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O Democárcere: a breve experiência de ruptura da tradição de silenciamento na prisão 1 Gustavo Lucas Higa (Universidade de São Paulo USP) São Paulo 2015 1 ANDHEP, GT.10, I Seminário Internacional de Pesquisa em Prisão.

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O Democárcere: a breve experiência de ruptura da tradição

de silenciamento na prisão1

Gustavo Lucas Higa (Universidade de São Paulo – USP)

São Paulo

2015

1 ANDHEP, GT.10, I Seminário Internacional de Pesquisa em Prisão.

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1) Introdução

A década de 1980 foi um período de mudanças na configuração do sistema

político no Brasil, momento em que o processo de transição democrática teve início. As

expectativas de mudança eram altas, assim como eram muitas as iniciativas para situar

as instituições no novo modelo politico em processo de consolidação, em busca do

desmonte do regime anterior.

A prisão, mecanismo de controle social utilizado, em grande medida, como

principal respaldo para as decisões do regime militar, também estava na agenda de

reformas. Foi nesse momento que se buscou implantar a chamada Politica de

Humanização dos Presídios, que, em geral, procurava situar a prisão na democracia

nascente e desmontar a tradição de arbitrariedades e desassistência governamental

nesses espaços. Um fator foi decisivo para os avanços – ou tentativas de avanços – na

direção da humanização penal: a eleição de André Franco Montoro como governador do

Estado de São Paulo e José Carlos Dias como Secretário de Justiça.

Em 1983 foi eleito André Franco Montoro como governador de São Paulo,

primeiro candidato eleito por voto direto, membro do Partido do Movimento

Democrático Brasileiro (PMDB), herdeiro do Movimento Democrático Brasileiro

(MDB), único partido de oposição que o regime militar permitiu existir legalmente.

Montoro tinha amplo apoio do clero progressista, liderado por D. Paulo Evaristo Arns,

assim como de setores intelectuais e políticos de esquerda, que participaram ativamente

das propostas e deliberações para que o projeto da democratização se colocasse em

movimento (VIEIRA, 2005).

A Secretaria de Justiça foi exercida por José Carlos Dias, advogado com

experiência junto à Comissão de Justiça e Paz, que teve papel importante na defesa de

presos políticos no regime anterior. Dias assumiu um cargo extremamente sensível e

cheio de empecilhos, sobretudo em um momento de transição democrática.

Nessa gestão a política de humanização nos presídios foi pensada e aplicada em

São Paulo. Foi um momento de grande investimento em reformas e criação de novas

propostas no sistema penitenciário, pois a situação era politicamente propícia e

favorável para tanto; mas, como esperado, as tentativas de reforma não ocorreram sem

resistência: logo após o inicio do processo humanizador da pena correram reações

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contrárias de alguns setores sociais, principalmente por parte de políticos e as equipes

administrativas dos presídios, alegando que as reformas de “abertura” seriam

prejudiciais para a segurança e disciplina.

Em geral as propostas da Secretaria de Justiça visavam enquadrar a situação

prisional aos cuidados da lei e dos valores democráticos na perspectiva dos direitos

humanos. A abertura de canais de comunicação e representação direta para os presos foi

sempre uma pauta importante, mas não era discutida e planejada sem que reações

contrárias ocorressem, tanto por parte da administração e, curiosamente, conforme

veremos, também por parte de alguns presos.

2) O Democárcere

Uma das propostas de abertura foi a criação de um jornal organizado e escrito

por presos, que circularia dentro e fora dos muros da Penitenciária do Estado, com

patrocínio da Secretaria de Justiça. Analisaremos aqui esse jornal chamado O

Democárcere, que é um documento interessante em muitos aspectos, sobretudo a

maneira como um grupo de presos selecionou temas que para eles eram relevantes para

exposição.

Foi no fim da gestão de José Carlos Dias, em 1986, que um grupo de

aproximadamente vinte detentos teve a iniciativa de produzir e publicar um jornal

destinado à população da Penitenciária do Estado. A conjuntura política era favorável,

apesar de frágil e instável, para que essa demanda fosse atendida e logo se formou uma

equipe administrativa para a produção do jornal2.

Essa iniciativa foi na contra mão da tradição de silenciamento e ausência de

visibilidade pública que a prisão mantinha, pois a proposta abriu um canal de

comunicação e expressão que deu “voz livre” aos presos, que se faziam conhecer

publicamente e expunham suas impressões do mundo que os cercava abordando

problemas e possíveis soluções.

2 A gestão do jornal era composta por: Abner Guimarães (Editor), Henrique Moreno (Diretor de

Redação), J.P.S de Almeida (Redator), Orlando Moreno (Redator), Valter Aparecido Bruschi (Redator),

Ricardo de Souza (Diagramação), Suzana de Barros Freire (Diagramação), Manuel Monteagudo Poza

(Diagramação), Milton Luciano (Relações Públicas) e José Luiz da Costa (Datilógrafo). Os colaborados

eram Simeão Lemos, Reny Focheto, Jóca, Roberto de Araújo, Ioshiro Ibusuki, José Isnard Martins, José

Alves, Pastor Cyro Coning, Professor J.M Junqueira, Paulo Rogério, Ivanânia Bruschi, Raul Goliffmman

e Guriatã.

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Muitas foram as reações contrárias a qualquer política de abertura e

humanização no sistema prisional. A justificativa era de que as “liberdades”, “regalias”

e “afrouxamento punitivo” eram inadmissíveis para “bandidos”, e, ainda, que as

reformas propiciariam o incentivo, fortalecimento e estruturação ainda maior da

criminalidade. Esse período gerou debates acalorados e muitos se manifestaram contra

as medidas de humanização. O Democárcere contou apenas com o primeiro e único

volume, sendo encerrado logo depois, provavelmente como uma consequência dessa

disputa.

O conteúdo dos artigos expressava preocupações com o dia a dia da prisão

vivido pelos detentos, que na ocasião eram cerca de 1.300 (GOES, 2004). Os temas

“intramuros” eram relativos à situação da prisão no Brasil, precariedade do atendimento

médico, ausência de esportes, a questão da ociosidade, a manutenção da assistência

religiosa, conscientização anti-tabagismo e incentivo a união dos presos visando apoio e

proteção mutua. Os assuntos referentes às questões “extramuros” eram informações

sobre campeonato de futebol, questão da criança e adolescente na criminalidade e a

questão da mulher na sociedade. Veremos com mais detalhe esses itens.

3) A proposta do jornal e a “voz” por direitos

O Democárcere tinha como proposta constituir um canal de comunicação para

veicular ideias, demandas, informações e, acima de tudo, a conscientização dos presos

como sujeitos portadores de direitos. O próprio nome do jornal demonstrava sua

orientação e o situava no momento político da época.

Amigo leitor, o nosso jornal tem objetivo construir, e

construir também é nosso Lema. Sim, construir. Construir

um canal para veicular nossas ideias, a fim de podermos

demonstrar à Sociedade que nos segregou no cárcere, que

somos seres humanos e sonhamos também com um mundo

melhor, com uma sociedade justa, que temos as mesmas

aspirações, como todos os homens, e que desejamos ser

livres (O Democárcere, 1986, p.2, “Editorial”).

