz. Psychologie vom empirisch Standpunkt, Zweiter

Band, p. 58, (nota *).

183 “Em lugar das antigas regras dos silogismos categóricos, aparecem como regras capitais que permitem

uma aplicação imediata a cada figura e são perfeitamente suficientes em si mesmas para a apreciação

de todo silogismo, as três seguintes: 1. Todo silogismo categórico contém quatro termos, dos quais

dois são mutuamente opostos e os outros dois figuram duas vezes. 2. Se a conclusão é negativa, cada

uma das premissas tem em comum com ela a qualidade e um termo. Se a conclusão é afirmativa, uma

das premissas terá a mesma qualidade e um termo igual, a outra premissa terá qualidade oposta e

termo oposto. Essas são regras que um lógico da antiga escola não poderia ouvir sem horror. Eu digo:

que o silogismo tem quatro termos e o quaternio terminorum sempre foi condenado como um

paralogismo; que as conclusões negativas tenham premissas puramente negativas, e sempre foi

ensinado que nada pode se seguir de duas premissas negativas; que sob as premissas da conclusão

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“Brentano achava que tinha mostrado, com isto, que toda a lógica formal

decorre apenas do princípio de não-contradição. Vários de seus discípulos

assumiram este ponto de vista. Mas esta concepção é sem dúvida incorreta”184.

iii) As leis gerais da ética. Com o exposto, podemos passar à

descrição dos procedimentos de inferência das leis da ética. Cabe dizer, no

entanto, que a descrição brentaniana da inferência das leis da ética foi muito

diferente daquelas oriundas das representações e dos juízos. As leis da ética

foram abordadas apenas por meio de exemplos ou por meio de analogias

específicas para com as leis das representações e dos juízos.

Adotaremos o seguinte procedimento expositivo. Apresentaremos os

exemplos e as analogias que propuseram a inferência de tais leis a partir de

dois pontos estabelecidos pela argumentação brentaniana. Em seguida,

mostraremos que Brentano compartilhava com J. S. Mill as principais questões

a que a lógica e a ética deveriam responder, na medida em que estariam

afirmativa se encontra um juízo negativo e se jurou que ela exige inevitavelmente duas premissas

afirmativas. Além disso, não restou lugar para uma conclusão categórica de premissas afirmativas e se

ensinava que as premissas afirmativas eram as melhores, pois quando uma negativa se associava a ela,

denominava-a a pejor par. Finalmente, nas novas regras não se ouve nada de „universal‟ e „particular‟,

e tinham-se essas expressões na ponta da língua, por assim dizer. E suas antigas regras não se

mostraram tão adequadas no exame do silogismo que agora, de modo inverso, os mil silogismos

medidos por ela consistem numa prova e uma garantia para elas mesmas? Vamos deixar de

reconhecer como válido o célebre silogismo „todos os homens são mortais; Caio é um homem, logo

Caio é mortal‟ e todos os seus companheiros? Isto parece uma pretensão impossível”. [„An die Stelle

der früheren Regeln von den kategorischen Schlüssen treten als Hauptregeln, die eine unmittelbare

Anwendung auf jede Figur gestatten, und für sich allein zur Prüfung eines jeden Syllogismus

vollkommen ausreichend sind, folgende drei: (1) Jeder kategorische Syllogismus enthält vier Termini,

von denen zwei einander entgegengesetzt sind und die beiden anderen zweimal zu stehen kommen.

(2) Ist der Schlußsatz negativ, so hat jede der Prämissen die Qualität und einen Terminus mit ihm

gemein. (3) Ist der Schlußsatz affirmativ, so hat die eine Prämisse die gleiche Qualität und einen

gleichen Terminus, die andere die entgegen gesetzte Qualität und einen entgegen gesetzten Terminus.

Das sind Regeln, die ein Logiker der alten Schule zunächst nicht ohne Grauen hören wird. Vier

Termini soll jeder Syllogismus haben: und er hat die Quaternio terminorum immer als Paralogismus

verdammt. Negative Schlußsätze sollen lauter negative Prämissen haben: und er hat immer gelehrt,

daß aus zwei negativen Prämissen nichts gefolgert werden könne. Auch unter den Prämissen des

affirmativen Schlußsatzes soll sich ein negatives Urteil finden: und er hätte darauf geschworen, daß er

unumgänglich zwei affirmative Prämissen verlange. Ja, für einen kategorischen Schluß aus

affirmativen Prämissen ist gar kein Raum gelassen: und er hatte doziert, daß die affirmativen

Prämissen die vorzüglichsten seien, indem er, wo eine negative sich dazu gesellte, diese als die 'pejor

pars' bezeichnete. Von 'allgemein' und 'partikulär' endlich hört man in den neuen Regeln gar nichts:

und er hatte diese Ausdrücke sozusagen immer im Munde geführt. Und haben nicht seine alten Regeln

sich bei der Prüfung der Syllogismen so geeignet erwiesen, daß nun umgekehrt wieder die tausend an

ihrem Maßstabe gemessenen Schlüsse für sie selbst Probe und Bewährung sind? Sollen wir den

berühmten Schluß: 'Alle Menschen sind sterblich, Cajus ist ein Mensch, also ist Cajus sterblich', und

alle seine Begleiter nicht mehl' als bündig anerkennen - Das scheint eine unmögliche Zumutung“].

Brentano, Franz. Psychologie vom empirisch Standpunkt, Zweiter Band, p. 78-79.

184 Stegmüller, Wolfgang. Filosofia da evidência: Franz Brentano, p. 52.

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fundadas na psicologia. Finalmente, exporemos o modo como a teoria

brentaniana respondeu a essas questões recepcionadas de J. S. Mill.

Em primeiro lugar, consideraremos o que acabamos de explicitar no

início da seção: a) todos os atos psíquicos que compõem os sentimentos de

amor e ódio consistiam numa referência ao caráter bom ou mau do objeto que

in-existe intencionalmente como conteúdo de consciência; b) a experiência do

sentimento de amor e ódio era descrita como uma experiência valorativa moral

do modo de referência da consciência ao objeto intencional in-existente.

Descrita dessa maneira, ela eliminava a possibilidade de conhecimento no

âmbito da atividade psíquica do sentimento.

Em segundo lugar, consideraremos a explicação do próprio

Brentano acerca das regras ou leis de sucessão específicas da atividade de

sentimento de amor e ódio. Ele destacou o fato de que “[...] com muita

freqüência um objeto é amado ou odiado por causa de outro, sendo que em si

e por si não nos moveria em nenhum de ambos os sentidos, ou talvez o

faríamos em sentido oposto”185. Isso significava, ainda segundo suas

considerações, que, “[...] uma vez transferido deste modo, o amor se adere

persistentemente ao novo objeto sem consideração à origem”186. A validade

dessa “transferência” estaria no fato de que ela seria análoga a uma crença

própria do âmbito do juízo. Para corroborar sua hipótese, ele recorreu a um dos

vários pontos de identidade entre sua teoria e a de J. S. Mill. Como destaca a

citação a seguir, Brentano apontou a tarefa da psicologia e ressaltou a analogia

existente entre o julgar e o apetecer:

Mas isto disse com razão J. St. Mill em sua lógica das ciências do espírito: “no que se refere à crença, os psicólogos haverão de investigar sempre mediante estudos específicos e segundo as regras da indução, (a) que crença temos por meio da consciência imediata, (b) que leis regem a gênese de uma crença a partir de outra, (c) em virtude de quais leis uma coisa é considerada como prova de outra para nosso espírito, com razão ou sem ela. No que se refere ao apetite, haverão de investigar, do mesmo modo, (d) que objetos apetecemos primordialmente e (e) que causas nos conduzem a

185

„Sehr häufig wird ein Gegenstand wegen eines andern geliebt und gehaßt, während er an und für sich

in keiner von beiden Weisen oder vielleicht nur in einer entgegengesetzten uns bewegen würde“.

Brentano, Franz. Psychologie vom empirisch Standpunkt, Zweiter Band, p. 68.

186 „Und oft haftet die Liebe, einmal in dieser Weise übertragen, ohne Rücksicht auf den Ursprung

bleibend an dem neuen Objekte“. Brentano, Franz. Psychologie vom empirisch Standpunkt, Zweiter

Band, p. 68.

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107

apetecer coisa que são primordialmente indiferentes ou inclusive desagradáveis, etc. (Ded. u. lnd. Logik B. VI, Kap. 4, § 3)”.

187

Detenhamo-nos um pouco nas questões levantadas na citação

acima. Nossa estratégia argumentativa inverterá esse desafio de J. S. Mill

apresentado por Brentano. Devolveremos o problema ao próprio Brentano e

mostraremos como a sua teoria respondeu às principais questões que ele

mesmo lança para as teorias lógica e ética fundadas na psicologia. Vejamos:

A resposta da lógica brentaniana para a questão (a) (que crença

temos por meio da consciência imediata?) foi a seguinte. Para Brentano, a

“crença” obtida por meio da consciência imediata era um “conhecimento”

descrito por meio de um juízo existencial. Considerando esse ponto, a análise

brentaniana respondeu à questão (b) (que leis regem a gênese de uma crença

a partir de outra?), ao sustentar que a nova teoria dos silogismos descrevia as

leis que regem a gênese de um juízo a partir de outro (regras de inferência).

Além disso, essa nova teoria do silogismo também respondeu à questão (c)

(em virtude de quais leis uma coisa é considerada como prova de outra para

nosso espírito, com razão ou sem ela?), pois suas regras justificavam a

validade ou invalidade das inferências, uma vez que todas as proposições se

reduziriam a um juízo existencial.

A resposta da ética para a questão (d) (que objetos apetecemos

primordialmente?) foi a seguinte. A “crença” de que determinados objetos

amados causarão outros objetos era obtida por meio da percepção interna

como um juízo existencial [(S é P)é] ou [(S)é]. Por quê? Porque uma crença era

um juízo e todo juízo poderia ser reduzido à forma de um juízo existencial.

Considerando esse ponto, bem como sua analogia com a lógica, a ética

brentaniana deveria responder à questão (e) (que causas nos conduzem a

apetecer coisas que são primordialmente indiferentes ou inclusive

187

„So sagt denn mit Recht J. St. Mill in seiner Logik der Geisteswissenschaften: In betreff des G1aubens

werden die Psychologen immer durch spezifisches Studium nach den Regeln der Induktion zu

untersuchen haben, welchen Glauben wir durch unmittelbares Bewußtsein haben, und nach welchen

Gesetzen ein Glaube den anderen erzeugt; welches die Gesetze sind; kraft deren ein Ding, mit Recht

oder mit Unrecht, von unserem Geiste als Beweis für ein anderes Ding angesehen wird. In bezug auf

das Begehren werden sie ebenso zu untersuchen haben, welche Gegenstände wir ursprünglich

begehren, und welche Ursachen uns dazu führen, Dinge zu begehren, die uns ursprünglich

gleichgültig oder sogar unangenehm sind usw. (Ded. u. lnd. Logik B. VI, Kap. 4, § 3)". Brentano,

Franz. Psychologie vom empirisch Standpunkt, Zweiter Band, p. 68.

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108

desagradáveis?). A resposta para essa questão deveria conter duas partes:

(1ª) a uma teoria ética análoga à nova teoria do silogismo, pois tal teoria

permitiria descrever a gênese de um amor a partir de outro; e (2ª) as regras

que justificariam a validade ou invalidade das inferências de um amor a partir

do outro. Tal como Brentano afirma a seguir, esses dois últimos pontos

constituem o já mencionado compromisso da Psicologia do ponto de vista

empírico, que nunca foi levado a público por Brentano:

Com muita freqüência um objeto é amado ou odiado por causa de outro, sendo que em si e por si não nos moveria em nenhum de ambos os sentidos, ou talvez o faríamos em sentido oposto. A este respeito, também, encontramos um fato inteiramente análogo nos juízos. Também a eles, leis especiais que valem exclusivamente para o juízo, e estão numa relação análoga com a lógica assim como as leis do amor e ódio estão com a ética, se agregam às leis gerais do curso das representações, cujo fluxo sobre a esfera do juízo é inegável. Um juízo é inferido do outro, segundo leis especiais, como um amor surge de outro, segundo leis especiais.

188

Podemos apresentar agora o fundamento da nossa interpretação e

justificarmos a analogia entre as leis especiais da lógica e as prometidas leis

especiais da ética. Ao descrever a unidade da atividade psíquica de sentimento

de amor e ódio, a argumentação brentaniana utilizou um dos princípios da

futura lei especial de sucessão que governaria a ética. Detenhamo-nos um

pouco mais nesse ponto.

Brentano argumentou que “[...] toda volição ou tendência, em seu

sentido mais próprio, se refere a uma ação. Não simplesmente um afã de que

algo suceda, mas um desejo de que algo se dê como conseqüência do próprio

desejo”189. A condição de possibilidade desse sentimento de amor estaria, no

entanto, no conhecimento de algo que manifestasse essa relação causal, pois,

188

„Sehr häufig wird ein Gegenstand wegen eines andern geliebt und gehaßt, während er an und für sich

in keiner von beiden Weisen oder vielleicht nur in einer entgegengesetzten uns bewegen würde. Und oft

haftet die Liebe, einmal in dieser Weise übertragen, ohne Rücksicht auf den Ursprung bleibend an dem

neuen Objekte. Auch in dieser Hinsicht aber finden wir eine ganz analoge Tatsache bei den Urteilen.

Auch bei ihnen kommen zu den allgemeinen Gesetzen des Vorstellungslaufes, deren Einfluß auf dem

Gebiete des Urteils nicht zu verkennen ist, noch besondere Gesetze hinzu, die speziell für die Urteile

Geltung haben, und in ähnlicher Beziehung zur Logik, wie die Gesetze der Liebe und des Hasses zur

Ethik stehen. Wie ein e Liebe aus der anderen nach besonderen Gesetzen entsteht, so wird ein Urteil aus

dem anderen nach besonderen Gesetzen gefolgert“. Brentano, Franz. Psychologie vom empirisch

Standpunkt, Zweiter Band, p. 68. 189

"Jedes Wollen oder Streben im eigentlicheren Sinne bezieht sich auf ein Handeln. Es ist nicht einfach

ein Begehren, daß etwas geschehe, sondern ein Verlangen, daß etwas als Folge des Verlangens selbst

eintrete“. Brentano, Franz. Psychologie vom empirisch Standpunkt, Zweiter Band, p. 115.

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109

disse ele, “[...] antes de haver alcançado o conhecimento, ou ao menos a

presunção, de que certos fenômenos de amor e desejo arrastam atrás de si os

objetos amados como suas conseqüências imediatas ou mediatas, uma volição

é impossível”190. Brentano considerava que uma questão se impunha como

consequência desse argumento. A saber: Qual é o modo de chegar a tal

conhecimento ou presunção?191. Ora, se retomarmos o que foi apresentado

acerca da referência que constitui a atividade psíquica do juízo, nós devemos

considerar que a resposta de Brentano apontaria um tipo de conhecimento

apodítico descrito pela estrutura [(S é P)é]. O conhecimento, ou a crença

descrita por Mill, de que um ato de amor implicará outro ato de amor teria seu

fundamento prévio na atividade psíquica do juízo192. Assim, vale reiterar a

190

„Ehe jemand die Erkenntnis oder wenigstens die Vermutung gewonnen hat, daß gewisse Phänomene

der Liebe und des Verlangens die geliebten Gegenstände unmittelbar oder mittelbar als Folge nach

sich ziehen, ist ein Wollen für ihn unmöglich“. Brentano, Franz. Psychologie vom empirisch

Standpunkt, Zweiter Band, p. 115.

191 „Como chegar, então, a tal conhecimento ou presunção? [„Wie soll er nun aber zu einer solchen

Erkenntnis oder Vermutung gelangen?“]. Brentano, Franz. Psychologie vom empirisch Standpunkt,

Zweiter Band, p. 115.

192 “Assim, (J. S. Mill) não apenas refuta a opinião de James Mill e de Herbert Spencer em uma de suas

notas ao Analisis daquele autor (J. Mill), segundo a qual a crença consiste em uma associação

inquebrantável de representações, mas também nega que a crença se forme apenas pelas leis de

associação de idéias, como estes dois pensadores teriam que admitir necessariamente. Se este fosse o

caso, diz ele, o sentimento seria coisa do hábito e do acaso, e não da razão. Uma associação entre

duas representações, por forte que seja, não é uma razão suficiente para o assentimento. Não é uma

prova de que os fatos correspondentes estejam entrelaçados na natureza exterior. A teoria parece

suprimir toda diferença entre o assentimento do sábio, regido pelas demonstrações que correspondem

às sucessões e coexistências reais dos fatos no mundo, e o assentimento do louco, produzido

mecanicamente por qualquer associação causal que provoque a representação de uma sucessão ou

coexistência no espírito. Assentimento este que se caracteriza exatamente pelo ditado comum de

afirmar algo „porque veio à cabeça‟( Lógica Ded. e ind., libro VI, ch. XI, nota 108). Seria supérfluo

nos determos mais em um ponto que está suficientemente claro, e que é reconhecido por todos os

pensadores, com raras exceções. Discussões posteriores iluminarão mais ainda o que foi dito aqui

sobre as leis especiais dos juízos e emoções (Brentano esclarece, em 1911, que se trata dos prometidos

livros IV e V que não foram publicados)”. [„Dem entsprechend verwirft er in seinen Noten zur

Analyse von James Mill nicht bloß die Ansicht des Verfassers so wie Herbert Spencers, daß der

Glaube in einer untrennbar festen Assoziation von Vorstellungen bestehe, sondern er leugnet auch,

daß, wie diese beiden Denker notwendig annehmen mußten, der Glaube nur nach den Gesetzen der

Ideenassoziation sich bilde. Wäre dies der Fall, sagt er, so würde das Fürwahrhalten eine Sache der

Gewohnheit und des Zufalls und nicht der Vernunft sein. Sicher ist eine Assoziation zwischen zwei

Vorstellungen, so stark sie auch sein mag, kein hinreichender Grund des Fürwahrhaltens; sie ist kein

Beweis dafür, daß die betreffenden Tatsachen in der äußeren Natur verbunden sind. Die Theorie

scheint jeden Unterschied aufzuheben zwischen dem Fürwahrhalten des Weisen, welches durch

Beweisgründe geleitet wird und den wirklichen Sukzessionen und Coexistenzen der Tatsachen in der

Welt entspricht, und dem Fürwahrhalten eines Toren, welches durch irgendwelche zufällige

Assoziation, welche die Vorstellung einer Sukzession oder Coexistenz in dem Geiste hervorruft,

mechanisch hervorgebracht worden ist, einem Fürwahrhalten, das treffend charakterisiert wird durch

die gemeinübliche Bezeichnung, 'etwas für wahr halten, weil man es sich in den Kopf gesetzt hat'

(Ded. u. lnd. Logik B. VI, ch. XI, Note 108). Es wäre überflüssig, jetzt länger bei einem Punkte zu

verweilen, der genügend klar und, mit geringen Ausnahmen, auch von allen Denkern anerkannt wird.

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110

afirmação de Brentano: “[...] quem assente a algo, não apenas admite o objeto,

mas também, à pergunta sobre se o objeto deve ser admitido, admitirá também

a admissibilidade do objeto, ou seja, a verdade do objeto”193. Esse era,

portanto, o tipo de conhecimento considerado como experiência de um influxo

da atividade psíquica do sentimento de amor e ódio:

Se a volição supõe a experiência da um influxo dos fenômenos de amor na produção do objeto amado, isto supõe evidentemente que também os fenômenos de amor que não possam ser chamados volições se revelariam eficazes, de modo análogo à volição, ainda que talvez em grau mais débil.

194

Apesar dessa especificidade do conhecimento pressuposto pela

atividade psíquica de sentimento de amor e ódio, Brentano não ofereceu uma

teoria análoga ao novo silogismo que permitisse descrever a gênese de um

amor a partir de outro. Além disso, ele também não apresentou as regras que

justificariam sua validade ou invalidade.

O que ofereceu então Brentano como resposta para as duas últimas

questões de J. S. Mill que ele mesmo lançou? Como resposta, encontramos,

nas conclusões da Psicologia do ponto de vista empírico, apenas seu

comprometimento com aquilo que ele classificou como o erro de Aristóteles e

confessou, em 1889, não ter percebido no contexto da formulação das suas

primeiras obras. Vejamos o compromisso com esse erro:

(a) O fenômeno psíquico do amor é consequência do conhecimento:

Não apenas o representar é notoriamente uma condição prévia da vontade, as crescentes discussões revelam que também o juízo

Spätere Erörterungen werden das, was hier über die besonderen Gesetze der Urteile und der

Gemütsbewegungen gesagt worden ist, noch mehr ins Licht setzen. [Buch IV und V. (Nicht zum

Druck gelangt.) Anmerkung von 1911]“. Brentano, Franz. Psychologie vom empirisch Standpunkt,

Zweiter Band, p. 68-69.

193 „Wer etwas für wahr hält, nicht bloß den Gegenstand anerkennt, sondern dann, auf die Frage, ob der

Gegenstand anzuerkennen sei, auch das Anzuerkennensein des Gegenstandes, (...) die Wahrheit des

Gegenstandes ebenfalls anerkennen wird“. Brentano, Franz. Psychologie vom empirisch Standpunkt,

Zweiter Band, p. 89-90.

194 „Wenn das Wollen die Erfahrung eines Einflusses von Phänomenen der Liebe zur Hervorbringung

des geliebten Gegenstandes voraussetzt, so setzt es offenbar voraus, daß auch Phänomene der Liebe,

welche kein Wollen genannt werden können, ähnlich wie das Wollen, wenn auch vielleicht in

schwächerem Grade, sich wirksam erweisen“. Brentano, Franz. Psychologie vom empirisch

Standpunkt, Zweiter Band, p. 116.

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111

precede ao amor e ao ódio em geral, e mais ainda ao fenômeno relativamente tardio da volição.

195

(b) Com base na regra que se infere dessa relação, considera a

ética como a retidão do amor que se encontra em conformidade

com essa sua regra196:

Parece inconcebível que um ente esteja dotado com a faculdade do amor e do ódio, sem ter parte na (faculdade) do juízo. Deste modo, é impossível estabelecer lei alguma de sucessão, para este gênero de fenômenos, prescindindo inteiramente dos fenômenos do juízo.

197

O exposto é suficiente para estabelecer que o principal problema

enfrentado por Brentano na formulação da sua teoria do conhecimento moral

(1889) foi sua própria teoria do sentimento moral, bem como o aristotelismo em

que ela se fundamentou.

195

„Nicht bloß das Vorstellen ist offenbar eine Vorbedingung des Wollens; die eben geführten

Erörterungen zeigen, daß auch das Urteilen dem Lieben und Hassen überhaupt, und um so mehr dem

relativ späten Phänomene des Wollens vorgeht“. Brentano, Franz. Psychologie vom empirisch

Standpunkt, Zweiter Band, p. 129.

196 Cf. Brentano, Franz. Franz. Vom Ursprung Sittlicher Erkenntnis, p. 79, nota 28.

197 „So scheint es in der Tat undenkbar, daß ein Wesen mit dem Vermögen der Liebe und des Hasses

begabt wäre, ohne an dem des Urteiles Teil zu haben. Und ebenso ist es unmöglich, irgendwelches

Gesetz der Aufeinanderfolge für diese Gattung von Phänomenen aufzustellen, welches von den

Phänomenen des Urteiles gänzlich absieht“. Brentano, Franz. Psychologie vom empirisch Standpunkt,

Zweiter Band, p. 128.

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112

CAPÍTULO III

OS FUNDAMENTOS DA DESCRIÇÃO DOS FENÔMENOS PSÍQUICOS NO CONTEXTO DA PSICOLOGIA DESCRITIVA (1889)

3.1 Introdução

Nossa tese sustenta que a teoria apresentada por Brentano na obra

A origem do conhecimento moral (1889) consistiu num conjunto de correções

para as teorias apresentadas na Psicologia do ponto de vista empírico (1874).

As afirmações textuais de 1889, que apresentamos no primeiro capítulo,

apontaram o caminho equivocado que a ética do sentimento moral seguiu.

Sustentamos que esse equívoco decorreu dos fundamentos da filosofia do

psíquico de 1874, orientada pela noção aristotélica de in-existência do objeto

intencional. A base textual para a apresentação desse problema foi a própria

confissão tardia de Brentano acerca da incorporação do erro aristotélico à

formulação das teses sustentadas nas suas primeiras obras.

A exposição sistemática do problema que estamos descrevendo na

teoria brentaniana de 1874 é a seguinte. A noção de objeto intencional in-

existente, que serviu de base para a formulação de sua teoria ética do

sentimento moral, fundamentou: (a) a descrição do fenômeno psíquico do amor

como consequência do conhecimento (de uma relação de causa e efeito entre

objetos amados); e, com base na regra que se inferia dessa relação, (b)

descrevia a ética como a retidão do amor que se encontra em conformidade

com essa sua regra198. Assim, portanto, os equívocos encontrados na teoria do

sentimento moral são decorrentes dos fundamentos da Psicologia do ponto de

vista empírico, de 1874.

Tal como expusemos no primeiro capítulo, as considerações textuais

de Brentano acerca da correção na teoria do sentimento moral exigiam a

reformulação de um ponto específico. Importava apresentar uma descrição da

atividade psíquica para fundamentar “[...] o fato de que juntamente com a

198

Cf. Brentano, Franz. Vom Ursprung Sittlicher Erkenntnis, p. 79, nota 28.

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experiência da atividade sentimental está unido concomitantemente o

conhecimento da bondade do objeto”199. Tomando por base o explícito

propósito brentaniano de levar a cabo essa tarefa em 1889, nossa tese está

sustentada na interpretação de que o novo modo de descrição das atividades

psíquicas consistiu numa reformulação de sua filosofia do psíquico de 1874.

Consequentemente, esse novo modo de descrição resultou no abandono da

noção de in-existência intencional do objeto e da noção de verdade como

correspondência. Em outras palavras, iniciada em 1889, a reformulação da

teoria brentaniana da intencionalidade substituiu o fundamento ontológico da

noção de intencionalidade, encontrado na in-existência intencional do objeto,

por um fundamento epistemológico, encontrado no ato intencional da

consciência. Assim, nossa hipótese a ser corroborada sustenta que a ética,

como teoria do conhecimento moral, se explicitou na medida em que a

atividade psíquica passou a ser descrita como um ato intencional, em si mesmo

evidente.

Neste capítulo trataremos de explicitar o modo como as descrições

das atividades psíquicas de 1889, tomadas como atos intencionais,

apresentaram duas novas especificidades constituintes do sentimento de amor

e ódio. De modo mais específico, apresentaremos a descrição da evidência na

atividade psíquica do sentimento, pois ela estabeleceu a distinção entre o

sentimento justo de ordem superior, análogo ao juízo evidente, e o sentimento

de ordem inferior, análogo ao juízo cego. Nossa análise apresentará

primeiramente a descrição brentaniana do caráter intencional dos atos

psíquicos e explicitará que tais atos consistiam em relações intencionais.

Mostraremos como essa nova descrição estava orientada e justificada pela

descrição das relações entre as partes e o todo da consciência apresentada

por Brentano na Psicologia descritiva. Em seguida, apresentaremos a

descrição das atividades psíquicas do juízo, compreendida em 1889 como atos

intencionais da consciência. Em terceiro lugar, apresentaremos a principal

implicação dessa reformulação para a nossa tese. Trata-se da descrição do

fenômeno psíquico de amor e ódio como atos intencionais da consciência, pois

199

„Daß mit der Erfahrung der als richtig charakterisierten Gemütstätigkeit auch die Erkenntnis der Güte

des Objekts immer zugleich gegeben ist“ Brentano, Franz. Vom Ursprung Sittlicher Erkenntnis, p. 79,

nota 28.

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tal descrição estabeleceu a distinção entre o sentimento justo de ordem

superior e o sentimento de ordem inferior. Essa distinção descreveu o ato

intencional de sentimento superior e sua cognição imediata do sentimento

justo. Partiremos, portanto, do fato de que as raízes do problema moral não se

encontravam na teoria ética ou na teoria do conhecimento, e sim na psicologia.

Mostraremos que a solução brentaniana para o problema da apreensão da

justeza do sentimento foi apresenta em 1889 como uma teoria acerca da

origem do conhecimento moral inspirada na futura Psicologia descritiva.

3.2 A orientação cartesiana para a descrição das atividades da consciência em 1889

Nos capítulos anteriores, nossa análise da descrição brentaniana

das atividades psíquicas mostrou que a orientação aristotélica conduziu a ética

brentaniana a uma teoria do sentimento moral, mas havia algo mais. Tal como

mencionamos no primeiro capítulo, foi preciso descrever outro equívoco

reconhecido por Brentano como limitador de sua teoria. Tratava-se, como

veremos adiante, do fato de não ter distinguido, em 1874, o acerto e o erro

cometido por Descartes na sua descrição das atividades psíquicas de juízo. A

relevância desse ponto está no fato de que Descartes foi o interlocutor de

Brentano na sua classificação dos fenômenos psíquicos em 1889, pois

Brentano assumiu estrategicamente parte dos critérios cartesianos para definir

as classes fundamentais de fenômenos psíquicos. Em função desses critérios,

a análise brentaniana descreveu os atos psíquicos como relações intencionais

evidentes em si mesmas. Vejamos, passo a passo, as bases textuais e as

implicações dessa análise.

A noção de intencionalidade, tal como Brentano a apresentou em

1889, foi descrita nos seguintes termos:

O traço comum característico de todo psíquico consiste naquilo que freqüentemente foi designado com o nome de consciência (expressão, infelizmente, muito exposta a mal-entendidos), ou seja, consiste em uma atitude do sujeito, em uma referência

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115

intencional – tal como foi chamada – a algo que, ainda que não seja real, no entanto está dado interiormente como objeto. Não existe audição sem algo ouvido, nem crença sem algo crido, nem esperança sem algo esperado, nem aspiração sem algo a que se aspire, nem regozijo sem algo de que nos regozijemos, e assim sucessivamente.

200

Analisaremos os detalhes dessa definição a partir de uma

comparação com a clássica definição de 1874:

Todo fenômeno psíquico está caracterizado por aquilo que os escolásticos da idade média chamaram de in-existência intencional (ou mental) de um objeto e que nós chamamos, se bem que com expressões não inteiramente inequívocas, a referência a um conteúdo, a direção a um objeto (pelo qual não se deve entender aqui uma realidade), ou a objetividade imanente. Todo fenômeno psíquico contém algo em si como seu objeto, ainda que nem todos do mesmo modo: na representação há algo representado; no juízo há algo admitido ou rechaçado; no amor, amado; no ódio, odiado; no apetite, apetecido, etc.

201

Tal como foi utilizada na Psicologia do ponto de vista empírico, a

noção de intencionalidade consistiu no critério positivo para a divisão dos

fenômenos psíquicos em suas três classes. Por esse motivo, são manifestas

algumas diferenças do novo modo de apresentação da noção de

intencionalidade, quando comparado com a clássica definição de 1874.

Em primeiro lugar, podemos destacar a relevância que Brentano

deixou de atribuir às doutrinas aristotélicas e escolásticas da intencionalidade

nessa classificação de 1889, pois se, na Psicologia do ponto de vista empírico,

o critério de classificação dos fenômenos psíquicos foi atribuído integralmente

a Aristóteles e sua tradição, na Origem do conhecimento moral o estagirita é

200

„Der gemeinsame Charakterzug alles Psychischen besteht in dem, was man häufig mit einem leider

sehr mißverständlichen Ausdruck Bewußtsein genannt hat, d. h. in einem subjektischen Verhalten, in

einer, wie man sie bezeichnete, intentionalen Beziehung zu etwas, was vielleicht nicht wirklich, aber

doch innerlich gegenständlich gegeben ist. Kein Hören ohne Gehörtes, kein Glauben ohne Geglaubtes,

kein Hoffen ohne Gehofftes, kein Streben ohne Erstrebtes, keine Freude ohne etwas, worüber man

sich freut, und so im Übrigen“. Brentano, Franz. Vom Ursprung Sittlicher Erkenntnis, p. 16.

201 “Jedes psychische Phänomen ist durch das charakterisiert, was die Scholastiker des Mittelalters die

intentionale (auch wohl mentale) Inexistenz eines Gegenstandes genannt haben, und was wir, obwohl

mit nicht ganz unzweideutigen Ausdrücken, die Beziehung auf einen Inhalt, die Richtung auf ein

Objekt (worunter hier nicht eine Realität zu verstehen ist), oder die immanente Gegenständlichkeit

nennen würden. Jedes enthält etwas als Objekt in sich. obwohl nicht jedes in gleicher Weise. In der

Vorstellung ist etwas vorgestellt, in dem Urteile ist etwas anerkannt oder verworfen, in der Liebe

geliebt, in dem Hasse gehaßt, in dem Begehren begehrt usw“. Brentano, Franz. Psychologie vom

empirisch Standpunkt, Erster Band, p. 124-125.

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citado apenas como precursor desse critério202. Em segundo lugar, explicita-se

o fato de que o elemento relevante de definição de 1889 era a natureza

epistemológica da „atitude do sujeito‟, pois ela consistia em uma referência

intencional – tal como foi chamada – a algo dado interiormente como objeto.

Por isso, tratava-se de uma reformulação conceitual, uma vez que a clássica

definição de 1874 estabelecia como relevante o estatuto ontológico da noção

de in-existência do objeto intencional, pois ela afirmava que “[...] todo fenômeno

psíquico está caracterizado por aquilo que os escolásticos da idade média

chamaram de in-existência intencional (ou mental) de um objeto”203.

Apesar dessa diferença radical na definição, as funções atribuídas à

noção de intencionalidade permaneceram as mesmas. Suas funções

consistiam, ainda, (1) em definir positivamente os fenômenos psíquicos frente

aos físicos, bem como (2) distinguir e descrever os tipos de fenômenos que

constituíam a atividade psíquica. Assim, portanto, como se explicita a partir da

citação abaixo, a noção de referência intencional assumiu novamente a função

de critério para a definição positiva e classificação dos fenômenos psíquicos:

Assim como, nas intuições de conteúdo representativo físico, as qualidades sensíveis oferecem numerosas diferenças, assim também diferenças são oferecidas pelas referências intencionais das intuições de conteúdos psíquicos. Assim como nas primeiras, o número dos sentidos se estabelece a partir das diferenças mais profundas entre as qualidades sensíveis (que Helmholtz chamou de diferenças de modalidade), assim também, nas segundas, o número de classes fundamentais de fenômenos psíquicos fica estabelecido pelas diferenças mais profundas entre as referências intencionais. De acordo com isto, existem três classes de fenômenos psíquicos.

204

202

Para esclarecer essa definição, Brentano acrescenta a seguinte nota: “Também se encontra em

Aristóteles os primeiros germes desta doutrina. Conferir principalmente Metafísica, Δ, 15, 1021, a 29.

O termo „intencional‟ procede dos escolásticos, como um bom número de outras denominações de

conceitos importantes”. [„Auch von dieser Lehre finden sich die ersten Keime bei Aristoteles, vgl.

insbes. Metaph. Δ, 15, p. 1021 a 29. Der Terminus ‚intentional„ stammt, wie so manche andere

Bezeichnung wichtiger Begriffe, von den Scholastikern her“]. Brentano, Franz. Vom Ursprung

Sittlicher Erkenntnis, p. 54, nota 19.

203 “Jedes psychische Phänomen ist durch das charakterisiert, was die Scholastiker des Mittelalters die

intentionale (auch wohl mentale) Inexistenz eines Gegenstandes genannt haben“. Brentano, Franz.

