sorvetes, sucos e storytelling: questões Éticas em...

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PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2016 (13 a 15 de outubro de 2016) Sorvetes, Sucos e Storytelling: Questões Éticas em Narrativas da Propaganda Brasileira 1 Renato Essenfelder 2 ESPM-SP Resumo O artigo discute dois episódios polêmicos da propaganda brasileira recente sob uma perspectiva ética. Denunciadas ao Conar (Conselho de Autorregulação Publicitária) em 2014, a fabricante de sorvetes Diletto e a fabricante de sucos Do Bem foram acusadas de conduta antiética ao supostamente levar uma prática de storytelling longe demais, fazendo passar por verdadeira uma história falsa. Diletto foi condenada a alertar o consumidor para o fato de que criara uma ficção sobre a origem da marca, enquanto Do Bem foi absolvida pelo Conselho em uma discussão a respeito da origem das laranjas usadas em seus sucos. À parte o julgamento realizado pelos pares, que se concentrou sobre o caso específico, este artigo tenta localizar os princípios éticos em jogo numa situação como essa e propõe uma reflexão a respeito deles, invocando o olhar de pensadores clássicos da área, como Aristóteles, Maquiavel e Kant. Palavras-chave: ética; storytelling; Diletto; suco Do Bem. Seres narrativos Narrar é uma necessidade humana. Por meio do gesto narrativo de incontáveis histórias, ficcionais ou não, o ser humano dá vazão à sua necessidade fundamental de buscar um significado para a sua vida e para o mundo e também de relatar acontecimentos, ações, percepções. Etimologicamente, a expressão “narrar”, bem como os substantivos “narrativa” e “narrador”, derivam de um mesmo verbo latino: narro. O termo provém do adjetivo “gnarus”, que significa “sabedor” ou “aquele que conhece”. Por sua vez, 1 Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho 10 - Consumo, Literatura e Estéticas Midiáticas, do 6º Encontro de GTs de Pós-Graduação - Comunicon, realizado nos dias 14 e 15 de outubro de 2016. 2 Professor do Mestrado Profissional em Jornalismo da ESPM-SP e colunista do Portal Estadão.com. É doutor em Ciências da Comunicação pela ECA-USP e mestre em Língua Portuguesa pela PUC-SP. Pesquisa os campos da ética e da narratologia. E-mail: [email protected]

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PPGCOMESPM//SÃOPAULO//COMUNICON2016(13a15deoutubrode2016)

Sorvetes, Sucos e Storytelling: Questões Éticas em Narrativas da Propaganda Brasileira1

Renato Essenfelder2

ESPM-SP

Resumo O artigo discute dois episódios polêmicos da propaganda brasileira recente sob uma perspectiva ética. Denunciadas ao Conar (Conselho de Autorregulação Publicitária) em 2014, a fabricante de sorvetes Diletto e a fabricante de sucos Do Bem foram acusadas de conduta antiética ao supostamente levar uma prática de storytelling longe demais, fazendo passar por verdadeira uma história falsa. Diletto foi condenada a alertar o consumidor para o fato de que criara uma ficção sobre a origem da marca, enquanto Do Bem foi absolvida pelo Conselho em uma discussão a respeito da origem das laranjas usadas em seus sucos. À parte o julgamento realizado pelos pares, que se concentrou sobre o caso específico, este artigo tenta localizar os princípios éticos em jogo numa situação como essa e propõe uma reflexão a respeito deles, invocando o olhar de pensadores clássicos da área, como Aristóteles, Maquiavel e Kant.

Palavras-chave: ética; storytelling; Diletto; suco Do Bem.

Seres narrativos

Narrar é uma necessidade humana. Por meio do gesto narrativo de incontáveis

histórias, ficcionais ou não, o ser humano dá vazão à sua necessidade fundamental de

buscar um significado para a sua vida e para o mundo e também de relatar

acontecimentos, ações, percepções.

Etimologicamente, a expressão “narrar”, bem como os substantivos

“narrativa” e “narrador”, derivam de um mesmo verbo latino: narro. O termo provém

do adjetivo “gnarus”, que significa “sabedor” ou “aquele que conhece”. Por sua vez,

1 Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho 10 - Consumo, Literatura e Estéticas Midiáticas, do 6º Encontro de GTs de Pós-Graduação - Comunicon, realizado nos dias 14 e 15 de outubro de 2016. 2 Professor do Mestrado Profissional em Jornalismo da ESPM-SP e colunista do Portal Estadão.com. É doutor em Ciências da Comunicação pela ECA-USP e mestre em Língua Portuguesa pela PUC-SP. Pesquisa os campos da ética e da narratologia. E-mail: [email protected]

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“gnarus” se relaciona ao verbo “gnosco”, cuja raiz sânscrita é “gnâ”, ou “conhecer”

(AGUIAR E SILVA, 1997, p. 597). Narrar é, portanto, dar a conhecer. Dar a

conhecer os fatos da vida empírica ou da vida psicológica, espiritual, organizando-os.