No conteúdo das notícias em geral, existe uma preocupação em desmistificar a

imagem do preso como um pária sem salvação e um monstro anormal, imagem que

diziam ter sido modelada pela própria sociedade. A proposta também foi a de mostrar o

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caráter humano do erro e da possível remissão do mesmo; apresentar essa ideia não só

para a sociedade fora da prisão, mas principalmente para a sociedade dentro dela.

Nosso jornal tem uma missão muito importante: construir

uma nova imagem do elemento preso, mostrar nossa face

verdadeira, que não é a do réprobo, a do pária, a dos

homens sem futuro, sem consciência, mas dos elementos

que sempre pagam muito caro pelos erros cometidos

(Idem).

(...) esperança de sermos compreendidos em nossos

propósitos de bem informar nossos irmãos sofredores que

têm recebido tantas cargas de todos os setores da imprensa

“parda”, que só se preocupa em assinalar o lado negativo

do delinquente, fazendo com que nossa imagem seja

sempre a figura distorcida do anti-social (...) (O

Democárcere, 1986, p.2, “Injeção de Ânimo”).

Um mecanismo muito utilizado para que essa imagem fosse difundida era a

imprensa, principalmente por meio do jornal e rádio. Em vários momentos

acompanhamos nos artigos publicados no Democárcere a tentativa de expor uma defesa

frente a essa imprensa que o tempo todo procurava demonizar os detentos, assim como

desqualificar e, além, deslegitimar a política de humanização que vinha ocorrendo.

Não somos o dono da verdade e nem pretendemos ser,

todavia, aspiramos poder apresentar a toda sociedade, uma

análise feita no vasto mundo do crime, onde a verdade será

encontrada por você, leitor que está habituado a receber

informações de fontes ligadas diretamente ao problema

(...) (idem, p.4, “Mundo do Crime”).

A população carcerária revoltou-se por seus direitos, em processo de

consolidação, estarem sendo paulatinamente dificultados e muitas vezes destituídos. Por

esse motivo era muito importante desconstruir essa imagem dentro e fora dos muros da

prisão, fazendo uso do espaço, inédito até então, para veicular o ponto de vista dos

internos.

Por que somos sempre lembrados pelo mal que praticamos

no passado, ninguém se importa ou procura saber como é

processada a nossa reeducação dentro dos presídios. Quem

não errou uma vez na vida? Quem nunca cometeu algum

tipo de contravenção? Quem nunca infringiu uma norma

legal? Quem errou não merece redenção? A justiça pode

servir de instrumento da vingança pública? Não! Será que

um indivíduo terá de pagar pelo resto da vida por um erro

cometido? Já não bastam os anos vividos na prisão? –

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Sim. Esta deveria ser a resposta à questão. Será que somos

lembrados só nos piores momentos? Será que só servimos

de joguetes nas mãos de maus políticos e radialistas

manipuladores da opinião pública? (O Democárcere,

1986, p.4, “Um grito de alerta”).

4) O dia-a-dia na prisão

Sobre a religião

A religião foi um tema abordado nas páginas do jornal. Os textos relatavam a

importância da presença regular da religião cristã na prisão, assim como a conscientização

imediata dos presos de que cristo em breve voltaria, e, portanto, era necessário frequentar os

cultos religiosos buscando a salvação. A notícia indica que pratica religiosa nos presídios estava

em baixa, não apenas pela pouca adesão, mas também pela ausência de incentivo e investimento

por parte da administração penitenciária. A demanda clamava por uma assistência religiosa

imediata, com a justificativa de que era um fator fundamental para a reabilitação, transformação

e libertação do homem preso.

O DEMOCARCERE faz um apelo às dignas autoridades

deste Instituto Penal , no sentido de que se examine a

questão do funcionamento regular das atividades religiosas

tradicionais. (...)

Sugerimos que as duas diretorias a de Reabilitação e a de

Segurança, harmonizem-se no sentido de viabilizar os

lugares e os horários destinados a cada forma de prestação

de culto a Deus (O Democárcere, 1986, p.7, “A propósito

dos cultos”).

Sobre o fumo

Uma das preocupações presentes era a questão as saúde do preso. Sabia-se que o

atendimento hospitalar era precário, muitas vezes sequer existente. A questão do

tabagismo era marcante na prisão: a maioria dos internos fumavam cigarros. Um dos

textos tem caráter informativo sobre o caráter nocivo do cigarro e suas consequências

para a saúde tanto do fumante quanto aos que ficam ao redor.

A bem da verdade, já ficou bem claro que o hábito de

fumar é nocivo à saúde, já amplamente demonstrado

através de muitas pesquisas mundiais. Mas, infelizmente e

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lamentavelmente, o povo em sua maioria continua

fumando. (...)

Prezados leitores, esperamos haver dado nossa humilde

contribuição no combate ao tabagismo. Aceitamos cartas e

sugestões para esse assunto, que considero de grande

importância para a nossa saúde e daqueles que estão ao

nosso redor (idem, p.10, “Fumar: um vício ou um

hábito?”).

Sobre o trabalho e a ociosidade

O trabalho também foi tema presente no jornal. Em linhas gerais, argumenta-se a

importância de tal atividade na penitenciária, não só o trabalho em si, mas as formas e

as condições do mesmo. O maior problema, além da ociosidade, seria a situação

financeira do detento, que em geral é muito precária e não pode sustentar minimamente

os familiares que estão fora da prisão, o que torna a situação desesperadora, pois esses

mesmos familiares com parcos recursos que auxiliam o parente preso financeiramente.

O apelo por uma atividade minimamente remunerada é feito para que o preso possa

sustentar-se sem ajuda externa, fazendo valer dessa forma um direito.

Tendo observado o problema do trabalho existente nesta

Casa e sentindo na pele o angustioso clima de ociosidade

que reina no ambiente, decidimos escrever este artigo para

externar uma ideia que não é apenas nossa, mas de todos:

a falta de trabalho para os internos (idem, p.14, “Trabalho

para todos”).

Um dos maiores problemas dessa Penitenciária e, pelo que

nos consta, de todo o Sistema, é que nessa década as

prisões se transformaram num “Paraíso de Ociosos”, como

qualquer burro sabe, é um inferno (idem, p.15, “Critica”).

Sobre o esporte

Uma coluna interessante presente no jornal trata de modalidades esportivas,

tanto dentro quanto fora da prisão. As que se referem ao esporte fora da prisão são

noticias gerais do andamento do campeonato de futebol como times, classificação no

campeonato, número de gols, atletas e etc. Sobre o esporte dentro da prisão, existe a

demanda por mais atividades esportivas além do futebol, como por exemplo, vôlei,

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basquete, corrida de fundo, xadrez, dama e etc. Dessa forma, a dinâmica intramuros

seria melhorada e a ociosidade seria combatida (idem, p.11, “Futebol: prato único?”).

5) Em defesa da humanização e das Comissões de Solidariedade

O principal símbolo das políticas de humanização dos presídios foi a experiência

inédita de implementação de um canal de comunicação e representação oficial de presos

no sistema penitenciário paulista; essa instituição foi chamada de Comissões de

Solidariedade, que começaram a operar em março de 1983.

De acordo com o estatuto de fundação, as comissões funcionavam, em linhas

gerais, da seguinte forma: um preso representante seria eleito por voto direto partindo

dos demais presos, mas somente se apresentasse bom comportamento e disposição de

cooperação com a administração – uma espécie de “ficha limpa”. Ele seria o porta-voz

dos presos e possuiria algumas responsabilidades como representá-los e transitar com

maior flexibilidade pelas instalações do presídio com a finalidade de averiguar a

situação de todas as pessoas, lugares, higiene, condições de habitação e solicitar

transferências tanto de detentos quanto de funcionários, tudo encaminhado diretamente

para Secretaria de Justiça.