Psychologie vom empirisch Standpunkt,Erster Band, p. 124.

204 „Wie bei den Anschauungen mit physischem Vorstellungsinhalt die sinnlichen Qualitäten, so zeigen

bei denen mit psychischem Inhalt die intentionalen Beziehungen mannigfaltige Unterschiede. Und wie

dort nach den tiefgreifendsten Unterschieden der sinnlichen Qualitäten (die Helmholtz Unterschiede

der Modalität genannt hat) die Zahl der Sinne, so wird hier nach den tiefgreifendsten Unterschieden

der intentionalen Beziehung die Zahl der Grundklassen der psychischen Phänomene festgestellt“.

Brentano, Franz. Vom Ursprung Sittlicher Erkenntnis, p. 16-17.

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117

Acerca desta citação é interessante dissolver uma aparente

contradição textual. Apesar da explícita proposta de uma noção reformulada de

intencionalidade em 1889, Brentano ainda remetia à obra de 1874 ao afirmar

que “[...] a questão acerca dos fundamentos da divisão está tratada de modo

detalhado em minha Psicologia do ponto de vista empírico”205.

Nós seguimos a interpretação de Chisholm206 e consideramos que

essa remissão tem como propósito apenas apresentar os esclarecimentos

acerca do ponto em questão. Em outras palavras, ela indicava a necessidade

de um critério positivo de classificação dos fenômenos psíquicos e não o

critério aristotélico adotado. Desse modo, aquilo que deveria ser buscado não

seriam propriamente os argumentos presentes na Psicologia do ponto de vista

empírico nem a sua fundamentação, pois esses se fundamentavam na divisão

aristotélica entre pensamento e apetite ( e ).

Se essa interpretação de inspiração chisholmeana é plausível, então

se tornam compreensíveis as afirmações textuais de que, em 1889, a

classificação dos fenômenos psíquicos seria orientada pela análise cartesiana

e não mais pela análise aristotélica. Do mesmo modo, como esclarece a

citação a seguir, torna-se compreensível também o motivo pelo qual a

205

„Eingehender findet man die Frage nach dem Einteilungsgrunde erörtert in meiner Psychologie vom

empirischen Standpunkte (1874, Buch II Kap. 6; vgl. ebend. Kap. 1 § 5)“. Brentano, Franz. Vom

Ursprung Sittlicher Erkenntnis, p. 54, nota 20.

206 Segundo a interpretação de Chisholm, o critério cartesiano de classificação dos fenômenos psíquicos

foi o critério básico de classificação adotado por Brentano em 1889. Sua análise ressalta o seguinte:

"in Sections 18 through 20 of his 1889 lecture, The Origin of Our Knowledge of Right and Wrong,

edited by Oskar Kraus, he set forth what we may call his basic system of classifying psychological

phenomena, a system he was later to revise in various ways. Referring to the classification Descartes

had set forth in the third of his Meditations, Brentano says of it that we may now look upon it as

something that has been established [The Origin of Our Knowledge of Right and Wrong (London:

Routledge and Kegan Paul, 1969). p. 15; Vom Urspung sittlicher Erkenntnis (Hamburg: Felix Meiner

Verlag, 1969). p. 17.]. The following is Descartes's statement: … Of my thoughts some are, so to

speak, images of the things, and to these alone is the title idea properly applied; examples are my

thought of a man or of a chimera, of heaven, of an angel, or [even] of God. But other thoughts possess

other forms as well. For example in willing, fearing, approving, denying, though I always perceived

something as the subject of the action of my mind, yet by this action I always add something else to the

idea which I have of that thing; and of the thoughts of this kind some are called volitions or affections

and others judgments (E. S. Haldane and G. R. T. Ross, eds., Philosophical Work of Descartes, vol. 1

(Cambridge: Cambridge University Press, 1931), p. 159). Descartes here tells us that there are three

fundamental classes of psychological phenomena: (1) thinking, or having ideas; (2).judging; and (3)

willing or feeling. The second and third presuppose the first; they always add something else to the

idea. Phenomena of the second type - judging - differ from those of the first and the third types in that

they are either true or false. Volitions, according to Descartes and Brentano, fall within the third class:

Acts of will are a kind of feeling or emotion". Chisholm, Roderick M. Brentano and intrinsic value, p.

1-2.

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118

originalidade dessa descoberta passou a ser atribuída efetivamente à

Descartes:

Em suas Meditações207

, Descartes foi o primeiro a expô-las (as três classes de fenômenos psíquicos) exata e integralmente. No entanto, suas observações não foram suficientemente entendidas e caíram imediatamente no esquecimento, até que em nossa época, o fato foi redescoberto, independentemente dele. Hoje se pode considerar como suficientemente assegurado.

208

A citação acima indica que Descartes era o interlocutor de Brentano

em 1889. Assim, uma nova tarefa se impõe. É preciso apresentar uma análise

do critério cartesiano de classificação dos fenômenos psíquicos. Nesse

contexto, Brentano afirmou ser imprescindível uma interpretação elaborada a

partir da esfera ideológica da Psicologia descritiva, à qual esperava em pouco

tempo poder dar publicidade em toda sua extensão209. Essa prometida obra

não foi publicada, no entanto. Aquela que de fato veio a público com o nome de

Psicologia descritiva consistiu em uma reunião de anotações de classes e

textos póstumos que agrupam essa esfera ideológica210.

207

Brentano apresenta a seguinte citação como base textual: “Cumpre aqui que eu divida todos os meus

pensamentos em certos gêneros e considere em quais desses gêneros há propriamente verdade ou erro.

Entre meus pensamentos, alguns são como as imagens das coisas, e só àqueles convém propriamente

o nome de idéia: como no momento em que eu represento um homem ou uma quimera, ou o céu, ou

um anjo, ou mesmo Deus. Outros, além disso, têm algumas outras formas: como, no momento em que

eu quero, que eu temo, que eu afirmo ou que eu nego, então concebo efetivamente uma coisa como o

sujeito da ação de meu espírito, mas acrescento também alguma outra coisa por esta ação à idéia que

tenho daquela coisa; e deste gênero de pensamentos, uns são chamados vontades ou afecções, e outros

juízos”. Descartes, René. Meditações, III § 5 – 6.

208 „Danach gibt es drei Grundklassen. Descartes in seinen Meditationen hat sie zuerst richtig und

vollständig aufgeführt; aber auf seine Bemerkungen wurde nicht genügend geachtet, und sie waren

bald ganz in Vergessenheit geraten, bis in neuester Zeit die Tatsache unabhängig von ihm wieder

entdeckt wurde. Sie darf wohl heutzutage als hinreichend gesichert gelten“. Brentano, Franz. Vom

Ursprung Sittlicher Erkenntnis, p. 17.

209 „Ela pertence à esfera ideológica de uma Psicologia descritiva, que espero poder dar publicidade em

toda sua extensão dentro de pouco tempo. [„Sie gehören zum Gedankenkreise einer Deskriptiven

Psychologie, den ich, wie ich nunmehr zu hoffen wage, in nicht ferner Zeit seinem ganzen Umfange

nach der Öffentlichkeit erschließen kann“]. Brentano, Franz. Vom Ursprung Sittlicher Erkenntnis, p.

3.

210 Acerca dessas publicações, é interessante considerar as seguintes informações apresentadas em 1982

por Chisholm, na introdução de sua edição da Deskriptive Psychologie, e também em 1995, como

segunda parte da introdução da edição inglesa (Descriptive Psychology) elaborada por Benito Müller.

“Unfortunately, he did not publish a work entitled „Descriptive Psychology‟, but many of his writings

and dictations on the subject have been published in the various post-humous works in the

Philosophische Bibliothek (See, in particular, Volume II of the second edition of the Psychologie vom

empirischen Standpunkt, Von der Klassifikation der psychischen Phänomene, Leipzig: 1874, 2nd

ed.

O. Kraus (ed.), Hamburg: Meiner 1925 (unaltered reprint Hamburg: Meiner 1971), [Engl. tr.:

Psychology from an Empirical Standpoint, The Classification of Mental Phenomena, L. McAlister

(ed.), London: Routledge & Kegan Paul 1973, p. 271– 311]; Volume 3 of the Psychologie, Vom

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119

Nossa estratégia de análise adotará o seguinte procedimento. Para

fundamentar a descrição das teses presentes em A origem do conhecimento

moral (1889), nós apresentaremos as análises brentaniana encontradas nos

manuscritos de 1887 a 1891. Esses manuscritos fazem parte da obra

Psicologia descritiva, pois, disse Brentano, suas teses seriam compreendidas

“[...] não como uma continuação, mas como desenvolvimento da Psicologia do

ponto de vista empírico”211.

3.3 A descrição das partes separáveis das atividades psíquicas por meio da análise das relações entre as partes e o todo da consciência na Psicologia descritiva.

Psicognose (Psychognosie) era o título original do manuscrito das

leituras apresentado na Universidade de Viena em 1890. Tal manuscrito faz

parte da obra intitulada Psicologia descritiva (Deskriptive Psychologie)212. O

propósito desse manuscrito estava divido em duas partes: formular as

categorias psicológicas; estabelecer a demarcação entre a Psicologia genética

sinnlichen und noetischen Bewusstsein, O. Kraus (ed.), Leipzig: Meiner 1928, (2nd ed. Hamburg:

Meiner 1968 (unaltered reprint with new introduction by F. Mayer-Hillebrand, Hamburg: Meiner

1974) [Engl. tr.: Sensory and Noetic Consciousness, L. McAlister (tr.), London: Routledge & Kegan

Paul 1981]; Grundzüge der Ästhetik, F. Mayer-Hillebrand (ed.), Hamburg: Meiner 1959;

Untersuchungen zur Sinnespsychologie, 2nd ed. Roderick M. Chisholm and Reinhard Fabian (eds),

Hamburg: Meiner 1979). And he gave several courses of lectures on the subject at the University of

Vienna. Three different lecture manuscripts have been preserved. The first of these was given in

1887–8 and was entitled Deskriptive Psychologie. The second, entitled Deskriptive Psychologie oder

beschreibende Phänomenologie was given in 1888–9. (Although the term „Phänomenologie‟ occurred

in the title, it does not seem to have been used in the lectures themselves.) The third, entitled simply

Psychognosie, was given in 1890–1. The main text of the present book is taken from the lecture of

1890–1. The following material is added in the appendices: (1) the description of „inner perception‟

from the lectures of 1887–8; (2) the general account of „descriptive psychology‟ from the lectures of

1888–9; (3) „Of the Content of Experiences‟ from the lectures of 1887–8; (4) „Psychognostic Sketch

I‟, from 1901; (5) „Psychognostic Sketch II‟, also from 1901; and (6) an undated manuscript from the

same general period entitled „Perceiving and Apperceiving‟”. Brentano, Franz. Descriptive

Psychology, p. xvi – xvii.

211 „Die nicht als eine Fortsetzung, wohl aber als eine Fortentwicklung meiner "Psychologie vom

empirischen Standpunkte" erscheinen wird“. Brentano, Franz. Vom Ursprung Sittlicher Erkenntnis, p.

56, nota 22 (final).

212 Cf. Brentano, Franz. Descriptive Psychology, p. xvi – xvii.

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120

e a Psicognose. Há algo, porém, que nos interessa especificamente, além da

demarcação desses dois ramos da psicologia.

Nesse manuscrito Brentano apresentou a unidade da consciência

como o todo que constitui o objeto da Psicognose. Além disso, sua análise

formulou novos critérios de classificação das atividades psíquicas e, com isso,

descreveu as partes da consciência de um modo inovador. Retomemos os

detalhes do que foi indicado aqui.

No manuscrito intitulado Psychognosie, de 1890, Brentano definiu a

psicologia como “[...] a ciência da vida interna das pessoas [Seelenleben], ou

seja, a parte da vida que é capturada pela percepção interna (innere

Wahrehmung)”213. Essa definição estabeleceu que a psicologia em geral

tivesse como propósito a realização de duas funções distintas: “[...] buscar

exaustivamente (se possível) (a) os elementos da consciência humana, bem

como o modo pelo qual eles são conectados; e (b) descrever as condições

causais às quais os fenômenos particulares estão sujeitos”214. Distinguidas

essas duas funções, Brentano estabeleceu que “[...] a primeira delas é tema da

Psicognose e a segunda é o tema da Psicologia genética” 215. Isso significava,

na análise de Brentano, que a superação da Psicologia do ponto de vista

empírico só poderia ocorrer por meio do desenvolvimento da Psicognose. Por

isso, apenas a Psicognose consistia em uma psicologia pura comprometida

com a descrição exata dos constituintes elementares da consciência216.

213

„Die Psychologie ist die Wissenschaft vom Seelenleben des Menschen, d. i. von jenem Teil des

Lebens, welcher in innerer Wahrnehmung erfaßt wurde“. Brentano, Franz. Deskriptive Psychologie, p.

1.

214 „Sie sucht die Elemente des menschlichen Bewusstseins und ihre Verbindungsweisen (nach

Möglichkeit) erschöpfend zu bestimmen und die Bedingungen anzugeben, mit welchen die einzelnen

Erscheinungen ursächlich verknüpft sind“. Brentano, Franz. Deskriptive Psychologie, p. 1.

215 „Das Erste ist Sache der Psychognosie, das Zweite fällt der genetischen Psychologie anheim“.

Brentano, Franz. Deskriptive Psychologie, p. 1.

216 “A diferença entre estas duas disciplinas é fundamental. Ela se manifesta, especificamente, em duas

relações essenciais: (a) Psycognose, pode-se dizer, é psicologia pura, desde que não seja

inapropriado se referir à psicologia genética como psicologia fisiológica; (b) a primeira é uma

ciência exata, enquanto a última presumidamente terá renunciado para sempre qualquer exigência de

exatidão. Ambos (os pontos) podem ser estabelecidos com algumas palavras”. [„Der Unterschied

beider Disziplinen greift tief und macht sich insbesondere in zwei sehr wesentlichen Beziehungen

geltend: a) Die Psychognosie, könnte man sagen, ist reine Psychologie, während die genetische

Psychologie nicht unpassend als physiologische Psychologie zu bezeichnen wäre. b) Jene gehört zu

den exakten Wissenschaften, während diese in allen ihren Bestimmungen wohl für immer auf den

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Para dar conta dessa tarefa, Brentano utilizou uma estratégia

expositiva diferente daquela apresentada na Psicologia do ponto de vista

empírico. Não se tratava mais de analisar o problema a partir do debate com os

fisiologistas, pois essa tarefa agora estava destinada à Psicologia genética.

Cabia à psicologia pura, ou seja, à Psicognose, descrever a unidade da

consciência (o todo) e, imediatamente, estabelecer as relações com as partes

que a constituíam.

Em seu livro La ética de Franz Brentano, Sanches Granados

apresenta a seguinte estrutura para a descrição das partes da consciência

proposta por Brentano na Psicologia descritiva.

1. Partes realmente separáveis:

1.1. Partes separáveis reciprocamente.

(Ex. o ver e o ouvir).

1.2. Partes separáveis unilateralmente.

(Ex. o representar e o desejar).

2. Partes distincionais:

2.1. Em sentido próprio:

a) Partes “compenetradas”.

b) Partes lógicas.

c) Partes do par correlativo intencional.

d) Partes da dienergia psíquica.

2.2. Em sentido modificado.

a) (Ex. uma coisa A como parte do pensar A).

b) (Ex. uma coisa A como parte do A pensado).217

Exporemos detalhadamente a estrutura acima, ainda que não

sigamos exatamente a mesma terminologia de Granado em nossa análise, pois

nossa análise optará pela terminologia difundida por Chisholm. Por isso,

indicado o caminho, cabe agora uma apresentação textual da descrição da

estrutura da consciência apresentada por Brentano em 1890, eis que o nosso

propósito é explicitar o modo como a Psicognose descreve a relação

intencional que constitui o ato psíquico de sentimento de amor e ódio.

Em primeiro lugar, Brentano estabeleceu que o objetivo da

Psicognose era determinar os constituintes da consciência humana e o modo

Anspruch der Exaktheit verzichten muß. Beides läßt sich mit wenigen Worten dartun“]. Brentano,

Franz. Deskriptive Psychologie, p. 1.

217 Granados, Sergio Sánchez-Migallón. La ética de Franz Brentano, p. 71.

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122

pelo qual eles estavam conectados, pois a consciência deveria ser tomada

como uma unidade e seus constituintes como as partes dessa unidade218.

Em segundo lugar, orientado pela noção de relação parte-todo,

Brentano dissolveu a aparente contradição entre unidade e multiplicidade. Ele

considerou que a contradição se aplicava apenas à existência de uma relação

entre simplicidade e multiplicidade, mas esse não era o caso da consciência,

pois a relação parte-todo consistia na relação entre unidade e multiplicidade.

Por isso, disse Brentano, “[...] a nossa consciência não se apresenta à nossa

percepção interna como alguma coisa simples, mas ela mostra a si mesma

composta de muitas partes”219.

Em terceiro lugar, Brentano estabeleceu que as partes da

consciência eram distinguidas em partes unilateralmente separáveis e partes

bilateralmente separáveis220. Isso significava, por um lado, que os atos

psíquicos, como visão e audição, eram classificados como mutuamente ou

bilateralmente separáveis. Em outras palavras, se ambos pertencessem à

mesma unidade real, um poderia continuar existindo quando o outro

cessasse221. Por outro lado, o ato psíquico da visão e a percepção do que se

vê eram unilateralmente separáveis. Em outras palavras, se ambos

218

“Nós dissemos que a Psicognose investiga os elementos da consciência humana e estabelece seu modo

de conexão. Isto implica que a consciência é algo constituído de uma multiplicidade de partes“. [“Wir

sagten, die Psychognosie suche die Elemente des menschlichen Bewußtseins und ihre

Verbindungsweisen zu bestimmen, darin liegt eingeschlossen, daß das Bewußtsein etwas sei, was aus

einer Vielheit von Teilen bestehe“]. Brentano, Franz. Deskriptive Psychologie, p. 10.

219 „Es bietet sich unserer inneren Wahrnehmung nicht als etwas Einfaches dar, sondern zeigt sich

zusammengesetzt aus vielen Teilen“. Brentano, Franz. Deskriptive Psychologie, p. 12.

220 “Pois, ainda que estas partes nunca ocorram lado a lado como partes de um contínuo espacial, algumas

delas podem estar de algum modo efetivamente separadas de outras, como as partes de um contínuo

espacial. O sentido no qual uma dessas partes pode ser efetivamente separada de outra consiste em

que a primeira, tendo existido primeiro como pertencente à mesma unidade real [reale Einheit] que a

segunda, continua existindo quando a última deixa de existir”. [„Ja wenn diese Teile auch nie als ein

Nebeneinander erscheinen wie Teile eines räumlichen Kontinuums, so gilt doch von vielen unter

ihnen, ähnlich wie von Teilen eines solchen Kontinuums, daß der eine von dem andern in gewisser

Weise in Wirklichkeit losgelöst werden kann, indem er, der früher mit ihm als zur selben realen

Einheit gehörig bestanden, dann noch besteht, wenn der andere aufgehört hat zu existieren“].

Brentano, Franz. Deskriptive Psychologie, p. 12.

221 “(Exemplos de bi-lateral/mutual) separabilidade real: ver e ouvir, partes de ver e partes de ouvir,

respectivamente, ver e lembrar ter visto”. [„Beispiele von beiderseitiger] wirklicher Abtrennbarkeit:

Sehen und Hören, je Teile des Sehens und Teile des Hörens, sehen und sich erinnern, gesehen zu

haben“. Brentano, Franz. Deskriptive Psychologie, p. 12.

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pertencessem à mesma unidade real, ainda que fosse possível continuar vendo

quando a percepção do que se vê cessa, o contrário não seria possível222.

Brentano sintetizou, então, a relação entre a unidade da consciência

e os dois tipos de separabilidade das partes do seguinte modo:

Embora a consciência real momentânea de um ser humano pertença a uma simples unidade real, isto não significa, como dissemos, que ela é algo simples em virtude de sua unidade. A percepção interna, entretanto, não indica partes espacialmente dispersas. Contudo, ela (consciência humana) é indubitavelmente composta de muitas partes, algumas delas, como ver-ouvir, são mutuamente separáveis; outras (delas), como ver e perceber o que é visto, são ao menos unilateralmente separáveis.

223

Estabelecida a relação entre a unidade da consciência e suas partes

realmente separáveis, Brentano pretendeu ter apresentado os elementos

últimos constituintes da consciência, no entanto o ponto fundamental da análise

brentaniana estava na consequência que ele retirou. Os critérios que definiram

os elementos últimos estabeleceram que eles não poderiam mais ser

separados, no entanto a aplicação desses mesmos critérios permitiu que outras

divisões pudessem ser estabelecidas. Como apresentaremos em detalhes no

próximo ponto, essas divisões consistiam nas distinções dos elementos

últimos.

3.4 A descrição das partes distinguíveis das atividades psíquicas por meio da análise das relações entre as partes e o todo da consciência na Psicologia descritiva.

222

“(Exemplos de) separabilidade unilateral: ver e perceber, visão de uma cor particular e representação

do conceito, conceito e juízo, premissa e conclusão, etc.”. [„(Beispiele) einseitiger Abtrennbarkeit:

Sehen und Bemerken, Vorstellen und Begehren, Sehen einer besonderen Farbe und Vorstellendes

Begriffs, Begriff und Urteil, Prämissen und Schluß, usw.“]. Brentano, Franz. Deskriptive Psychologie,

p. 12.

223 „Obwohl das irgendwann wirkliche Bewußtsein eines Menschen zu einer einzigen Realität gehört, so

ist, sagten wir, damit nicht gesagt, daß es ob dieser Einheit etwas Einfaches sei. Von räumlich

auseinandertretenden Teilen zeigt allerdings die innere Wahrnehmung nichts. Aber dennoch ist es

unzweifelhaft zusammengesetzt aus vielen Teilen, von welchen die einen wie z.B. Sehen -Hören

gegenseitig, andere, wie z.B. das Sehen, vom Bemerken des Gesehenen, wenigstens einseitig ablösbar

sind“. Brentano, Franz. Deskriptive Psychologie, p. 13.

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124

Para apresentar a distinção como outro modo de divisão dos

elementos últimos constituintes das partes da consciência, Brentano deu o

quarto passo de sua descrição. Ele afirmou que, “[...] em certo sentido é

possível falar em outras partições [Teilungen], ainda que seja o caso dessas

partes últimas realmente separáveis. Essas partições seriam encontradas, não

por meio de uma separação real, mas por meio de uma distinção”224. Tratava-

se, como explicita a citação a seguir, das partes distincionais. Brentano

classificou-as desse modo, sob a inspiração da teoria química225, para

evidenciar o contraste como as partes separáveis:

Tais partes meramente distincionais são ditas serem dadas também na consciência humana. Assim, temos aqui novamente, em certo sentido, partes de elementos. E, como no caso das partes, pode-se em última instância falar em elementos de elementos (nomeando estes últimos como partes meramente distincionais das últimas partes separáveis)

226.

Em quinto lugar, estabelecido o critério de distinção de partes a

partir dos elementos últimos da partes separadas, Brentano classificou,

primeiramente, as partes distinguíveis em dois outros grupos: i) partes

estritamente distincionais; e ii) partes que podem ser obtidas por meio de uma

distinção modificada.

224

„Aber, sagten wir, auch bei den letzten wirklich ablösbaren Teilen, könne in einem gewissen Sinn

noch von weiteren Teilungen gesprochen werden, welche nicht durch wirkliches Ablösen, sondern

durch Unterscheidung gefunden würden“. Brentano, Franz. Deskriptive Psychologie, p. 13.

225 “Em contraste com as partes realmente separáveis, eu a denominei partes distincionais. E, eu expliquei

o termo usando as partes que, de acordo como os atomistas, são dotadas dos menores corpúsculos

separáveis”. [„Ich nannte sie, im Unterschied von den wirklich ablösbaren, distinktionelle Teile. Und

erläuterte den Begriff an den Teilen, welche nach dem Atomisten die kleinsten abtrennbaren

Körperehen besitzen“]. Brentano, Franz. Deskriptive Psychologie, p. 13. E ainda, “Aquele que

acredita em átomos acredita em corpúsculos que não podem ser dissolvido em corpos menores. Mas,

ainda assim, ele pode falar em meios, quartos, etc., de átomos: partes que são distinguíveis ainda que

não possam ser separáveis. Para diferenciar estas das outras, nós podemos nos referir a elas como

partes distincionais. E, como a distinção vai além da separabilidade real, se pode falar em partes ou

elementos de elementos”. [„Wer an Atome glaubt, der glaubt an Körperchen, die nicht in kleinere

Körper auflösbar sind. Aber auch bei ihnen mag er von Hälften, Vierteln etc. sprechen: Teilen, die

nicht wirklich ablösbar, aber doch unterscheidbar sind. Wir mögen sie im Unterschied von andern

distinktionelle Teile nennen. Auch in dem menschlichen Bewußtsein gibt es nun außer ablösbaren

auch bloß distinktionelle Teile. Und indem das Unterscheiden weitergeht, als die wirkliche

Ablösbarkeit, könnte man von Teilen, resp. von Elementen der Elemente sprechen“]. Brentano, Franz.

Deskriptive Psychologie, p. 13.

226 „Solche bloß distinktionelle Teile gebe es nun auch im menschlichen Bewußtsein, also auch hier in

gewissem Sinne Teile der Elemente. Und wenn einmal wie von Teilen, so möge man ohne

Widerspruch in letzter Instanz auch von Elementen der Elemente sprechen (nämlich von letzten bloß

distinktionellen Teilen der letzten ablösbaren Teile)“. Brentano, Franz. Deskriptive Psychologie, p. 14.

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125

Em seguida, ele dividiu novamente as partes estritamente

distincionais em quatro classes: i‟) a classe das partes mutuamente

pertencentes (sich durchwohnende); i‟‟) a classe das partes lógicas; i‟‟‟) a

classe das partes dos pares de correlatos intencionais; i‟‟‟‟) e a classe das

partes meramente distincionais da relação psíquica primária e secundária

[Diploseenergie]227. Estabelecidas as definições, vejamos separadamente suas

aplicações a partir dos exemplos brentanianos.

i‟) Para exemplificar as partes mutuamente pertencentes (sich

durchwohnende), Brentano tomou o juízo „há uma verdade‟ com dois

propósitos. Um deles consistia em explicitar quais eram as partes distincionais

mutuamente pertencentes constituintes desse juízo. O outro consistia em

apresentar o modo como a análise da relação entre as partes e o todo da

consciência descrevia os atos psíquicos a partir de seus constituintes

distinguíveis. Assim, disse ele:

O que se segue são partes mutuamente pertencentes no ato do juízo „há uma verdade‟: a) qualidade afirmativa; b) a direção ao objeto „verdadeiro‟; c) auto-evidência; d) a modalidade apodítica, que há uma verdade é reconhecida como sendo necessariamente verdade

228.

Brentano considerou que esse exemplo estabelecia, de imediato, o

fato de que “[...] nós temos em um (simples) ato quatro partes mutuamente

pertencentes” 229. E, além disso, existia ainda a virtude de que o procedimento

de análise não se esgotava nessa distinção, pois, continuou ele, “[...] talvez nós

227

“Os quarto gêneros de partes distincionais no sentido estrito, que nós dissemos serem encontrados no

domínio da consciência, são, portanto: (1) mutuamente pertencentes; (2) lógica; (3) partes de pares de

correlatos intencionais; (4) partes meramente distincionais da Diploseenegie psíquica (relação

psíquica primária e secundária), ficando aberta a questão se essa relação dual não pode ainda ser

divisível em duas (outras) classes”. [„Das also waren die vier Gattungen von distinktionellen Teilen

im eigentlichen Sinne, die, wie wir sagten, das Gebiet des „Bewußtseins aufweist: (1) sich

durchwohnende,„(2) logische, (3) die Teile des intentionalen Korrelatenpaares, (4) bloß distinktionelle

Teile der psychischen Diploseenergie, (primäre und sekundäre psychische Beziehung), wobei

dahingestellt (sei), ob sie nicht wieder von zweifacher Klasse (ist)“]. Brentano, Franz. Deskriptive

Psychologie, p. 25.

228 „Die folgenden sind sich durchwohnende Teile im Urteilsakt ‚Es gibt eine Wahrheit„: a) bejahende

Qualität, b) das Gerichtetsein auf das Objekt ‚Wahrheit„, c) Evidenz, d) die apodiktische Modalität,-

daß eine Wahrheit ist, wird als notwendig wahr erkannt“. Brentano, Franz. Deskriptive Psychologie, p.

20.

229 „Da hätten wir also in einem Akte 4 einander durchwohnende Besonderheiten“. Brentano, Franz.

Deskriptive Psychologie, p. 20.

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126

possamos ser capazes de descobrir, no mesmo ato, um número ainda maior de

partes distincionais mutuamente pertencentes”230.

i‟‟) Ao exemplificar as partes lógicas, Brentano argumentou do

seguinte modo: “Aceitando (anerkennen), por exemplo, um pardal, eu aceito

um pássaro, porque pássaro é uma parte lógica de pardal, e eu aceito um bico,

porque bico é uma parte física de pássaro”231. Detenhamo-nos, aqui, numa

questão polêmica apontada pelos comentadores acerca dos elementos que

envolvem essa ilustração.

Tal como argumentou Chisholm, em sua análise acerca desse

ponto, o que estava em jogo nesse exemplo pode ser esclarecido a partir da

comparação com o modo brentaniano de descrever as partes lógicas no

manuscrito Würzburger Metaphysikkolleg232. Assim, Chisholm comparou o

exemplo acima com a seguinte descrição brentaniana das partes lógicas

encontrada no referido manuscrito:

O todo lógico é uma individuação de um gênero. Uma parte lógica é cada parte de sua definição, isto é, gênero, diferença, diferenças adicionais (diferença de diferença) e assim por diante até a menor generalidade. É típico das partes lógicas, que a separabilidade distincional seja apenas unilateral

233.

Ora, ao aceitarmos a comparação proposta por Chisholm, devemos

considerar como partes estritamente distincionais, a partir da individuação do

todo lógico, as partes lógicas de sua definição. A aplicação desse critério

permitiu a seguinte distinção nas atividades psíquicas, como exemplificou

novamente Brentano: “[...] assim, pensar (Denken) é uma parte lógica de

experienciar (Empfinden); experienciar é uma parte lógica de ver (Sehen); ver é

230

„Vielleicht würden wir in demselben Akte noch eine größere Zahl sich durchwohnender

distinktioneller Teile zu entdecken vermögen“. Brentano, Franz. Deskriptive Psychologie, p. 20.

231 "Erkenne ich z.B. einen Spatzen an, so auch einen Vogel, weil Vogel logischer Teil des Spatzen ist,

und einen Schnabel, weil er physischer Teil des Spatzen ist". Brentano, Franz. Wahrheit und Evidenz,

1974, p. 99, in: Brentano, Franz. Deskriptive Psychologie, p. 168, nota 8.

232 O Würzburger Metaphysikkolleg não publicado está no Brentano-Nachlass at Brown University,

Providence, RI, USA, under the reg. no. M 96 I and II. Cf. Brentano, Franz. Deskriptive Psychologie,

p. 168, nota 8.

233 „Das logische Ganze ist ein Individuum einer Gattung. Ein logischer Teil ist jeder Teil seiner

Definition, also Gattung, Differenz, weitere Differenz (Differenz der Differenz) u.s.f. bis zur

niedrigsten Allgemeinheit. Es ist bezeichnend für logische Teile, „daß die distinktionelle

Abtrennbarkeit nur eine einseitige ist„". Brentano, Franz. Deskriptive Psychologie, p. 168, nota 8.

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127

uma parte lógica de ver - vermelho (Rotsehen)”234. Estabelecidas as distinções,

detenhamo-nos em outro problema apontado por Chisholm com o propósito de

explicitar o ponto de demarcação entre as partes distincionais lógicas e as

partes mutuamente pertencentes.

Segundo Chisholm, o problema poderia ser colocado por meio da

seguinte questão: O conceito de partes mutuamente pertencentes

[durchwohnend] pode ser reduzido ao conceito de partes lógicas? Em outras

palavras, o problema estava no fato de que, quando falamos de espacialidade

[Räumlichkeit] ou de qualidade da sensação, não estamos falando de

subespécies de sensações ou de gêneros sob os quais elas se encontram.

Existia, portanto, um equívoco no modo como a sensação foi utilizada para

ilustrar o conceito de partes lógicas. Para dissolver o problema seria preciso

considerar que „partes lógicas‟ pareceriam apropriadas para espécies e

gêneros, e não para coisas individuais. „Partes mutuamente pertencentes‟

pareceriam apropriadas para coisas individuais e não para espécies e gêneros.

Se, tal como sustenta Chisholm, essa distinção fosse aceita, então poderíamos

considerar que, por um lado, “„ver - vermelho‟ teria „ver‟ como uma parte lógica;

„ver‟ teria „experienciar‟ como uma parte lógica; e „experienciar‟ teria „pensar‟

como uma parte lógica”235. Além disso, mas de modo análogo, “„julgar‟ seria

uma parte lógica de „aceitar‟”236. E aqui se destaca o ponto fundamental, pois

também no ato de „julgar‟ “[...] a qualidade afirmativa poderia ser uma parte

mutuamente pertencente de aceitar”237.

Para completar a apresentação dos conceitos que compunham o

esquema encontrado pela descrição da relação entre as partes e o todo da

consciência, e constituíam a base para a descrição das atividades psíquicas da

Psicologia descritiva, Brentano precisou ainda descrever a relação intencional

como o terceiro tipo de partes distincionais, ou seja, as partes dos pares de

234

„Denken ist also ein logischer Teil von Empfinden; Empfinden ist ein logischer Teil von Sehen; Sehen

ist ein logischer Teil von Rotsehen“. Brentano, Franz. Deskriptive Psychologie, p. 168, nota 8.

235 „Rotsehen z.B. hat Sehen als logischen Teil; Sehen hat Empfinden als logischen Teil; und Empfinden

hat Denken als logischen Teil“. Brentano, Franz. Deskriptive Psychologie, p. 168, nota 8.

236 „Analog ist Urteilen logischer Teil von Anerkennen“. Brentano, Franz. Deskriptive Psychologie, p.

168, nota 8.

237 „Die affirmative Qualität wäre jedoch durchwohnender Teil von Anerkennen Brentano, Franz.

Deskriptive Psychologie, p. 168, nota 8.

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correlatos intencionais. Esse foi o sexto e penúltimo ponto. Vejamos como ele o

anunciou:

Estas duas classes de partes distincionais no estrito senso são velhas conhecidas. Mas, existem outras duas no domínio da consciência. Uma delas é a relação psíquica que é essencial para toda consciência, a outra é a conexão inseparável da relação psíquica primária e da (relação) concomitante

238.

i‟‟‟) Para exemplificar as partes dos pares de correlatos intencionais,

Brentano tomou sua própria teoria da intencionalidade da consciência e a

submeteu a uma análise da relação entre as partes e o todo da consciência.

Como evidencia a citação acima, embora essa análise preservasse a distinção

entre a relação para com o objeto primário e relação para com o objeto

secundário de 1874, um dos resultados desse procedimento foi o abandono da

noção de in-existência intencional do objeto imanente. Assim, ao serem

descritas como partes distincionais no sentido estrito, as partes de pares de

correlatos que a atividade intencional da consciência apresentou foram

definidas apenas como relações psíquicas intencionais. Por isso, essas

relações distinguiram-se em relações primárias e relações secundárias.