Motta (2004) situa a narrativa como “prática humana universal, transhistórica,

pancultural”. Segundo o autor, “todos os povos, culturas nações e civilizações se

construíram narrando”, o que torna a narrativa não apenas uma experiência

fundamental da espécie humana como também um impulso anterior até mesmo à

aquisição da linguagem.

Narrar é uma experiência enraizada na existência humana. Vivemos mediante narrações. Construímos nossa biografia pessoal e nossa identidade narrando. Vivemos nossas relações conosco mesmos e com outros narrando. Nossas vidas são acontecimentos narrativos, o acontecer é uma sucessão temporal e causal (...) Nossa vida na verdade é uma teia de narrativas na qual estamos enredados. Somos narrativos. Somos narradores natos, atores, personagens e ouvintes de nossa própria narrativa. (...) são mais que representações são estruturas que dão sentido e significação à vida humana. Narrando construímos o nosso passado, nosso presente e nosso futuro. (...) Na narrativa imitamos a vida, na vida, imitamos as narrativas. (MOTA, 2004, p. 6)

Gérard Genette, por sua vez, embora ressalte a importância fundamental da

narrativa para o Homem, chama a atenção para o risco de que, por isso mesma, ela

nos pareça natural, quando não é. Para ele, a definição corrente de narrativa como

“representação de um acontecimento ou de uma série de acontecimentos, reais ou

fictícios, por meio da linguagem” pode mascarar as condições de sua existência, que é

artificial e problemática. Afirma Genette, no clássico “Análise Estrutural da

Narrativa”, organizado por Roland Barthes em 1976:

Definir positivamente a narrativa é acreditar, talvez perigosamente, na ideia ou no sentimento de que a narrativa é evidente, de que nada é mais natural do que contar uma história ou arrumar um conjunto de ações em um mito, um conto, uma epopeia, um romance. A evolução da literatura e a consciência literária há meio século terão tido, entre

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outras felizes consequências, a de chamar a atenção, bem ao contrário, sobre o aspecto singular, artificial e problemático do ato narrativo. (GENETTE, 1976, p. 255)

A definição de narrativa tem como marcos iniciais duas obras gregas, tanto a

República, de Platão, como a Poética, de Aristóteles, cujas versões originais datam

aproximadamente do século V a.C. Cada qual à sua maneira, os filósofos estabelecem

uma primeira distinção entre a narrativa (diegesis) e o drama. O drama, dizem imita a

vida – seja pela representação de atores em um palco, seja pela imitação de uma certa

voz narrativa em um texto –, enquanto a narrativa narra, ou seja, dá a conhecer, conta

a história.

A questão foi e vem sendo retomada por inúmeros autores. Mais

modernamente, já no século XX, podemos citar Vladimir Propp que, analisando os

contos de fada russos, estabeleceu as bases para que seu conterrâneo Tzvetan Todorov

cunhasse o termo “narratologia” para designar a teoria e a análise da narrativa,

buscando, a partir do estudo de contos de Boccacio, construir uma gramática

universal da narrativa.

A partir dos anos 1980, contudo, segundo afirma Mark Currie (2011), a

perspectiva dessa narratologia proposta por Todorov, de cunho estruturalista, começa

a perder força diante de críticas de outras correntes dos estudos da narrativa. De

acordo com o pesquisador inglês:

After years of protest from the historicist camps and after two decades of assault from poststructuralists on its scientific orientation and authority, people started to declare the death of narratology. Something may have died. Something inside. A certain youthful spirit perhaps. But narratology at large underwent nothing more dramatic than a transition. (1998, p. I)

Na atualidade, a narratologia conhecida como pós-clássica (BERTOCCHI,

2013) “tende a colocar a narrativa menos como objeto e mais como fluxo” (2013, p.