Após algumas semanas, uma parcela do setor político iniciou reações contrárias à

existência das comissões e ao programa “humanizador” como um todo, em uma

tentativa de constranger perante a sociedade aqueles que defendiam a aplicação dessa

política, sendo a imprensa o suporte para intensificar as disputas (GOES, 2004, p.39).

A justificativa para a obstrução de tal programa era de que as “liberdades” e

“regalias” afrouxavam a rigidez penal e estimulavam a organização interna de facções

criminosas. Gerou-se um rumor que articulou de forma conflituosa os envolvidos: a

denúncia da organização Serpentes Negras, que, segundo o delator, era um grupo

criminoso organizado que se infiltrou nas Comissões de Solidariedade e agia por meio

delas. O objetivo de tal facção seria o controle do sistema penitenciário paulista

(ALVAREZ; SALLA; DIAS; HIGA, 2014).

O ponto forte da acusação foi o vínculo entre as comissões e as “serpentes”, com a

proposta de deslegitimar as políticas de humanização. A população carcerária

imediatamente revoltou-se com tal acusação, alegando que era uma clara tentativa de

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acabar com os avanços que tinham conseguido com o programa no ponto de vista dos

direitos.

Em 84 em uma atitude claramente política, usando a

penitenciária como arma de conspiração, alguns membros

do judiciário, muitas outras autoridades e também

componentes da imprensa, querendo desestabilizar a

política humanística e reformadora que se estabelece em

todo o país a partir de 82, teceram e engendraram severas

críticas ao Executivo. Denunciando que, por conivência do

Executivo, se estavam formando na Penitenciária do

Estado varias organizações para fins criminosos. Denúncia

esta maquinada diabolicamente e jamais comprovada

pelos seus pretenciosos denunciantes (idem, p.5, “Quem

está se beneficiando com o problema carcerário”).

Não entraremos em detalhes sobre o caso das “serpentes”, mas é importante ter em

mente essa situação conflituosa de “troca de acusações” para situar o momento em que

o jornal estava circulando, pois, lembremos, ele era um canal de comunicação e

expressão dos presos, que manifestavam suas posições acerca da realidade do cárcere e,

sem dúvida, esse evento agravou a instabilidade da prisão. Tendo essa situação em

mente, continuemos.

O atual sistema penitenciário tem sido abalado pela

avalanche de notícias negativas acerca de certos crimes

bárbaros perpetrados contra a sociedade por alguns

maníacos e esses crimes tem sido causa de uma série de

generalizações por parte dos defensores da própria moral

pública (idem, p.4, “Mundo do Crime”).

Uma das matérias publicadas abordou justamente a situação das Comissões de

Solidariedade, cobrindo o evento da segunda eleição de representantes na Penitenciária

do Estado. O texto demonstra a importância desse programa implantado por José Carlos

Dias e seus benefícios, como mediar e as relações entre os presos e entre a

administração, representação direta, canalização e exposição de demandas e etc.

Algumas passagens do texto deixam evidente que se tratava de uma tentativa de

defesa das duras críticas que o programa vinha recebendo, como podemos notar no

próprio título da matéria: “Comissão de Solidariedade, um mal que veio para o bem. As

criticas, as conquistas e as experiências de um grupo que esquece de si para lutar pelos

interesses da massa carcerária” (idem, p.8, “Solidariedade”).

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A política de humanização dos presídios, implantada pelo

Excelentíssimo Governador do Estado, Prof. André Franco

Montoro, e também pelo Secretário de Justiça, Dr, José

Carlos Dias, está mostrando que qualquer ser humano,

desde que apoiado e respeitado por pessoas idôneas, tem

condições de mostrar seu lado bom, tem condições de

progredir e tem condições de ser útil a qualquer sociedade

(idem, p.5, “Chega de piche”).

6) O mundo do crime

A criança e adolescente no crime

Abordando o tema dos jovens em conflito com a lei, o jornal problematiza as

estratégias do poder público para lidar com esse problema, e mais, acusa esse mesmo

poder de negligência e responsabiliza a sociedade por esse abandono, sendo o menor

abandonado um fruto dessa mesma sociedade.

Nos dias que correm, o problema do menor abandonado

vem-se constituindo em um dos mais terríveis espinhos

encravados na moral de cada um, especialmente na moral

política do nosso País e dos nossos governantes. (...)

O PROBLEMA DO MENOR NÃO É UM PROBLEMA

DO MENOR, é problema de todos aqueles que se

consideram adultos, e, em última análise, um problema

nosso, de todos os brasileiros responsáveis (idem, p.6, “O

menor nosso de cada dia”).

Continuam ainda que, na grande maioria das vezes, esse abandono se reflete nas

escolhas e trajetória de vida do jovem, pois, sem muitas oportunidades de amparo, acaba

tendo nas instituições penais a experiência de aprendizado e iniciação no mundo do

crime como um meio de vida e sobrevivência. Todas as oportunidades de acesso e

inclusão social – como ensino, lazer, cultura e etc – foram negadas, exceto a

“oportunidade” de inclusão no sistema penal.

(...) “presidiário” que um dia foi menor, quase sempre

desamparado e conhece o quanto são boas as “escolas

Febens” que dão o pré-ensino aos bandidos-mirins que

fatalmente virão atingir o último grau do aprendizado nas

penitenciárias do Brasil (idem, p.6, “Menor: um problema

insolúvel?”).

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Uma vez que a importância do tema sido apresentada, concluem a necessidade

imediata de atenção ao problema por parte da sociedade e principalmente por parte dos

dirigentes governamentais.

Entra Governo, sai Governo, mas a política a tal respeito

continua a mesma: mais presidio, mais presídio, mas

nenhum governante parece ter coragem de meter seu

machado na raiz do problema, isto é, procurar investir no

menor abandonado, no menor carente, no menor

delinquente e em todos os demais que vivem sob os mais

diversos rótulos congêneres. (...)

Nós acreditamos que a culpa é de todos. Não devemos

esquecer-nos de que a criança é, ainda, a nossa moeda

mais forte (idem, p.6, “A criança ainda é nossa moeda

mais forte”).

Sobre a mulher

Analisando a situação da mulher no sistema penitenciário chega-se à conclusão

da precariedade desse setor até então completamente ignorado. A notícia aborda a

desigualdade de oportunidades, machismo, diferença de tratamento e acesso a direitos,

como por exemplo, receber visita conjugal.

Segundo a reportagem, nas penitenciárias femininas as visitas íntimas seriam

proibidas, tendo como justificativa a possibilidade de gravidez e, uma vez que de fato

ocorra, a administração penitenciária não teria como lidar com a situação da gestante e

do recém-nascido no espaço da prisão. Para sanar esse tratamento desigual, o jornal se

posiciona argumentando que a administração penitenciária deve tratar de forma

igualitária, homens e mulheres, dando apoio para as visitas conjugais e distribuindo

anticoncepcionais (idem, p. 13, “A mulher no sistema”). Muito mais do que uma análise

ou denúncia, a notícia pretende abrir espaço para iniciar uma discussão ampla sobre a

mulher na prisão.