Estabelecida essa distinção, Brentano redefiniu os termos fundamentais de sua

teoria da intencionalidade de 1874 a partir dos critérios explicitados pela

descrição da relação entre as partes e o todo da consciência. Vejamos como

isso foi exposto textualmente.

A citação a seguir apresenta a definição de relação intencional que

Brentano apresentou como parte distincional da consciência, a partir da qual se

deveriam distinguir ainda os pares de correlatos:

Portanto, a peculiaridade que, acima de tudo, caracteriza a consciência de modo geral é aquela que se mostra sempre e em toda parte, ou seja, em todas as suas partes, um certo tipo de relação, relacionando um sujeito a um objeto. Referimo-nos também a esta relação com „relação intencional‟. À toda consciência pertence essencialmente uma relação

239.

238

„Diese zwei Klassen distinktioneller Teile im eigentlichen Sinn waren alte Bekannte. Es kommen aber

auf dem Gebiet des Bewußtseins noch zwei andere hinzu. Die eine ist die psychische Beziehung,

welche für jedes Bewußtsein wesentlich ist, die andere die untrennbare Verbindung der primären und

concomitierenden psychischen Beziehung“. Brentano, Franz. Deskriptive Psychologie, p. 20-21.

239 „Vor allem also ist es eine Eigenheit, welche für das Bewußtsein allgemein charakteristisch ist, daß es

immer und überall, d.h. in jedem seiner ablösbaren Teile eine gewisse Art von Relation zeigt, welche

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Ao aceitar essa relação intencional, e Brentano considerou que sua

apreensão estava evidenciada pela percepção interna, o que estava em jogo

era a distinção das partes que a constituíam. Assim, a análise brentaniana dos

pares de correlatos intencionais estabeleceu, primeiramente, que dois

correlatos seriam encontrados em toda relação. Além disso, a análise

especificou o seguinte: “[...] um dos correlatos é o ato da consciência e o outro

é aquilo ao qual este ato está dirigido”.240 Estabelecida a distinção e o critério,

vejamos as especificidades a partir dos exemplos.

Os exemplos apresentados por Brentano no trabalho de 1890, para

ilustrar a relação entre esses correlatos, foram os mesmos exemplos utilizados

na Psicologia do ponto de vista empírico. Em ambas as obras, Brentano definiu

ato e correlato como se segue: “‟Ver e aquilo que é visto‟, „Representar e aquilo

que é representado‟, „Querer e aquilo que é querido‟, „Amar e aquilo que é

amado‟, „Negar e aquilo que é negado‟, etc.”241. Ora, se o modo de enunciar

era o mesmo, então se impõe a seguinte questão: Como Brentano

fundamentou essa nova noção entre correlatos das partes da consciência, uma

vez que ela manifestamente abdicou do estatuto ontológico pressuposto pelo

modo intencional de in-existência do objeto imanente? A resposta direta para

esta pergunta é: O fundamento estava na retomada da tese aristotélica acerca

dos múltiplos sentidos do ser. Em outras palavras, o fundamento estava na

recepção brentaniana da distinção aristotélica entre os modos de ser real (Ser

como real) e ser não-real (Ser como não-real). Por meio dessa tese, anunciada

na citação a seguir, Brentano distinguiu o modo se Ser do ato psíquico como

real e o modo de ser do correlato desse ato psíquico como não real:

Como já foi esclarecido por Aristóteles, estes correlatos explicitam a peculiaridade de que apenas um é real, (enquanto) o outro é não real [nichts Reales ist]. (…) Os dois correlatos são separados apenas distincionalmente um do outro. E, então, nós temos aqui novamente

ein Subjekt zu einem Objekt in Beziehung setzt. Man nennt sie auch "intentionale Beziehung". Zu

jedem Bewußtsein gehört wesentlich eine Beziehung“. Brentano, Franz. Deskriptive Psychologie, p.

21.

240 „Das eine Korrelat ist der Bewußtseinsakt, das andere das, worauf er gerichtet ist“. Brentano, Franz.

Deskriptive Psychologie, p. 21.

241 „(Das eine Korrelat ist der Bewußtseinsakt, das andere das, worauf er gerichtet ist.) Sehen und

Gesehenes, Vorstellen und Vorgestelltes, Wollen und Gewolltes, Lieben und Geliebtes, Leugnen und

Geleugnetes, usw.“. Brentano, Franz. Deskriptive Psychologie, p. 21.

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duas partes puramente distincionais de pares de correlatos, uma das quais é real e a outra não.

242

Detenhamo-nos um pouco mais nas implicações do que acaba de

ser estabelecido para retomarmos à questão por outro ângulo: Se, de fato, o

estatuto ontológico da in-existência intencional do objeto foi abandonado, como

deveria ser concebido, então, o objeto imanente? Responderemos a essa

questão a partir da análise de Benito Müller apresentada em sua edição da

Descriptive psychology243.

Segundo a análise de Müller, a citação acima consistia numa síntese

da doutrina fundamental de Brentano – a intencionalidade – que poderia ser

exposta do seguinte modo. Todo „fenômenos psíquico‟ – concebido como

partes realmente separáveis da consciência – explicitava, como característica

específica, certa estrutura relacional chamada de relação „intencional‟ ou

relação „psíquica primária‟. Como toda estrutura relacional, esclarece Müller,

um fenômeno psíquico era então meio para expor dois correlatos: um ato de

consciência, que chamaríamos de „A‟ (ao qual Brentano se referiu como o

„sujeito‟ da relação intencional), e aquilo ao qual „A‟ estaria se dirigindo, que

chamaríamos de „O‟ (o „objeto‟ da relação). Estabelecidas essas distinções, a

análise de Müller avança orientada pela seguinte questão: O que é o

segundo correlato?

De acordo com essa análise, prossegue Müller, o segundo correlato

do ato de ver, ou seja „Av‟, dado na experiência visual „V‟ foi descrito como „o

que é visto‟ [das Gesehene], ou seja „Ov‟. A princípio, deveria parecer que „Ov‟

seria tomado como sendo o objeto real (como a cadeira em frente à pessoa

que está vendo), mas, obviamente, isso não era o que Brentano tinha em

mente, pois ele afirmou como característica específica do par de correlatos

intencionais (e, portanto, implicitamente dos fenômenos psíquicos) que apenas

o primeiro correlato seria real. Assim, apenas o ato da consciência seria real e

nunca o objeto correlato. Isso obviamente excluiu a realidade da cadeira em

242

„Bei diesen Korrelaten zeigt sich, wie schon ARISTOTELES hervorhob, die Eigentümlichkeit, daß

das eine allein real, das andere dagegen nichts Reales ist. (...) Trennbar sind die Korrelate· nicht von

einander, außer [wenn sie] distinktionell [sind]“. Brentano, Franz. Deskriptive Psychologie, p. 21.

243 Brentano, Franz. Descriptive Psychology, p. 180, nota 8a.

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frente à pessoa que vê na medida em que ela seria o segundo correlato, ou

seja, o „objeto imanente‟ desse ato de ver. A interpretação de Müller considera,

então, o fato de que Brentano usou „referência a um conteúdo‟ como paráfrase

de „direção a um objeto‟. Nesses termos, o segundo correlato „Ov‟ seria

designado ser o conteúdo de „Av‟.

Exposta a estrutura de sua interpretação, Müller toma o polêmico

exemplo brentaniano descrito abaixo, com o propósito de elucidar o modo não

real de existência do objeto imanente:

Uma pessoa que está sendo pensada [ein gedachter Mensch] é tão pouco real como uma pessoa que deixou de existir [gewesener Mensch]. A pessoa que está sendo pensada, portanto, não tem causa própria e não pode propriamente ter um efeito. Mas, quando o ato da consciência (o pensar a pessoa) é efetivo, a pessoa que está sendo pensada (o correlato não-real da pessoa) coexiste [ist mit da].

244

A análise de Müller dissolve as possíveis ambiguidades presentes

nesta citação considerando os seguintes pontos. Quando Brentano usou a

frase um tanto quanto opaca „a pessoa pensada‟ [der gedachte Mensch] para

falar sobre o segundo correlato de um ato „Ap‟ de pensar, ele não estava

falando sobre um tipo peculiar de pessoa, mas sobre o conteúdo do „Ap‟.

Nesse contexto, o uso do termo „pensar‟ e „pessoa‟ tinha apenas a função de

indicar que o conteúdo em questão „Op‟ seria um conteúdo de um pensamento

sobre a pessoa. De modo similar, Müller interpreta o uso brentaniano de

„pensamento da pessoa‟ [das Denken des Menschen], em referência à „Ap‟,

indicando que esse ato de consciência não seria meramente um ato de pensar,

mas igualmente um ato de pensar acerca de uma pessoa245.

Deixemos de lado as complicações que essa interpretação pôde

gerar para a primeira teoria brentaniana da intencionalidade e vejamos como

ela propôs a sistematização da unidade da consciência em 1890.

244

Para evidenciar a coerência da interpretação de Benito Müller, acompanhamos sua interpretação da

tradução da seguinte passagem citada. „So wenig ein gewesener Mensch, so wenig ist ein gedachter

etwas Reales. Der gedachte Mensch hat darum auch keine eigentliche Ursache und kann nicht

eigentlich eine Wirkung üben, sondern indem der Bewußtseinsakt, das Denken des Menschen gewirkt

wird, ist der gedachte Mensch, sein nichtreales Korrelat, mit da“. Brentano, Franz. Deskriptive

Psychologie, p. 21.

245 Para um aprofundamento dessa linha de interpretação, Müller remete ao trabalho de B. Smith („The

Soul and Its Parts II: Varieties of Inexistence‟, in Brentano Studien IV, Brentano Forschung:

Würzburg, 1993).

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Se essa interpretação está correta, diz Müller, então todos os

fenômenos psíquicos possuíam uma estrutura relacional assimétrica particular.

Essa estrutura seria representada simbolicamente como „A‟→‟O‟, com (a) um

ato particular de consciência „A‟ (de pensar, de ver, etc.) e (b) o conteúdo „O‟

desse ato, como correlato, no entanto o ponto fundamental desta interpretação

estaria no fato de que ela definiu os fenômenos psíquicos como atos psíquicos,

a partir desta estrutura relacional assimétrica. Isso significava que deveria ser

enfatizado o fato de que Brentano não concebeu esses correlatos como partes

dos fenômenos psíquicos separados uns dos outros, mas como modos

meramente distincionais, pois seria impossível existir um ato de consciência

sem um conteúdo correlato.

Como conclusão da análise de Müller, análise que incorporamos à

nossa tese, podemos sistematizar a noção de intencionalidade de 1890 do

seguinte modo: “[...] enquanto partes da consciência realmente separáveis, os

fenômenos psíquicos não são meramente atos e nem meramente conteúdos,

mas „todos‟ nos quais conteúdo e ato estão inseparavelmente relacionados por

meio da intencionalidade”246. Como conclui Müller, isso é “[...] o que se deve ter

em mente quando o próprio Brentano escolhe se referir a estes fenômenos

meramente como „atos psíquicos‟247.

De acordo com a interpretação exposta, explica-se o abandono da

noção de in-existência intencional do objeto e justificavam-se as seguintes

definições estabelecidas por Brentano em 1890:

Explanação do termo objeto: (a) Algo concebido internamente como objeto [ein innerlich Gegenständliches]; (b) Não necessita corresponder a qualquer coisa fora; (c) Para evitar confusões, pode-se chamar „residente-em‟ [inwohnendes] ou objeto „imanente‟; (d) é algo (i) geral e (ii) exclusivamente característico da consciência

248.

246

“Psychical phenomena (the actually separable parts of consciousness) are thus neither merely acts nor

merely contents, but wholes in which content and act are inseparably related through intentionality”.

Brentano, Franz. Descriptive Psychology, p. 180, nota 8a.

247 “This must be kept in mind even when Brentano himself chooses to refer to these phenomena merely

as „psychical acts‟”. Brentano, Franz. Descriptive Psychology, p. 180.

248 „Erläuterungen des Ausdrucks Objekt: etwas innerlich Gegenständliches ist gemeint. Draußen braucht

ihm nichts zu entsprechen. Zur Verhütung von Mißverständnissen mag man es "inwohnendes"

"immanentes" Objekt nennen. ' Es ist dies etwas a) allgemein und b) ausschließlich dem Bewußtsein

eigenes“. Brentano, Franz. Deskriptive Psychologie, p. 22.

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Os esclarecimentos apresentados expuseram as especificidades do

segundo correlato da relação intencional, ou seja, o objeto imanente. Ocorre,

no entanto, que ainda não analisamos suficientemente o primeiro correlato, ou

seja, as especificidades constituintes da própria relação intencional. Esse foi o

último passo da análise brentaniana e consistiu na distinção das partes que

compunham a própria relação psíquica.

i‟‟‟‟) Para exemplificar a classe das partes meramente distincionais

da relação psíquica primária e secundária [Diploseenergie], Brentano

relembrou uma afirmação aristotélica.249 Tal como sustentava seu mestre de

Estagira, enfatizou Brentano, todo fenômeno psíquico continha a consciência

de si mesmo250, por isso, “[...] na representação [im Vorstellen] da cor há,

portanto, simultaneamente a representação desta representação”251. Esse

exemplo tinha a função de apresentar o tipo de relação intencional que a

análise brentaniana distinguiu em parte primária e parte secundária. Tratava-

se, por um lado, do âmbito intrínseco da relação psíquica intencional onde a

inseparabilidade entre dois modos de relação era encontrada. E, por outro lado,

tratava-se do tipo de relação que podia ser distinguida em partes primária e

secundária. Assim, distinguidas a partir deste último critério, como bem

explicitou a citação a seguir, a apresentação das especificidades de cada uma

das partes da relação primária e secundária completava a descrição da

unidade da consciência a partir de uma teoria da intencionalidade reformulada:

O fato de que não há consciência sem alguma relação intencional é tão certo quanto o fato de que, além do objeto ao qual ela está primeiramente dirigida, a consciência tem, lateralmente, a si mesma como objeto. Este é, de modo essencial, parte da natureza de todo ato psíquico. (...) Toda consciência, qualquer que seja o objeto ao qual ela está primariamente dirigida, está concomitantemente dirigida a si mesmo.

252

249

Brentano refere-se à Metafísica, 1021a, 30.

250 „Schon ARlSTOTELES [betont], daß in dem psychischen Phänomene selbst das Bewußtsein von ihm

mitbeschlossen sei“. Brentano, Franz. Deskriptive Psychologie, p. 22.

251 „Im Vorstellen der Farbe also zugleich ein Vorstellen dieses Vorstellens“. Brentano, Franz.

Deskriptive Psychologie, p. 22.

252 „So gewiß es ist, daß kein Bewußtsein überhaupt ohne intentionale Beziehung ist, so gewiß ist es, daß

es außer dem, worauf es primär gerichtet ist, sich selbst nebenher zum Objekte hat. Es gehört dies

wesentlich zur Natur jedes psychischen Aktes“ (...) ”Jedes Bewußtsein, primär auf was immer für ein

Objekt gerichtet, geht nebenher auf sich selbst“. Brentano, Franz. Deskriptive Psychologie, p. 22-24.

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Deter-nos-emos um pouco mais nos detalhes epistemológicos

envolvidos nesse modo de distinção das partes constituintes do ato intencional.

O que estava em jogo nessa descrição da relação intrínseca entre as

atividades primárias e secundárias era a possibilidade de descrever a natureza

evidente das atividades psíquicas. Analisaremos esse ponto a partir da

proposta de interpretação sugerida por Chisholm, acerca das especificidades

características da relação primária e secundária, nas notas da sua edição da

Deskriptive Psychologie.

A interpretação de Chisholm está orientada pela resposta à seguinte

questão: “O que Brentano compreende quando diz que todo ato psíquico tem a

si mesmo como objeto secundário?”253.

Chisholm analisa essa questão por meio de uma retomada do modo

como Brentano descreveu o problema dos objetos secundários na primeira

edição da Psicologia do ponto de vista empírico (Livro II, capítulo 3). Após

reconhecer que tal descrição do ato referindo a si mesmo como objeto

secundário continha o problema da regressão ad infinitum, regressão não

resolvida por Brentano em 1874, Chisholm apresenta a nova descrição trazida

pelo manuscrito de 1890 como uma solução para esse problema. Essa solução

brentaniana estabeleceu, diz ele, que “[...] todo ato psíquico é de tal modo que,

quando se explicita, se explicita de modo evidente para o sujeito”254. Diante

dessa solução, cabe questionar: O que esta nova descrição da atividade

secundária constituinte do ato psíquico poderia significar exatamente quando

analisada por meio dos critérios encontrados pela descrição da relação entre

as partes e o todo da consciência apresentados em 1890?

Chisholm considera que essa descrição, apresentada também em

outros trabalhos que compõem a Deskriptive Psychologie, pressupunha uma

distinção entre o sentido estrito e o sentido lato que caracterizava a percepção

interna da consciência e explica: “[...] deve-se ressaltar que ele (Brentano)

identifica „consciência no sentido estrito‟ com perceber (Bemerken). Assim, é

253

„Was meint Brentano, wenn er sagt, daß jeder psychische Akt sich zum sekundären Objekt hat?“.

Brentano, Franz. Deskriptive Psychologie, p. 169, nota 11.

254 „Jeder psychische Akt ist von der Art, daß er, wenn er auftritt, für das Subjekt evidentermaßen

auftritt“. Brentano, Franz. Deskriptive Psychologie, p. 169, nota 11.

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apenas no sentido estendido de consciência que todo ato psíquico pode ser

dito ser um objeto da consciência”255. Isso implica o fato de que, ao lado da

percepção interna que nos dava a conhecer de maneira imediata e evidente os

três modos distintos de relação intencional, a filosofia do psíquico brentaniana

de 1890 estendeu o estatuto da verdade como evidência para um tipo de juízo

e, ainda, o estatuto análogo à evidência para um tipo de sentimento de amor e

ódio. Então se pergunta novamente: Por que isso foi possível a partir da

Psicologia descritiva?

Para responder a essa questão, Chisholm toma os critérios

encontrados pela descrição da relação entre as partes e o todo da consciência

da Psicologia descritiva e analisa um exemplo utilizado por Brentano na obra

póstuma Vom sinnlichen und noetischen Bewusstsein (Sobre a consciência

sensível e noética). Segundo Chisholm, a palavra „sensação‟ tinha dois usos

completamente diferentes: “Ela pode ser usada para fazer referência ao que

Brentano chamou de qualidades sensíveis e ao que outros chamaram de

dados dos sentidos. Ou ela pode ser usada para fazer referência ao sentir,

experienciar ou possuir tais qualidades sensíveis”256. Chisholm propõe que,

segundo essa distinção brentaniana, a palavra „sensação‟ algumas vezes era

usada para fazer referência ao conteúdo da sensação e algumas vezes ela era

usada para fazer referência ao ato da sensação.257 Desse modo, o exemplo da

experiência de ver o vermelho, usada recorrentemente por Brentano, deveria

ser descrita da seguinte maneira:

Quando se sente uma mancha vermelha (Brentano diria uma „qualidade vermelha‟), a mancha vermelha é o conteúdo da sensação e o sentir a mancha vermelha é o ato da sensação. Brentano também diz que: (1) a mancha vermelha é o objeto primário da sensação; e que (2) o sentir a mancha vermelha é o objeto secundário da

255

„Es sei noch angemerkt, daß er "Bewußtsein im engeren Sinn" mit dem "Bemerkten"

(Psychognostische Skizze II = Anhang V) identifiziert. So kann nur im erweiterten Verständnis von

Bewußtsein gesagt werden, daß jeder psychische Akt Objekt des Bewußtseins ist. Brentano, Franz.

Deskriptive Psychologie, p. 170, nota 11.

256 “It may be used to refer to what Brentano had called „sense qualities‟ and what others have called

„sense data‟ or „sense impressions‟. Or it may be used to refer to the sensing, experiencing, or having

of such sense qualities”. Chisholm, Roderick M. Brentano and intrinsic value, p. 25.

257 Cf. Chisholm, Roderick M. Brentano and intrinsic value, p. 25-26.

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sensação. Pois ambos, insiste ele, o conteúdo e o ato são objetos do

nosso conhecimento.258

Aqui está a base da mudança operada por Brentano em 1890. A

mudança aí está, pois, no sentido estrito da percepção imediata, a Psicologia

do ponto de vista empírico havia estabelecido que a consciência percebia

imediatamente a si mesma como objeto secundário, na medida em que se

referia ao objeto primário. Agora, no entanto, a novidade indicada por Chisholm

está no fato de que havia uma nova maneira de descrever a relação intencional

entre essas mesmas partes da consciência. Em outras palavras, tomada no

sentido estendido, a percepção imediata dos atos psíquicos de juízo e de

sentimento de amor e ódio teriam o objeto secundário da sensação como seu

objeto primário. Vejamos como essa tese se sustenta.

Chisholm analisou os argumentos brentanianos utilizados para

descrever os atos psíquicos de prazer sensorial e dor sensorial como atos

psíquicos de amor e ódio. Assim, sua análise resultou na seguinte

interpretação:

Brentano afirma que prazer sensorial e dor sensorial são atos de amor e ódio que estão dirigidos para “o aparecimento [Erscheinung] de certas qualidades, mas não para as qualidades em si mesmas” (Franz Brentano, Sensory and Noetic Consciousness, London, Routledge and Kegan Paul, 1981, p. 114). Quando alguém experiencia prazer sensorial, então (1) há um conteúdo sensível A que é o objeto primário de um certo sentir. E, (2) este sentir é por sua vez o objeto primário do ato de amor. Se no momento a pessoa atenta para esta experiência e indaga o que está ocorrendo, será evidente para ela que ela está sentindo A e que ela

ama o (ato de) sentir A.259

258

“If one senses a red patch (Brentano would say a "red quality"), then the red patch is the content of

sensation and the sensing of the red patch is the act of sensation. Brentano also says that the red patch

is the primary object of the sensation and that the sensing of the red patch is the secondary object of

the sensation. For, he insists, both the content and the act are objects of our awareness. The content of

a sensation, then, is always a sense quality. Chisholm, Roderick M. Brentano and Intrinsic Value, p.

25.

259 Brentano says that sensory pleasure and sensory pain are acts of love and hate that are directed upon

"the appearance [Erscheinung] of certain qualities, but not upon the qualities themselves" (Franz

Brentano, Sensory and Noetic Consciousness, London, Routledge and Kegan Paul, 1981, p. 114).

When one experiences sensory pleasure, then (1) there is a sense content A that is the primary object

of a certain sensing, and (2) this sensing in turn is the primary object of an act of' love. If now the

person attends to this experience and asks what is going on, it will be evident to him that he is sensing

A and that he loves the sensing of A. Chisholm, Roderick M. Brentano and Intrinsic Value, p. 25-26.

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Detenhamo-nos e esclareçamos um pouco mais essa tese de

Chisholm. Se voltarmos ao velho exemplo da mancha vermelha, poderemos

analisar o prazer sensorial da seguinte forma: (a) a estrutura psíquica da

experiência sensorial (ou seja, de uma representação); e (b) a estrutura

psíquica do prazer que pressupõe a experiência sensorial (ou seja, uma

representação).

(a) A estrutura psíquica da experiência sensorial (ou seja, de

uma representação): A mancha vermelha é o conteúdo da

experiência sensorial, por isso essa mancha é o objeto primário

da sensação, ou seja, do ato de sentir a mancha. Por sua vez, o

(ato de) sentir a mancha é o objeto secundário apreendido de

modo imediato pela própria consciência. Essa relação entre

objeto primário e objeto secundário da experiência sensorial

constitui o fenômeno psíquico mais elementar: a representação.

(b) A estrutura psíquica do prazer que pressupõe a experiência

sensorial (ou seja, uma representação): A experiência de

prazer sensorial, por sua vez, consiste num fenômeno psíquico

mais complexo, pois se trata de um ato de prazer (ou amor) que

pressupõe sempre uma experiência sensorial (representação).

No caso específico no nosso velho exemplo, (1) o conteúdo

sensível ‘mancha vermelha’ é o objeto primário do ato de

sentir (sensação - visão). Ocorre, no entanto, que (2) esse

mesmo ato de sentir (sensação – visão) é, por sua vez, o

objeto primário do ato de amor. Assim, (3) o ato de amor

passa a ser percebido de modo imediato pela consciência e se

caracteriza como objeto secundário. Por isso Chisholm

concluiu que, se a pessoa atenta para essa experiência do amor

e indaga o que está ocorrendo, será evidente para ela que ela

está sentindo (ou vendo) o vermelho e que ela ama o (ato de)

sentir (ou ver) o vermelho.

Ao tomarmos a evidência psíquica no sentido estendido sugerido por

Chisholm, podemos afirmar, acerca da nova teoria brentaniana, que, além de

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meramente representada, alguma coisa pode ser evidente (ou análoga a algo

evidente) para um sujeito, se o sujeito a julgar (ou, então, a ama ou a odeia)

como evidente. Assim, portanto, tal como descreve Chisholm na citação a

seguir, a evidência perpassaria a atividade da consciência apesar de não poder

ser encontrada em lugar algum, a não ser no juízo:

Neste sentido, então, Brentano pode dizer que „toda atividade psíquica cai sob a percepção interna‟. A atividade psíquica é necessariamente tal que, se ela ocorre, e se no mesmo tempo se julga que ela ocorre, então se julga com evidência. E, se Brentano acrescenta que „isto não significa que tudo é percebido‟, ele nos lembra que algo psíquico pode ocorrer sem nosso juízo de que ele ocorre.

260

O que acaba de ser estabelecido exigiu, ainda segundo Chisholm,

alguns esclarecimentos: (a) Brentano não queria dizer que todo ato psíquico

seria o objeto primário de um juízo evidente ou (b) que todo ato psíquico seria

acompanhado de um juízo evidente, como efeito da ocorrência desse ato. Isso

implicaria a recolocação do problema da regressão ad infinitum, pois o próprio

juízo evidente seria um ato psíquico que pressuporia outro juízo. É preciso,

portanto, voltar ao propósito do texto brentaniano para elucidarmos o sentido

em que seria possível dizer, por um lado, que todo ato psíquico seria evidente

para o sujeito e, por outro lado, que, em certos casos, a evidência poderia ser

encontrada nas atividades do juízo e do sentimento.

Chisholm considera que Brentano nunca formulou explicitamente a

solução para essa aparente dicotomia, no entanto, ainda segundo Chisholm,

uma possível solução emanada a partir dos textos brentanianos permitiu

afirmar que “[...] a ocorrência de atos psíquicos é evidente para o sujeito no

seguinte sentido estendido: todo ato psíquico é necessariamente tal que, se

alguém realiza este ato e, ao mesmo tempo, julga que o realiza, então esse

alguém julga com evidência que o realiza”261.

260

„In diesem Sinne kann Brentano sagen, daß jede "psychische Tätigkeit in unsere innere Wahrnehmung

fällt". Alles Psychische ist notwendig von der Art, daß, wenn es vorkommt, und wenn man zugleich

urteilt, daß es vorkommt, man dann mit Evidenz urteilt. Und wenn Brentano hinzufügt, daß "aber

nicht alles [Psychische] darum bemerkt" wird, dann erinnert er uns, daß etwas Psychisches

vorkommen kann, ohne daß man urteilt, daß es vorkommt“. Brentano, Franz. Deskriptive

Psychologie, p. 170, nota 11.

261 „Wenn ein psychischer Akt statthat, kann er für das Subjekt evident sein im folgenden erweiterten

Verständnis des Wortes ‚evident„: Jeder psychische Akt ist notwendig von der Art, daß jemand, der

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Ora, ao considerarmos essa interpretação de Chisholm, torna-se

manifesto o modo como essa descrição da relação intencional secundária

estabeleceu a necessidade de abandono da antiga descrição do juízo e do

sentimento. Em 1874, a descrição do juízo admitia a admissibilidade do

objeto262 e a descrição do sentimento afirmava a referência sentimental

correspondente à natureza do objeto263. Orientada pelo objeto intencional in-

existente, a descrição brentaniana não atribuía a evidência que a análise de

1890 considera como própria do caráter intencional da relação psíquica

diesen Akt vollzieht und gleichzeitig urteilt, daß er ihn vollzieht, dann mit Evidenz urteilt, daß er ihn

vollzieht“. Brentano, Franz. Deskriptive Psychologie, p. 170, nota 11.

262 Em 1874, como já explicitamos, Brentano descrevia o ato do juízo orientado pelo estatuto do objeto

intencional do seguinte modo. “Quando dissemos que todo juízo que admite é assentimento e todo

juízo que rechaça é dissentimento, isto não significa que aquele consista em uma predicação da

verdade com respeito ao assentido, nem este em uma predicação da falsidade com relação ao

dissentido. Nossas explicações anteriores demonstraram que o significado destas expressões é uma

modalidade especial da recepção intencional de um objeto, uma modalidade especial da referência

psíquica a um conteúdo de consciência. O que há de exato é que quem assente a algo, não apenas

admite o objeto, mas também, à pergunta sobre se o objeto deve ser admitido, admitirá também a

admissibilidade do objeto, ou seja, a verdade do objeto. A expressão de assentimento se explica assim

e a expressão de dissentimento se explicará de um modo análogo”. [„Wenn wir sagen, jedes

anerkennende Urteil sei ein Fürwahrhalten, jedes verwerfende ein Fürfalschhalten, so bedeutet dies

also nicht, daß jenes in einer Prädikation der Wahrheit von dem Fürwahrgehaltenen, dieses in einer

Prädikation der Falschheit von dem Fürfalschgehaltenen bestehe; unsere früheren Erörterungen haben

vielmehr dargetan, daß, was die Ausdrücke bedeuten, eine besondere Weise intentionaler Aufnahme

eines Gegenstandes, eine besondere Weise der psychischen Beziehung zu einem Inhalte des

Bewußtseins ist. Nur das ist richtig, daß, wer etwas für wahr hält, nicht bloß den Gegenstand

anerkennt, sondern dann, auf die Frage, ob der Gegenstand anzuerkennen sei, auch das

Anzuerkennensein des Gegenstandes, d. h. (denn nichts anderes bedeutet der barbarische Ausdruck)

die Wahrheit des Gegenstandes ebenfalls anerkennen wird. Und damit mag der Ausdruck

'Fürwahrhalten' zusammenhängen. Der Ausdruck 'Fürfalschhalten' aber wird in analoger Weise sich

erklären“]. Brentano, Franz. Psychologie vom empirisch Standpunkt, Zweiter Band, p. 89-90.

263 Em 1874, de modo análogo à descrição dos juízos, Brentano descrevia o ato de sentimento orientado

pelo estatuto do objeto intencional do seguinte modo. “Do mesmo modo, as expressões „ser grato

como bom‟ e „ser ingrato como mal‟ que usamos aqui de modo análogo, não significam para nós, que

nos fenômenos desta classe, a bondade seja atribuída a uma coisa grata como boa ou a maldade a uma

ingrata como má. Entretanto, significam uma modalidade especial da referência da atividade psíquica

a um conteúdo. O que há de exato, aqui também, é que aquela pessoa cuja consciência se refere deste

modo a um conteúdo, em conseqüência disso afirmará a pergunta sobre se o objeto é de tal natureza

que se pode entrar na referência correspondente com ele. O que não significa nada mais que atribuir-

lhe bondade ou maldade, valor ou não valor. Um fenômeno desta classe não é um juízo, como „isto se

deve amar‟ ou „isto se deve odiar‟, mas é um ato de amor ou de ódio. [„Ebenso bedeuten uns denn die

Ausdrücke, die wir hier in analoger Weise gebrauchen, 'als gut genehm sein', 'als schlecht ungenehm

sein', nicht, daß in den Phänomenen dieser Klasse Güte einem als gut Genehmen, oder Schlechtigkeit

einem als schlecht Ungenehmen zugeschrieben werde, vielmehr bedeuten auch sie eine besondere

Weise der Beziehung der psychischen Tätigkeit auf einen Inhalt. Nur das ist auch hier richtig, daß

einer, dessen Bewußtsein sich in solcher Weise auf einen Inhalt bezieht, die Frage, ob der Gegenstand

von der Art sei, daß man zu ihm in die betreffende Beziehung treten könne, infolge davon bejahen

wird; was dann nichts anderes heißt, als ihm Güte oder Schlechtigkeit, Wert oder Unwert zuschreiben.

Ein Phänomen dieser Klasse ist nicht ein Urteil: 'dies ist zu lieben', oder 'dies ist zu hassen' (das wäre

ein Urteil über Güte oder Schlechtigkeit); aber es ist ein Lieben oder Hassen“]. Brentano, Franz.

Psychologie vom empirisch Standpunkt, Zweiter Band, p. 90.

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secundária para com a relação primária (tomada como uma representação). De

fato, como explicita a citação a seguir, a evidência da percepção interna estava

orientada pelo estatuto ontológico do objeto intencional que sustentava a

Psicologia do ponto de vista empírico:

Repito agora, pois, o sentido da explicação dada e sem receio de ser mal entendido que os fenômenos desta (terceira) classe se tratam da bondade e da maldade, do valor e do não valor dos objetos, de modo análogo aos juízos que se tratam da verdade ou da falsidade. Esta característica referência ao objeto é a que, como sustento, a percepção interna nos dá a conhecer, de modo igualmente imediato e evidente, no apetite e na volição, assim como em tudo quanto chamamos sentimento e emoção.

264

Assim, tal como propõe Chisholm, o sentido lato das atividades da

consciência permitiu estender a evidência à classe dos juízos, pois,

concomitante à descrição das atividades psíquicas, estava o abandono da

noção de in-existência intencional do objeto. Conforme a análise de Chisholm

acerca do velho exemplo brentaniano, dizer que “[...] a experiência de uma cor

sempre é acompanhada pela experiência concomitante desta experiência, é

dizer que a experiência da cor é necessariamente tal que, se alguém

experiencia deste modo e ao mesmo tempo julga que o faz, então ele julga

com evidência”265.

O exposto é suficiente para apresentar os critérios estabelecidos

pela esfera ideológica da prometida Psicologia descritiva, bem como os quarto

gêneros de partes distincionais no sentido estrito: (1) partes mutuamente

pertencentes; (2) partes lógicas; (3) partes de pares de correlatos intencionais;

(4) partes meramente distincionais da Diploseenergie psíquica (relação

psíquica primária e secundária). Explicitados tais gêneros, Brentano deixa

aberta a questão se a relação dual (das partes meramente distincionais da

264

„Im Sinne der gegebenen Erläuterungen wiederhole ich also jetzt ohne Besorgnis mißverstanden zu

werden, daß es sich analog wie bei den Urteilen um Wahrheit oder Unwahrheit bei den Phänomenen

dieser Klasse um Güte und Schlechtigkeit, um Wert oder Unwert der Gegenstände handelt. Und diese

charakteristische Beziehung zum Objekte ist es, die, wie ich behaupte, bei Begehren und Wollen

sowie bei allem, was wir Gefühl oder Gemütsbewegung nennen, die innere Wahrnehmung in gleich

unmittelbarer und evidenter Weise erkennen läßt“. Brentano, Franz. Psychologie vom empirisch

Standpunkt, Zweiter Band, p. 90.

265 „Das Empfinden einer Farbe ist stets begleitet vom Mitempfinden dieses Empfindens, sagt man: Das

Empfinden der Farbe ist notwendigerweise von der Art, daß, wenn jemand so empfindet und zugleich

urteilt, daß er so empfindet, er dann mit Evidenz urteilt“. Brentano, Franz. Deskriptive Psychologie, p.

