o desenho e sua interpretacao

Upload: karina-s

Post on 07-Jul-2018

216 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 8/19/2019 o Desenho e Sua Interpretacao

    1/7

    121

    O desenho e sua interpretação: quem sabe ler?

    Sonia Campos Magalhães

    Em seu artigo “Uma dificuldade da psicanálise de criança”,Colette Soler 1 lança uma questão aos psicanalistas que se ocupamdesta prática, ao afirmar que as crianças colocam à prova algo quediz respeito à ética da psicanálise. Ela vai levantar alguns pontosrelativos à ética da interpretação, relacionados tanto aos desenhosinfantis quanto à análise de não analfabetizados, não que pretendotrazer para discussão.

    Lembrando que a psicanálise opera sobre a letra do sintoma,tomado aí como escrita, traço, testemunho, condensador de gozo,Soler aponta que esta operação se faz pelo viés da decifração, oque supõe, portanto, associações transferenciais do sujeito.

    É um fato já consagrado a possibilidade de se estabelecera transferência na criança desde a mais tenra idade – o que nos permite afirmar que uma criança pode vir a ser um analisando.Portanto, a dificuldade apontada por Soler na clínica com criançasdiz respeito não à transferência, mas à interpretação.

    Duas questões são levantadaspela autora:

    Pode-se tratar o encadeamento dos jogos, oscomportamentos e, especialmente, os desenhos dacriança, como uma cadeia associativa?

  • 8/19/2019 o Desenho e Sua Interpretacao

    2/7

    122

    DESENHO: POR QUE NÃO?

    O que é que a criança coloca sobre a folha? Não estáexcluído que seja, na ocasião, a própria cifra de seugozo e que o desenho faça escrita.2

    Para a autora, a primeira das questões é uma suposição nomínimo necessária, sem a qual não haveria psicanálise de crianças pequenas, isto é, daquelas que, ainda que estejam presas, comotodos os sujeitos, na estrutura da palavra, não estão em condiçõesde associar, verbalmente, na transferência. A segunda questão

     prende-se especificamente à leitura dos desenhos e de seu uso.

    Minha proposta de trabalho vem situar-se em tornodestas questões, sobretudo no que diz respeito ao desenho e suainterpretação. Antes, porém, gostaria de lembrar, de acordo coma própria Soler, que muito já se tem trabalhado sobre a decifraçãode um sintoma na articulação da palavra, porém, sem avançar emrelação às palavras desenhadas. Para ela, será preciso classificaros desenhos em dois tipos: um deles é o desenho-escrita, escritaque é sintoma, que não demanda nada de ninguém, que nada quersaber, que é gozo; o outro, em oposição ao primeiro, é o desenho-

     palavra, um desenho que é sintoma, que demanda interpretaçãodo Outro, oferecendo-se à leitura da psicanálise.

    A autora lembra que a interpretação visa o que se inscreve por meio dos equívocos da linguagem, aquilo que Lacan chamou de“ao lado da enunciação”. Os equívocos, homofônicos, gramaticaisou lógicos, não existem senão em função da escrita. Como, sema escrita, jogar com a diferença entre cálice e cale-se, entre sem e cem, ou com a diferença entre aço e asso e entre possuire posso ir ?

    Freud faz coincidir o conceito de latência com a idadeescolar, porque a escrita tem uma incidência sobre a palavra; porassim dizer, a escrita instala o recalque, o que  Soler vai chamarde segundo tempo da efetuação da estrutura, fazendo-o coincidircom o conceito de castração. Devemos aqui lembrar que se háo segundo tempo, é porque há o primeiro, o que Freud apontacomo  fort/da. A partir daí, a questão que se coloca é como seelaborar respostas para o problema crucial da análise dos não

  • 8/19/2019 o Desenho e Sua Interpretacao

    3/7

    123

    O DESENHO E SUA INTERPRETAÇÃO

    analfabetizados, daqueles que, como as crianças pequenas, aindanão tiveram acesso à escrita.

    Para trabalhar a primeira questão, proponho reformulá-laem outra pergunta: seria a fala iluminista?