Nesta nossa 1ª Edição procuramos nos lembrar do que de

mais importante deveríamos colher e atribuir espaço em

nosso Jornal.

Partindo desse princípio dividimos o Jornal em 16

páginas, atribuindo a VOCÊ MULHER, sem distinção de

raça, cor, credo, estado civil, partido político, classe social,

exercício ou nível cultural, que queira participar conosco

nesse trabalho, que pretendemos levar avante com toda a

seriedade, enviando-nos suas opiniões para serem

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publicadas, sejam elas críticas, de sugestões, ou

simplesmente falando. Todas serão bem recebidas por nós,

sem nos importarmos com a função que você ocupe na

Sociedade (idem, p. 13, “Mulher”).

Por fim a equipe saúda a deputada Ruth Escobar, intitulada “a primeira Dama do

Teatro Brasileiro”. A deputada vinha realizando projetos de disseminação cultural na

prisão por meio do teatro e era vista pelos detentos como um dos maiores símbolos

femininos da luta pela igualdade da mulher (idem, p.13, “Ruth Escobar”).

Em defesa da união

A característica mais marcante do conteúdo do jornal é uma espécie de apelo

para a tomada de consciência que orientaria os presos a se unirem em solidariedade e

proteção mútua para fazer frente às falhas e arbitrariedades presentes na realidade da

prisão. Conforme vimos, o jornal era direcionado não apenas para um publico em geral,

mas principalmente para os próprios detentos, pois era, além de tudo, uma canal de

informação entre eles mesmos.

Chamaram a atenção para um problema estrutural da prisão que acarreta muitos

outros: a superlotação. O jornal aponta para essa realidade que era um grande agravante

da situação carcerária e deveria ser revertido imediatamente ou, caso as autoridades não

tomassem uma atitude, seria da alçada deles, os presos, se organizarem para compor

melhores condições de vida.

A superlotação carcerária é apontada como

responsável pela situação em que se encontram as cadeias

públicas e os presídios da Capital e do interior (idem, p.12,

“Semi-aberto na penitenciária”).

O jornal ainda expõe uma questão que provavelmente não foi abordada por nenhum

veículo de informação no período: o papel dos presos na disciplina e pacificação interna

da prisão. Segundo o jornal, os internos estavam trabalhando, na esteira das políticas de

humanização, para que o ambiente da prisão se tornasse mais seguro e pacífico.

Nunca a Penitenciária do Estado se encontrou como se

encontra agora, a disciplina é exemplar, não mais se veem

destruições entre companheiros, como ocorria em tempos

passados, não muito distantes. Parece que a população

carcerária descobriu que não adianta nos destruímos entre

nós mesmos e o que precisamos é nos unir cada vez mais,

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a fim de mostrarmos à sociedade que somos gente, que

pensamos, como seres humanos, que queremos um dia

viver normalmente junto a esta sociedade que hoje nos

critica (idem, p.5, “Chega de Piche”).

O jornal argumenta que em meio a esse ambiente hostil e instável que é a prisão,

ainda existem rígidos códigos de conduta que são informalmente aplicados entre os

presos para manter a ordem interna; tarefa essa que o poder público não conseguia

realizar de forma eficiente.

(...) até mesmo os presos repudiam certas atitudes praticadas por

marginais e não é segredo de ninguém que certos delinquentes,

quando são mandados ao cárcere, são submetidos a um segundo

julgamento, onde o próprio encarcerado representa todos os

papeis da Justiça e, se as ações do delinquente estiverem fora de

um determinado campo de tolerância, este será condenado

também pelos seus iguais, ficando provado assim que, se

dependesse da participação da população carcerária para baixar

o índice de crimes violentos, esta espécie de dolo não existiria

mais ou, se existisse, seria atributo de personalidades

psicopáticas, auto programadas para esse fim (idem, p.4,

“Mundo do crime”).

O artigo intitulado “Vamos dar as mãos” talvez seja o que mais represente esse

chamado por união entre os presos. Nele manifestam o conhecimento das dificuldades

que enfrentam e que enfrentariam em relação à circulação da primeira edição do jornal.

A expectativa era a de continuidade das publicações, mas sabemos que esse não foi o

caso, pois O Democárcere foi fechado logo em seguida.

Acreditaram na nossa força e no nosso equilíbrio e estão

nos apoiando, cientes de que sempre estamos dispostos a

dar as mãos em torno de todo objetivo que possa de

alguma forma construir ou ajudar na construção do nosso

futuro, por isto querem participar desta corrente.

E nós estamos felizes, porque depois de tanta luta teremos

as nossas edições regularmente e o nosso jornal

oficializado pelas mais altas autoridades do Estado. E para

que isto tenha êxito completo, temos apenas de continuar

de mãos dadas, como sempre.

A todos, o nosso muito obrigado (idem, p.2. “Vamos dar

as mãos”).

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7) Em memória do Groupe d’Information sur les Prisions (GIP)

Michel Foucault (1956 – 1984) tornou-se referência nos estudos prisionais

principalmente após a publicação de Vigiar e Punir (1975). Grande parte do livro foi

resultado de sua participação na mobilização que deu origem ao Groupe d’Information

sur les Prisions (GIP), em 1971, liderado por intelectuais que se articulavam com o

intuito de denunciar e tornar pública as condições degradantes do sistema penitenciário

francês.

Após as agitações de maio de 68, o Estado Frances buscou recuperar sua

autoridade por meio de diversas medidas repressivas. Entre elas estavam a investida

para a dissolução do grupo maoísta da esquerda proletária e a criminalização de

manifestações públicas. Nesse processo muitos ativistas políticos de esquerda foram

presos e então tiveram contato com presos comuns e as condições precárias do

encarceramento. Dentro da prisão, as lutas políticas travadas pelos presos comuns foram

intensificadas com o auxilio dos “novos presos militantes”, que desencadeou uma série

de motins. Essa experiência possibilitou chamar a atenção de alguns intelectuais mais

engajados politicamente. Nesse contexto surgiu o GIP, tendo como idealizadores: Jean-

Marie Domenach, Michel Foucault e Pierre Vidal-Naquet.

A postura intelectual de Foucault pretendia escapar às formas tradicionais de

mobilização política que os marxistas de esquerda desempenhavam até então. Não

pretendia ser uma espécie de intelectual “porta voz”, liderando os oprimidos para a

salvação, abrindo seus olhos para a realidade e dizendo-lhes o que e como fazer. A

proposta era, ao contrário, criar condições e possibilidades para que o preso pudesse

falar por si mesmo, como entendia seu papel em meio às agitações e expor a realidade

em que vive sob sua própria perspectiva. Para o autor, os discursos formulados nas

academias seriam mais qualificados levando-se em conta também o discurso daqueles

que se encontram nas pontas, ou seja, ao falarmos sobre as condições da prisão e dos

presos, devemos escutar também o que eles próprios têm a dizer (ALVAREZ, 2010).

Para tanto, um dos métodos era colher depoimentos dos próprios presos, dar voz

e imagem a eles, para assim quebrar a tradição de silenciamento e invisibilidade que os

detentos eram submetidos. O objetivo não era estimular a revolta por parte dos presos,

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mas sim mostrar que seria inevitável, caso a situação de arbitrariedade e desassistência

governamental persistisse. A experiência no GIP foi fundamental para orientar grande

parte da produção não apenas de Vigiar e Punir, mas de todo um campo de investigação

sobre a punição na sociedade moderna (ALVAREZ, SALLA e DIAS, 2013).