170, nota 11.

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relação psíquica primária e secundária) não poderia ainda ser divisível em duas

(outras) classes.

Passemos, agora, à aplicação desses critérios aos fundamentos

cartesianos que orientaram a formulação da teoria do conhecimento moral.

3.5 A reformulação da descrição cartesiana da atividade psíquica fundamental: as ideae.

Afirmamos, a partir de bases textuais (em 3.2), que a classificação

brentaniana dos fenômenos psíquicos apresentada em A origem do

conhecimento moral (1889) se orientou pela análise cartesiana acerca das

atividades da alma. Também afirmamos (em 1.5) que essa orientação

cartesiana fazia parte da estratégia brentaniana de argumentação. Em outras

palavras, Brentano se valeu da classificação cartesiana para apresentar as

correções na descrição das atividades psíquicas, impostas pelos critérios de

análise encontrados pela descrição da relação entre as partes e o todo da

consciência. De modo mais específico, Brentano tratou primeiramente de

analisar a divisão cartesiana acerca das atividades psíquicas. Seu propósito

era apresentá-la como uma distinção correta das partes da consciência, pois

essas partes estariam constituídas pelos pares de correlatos intencionais. Em

seguida, tomando como base as descrições das três atividades psíquicas

resultantes dessa análise, Brentano pôde fundamentar a correção da descrição

das atividades psíquicas dos juízos e dos sentimentos. Como indicamos no

ponto anterior, seu procedimento consistiu em distinguir, nos pares de

correlatos intencionais, as partes que constituíam a relação psíquica primária e

secundária (Diploseenegie). Vejamos, passo a passo, as bases textuais e as

implicações dessa análise. Para isso, analisaremos o Esboço Psicognóstico,

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texto resultante do curso ministrado na Universidade de Viena em setembro de

1901266 e publicado como anexo 4 da Deskriptive psichologie.

Nesse trabalho, Brentano explicitou claramente o ponto de

convergência entre a análise cartesiana das atividades psíquicas e sua

descrição das partes da consciência orientada por sua análise da relação entre

as partes e o todo da consciência. Tal como estabeleceu a citação abaixo,

Brentano considerou que a análise cartesiana descreveu corretamente o

correlato de todo ato psíquico, encontrado por meio da distinção que explicita

as partes de correlatos intencionais. Por isso, ele aproximou sua definição de

„correlato do ato psíquico‟ à definição de Descartes:

Cada um de nós aparece para si mesmo em unidade e particularidade pessoal. Nós nos referimos àquilo que constitui esta unidade e particularidade como nossa alma (Seele). Esta alma mostra a si mesma em múltiplas atividades. Ela inicia e cessa de estar em ato de certo modo, enquanto permanece constantemente em ato de outro modo. Como ato, ela é afetada e, como ato, ela é efetiva. Deste modo, ela é (percebida como) substancial (wesenhaft). Nós falamos neste sentido da maioria das atividades da alma. Enquanto está em ato, ela tem alguma coisa como objeto. Isto Descartes designou ter-como-objeto como pensamento (no sentido mais geral). Outros designaram ter como consciência (no sentido mais geral), ter-presente como mental [geistiges Gegenwärtig-Haben], permanência mental [geistiges Inhaben], outros ainda como relação intencional, ou alguma coisa mais. De modo breve e claro, nós o designaremos ter-um-objeto [Gegenständlichhaben] e o correlato existir-como-objeto [Gegenständlichsein]. Nisto consiste a

específica relação da alma, a relação psíquica .267

266

As referências apresentadas pelo editor Chisholm são as seguintes.”PSYCHOGNOSTIC SKETCH

Outline of a psychognosy, begun on 4 September 1901 and finished on 7 September 1901. From the

Nachlass. Registered as Ps 86“.

267 „Jeder von uns erscheint sich selbst in persönlicher Einheit und Besonderheit; was diese Einheit und

Besonderheit ausmacht, nennen wir unsere Seele. Diese Seele zeigt sich in mannigfacher Tätigkeit; sie

beginnt und hört auf in einer Weise tätig zu sein, während sie in anderer Weise unverändert tätig

bleibt; sie wird als tätig gewirkt und ist als tätig wirksam, also wesenhaft [wahrgenommen]. Wir

sprechen in dieser Beziehung von einer Mehrheit von Seelentätigkeiten. Indem sie tätig ist, hat sie

etwas zum Gegenstand. DESCARTES hat dieses Zum-Gegenstande-Haben als Denken (im

allgemeinsten Sinne), andere haben es als Bewußtsein (im allgemeinsten Sinne), wieder andere als

geistiges Gegenwärtig-Haben, geistiges Inhaben, wieder andere als intentionale Beziehung und noch

andere noch anders bezeichnet. Wir wollen es der Kürze und Deutlichkeit Rechnung tragend

Gegenständlichhaben und das Korrelat Gegenständlichsein nennen. Es besteht darin die spezifisch

seelische Beziehung, die Seelen-Beziehung ” Brentano, Franz. Deskriptive Psychologie,

p. 146.

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143

Tal como afirmou esta citação, o elemento fundamental para a

descrição das atividades psíquicas era a relação intencional entre ato e

correlato da consciência. Por esse motivo, segundo a interpretação de

Brentano já mencionada268, o valor da análise cartesiana estava no fato de ser

a primeira a apresentar uma divisão das classes constituintes das atividades

psíquicas, determinada por aquilo que o critério brentaniano descrevia como

partes da consciência constituintes dos pares de correlatos intencionais.

Para compreendermos a plausibilidade dessa consideração de

Brentano, é preciso ressaltar, mais uma vez, a novidade apresentada na

análise cartesiana. Segundo Brentano, essa novidade estava no critério que

estabeleceu a divisão das atividades psíquicas a partir da relação intencional

entre ato intencional e seu correlato (objeto imanente). Como contracara da

proclamação dessa novidade, explicitava-se imediatamente o abandono efetivo

da orientação aristotélico-tomista para o critério de classificação dos

fenômenos psíquicos.

O abandono desse ponto fundamental ocorreu no processo de

desenvolvimento do projeto brentaniano da filosofia do psíquico. Por isso

Brentano não se ocupou com a apresentação de uma refutação explícita aos

fundamentos da Psicologia do ponto de vista empírico, mas é interessante

ressaltar que as declarações brentanianas acerca da lei psicofísica de Fechner

são um exemplo pontual desse abandono. Em 1874, a lei de Fechner era

concebida por Brentano como aquela lei fisiológica obtida por indução a partir

dos fenômenos psíquicos de representação. Em 1889, a análise brentaniana

fazia referência à lei de Fechner apenas para apontar os pressupostos teóricos

abandonados:

Ainda que estivesse assegurada, a lei psicofísica de Fechner, uma vez que provoca mais e mais dúvidas e objeções, só poderia servir

268

“Em suas Meditações, Descartes foi o primeiro a expô-las (as três classes de fenômenos psíquicos)

exata e integralmente. No entanto, suas observações não foram suficientemente entendidas e caíram

imediatamente no esquecimento, até que em nossa época, o fato foi redescoberto, independentemente

dele. Hoje se pode considerar como suficientemente assegurado”. [„Danach gibt es drei Grundklassen.

Descartes in seinen Meditationen hat sie zuerst richtig und vollständig aufgeführt; aber auf seine

Bemerkungen wurde nicht genügend geachtet, und sie waren bald ganz in Vergessenheit geraten, bis

in neuester Zeit die Tatsache unabhängig von ihm wieder entdeckt wurde. Sie darf wohl heutzutage

als hinreichend gesichert gelten“]. Brentano, Franz. Vom Ursprung Sittlicher Erkenntnis, p. 17.

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144

para medir a intensidade do conteúdo de certas representações intuitivas.

269

A partir de 1889, isso teve um significado imediato para a

nomenclatura utilizada na definição dos fenômenos psíquicos e isso pode ser

observado a seguir na definição da primeira classe de atividades psíquicas,

pois, mesmo que as denominações das classes se identificassem com aquelas

denominações apresentadas na Psicologia do ponto de vista empírico,

Brentano foi incisivo no fato de que a definição de cada uma das classes de

fenômenos psíquicos seguiria a orientação cartesiana.

Vejamos detalhadamente a exposição brentaniana de cada uma

delas, começando pela primeira:

A primeira classe é a das representações no sentido mais amplo da palavra (as ideae de Descartes). Compreende tanto as representações intuitivas concretas, por exemplo, aquelas oferecidas pelos sentidos, como os conceitos mais distantes da intuição.

270

Brentano se valeu dos seguintes argumentos encontrados na

terceira meditação para identificar a classe das representações com as ideae

de Descartes:

Entre meus pensamentos, alguns são como imagens das coisas, e só àqueles convém propriamente o nome de idéia: como no momento em que eu represento um homem ou uma quimera, ou o céu, ou um anjo, ou mesmo Deus. (...) Agora, no que concerne às idéias, se as considerarmos somente nelas mesmas e não as relacionamos a alguma outra coisa, elas não podem, propriamente falando, ser falsas; pois, quer eu imagine uma cabra ou uma quimera, não é menos verdadeiro que eu imagino tanto uma como outra.

271

Segundo a análise brentaniana, a definição cartesiana de ideae não

apenas recolocou os termos em que a noção de representação havia sido

definida na Psicologia do ponto de vista empírico, mas também lapidou o modo

como os pares de correlatos da relação intencional deveriam ser concebidos.

269

„Das psychophysische Gesetz Fechners, selbst wenn es gesichert wäre, während es mehr und mehr

Zweifel und Widerspruch hervorruft, würde nur für die Messung der Intensität des Inhalts gewisser

anschaulicher Vorstellungen“. Brentano, Franz. Vom Ursprung Sittlicher Erkenntnis, p. 88, nota 40.

270 „Die erste Grundklasse ist die der Vorstellungen im weitesten Sinne des Wortes (Descartes' ideae).

Sie umfaßt die konkret anschaulichen Vorstellungen, wie sie uns z. B. die Sinne bieten, ebenso wie

die unanschaulichsten Begriffe“. Brentano, Franz. Vom Ursprung Sittlicher Erkenntnis, p. 17.

271 Descartes, René. Meditações, p. 109.

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145

Em outras palavras, tal como estabeleceu Brentano em 1874, a representação

consistiu no ato de representar. Esse ato necessariamente possuía um objeto

intencional in-existente como correlato representado. Em 1889, a interlocução

com Descartes chamou a atenção para o seguinte ponto. Ao recusar a noção

de ideae como cópia e atribuir-lhe uma função assimétrica, Descartes

apresentou a relação intencional destituída do pressuposto de um objeto

intencional in-existente. Por esse motivo, ainda segundo os argumentos

brentanianos, Descartes foi o primeiro filósofo a distinguir os pares de

correlatos que constituem a relação intencional.

Analisemos um pouco mais os detalhes que envolvem essa análise

brentaniana acerca dessa definição apresentada por Descartes. Tomaremos

dois pontos específicos na análise de Gèrard Lebrun acerca da noção

cartesiana de ideae: (a) a descrição do estatuto objetivo do correlato da ideae;

(b) a descrição do modo de existência desse correlato, como um modo de ser

destituído de realidade.

Lebrun esclarece, primeiramente, que Descartes usou a noção de

ideae de dois modos distintos. Isso significa que seria preciso identificar o uso

meramente ilustrativo, adotado quando Descartes se referiu à noção de ideia

como cópia de um original. E, além disso, seria preciso identificar o uso de

ideia como uma função assimétrica (ou, como definiu Brentano, a relação

intencional). Após a identificação desses dois usos, seria fundamental não

confundi-los. Assim, Lebrun tem como base de sua análise a seguinte

passagem das Meditações:

Esta definição da idéia como cópia na qual se anuncia um original (a idéia-quadro) reaparecerá muitas vezes nesta Meditação. Importa tanto mais sublinhar que os termos "como uma imagem" constituem apenas uma comparação destinada a explicar a função da idéia. Não se trata, de forma alguma, de assimilar a idéia intelectual à imagem sensível.

272

Seria preciso reconhecer, insiste Lebrun, o fato de que precisamente

na passagem citada acima a função da ideae é definida „como uma imagem‟.

Além disso, para obtermos a correta compreensão acerca do que Descartes

pretendeu, seria preciso considerar seu protesto contra Hobbes apresentado

272

Idem, Ibidem, nota 52.

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nas Terceiras Respostas: "Pelo nome de idéia, ele (Hobbes) quer somente que

se entendam aqui as imagens das coisas materiais pintadas na fantasia

corpórea”273. De fato, era essa definição hobbeseana que interessava a

Descartes refutar, pois a intenção de Hobbes podia ser resumida na

formulação da seguinte implicação. “Sendo isso suposto (idéias são pinturas na

fantasia), é-lhe fácil mostrar que não se pode ter nenhuma idéia própria e

verdadeira de Deus nem de um anjo..."274.

Se utilizarmos uma terminologia brentaniana para expor a análise de

Lebrun, podemos dizer que Descartes apontou o seguinte equívoco

hobbeseano. Hobbes não concebeu que ideae seria uma relação intencional

constituída por dois pares de correlatos (ideia como representação e ideia

representada) e, por isso mesmo, encontrou na descrição cartesiana apenas o

último elemento do par de correlatos intencionais, ou seja, a ideia

representada. Se essa relação intencional tivesse sido concebida por Hobbes,

ele teria percebido que o termo ideae tinha sido apresentado justamente por

ser capaz de definir as relações que estruturavam as atividades psíquicas

como “[...] eu represento um homem ou uma quimera, ou o céu, ou um anjo, ou

mesmo Deus”275.

Foi exatamente nesse ponto que Brentano encontrou a precisão da

definição cartesiana, pois o segundo ponto fundamental estava no novo

estatuto daquilo que constituía o correlato do ato de representar: a objetividade.

Assim, para Brentano, esse estatuto de objetividade explicitava-se na

afirmação de Descartes, quando ele sustentou que “[...] quer eu imagine uma

cabra ou uma quimera, não é menos verdadeiro que eu imagino tanto uma

como outra” 276. Vejamos os detalhes desse segundo ponto.

Ainda, como esclarece Lebrun, se essa definição cartesiana

reconheceu apenas o caráter objetivo do correlato do ato de representar,

então, no que concernia às ideias consideradas em si mesmas, “[...] elas não

273

Idem, Ibidem.

274 Idem, Ibidem.

275 Idem, René. Meditações, p. 109.

276 Idem, Ibidem.

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poderiam, propriamente falando, ser falsas”277, uma vez que a atribuição de

verdade ou falsidade cabe ao juízo. Para Brentano, esse foi outro ponto

fundamental da análise cartesiana, pois a restrição da verdade e falsidade à

esfera de atividade psíquicas do juízo era outro modo de estabelecer a não

existência de relação entre os elementos que compõem a ideae e algo exterior

à consciência. Desse modo, tal como sustentou Descartes, “[...] se eu

considerasse as idéias apenas como certos modos ou formas de meu

pensamento, sem querer relacioná-las a algo de exterior, mal poderiam elas

dar-me ocasião de falhar”278. Assim, portanto, restrita à atividade do cogito, a

ideae possuía, como afirma Lebrun, uma “realidade objetiva” ou valor objetivo.

Foi justamente essa objetividade que Brentano concebeu como existência não

real do objeto imanente, abandonando definitivamente a terminologia

aristotélico-tomista.

O exposto é suficiente para apresentar a descrição da primeira

classe de atividade psíquica. Passemos às demais.

3.6 A descrição cartesiana das atividades psíquicas baseadas em representações: os judicia e as Voluntattes sive affectus

Para compreendermos os detalhes da análise brentaniana acerca da

descrição das atividades psíquicas apresentada por Descartes, devemos

considerar os seguintes pontos. Tal como apresentamos no capítulo II, a

descrição brentaniana de 1874 explicitou uma característica comum entre os

atos psíquicos de juízos e os atos psíquicos de sentimentos. A saber, ambas

as classes estavam baseadas em representações. Além disso, a filosofia do

psíquico de 1874 descrevia cada tipo de ato psíquico como um modo

específico de referência ao objeto intencional in-existente. Dessa maneira, os

atos psíquicos de juízos e de sentimentos se referiam ao objeto da

representação.

277

Idem, Ibidem.

278 Idem, Ibidem.

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Já indicamos que esse modo de referência específico de ambas as

atividades, juízos e sentimentos, foi redefinido pelos critérios de descrição das

relações entre as partes e o todo da consciência norteadores da Psicologia

descritiva de 1889. Por quê? Porque a nova descrição dos juízos e dos

sentimentos apresentou outro critério para distingui-los das representações.

Em 1889, foi a descrição da relação psíquica primária e secundária

(Diploseenergie) que definiu os fenômenos psíquicos de juízo e de sentimento.

Assim, Brentano afirmou ter encontrado nas definições cartesianas a

possibilidade de explicitar, ao menos parcialmente, o tipo de relação que

definia essas classes de atividades psíquicas. Vejamos os passos da

argumentação brentaniana.

A segunda classe de atividades psíquicas, tal como expôs Brentano

na citação abaixo, retirada de seu texto de 1889, são os judicia de Descartes:

A segunda classe é a dos juízos (os judicia de Descartes). Antes de Descartes, estes juízos e as representações eram concebidos em uma única classe. Mesmo depois de Descartes, se reincidiu no mesmo erro. De fato, acreditava-se que o juízo consistia essencialmente em uma composição ou referência de uma representação à outra. Isto é era desconhecer largamente a verdadeira natureza do juízo.

279

A terceira classe de atividades psíquicas, enunciada também em

1889 no argumento brentaniano que se segue, são as Voluntattes sive afffectus

de Descartes:

A terceira é a classe das emoções, no sentido mais amplo da palavra, desde a simples atração ou repulsão, quando ocorre um pensamento, até a alegria e a tristeza baseada em convicções, bem como os mais complicados fenômenos de eleição de fim e de meios. Aristóteles já havia reunido todas essas coisas sob o nome desejo ( ). Descartes disse que esta classe compreendia as Voluntattes sive affectus. Se na segunda classe fundamental a referência intencional foi um admitir ou um rechaçar, na terceira classe é um amor ou um ódio, ou (como também poderia dizer exatamente) um agrado ou um desagrado. Amor, agrado, ódio, desagrado, existem na mais simples atração e repulsão, na alegria vitoriosa e na tristeza desesperada, na

279

„Die zweite Grundklasse ist die der Urteile (Descartes' judicia). Diese hatte man vor Descartes mit

den Vorstellungen in einer Grundklasse geeinigt gedacht; ja nach ihm verfiel man zum andern Male in

diesen Fehler. Man meinte nämlich, das Urteil bestehe wesentlich in einem Zusammensetzen oder

Beziehen von Vorstellungen aufeinander. Das war eine gröbliche Verkennung seiner wahren Natur“.

Brentano, Franz. Vom Ursprung Sittlicher Erkenntnis, p. 17.

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esperança e no temor, como também em toda a manifestação da vontade.

280

Como propusemos, as redefinições dessas duas classes de

atividades psíquicas, apresentadas acima, inauguraram uma nova concepção

das atividades psíquicas de juízos e de sentimentos de amor e ódio. Devemos,

no entanto, considerar que os pressupostos que fundamentaram tais definições

não estão explícitos. Para solucionar esse problema, nossa estratégia

argumentativa consistirá em apresentar, ainda que sistematicamente, os três

pontos seguintes:

(a) Apresentaremos o ponto convergente entre as definições

brentanianas e cartesianas de juízos e representações. Isso exigirá uma

apresentação do critério usado por Descartes para distinguir entre ideae e

judicia, tal como expôs a análise brentaniana.

(b) Apresentaremos o critério utilizado por Brentano para definir a

evidência do ato psíquico de juízo. Isso exigirá uma apresentação do ponto

refutado por Brentano nas definições cartesianas de ideae e judicia;

(c) Apresentaremos o critério utilizado por Brentano para

fundamentar a teoria da verdade como evidência.

A apresentação desses três critérios servirá de pedra de toque para

as análises do último capítulo desta tese, pois apresentaremos a descrição da

justeza dos sentimentos de amor e ódio a partir de uma analogia para com a

definição da evidência do juízo.

280

„Die dritte Grundklasse ist die der Gemütsbewegungen im weitesten Sinn des Wortes, von dem

einfachsten Angemutet - oder Abgestoßenwerden beim bloßen Gedanken bis zu der in Überzeugungen

gründenden Freude und Traurigkeit und den verwickeltsten Phänomenen der Wahl von Zweck und

Mitteln. Aristoteles schon hatte alles das als (όρεξις)- zusammengefaßt. Descartes sagte, die Klasse

begreife in sich die voluntates sive affectus. Wenn in der zweiten Grundklasse die intentionale

Beziehung ein Anerkennen oder Verwerfen war, so ist sie in der dritten ein Lieben oder Hassen oder

(wie man sich ebenso richtig ausdrücken könnte) ein Gefallen oder Mißfallen. Ein Lieben, ein

Gefallen, ein Hassen, ein Mißfallen haben wir in dem einfachsten Angemutet- und

Abgestoßenwerden, in der siegreichen Freude und verzweifelnden Traurigkeit, in der Hoffnung und

Furcht und ebenso in jeder Betätigung des Willens vor uns“. Brentano, Franz. Vom Ursprung

Sittlicher Erkenntnis, p. 18.

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150

3.7 O critério brentaniano e a distinção cartesiana entre ideae e judicia

Nosso primeiro ponto trata daquilo que Brentano chamou de correta

separação entre a classe das representações (ideae) e a classe dos juízos

(judicia), tal como foi apresentada por Descartes à história da filosofia. Com

base nos critérios da descrição da relação entre as partes e o todo da

consciência utilizados por Brentano em 1889, Descartes distinguiu

corretamente a representação e o juízo como partes unilateralmente

separáveis, pois, como esclareceu Brentano nos exemplos já citados, mesmo

que todo juízo pressupusesse uma representação, a representação poderia

existir ou continuar existindo quando o juízo deixasse de existir ou não

existisse.

Segundo a análise brentaniana, a correta separação cartesiana

entre a classe das representações (ideae) e a classe dos juízos (judicia)

resultou da seguinte descrição. O juízo foi descrito como um ato de afirmação

ou rechaço da representação (e não mais como um ato de afirmação ou

rechaço do conteúdo representado, como em 1874). Isso significava que a

descrição do juízo continuava orientada pela estrutura de predicação

encontrada em Aristóteles, ou seja, [(A)é] ou [(A é b)é], mas, além disso,

Brentano reconhecia na teoria cartesiana uma especificidade desse mesmo

ato. Tratava-se da afirmação ou do rechaço da relação intencional que constitui

o ato de representar, ou seja, da representação (e não do representado), pois a

análise brentaniana descreveu a ideae como uma função assimétrica para

redefinir a noção de representação.281

281

É interessante anteciparmos uma parte do comentário de Twardowski que desenvolveremos adiante.

O próprio Twardowski fez referência ao modo como Brentano concebeu essa noção de representação

e, também, deixou indicada a recepção cartesiana, pois Twardowski afirmou que a noção brentaniana

de objeto secundário era o ato e o conteúdo tomado em conjunto. Além disso, como veremos adiante,

essa representação consistia no objeto ao qual o juízo se referia intencionalmente. “Embora Brentano

designe como objeto primário o objeto da representação, tal como é feito aqui (na obra de

Twardowski), ele entende por objeto secundário de uma representação o ato e o conteúdo tomados

em conjunto, na medida em que ambos, durante a atividade de representar um objeto, são

apreendidos pela consciência interna, e aí a representação torna-se assim consciente”. Twardowski,

Kasimir. Para a doutrina do conteúdo e do objeto das representações, Uma investigação psicológica,

p. 62-63, nota 2.

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151

Existe um contraponto dessa posição epistemológica que é

fundamental relembramos. Brentano não reconheceu a noção moderna de

juízo (relação entre ideias) no âmbito da teoria do conhecimento cartesiana. A

análise brentaniana esclareceu que a noção cartesiana de juízo não poderia

ser descrita como uma atribuição de um sujeito a um predicado [A é B]. Tal

como descreve a citação a seguir, Brentano nos fez lembrar, também em 1889,

que uma composição de “idéias” ou uma “idéia composta”, por si só, nada mais

seria que uma parte (ou o correlato) da representação (ou do ato). Do mesmo

modo, uma “idéia” simples seria também uma parte (ou o correlato) da

representação (ou do ato). Isso significava que a representação, como um ato

intencional, estava referida a um objeto imanente, portanto, tendo uma

representação como base, um juízo seria uma referência intencional a essa

representação, fosse ela um ato que se referisse a um correlato simples ou

composto:

Sempre que se queira, é possível juntar e referir várias representações umas às outras. Por exemplo, quando dizemos: uma árvore verde; uma montanha de ouro; um pai de cem filhos; um amante da ciência. No entanto, se nada for feito além disso, não se expressa juízo algum. Também é certo que o julgar, como o desejar, implica sempre um representar. Mas, não é certo que várias representações se refiram umas às outras como sujeito e predicado. Isto acontece quando digo: Deus é justo. Mas, não quando digo: Deus existe.

282

Esse era o ponto convergente entre Descartes e Brentano. Ora, se

Brentano estabeleceu que não haveria como conceber a noção de ideia

hobbeseana e lockeana em sua filosofia do psíquico, então não haveria

também como conceber juízo ou conhecimento como relação entre ideias,

segundo a formula S é P.

Estabelecida a convergência entre Descartes e Brentano, passemos

para o ponto que trata da divergência entre suas definições de juízos:

282

„Man mag Vorstellungen zusammensetzen und aufeinander beziehen wie man will, wie wenn man

sagt, ein grüner Baum, ein goldener Berg, ein Vater von 100 Kindern, ein Freund der Wissenschaft:

solange und sofern man nichts weiteres tut, fällt man kein Urteil. Auch ist es zwar richtig, daß dem

Urteilen sowie auch dem Begehren immer ein Vorstellen zugrunde liegt; nicht aber, daß man dabei

immer mehrere Vorstellungen wie Subjekt und Prädikat aufeinander beziehe. Solches geschieht wohl,

wenn ich sage: Gott ist gerecht; nicht aber, wenn ich sage: es gibt einen Gott“. Brentano, Franz. Vom

Ursprung Sittlicher Erkenntnis, p. 17.

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152

3.8 O critério brentaniano para a definição da evidência do juízo

Nossa análise tomará por base os critérios de descrição das

relações entre as partes e o todo da consciência, de 1889, e apresentará o

modo como Brentano descreveu o erro de Descartes. Como método de

exposição desse erro cartesiano, seguiremos a análise de Chisholm e

apresentaremos os detalhes que sustentam a seguinte consideração. Os

principais aspectos nos quais “[...] o sistema brentaniana de 1889 difere do

cartesiano são estes: (a) Brentano substitui a noção cartesiana de verdade pela

noção de corretude; (b) acrescenta que os fenômenos da terceira classe são

corretos ou incorretos, assim como os juízos; (c) os fenômenos da segunda e

terceira classe são positivos e negativos”.283

A análise brentaniana considerou que Descartes não analisou

corretamente as características de uma das partes meramente distincionais. De

modo específico, Brentano considerou que o erro cartesiano estava na

descrição das partes constituintes das atividades psíquicas de representação e

de juízo, pois Descartes tomou algumas especificidades da relação psíquica

primária e secundária [Diploseenergie], que seriam próprias do juízo, como

especificidades da representação. Segundo a análise brentaniana, essa

confusão cartesiana resultou na atribuição equivocada da evidência à atividade

psíquica de representação (ideae). Esse seria o erro de Descartes, pois a

evidência deveria ser atribuída apenas à atividade psíquica de juízo (judicia),

uma vez que ela seria a única que poderia ser denominada conhecimento no

sentido próprio. Para apresentar os detalhes desse erro cartesiano encontrado

por Brentano, analisaremos uma citação ambígua presente em A origem do

conhecimento moral.

283

"The principal respects in which Brentano's system of 1889 differs from that of Descartes are these:

(1) He replaces Descartes's concept of truth by what he believes is the more basic concept of

correctness; (2) he adds that phenomena of the third sort - emotions and volitions - are like judgments

in being either correct or incorrect; and (3) he holds that phenomena of the second and third sorts are

alike in being either positive or negative. He refers to phenomena of the second sort as phenomena of

acceptance and rejection (compare "believing" and "disbelieving"); and he refers to phenomena of the

third sort as the "phenomena of love and hate." Chisholm, Roderick M. Brentano and intrinsic value,

p. 2-3.

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Em linhas gerais, tal como descreve o argumento a seguir, a

definição de juízo apresentada em 1889 parece idêntica àquela apresentada

em 1874:

Assim, qual é a distinção entre os casos em que me limito a representar e os casos em que julgo? Além de representar algo, existe aqui uma segunda referência intencional ao objeto representado, a que consiste em admiti-lo ou rechaçá-lo. Quem nomeia a Deus, dá expressão da representação de Deus. Mas, dá expressão à sua crença em Deus aquele que diz: existe um Deus.

284

A identidade entre as definições de juízo de 1874 e 1889 é mera

aparência, por isso será preciso explicitar os detalhes que evidenciam a

diferença. Para eliminar essa aparente identidade, aplicaremos os critérios

norteadores da Psicologia descritiva apresentados no início do capítulo. Assim,

poderemos apontar o distanciamento teórico entre as propostas da filosofia do

psíquico brentaniana de 1874 e 1889.

Brentano tomou como base seus próprios critérios de 1889,

estabelecidos pela descrição da relação entre as partes e o todo da

consciência, e sustentou que Descartes separou acertadamente representação

e juízo como partes unilateralmente separáveis. Essa distinção explicitou o fato

de que todo juízo pressupunha uma representação, embora a representação

pudesse existir ou continuar existindo quando o juízo deixasse de existir ou não

existe. Ocorre, no entanto, que Brentano também pretendeu sustentar que

escapou a Descartes o ponto fundamental, pois a aplicação dos mesmos

critérios de análise explicitava que as atividades psíquicas dos juízos seriam

constituídas de outras relações psíquicas primárias e secundárias

(Diploseenergie). Ora, sendo distinguidos em partes unilateralmente

separáveis, tal como em 1874, todos os juízos pressupunham representações

(caracterizadas pela relação intencional ao objeto imanente), no entanto, como

decorrência exclusiva da análise de 1889, a distinção encontrada na relação

psíquica primária e secundária da atividade da consciência (Diploseenergie)

explicitava que o objeto do juízo seria o próprio ato de representar, ou a relação

284

„Was unterscheidet also die Fälle, wo ich nicht bloß vorstelle, sondern auch urteile? - Es kommt hier

zu dem Vorstellen eine zweite intentionale Beziehung zum vor gestellten Gegenstande hinzu, die des

Anerkennens oder Verwerfens. Wer Gott nennt, gibt der Vorstellung Gottes, wer sagt: es gibt einen

Gott, dem Glauben an ihn Ausdruck“. Brentano, Franz. Vom Ursprung Sittlicher Erkenntnis, p. 17.

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psíquica primária, pois esse seria tomado como correlato do ato constituinte da

segunda relação intencional.

Ao considerarmos, então, os critérios de 1889, a ambiguidade

acerca do correlato do ato intencional de julgar se dissolve e a maneira de

descrição das atividades psíquicas proposta pela Psicologia descritiva se

evidencia. Em outras palavras, a “segunda referência intencional ao objeto

representado” foi caracterizada por uma relação psíquica secundária, ou seja,

pela admissão ou rechaço da representação que se caracterizou como relação

psíquica primária, pois tal representação consistiu no objeto da segunda

relação intencional.

Esse modo brentaniano de descrever as atividades psíquicas, a

partir de 1889, nos permitiu apresentar outro ponto fundamental da sua análise.

A saber: a razão pela qual a distinção cartesiana confundiu as especificidades

da relação psíquica primária e secundária [Diploseenergie], que são próprias

do juízo, como especificidades da representação, pois, segundo Brentano,

essa confusão cartesiana resultou na atribuição equivocada da evidência à

atividade psíquica de representação (ideae). A evidência podia ser descrita

apenas como atividade psíquica de juízo (judicia), pois só os juízos possuíam

as especificidades para ser descrita como conhecimento no sentido próprio.

Os argumentos usados por Brentano para refutar a noção cartesiana

de evidência impuseram a seguinte pergunta: Como a filosofia brentaniana

do psíquico apresentou a teoria da verdade como evidência? Em outras

palavras: Como a descrição da atividade da consciência caracterizada como

relação psíquica primária e secundária [Diploseenergie] explicitou o juízo

evidente? Antes de apresentarmos a resposta brentaniana, devemos relembrar

que a formulação dessas perguntas só foi possível no contexto da Psicologia

descritiva anunciado na obra A origem do conhecimento moral. Assim,

portanto, somente a partir de 1889 foi possível perguntar pela evidência dos

juízos que Brentano definiu como juízos justos. Do mesmo modo, somente

depois dessa data coube perguntar pela analogia entre os juízos justos e a

justeza dos sentimentos. Assim, somente no contexto da Psicologia descritiva a

análise brentaniana descreveu os juízos e os sentimentos como relações

psíquicas primárias e secundárias [Diploseenergie], pois juízos e sentimentos

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(enquanto relações psíquicas secundárias) tinham as representações

(enquanto relações psíquicas primárias) como objetos correlatos.

3.9 O critério brentaniano para a fundamentação da teoria da verdade como evidência

Faremos uma exposição sistemática da análise brentaniana da

verdade como evidência. Tomaremos como base textual a comunicação de

Brentano apresentada à comunidade filosófica de Viena em março de 1889285.

Essa comunicação recebeu o título “Sobre o conceito de Verdade” (Über den

Begriff der Wahrheit).

Primeiramente, a análise brentaniana apresentou uma retomada da

clássica definição aristotélica de verdade compreendida como adaequatio rei et

intelectus. Em princípio, essa análise orientou-se ou, ao menos, acordou com

as definições, distinções e classificações aristotélicas apresentadas pelo

próprio Brentano desde sua tese doutoral. Assim, Brentano permaneceu

sustentando em 1889, tal qual fizera em 1874 com base em pressupostos

aristotélicos, que a verdade e a falsidade tomadas no sentido próprio se

encontravam no juízo286. Isso significava que o juízo, tomado em seu sentido

próprio, possuía uma estrutura. Essa estrutura dos juízos, encontrada por

Brentano nos textos aristotélicos, consistia na predicação existencial da

representação, fosse ela simples [(A)é] ou composta [(A é B)é]. Em função

dessas orientações, Brentano considerou que a definição correta de verdade

poderia ser estabelecida por meio da análise da resposta aristotélica para a

seguinte questão: “Quando um juízo é falso e quando é verdadeiro?”287 Tal

285

O texto “Sobre o conceito de Verdade” (Über den Begriff der Wahrheit), editado por Oskar Kraus,

foi publicado como parte 1 do primeiro capítulo do livro “Verdade e Evidência” (Wahrheit und

Evidenz: Erkenntnistheoretische Abhandlugen und Briefe) em 1930, 1958 e 1974.

286 A verdade e a falsidade tomadas no sentido próprio se encontram no juízo. Assim, todo juízo é

verdadeiro ou falso. [„die Wahrheit und Falschheit im eigentlichen Sinne findet sich im Urteil. Und

zwar ist jedes Urteil entweder wahr oder falsch“]. Brentano, Franz. Wahrheit und Evidenz. p. 6.

287 Quando, segundo ele (Aristóteles), um juízo é falso e quando é verdadeiro? [„Wann ist nun aber nach

ihm ein Urteil wahr?, wann falsch?]. Brentano, Franz. Wahrheit und Evidenz. p. 7.