    Se partirmos de Lacan,3 que afirma ser a fala obscurantista, podemos responder a esta primeira questão de forma afirmativa, ouseja, dizendo que o desenho, tal como a fala, é um encadeamentoassociativo de alíngua que admite interpretação. A dificuldade

    apontada pela autora nesta primeira questão só se coloca namedida em que restringimos a cadeia significante à fala articulada.Assim como se pode propor uma fala-gozo em oposição à fala-significante, poder-se-ia, também, fazer uma oposição entredesenho-escrita e desenho-palavra.

    A segunda questão de Soler nos coloca diante do mesmo problema, e a resposta mais imediata é que a criança, ao desenhar,coloca sobre a folha de papel uma cifra, um signo, o que nos faria,talvez, pensar que o significante falado seria mais claro e que, de preferência ao significante desenhado, elucidaria o sentido.

    Mas não poderíamos dizer que é um vício mental supor quehá sentido do sentido? Lacan já indicou que o máximo de sentido,ou seja, a dimensão mais extrema do sentido, é o enigma. Se, emvez de perseguirmos o sentido, perseguíssemos o signo, então odesenho, de preferência à fala, poderia ser considerado materialsignificante encadeado.

    A estrutura se escreve melhor no desenho do que na fala – éo que se poderia dizer, ou, melhor dizendo ela se escreve de modotão obscuro quanto na fala. Não é difícil fazer a demonstração distose partirmos de uma definição de Lacan segundo a qual a estruturaé de furo, de falta tomada como objeto, tal como encontramos

    no caso específico da histeria. Aí, o sujeito toma a falta comoobjeto que satisfaz o desejo, ou seja, toma o nada como objetode satisfação e, na medida em que este não o satisfaz, mantém odesejo insatisfeito.

  • 8/19/2019 o Desenho e Sua Interpretacao

    4/7

    124

    DESENHO: POR QUE NÃO?

    Podemos, no desenho, ler a falta? Quem, então, saberálê-lo? Freud provou que sabia. Ele pôde ler um desenho comoestrutura de linguagem. É o que ele fez, por exemplo, quandoleu o traço que Hans quis acrescentar ao desenho da girafa comosignificante do falo.4

     Desenhei uma girafa para Hans, que mais

    tarde esteve em Schonbrunn diversas vezes.

     Ele me disse: “Desenhe também o pipi

    dela”. “Desenhe você mesmo”, respondi;

    ao que ele acrescentou essa linha à minha

     figura.5

    Sabemos hoje, a partir do conceito de significanteassemântico, que, embora a cadeia significante prometa umsentido, este não passa de uma promessa. Podemos considerar aescrita de Joyce tão enigmática quanto o desenho. Pela definiçãode enigma não diríamos, no entanto, que é uma escrita sem sentido;ao contrário, é o cúmulo do sentido.

    Lacan, com Joyce, vai rearticular sua teoria do sintoma.6

    Ao situar o sintoma como função de uma letra, definindo-a pelaidentidade de si a si, Lacan vai falar não mais de uma funçãode metáfora que fixa o significado ao significante, mas de umafunção da letra que fixa o gozo sem o Outro. Esta teoria, daforaclusão generalizada, é trazida por Colette Soler em seu artigo“A experiência enigmática do psicótico – De Schreber a Joyce”,7

    dando margem a avanços nas colocações do seu artigo de 1991.

  • 8/19/2019 o Desenho e Sua Interpretacao

    5/7

    125

    O DESENHO E SUA INTERPRETAÇÃO

    Desse modo, podemos dizer que o equívoco é determinado pelo fato de que a linguagem não pode nomear tudo, de que hácoisas indizíveis. Há equívoco lá onde não pode haver relação biunívoca. 8

     No que se refere propriamente à questão sobre os nãoanalfabetizados e às suas possibilidades de ter acesso à análise, poderíamos dizer que eles têm condições de vir a se analisar. Oanalfabetismo não joga no mesmo nível da estrutura. Digamos que

    há um primeiro nível infraestrutural, primário, no qual se joga oequívoco, e que se poderia chamar “analfabetismo generalizado”,o que Lacan chamou debilidade mental de todo ser falante, namedida em que há, em cada falasser  ( parlêtre), alguma recusa desaber, algum não querer saber, o nível em que se situa o escrito.