O GIP acreditava que a exposição da realidade seria fundamental para a

problematização das condições da prisão, sobretudo sob a ótica de seus protagonistas; e,

como vimos, O Democárcere tinha objetivos muito próximos aos do grupo.

Considerações finais

Sabemos que não eram todos os presos que participavam da confecção do jornal,

assim como não eram todos que o liam. Em uma palavra: o jornal não representava o

posicionamento dos 1.300 detentos da penitenciária, mas, ainda sim, era um espaço

legitimo para canalizar opiniões e demandas usado por um setor engajado na prisão que

procurava, de maneira mais ampla possível, reunir as “vozes” de todos, assim como

deixava em aberto as propostas de conteúdo das edições que esperavam publicar

regularmente.

Seja como for, a breve trajetória do Democárcere nos mostra uma dimensão

afetada pelo advento das políticas de humanização, assim como a grande dificuldade de

se implantar políticas de abertura e transparência sem que ocorram duras resistências.

Recuperar na história essa experiência que, aparentemente foi inédita no Brasil, nos

serve como primoroso material empírico que, acima de tudo, nos mostra a breve “voz”

daqueles que até então não exerceram esse direito. Tal como a proposta do GIP, o jornal

buscou dar voz e visibilidade a um ator até então completamente negligenciado pela

esfera pública: o preso.

Levantamento Bibliográfico

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ADORNO, Sérgio. A prisão sob a ótica de seus protagonistas, itinerário de uma

pesquisa. Tempo social, São Paulo, v. 3, n. 1-2, p. 7-40, 1991.

ADORNO, Sérgio. Sistema penitenciário no Brasil-Problemas e desafios.Revista Usp,

n. 9, p. 65-78, 1991.

ALVAREZ, Marcos César; SALLA, Fernando; DIAS, Camila Nunes. Das Comissões

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ALVAREZ, M. C. ; SALLA, F. ; DIAS, C. ; HIGA, G. “Serpentes Negras: fantasma

das Comissões de Solidariedade ou precursora do Primeiro Comando da Capital

(PCC)?” Sociologias Plurais: Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em

Sociologia, v. especial, p. 185-195, 2014.

ALVAREZ, Marcos César. Punição, Poder e Resistências: a experiência do Groupe

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ALVAREZ, Marcos César; MISKOLCI, Richard. O legado de Foucault. 2010.

BECKER, Howard Saul. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Zahar, 2009.

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FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder; organização e tradução de Roberto

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FOUCAULT, Michel. “Vigiar e Punir”. Petrópolis: Vozes, 1984.

GOES, Eda Maria. A recusa das grades: rebeliões nos presídios paulistas: 1982-1986.

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GOES, Eda Maria. Transição política e cotidiano penitenciário. História, São Paulo, v.

23, n. 1-2, 2004.

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PAIXÃO, Antônio Luiz. Recuperar ou punir?: como o Estado trata o criminoso. Cortez

Editora, 1987.

PINHEIRO, Paulo Sérgio; DIMENSTEIN, Gilberto. O passado não está morto: nem

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RAMALHO, José Ricardo. O mundo do crime. Rio de Janeiro: Graal, 1979.

SALLA, Fernando. De Montoro a Lembo: as políticas penitenciárias em São

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SALLA, Fernando. Considerações sociológicas sobre o crime organizado no

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SALLA, Fernando. As prisões em São Paulo: 1822-1940. Annablume, 1999.

SYKES, Gresham M. The society of captives: A study of a maximum security prison.

Princeton University Press, 2007.

TEIXEIRA, Alessandra. Prisões da exceção: política penal e penitenciária no Brasil

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I SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE PESQUISA EM PRISÃO

2 DE OUTUBRO DE 2015

SÃO PAULO – SP

FACULDADE DE DIREITO,USP

G.T.10: MÍDIA E PRISÃO

“ÔNIBUS 174” – A LENTE QUE VAI DO ESPETÁCULO AO INDIVÍDUO

CAUÊ FÉLIX E SILVA – Graduando em Comunicação Social – Hab. em Midialogia

pela Universidade de Campinas

THALITA SANÇÃO TOZI – Mestranda em Direito Penal e Criminologia pela Faculdade

de Direito da Universidade de São Paulo

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“ÔNIBUS 174” – A LENTE QUE VAI DO ESPETÁCULO AO INDIVÍDUO

CAUÊ FÉLIX E SILVA (UNICAMP)1

THALITA SANÇÃO TOZI (USP)2

INTRODUÇÃO

Refletindo sobre a seleção, a maneira de apresentação e a interpretação dedicadas

aos fatos sociais que envolvem crimes expostos pela mídia massiva brasileira,

selecionou-se para análise o documentário brasileiro intitulado "Ônibus 174", dirigido

por José Padilha.

O enfoque do documentário é o episódio do sequestro do ônibus 174 ocorrido na

cidade do Rio de Janeiro, no dia 12 de junho de 2000. Por volta das 14h, o ônibus

ficou detido no bairro do Jardim Botânico por quase 5 horas, pela atividade de Sandro

Barbosa do Nascimento, sobrevivente da Chacina da Candelária. Uma refém e Sandro

foram mortos, ambos pela ação policial.

Divergindo da maioria dos elementos midiáticos que se baseiam na superexposição da

violência, que reforçam o discurso de ódio e a mensagem de extermínio dos

“criminosos”, neste documentário o diretor focou a observação para o indivíduo infrator

na tentativa de compreendê-lo como ser humano.

Observam-se elementos da história de vida de Sandro, que demonstram a

complexidade do seu ser, momentos em que se pode considerá-lo vítima ou ao menos

ator corresponsável de suas escolhas.

O recorte deste trabalho é interpretar o documentário e a situação dada a partir da

“Teoria da Criminologia Clínica de Terceira Geração” (SÁ, 2011) – refletindo sobre a

inclusão social, e a invisibilidade dos indivíduos para o estado, ao menos até

cometerem algum delito.

1 Graduando em Comunicação Social – Hab. em Midialogia pela Universidade de Campinas

2 Mestranda em Direito Penal e Criminologia pela Faculdade de Direito da Universidade de São

Paulo e Coordenadora Adjunta do GDUCC.

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1. APRESENTAÇÃO DO FILME As primeiras tomadas do filme Ônibus 174, de José Padilha, caberiam em tantos

outros filmes de diversos gêneros, principalmente nos que exaltam a beleza

exuberante da cidade do Rio de Janeiro. Os planos aéreos da cidade mostram sua

mescla de cores, evidenciam um dia ensolarado, revelam seus contornos de morros,

faixa de areia, mar, espaços urbanos planos, favelas e bairros de classe média e

média-alta e alta.

Essas imagens poderiam compor uma passagem que exaltasse as belezas cariocas

caso as vozes que acompanham as paisagens não retratassem momentos da vida de

indivíduos em situação de rua. Os conteúdos violentos das falas se contrastam com as

belas imagens da cidade carioca. Este embate entre imagens belas e depoimentos de

vidas sofridas conclui-se nas imagens do bairro do Jardim Botânico, um dos mais ricos

da cidade do Rio de Janeiro.