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como descreve a citação a seguir, a resposta para essa pergunta colocou o

ponto de partida da análise brentaniana:

Aristóteles responde que o juízo é verdadeiro quando aquele que julga o faz em correspondência com as coisas, no caso contrário é falso. “Quando alguém toma por separado o que é separado, unido o que é unido, seu juízo é verdadeiro. E ele erra quando toma as coisas de modo contrário ao que são” (Metafísica, IX, 10, 1051b 3). Com isso, se esclareceria a verdade da concordância de um juízo com as coisas efetivas (wirklichen Dingen).

288

Ao apresentar a definição aristotélica acima, a análise brentaniana

reconheceu a necessidade de dissolver os problemas que envolviam a noção

de „correspondência‟. Vejamos o primeiro deles.

Brentano reconheceu que seria preciso esclarecer o modo

aristotélico de conceber a ligação daquilo que está ligado e a separação

daquilo que está separado. Tratava-se, disse ele, das seguintes afirmações de

Aristóteles:

Em seu De Interpretatione, Aristóteles escreve que juízo consiste em

uma interligação do pensamento e que

ele é uma composição ( ). Isto consiste no fato de que,

quando se julga, toma-se uma coisa real como ligada (unida) ou como separada (distinta) a alguma outra coisa que é igualmente real. Se considerar-se ligadas as coisas que são efetivamente, e distintas as coisas que são efetivamente, então o juízo é verdadeiro. Ele é falso, no caso contrário, quando se procede contrariamente para com a coisa.

289

Segundo a análise brentaniana, essa definição de verdade incorria

em ambiguidades, pois ela sustentava a interpretação proposta por “[...]

aqueles que, por verdade, imaginam dada certa relação de identidade ou

similitude, ou mesmo semelhança, entre um pensamento e uma realidade

288

ARISTOTELES antwortet darauf, wahr sei es, wenn der Urteilende sich den Dingen entsprechend,

falsch, wenn er sich ihnen entgegengesetzt verhalte. „Wenn Einer, was geschieden ist, für geschieden,

was verbunden ist, für verbunden hält, urteilt er wahr, und er irrt, wenn er sich entgegengesetzt

verhält, wie die Sachen (Metaph. IX, 10, 1051b 3)“. Damit war eine Wahrheit für die

Übereinstimmung des Urteils mit den wirklichen Dingen erklärt. Brentano, Franz. Wahrheit und

Evidenz. p. 7.

289 „ARISTOTELES sagt in seinem Buch De Interpretatione, das Urteil bestehe in einer Verflechtung

von Gedanken ( ), es sei eine Zusammensetzung ( ). Und

diese bestehe darin, daß man, wenn man urteile, etwas Reales mit etwas Realem für verbunden, für

eins oder etwas Reales von etwas Realem für getrennt, geschieden halte. Halte man für verbunden

Dinge, die wirklich verbunden, für getrennt Dinge, die wirklich getrennt seien, so urteile man wahr;

falsch dagegen, wenn man sich entgegengesetzt wie die Dinge verhalte“. Brentano, Franz. Wahrheit

und Evidenz. p. 18-19.

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(Realität)”290. Orientado pela teoria do juízo fundada na filosofia do psíquico,

Brentano considerou que “[...] a proposição segundo a qual a verdade seria a

concordância do juízo com a coisa (ou toda formulação similar) ou é

necessariamente falsa ou deve ser compreendida de uma maneira inteiramente

diferente”291. De fato, Brentano pretendeu afirmar a segunda hipótese dessa

bifurcação. Assim, por meio de um silogismo disjuntivo, ele apresentou as

clássicas contradições que envolviam a possibilidade de concordância entre

alguns juízos e as coisas. Tais contradições envolviam tanto os casos de

alguns juízos negativos292, como os casos de alguns juízos afirmativos293. A

290

„Welche bei der Wahrheit eine gewisse Relation der Identität oder Gleichheit oder Ähnlichkeit von

einem Denken und einer Realität gegeben glauben“. Brentano, Franz. Wahrheit und Evidenz. p. 23.

291 „Wir sehen: der Satz, die Wahrheit sei die Übereinstimmung des Urteils mit der Sache (oder wie man

sich ähnlich ausdrücken mag), muß entweder grundfalsch oder ganz anders zu verstehen sein“.

Brentano, Franz. Wahrheit und Evidenz. p. 23.

292 As contradições que envolvem a possibilidade de correspondência (entre os juízos negativos e as

coisas) são exemplificadas por Brentano, como descreve a citação a seguir, a partir do fato de que

aquilo que deveria ser o correspondente do juízo negativo verdadeiro não existe como coisa real. Ou,

nos termos brentanianos, é um existente não-real. “A dúvida aparece de maneira particularmente

simples em uma simples negação. Se a verdade „não existe dragão‟ consistisse em uma concordância

de meu juízo com uma coisa, qual deveria ser então esta coisa? O dragão, certamente, não, pois ele

absolutamente não é dado (nicht vorhanden ist), mas tampouco qualquer coisa real que pudesse ser

considerada (como concordante)” [„Besonders im Falle der einfachen Leugnung tritt das Bedenkliche

klar hervor. Wenn die Wahrheit: ‚es gibt keinen Drachen„ in einer Übereinstimmung zwischen

meinem Urteil und einem Dinge bestände, welches sollte dann dieses Ding sein? Der Drachen doch

nicht, der ja dann gar nicht vorhanden ist. Aber ebensowenig ist irgendwelches Reale da, das (als

übereinstimmend) in Betracht kommen könnte“]. Brentano, Franz. Wahrheit und Evidenz. p. 22. O

argumento exposto, como sustenta Brentano, propõe a refutação da clássica interpretação da noção de

correspondência baseando-se no fato de que os juízos negativos verdadeiros, assim o são,

independentemente da realidade do que está sendo afirmado. Isto significa que Brentano já está

analisado a correspondência dos juízos negativos baseado nos critérios de outra noção de verdade. O

mesmo ocorre, como destacamos na citação que se segue, com o juízo existência negativo. “Ora, o

seguinte caso também comporta algo completamente similar. Onde eu não nego simplesmente uma

coisa, mas eu nego a tal coisa uma tal determinação real. Quando eu digo: algum homem não é negro,

então, para a verdade da sentença, como já dissemos, um negro não está separado do homem, mas a

falta de negro no homem, falta que existe efetivamente. Esta falta, este não-negro é como tal coisa

alguma (kein Ding), logo é por sua vez coisa alguma (kein Ding) dada efetivamente que concorde

com meu juízo. Assim, como dissemos, todos os juízos negativos verdadeiros são os primeiros a

apontar (e da maneira mais inegável uma vez que estes juízos são simples negações) que esta relação

de concordância entre juízo e realidade, que seria pretensamente própria de todo juízo verdadeiro, não

existe”. [„Ganz ähnlich aber verhält es sich auch in den Fällen, wo ich ein Ding nicht schlechtweg

leugne, sondern nur etwas einem anderen als reale Bestimmung abspreche. Wenn ich sage: irgendein

Mensch sei nicht schwarz, so ist -- wir sagten es bereits - zur Wahrheit des Satzes nicht ein Schwarz

getrennt von Mensch, sondern der Mangel eines Schwarz an dem Menschen, der in Wirklichkeit ist,

erforderlich. Dieser Mangel, dieses NichtSchwarze aber ist als solches kein Ding; also ist wieder kein

Ding als das, was mit diesem meinem Urteile übereinstimmte, in Wirklichkeit gegeben. - So zeigt sich

denn, wie gesagt, zunächst bei allen wahren, negativen Urteilen (und am unverkennbarsten freilich bei

den einfachen negativen), daß jene Relation der Übereinstimmung zwischen Urteil und Realität, die

angeblich zu jedem wahren Urteil gehören würde, nicht vorhanden ist“]. Brentano, Franz. Wahrheit

und Evidenz. p. 22.

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partir de tais contradições, a análise brentaniana inferiu a necessidade de uma

nova interpretação para aquilo que seria a concepção aristotélica de

concordância entre o juízo e a “coisa”. A análise Brentaniana avançou por meio

dos seguintes passos.

Em primeiro lugar, a argumentação brentaniana tomou como boneco

de palha a clássica problematização apresentada pelo sofista Górgias, pois, ao

analisar as teses pré-socráticas e sofísticas, Górgias havia apontado as

consequências problemáticas decorrentes da noção de verdade como

correspondência.294 Ainda que não tenha obtido sucesso, o propósito de

293

Ainda segundo Brentano, também as contradições que envolvem a possibilidade de correspondência

entre os juízos afirmativos e as coisas são exemplificadas, como descreve a citação a seguir, a partir

do fato de que aquilo que deveria ser o correspondente desses juízos verdadeiros não existe como

coisa real. Ou, nos termos brentanianos, é um existente não-real. “A outra classe de casos, onde

parecer ocorrer a mesma coisa, é encontrada quando examinamos de modo claro todo o domínio onde

se exerce a função afirmativa. Nós descobrimos que o juízo afirmativo se refere sempre, como efeito,

às coisas. Mas, como eu clarificarei rapidamente a partir de alguns exemplos, eles também tratam de

objetos que não se pode qualificar de modo algum como coisa. Uma vez que um juízo afirmativo se

refira à coisa, seja ela uma coisa específica que reconhecemos, seja ela atribuição de uma outra

determinação real a uma realidade, nós certamente poderíamos reconhecer uma concordância da coisa

com o juízo nos casos onde o juízo é verdadeiro. Mas, onde não fosse o caso, como deveríamos ser

capazes de dar conta de semelhante concordância? De fato, nossos juízos afirmativos, verdadeiros, às

vezes dizem respeito a uma coisa, a uma coleção de coisas, às vezes a uma parte, um limite de tal

coisa, etc. – numerosos objetos que não são eles mesmos coisas. Ou, se alguém no entanto arriscasse a

afirmá-los, indubitavelmente seria ele conduzido a supor que um ser, que ocorreu há muito tempo ou

que se situa no futuro distante, se encontra fora de mim como uma coisa? E ainda, o que acontece

quando eu reconheço a falta ou a ausência de uma coisa? Se diria que a falta do que está ausente em

uma coisa é também uma coisa? Ou ainda, quando digo que existe uma impossibilidade, ou que existe

certas verdades eternas – por exemplo as leis matemáticas – se acreditará então que, de modo

semelhante às idéias platônicas, existiriam os seres eternos concordantes com meu juízo em qualquer

parte no mundo ou fora do mundo? Certamente não. Parece que a concepção de l'adaequatio rei et

intellectus foi aqui completamente abatida”. [„Der andere Fall, wo sich dasselbe zu zeigen scheint,

begegnet uns sofort, wenn wir den Umfang des Gebietes, in welchem die affirmative Funktion geübt

wird, klar überblicken. Wir finden dann, daß sich das affirmative Urteil zwar oft auf Dinge bezieht;

aber auch - ich werde dies sogleich an Beispielen verdeutlichen - daß es oft auf Gegenstände geht, die

keineswegs mit dem Namen "Dinge" zu benennen sind. Wo sich nun ein affirmatives Urteilen auf

Dinge bezieht, sei es daß man einfach ein Ding anerkennt, sei es daß man einer Rea1ität eine weitere

reale Bestimmung zuspricht, da werden wir allerdings im Falle der Wahrheit eine Übereinstimmung

der Dinge mit dem Urteil aufweisen können. Wo aber nicht, wie sollten wir da noch ebenso dasselbe

zu tun vermögen? Und tatsächlich geht unser wahres, affirmatives Urteilen, wie manchmal auf ein

Ding, so ein anderes Mal auf ein Kollektiv von Dingen; dann wieder einmal auf einen Teil, auf eine

Grenze von einem Ding und dergleichen - lauter Gegenstände, die selber keine Dinge sind. Oder,

wenn einer dies doch noch zu behaupten wagte, wird er vielleicht ebenso noch behaupten wollen, ein

Wesen, das ich als längst vergangen oder als fern zukünftig erkenne, sei außer mir als Ding zu finden?

Und weiter noch! Wie ist es, wenn ich den Mangel, wenn ich das Fehlen eines Dinges anerkenne?

wird er sagen, dieser Mangel, dieses Fehlen eines Dinges sei auch ein Ding? Und wieder, wenn ich

sage, es bestehe eine Unmöglichkeit oder es gebe gewisse ewige Wahrheiten, wie z. B. die

mathematischen Gesetze; wird er da vielleicht glauben, daß, ähnlich etwa den platonischen Ideen, mit

einem Urteile übereinstimmende ewige Wesen irgend wo in oder außer der Welt beständen? Gewiß

nicht. - Der Begriff der adaequatio rei et intellectus scheint hier ganz und. gar in Brüche zu gehen“].

Brentano, Franz. Wahrheit und Evidenz. p. 22-23.

294 Brentano sintetiza a crítica de Górgias à noção de verdade como correspondência do seguinte modo.

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Brentano era descrever o modo como o problema colocado por Górgias

poderia ser dissolvido. De que modo? Por meio da aplicação dos critérios de

análise encontrados na descrição das relações entre as partes e o todo da

consciência, norteadores de sua Psicologia descritiva.

A análise brentaniana explicitou que o problema levantado pelo

sofista Górgias “[...] estava baseado na confusão acerca de uma diferença que

Descartes classificou como distinção entre realidade formal e realidade

objetiva”295. Ressaltou, no entanto, Brentano, acerca dessa solução cartesiana,

“[...] bem antes dele, Aristóteles já havia elucidado inteiramente, o que lhe

permitiu superar as absurdidades e os sofismas de Parmênides, Empédocles,

Górgias, Protágoras, entre outros”296. Tal como comenta a citação a seguir, a

solução do problema consistia em distinguir, em um ato psíquico de crença, os

elementos constituintes da realidade formal e os elementos constituintes da

realidade objetiva:

Quando eu creio em alguma coisa, esta crença existe “formalmente” em mim. Quando mais tarde eu recordo dessa crença, segundo Descartes, ela existe impressa “objetivamente” em mim. Trata-se do mesmo ato individual de crença (Glaubensakt), mas no primeiro caso eu o exerço e no outro caso ele é apenas o objeto imanente (immanente Gegenstand) da rememoração da crença que eu exerço.

297

“Górgias nega que alguma coisa seja realmente conhecida e, ainda que fosse o caso, que o

conhecimento possa ser comunicado entre um e outro. A não ser consigo mesmo, nada corresponde

completamente a qualquer outra coisa. O que está fora de mim, não está em mim. O que esta em mim

e permanece, não passa para outra coisa. Assim não há verdade e não há possibilidade de

comunicação verdadeira. Se alguma coisa por nós pensada fosse tomada como verdadeira, dizia

Górgias, então tudo o que nós pensamos seria tomado como verdadeiro, pois cada pensamento é um

em si mesmo e diferente de todos os outros. Mas o fato de que cada pensamento fosse tomado como

verdadeiro, também seria quando eu pensasse em uma batalha de carroças sobre o mar, o que é uma

contradição”. [„GORGIAS leugnet daraufhin, daß irgend etwas Wirkliches erkennbar, und daß, wenn

dies sogar der Fall wäre, die Kenntnis von einem dem anderen mitteilbar sei. Vollkommen stimmt

nichts mit etwas überein außer mit sich selbst. Was außer mir ist, ist nicht in mir, was in mir ist und

bleibt, geht nicht in einen anderen über. Also ist keine Wahrheit und keine Mitteilung von Wahrheit

möglich. Wenn etwas, was wir denken, wahr zu nennen wäre, meinte GORGIAS, so wäre alles, was

wir denken, wahr zu nennen; denn jeder Gedanke ist mit sich eins und jeder von allen anderen

verschieden. Daß aber jeder Gedanke wahr zu nennen wäre, auch wenn ich einen Wagenkampf auf

dem Meere denke, sei ein Widersinn“]. Brentano, Franz. Wahrheit und Evidenz. p. 7-8.

295 „Es beruht auf der Verkennung eines Unterschiedes, den DESCARTES als den Unterschied von

formaler und objektiver Realität bezeichnet“. Brentano, Franz. Wahrheit und Evidenz. p. 17.

296 „den aber lange zuvor schon ARISTOTELES ins volle Licht setzte und dadurch die Absurditäten und

die Sophistereien des PARMENIDES, EMPEDOKLES, GORGIAS, PROTAGORAS u.a.

Überwand“. Brentano, Franz. Wahrheit und Evidenz. p. 17.

297 „Wenn ich etwas glaube, so ist dieser Glaube "formal" in mir. Wenn ich mich später dieses Glaubens

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No contexto da realidade formal, o ato psíquico de crer consistiria

formalmente na crença. Nesse caso, a crença seria o ato psíquico em seu

pleno exercício (ou, nos termos brentanianos, um juízo). No contexto da

realidade objetiva, o ato psíquico de lembrar consistiria objetivamente na

crença. Neste caso, a crença seria o objeto imanente ao ato psíquico de

lembrar. Assim, para Brentano, aquilo que era um ato de 2º tipo (juízo como

crença) passava a ser concebido como uma parte distinguível de um ato de 1º

tipo (lembrança como representação). Vejamos os detalhes dessa distinção

quando aplicada aos critérios de análise encontrados na descrição das

relações entre as partes e o todo da consciência, norteadores da Psicologia

descritiva.

No caso da realidade formal da crença, o ato de julgar positivamente

(crer) seria distinguível em objeto primário e objeto secundário. O objeto

primário teria, por um lado, o ato de representar dirigido ao objeto imanente. E,

este último, por outro lado, constituiria o correlato representado. O objeto

secundário teria, por um lado, o ato de julgar afirmativo (crer) atribuindo

realidade (o ser-real) ao objeto primário (ato de representar o objeto imanente),

mas, no caso da realidade objetiva da crença, o ato de lembrar algo consistiria

num ato de representar e, portanto, estaria dirigido a um objeto representado. A

crença seria, assim, esse objeto imanente representado.

Se aplicarmos as distinções propostas pelos critérios brentanianos

de análise, podemos afirmar que, enquanto realidade formal, a crença

consistiria na atividade objetiva secundária do ato de julgar; enquanto realidade

objetiva, a crença consistiria no correlato do ato de lembrar, ou seja, no objeto

imanente dado nessa relação intencional.

Ao tomar por base seus critérios de descrição da relação entre as

partes e o todo da consciência, e descrever distintamente esses dois modos

cartesianos de atividade psíquica (realidade formal e realidade objetiva),

Brentano encontrou a sua tese sobre a verdade como evidência. Essa tese

considerava que apenas a descrição da realidade formal poderia explicitar a

erinnere, so ist er nach DESCARTES Ausdruck "objektiv" in mir; es handelt sich um denselben

individuellen Glaubensakt; aber das einemal übe ich ihn aus, das andere Mal ist er nur der immanente

Gegenstand der Erinnerungstätigkeit, die ich übe“. Brentano, Franz. Wahrheit und Evidenz. p. 18.

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161

evidência que seria própria da atividade de conhecimento. Seriam os juízos, na

medida em que estavam estruturados pelas relações psíquicas primárias e

secundárias (Diploseenergie), e não as representações constituídas por

realidades objetivas, que explicitariam a noção de verdade como evidência na

teoria brentaniana do conhecimento. Esse era, para Brentano, o argumento

fundamental para a rejeição da atribuição de evidência à classe das

representações. Por isso não havia como conceber as representações como

conhecimento.

É importante notar que essa distinção, estruturada pelas relações

psíquicas primárias e secundárias (Diploseenergie), constituiu não apenas as

atividades psíquicas de segunda classe (juízos), mas também as atividades

psíquicas de terceira classe (sentimento de amor ou ódio). Tal como Brentano

ressalta na citação seguinte, esse deveria ser o locus de toda teoria do

conhecimento e, inclusive, da teoria do conhecimento moral:

Algo análogo ocorre com todas as outras funções psíquicas como vontade, desejo, rejeição, etc. Com os atos psíquicos dados formalmente, algo é dado como objeto imanente dos atos psíquicos. Dado objetivamente, para falar como Descartes, ou dado intencionalmente, como nós consideramos melhor expressar a fim de evitar equívocos. Evidentemente, não há qualquer contradição em que algo individual seja intencional em mim e não seja formal, ou o contrário, o que poderíamos explicitar por meio do exemplo da memória e outros mil. O desconhecimento deste fato manifesta-se como um retorno à pré-história da teoria do conhecimento.

298

O exposto é suficiente para apresentar a estrutura psíquica utilizada

por Brentano para interpretar a noção aristotélica de verdade como

correspondência e atribuir-lhe o caráter da evidência.

Passemos, então, à interpretação brentaniana propriamente dita,

tomada à luz dos critérios de análise da Psicologia descritiva. Vejamos o que

ele disse:

298

“Ähnlich ist bei jeder anderen psychischen Funktion, Wollen, Begehren, Fliehen usw. Mit dem

psychischen Akt, der formal gegeben ist, etwas als immanenter Gegenstand des psychischen Aktes,

also mit DESCARTES zu reden objektiv, oder wie wir, um Mißverständnisse zu vermeiden, uns

besser ausdrücken werden, intentional gegeben. Und es enthält offenbar gar keinen Widerspruch, daß

individuell dasselbe intentional in mir und formal nicht in mir sei oder umgekehrt, was wie durch das

Beispiel der Erinnerung durch tausend andere anschaulich gemacht werden könnte. Die Verkennung

dieser Tatsache erscheint wie ein Rückfall in die rohesten Zeiten der Erkenntnistheorie“. Brentano,

Franz. Wahrheit und Evidenz. p. 18.

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Como Aristóteles, uma vez que ele declara que o juízo verdadeiro tem por reunido o que é reunido, e assim por diante, nós podemos de todo modo dizer daqui em diante: é verdadeiro o juízo que afirma de alguma coisa que é o que ela é. E, nega que alguma coisa que não é que ela seja (de modo contrário, falso, uma vez que, em vista disto que é e disto que não, o juízo adotaria uma posição contrária).

299

A citação acima nos coloca diante da relação entre verdade e ser.

Antes de abordarmos esse ponto, é interessante ressaltar os pressupostos da

análise brentaniana. Brentano sustentou a tese aristotélica de que a verdade e

a falsidade, tomadas no sentido próprio, se encontravam no juízo300, mas,

segundo sua análise, isso significava que o juízo consistia na predicação

existencial da representação, fosse ela simples [(A)é] ou composta [(A é B)é].

Por isso, a análise brentaniana precisou definir o estatuto epistemológico desse

modo de ser caracterizado pela predicação existencial.

Brentano movimentou-se dentro dos limites da sua própria tese

doutoral e valeu-se da teoria dos múltiplos sentidos do ser para distinguir entre

realidade e existência. Assim, 1889, as partes constituintes de um ato psíquico

de juízo foram distinguidas também em função dos múltiplos sentidos do ser

que caracterizam os componentes distinguíveis mais elementares. Por um

lado, os correlatos dos atos constituintes das relações psíquicas primárias

seriam existentes ou não existentes. Nesse caso, enquanto relações

intencionais básicas, as representações referiam-se aos correlatos que seriam

“coisas” existentes, mas também seriam “não coisas” ou não existentes. Por

outro lado, os atos constituintes das relações psíquicas secundárias seriam

modos de atribuição de realidade ou negação de realidade. Nesse caso,

enquanto atividades psíquicas, os juízos seriam reais em sentido positivo e

negativo. Essa realidade (wirklischkeit) consistiria na própria atividade da

consciência. Enquanto relações intencionais complexas (Diploseenergie), os

juízos se dirigiriam (valorariam) positivamente ou negativamente as

299

„Und so können wir denn, ähnlich wie ARISTOTELES, wenn er erklärt, wahr sei ein Urteil, wenn es

für zusammen geeinigt halte, was zusammen geeinigt sei, und wie er sich des weiteren ausdrückte,

allerdings nunmehr sagen: wahr sei ein Urteil dann, wenn es von etwas, was ist, behaupte, daß es sei;

und von etwas, was nicht ist, leugne, daß es sei (falsch aber, wenn es mit dem, was sei und nicht sei,

sich im Widerspruch finde)“. Brentano, Franz. Wahrheit und Evidenz. p. 24.

300 “A verdade e a falsidade tomadas no sentido próprio se encontram no juízo. Assim, todo juízo é

verdadeiro ou falso“. [„Die Wahrheit und Falschheit im eigentlichen Sinne findet sich im Urteil. Und

zwar ist jedes Urteil entweder wahr oder falsch“]. Brentano, Franz. Wahrheit und Evidenz. p. 6.

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representações de “coisas” e “não-coisas” correlatas. Embora fosse uma

reorientação relativamente simples, o próprio Brentano reconheceu que a

tradição filosófica não se apercebeu das vantagens dessa distinção:

Enfim, nós não sucumbiremos mais à tentação recorrente de confundir o conceito de real com o conceito de existente. Já faz milhares de anos que Aristóteles analisou os múltiplos sentidos do ser. É lamentável, mas verdadeiro, que ainda hoje a maior parte não tire nenhum proveito de suas investigações.

301

Essa reorientação epistemológica assumida por Brentano no interior

do pensamento aristotélico e cartesiano teve outra implicação. Ela estabeleceu

o critério que sustentava as quatro consequências fundamentais da definição

de verdade como evidência. Vejamos como isso ocorreu.

Em primeiro lugar, tal como estabelece a citação a seguir, esse

critério permitiu que Brentano reconhecesse o campo coberto pelo juízo como

ilimitado. Em outras palavras, ao ser caracterizado como uma relação psíquica

secundária, todo juízo tinha por base uma representação que se caracterizava

como relação psíquica primária. Assim, qualquer representação poderia fazer

parte do campo de atividade do juízo. Ora, isso significava que poderiam ser

julgadas como verdadeiras ou falsas as representações que supunham “coisas”

(existentes), como correlatos dos atos de representar, mas também poderiam

ser julgadas verdadeiras ou falsas as representações que supunham “não-

coisas” (não existentes) como correlatos dos atos de representar. E, por que

isso foi possível a partir de 1889? Porque o fenômeno psíquico do juízo foi

descrito como uma atribuição de realidade (ser-real ou não-ser-real) à atividade

psíquica de representar. Desse modo, disse Brentano:

O campo coberto (pelo juízo) é totalmente sem limite. O material do juízo pode ser escolhido de maneira totalmente arbitrária: de fato, „qualquer coisa‟ será sempre julgável. Mas o que significa „qualquer coisa‟? É um termo que pode ser aplicado a Deus, ao mundo, a toda coisa e não-coisa

302.

301

”Wir werden endlich nicht, wie es immer und immer wieder geschieht, den Begriff des Realen und

den des Existierenden zu verwechseln versucht sein. Ein paar tausend Jahre ist es her, seitdem

ARISTOTELES die mannigfachen Bedeutungen des Seienden untersuchte; und es ist traurig, aber

wahr, daß noch heute die meisten aus seinen Forschungen keine Frucht gezogen haben“. Brentano,

Franz. Wahrheit und Evidenz. p. 27.

302 „Was den Umfang des Gebietes betrifft, so ist es schlechterdings unbegrenzt. Die Materie kann ganz

beliebig gewählt werden. ‚Irgend etwas„ wird freilich immer beurteilt. Aber was bedeutet dieses

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Em segundo lugar, o modo de referência intencional do juízo à

representação explicitou uma estrutura bipolarizada em afirmativa e negativa.

Isso significava, tal como afirmou Brentano, que “[...] este domínio totalmente

ilimitado se divide de imediato em dois”303: o juízo afirmativo e juízo negativo.

Além disso, essa “[...] oposição entre juízo afirmativo e juízo negativo implica

que, em cada caso, de fato, uma única das duas modalidades será apropriada,

enquanto a outra não será”304. Ainda segundo Brentano, tratava-se aqui “[...]

disto que nós exprimimos ordinariamente quando dizemos que, de dois juízos

contrários, um é sempre verdadeiro e outro é falso”305. Por isso, tratava-se, em

terceiro lugar, da descrição do domínio afirmativo do juízo como atribuição de

ser-real à representação e o domínio negativo como atribuição de ser-não-real

à representação. Como partes do todo psíquico, o ser-real constituinte da

atividade de julgar estaria relacionado de alguma maneira com o existente, ou

seja, com o constituinte do correlato do ato de representar. Essa relação, como

ressalta Brentano a seguir, é o primeiro indicativo da harmonia ou

correspondência entre as partes do ato psíquico:

O domínio no seio do qual o juízo afirmativo é apropriado, nós o chamamos domínio do existente. Conceito que deve, certamente, ser distinguido de conceitos tais como coisal, efetivo de ser e real. O domínio onde o juízo negativo é apropriado, nós o chamamos domínio do não existente.

306

Brentano tomou, então, o que se explicitou a partir desses três

pontos para definir a noção de verdade como correspondência ou

concordância. Sua análise considerou que a clássica definição aristotélica

deveria reconhecer que a verdade é a justa atribuição de realidade (ser-real) e

‚Irgend etwas„? Es ist ein Terminus, der auf Gott und die Welt, auf jedes Ding und Unding

angewendet werden könnte“. Brentano, Franz. Wahrheit und Evidenz. p. 24.

303 “Dieses völlig grenzenlose Gebiet scheidet sich nun aber sofort in zwei Teile“. Brentano, Franz.

Wahrheit und Evidenz. p. 24.

304 “Der Gegensatz des bejahenden und verneinenden Urteils bringt es nämlich mit sich, daß in jedem

Falle die eine und aber auch nur die eine von den beiden Beurteilungsweisen passend und die andere

unpassend ist“. Brentano, Franz. Wahrheit und Evidenz. p. 24.

305 “Was wir gemeiniglich so ausdrücken, daß wir sagen, von zwei kontradiktorischen Urteilen sei

immer das eine wahr und das andere falsch“. Brentano, Franz. Wahrheit und Evidenz. p. 24.

306 “Das Gebiet, für welches die bejahende Beurteilungsweise die passende ist, nennen wir nun das

Gebiet des Existierenden, ein Begriff, der also wohl zu unterscheiden ist von dem Begriffe des

Dinglichen,Wesenhaften, Realen; das Gebiet, für welches die verneinende Beurteilungsweise die

passende ist, nennen wir das des Nichtexistierenden“. Brentano, Franz. Wahrheit und Evidenz. p. 24.

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irrealidade (ser-não-real). Nesse caso, a contribuição da filosofia do psíquico

está na possibilidade de descrever a justeza desse ato de julgar.

A verdade é um juízo, relembrava Brentano constantemente em

suas referências aos argumentos aristotélicos. Essa tese deveria ser

concebida, no entanto, no seguinte sentido. A atividade psíquica do juízo

consistiria na relação intencional estruturada como relações psíquicas

primárias e secundárias (Diploseenergie). Assim, o ato psíquico de julgar seria

a atividade secundária que atribuiria realidade (ser-real) ou irrealidade (ser-

não-real) à relação psíquica primária chamada ato de representar um objeto

imanente (existente ou não-existente), ou seja, a representação. Por isso, esse

ato explicitaria o ponto fundamental da teoria do conhecimento, a saber, o fato

de que a correspondência ou concordância não poderia ser uma identidade ou

semelhança, mas deveria ser concebida como a harmonia, a pertinência ou a

correspondência. Essa harmonia ocorreria entre a atividade de atribuição de

realidade ou irrealidade (relação psíquica secundária dirigida à relação psíquica

primária) e a atividade de representação de existentes ou não existentes

(relação psíquica primária chamada ato de representar um objeto imanente

(“coisa” ou “não-coisa”). Vejamos, então, essas duas características

fundamentais que explicitam a noção de verdade pressupostas no que

acabamos de estabelecer.

Primeiramente, a harmonia ou correspondência de um juízo

verdadeiro, descrita por Brentano como justeza, explicitava-se a partir de

ambos os domínios afirmativos e negativos do juízo. Em outras palavras, toda

descrição do domínio afirmativo do juízo (onde ocorreria a valoração da

verdade) mostraria que o verdadeiro se explicitava em dois domínios. Por um

lado, o verdadeiro explicitava-se na justa atribuição de realidade (ser-real) à

representação (quando ela era uma referência à “coisa” – ao existente). Por

outro lado, o verdadeiro explicitava-se na justa atribuição de irrealidade (ser-

não-real) à representação (quando ela era uma referência à “não coisa” – ao

não existente). Além disso, e de modo contrário, toda descrição do domínio

negativo do juízo (onde ocorreria a valoração da falsidade) mostraria que o

falso também se explicitava em dois domínios. Por um lado, o falso explicitava-

se na injusta atribuição de realidade (ser-real) à representação (quando ela era

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uma referência à “não coisa” – ao não existente). Por outro lado, o falso

explicitava-se na injusta atribuição de irrealidade (ser-não-real) à representação

(quando ela era uma referência à “coisa” – ao existente). Desse modo, tornava-

se compreensível o esforço teórico de Brentano anunciado a seguir, ao

redefinir a noção de correspondência como harmonia ou concordância:

Em nenhum dos outros tantos modos dito, além do que eu disse aqui, se estabelece a concordância do juízo verdadeiro com o objeto. Concordar não significa aqui ser idêntico ou parecido, mas corresponder, ser apropriado, ser pertinente, se harmonizar com, ou outra expressão equivalente que se possa aplicar aqui.

307

Nesses termos, portanto, Brentano definiu a noção de verdade como

aquela noção que se originava da justa atribuição psíquica de realidade (ser-

real) e irrealidade (ser-não-real). Tratava-se da justeza entre um elemento

psíquico (a atividade de juízo) e outro elemento também psíquico (a atividade

de representação). Trataremos da tautologia envolvida nessa definição

brentaniana de verdade como evidência no próximo capítulo, pois sua análise é

a chave da elucidação da noção de preferência. O exposto até o momento foi

suficiente para apresentar a estrutura psíquica como fonte originária do

conhecimento do verdadeiro e do falso.

Podemos retornar ao ponto central da nossa tese. Para isso,

tomaremos como estratégia de análise a exposição da analogia estabelecida

por Brentano entre essa fonte do conhecimento do verdadeiro e do falso e a

fonte originária do conhecimento do moral e do imoral.

307

„In nichts anderem als dem, was ich hier sage, besteht die Übereinstimmung des wahren Urteils mit

dem Gegenstande, von der soviel gesprochen wurde. Übereinstimmen heißt hier nicht gleich oder

ähnlich sein; sondern übereinstimmen heißt hier entsprechend sein, passend sein, dazu stimmen, damit

harmonieren, oder was für andere äquivalente Ausdrücke man hier noch anwenden könnte“. Brentano,

Franz. Wahrheit und Evidenz. p. 25.

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CAPÍTULO IV

A TEORIA ÉTICA DO CONHECIMENTO MORAL COMO DESCRIÇÃO DO FENÔMENO PSÍQUICO DE PREFERÊNCIA NAS

FORMULAÇÕES TEÓRICAS DE 1889

4.1 Introdução

A argumentação desta tese, desenvolvida até este momento, tem

como objetivo sustentar a seguinte hipótese: A teoria apresentada por Brentano

na obra A origem do conhecimento moral (1889) consistiu num conjunto de

correções para as teorias apresentadas na Psicologia do ponto de vista

empírico (1874). Por isso, no primeiro capítulo desta tese, nós apresentamos

as afirmações textuais de Brentano (1889) que apontaram o caminho

equivocado percorrido pela teoria brentaniana do sentimento moral (1874). De

modo mais específico, sustentamos que a noção aristotélica de in-existência do

objeto intencional foi a fonte do equívoco encontrado na fundamentação da

psicologia de 1874. Como afirmamos anteriormente, a base textual para a

apresentação desse problema foi a própria confissão tardia de Brentano acerca

da incorporação do erro aristotélico à formulação das teses sustentadas nas

suas primeiras obras.