24). Dando força a esta tese, os ingleses Ruth Page e Bronwen Thomas defendem que

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o conceito de narrativa seja deslocado da noção de um objeto estático (uma narrativa

fechada e acabada) em direção a uma compreensão da narrativa como processo

dinâmico, mais adequada às atuais tecnologias de informação e comunicação nas

quais bilhões de pessoas diariamente narram eventos cotidianos (PAGE; THOMAS,

2011, p. 8). Bertocchi completa o raciocínio: “Na narratologia pós-clássica, as

condições de escrita e dos contextos cultural e social ganham mais importância, bem

como as plataformas e equipamentos tecnológicos, as bases de dados, os algoritmos e

a inteligência artificial”. (2013, p. 24)

Sobre a questão da mudança de paradigmas na narratologia, escreve Currie:

If there is a contemporary narratological cliché it is exactly this claim that narratives are everywhere. So many recent studies begin by pointing out tl1at narrative is not confined to literature. But however often it has been repeated, it is a key characteristic of the recent change in narratology: a massive expansion in the narratological remit, in the scope of objects for narratological analysis. Commonly cited examples of narrative in everyday life are films, music videos, advertisements, television and newspaper journalism, myths, paintings, songs, comic strips, anecdotes, jokes, stories of our holidays, and accounts of our day. In more academic contexts, there has been a recognition that narrative is central to the representation of identity, in personal memory and self-representation or in collective identity of groups such as regions, nations, race and gender. There has been widespread interest in narrative in history, in the operations of legal systems, in psychoanalysis, in scientific analysis, in economics and in philosophy. (1998, p.2)

No âmbito deste trabalho, nos deteremos no uso específico que a propaganda

brasileira tem feito da narrativa, esse dar a conhecer artificial e problemático, porém

vital, mormente em episódios polêmicos que envolveram as marcas Do Bem (sucos) e

Diletto (sorvetes).

Sorvetes, sucos e storytelling

Nos últimos anos, em um cenário de progressivo aumento da concorrência e

de crescimento da chamada cultura da participação (JENKINS, 2009), em que a

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influência dos consumidores sobre marcas – e narrativas – torna-se indissociável da

própria lógica de produção, inúmeras marcas adotaram estratégias agressivas de

storytelling buscando maior visibilidade e engajamento com seus públicos de

interesse – e, em última análise, maiores lucros.

O crescimento progressivo dos prossumidores (termo cunhado por Alvin

Toffler em “A Terceira Onda”, de 1980, que designa a reunião do produtor ao

consumidor), em volume e influência, afetou indelevelmente as corporações. E

embora a narrativa faça parte da história da espécie humana desde os seus primórdios,

no mundo corporativo a aplicação profissional e estratégica de técnicas narrativas

para representar os ideais e interesses de determinada marca é relativamente recente3,

ao menos no Brasil, e, embora não se possa afirmar que é motivado pela cultura da

participação, não há dúvidas de que nela encontra terreno fértil para proliferar, em

meio a milhões de postagens em redes sociais, recomendações por e-mail ou

mensagens instantâneas e interações por meio de enquetes, estruturas narrativas

abertas etc.

O storytelling4 empresarial é, em geral, uma comunicação mais sentimental e

lúdica, em que a empresa busca o engajamento do público em geral por meio de um

apelo à emoção, e não à razão – embora seja perfeitamente possível também recorrer

3 Carrilho e Markus concordam que a propaganda sempre contou histórias, mas ressaltam que o termo storytelling entrou recentemente para o vocabulário dos tomadores de decisão da propaganda nacional, passando a fazer parte do planejamento estratégico de comunicação de empresas. Escrevem: “Cada vez que contamos ou ouvimos histórias, criamos um mundo imaginado no qual desenvolvemos os sonhos, definimos objetivos, encontramos outros personagens que podem não fazer parte do mundo real. Com isso, aspiramos ser algo que não somos, ter algo que não temos, representar algo que não representamos. Se pensarmos que, na comunicação publicitária, o aspecto aspiracional é essencial para a conquista dos públicos consumidores, podemos desde já entender os motivos pelos quais a publicidade e a comunicação de marketing sempre trabalharam com histórias para atingir seus públicos, embora somente nos últimos tempos o termo storytelling esteja fazendo parte da realidade do mercado.” (2014, p. 130) 4 Carrilho e Markus definem storytelling desta forma: “Utilização de elementos das tramas (plots) no desenvolvimento do planejamento e da realização das ações de comunicação, com a determinação clara de papéis e roteiros a serem desenvolvidos pelos personagens. Então, nesse ambiente, as marcas, os produtos, as empresas e os diferentes públicos podem assumir papéis que interagem no objetivo de alcançar uma resolução de conflito ou para chegar ao final de um enredo.” (idem, p. 131)