Neste momento, tem-se a primeira aparição de imagens de arquivo utilizadas por JOSÉ

PADILHA. O diretor se valeu de imagens aéreas captadas pela CET- Rio que revelam o

momento do início da atuação policial ao cercar o ônibus da linha 174. Após este

artifício de construção do filme, o diretor se vale de depoimentos de um policial do

BOPE (Batalhão de Operações Especiais), e de uma assistente social que trabalhava

com o grupo de pessoas em situação de rua que Sandro pertencia na infância.

Depoimentos estes, que inauguram a abordagem direta à situação do sequestro do

ônibus 174.

Os depoimentos sobre a história de vida de Sandro, principalmente a infância mostra-

se como uma metonímia da história de outras tantas crianças em situação de rua. Não

se trata apenas de evidenciar as dificuldades de vida dessas crianças, os traumas

ocorridos logo em seus primeiros anos, o desamparo familiar, a perda de vínculo com

qualquer estrutura de afeto, os primeiros contatos na rua, a dificuldade de

sobrevivência, mas também de delinear a estrutura de construção fílmica, uma vez

que há um retorno a imagens dos momentos iniciais do sequestro.

A apresentação, o desenvolvimento, o desfecho da situação do sequestro e a defesa

da tese desenvolvida no filme se dão em uma estrutura de blocos de momentos que

acompanharam o momento do crime (através do material de arquivo televisivo); e de

blocos de comentários sobre temáticas específicas, as quais vão contextualizando a

história de vida de Sandro (através de depoimentos diretos durante a gravação do

filme). Os blocos temáticos são introduzidos por ganchos em falas dos envolvidos no

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sequestro - jornalistas, policiais, pesquisadores, assistentes sociais, ex-reféns do

episódio. Esses ganchos são os responsáveis por costurar e alinhavar bem esses

momentos de trânsito entre os blocos temáticos, muitas vezes a demarcação da

separação é anunciada por letreiros.

Após os depoimentos que retratam o assassinato da mãe de Sandro (presenciado

pelo garoto), e das mazelas nas vidas das crianças em situação de rua, o tema

abordado é a sobrevivência de Sandro na “Chacina da Candelária”. Trata-se de um

episódio em que várias crianças foram assassinadas em uma marquise próxima à

igreja da Candelária, no centro do Rio de Janeiro – local de sua "moradia", ou espaço

em que dormiam. Os autores do crime foram policiais, com os quais as crianças

haviam tido um embate horas antes, no mesmo dia do crime. Após o embate, os

policiais as ameaçaram de morte, dizendo que voltariam naquela mesma noite. A

ameaça foi cumprida. Sandro foi um dos poucos sobreviventes da chacina. Nota-se

que esta cena foi trazida à tona em sua fala com a polícia e com as câmeras que

cercavam o ônibus – imagens captadas pelo arquivo televisivo.

O filme retorna aos planos do momento do sequestro criando uma tensão crescente

em relação àquelas cenas. É a parte do filme em que planos mais longos do episódio

são postos explorando ações de muita potência e impacto, como, por exemplo, a

refém escrevendo "Ele vai matar geral às 6hs" no vidro da frente do ônibus com um

batom. Além disso, é o primeiro momento em que o Sandro fala diretamente com os

policiais e para todos os jornalistas presentes, mostrando o seu rosto e desafiando a

todo o público externo sobre seus próximos passos.

A persona de Sandro continua a ser construída. Perpassa, então, por leituras de

documentos judiciais oficiais sobre suas passagens pelo sistema correcional de jovens

e adolescentes, além de prisões. Informações sobre os delitos, cena sobre a cadeia

que passou, além de depoimentos de ex-colegas de rua e do cárcere complementam

esta temática. A tia de Sandro ganha destaque na narrativa do filme, uma vez que ele

foi morar com ela entre momento de passagem prisional.

Nota-se que os discursos das pessoas que tiveram contato direto com Sandro, em

algum momento de sua vida, afirmavam que ele seria incapaz de matar, que isso “não

faria parte de sua índole”. Alguns apontaram ser ele usuário de drogas, e que deveria

estar sob efeito de algum entorpecente no momento do sequestro do ônibus.

Os depoimentos divergentes eram os dos policiais. Todavia, não o apontaram como

assassino, mas abordaram a situação de maneira muito técnica e fria. Um depoimento

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relatou a ausência de ideia, durante o episódio, de analisar Sandro como possível

sofredor de psicopatologia, ou buscando saber de seu histórico de criança moradora

de rua – fato que teria ajudado a cogitar certa imprevisibilidade nas ações do jovem.

A tensão dentro do ônibus é crescente. Sandro chegou a liberar alguns reféns, mas a

postura desesperada da refém Geíza, com gritos e choros excessivos, e uma tentativa

frustrada de persuadir Sandro para liberá-la do sequestro, contribuíram para a tensão

do sequestrador. O ponto alto da tensão talvez tenha sido o disparo dado dentro do

ônibus, no qual o sequestrador simulou o assassinato de uma das reféns.

Sandro não teria como escapar. O ônibus estava cercado por policias, jornalistas e

civis por todos os lados.

O último bloco de intercalação, antes do fim do episódio do sequestro, é uma série de

depoimentos realizados dentro de uma unidade prisional, através das falas de alguns

encarcerados. Trata-se do único momento do filme em que a imagem é retratada

através do efeito em negativo, evidenciando, talvez, a contrariedade daquele espaço

com os outros que retratavam alguma liberdade. O trecho aproximava o espaço da

prisão ao inferno tanto por essa estética "negativada" do filme como por meio do

depoimento dos presos.

Em sequência, o filme encaminha-se para o fim, compondo as imagens em que

Sandro sai do ônibus. No momento em que Sandro está saindo do ônibus, segurando

a refém Geíza em sua frente e na posse de uma arma de fogo apontada para sua

cabeça, um policial avança sobre Sandro e Geíza. O policial atira duas vezes e erra o

seu alvo. O tiro acerta Geíza. Com o susto Sandro e Geiza caem ao chão, e durante a

queda Sandro dispara outras duas vezes nas costas da refém. Todo esse movimento

ocorre em poucos segundos. Trata-se de tempo suficiente para toda a população civil

que estava ali presente corresse para o local, bradando o desejo de linchamento do

sequestrador.

Os policiais conseguem, a muito custo, conter a população enraivecida e colocar

Sandro dentro de um camburão. Dois policiais se debruçam sobre o corpo do

sequestrador temendo que ele fosse alvejado por alguém de fora. O carro consegue

escapar da multidão. Sandro já não sai com vida do camburão, assassinado por

sufocamento pelos dois policiais.

As cenas finais do filme retratam os enterros de Geíza e de Sandro. O primeiro lotado

de civis. Já o segundo apenas com a presença de uma pessoa. Ambos foram

acompanhados pela mídia televisiva e pela impressa. O filme termina com um trecho

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escrito em que se esclarece que as balas causadoras da morte de Geíza foram as

disparadas por Sandro e não pelo policial.

2. REPRESENTAÇÃO, MÍDIA E ESPETÁCULO

A imagem do filme é construída através de filmes de arquivo, de fotografias, de

imagens de câmera de segurança das ruas, de gravações realizadas pela CET-RIO,

de gravações de documentos judiciais, e de filmagens feitas pela própria produção da

equipe (sendo majoritariamente de depoimentos). Nota-se que foi grande a exploração

da imprensa, de maneira que há imagens do ônibus em um raio de quase 360 graus.