Nossa análise apresentada no segundo capítulo desta tese

apresentou os detalhes da recepção brentaniana do erro aristotélico. Essa

análise explicitou que a filosofia do psíquico brentaniana de 1874

fundamentava a teoria do sentimento moral da seguinte maneira. A base para a

formulação da teoria ética do sentimento moral estava na noção de in-

existência do objeto intencional. Por quê? Por três motivos: (a) porque a noção

de in-existência do objeto intencional era o critério fundamental para a definição

positiva do fenômeno psíquico de amor e ódio; (b) porque a noção de in-

existência do objeto intencional fundamentava a descrição do fenômeno

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psíquico do amor e ódio como consequência do conhecimento (de que o amor

a um objeto-causa tem outro objeto como efeito); (c) porque, com base na

regra que se inferia dessa relação, descrevia a ética como a retidão do amor

que se encontrava em conformidade com essa sua regra308. Assim, em função

da relação de dependência da ética para com a psicologia, sustentamos que os

equívocos encontrados na teoria do sentimento moral seriam decorrentes dos

princípios aristotélicos que fundamentavam a filosofia brentaniana do psíquico

de 1874.

No primeiro capítulo, também apresentamos a hipótese de solução

desse problema. Essa proposta de solução tomou como norte as

considerações textuais de Brentano acerca da necessidade de correção da

teoria do sentimento moral. Para Brentano, era preciso apresentar uma

descrição da atividade psíquica capaz de fundamentar “[...] o fato de que

juntamente com a experiência da atividade sentimental está unido

concomitantemente o conhecimento da bondade do objeto”309.

No terceiro capítulo desta tese, nossa análise apresentou os critérios

brentanianos utilizados na descrição da atividade psíquica apresentada na

Psicologia descritiva. Essa nova filosofia do psíquico viabilizou o explícito

propósito brentaniano de levar a cabo a tarefa de reformulação da ética. Por

quê? Porque o novo modo de descrição das atividades psíquicas apresentava

uma mudança radical na filosofia brentaniana do psíquico. Essa nova descrição

substituía o fundamento ontológico da noção de intencionalidade, encontrado

na in-existência intencional do objeto, por um fundamento epistemológico,

encontrado no ato intencional da consciência.

Com base no exposto acima, podemos retomar a hipótese que a

nossa tese pretende corroborar neste último capítulo, a saber: A ética

brentaniana seria uma teoria do conhecimento moral e, por isso, Brentano

apresentou-a na medida em que a atividade psíquica de sentimento (amor e

ódio) passou a ser descrita como um ato intencional em si mesmo evidente.

308

Cf. Brentano, Franz. Vom Ursprung Sittlicher Erkenntnis, p. 79, nota 28.

309 „Daß mit der Erfahrung der als richtig charakterisierten Gemütstätigkeit auch die Erkenntnis der Güte

des Objekts immer zugleich gegeben ist“ Brentano, Franz. Vom Ursprung Sittlicher Erkenntnis, p. 79,

nota 28.

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Para sustentarmos nossa hipótese, deveremos apresentar o critério

brentaniano de descrição da justeza dos sentimentos de amor. Isso exigirá uma

análise da relação entre a definição de justeza dos juízos verdadeiros e a

definição de justeza dos sentimentos de amor.

4.2 A indicação da fonte originária do conhecimento moral a partir da descrição da justeza dos sentimentos de amor e ódio, estabelecido por meio de uma analogia para com a definição de justeza dos juízos

A indicação da fonte originária do conhecimento moral a partir da

descrição da justeza dos sentimentos de amor e ódio, estabelecido por meio de

uma analogia para com a definição de justeza dos juízos, é a pedra de toque

da nossa tese. Por isso mesmo, é interessante observar que a analogia foi o

procedimento didático adotado por Brentano para apresentar a justeza do ato

psíquico. Em outras palavras, no intuito de apresentar ao grande público sua

concepção de verdade, fundamentada na atividade psíquica do juízo, Brentano

estabeleceu uma analogia entre essa atividade e a atividade psíquica do

sentimento de amor e ódio, pois ele considerava que se tratava de um paralelo

evidente. Vejamos.

Brentano tomou novamente por base os critérios norteadores da

Psicologia descritiva. Por isso ele relembrou as reformulações da sua teoria

dos juízos e afirmou que também existiam quatro reformulações no campo do

sentimento de amor e ódio. Segundo Brentano, essas reformulações também

decorriam do novo critério epistemológico que fundamentava a descrição das

relações psíquicas primárias e secundárias (diploseenergie). Pontuaremos

cada um delas a partir de uma analogia para com os juízos e, em seguida,

apresentaremos a análise brentaniana.

De modo análogo ao juízo, (a) o sentimento de amor e ódio cobriria

a totalidade do universo dos existentes e dos não existentes. De modo análogo

ao juízo, (b) o modo de referência intencional do sentimento de amor e ódio à

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representação comportaria uma estrutura bipolarizada entre amor ou ódio. De

modo análogo ao juízo, (c) o domínio positivo do sentimento de amor e ódio

consistiria na justa atribuição de amor ou ódio à representação e o domínio

negativo consistiria na injusta atribuição de amor ou ódio à representação.

Finalmente, (d) de modo análogo ao juízo, a justa atribuição de amor ou ódio à

representação seria definida como experiência originária do conceito de bem e

a injusta atribuição de amor ou ódio à representação seria definida como

experiência originária do conceito de mal.

Vejamos como Brentano apresentou as especificidades de cada

uma dessas quatro implicações:

(a) Em primeiro lugar, a teoria brentaniana estabeleceu o seguinte.

Em decorrência do modo como se dava a relação intencional entre o objeto

primário e o objeto secundário, a descrição de todo ato de sentimento de amor

e ódio também cobriria um campo ilimitado. Isso significava que, assim como

na descrição da atividade psíquica de juízo, todo sentimento de amor e ódio

seria caracterizado como uma relação psíquica secundária. Por isso, todo

sentimento de amor e ódio teria por base uma representação que se

caracterizava como relação psíquica primária. Como consequência desse

modo de descrever a relação, qualquer representação também poderia fazer

parte do campo de atividade do sentimento de amor e ódio. Por isso, de modo

análogo aos juízos, as representações que supunham “coisas” (existentes),

como correlatos dos atos de representar, poderiam ser amadas ou odiadas

como boas ou más. Além disso, as representações que supunham “não-coisas”

(não existentes) como correlatos dos atos de representar poderiam ser amadas

ou odiadas como boas ou más. Por quê? Porque a justa atribuição de amor ou

ódio seria descrita como uma relação (diploseenergie) entre a atividade

psíquica de sentir e a atividade psíquica de representar. Essa analogia entre a

atividade psíquica do sentimento de amor e ódio e a atividade psíquica do juízo

resolveu, como insistiu Brentano na citação a seguir, o problema da existência

ou não existência do correlato do objeto primário de todo ato de sentimento de

amor e ódio:

Nós chegamos a um análogo exato do que representa a concordância do juízo verdadeiro com seu objeto ou com a existência e não existência de seu objeto. Mas, no caso, não se trata

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absolutamente de alguma coisa que existe no sentido em que alguma coisa é real, coisal, efetiva de ser.

310

(b) Em segundo lugar, disse Brentano, “[...] também se encontra

uma oposição no domínio do sentimento de amor e ódio, a saber, aquela

oposição entre o amor e o ódio. E qualquer que seja a coisa tomada em conta,

em cada caso uma das duas modalidades do sentimento será apropriada e a

outra inapropriada”311. De modo análogo ao juízo, o modo de referência

intencional do sentimento de amor e ódio à representação explicitaria uma

estrutura bipolarizada em justo de ser amado e justo de ser odiado. Tal como

Brentano especificou textualmente na citação a seguir, essa oposição entre

sentimento de amor ou sentimento de ódio também remetia à relação

intencional que caracterizava a atividade psíquica primária e secundária.

Assim, em terceiro lugar, (c) tratava-se da descrição do domínio positivo do

sentimento como atribuição justa de amor ou ódio à representação e o domínio

negativo como atribuição injusta de amor ou ódio à representação. Como

partes do todo psíquico, também o amor constituinte da atividade de sentir

deveria estar relacionado de alguma maneira com o existente, enquanto ele

fosse constituinte do correlato do ato de representar, pois, tal como no juízo,

essa relação seria o primeiro indicativo da harmonia ou correspondência entre

as partes dessa classe de ato psíquico.

Seguindo ainda os mesmos procedimentos adotados na análise

acerca do juízo, Brentano tomou o que foi estabelecido nos três pontos

anteriores para definir (d) a noção de sentimento de amor e ódio justo como

justa atribuição de bem ou mal. Deste modo, disse ele:

Conseqüentemente, tudo o que é da ordem do pensável decompõe-se em duas classes das quais a primeira contém tudo para o qual é justo o amor; e a outra contém tudo para o qual é justo o ódio. O que

310

„Da hätten wir also das genaue Analogon dessen, was die übereinstimmung des wahren Urteilens mit

seinem Gegenstande oder mit der Existenz und Nichtexistenz seines Gegenstandes bedeutet. Von

einem Seienden im Sinne des Realen, Dinglichen,Wesenhaften ist dabei zunächst gar nicht die Rede“.

Brentano, Franz. Wahrheit und Evidenz. p. 25.

311 “ Auch auf dem Gebiete des Gemüts findet sich ein Gegensatz, nämlich der von Lieben und Hassen:

und für jegliches, was in Frage kommen mag, ist in jedem Fall eine der beiden 'Weisen dieses

Verhaltens passend, die andere unpassend“. Brentano, Franz. Wahrheit und Evidenz. p. 25.

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172

pertence à primeira classe, nós o denominamos bem, e mal o que é compreendido na outra classe.

312

Assim, chegamos ao ponto da fundamentação do conhecimento

moral. A atividade psíquica de sentimento de amor e ódio consistiria na relação

intencional estruturada como relações psíquicas primárias e secundárias

(diploseenergie), pois o sentimento seria a atividade secundária que atribuiria

amor ou ódio à relação psíquica primária chamada ato de representar um

objeto imanente (existente ou não-existente), ou seja, a representação. Dado

desse modo, esse ato explicitaria o ponto fundamental da teoria do

conhecimento moral, a saber, o fato de que a correspondência ou a

concordância não poderia ser uma identidade ou semelhança, mas ela deveria

ser concebida como a harmonia, a pertinência ou a correspondência entre a

atividade secundária que atribui amor ou ódio à relação psíquica primária

chamada ato de representar um objeto imanente (existente ou não-existente).

Aqui também emanam duas características fundamentais.

Primeiramente, a harmonia ou correspondência de um sentimento,

descrita por Brentano como justeza, explicitava-se a partir de ambos os

domínios afirmativos e negativos do sentimento de amor e ódio. Em outras

palavras, toda descrição do domínio afirmativo do sentimento (onde ocorresse

a valoração de algo como bom) mostrava que o bom se explicitava em dois

domínios. Por um lado, o bom explicitava-se na justa atribuição de amor à

representação (quando ela fosse uma referência à coisa – ao existente). Por

outro lado, o bom explicitava-se na justa atribuição de ódio à representação

(quando ela fosse uma referência à “não coisa” – ao não existente)313. Além

disso, e de modo contrário, toda descrição do domínio negativo do sentimento

(onde ocorresse a valoração de algo como mau) mostra que o mau também se

explicitava em dois domínios. Por um lado, o mau explicitava-se na injusta

atribuição de amor à representação (quando ela fosse uma referência à “não

coisa” – ao não existente). Por outro lado, o mau explicitava-se na injusta

312

“Und demgemäß zerfällt alles Denkbare in zwei Klassen, von welchen die eine alles, wofür die Liebe,

die andere alles, wofür der Haß passend ist, enthält. Das der ersten Klasse Zugehörige nennen wir gut,

das in der anderen Klasse Begriffene schlecht“. Brentano, Franz. Wahrheit und Evidenz. p. 25.

313 Especificaremos no próximo ponto que, no primeiro caso, a justa atribuição do amor à representação

do existente explicita a valoração do puro bem e, no segundo caso, a justa atribuição do ódio à

representação do não existente explicita a valoração do bem impuro (mesclado com o mau).

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173

atribuição de ódio à representação (quando ela fosse uma referência à “coisa”

– ao existente)314. Assim, por meio de uma analogia direta para com a atividade

psíquica do juízo, também se tornou compreensível o esforço teórico de

Brentano anunciado a seguir, ao redefinir a noção de correspondência como

harmonia ou concordância do sentimento de amor e ódio:

Assim, uma vez que nós amemos o bem ou odiamos o mal, ou, ao contrário, se nós odiamos o bem ou amamos o mal, nós podemos declarar justo ou injusto um amor ou um ódio. Além disso, (nós podemos dizer) que no caso de um ato justo nossa atividade sentimental corresponde ao objeto, está de acordo com seu valor. E, por outro lado, ela o objeta no caso do ato contrário, está em desarmonia para com seu valor.

315

Essa foi, enfim, a enunciação da teoria moral brentaniana de 1889.

Nesses termos, Brentano definiu a noção de conhecimento do bem (valor

moral) como aquela noção que se originava da justa atribuição psíquica de

amor e ódio, por parte de um elemento psíquico (a atividade de sentimento de

amor e ódio), a outro elemento também psíquico (a atividade de

representação). Do mesmo modo, ele definiu também a noção de

conhecimento do mal (valor imoral) como aquela noção que se originava da

injusta atribuição psíquica de amor e ódio, por parte de um elemento psíquico

(a atividade de sentimento de amor e ódio), a outro elemento também psíquico

(a atividade de representação). No que se refere ao primeiro objetivo deste

capítulo, o exposto foi suficiente para apresentar a estrutura psíquica como

fonte originária do conhecimento do bem e do mal, pois a descrição das

atividades psíquicas de 1889 estabeleceu a analogia entre a fonte originária do

conhecimento do bem e do mal e a fonte originária do conhecimento do

verdadeiro e do falso. Esse, no entanto, foi apenas o primeiro passo. Temos

ainda um segundo passo: analisar a tautologia que envolve a definição de amor

ou ódio justo.

314

Também especificaremos, no próximo ponto, que atribuição injusta de ódio à representação do

existente explicita a valoração do puro mau e, no segundo caso, a injusta atribuição de ódio à

representação do não existente explicita a valoração do mau impuro (mesclado com o bem).

315 „So können wir sagen, richtig oder unrichtig sei ein Lieben und Hassen, je nachdem wir darin Gutes

lieben oder Schlechtes hassen oder umgekehrt Schlechtes lieben und Gutes hassen; ferner, daß in den

Fällen richtigen Verhaltens unsere Gemütsbewegung dem Gegenstande entspreche, mit seinem Werte

im Einklang sei, in den Fällen verkehrten Verhaltens dagegen ihm widerspreche, mit seinem Werte

disharmoniere“. Brentano, Franz. Wahrheit und Evidenz. p. 25.

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174

A tautologia envolvida nessa definição brentaniana do bom, tal qual

aquela que envolve a definição de verdade como evidência, não consistiu em

um complicador para a teoria do conhecimento moral. Pelo contrário, ela

consistiu em outra etapa fundamental da análise, pois, nos detalhes específicos

da argumentação de Brentano, o esclarecimento acerca da utilidade de uma

definição tautológica tinha uma função específica. Ao esclarecer a função de

uma definição tautológica, a análise brentaniana estabeleceu duas distinções

fundamentais. A primeira delas era a distinção entre o juízo cego e o juízo

evidente. A segunda era a distinção entre sentimento inferior de amor e ódio e

o sentimento superior de amor. Essas distinções nos levarão ao ponto central

da teoria brentaniana do conhecimento moral, pois a definição de sentimento

superior de amor foi o ponto de partida para a descrição do fenômeno psíquico

da preferência.

4.3 A análise da definição tautológica de verdade como juízo justo e a distinção entre fenômenos psíquicos de ordem superior e ordem inferior

Os argumentos apresentados até aqui tornam plausível a hipótese

de que a teoria brentaniana do conhecimento moral resultou imediatamente da

reformulação da filosofia do psíquico de 1874, mas, como já antes anunciado,

havia algo mais. Brentano encontrou outra implicação para a ética nessa nova

maneira de descrever os fenômenos psíquicos. Tratava-se da possibilidade de

distinção daqueles fenômenos psíquicos caracterizados pela diploseenergie

(ou seja, descritos a partir das relações psíquicas primárias e secundárias) em

duas novas ordens: uma superior e outra inferior. Em outras palavras, a

utilização dos novos critérios de análise apresentados em 1889 indicava outra

distinção possível entre as partes que constituíam um ato psíquico de juízo ou

de sentimento de amor e ódio. Em função das relações entre suas partes, cada

um desses dois tipos fenômeno foi distinguido em fenômeno psíquico de ordem

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175

superior e fenômeno psíquico de ordem inferior. Retomaremos essa proposta a

partir de outro ângulo.

Segundo a teoria brentaniana de 1889, a evidência seria o traço

característico do fenômeno psíquico de ordem superior, quando esse

fenômeno fosse um juízo. Esse tipo de juízo explicitaria sua evidência por meio

da descrição da justa relação encontrada na harmonia entre suas partes

componentes, pois se tratava da descrição das relações psíquicas primárias e

secundárias (diploseenergie). Ainda segundo a teoria brentaniana de 1889, a

experiência análoga à evidência seria o traço característico do fenômeno

psíquico de ordem superior, quando esse fenômeno fosse um sentimento. Esse

tipo de sentimento explicitava sua experiência análoga à evidencia por meio da

descrição da justa relação encontrada na harmonia entre suas partes

componentes, pois também se tratava das relações psíquicas primárias e

secundárias (diploseenergie). Isso significava que, sendo evidente, um juízo

justo seria necessariamente verdadeiro. Sendo experienciado de modo análogo

ao evidente, um sentimento de amor justo seria necessariamente bom. Deve

ser ressaltado, no entanto, que, para Brentano, nem todo juízo verdadeiro seria

um juízo conhecido como evidente. Do mesmo modo, nem todo sentimento

bom seria experienciado de modo análogo ao conhecimento evidente. Assim,

as definições de juízo justo e de sentimento de amor justo nos levaram a um

tipo de círculo que precisou ser rompido, para que não se tornasse um círculo

vicioso.

Como estratégia de análise, é preciso que nos detenhamos um

pouco mais nesse ponto e que abordemos essas implicações em dois

momentos.

Primeiramente, (a) analisaremos a tautologia envolvida na definição

aristotélica de verdade, tal como concebida por Brentano a partir da sua

descrição da atividade psíquica de juízo, apresentada em 1889. Como base

nesta análise, apresentaremos o caráter tautológico da definição de bem.

Nossa análise apresentará os argumentos brentanianos que sustentaram a

analogia entre essa descrição da estrutura psíquica do juízo e do sentimento

de amor ou ódio.

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Em seguida, (b) enfatizaremos o modo como a teoria brentaniana de

1889 se valeu da tautologia envolvida na definição de verdade para indicar os

avanços epistemológicos almejados pela sua filosofia do psíquico. Em outras

palavras, analisada a partir dos pressupostos da Psicologia descritiva, a

tautologia envolvida na definição de verdade consistiu num avanço

epistemológico pelo seguinte motivo: ela explicitava de tal modo a relação entre

os elementos distinguíveis do ato psíquico de julgar com justeza (ou seja, as

partes elementares constituintes das relações psíquicas primárias e

secundárias) e, ao descrever esse ato psíquico, caracteriza o juízo como

evidente, distinguindo-o do juízo cego.

Retomemos, então, o que disse Brentano a partir do conceito

aristotélico de verdade:

Como Aristóteles, uma vez que ele declara que um juízo é verdadeiro quando tem por reunido o que é reunido, e assim por diante, nós podemos de todo modo dizer daqui em diante: é verdadeiro o juízo que afirma de alguma coisa que é, que ela é. E, nega que alguma coisa que não é, que ela seja (de modo contrário, falso, uma vez que, em vista disto que é, e disto que não, o juízo adotaria uma posição contrária) (grifo nosso).

316

As considerações de Brentano acerca do sentido preciso da

definição de verdade, esta concebida a partir de Aristóteles, enfatizaram o

seguinte: Essa “[...] definição parece dizer muito pouco e nada além disso: um

juízo é verdadeiro se ele julga um objeto de maneira pertinente, ou seja,

quando ele é, diz que ele é, ou quando ele não é, diz que ele não é”317. Em

outras palavras, Brentano reconheceu que “[...] julgar verdade e julgar de

maneira pertinente parece consistir em uma simples tautologia e o restante

parece ser apenas uma explicação que se vale de expressões correlatas” 318.

Acerca dessa consideração brentaniana, é importante ressaltar que a

tautologia apontada não resultava da brevidade da enunciação da definição. 316

„Und so können wir denn, ähnlich wie ARISTOTELES, wenn er erklärt, wahr sei ein Urteil, wenn es

für zusammen geeinigt halte, was zusammen geeinigt sei, und wie er sich des weiteren ausdrückte,

allerdings nunmehr sagen: wahr sei ein Urteil dann, wenn es von etwas, was ist, behaupte, daß es sei;

und von etwas, was nicht ist, leugne, daß es sei (falsch aber, wenn es mit dem, was sei und nicht sei,

sich im Widerspruch finde)“. Brentano, Franz. Wahrheit und Evidenz. p. 24.

317 „Denn in der Tat scheint jetzt gar wenig mit der Definition gesagt; nicht mehr, als wenn man sagt, ein

Urteil sei wahr, wenn es einen Gegenstand zutreffend beurteile, also, wenn er ist, sage, daß er sei, oder

wenn er nicht ist, sage, daß er nicht sei“. Brentano, Franz. Wahrheit und Evidenz. p. 26-27.

318 „Wahr beurteilen und zutreffend beurteilen" scheint einfache Tautologie, das übrige nichts als eine

Erklärung durch korrelate Ausdrücke“. Brentano, Franz. Wahrheit und Evidenz. p. 27.

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177

Além disso, o mesmo pode ser dito para a descrição brentaniana de verdade

explicitada a partir dos pressupostos da Psicologia descritiva.

Esse ponto pode ser estabelecido de modo direto. Também era

tautológica aquela descrição brentaniana de verdade apresentada a partir do

domínio afirmativo do juízo (onde ocorre a valoração da verdade) que mostrou

o juízo verdadeiro constituído de dois domínios. Por um lado, na justa

atribuição de realidade (ser-real) à representação (quando ela fosse uma

referência à “coisa” – ao existente). Por outro lado, na justa atribuição de

irrealidade (ser-não-real) à representação (quando ela fosse uma referência à

“não coisa” – ao não existente). Assim, um juízo (enquanto ato psíquico

caracterizado como relação intencional secundária) seria verdadeiro se ele

julgasse um objeto (ato psíquico caracterizado como relação intencional

primária) de maneira pertinente. Ou seja, se diria que ele é (real) quando o

objeto é (ou seja, é caracterizado por uma relação intencional primária que se

refere a um correlato existente). Ou, ainda, se diria que ele não é (real) quando

o objeto não é (ou seja, é caracterizado por uma relação intencional primária

que se refere a um correlato não existente). Como apontamos anteriormente e

destacamos novamente na citação a seguir, consideramos que havia uma

analogia direta entre a estrutura do juízo e a estrutura do sentimento, pois a

definição de bom como o amor justo e o amor de maneira pertinente também

consistia em uma tautologia análoga:

Assim, uma vez que nós amamos o bem ou odiamos o mal, ou, ao contrário, se nós odiamos o bem ou amamos o mal, nós podemos declarar justo ou injusto um amor ou um ódio. Além disso, (nós podemos dizer) que no caso de um ato justo, nossa atividade sentimental corresponde ao objeto, está de acordo com seu valor. E, por outro lado, ela o objeta no caso do ato contrário, está em desarmonia para com seu valor.

319

Brentano considerou que o modo de relação intencional específica

dos juízos e dos sentimentos, descrito a partir das relações psíquicas primárias

e secundárias (diploseenergie), constitui o ponto convergente entre as

319

„So können wir sagen, richtig oder unrichtig sei ein Lieben und Hassen, je nachdem wir darin Gutes

lieben oder Schlechtes hassen oder umgekehrt Schlechtes lieben und Gutes hassen; ferner, daß in den

Fällen richtigen Verhaltens unsere Gemütsbewegung dem Gegenstande entspreche, mit seinem Werte

im Einklang sei, in den Fällen verkehrten Verhaltens dagegen ihm widerspreche, mit seinem Werte

disharmoniere“. Brentano, Franz. Wahrheit und Evidenz. p. 25.

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tautologias envolvidas nas definições de verdade e de bem. Além disso, a

diploseenergie, enquanto ponto convergente entre atos psíquicos de julgar e de

sentir, não consistia apenas no pressuposto da análise brentaniana acerca das

definições tautológicas de verdade e de bem. Ela consistia no ponto

arquimediano utilizado por Brentano para explicitar a objetividade do juízo e do

sentimento. Em função desses pressupostos, Brentano iniciou sua análise

ressaltando o fato de que a desconsideração desse tipo específico de relação

intencional fez com que a questão toda parecesse análoga ao procedimento de

definição do efeito pela causa. Por isso, Brentano resumiu o problema da

seguinte maneira:

Quando nós explicamos o conceito de verdade do juízo afirmativo por meio do termo correlato „existência do objeto‟ e o conceito de verdade do juízo negativo por meio do termo correlato de „não-existência do objeto‟, nós procedemos da mesma maneira que aqueles que definem o conceito de efeito pela sua relação ao conceito de causa ou o conceito de grande pela sua relação ao pequeno.

320

A dissolução brentaniana desse problema considerou que o ponto

de partida estava em indagar se, com essa definição tautológica de verdade ou

de bem, nós “[...] conquistamos assim alguma coisa relevante? Pois, esta

formulação é tão conhecida e usual como as outras”321. A resposta positiva

apresentada por Brentano para sua própria questão considerou que a

dissolução do problema girava em torno de reconhecer os avanços

epistemológicos que essa definição tautológica podia indicar. Ora, se foi assim,

outra questão se colocava de imediato: Como podemos compreender tais

avanços epistemológicos?

A apresentação de uma consideração de Twardowski, acerca do

problema fundamental que envolvia a análise filosófica do psíquico, será

suficiente para indicar o avanço epistemológico que Brentano considerou

encontrar nas tautologias envolvidas nas definições de verdade e de bem. É

320

„Wenn wir den Begriff der Wahrheit des affirmativen Urteils durch den korrelaten Terminus der

Existenz des Gegenstandes, den Begriff der Wahrheit des negativen Urteils durch den korrelaten

Terminus der Nichtexistenz des Gegenstandes erläutern, so verfahren wir ähnlich, wie wenn einer den

Begriff der Wirkung durch seine Beziehrillg zum Begriff der Ursache oder den Begriff des Größeren

durch seine Beziehung zum Begriff des Kleineren definiert“. Brentano, Franz. Wahrheit und Evidenz.

p. 27.

321 „Was ist da viel gewonnen? Der eine Ausdruck ist so bekannt und gebräuchlich wie der andere“.

Brentano, Franz. Wahrheit und Evidenz. p. 26-27.

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179

preciso ressaltar que a referência à analise de Twardowski é, apenas, uma

estratégia322 de exposição que adotamos para enfatizar a singularidade da

teoria brentaniana de 1889, seja frente à posição teórica de seus “discípulos”,

seja frente à sua própria teoria de 1874.

Para Twardowski323, o ponto principal que caracterizava os avanços

epistemológicos da filosofia do final do século XIX (em seu rompimento ou

aprimoramento da filosofia do psíquico) estava diretamente ligado às pesquisas

que investigavam a relação entre conteúdo e objeto das representações e

conteúdo e objeto dos juízos. Tal como destacou Twardowski324, as análises de

322

Nossa estratégia releva as seguintes considerações que Barry Smith apresenta em seu livro “Austrian

philosophy – the legacy of Franz Brentano” para demarcar a relação entre Twardowski e a tradição

brentaniana psicologista: “From 1885 to 1889 Twardowski studied philosophy at the University of

Vienna, receiving his doctoral degree in 1891 for a dissertation entitled Idea and Perception. An

Epistemological Study of Descartes. While Twardowski studied especially under Franz Brentano, his

official supervisor was in fact Zimmermann, Brentano having been obliged to resign his chair in 1880.

During this time Twardowski made the acquaintance of Meinong, who had been Privatdozent in the

University since 1878, and Twardowski played a not unimportant role in the development of

Meinong‟s thinking in the direction of a general „theory of objects‟. At around this time Twardowski

also helped to found the Vienna Philosophical Society (he would later go on to found the first Polish

Philosophical Society in Lvov in 1904). On completing his studies, he was awarded a one year travel

scholarship, which he used principally as a means of becoming acquainted with new work in

psychology. In 1892, he studied in Munich, attending courses by Stumpf, and visited also Leipzig,

where Wundt had instituted the world‟s first laboratory of experimental psychology in 1879

(Twardowski would himself go on to establish the first laboratory of experimental psychology in

Poland in 1907). Smith, Barry. Austrian Philosophy – The legacy of Franz Brentano. p. 156.

323 Ainda segundo Smith, é interessante ressaltar os seguintes traços da influência brentaniana na

formação de Twardowski: “In 1894 Twardowski received the venia legendi in Vienna for a

monograph, much inspired by Brentanian doctrines, On the Doctrine of the Content and Object of

Presentations, and it is this work, translated into English only in 1977, which established his

credentials as one of the most important promoters and extrapolators of Brentano‟s philosophy. The

principal message of the work may be summarized as follows. Where Brentano had spoken

indiscriminately of the „contents‟ and „objects‟ of mental acts, as though content and object were

identical, Twardowski argued in favour of a strict distinction between the two - a distinction parallel,

in many ways, to Frege„s distinction between sense and referent, though translated into the

psychological mode. Where Brentano had seen content and object as effectively one and the same,

Twardowski regarded the content as a mental „picture‟ or „image„ of the object of the act. Every act,

according to Twardowski, has both a content and an object, though the object of an act need not in

every case exist. Even non-existent objects are seen by Twardowski as enjoying properties of their

own, a doctrine later transmuted by Meinong and Mally into the „principle of the independence of

being from being-so‟”. Smith, Barry. Austrian Philosophy – The legacy of Franz Brentano. p. 156-

157.

324 Segundo Twardowski, “[...] mesmo evitando-se assim a confusão do ato psíquico com seu conteúdo,

resta ainda por ser superada uma ambiguidade sobre a qual Höfler chamou atenção. Após ele

pronunciar-se sobre a relação com um conteúdo, própria dos fenômenos psíquicos, ele continua 1. O

que nós chamamos ‘conteúdo da representação e do juízo’ encontra-se inteiramente no interior

do sujeito, tal como o ato de representação e de juízo. 2. As palavras ‘Gegestand’ e ‘Object’ são

usadas em dois sentidos: por um lado, para aqueles existentes em si (an sich Bestehende), ... para

o qual nosso representar e julgar igualmente se dirigem, por outro lado, pela ‘imagem’ (Bild)

psíquica ‘em’ nós existente mais ou menos aproximada daquela real (Realen), aquela quase-

imagem (mais precisamente: signo) idêntica ao que em (1) denomina-se conteúdo. Em

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180

Zimmermann e Höfler apresentaram grandes avanços ao distinguirem entre

conteúdo de uma representação e objeto de uma representação, a partir

daquilo que a teoria brentaniana de 1874 definira como o fenômeno físico dado

como correlato do ato de representar. Acerca desse ponto, nós ressaltamos,

em uma nota do capítulo primeiro, que, segundo a análise de Twardowski,

diferentemente de Höfler, a teoria brentaniana de 1874 tomara indistintamente

as noções de conteúdo e objeto da representação. Em resumo, a análise de

Twardowski considerava que essa indistinção entre conteúdo e objeto (do juízo

e da representação) deixava a teoria brentaniana de 1874 na antessala da

teoria do conhecimento da virada do século XX.

Primeiramente, interessa-nos ressaltar, nesta análise, o fato de que

a distinção entre conteúdo e objeto foi a pedra de toque do debate sobre a

filosofia do psíquico. Assim, Twardowski indicou o ponto central de sua

investigação filosófica e anuncia sua entrada no debate acerca dos fenômenos

psíquicos do seguinte modo:

Esta investigação tratará da separação entre representado no primeiro sentido, onde isso significa o conteúdo, e o representado no outro sentido, onde serve para designar o objeto; em suma, considerará o conteúdo de representação (Vorstellungsinhaltes) e o objeto de representação (Vorstellungsgegenstande) separadamente e a relação mútua entre os dois. A suposição é que os juízos (Urteile) demonstram, relativamente à distinção entre conteúdo e objeto, algo semelhante às representações. Se tivermos sucesso em descobrir no domínio do julgar também uma distinção entre conteúdo e objeto do fenômeno, então isto poderia ser vantajoso para o esclarecimento no caso das representações.

325

Façamos uma consideração objetiva acerca do que se estabeleceu

a partir da proposta de Twardowski. De fato, o ponto que demarcou o avanço

epistemológico estava na distinção entre conteúdo e objeto da representação e

do juízo. Ao que cabe questionar: Por quê? Porque tal distinção proclamada

por Twardowski indicava o caminho para a elucidação de um problema

filosófico, a saber, o estatuto objetivo do conhecimento. Qual foi esse caminho?

contraposição ao Gegenstand ou objeto, suposto como independente do pensamento, denomina-

se o conteúdo de um representar e julgar (igualmente, sentir e querer) também o objeto o

‘objeto imanente ou intencional’ desse fenômeno psíquico”. Twardowski, Kasimir. Para a

doutrina do conteúdo e do objeto das representações, Uma investigação psicológica, p. 63.

325 Twardowski, Kasimir. Para a doutrina do conteúdo e do objeto das representações, Uma investigação

psicológica, p. 47.

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181

Foi a clássica distinção do correlato do ato psíquico em conteúdo representado

e o objeto representado. Considerando, no entanto, que estamos tratando da

teoria brentaniana de 1889, o que nos interessa especificamente na

argumentação de Twardowski não é a plausibilidade das soluções que ele

indicou a partir dos trabalhos de Zimmermann e Höfler, mas o fato de que essa

distinção entre conteúdo e objeto do juízo, caracterizada pelo problema do

estatuto objetivo do conhecimento, anunciou o problema que as análises

epistemológicas ocupadas com os avanços no campo do conhecimento

pretendiam resolver. Em outras palavras, a principal questão que também

envolveu a teoria brentaniana indagava pela indicação do caminho para a

elucidação desse problema filosófico, a saber, o estatuto objetivo do

conhecimento. Para essa questão, a teoria brentaniana de 1889 apresentou

uma resposta baseada na justeza do juízo evidente, ainda que o caminho

tomado desconsiderasse a distinção twardowskeana entre o conteúdo e o

objeto do juízo, tomados a partir da análise do correlato do ato.

Abordemos diretamente a posição brentaniana. Se, de um lado,

Brentano não distinguiu explicitamente conteúdo e objeto da representação, tal

como ressaltou Twardowski, é imprescindível reconhecermos que a análise

brentaniana descreveu uma distinção fundamental. Tratava-se da distinção que

se explicitou a partir da descrição da atividade psíquica (todo) caracterizada

pela diploseenergie (elementos e relações fundamentais entre as partes do

juízo e do sentimento). Em outras palavras, a análise de 1889 descreveu o todo

psíquico (ato de julgar ou de sentir), distinguindo os correlatos do ato em objeto

primário e objeto secundário. Acerca dessa distinção, e tomando por base sua

apresentação na Psicologia do ponto de vista empírico, Twardowski afirmou o

seguinte:

As expressões objeto primário e objeto secundário encontram-se em Brentano num sentido ligeiramente diferente. Pois embora Brentano designe como objeto primário o objeto da representação, tal como é feito aqui (na obra de Twardowski), ele entende por objeto secundário de uma representação o ato e o conteúdo tomados em conjunto, na medida em que ambos, durante a atividade de representar um objeto, são apreendidos pela consciência interna, e aí a representação torna-se assim consciente”.