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ao discurso da razão para apresentar motivos irrefutáveis de compra. No caso das

narrativas criadas pela fabricante de sucos Do Bem, fundada em 2007, e pela

fabricante de sorvetes Diletto, fundada em 2008, o apelo parece ser à emoção. As

narrativas criadas pelas empresas podem ser vistas na Figura 1 e na Figura 2, abaixo:

FIGURA 1 – ANÚNCIO DO SORVETE DILETTO

Fonte: site da empresa

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FIGURA 2 – ANÚNCIO DO SUCO DO BEM

Fonte: site da empresa

Mas uma grande polêmica acerca do storytelling de ambas as marcas veio à

tona em matéria da Revista Exame publicada no dia 22 de outubro de 2014 e

visualizada, em sua versão online, por mais de 150 mil pessoas5. Na reportagem,

intitulada “Toda empresa quer ter uma boa história. Algumas são mentira”, a repórter

Ana Luiza Leal conta que a narrativa veiculada nas embalagens do suco Do Bem e do

sorvete Diletto é ficcional, o que surpreendeu inúmeros leitores/consumidores das

marcas. Sobre a gelateria, escreve a jornalista:

5 LEAL, Ana Luiza. Toda empresa quer ter uma boa história. Algumas são mentira. Revista Exame, 2014. Disponível em http://exame.abril.com.br/revista-exame/edicoes/1076/noticias/marketing-ou-mentira. Acesso em 13/5/2016.

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(...) é inegável que a Diletto recebeu um belo impulso de uma história única. A inspiração para criar os picolés veio do avô de Leandro, o italiano Vittorio Scabin. Sorveteiro da região do Vêneto, Vittorio usava frutas frescas e neve nas receitas até que a Segunda Guerra Mundial o forçou a buscar abrigo em São Paulo. Seu retrato e a foto do carro que usava para vender sorvete aparecem nas embalagens da Diletto e ajudaram a construir a autenticidade da empresa. “La felicità è un gelato”, costumava dizer o nonno Vittorio aos netos. É um golaço de marketing, mas há apenas um porém: o nonno Vittorio nunca existiu. O avô de Leandro Scabin de fato veio do Vêneto, mas se chamava Antonio e teria chegado ao país duas décadas antes da Segunda Guerra. Nunca fabricou sorvetes. (...) As fotos dele e do carrinho de sorvete impressas nas embalagens da Diletto são peças publicitárias. Leandro Scabin criou o personagem com o sócio Fabio Meneghini, ex-diretor da agência de publicidade WMcCann, e com a ajuda do dono da agência, Washington Olivetto. “A empresa não teria crescido tanto sem a história do avô e o conceito visual que construímos. Como eu convenceria o cliente a pagar 8 reais num picolé desconhecido?”, diz Leandro Scabin. “Mas reconheço que posso ter ido longe demais na história.” (LEAL, 2014, online, grifos nossos)

Já a respeito da fabricante de bebidas, escreve a revista:

A fabricante carioca de sucos Do Bem, criada em 2007, publica verdadeiros manifestos em suas caixinhas. A Do Bem não usa açúcar, corantes ou conservantes para fazer uma “bebida verdadeira”. Um desses manifestos diz que suas laranjas, “colhidas fresquinhas todos os dias, vêm da fazenda do senhor Francesco do interior de São Paulo, um esconderijo tão secreto que nem o Capitão Nascimento poderia descobrir”. Os sucos custam cerca de 10% mais do que os da concorrência. Mas as laranjas não são tão especiais assim. Na verdade, quem fornece o suco para a Do Bem não é seu Francesco, que jamais existiu, mas empresas como a Brasil Citrus, que vende o mesmo produto para as marcas próprias de supermercados. Em nota, a empresa disse que não comenta a política de fornecedores e que o personagem Francesco é “inspirado em pes-soas reais”. (LEAL, 2014, online, grifos nossos)

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A publicação provocou polêmica – e denúncias ao Conar (Conselho Nacional

de Autorregulação Publicitária). O desfecho veio pouco tempo depois6. No fim de

2014, julgamento do Conar isentou a Do Bem de qualquer responsabilidade,

arquivando o processo contra ela e acatando o argumento de que as laranjas da marca

vinham de muitas fazendas, incluindo de um senhor Francisco. Já à Diletto o conselho

de ética recomendou que explicitasse, nas embalagens, que a história do “nonno

Vittorio” era uma peça de ficção.