De acordo com GUY DEBORD, "o espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma

relação social entre pessoas, mediada por imagens"3. Ideia esta que adequa-se aos

fatos abordados pelo filme em análise. O diretor construiu o filme enfatizando a

overdosagem do episódio dada pela mídia, demonstrada tanto pelas falas dos

entrevistados, quanto pela utilização das imagens em diferentes ângulos/emissoras.

Não há dúvidas de que o momento fora espetacularizado. O público presente, os

atores que participaram do evento, o público que assistia às transmissões

estabeleceram suas relações com Sandro por meio de discursos unilaterais mediados

pelas imagens das emissoras televisivas.

Inicialmente, esta exploração midiática pareceu assustar Sandro, tendo em vista suas

ações nas imagens televisivas utilizadas por JOSÉ PADILHA. Ele, assim como parcela

da população, jovem, negro, pobre, morador de rua, enfrenta a invisibilidade social,

estabelecendo-se como mera parte indesejada da paisagem, ainda mais daquela

região da rica zona sul carioca4. Houve tentativa de esconder sua face com tecidos,

ameaçou fotógrafos e videografistas que se amontoavam à frente do ônibus. O

discurso inicial refletia o não querer ser visto e identificado naquela situação. Todavia,

Sandro parece ter percebido a impotência de proteger sua identidade. Passou a se

identificar: colocou a cabeça pela janela do ônibus com o rosto descoberto,

3 DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Pg. 22. Livros da Revolta. Disponível em:

http://lelivros.site/book/baixar-livro-a-sociedade-do-espetaculo-guy-debord-em-pdf-epub-e-

mobi/, acesso em: 10/08/2015.

4 Ressalta-se que a região passa por um processo latente de higienização social, negros e

pobres são indesejados naquele espaço. Vide matéria do jornal Folha de São Paulo. Disponível

em: http://www1.folha.uol.com.br/vice/2015/08/1673548-pm-do-rio-impede-adolescentes-da-

periferia-de-ir-as-praias-da-zona-sul.shtml, acesso em: 26/08/2015.

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verbalizando ser aquele o seu rosto, informando trechos de sua história de vida (citou,

por exemplo, o episódio da chacina da Candelária).

O que se interpreta é que houve uma mudança de comportamento, da tentativa de

continuar invisível para uma identificação, e posterior “atuação” por parte de Sandro.

De acordo com o depoimento dado por duas reféns, a tensão que vinha sendo

explorada nas imagens midiáticas não representava a realidade interna do ônibus.

Sandro almejava que o desespero fosse claro: deu um tiro em vão para representar

uma morte falsa; pediu para que as reféns encenassem, com gritos e desespero. A

mise en scène foi convincente a ponto de aglomerar uma multidão ao redor do ônibus

desejando o sangue de Sandro. O espetáculo midiático fora criado – havia os

mocinhos, o bandido, os defensores da lei e a plateia (no local, e mediada pelos meios

de comunicação).

O desfecho não poderia ser distinto. A população esperava a morte do infrator, que

(supostamente) havia matado uma refém e ameaçava a vida de outros reféns. A

polícia havia se preparado para matá-lo, aguardando a ordem do comandante5. E

após quase cinco horas de sequestro, Sandro saiu do ônibus. Fato este

aparentemente inesperado pelo público. O modus operandi da policia naquele

momento indicava que a morte do sequestrador era o caminho técnico mais indicado6.

JOSÉ PADILHA esclarece essa intenção desde o início7.

No espetáculo, o policial cumpriu seu papel e atirou contra o tal bandido (e não

acertou). A atitude dos policiais que acompanharam Sandro no camburão não fugiu ao

roteiro exigido pela população. Ele já havia escapado de duas mortes em poucos

minutos, o tiro errado do policial, o linchamento evitado, mas da terceira oportunidade

não houve fuga. O mesmo espetáculo que quase causou sua morte por linchamento e

que influenciou sua morte por sufocamento no carro da polícia, era um dos principais

responsáveis por sua sobrevida durante o episódio.

Este “criminoso”, negro, pobre, marginalizado, desumanizado fora morto dentro de

meios "legais" – clamado pelo público, legitimado pelo braço do Estado. A mídia

massiva, policialesca, sensacionalista, elitista e sanguinária criou seu espetáculo e

ganhou seus aplausos no fim.

5 Frisa-se que esta informação consta no depoimento do ex-policial, Rodrigo Pimentel.

6 Palavras do próprio policial no filme.

7 Segundo o policial que deu depoimento para o filme precisavam fazer da melhor forma pois

“não havia a intenção de espalhar meio quilo de massa encefálica no vidro do ônibus”.

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3. MONTAGEM E NARRATIVA

A narrativa do filme é construída por JOSÉ PADILHA através de dois grupos de

imagens8: as geradas pela televisão no dia do acontecimento, e as aquelas selecionou

e gravadas pelo diretor. A utilização dessas duas possibilidades aparenta cumprir

funções distintas.

Os depoimentos tiveram a função de apresentar e contextualizar as personagens

envolvidas no sequestro. Passa-se a sensação de desconfiança da imagem

aterrorizante criada de Sandro pelos veículos massivos de comunicação, quando

comparada aos discursos sobre sua personalidade. Percebe-se uma tentativa de

humanização daquele indivíduo. Humanização a partir do relato dos conhecidos, mas

que, de certa forma, é corroborada pelas atitudes de Sandro durante o sequestro - ele

não rouba seus reféns, pede a uma refém que encene um assassinato e não a mata.

Já a utilização dos trechos televisivos traz o olhar dado àquele episodio: o espetáculo

e a julgamento e condenação daquele indivíduo independente de seus atos. Ainda que

já haja descrição destes trechos, merece destaque o momento em que Sandro sai do

ônibus e ocorre o desfecho do sequestro e do filme. Primeiro o som dos tiros com uma

câmera caótica atrás de um carro que não mostra nada dá início a sequência. Logo

em seguida, há um som controlado, com voz over, e imagens em vários ângulos do

ataque do policial - do primeiro disparo dado, dos outros disparos de Sandro - tudo em

câmera lenta, dando-nos a possibilidade de prolongar a experiência do triste e violento

desfecho daquela situação, por meio de imagens de diversas emissoras televisivas.

Na sequência a câmera volta a ficar em velocidade normal para demonstrar o ligeiro

avanço da população para linchar o infrator, a cena segue até a polícia conseguir

retirar Sandro do local do sequestro.

4. CENÁRIO TEÓRICO CRIMINOLÓGICO

A construção feita por JOSÉ PADILHA parece ilustrar o que a “Teoria da Criminologia

Clínica de Terceira Geração” de ALVINO AUGUSTO DE SÁ9 traz como inovadora. Será

8 Vale destacar que, mesmo conscientes do processo de montagem feito sobre as tomadas

televisivas, o que também as levaria ao mesmo campo de imagens selecionadas por PADILHA,

manteremos essa distinção.

9 SÁ, Alvino Augusto de. Criminologia clínica e execução penal: proposta de um modelo de

terceira geração. 1. ed. São Paulo-SP: Ed. Revista dos Tribunais, 2011.

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realizada uma breve exposição a fim de associar esta teoria ao cenário montado neste

este trabalho.