326

326

Twardowski, Kasimir. Para a doutrina do conteúdo e do objeto das representações, Uma investigação

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182

Essas considerações de Twardowski enfatizaram que, desde sua

Psicologia do ponto de vista empírico, Brentano abordava a questão da

objetividade do conhecimento, no entanto essa questão estava orientada pela

descrição do tipo de relação que se estabelecia entre o ato psíquico de

representar (um objeto) e o ato psíquico de julgar tal representação (embora

orientado pelo objeto). Podemos, então, considerar que a proposta de avanço

epistemológico apresentada por Brentano (em 1889) estava sustentada na

plausibilidade do aprimoramento presente na descrição da diploseenergie, que

caracterizava o ato psíquico de julgar e de sentir. Isso significou, ao menos,

que a busca pela objetividade do conhecimento pôde avançar por um caminho

da filosofia do psíquico que tratou do problema do conteúdo do conhecimento

apenas de modo indireto. Deixemos, porém, isso como sugestão e retornemos

ao modo como Brentano efetivamente apresentou os avanços epistemológicos

de sua teoria de 1889, a partir dos problemas que ela elucidou.

Brentano sistematizou os avanços epistemológicos, propostos pela

Psicologia descritiva, a partir de três aspectos encontrados nas análises das

tautologias que envolviam as definições de verdade e de bem. Sua análise

ressaltou que: (a) essa tautologia tinha a virtude de indicar a restrição do

âmbito cognitivo ao âmbito semântico; (b) essa tautologia tinha a virtude de

indicar a eliminação da distinção entre verdade formal e verdade material; e (c)

essa tautologia tinha a virtude de indicar a eliminação da necessidade de se

identificar uma coisa real a todo juízo verdadeiro.

Tomando por base a sistematização desses três aspectos da

definição tautológica de verdade, Brentano tocou tangencialmente no problema

levantado por Twardowski e apresentou um critério de análise que permitiu

distinguir entre juízos verdadeiros evidentes e juízos verdadeiros cegos. Em

outras palavras, segundo Brentano, a análise da tautologia apresentada na

psicológica, p. 63. Se, no entanto, de um lado Brentano não distingue explicitamente conteúdo e

objeto, cabe aqui antecipar uma distinção entre objeto que se institui a partir da descrição da

percepção interna. A saber: a distinção dos correlatos do ato em objeto primário e objeto secundário.

Acerca dessa distinção, diz Twardowski que “[...] as expressões objeto primário e objeto secundário

encontram em Brentano num sentido ligeiramente diferente (do dele). Pois embora Brentano designe

como objeto primário o objeto da representação, tal como é feito aqui (na obra de Twardowski), ele

entende por objeto secundário de uma representação o ato e o conteúdo tomados em conjunto, na

medida em que ambos, durante a atividade de representar um objeto, são apreendidos pela

consciência interna, e aí a representação torna-se assim consciente”. Twardowski, Kasimir. Para a

doutrina do conteúdo e do objeto das representações, Uma investigação psicológica, p. 62-63, nota 2.

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definição de verdade, a partir dos critérios da Psicologia descritiva, explicitava o

fundamento da objetividade do conhecimento, pois, de um lado, tal análise

distinguia a objetividade dos juízos (o tipo de relação intencional entre dois

objetos) ao explicitar o caráter evidente de alguns juízos verdadeiros. E, de

outro lado, tal análise distinguia a subjetividade dos juízos (o tipo de relação de

um juízo para com o conteúdo psíquico) ao explicitar o caráter cego de alguns

juízos verdadeiros. O fundamental para nossa tese está no fato de que a

dissolução do problema que envolveu a tautologia acerca da definição de

verdade se aplica, por analogia, à solução para a tautologia acerca da definição

de bem.

Cabe apresentar, então, os pontos centrais da argumentação de

Brentano acerca de cada um desses aspectos, bem como o modo de indicação

da evidência do juízo a partir do caráter tautológico da definição de verdade.

Em primeiro lugar, (a) orientado pelos fundamentos de sua filosofia

do psíquico de 1889, Brentano pôde reconhecer que a tautologia contida na

definição “é verdadeiro o juízo que afirma de alguma coisa que é, que ela é”

tinha a grande virtude de restringir o âmbito cognitivo ao âmbito semântico. Em

outras palavras, essa tautologia indicou o âmbito semântico como campo da

investigação constituído na esfera da atividade psíquica (relação entre as

partes constituintes do todo psíquico no ato de julgar e de sentir). Isso teve

uma implicação imediata, pois a análise brentaniana desconsiderou o âmbito

da realidade (Wircklichkeit) envolvida na atividade psíquica. Nesse sentido,

ponderou Brentano acerca do conhecimento do verdadeiro, tornava-se

relevante que “[...] nós não mais investigássemos para além da definição, tal

como se dá na realidade (Wircklichkeit). E, assim, esta determinação não

aparece de fato sem valor” 327. Nesses termos, disse ele:

As formulações tautológicas, mesmo desprovidas da menor articulação conceitual, sempre apresentam certas vantagens além da análise se, de duas expressões equivalentes, uma delas se presta menos aos maus entendimentos que a outra. [...] Daqui em diante, nós estamos no abrigo semântico dos conceitos e, também, de

327

”(Dennoch dürften die von uns gepflogenen Untersuchungen in manchen Beziehungen für uns

lehrreich sein. 1. Ist schon dies von Belang,) daß wir fortan hinter der Definition nicht mehr suchen,

als in Wirklichkeit gegeben ist. Auch erscheint die Bestimmung jetzt nicht eigentlich wertlos“.

Brentano, Franz. Wahrheit und Evidenz. p. 27.

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muitos outros mal entendidos, os quais muitos espíritos se deixaram seduzir ao mal compreender a definição.

328

Em segundo lugar, (b) tomando por base os fundamentos de sua

filosofia do psíquico para a elucidação dessa tautologia, Brentano pôde tomar

como inconcebível uma distinção entre verdade formal e verdade material. Em

outras palavras, uma vez que a verdade era um juízo (tomado com ato psíquico

cuja relação intencional consiste na diploseenergie), decorria dos fundamentos

teóricos brentanianos que a “verdade formal (ou seja, a não-contradição

interna) não seria absolutamente verdade no sentido próprio, mas verdade em

um sentido não rigoroso, uma vez que operações que não são juízos poderiam

ser qualificadas de verdade”329.

Em terceiro lugar, (c) a tautologia da definição de verdade, orientada

pela interpretação de sua filosofia do psíquico, indicou que a necessidade e a

universalidade, própria de alguns juízos evidentes, prescindiam da coisa real

(Realität). Por isso, diz Brentano, “[...] nós não pensaremos que é preciso

identificar uma coisa real a um juízo cada vez que se reconhece uma verdade

o que, de modo absurdo, muitos imaginam que se deva fazer”330. Brentano

considerou que, tendo sido esse o erro comum da tradição filosófica acerca da

verdade, a própria virtude tautológica da definição de verdade foi interpretada

como um regressio ad infinitum:

Eles não veem que, no juízo, não se trata sempre de coisa real e, além disso, também não consideram que, ainda quando é esse o caso, a coisa real já deve ter sido reconhecida como tal por mim, para

328

”Tautologische Ausdrücke, selbst ohne jede begriffliche Gliederung, bieten bei der Erklärung oft

wesentliche Vorteile, wenn von den beiden gleichbedeutenden Terminis der eine nicht ebenso wie der

andere einem Mißverstande unterliegt. (...) So sind wir denn jetzt vor Begriffsverschiebungen und

dadurch vor noch manch anderem, weiterem Mißgriffe bewahrt, zu welchem viele durch Mißverstand

der Definition sich verleiten ließen“. Brentano, Franz. Wahrheit und Evidenz. p. 26-27.

329 „[...] Wir werden z. B. nicht die Wahrheit der Urteile, wie es manche tun, in formale und materiale

scheiden; vielmehr uns darüber klar sein, daß, was manche formale Wahrheit (die innere

Widerspruchslosigkeit) nennen, gar keine Wahrheit im eigentlichen, sondern im ganz uneigentlichen

Sinn sein müsse, ähnlich wie wir ja auch vieles, was gar kein Urteil ist, wahr nennen könnten.“.

Brentano, Franz. Wahrheit und Evidenz. p. 27.

330 ”Wir werden ebensowenig glauben, wie manche es törichterweise tun, man müsse, wo immer man

eine Wahrheit erkenne, ein reales Ding mit einem Urteil vergleichen“. Brentano, Franz. Wahrheit und

Evidenz. p. 27.

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que a identificação de uma coisa real e de um juízo seja possível. Esta concepção nos levaria a uma regressio ad infinitum.

331

Uma vez que se estabeleceu a objetividade dos juízos verdadeiros,

emanou, a partir desse modo de descrição, um critério de análise dos juízos

capaz de distinguir entre juízos evidentes e juízos cegos. Em outras palavras,

os pressupostos da Psicologia descritiva, que orientaram a articulação da

verdade sobre a realidade, permitiram a Brentano explicitar cada um dos dois

modos do juízo verdadeiro a partir de suas especificidades. Vamos direto ao

ponto: Como Brentano apresentou a estrutura dos juízos cegos e dos juízos

evidentes?

Brentano analisou e explicitou a estrutura dos juízos cegos do

seguinte modo:

Para uma parte dos juízos verdadeiros, existe uma articulação, como dizemos, direta de sua verdade sobre alguma coisa de real. É o caso daqueles (juízos verdadeiros) que são sustentados por uma representação na qual o conteúdo é real. É claro que a verdade do juízo afirmativo e, do modo contrário, a verdade do juízo negativo são determinadas pela persistência, a aparição ou desaparição da realidade concernente. Sem que ele mesmo seja modificado, frequentemente o juízo adquire ou perde sua verdade se, para além dele, a realidade concernente é produzida ou destruída (grifo nosso).

332

Salta aos olhos o elemento que caracterizou o juízo cego: uma

representação na qual o conteúdo é real. Embora o ponto fosse o estatuto de

realidade encontrado no conteúdo de consciência, Brentano não se ocupou

dele em sua análise específica acerca do juízo, tal como fez Twardowski ao

descrever a relação entre o conteúdo e o objeto (ou entre o conteúdo e os atos

331

”Sie ahnen nicht, daß es sich beim Urteilen nicht immer um reale Dinge handelt, und bemerken auch

nicht, daß, wo dies selbst der Fall ist, zur Ermöglichung des Vergleiches eines realen Dinges mit

einem Urteil, das reale Ding, wie es ist, bereits von mir erkannt sein müßte So würde diese Theorie ins

unendliche führen. Wir werden endlich nicht, wie es immer und immer wieder geschieht, den Begriff

des Rea.len und den des Existierenden zu verwechseln versucht sein. Ein paar tausend Jahre ist es her,

seitdem ARISTOTELES die mannigfachen Bedeutungen des Seienden untersuchte; und es ist traurig,

aber wahr, daß noch heute die meisten aus seinen Forschungen keine Frucht gezogen haben“.

Brentano, Franz. Wahrheit und Evidenz. p. 26-27.

332 „Bei einem Teile der wahren Urteile besteht ein s. z. s. direkter Bezug ihrer Wahrheit zu etwas

Realem; das sind jene, bei denen die dem Urteile zugrunde liegende Vorstellung einen realen Gehalt

hat; es ist klar, daß von dem Bestehen, Entstehen oder Vergehen der betreffenden Realität die

Wahrheit des affirmativen und im umgekehrten Sinn die Wahrheit des negativen Urteils bedingt ist.

Ohne daß das Urteil selbst sich geändert hätte - wenn draußen die betreffende Realität erzeugt oder

zerstört wird, gewinnt oder verliert ein solches Urteil oft seine Wahrheit“. Brentano, Franz. Wahrheit

und Evidenz. p. 25-26.

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psíquicos de representar e julgar). Ora, se considerarmos que o problema que

ocupou Brentano foi a busca da objetividade do conhecimento, essa omissão

estava coerente com os fundamentos da Psicologia descritiva, ou seja, a

realidade do conteúdo de consciência não era um problema central para a

teoria brentaniana de 1889. Por esse motivo, Brentano apenas se referiu a tal

realidade na medida em que ela tangenciou o problema da objetividade do

conhecimento. Em outras palavras, diretamente irrelevante no contexto da

análise dos tipos de relações intencionais entre as partes do todo psíquico do

juízo, os conteúdos psíquicos reais foram caracterizados para explicitar os

juízos contingentes que pressupunham (modalmente) a objetividade do

conhecimento. Assim, como indicou a análise brentaniana, a especificidade dos

juízos cegos estava no fato de que sua verdade se mantinha em função de

algo dado como conteúdo real, embora a estrutura do próprio juízo

permanecesse a mesma. A metáfora utilizada na caracterização de tais juízos

verdadeiros elucidou muito bem a sua definição, pois seriam juízos cegos

verdadeiros aqueles juízos que permaneceriam verdadeiros em função do

conteúdo real, dado concomitantemente sobre o pressuposto modal da

objetividade psíquica.

A análise brentaniana tomou, então, a descrição dos juízos cegos e,

em oposição a eles, definiu os juízos verdadeiros evidentes como aqueles

juízos onde a representação não possuía conteúdo real. Em outras palavras,

Brentano reconheceu o ponto tangencial entre conteúdo e objeto dos juízos, no

entanto sua análise considerou que o conteúdo real não era um elemento

pressuposto pela definição tautológica de verdade, uma vez que tal definição

explicitava o caráter objetivo dos juízos verdadeiros evidentes. Desse modo,

tratando-se da objetividade dos juízos verdadeiros evidentes, disse Brentano,

temos ainda duas alternativas específicas.333

A primeira alternativa, que a análise da tautologia envolvida na

definição de verdade apresentou, foi a descrição daquele tipo de juízos cuja

evidência manifestava seu caráter universal e necessário. Brentano considerou

que esse tipo de juízo era apodítico, pois dava origem ao princípio de não

333

„Bei den übrigen Urteilen, bei jenen wo die Vorstellung keinen realen Gehalt hat, ist ein zweifaches

denkbar“. Brentano, Franz. Wahrheit und Evidenz. p. 25-26.

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contradição e aos demais juízos analíticos, onde o objeto seria absolutamente

necessário ou absolutamente impossível. Nesse caso, diz Brentano:

Ou bem sua verdade não depende absolutamente de uma realidade, o que é o caso de todos os juízos onde o objeto é absolutamente necessário em si ou absolutamente impossível. Emergem desta categoria, por exemplo, o princípio de não contradição e todos os juízos analíticos.

334

O juízo analítico manifestava a evidência do juízo verdadeiro porque

sua descrição explicitava a harmonia entre as partes do ato psíquico. Em

outras palavras, sua descrição explicitava a atribuição absolutamente

necessária, ou absolutamente impossível, de realidade (ser real ou ser irreal),

por parte do ato de julgar, ao ato de representar o objeto correlato (existente ou

não existente).

A segunda alternativa que a análise da tautologia envolvida na

definição de verdade apresentou foi a descrição dos juízos que dependiam

direta ou indiretamente de um conteúdo psíquico real. Em outras palavras,

tratava-se aqui desse caráter tangencial entre o conteúdo e o objeto do juízo,

pois essa seria a descrição da própria atividade da consciência. Nos termos

brentanianos apresentados a seguir, tratava-se dos juízos que, enquanto

relações psíquicas secundárias (objetos secundários) se referem à relação

psíquica primária (referência intencional do ato de representar a existência ou a

não existência do objeto correlato desse ato) por meio do conteúdo psíquico

real. Nesse sentido, esclareceu Brentano:

Ou bem eles são, se não diretamente, ao menos indiretamente dependentes de uma realidade. Em outras palavras, o fato de que seu objeto emerge do domínio do existente ou do não-existente é – ainda que a representação não tenha qualquer conteúdo real - uma conseqüência de que tais ou tais realidades existem, e não outras existem, existiram ou existirão. É como existente, aparecendo e desaparecendo, em ligação com e na dependência das transformações reais, um espaço vazio e, sobretudo, uma falta, uma capacidade, um objeto de reflexão e tudo o que possa ser igualmente citado na mesma ordem de idéias

335.

334

„a) Entweder sie sind in ihrer Wahrheit gar nicht von einer Realität abhängig; dies gilt bei allen jenen,

deren Gegenstand schlechterdings in sich selbst notwendig oder unmöglich ist. Dahin gehört z. B. der

Satz des Widerspruches und mit ihm alle analytischen Urteile“. Brentano, Franz. Wahrheit und

Evidenz. p. 26.

335 b) „Oder sie sind, wenn auch nicht direkt, doch indirekt von einer Realität abhängig, d. h. die Tatsache,

daß ihr Gegenstand zum Existierenden oder Nichtexistierenden gehört, ist, obwohl die Vorstellung

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O conteúdo real, mencionado aqui novamente de modo tangencial,

exerceu uma função: “indicar” o objeto (ou o ato de representar um correlato

existente ou não existente), constituinte da relação intencional caracterizada

como objeto primeiro. Para voltar ao nosso velho exemplo, o ato de julgar estar

vendo o vermelho consistiria num juízo evidente, no que diz respeito à

evidência do julgar estar vendo algo. Com base no exposto por essa definição

de Brentano, o conteúdo real (o vermelho) tem a função de “indicar” o objeto

primeiro (ato de ver algo, ou seja, o representar referindo-se ao objeto existente

representado) ao qual o objeto segundo se refere atribuindo-lhe realidade. A

objetividade do conhecimento, que se explicitou na evidência do ato de julgar,

encontrava-se nas relações entre as partes do todo psíquico caracterizada

como diploseenergie. Ela, no entanto, tangencia a realidade na medida em que

a objetividade não pode prescindir do caráter modal do conteúdo real.

Assim, foi possível compreender o desinteresse brentaniano pelo

problema do conteúdo real do fenômeno psíquico de julgar, se considerarmos

que, no contexto da diploseenergie, esse fenômeno manteve uma proximidade

apenas tangencial para com o problema da objetividade do conhecimento.

Essa posição epistemológica foi o resultado da herança cartesiana incorporada

a partir de 1889 como o critério de distinção dos fenômenos psíquicos. Ela

consistiu, do mesmo modo, na consolidação da esfera ideológica da Psicologia

descritiva.

Podemos resumir, agora, o propósito geral do projeto brentaniano,

relembrando as seguintes considerações de Barry Smith:

Esta psicologia descritiva é, de fato, vista por Brentano como uma ciência cartesiana que fornece uma fundação epistemológica segura para toda a disciplina de filosofia, como também para as outras áreas de conhecimento científico. Ao mesmo tempo, no entanto, Brentano concebe a psicologia descritiva como um novo tipo de ciência empírica, com sua técnica empírica própria, uma técnica que repousa sobre a nossa capacidade de apreender distinções psicológicas entre os diferentes tipos psíquicos de atos simples e complexos, entre os elementos intuitivos e não intuitivos dos fenômenos psíquicos, entre os vários tipos diferentes de dados fenomenais, qualidades, limites e

keinen realen Gehalt hat, doch eine Folge davon, daß eine gewisse Realität oder gewisse Realitäten

und keine anderen bestehen oder bestanden haben oder bestehen werden. So bestehen, entstehen und

schwinden ein leerer Raum und überhaupt ein Mangel, eine Befähigung, ein Gedankending und was

dergleichen mehr angeführt werden könnte, im Zusammenhang mit und in Abhängigkeit von den

realen Veränderungen“. Brentano, Franz. Wahrheit und Evidenz. p. 26.

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continua, e assim por diante. E, também, na nossa capacidade de compreender determinadas relações necessárias e inteligíveis entre os elementos, assim, distinguido.

336

O procedimento brentaniano de descrição da atividade psíquica, tal

como detalhou Smith, complementou as próprias palavras com que Brentano

encerrou sua análise acerca da noção de verdade como evidência:

Se, como eu espero, nós conseguimos esclarecer o conceito que estava obscuro nesta definição nominal, foi unicamente porque examinamos melhor os exemplos de juízos verdadeiros. Nesses juízos, não tardamos a constatar que esta relação de identidade – o que quer que ela possa ser – não poderia ser uma verdade e não o seriam em razão do fato de que afirmação e negação não se relacionam sempre a coisas reais. E mesmo agora, que nós esclarecemos todo mal-entendido, a definição não teria nenhum sentido para aquele a que faltasse a intuição. Esta seria nossa conquista. Ela é certamente suficiente para um problema tão limitado como o nosso, onde se trata, em resumo, apenas de explicar uma expressão que um uso cotidiano tornou acessível a todo mundo.

337

A exposição da virtude da definição tautológica de verdade para a

caracterização da evidência do juízo justo constituiu o fundamento da

objetividade do conhecimento. Ela explicitou o fato de que o círculo tautológico

não precisava ser rompido quando uma experiência da evidência do juízo justo

se dava à consciência. Passemos, então, às analogias existentes entre o

âmbito do conhecimento teórico e o âmbito do conhecimento moral,

caracterizando este último a partir das tautologias envolvidas na definição de

bom e preferência.

336

“This descriptive psychology is in fact seen by Brentano as a Cartesian science providing an

epistemologically sure foundation for the entire discipline of philosophy, as also for scientific

knowledge of other sorts. At the same time, however, Brentano conceives descriptive psychology as a

new sort of empirical science, with its own empirical technique, a technique resting on our capacity to

notice psychological distinctions between the different sorts of simple and complex mental acts,

between the intuitive and non-intuitive components in psychic phenomena, between the various

different sorts of phenomenally given qualities, boundaries and continua, and so on, and then also on

our capacity to grasp certain necessary and intelligible relations between the elements thus

distinguished”. Smith, Barry. Austrian philosophy – the legacy of Franz Brentano. p. 27.

337 „Und wenn es uns, wie ich hoffe, gelungen ist, den in ihr getrübten Begriff zu klären, so ist es nur

geschehen, indem wir die Beispiele wahrer Urteile besser ins Auge faßten, wo wir dann alsbald sahen,

wie jene Beziehung einer Gleichheit, oder was es sonst sei, sahen deshalb keine Wahrheit sein könne,

weil Affirmation und Negation sich oft gar nicht mit n!alen Dingen befassen. Auch jetzt, nach

Ausschluß der Mißverständnisse, würde die Definition demjenigen nichts sagen, dem die Anschauung

fehlte. Das also dürfte etwa, unser Lohn und Gewinn sein; gewiß genug bei einer so bescheidenen

Frage, wie die von uns gewählte, bei der es sich ja um nichts als um die Erklärung eines durch

alltäglichen Gebrauch jedem geläufigen Ausdruckes handelt“. Brentano, Franz. Wahrheit und

Evidenz. p. 28.

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4.4 A analogia entre juízo justo e amor justo como modo de indicar os fenômenos psíquicos de ordem superior

Chegamos ao penúltimo ponto da nossa tese. Este ponto consiste

em apresentar a descrição do fenômeno psíquico do sentimento por meio de

uma analogia para com os juízos justos evidentes. É, no entanto, fundamental

fazermos uma ressalva acerca dessa estratégia de exposição que se valerá da

descrição das relações psíquicas primárias e secundárias (diploseenergie).

Embora a utilização da analogia seja um recurso utilizado e recomendado pelo

próprio Brentano para a caracterização da justeza do fenômeno psíquico do

sentimento de amor e ódio, a analogia por si só não dá conta de explicitar

algumas especificidades fundamentais da diploseenergie, constituinte do

fenômeno psíquico de preferência.

Esse limite encontrado na estratégia de exposição analógica exige

uma análise complementar quando tratamos exclusivamente da exposição do

fenômeno psíquico de preferência. De modo mais específico, apresentaremos

a descrição do conhecimento do amor justo, análoga à evidência do juízo justo,

mas também apresentaremos a descrição do conhecimento da justa

preferência, fenômeno psíquico para o qual não existe atividade análoga na

esfera dos juízos. Tomaremos a análise do fenômeno psíquico do sentimento

de amor ou ódio em dois momentos. Primeiramente, o fenômeno psíquico do

sentimento será analisado a partir da analogia para com o juízo justo. Isso

permitirá apresentar a descrição do sentimento de amor justo como

conhecimento do Bem, análogo ao conhecimento do verdadeiro. Em seguida,

avançaremos para além dessa estratégia de exposição analógica. Tomaremos

o conhecimento do amor justo, análogo ao juízo justo evidente, como base do

fenômeno de sentimento de amor. Isso permitirá apresentar a descrição do

conhecimento evidente da preferência justa. Retomemos, então, alguns pontos

analisados.

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A pedra de toque da argumentação brentaniana, na análise da

evidência do sentimento de amor e ódio, foi a tautologia envolvida na definição

de Bem. Brentano tomou o fenômeno psíquico do amor justo ao Bem e do ódio

justo ao Mal e estabeleceu que “[...] uma vez que nós amemos o Bem ou

odiamos o Mal, ou, ao contrário, se nós odiamos o Bem ou amamos o Mal, nós

podemos declarar justo ou injusto um amor ou um ódio”338. O ponto relevante

na análise brentaniana, tal qual se estabeleceu na descrição dos juízos justos,

foi a descrição da experiência constituinte do fenômeno psíquico do amor justo.

O fenômeno psíquico do amor justo foi analisado à luz dos critérios

estabelecidos na Psicologia descritiva e, continuou Brentano, “[...] nós

podemos dizer que, além disso, no caso de um ato justo, nossa atividade

sentimental corresponde ao objeto, está de acordo com seu valor. E, por outro

lado, ela o objeta no caso do ato contrário, está em desarmonia para com seu

valor”339. Voltaremos a esse problema da justeza do amor e do ódio em

seguida, pois é preciso apresentar outro aspecto relacionado à tautologia

envolvida nessa definição.

O modo como a análise brentaniana apresentou a descrição do

conhecimento do Bem e do Mal foi a chave para entendermos a importância da

definição tautológica de Bem. Por quê? Por que os critérios de análise

encontrados na Psicologia descritiva estabeleceram uma analogia entre a

definição de Bem e a definição de Verdade. Em outras palavras, de modo

análogo à descrição do conhecimento do verdadeiro, Brentano descreveu a

noção de conhecimento do Bem (valor moral) como aquela noção que se

originava da justa atribuição psíquica de amor e ódio, por parte de um elemento

psíquico (a atividade de sentimento), a outro elemento também psíquico (a

atividade de representação). Do mesmo modo, ele definiu também a noção de

conhecimento do Mal (valor imoral) como aquela noção que se originava da

injusta atribuição psíquica de amor e ódio, por parte de um elemento psíquico

338

„So können wir sagen, richtig oder unrichtig sei ein Lieben und Hassen, je nachdem wir darin Gutes

lieben oder Schlechtes hassen oder umgekehrt Schlechtes lieben und Gutes hassen“. Brentano, Franz.

Wahrheit und Evidenz. p. 25.

339 „So können wir sagen, (...) ferner, daß in den Fällen richtigen Verhaltens unsere Gemütsbewegung

dem Gegenstande entspreche, mit seinem Werte im Einklang sei, in den Fällen verkehrten Verhaltens

dagegen ihm widerspreche, mit seinem Werte disharmoniere“. Brentano, Franz. Wahrheit und

Evidenz. p. 25.

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(a atividade de sentimento) a outro elemento também psíquico (a atividade de

representação).

Essas experiências da justeza do amor e do ódio seriam, para

Brentano, suficientes para garantir a objetividade do conhecimento moral, pois

esse caráter justo ou injusto do sentimento foi concebido segundo os critérios

de análise norteadores da Psicologia descritiva. Isso significava que a justeza

do sentimento se encontrava na descrição da harmonia existente entre as

relações psíquicas primárias e secundárias. Desse modo, análoga à

objetividade do conhecimento da verdade, a objetividade do conhecimento

moral se fundava, também, na evidência manifestada na definição tautológica

de Bem. Tornava-se, portanto, compreensível por que ambos os domínios

afirmativos e negativos do sentimento seriam objetivamente conhecidos.

Como explicitamos anteriormente, toda descrição do domínio

afirmativo do sentimento (onde ocorreria a valoração de algo como bom)

mostrou que o bom se explicitava em dois domínios. Por um lado, o bom

explicitava-se na justa atribuição de amor à representação (quando ela fosse

uma referência à “coisa” – ao existente). Por outro lado, o bom explicitava-se

na justa atribuição de ódio à representação (quando ela fosse uma referência à

“não coisa” – ao não existente)340. Além disso, e de modo contrário, toda

descrição do domínio negativo do sentimento (onde ocorreria a valoração de

algo como mau) mostrou que o mau também se explicitava em dois domínios.

Por um lado, o mau explicitava-se na injusta atribuição de amor à

representação (quando ela fosse uma referência à “não coisa” – ao não

existente). Por outro lado, o mau explicitava-se na injusta atribuição de ódio à

representação (quando ela fosse uma referência à “coisa” – ao existente)341.

Assim, por meio dos critérios norteadores da Psicologia descritiva, Brentano

levou a cabo seu compromisso de apresentar a descrição da atividade psíquica

capaz de fundamentar “[...] o fato de que juntamente com a experiência da

atividade sentimental estava unido concomitantemente o conhecimento da 340

Especificaremos no próximo ponto que, no primeiro caso, a justa atribuição do amor à representação

do existente explicita a valoração do puro bem e, no segundo caso, a justa atribuição do ódio à

representação do não existente explicita a valoração do bem impuro (mesclado com o mau).

341 Também especificaremos, no próximo ponto, que atribuição injusta de ódio à representação do

existente explicita a valoração do puro mau e, no segundo caso, a injusta atribuição de ódio à

representação do não existente explicita a valoração do mau impuro (mesclado com o bem).

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bondade do objeto”342. O ponto central da argumentação brentaniana estava na

ampliação da análise da noção de bom à noção de Bem. Nesses termos,

Brentano uniu a experiência sentimental à sua cognição e definiu o Bem como

o “conhecimento” da origem do sentimento de amor justo ou sentimentos de

ódio justo, pois o ponto fundamental estava na experiência imediata do caráter

justo desse ato psíquico. Do mesmo modo, definiu-se o Mal como o

“conhecimento” da origem do sentimento de amor injusto ou sentimento de ódio

injusto, pois nesse caso estava a experiência imediata da falta do caráter justo

do ato psíquico.

Além de explicitar a experiência do amor caracterizada como justo

como fonte do conhecimento moral, existia, na definição tautológica de Bem,

outro ponto fundamental que a analogia para com os juízos justos nos

apresentou. A definição tautológica de Bem tinha a virtude de permitir a

distinção entre sentimentos de amor superior, análogo aos juízos evidentes, e

sentimentos de amor inferior, análogo aos juízos cegos. Exposta nesses

termos e analisada à luz dos pressupostos da Psicologia descritiva, a definição

tautológica de Bem explicitou o ponto fundamental da teoria do conhecimento

moral. O conhecimento indubitável do Bem (análogo ao conhecimento do juízo

evidente) originava-se na experiência do amor caracterizado como justo.

Assim, disse Brentano:

Aqui, pois, o conhecimento de que algo é verdadeiramente e indubitavelmente bom origina-se destas experiências de amor caracterizado como justo, em toda a extensão que tal conhecimento possa ter em nós

343.

O ponto central desse argumento estava no fato de que, de modo

análogo à análise acerca dos juízos evidentes, a distinção entre sentimento

superior e sentimento inferior caracterizava o avanço epistemológico da

Psicologia descritiva no campo da teoria do conhecimento moral. Vejamos

como Brentano apresentou esse avanço.

342

„Daß mit der Erfahrung der als richtig charakterisierten Gemütstätigkeit auch die Erkenntnis der Güte

des Objekts immer zugleich gegeben ist“. Brentano, Franz. Vom Ursprung Sittlicher Erkenntnis, p. 79,

nota 28.

343 „Hier also und aus solchen Erfahrungen einer als richtig charakterisierten Liebe entspringt uns die

Erkenntnis, daß etwas wahrhaft und unzweifelhaft gut ist, in dem ganzen Umfange, in dem wir einer

solchen fähig sind“. Brentano, Franz. Vom Ursprung Sittlicher Erkenntnis, p. 23-24.

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194

Brentano sistematizou os avanços epistemológicos a partir de dois

aspectos principais encontrados na análise da tautologia que envolvia a

definição de Bem: (a) essa tautologia tinha a virtude de indicar a restrição do

âmbito cognitivo ao âmbito semântico; (b) essa tautologia também tinha a

virtude de indicar a eliminação da necessidade de se identificar uma coisa real

a todo sentimento de amor. Tomando por base a sistematização desses dois

aspectos da definição tautológica de Bem, Brentano novamente tocou

tangencialmente no problema levantado por Twardowski (acerca da distinção

entre conteúdo e objeto). Para resolver esse problema, ele apresentou o

critério de análise que permitiu distinguir entre sentimentos superiores e

sentimentos inferiores.

A vantagem epistemológica encontrada na distinção entre

sentimentos superiores e sentimentos inferiores estava no fato de que ela

explicitava o caráter evidente do fenômeno psíquico da preferência, pois tal

distinção descreveu a evidência que caracterizava o fenômeno psíquico de

justa preferência. Vejamos.

Segundo Brentano, ao analisar a tautologia apresentada na

definição de Bem a partir dos critérios da Psicologia descritiva, explicitava-se

imediatamente o fundamento da objetividade do conhecimento moral. De um

lado, tal análise distinguia a objetividade do sentimento de amor justo (a partir

da descrição do tipo de relação entre o objeto secundário e o objeto primário)

ao explicitar o caráter evidente dos sentimentos superiores. E, de outro lado, tal

análise distinguia a subjetividade dos sentimentos (a partir da descrição do tipo

de relação de um ato de amor para com o conteúdo psíquico) ao explicitar o

caráter inferior de alguns sentimentos de amor.

Vejamos os detalhes que envolveram esses dois pontos da análise

do conhecimento moral e caracterizaram seu conhecimento como análogo à

evidência.

O primeiro aspecto, que caracterizou o avanço epistemológico da

teoria do conhecimento moral brentaniana, foi a distinção entre o conhecimento

da realidade (Wircklichkeit) do Bem e o conhecimento objetivo do Bem. De

modo análogo à análise do juízo evidente, (a) Brentano pôde reconhecer que a

tautologia contida na definição bem (“o conhecimento de que algo é

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verdadeiramente e indubitavelmente bom originava-se dessas experiências de

amor caracterizado como justo”) tinha a grande virtude de restringir o âmbito

cognitivo moral ao âmbito semântico. Em outras palavras, essa tautologia

também indicava o âmbito semântico como campo da investigação constituído

na esfera da atividade psíquica (e descrito como a relação intencional

estruturada como relações psíquicas primárias e secundárias –

diploseenergie). Por isso, o conhecimento objetivo do bem desconsiderava o

âmbito da realidade (Wircklichkeit) envolvida na atividade psíquica. Análogo ao

que se estabelecera a partir do conhecimento do verdadeiro, os fundamentos

da Psicologia descritiva também impuseram, à análise acerca dos fenômenos

psíquicos do sentimento, que “[...] nós não mais investiguemos para além da

definição, tal como se dá na realidade (Wircklichkeit). E, assim, essa

determinação não aparece de fato sem valor” 344. Desse modo, e tal como na

análise acerca do juízo evidente, Brentano retirava uma consequência dessa

determinação.