    Há um outro nível, e este poderia ser chamado superestrutural,habitualmente chamado secundário, e que depende do fato daescrita, do acesso à escolaridade, mas que não impede o acessoà psicanálise.

    Se o não analfabetizado tem direito de acesso ao lapso, aochiste, ao sonho e ao sintoma, isto quer dizer que ele tem direitode acesso à experiência analítica, do mesmo modo que as crianças pequenas não escolarizadas. Para tanto basta que o analista, faceaos brinquedos, à fala e aos desenhos infantis, saiba como operar,mantendo-se no eixo da ética psicanalítica.

    Notas 

    1 C. Soler, “Uma di ficuldade da psicanálise de criança”, em

     Artigos clínicos, pp. 104-107.

     2 Ibidem, p. 105.

    3 J. Lacan, Le moment de conclure, pp.1- 6 (Seminário inédito,tradução de Jairo Gerbase, Campo Psicanalítico de Salvador – Bahia).

  • 8/19/2019 o Desenho e Sua Interpretacao

    6/7

    126

    DESENHO: POR QUE NÃO?

     4 S. Freud, “Análise de uma fobia em um menino de cincoanos”, Obras completas, vol. X, pp. 15-154.

     5 Ibidem, p. 23.

     6 J. Lacan, O Seminário, Livro 23: O Sinthoma.

     7 C. Soler, “L’Expérience énigmatique du psychotique, deSchreber à Joyce”, em  La cause freudienne – revue de psychanalyse, fev. 1993, pp. 50-59.

     8 Segundo Gerbase, em “Teoria generalizada do sintoma – aeficácia da metáfora paterna” ( Imagem Rainha, EBP, p. 135),o que na teoria dos conjuntos se chama relação biunívocaé a relação na qual a todo ponto de uma figura correspondeum ponto na outra. O conceito de biunivocidade se aplica, por exemplo, quando uma criança conta em seus dedos asfigurinhas de um álbum; esta operação lhe permite conhecer,reduplicativamente, que há do outro lado. Seus dedos nãosão as figurinhas, nem estas são os seus dedos, mas há algoque liga cada um ao outro e que os identifica. A experiênciaanalítica incide sobre uma relação fundamental – a relação

    sexual – na qual não pode haver biunivocidade porque nãoexiste o elemento significante nos dois conjuntos, do homem e da mulher , que entrem em relação. Há o significante dofalo para representar o conjunto homem, mas o conjuntomulher  não pode ser representado senão pelo conjunto vazio(N. da A.).

    Referências bibliográficas

    FREUD, Sigmund. Análise de uma fobia em um menino decinco anos.  Ed. standard brasileira das obras completas deSigmund Freud , vol. X. Rio de Janeiro: Imago, 1980.

    GERBASE, Jairo. Teoria generalizada do sintoma – a eficáciada metáfora paterna. Imagem Rainha, EBP. Rio de Janeiro:Sette Letras, 1995.

  • 8/19/2019 o Desenho e Sua Interpretacao

    7/7

    127

    O DESENHO E SUA INTERPRETAÇÃO

    LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 23, O Sinthoma, Rio deJaneiro: Jorge Zahar, 2007.

    . A tagarelice (1a aula, 15.11.77). O Seminário, Livro 25: O momento de concluir. Inédito. Salvador: CampoPsicanalítico de Salvador, 2000, tradução de Jairo Gerbase.

    SOLER, Colette. Uma dificuldade da psicanálise de criança. Artigos clínicos. Salvador: Fator, 1991. p. 104-107.

    . L’Expérience énigmatique du psychotique,de Schreber à Joyce. La Cause freudienne – Revue de psychanalyse. Paris: ECF, fevereiro de 1993.

    . Le désir du psychanalyste. Où est la différence?. Lalettre mensuelle, n. 131. Paris: ECF, julho de 1994.