A Criminologia, de uma maneira geral, é um campo de atividade e conhecimentos

interdisciplinares que busca compreender o fenômeno delitivo, os comportamentos

problemáticos, as normas e os valores socioculturais, a dinâmica das instâncias de

controle, o envolvimento da justiça, e etc. Trata-se de uma ciência que se volta ao

crime.

A Criminologia Clínica, por sua vez, ocupa-se do indivíduo condenado dentro deste

cenário, aproximando a lupa do grande espetáculo para aquele cujos holofotes

(fazendo-se analogia com relação a situação em questão) estão voltados.

O modelo de Criminologia Clínica médico psicológico considera a conduta criminosa

sendo anormal. Esta seria a expressão de uma anomalia física ou psíquica, dentro de

uma concepção pré-determinista do comportamento. Ou seja, o sujeito é considerado

um ser criminoso, sendo possível então determina-lo como tal e prever suas atitudes.

Percebe-se que apesar desta teoria estar ultrapassada na Academia, ela, muitas

vezes, recheia o pensamento comum e se estampa na maneira que as mídias tratam a

questão criminal. Por exemplo: chamando suspeitos de “bandidos” e “criminosos”

sendo que sequer passaram pelo devido processo legal; a vinculação de estereótipo

de bandido com a da pobreza; a determinação do ser criminoso, que não mudaria sua

atitude, legitimando penas de aniquilação.

É neste cenário que estaria todo o espetáculo da mídia abordado durante o filme,

demonstrado pela opinião dos policiais que trabalharam na operação, e pela reação

popular que clamou pela morte daquele indivíduo. Trata-se de um ser diferente,

estranho, de uma espécie criminosa, merecedor da morte.

O modelo de terceira geração inova, dentre outros aspectos, na maneira de se encarar

o indivíduo e o fato delituoso. O indivíduo não é visto como um ser criminoso, mas

como um ser humano igual a todos os outros. Este, além de eventualmente ter

cometido um fato considerado delituoso, possui uma história de vida, sonhos,

vontades, defeitos e qualidades, frustrações.

Considera-se a ilustração desta teoria, vez que o diretor trouxe este diferente modo de

olhar o indivíduo em sua montagem e narrativa. JOSÉ PADILHA buscou retratar a

história de vida de Sandro compondo-o como indivíduo. Valeu-se de imagens de sua

infância, em gravações realizadas nas escadarias da Candelária juntamente com as

assistentes sociais; imagens dele, ainda garoto, jogando capoeira em um projeto

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social realizado na PUC/RJ; de depoimentos que retratavam parte de sua história e de

suas características (as passagens pelo sistema correcional de jovens e adultos e o

sistema prisional, a dificuldade de conseguir um emprego, a “disciplina” e não

agressividade que apresentava quando estava preso, o vício pelas drogas).

Segundo a teoria criminológica, o indivíduo não deve ser considerado o único

responsável pelo cometimento do ato infrator. Mas considera-se que ele está inserido

em uma rede de inter-relações sociais, dentro de um contexto, em que há inúmeros

fatores que são corresponsáveis para a ocorrência daquele fato. Não se exclui a

questão do livre arbítrio, mas não leva-se apenas ele em consideração.

“O paradigma das inter-relações sociais corresponde ao

cenário do crime, à malha paradigmática de inter-

relações sociais, onde são levados em conta todos os

elementos que integram a ocorrência do fenômeno assim

denominado crime: os empreendedores morais (que são

parte da sociedade), os criadores das leis, os aplicadores

das leis, o comportamento problemático, os infratores das

leis (em todo o seu contexto pessoal: personalidade,

corpo, família, grupo social, etc.), as vítimas e, por fim, o

contexto imediato no qual o crime é cometido.”10

Ou seja, não há como analisar o fato delituoso de maneira isolada. Ele está inserido

em um contexto que o levou a se configurar e o determinou como conduta reprovável.

Esta rede é ampla e complexa, não se objetiva identificar todos os fatores

corresponsáveis, sob a pena de recair no pré-determinismo de juntar variáveis a fim de

alcançar o resultado crime. Não se trata de achar causa e consequência, mas de

compreender a situação de maneira ampliada. A cultura de consumo, a desigualdade

social, o uso de entorpecente, a temperatura do dia, o histórico de violência familiar, o

histórico de violência policial, a invisibilidade do dia a dia, a falta de oportunidade, etc.

Podem ser inúmeras variáveis que influenciaram aquele indivíduo a parar o ônibus

174.

10 SÁ, Alvino Augusto de. Criminologia clínica e execução penal: proposta de um modelo de

terceira geração. 1. ed. São Paulo-SP: Ed. Revista dos Tribunais, 2011. Pg.327.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

JOSÉ PADILHA explorou as imagens geradas pela mídia sobre o fato, deixando evidente

o que estava ao alcance da população em tempo real. De maneira que estampou o

espetáculo midiático, apesar de não tecer críticas a este fato diretamente no filme. A

superexposição da violência de fatos como este pela mídia massiva brasileira reforça

o discurso de ódio, além de reproduzir a perspectiva de teorias criminológicas

ultrapassadas. A pré-determinação daquele sujeito como criminoso ocorreu pelo seu

nascimento. Reafirmou-se quando de sua sobrevivência na chacina da candelária e na

sua insistência em existir, ainda que a sociedade fingisse que não. A ousadia de

adentrar naquele ônibus – ainda que nunca tenha matado ninguém – é condição mais

do que suficiente para o seu linchamento.

Houve no filme a desconstrução deste estereótipo criminoso, e buscou compreender

Sandro a partir da aproximação daquele indivíduo. Foram trazidos elementos que

saem da lente do espetáculo para aproximar-se do sujeito, com (partes de) sua

historia de vida.

Desta forma, inevitável perceber que o diretor inova na abordagem da violência. Não

apenas pelos recursos de narrativa e imagem utilizados, mas pela tese criminológica

que acaba trazendo.

Mais do que o sequestrador do ônibus 174, Sandro é um não assassino, um

sobrevivente da Candelária, um órfão que assistiu a mãe sendo assassinada, um

morador de rua, um drogado, um jogador de capoeira, um espancado pela polícia, um

maltratado pelas péssimas condições das instituições prisionais, uma rapaz negro, um

ator, um disciplinado enquanto estava no sistema prisional, um recusado ao procurar

emprego, um fugitivo, um sobrinho, um rapaz que adotou uma senhora (a única a ir a

seu enterro) como mãe,(...). Alguém que não feriu reféns, e que não há registro de ter

matado qualquer pessoa – mas que foi alvo da violência estatal, midiática e popular

tantas e tantas vezes em sua vida.

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BIBLIOGRAFIA

DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Pg. 22. Livros da Revolta. Disponível em:

http://lelivros.site/book/baixar-livro-a-sociedade-do-espetaculo-guy-debord-em-pdf-

epub-e-mobi/, acesso em: 10/08/2015.

SÁ, Alvino Augusto de. Criminologia clínica e execução penal: proposta de um modelo

de terceira geração. 1. ed. São Paulo-SP: Ed. Revista dos Tribunais, 2011.

Filme base: “Ônibus 174” – Diretor José Padilha.

Reportagem: Folha de São Paulo. Disponível em:

http://www1.folha.uol.com.br/vice/2015/08/1673548-pm-do-rio-impede-adolescentes-

da-periferia-de-ir-as-praias-da-zona-sul.shtml, acesso em: 26/08/2015.