A consequência consistia em desvincular a presença real do amor

da experiência do amor caracterizado como justo (a partir de onde se originava

o Bem e seu conhecimento). As palavras de Brentano são as seguintes:

Assim pois, a presença real do amor (das wirkliche Vorkommen der Liebe) não é, sem mais nem mais, prova de que o amado seja digno de amor, como igualmente o admitir realmente (das wirkliche Anerkennen) uma coisa não é, sem mais nem mais, prova da verdade.

345

É fundamental observamos que essa consequência retirada por

Brentano da análise da tautologia devia ser tomada como um ponto

fundamental da teoria do conhecimento moral brentaniana. Sustentada nos

princípios adotados da Psicologia descritiva, ela ressaltava os limites da

cognição moral, tal qual a análise acerca do juízo evidente ressaltou, mas havia

algo mais radical. Evidenciava-se, ali, que a objetividade do conhecimento

344

”(Dennoch dürften die von uns gepflogenen Untersuchungen in manchen Beziehungen für uns

lehrreich sein. 1. Ist schon dies von Belang,) daß wir fortan hinter der Definition nicht mehr suchen,

als in Wirklichkeit gegeben ist. Auch erscheint die Bestimmung jetzt nicht eigentlich wertlos“.

Brentano, Franz. Wahrheit und Evidenz. p. 27.

345 “Also das wirkliche Vorkommen der Liebe bezeugt keineswegs ohne weiteres die Liebwürdigkeit, wie

ja auch das wirkliche Anerkennen keineswegs ohne weiteres die Wahrheit beweist“. Brentano, Franz.

Vom Ursprung Sittlicher Erkenntnis, p. 20.

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moral estava explícita na experiência constituinte da atividade psíquica

caracterizada pela diploseenergie (a partir da descrição das relações psíquicas

primárias e secundárias). Assim, análogo ao modo como Brentano tratou o

conteúdo real do juízo enfatizado por Twardowski, a presença real do amor não

consistia em um elemento psíquico relevante para a cognição objetiva do Bem,

pois tal conteúdo não era um elemento constituinte das relações intencionais

objetivas do todo psíquico (em seu ato de amar).

Em segundo lugar estava o aspecto que caracterizava o avanço

epistemológico da teoria do conhecimento moral brentaniana, pela restrição do

conhecimento objetivo do Bem à esfera psíquica. De modo análogo à análise

do juízo evidente, (a) Brentano pôde reconhecer que a tautologia contida na

definição de Bem indicava que a necessidade e a universalidade, próprias do

conhecimento moral, prescindiam da coisa real (Realität). Por isso, analisada à

luz dos critérios apresentados na Psicologia descritiva, a tautologia envolvida

na definição de bem também delimitava o âmbito da experiência moral à

atividade psíquica (pois o “conhecimento de que algo era verdadeiramente e

indubitavelmente bom originava-se dessas experiências de amor caracterizado

como justo”). De modo mais específico, e tal como esclareceu Brentano na

citação a seguir, não existiam garantias epistemológicas de que nossa

atividade psíquica do amor se referisse a algo que pudesse ser considerado

bom e que estivesse para além dela:

Pois existe uma coisa que deve ser explicitada de imediato. Não possuímos garantia alguma de que tudo aquilo que é bom nos atraia sempre com um amor caracterizado como justo. Quando isto não sucede, nosso critério falha como se o bom não tivesse presente para nosso conhecimento e nossa reflexão prática

346.

De fato esses dois passos epistemológicos da teoria brentaniana

descreveram negativamente o sentimento justo, ao restringi-lo à esfera da

atividade psíquica, no entanto, de modo análogo à análise dos juízos

evidentes, esses dois pontos tomados em conjunto estabeleceram o critério

346

„Denn das allerdings dürfen wir uns nicht verhehlen: wir haben keine Gewähr dafür, daß wir von

allem, was gut ist, mit einer als richtig charakterisierten Liebe angemutet werden. Wo immer dies

nicht der Fall ist, versagt unser Kriterium, und das Gute ist für unsere Erkenntnis und praktische

Berücksichtigung soviel wie nicht vorhanden“. Brentano, Franz. Vom Ursprung Sittlicher Erkenntnis,

p. 24.

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positivo para análise dos sentimentos, capaz de distinguir entre sentimento

superior e sentimento inferior. Assim, cabe indagar: Qual é o critério

brentaniano de distinção entre sentimentos superiores e sentimentos

inferiores? A resposta a esta questão explicitou o modo como Brentano

descreveu o fundamento da ética como teoria do conhecimento moral a partir

do fenômeno psíquico de preferência.

4.5 O fenômeno psíquico da preferência como fundamento da teoria do conhecimento moral

A descrição do fenômeno psíquico de preferência foi o principal

avanço epistemológico da análise brentaniana acerca da tautologia que

envolvia a definição de Bem. Sua posição original na teoria ética explicitava-se

a partir do limite encontrado para apresentar a descrição dos fenômenos de

sentimentos de ordem superior. É precioso ter em mente que, segundo

Brentano, “[...] o conhecimento de que algo é verdadeiramente e

indubitavelmente bom origina-se dessas experiências de amor

caracterizado como justo, em toda a extensão que tal conhecimento possa

ter em nós”347. Isso significava que, orientado pelos fundamentos da Psicologia

descritiva, o ponto de partida para a fundamentação da teoria do conhecimento

moral seria sempre a descrição da experiência psíquica individual. Além disso,

essa experiência deveria consistir necessariamente na experiência do amor

caracterizado como justo. A saída desse círculo vicioso proposta pela análise

brentaniana recorreu à descrição da relação intencional que estruturava o

fenômeno psíquico de sentimento (diploseenergie). Essa análise explicitou que

um ato psíquico de sentimento de amor superior pressupunha a sua imediata

experiência. O exemplo principal desse tipo de fenômeno psíquico foi a

preferência. Vejamos, então, como Brentano desenvolve sua argumentação

347

„Hier also und aus solchen Erfahrungen einer als richtig charakterisierten Liebe entspringt uns die

Erkenntnis, daß etwas wahrhaft und unzweifelhaft gut ist, in dem ganzen Umfange, in dem wir einer

solchen fähig sind“. Brentano, Franz. Vom Ursprung Sittlicher Erkenntnis, p. 23-24.

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acerca dos fenômenos psíquicos de sentimento superiores e como tal

argumentação estabeleceu a evidência do fenômeno psíquico de preferência.

Brentano apresentou alguns exemplos que, analisados a partir da

descrição da relação intencional estruturada como relações psíquicas primárias

e secundárias (diploseenergie), explicitaram a evidência do fenômeno psíquico

de sentimento de amor caracterizado como justo. Vejamos um deles.

O principal exemplo apresentado por Brentano descreveu o amor

superior como desejo pelo conhecimento. Suas palavras foram as seguintes:

Temos, dizíamos, por natureza agrado em certos sabores e asco em outros. Ambas as coisas por puro instinto. Mas também por natureza sentimos um agrado na compreensão clara e um desagrado no erro e na ignorância. Todo homem, disse Aristóteles nas famosas palavras preliminares de sua Metafísica, deseja saber por natureza. Este apetite é um exemplo que nos serve muito bem. É um agrado superior deste tipo aquilo que constitui o análogo da evidência na esfera do juízo. Em nossa espécie, esse agrado é universal. Mas, se houvesse outra espécie que de modo oposto ao nosso, além de preferir coisa diferente de nós referentes às sensações, amasse o erro como tal e odiasse a intelecção, não nos limitaríamos a dizer tal qual se diz acerca das sensações que é questão de gosto e de gustibus non est disputandum. Mas, resolutamente declararíamos que semelhante amor e ódio são radicalmente viciosos e dita espécie odeia o que sem dúvida é bom e ama o que sem dúvida é mal em si mesmo. Mas, por que diríamos isto neste caso e no caso anterior diríamos o contrário se o apetite é igualmente forte? Muito simples. No primeiro, nas sensações, o apetite era uma propensão instintiva, mas no segundo, no caso do erro e da intelecção, o agrado natural é um amor superior caracterizado como justo. Assim, ao encontrá-lo em nós, observamos que seu objeto não apenas é amado e amável e que sua privação é odiada e odiável, mas também que aquele é digno de amor e este é digno de ódio, ou seja, aquele é bom e este é mau

348.

348

„Wir haben, sagten wir eben, von Natur ein Gefallen an gewissen Geschmäcken und einen

Widerwillen gegen andere; beides rein instinktiv. Wir haben aber auch von Natur ein Gefallen an

klarer Einsicht und ein Mißfallen an Irrtum und Unwissenheit. "Alle Menschen", sagt Aristoteles in

den schönen Eingangsworten zu seiner Metaphysik3"), "begehren von Natur nach dem Wissen". Dies

Begehren ist ein Beispiel, das uns dient. Es ist ein Gefallen von jener höheren Form, die das Analogon

ist von der Evidenz auf dem Gebiete des Urteils. In unserer Spezies ist es allgemein; würde es aber

eine andere Spezies geben, welche, wie sie in bezug auf Empfindungen anders als wir bevorzugt, im

Gegensatz zu uns den Irrtum als solchen liebte und die Einsicht haßte, so würden wir gewiß nicht so

wie dort sagen: das ist Geschmackssache, "de gustibus non est disputandum"; nein, wir würden hier

mit Entschiedenheit erklären, solches Lieben und Hassen sei grundverkehrt, die Spezies hasse, was

unzweifelhaft gut, und liebe, was unzweifelhaft schlecht sei in sich selbst. - Warum hier so und anders

dort, wo der Drang gleich mächtig ist? - Sehr einfach! Dort war der Drang ein instinktiver Trieb; hier

ist das natürliche Gefallen eine höhere, als richtig charakterisierte Liebe. Wir bemerken also, indem

wir sie in uns finden, daß ihr Objekt nicht bloß geliebt und liebbar und seine Privation und sein

Gegensatz gehaßt und haßbar sind, sondern auch, daß das eine liebenswert, das andere hassenswert,

also das eine gut, das andere schlecht ist“. Brentano, Franz. Vom Ursprung Sittlicher Erkenntnis, p.

22-23.

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Esse exemplo pode ser analisado da seguinte maneira. Toda

descrição do domínio afirmativo do sentimento (onde ocorre a valoração de

algo como Bom) mostra que ele consiste, por um lado, na justa atribuição de

amor à representação (quando ela é uma referência à “coisa” – ao existente) e,

por outro lado, na justa atribuição de ódio à representação (quando ela é uma

referência à “não coisa” – ao não existente)349. O exemplo citado explicitou que,

tratando-se do domínio afirmativo do sentimento, ocorre a valoração (ato de

amar ou odiar, enquanto objeto segundo) da compreensão (ato de representar

algo ou não algo, enquanto objeto primeiro) como boa ou má. Assim, tal

domínio consiste, por um lado, na justa atribuição de amor à representação

(compreensão de algo) e, por outro lado, como na justa atribuição de ódio à

representação (compreensão de “não algo”, ou seja, a incompreensão de algo).

Não é o caso de analisar cada um dos outros exemplos350. Importa

considerar o propósito de Brentano para com eles. Brentano pretendeu apontar

o fato de que, uma vez reconhecida com justa, a experiência do amor

caracterizado com justo se impunha de modo análogo ao juízo evidente.

Mesmo assim, no entanto, sua argumentação possuía, ainda, outro objetivo.

Brentano pretendeu evidenciar a pluralidade daquilo que pode ser conhecido

349

Especificaremos, no próximo ponto, que, no primeiro caso, a justa atribuição do amor à representação

do existente explicita a valoração do puro bem e, no segundo caso, a justa atribuição do ódio à

representação do não existente explicita a valoração do bem impuro (mesclado com o mau).

350 O segundo exemplo diz o seguinte: “assim como preferimos a compreensão ao amor, em termos gerais

também preferimos a alegria à tristeza, que não seja precisamente alegria de algo mau. Se houvesse

seres que tivessem preferências contrárias, com razão qualificaríamos essa atitude de viciosa. Aqui

também nosso ódio e nosso amor se caracterizam como justos”. [„Ein anderes Beispiel! Wir geben,

wie der Einsicht vor dem Irrtum, so, allgemein gesprochen, der Freude (wenn es nicht gerade eine

Freude am Schlechten ist) vor der Traurigkeit den Vorzug. Wenn es Wesen gäbe, welche hier

umgekehrt bevorzugten, so würden wir dies, und mit Recht, als ein verkehrtes Verhalten bezeichnen.

Es sind eben auch hier unsere Liebe und unser Haß als richtig charakterisiert“]. “Um terceiro caso é

apresentado pela atitude sentimental justa e caracterizada como justa. Assim como a justeza e a

evidência do juízo estão computadas entre o bom, pela mesma razão também estão a justeza e o

caráter superior da própria atividade sentimental. De modo contrário, o amor ao mal também é mau”.

[„Einen dritten Fall bietet die richtige und als richtig charakterisierte Gemütstätigkeit selbst. Wie die

Richtigkeit und Evidenz des Urteils, so zählt darum auch die Richtigkeit und der höhere Charakter der

Gemütstätigkeit selbst zu dem Guten, während die Liebe zum Schlechten selber schlecht ist“].

Finalmente, o quarto exemplo diz: “e, para não deixar intactas as mesmas experiências referentes à

esfera das representações, diremos que nelas se explicitam igualmente que todo representar é algo

bom em si mesmo e toda ampliação da vida de representação também aumenta o bom em nós mesmo,

independentemente de todo bom ou mau que pode estar enlaçado com ela”. [„Und um auch in bezug

auf das Gebiet des Vorstellens die entsprechenden Erfahrungen nicht unberührt zu lassen, so zeigt sich

hier auf dieselbe Weise, daß jedes Vorstellen in sich selbst etwas Gutes ist und daß mit jeder

Erweiterung des Vorstellungslebens - von allem, was sich von Gutem oder Schlechtem daran knüpfen

mag, abgesehen - das Gute in uns vermehrt wird“]. Brentano, Franz. Vom Ursprung Sittlicher

Erkenntnis, p. 23.

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como Bom, uma vez que a objetividade do conhecimento acerca do amor justo,

circunscrito à esfera psíquica poderia valorar uma infinidade de representações

(de “coisas” e “não coisas”) como boas ou más.

Para solucionar este problema Brentano apresentou a última virtude

da tautologia que envolvia a definição de Bem. Tratava-se da análise da

definição do Bem à luz do fenômeno psíquico de preferir. Em outras palavras,

Brentano tomou a tautologia envolvida na definição de Bem como modo de

expressão da atividade psíquica de escolha justa. Assim, ele mesmo indagou

pela atividade psíquica capaz de reconhecer aquilo que seria melhor. Vejamos

suas palavras:

São muitas, e não apenas uma, as coisa que conhecemos como boa desta maneira. Assim, permanece em pé a pergunta: o que é melhor entre o bom e, principalmente, entre o bom exequível? Qual é o bem prático supremo que, como fim, dará a medida para nossas ações? Primeiramente, perguntemos: quando uma coisa é melhor que outra e nós a conhecemos como melhor? O que significa „o melhor‟, de modo geral?

351

A resposta para essa questão, que indagou pelo que significa

„melhor‟, já estava preparada no âmbito dos pressupostos norteadores da

Psicologia descritiva. Tratava-se, de fato, da descrição de um fenômeno

psíquico de terceira classe, ou seja, a descrição da relação intencional

estruturada como relações psíquicas primárias e secundárias (diploseenergie).

Não se tratava ali, no entanto, do amor justo ou do ódio justo, enquanto

fenômenos que davam origem ao conceito de bem. Tratava-se,

especificamente, da preferência justa, ou seja, daquele fenômeno psíquico de

terceira classe a partir de onde se originava o conceito de melhor. Em outras

palavras, a resposta brentaniana para a questão acerca do que significava

„melhor‟ estabeleceu que „melhor‟ seria aquele fenômeno psíquico mais amado.

Isso, no entanto, não implicava que existisse qualquer tipo de intensidade no

ato de amor, tal como esse pressupunha no contexto da Psicologia do ponto de

vista empírico. Tratava-se, como esclareceu Brentano na citação a seguir, de

351

„Aber nicht eines, vieles ist, was wir so als gut erkennen. Und daher bleiben die Fragen: welches ist

unter dem Guten und insbesondere unter dem erreichbaren Guten das Bessere? und welches das

höchste praktische Gut, damit es als Zweck maßgebend werde für unser Handeln? Fragen wir also

zunächst: wann ist etwas besser als etwas anderes und wird als besser von uns erkannt? und was heißt

das überhaupt: das "Bessere"?“. Brentano, Franz. Vom Ursprung Sittlicher Erkenntnis, p. 23.

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um fenômeno psíquico complexo, cujo modo de referência intencional seria

universalmente conhecido:

Contudo, ainda em outro sentido muito diferente, devemos dizer que o melhor é o que, com razão, é mais amado, o que com razão agrada mais. O „mais‟ não se refere à relação de intensidade entre os atos, mas a uma espécie particular de fenômenos pertencentes à classe do agrado e desagrado: os fenômenos de preferência. Estes são atos de referência que todos conhecem em suas particularidades.

352

A preferência consistia na experiência psíquica a partir de onde se

conhece que uma representação (valorada como boa) é verdadeiramente e

indubitavelmente melhor que outra representação (valorada como boa ou má).

Retomemos a questão por outro ângulo.

A análise brentaniana propôs que, “[...] suposto o conhecimento

simples do bom e mau, parece – a analogia se impõe – que o conhecimento do

melhor brota de certos atos de preferência que se caracterizam como

justos”353. Assim, no entanto, por analogia ao fato de que o conhecimento de

algo verdadeiramente e indubitavelmente bom se originava da experiência de

amor caracterizado como justo, era preciso considerar o seguinte: Só seria

possível conhecer o melhor a partir da experiência da preferência caracterizada

como justa, “pois (relembra Brentano) tal como a atividade simples de agrado,

em parte a preferência também seria de índole inferior, ou seja, instintiva, e em

parte de índole superior e se caracterizaria como justa, analogamente aos

juízos evidentes”.354

A partir do exposto, resultou que: (a) a preferência justa era a

experiência empírica fundante do conhecimento do melhor; (b) o amor justo era

352

„Und doch muß man sagen, das Bessere sei dasjenige, was mit Recht mehr geliebt werde, was mit

Recht mehr gefalle; aber in ganz anderem Sinne. Das "mehr" bezieht sich nicht auf das

Intensitätsverhältnis zweier Akte, sondern auf eine besondere Spezies von Phänomenen, die zur

allgemeinen Klasse des Gefallens und Mißfallens gehört, nämlich auf die Phänomene des Vorziehens.

Es sind dies beziehende Akte, die in ihrer Eigentümlichkeit jedem aus der Erfahrung bekannt sind“.

Brentano, Franz. Vom Ursprung Sittlicher Erkenntnis, p. 25.

353 „Die einfache Erkenntnis als gut und schlecht vorausgesetzt, scheinen wir - die Analogie legt es nahe

diese Einsicht aus gewissen Akten des Vorziehens, die als richtig charakterisiert sind, zu schöpfen“.

Brentano, Franz. Vom Ursprung Sittlicher Erkenntnis, p. 25.

354 „Denn wie die einfache Betätigung des Gefallens, ist auch das Vorziehen teils niederer Art, d. h.

triebartig, teils höherer Art und, analog dem evidenten Urteil, als richtig ausgezeichnet“. Brentano,

Franz. Vom Ursprung Sittlicher Erkenntnis, p. 25.

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experiência empírica fundante do conhecimento do Bem; (c) e o juízo justo era

a experiência empírica fundante do conhecimento da Verdade.

Brentano sustentou a tese de que o fenômeno psíquico da justa

preferência diferia do fenômeno psíquico do amor justo, pois o primeiro daria

origem ao conceito de melhor e este último daria origem ao conceito de bem.

Por isso, sua análise precisou descrever os elementos ou as partes

constituintes do ato psíquico de preferir, ao menos naquilo em que esse ato se

diferenciava do amor justo. Para elucidar o problema que acabamos de

levantar, sigamos a análise brentaniana e “[...] passemos agora à questão:

como conhecemos que algo é realmente melhor?”355

Como fenômeno psíquico, a preferência é por si só a experiência da

escolha do melhor. Analisada, no entanto, a partir dos pressupostos da

Psicologia descritiva, a descrição do fenômeno psíquico de preferência

explicitou um critério de classificação. Esse critério foi elaborado a partir da

descrição da relação intencional estruturada como relações psíquicas primárias

e secundárias (diploseenergie) na valoração de algo como bom ou como mau.

Em outras palavras, enquanto um fenômeno psíquico de sentimento, o

fenômeno psíquico de preferência tinha por base a atividade psíquica de

valoração análoga àquela que dava origem ao conhecimento do bem e do mal,

no entanto existiam duas mudanças específicas que precisavam ser

analisadas. Vejamos como elas se davam a partir de uma comparação.

A descrição do domínio afirmativo do sentimento (onde ocorria a

valoração de algo como bom) mostrava que o bom se explicita em dois

domínios. Por um lado, ele se explicitava na justa atribuição de amor à

representação (quando ela é uma referência à “coisa” – ao existente). Por outro

lado, ele se explicitava na justa atribuição de ódio à representação (quando ela

era uma referência à “não coisa” – ao não existente)356. Aqui encontramos a

primeira diferença, pois, descrita a partir do fenômeno psíquico da preferência,

a justa atribuição do amor à representação do existente explicitava a valoração

355

„Und nun zur Frage: wie erkennen wir, daß etwas wirklich das Bessere sei?“. Brentano, Franz. Vom

Ursprung Sittlicher Erkenntnis, p. 25.

356 Especificaremos no próximo ponto que, no primeiro caso, a justa atribuição do amor à representação

do existente explicita a valoração do puro bem e, no segundo caso, a justa atribuição do ódio à

representação do não existente explicita a valoração do bem impuro (mesclado com o mau).

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do puro bem, ou seja, do melhor. No segundo caso, no entanto, a justa

atribuição do ódio à representação do não existente explicitava a valoração do

bem impuro (mesclado com o mau). Assim, Brentano pode sustentar que, em

relação ao puro bem, esse bem impuro sempre será pior.

Além disso, e de modo contrário, toda descrição do domínio negativo

do sentimento (onde ocorria a valoração de algo como mau) mostrava que o

mau também se explicitava em dois domínios. Por um lado, ele explicitava-se

na injusta atribuição de amor à representação (quando ela era uma referência à

“não coisa” – ao não existente). Por outro lado, ele explicitava-se e na injusta

atribuição de ódio à representação (quando ela era uma referência à “coisa” –

ao existente)357. Aqui encontramos a terceira diferença, pois, descrita a partir

do fenômeno psíquico da preferência, a atribuição injusta de ódio à

representação do existente explicitava a valoração do puro mal e, no segundo

caso, a injusta atribuição de ódio à representação do não existente explicitava

a valoração do mal impuro (mesclado com o bem).

Brentano sistematizou, então, esse critério de classificação do

melhor e do pior da seguinte maneira:

Para que um ato da atividade sentimental possa ser chamado puramente bom em si mesmo, é necessário que (1) ele seja justo e que (2) seja um ato de agrado (amor), e não de desagrado (ódio). Se falta uma ou outra condição, em certo sentido já é mau em si mesmo. A alegria no mal alheio é má pelo primeiro motivo e a dor ao contemplar a injustiça é má pelo segundo motivo.

De acordo com o

princípio da adição, se faltam ambas as condições, então é pior ainda.

358

A partir da argumentação de Brentano, podemos descrever a

seguinte escala de preferência:

1) No nível mais alto estaria a preferência baseada em um ato

psíquico justo e de amor (ou seja, um amor justo valorado como

357

Também especificaremos, no próximo ponto, que atribuição injusta de ódio à representação do

existente explicita a valoração do puro mau e, no segundo caso, a injusta atribuição de ódio à

representação do não existente explicita a valoração do mau impuro (mesclado com o bem).

358 „Damit ein Akt der Gemütstätigkeit in sich selbst rein gut zu nennen sei, dazu gehört: 1. daß er richtig

sei, 2. daß er ein Akt des Gefallens, nicht ein Akt des Mißfallens sei. Fehlt ihm das eine oder andere,

so ist er bereits in gewisser Beziehung in sich selbst schlecht; die Schadenfreude ist schlecht aus dem

ersten, der Schmerz beim Anblick der Ungerechtigkeit aus dem zweiten Grunde. Fehlt ihm beides, so

ist er noch schlechter, entsprechend dem Prinzip der Summierung, von welchem später im Vortrage

die Rede sein wird“. Brentano, Franz. Vom Ursprung Sittlicher Erkenntnis, p. 81.

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bem). Esse seria o fenômeno psíquico que originaria o conceito

de melhor, uma vez que consistiria no bem em si.

2) No segundo nível estaria a preferência baseada em um ato

psíquico justo e de ódio (ou seja, um ódio justo valorado como

bem).

3) No terceiro nível estaria a preferência baseada em um ato

psíquico injusto de amor (ou seja, um amor injusto valorado como

mal).

4) Finalmente, no último nível estaria a preferência baseada em um

ato psíquico injusto de ódio (ou seja, o ódio injusto valorado

como mal).

Brentano reconheceu, ainda, que sua proposta estava estruturada a

partir do princípio da adição. Assim, disse ele, “[...] segundo tal princípio, no

caso em que a atividade sentimental é boa, a bondade do ato cresce com sua

intensidade. Enquanto que, analogamente, a maldade do ato aumenta com sua

intensidade, nos casos em que o ato é puramente mau ou, ao menos, participa

do mal em alguma relação”359. O mesmo princípio regeria, também, os casos

em que a valoração do mau ou do bem estariam misturadas com a justeza ou

injusteza do ato psíquico. Desse modo, concluiu Brentano, “[...] no caso da

mescla, como é manifesto, a bondade e a maldade aumentam e diminuem

proporcionalmente. Assim, o excesso em uma ou outra parte deveria ser cada

vez maior, na medida em que a intensidade dos atos aumenta, e menor,

quando diminui”.360

Orientada pelo princípio da adição e analisada à luz dos

pressupostos da Psicologia descritiva, norteadores do critério de preferência do

359

„Demselben Prinzip entsprechend wächst in dem Falle, wo die Gemütstätigkeit gut ist, die Güte des

Aktes mit seiner Steigerung, während in analoger Weise in den Fällen, in welchen der Akt rein

schlecht ist oder wenigstens in irgendwelcher Beziehung an dem Schlechten teil hat, die

Schlechtigkeit des Aktes mit seiner Intensität zunimmt“. Brentano, Franz. Vom Ursprung Sittlicher

Erkenntnis, p. 81.

360 „Im Falle der Mischung wachsen und schwinden, offenbar einander einfach proportional, Güte und

Schlechtigkeit. Das auf der einen oder anderen Seite sich findende Plus muß so beim Wachsen der

Intensität des Aktes immer größer, bei ihrer Abnahme immer kleiner werden.“. Brentano, Franz. Vom

Ursprung Sittlicher Erkenntnis, p. 81.

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melhor, a seguinte consideração brentaniana sobre a clareza do ato psíquico

de preferir tornava-se coerente:

É claro que aqui se dá, antes de tudo, (1) o preferir algo bom e conhecido como bom a algo mau e conhecido como mau. Dá-se também (2) o caso de preferir a existência de algo conhecido como bom a sua não existência, ou a não existência de algo conhecido como mau a sua existência.

361

Mesmo que afirmasse a clareza do critério da preferência e o

estabelecesse como ponto fundamental para a instituição de uma teoria do

conhecimento moral, Brentano reconheceu que “[...] este caso compreende

dentro de si uma série de casos importantes. Por exemplo, o caso de preferir

algo puramente bom a esse bem mesclado com mau, ou o contrário, preferir

algo mau mesclado com o bem a esse mesmo mau puramente”362. Ocorre, no

entanto, que a análise dessas implicações extrapola os propósitos desta tese e

podem ser trabalhadas em outro projeto de pesquisa.

Podemos, finalmente, avançar para as considerações finais deste

trabalho, pois a exposição que fizemos acerca da descrição do fenômeno

psíquico de preferência constituiu os argumentos que sustentaram a hipótese

de nossa tese: a teoria brentaniana do conhecimento moral consistiu em uma

descrição da atividade psíquica capaz de fundamentar “[...] o fato de que

juntamente com a experiência da atividade sentimental estava unido

concomitantemente o conhecimento da bondade do objeto”363.

361

„Hierher gehört offenbar vor allem (1.) der Fall, wo wir etwas Gutes und als gut Erkanntes etwas

Schlechtem und als schlecht Erkanntem vorziehen. Dann aber (2.) ebenso der Fall, wo wir die

Existenz eines als gut Erkannten seiner Nichtexistenz vorziehen oder die Nichtexistenz eines als

schlecht Erkannten seiner Existenz vorziehen“. Brentano, Franz. Vom Ursprung Sittlicher Erkenntnis,

p. 25.

362 „Dieser Fall begreift eine Reihe von wichtigen Fällen unter sich; so den Fall, wo wir ein Gutes rein für

sich dem gleichen Guten mit Beimischung von Schlechtem, dagegen ein Schlechtes mit Beimischung

von Gutem diesem selben Schlechten rein für sich vorziehen“. Brentano, Franz. Vom Ursprung

Sittlicher Erkenntnis, p. 25.

363 „Daß mit der Erfahrung der als richtig charakterisierten Gemütstätigkeit auch die Erkenntnis der Güte

des Objekts immer zugleich gegeben ist“ Brentano, Franz. Vom Ursprung Sittlicher Erkenntnis, p. 79,

nota 28.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

As análises desenvolvidas nesta tese ocuparam-se prioritariamente

da oposição entre os trabalhos brentanianos produzidos por volta de 1874 e os

trabalhos produzidos por volta de 1889. No que se refere ao desenvolvimento

da filosofia brentaniana do psíquico, este critério adotado como estratégia de

análise permitiu sustentar uma tese pontual acerca da fundação da ética como

uma teoria de conhecimento moral. Nessa perspectiva, ainda que resulte

apenas na formalização de um projeto acadêmico de pesquisa, ainda que não

existam parâmetros para comparar a pesquisa realizada nesta tese com os

clássicos trabalhos de Chisholm e McAlister, em um aspecto específico esta

tese tem a singela virtude de ser mais precisa e cuidadosa que esses dois

famosos estudos sobre a ética brentaniana. A precisão da análise que

ressaltamos como virtude da nossa tese decorre de três elementos distintos,

mas que estão inter-relacionados: (a) a preocupação em ser pontual; (b) o

princípio da concessão ao autor; (c) o vínculo a uma tradição específica de

intérpretes das obras brentanianas.

O compromisso de restringir o âmbito da investigação a um

determinado contexto de época permitiu que a sua formulação seguisse as

orientações do próprio Brentano. A primeira orientação brentaniana definiu a

época da formulação da teoria do conhecimento moral. Além disso, a

autoproclamação brentaniana do ano de 1889, como ano da descoberta do

conhecimento acerca da moral, estava corroborada por Moore, um dos

fundadores da metaética. A relevância desse critério de análise estabeleceu-se

por oposição, quando comparamos nosso trabalho com os estudos clássicos,

ou de grande envergadura, acerca da ética brentaniana. Tal como foi apontado

recentemente por Liliana Albertazzi364, fundadora da linha de pesquisa história

do brentanismo, há uma carência de trabalhos específicos sobre o período

364

“Brentano‟s ethical theory, however, did not receive the clarification and the thorough elaboration of

its principles that it deserved. The same consideration applies to his writings on aesthetics, which

Mayer-Hillebrand collected and published in 1959 as Grundzüge der Ästhetik (Fundamentals of

Aestetics)”. Albertazzi, Liliana. Immanent realism: an introduction to Brentano, p. 300-301.

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definido pelo próprio autor como a época de formulação da teoria

conhecimento moral. A “antiga” tese doutoral de Linda McAlister (The

development of Franz Brentano‟s ethics, 1982.), a “recente” tese doutoral de

Sergio Granados (La ética de Franz Brentano, 1996.) ou a clássica

interpretação de Chisholm (Brentano and intrinsic value, 1986.), todos esses

trabalhos estão ocupados com a interpretação do resultado final da ética

brentaniana. Em outras palavras, trata-se de estudos de grande envergadura

ocupados em analisar o resultado final do desenvolvimento da filosofia do

psíquico, filosofia apresentada por Brentano como uma ética ou teoria do

conhecimento moral.

Orientados pelo critério da delimitação temporal, assumimos como

base da nossa tese as afirmações onde o próprio Brentano declarou ter

apresentado o fundamento para a teoria do conhecimento moral. Assim,

contrariando uma vertente de comentadores, seguimos a orientação de

Brentano e localizamos os conceitos revisados em sua primeira teoria. Essa

orientação permitiu explicitar textualmente que os compromissos éticos da obra

Psicologia do ponto de vista empírico consistiam em elaborar uma teoria do

sentimento moral. A realização dessa etapa justificou, ainda que de modo

negativo, a tese brentaniana que assumimos. Em outras palavras, ao

elucidarmos a teoria do sentimento moral delineada na Psicologia do ponto de

vista empírico, explicitamos com as palavras do próprio Brentano que sua

filosofia do psíquico não aceitava a proposta de uma teoria do conhecimento

moral em 1874. Além disso, pudemos reconhecer como plausível o fato de que

o rompimento do seu silêncio, tal como foi lembrado pelo próprio Brentano em

1889 na sociedade jurídica de Viena, anunciou que a nova filosofia do psíquico

seria chamada de Psicologia descritiva. Tornou-se coerente, também, o fato de

Brentano ter começado sua apresentação pelos resultados, pois a lógica, a

estética e a ética eram ramos, ou consequências, da sua nova filosofia do

psíquico. Em certo sentido, portanto, nós fizemos uso da Navalha de Occam,

ao mostrarmos que os fundamentos da teoria do conhecimento moral estavam

na vindoura Psicologia descritiva, tal como o próprio Brentano afirmou.

Ao seguirmos a tradição de comentadores indicada por Moore e

estabelecida por Chisholm, foi possível distinguir o duplo modo de interpretar

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os pares de conceitos que formaram a espinha dorsal da nossa tese: (a) objeto

intencional e relação intencional; (b) verdade como correspondência e verdade

como evidência. Além disso, Chisholm ofereceu-nos as ferramentas para

lidarmos temporalmente com esses pares de conceito, pois ele concebeu a

passagem da Psicologia do ponto de vista empírico para a Psicologia descritiva

como um desenvolvimento da filosofia brentaniana do psíquico. Certamente, a

linha de interpretação adotada por Chisholm e sua escola se consolidou com a

publicação do trabalho The Cambridge Companion to Brentano (2004). Mesmo

assim, no entanto, interpretações como a de Sanches Granados insistem em

interpretar o período das conferências de 1889 como uma época de indecisão

entre a filosofia brentaniana do psíquico de 1874 e o reísmo. Indiretamente,

mas contra as teses como a de Granados, nós explicitamos textualmente que a

solução para o problema da apreensão da justeza do sentimento foi

apresentada em 1889, pois suas raízes não se encontravam na teoria ética ou

na teoria do conhecimento, e sim na psicologia brentaniana concebida como

uma filosofia do psíquico. Explicitamos, portanto, como a teoria brentaniana

acerca da origem do conhecimento moral, inspirada na futura Psicologia

descritiva, rompeu com os pressupostos da Psicologia do ponto de vista

empírico norteadores da teoria do sentimento moral.

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