À parte as recomendações do Conselho, que não julga o princípio ético das

ações das empresas, mas apenas a peça publicitária em si, neste momento de

crescimento exponencial dos usos e discussões a respeito do storytelling na

propaganda acreditamos que os casos citados merecem consideração mais detida, do

ponto de vista ético.

Ética: o X da questão

Antes de prosseguirmos ao debate sobre a ética no storytelling dessas marcas,

é importante delimitar o campo da ética, conforme nosso entendimento.

Primeiramente, cumpre estabelecer a distinção entre ética e moral, que, no

limite, é a diferença entre uma teoria e uma prática – e temos plena ciência do quão

espinhosa essa distinção, aparentemente simples, é.

A moral é uma prática. Atos concretos são morais ou imorais. A prática da

moral é também individual, ainda que condicionada às normas, tácitas ou explícitas,

institucionalizadas ou não, da sociedade em que o indivíduo se insere.

Já a ética é uma ciência, um ramo da filosofia que se dedica a refletir sobre a

moral. Ética é pensamento, portanto, crítica e análise. A ética parte dos

comportamentos morais e os sistematiza, busca princípios, analisa as justificativas

atribuídas a eles. Limita-se ao campo teórico, da discussão – muito embora essa

6 A cobertura da Folha de S.Paulo narra o desfecho. Texto disponível em: http://www1.folha.uol.com. br/mercado/2014/12/1561185-conar-arquiva-caso-de-sucos-do-bem-e-diletto-tera-de-alterar-propaganda. shtml. Acesso em 13/5/2016.

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discussão, alimentada pelo exemplo moral, possa influir futuramente no

comportamento prático-moral, transformando-o.

A questão é polêmica entre estudiosos, e não é difícil encontrar entendimentos

diversos a respeito desses termos. O professor hispanomexicano Adolfo Sánchez

Vázquez, cuja perspectiva ora seguimos, esclarece:

Los problemas éticos se caracterizan por su generalidad, y esto los distingue de los problemas morales de la vida cotidiana, que son los que nos plantean las situaciones concretas. (...) La ética es teoría, investigación o explicación de un tipo de experiencia humana, o forma de comportamiento de los hombres (...) El valor de la ética como teoría está en lo que explica, y no en prescribir o recomendar con vistas a la acción en situaciones concretas. (VÁSQUEZ, 1995, p.22-23)

Na sequência o autor define a ética como “la teoría o ciencia del

comportamiento moral de los hombres en sociedad” (1984, p. 25) – definição que

seguiremos neste artigo.

Já o professor Mário Sérgio Cortella fala que “ética é o conjunto de valores e

princípios que você e eu utilizamos em nossa conduta” (2013, p. 51). Interessa-nos

ressaltar, ao lado de Cortella, que esse conjunto de princípios não pode ser individual,

por mais que a tentação se nos ocorra frequentemente. A ética é necessariamente

coletiva. “Precisamos lembrar: não existe ética individual. Ética é sempre de um

grupo, de uma coletividade. (...) e nosso sonho é uma ética universal, que todos os

homens e mulheres do planeta a tenham partilhada – não existe ainda, a não ser como

horizonte.” (idem, p. 51)

Ao aceitarmos a possibilidade de uma ética individual, corremos o risco de

legitimar um dos pensamentos (pseudo)éticos mais nefastos, que é o do completo

relativismo, operando valores opostos conforme o interesse de ocasião. O professor

Danilo Marcondes condena esse tipo de comportamento, que provoca:

(...) dicotomia, ou dualidade, entre uma ética para fins internos, isto é, para nossa família, para o grupo de que fazemos parte, ao qual

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pertencemos; e uma ética para fins externos, ou seja, para lidarmos com os outros, com o “mundo lá fora”. A atitude ética autêntica não deve admitir dicotomia, já que não faria sentido um comportamento ético restrito apenas a um plano interno e um comportamento oposto no plano externo. Neste caso, na verdade, o indivíduo não estaria agindo eticamente, faltaria coerência na adoção dos princípios. (MARCONDES, 2007, p. 12, grifo nosso)

Caio Túlio Costa (2009) chama de “moral provisória” o comportamento,

frequente na indústria da comunicação, de acordo com o autor, segundo o qual se

estabelecem princípios de ocasião, com validade de dias ou horas, para justificar uma

decisão profissional. Comportamento que também possibilita que um mesmo

princípio ético possa ser usado para legitimar ou deslegitimar uma fonte, conforme o

interesse do jornalista.

Embora o comportamento moral existe desde quando o homem se agrupou em

sociedade, e, portanto, desde quando fez sentido falar em um comportamento moral

(ações de minha livre escolha que ao serem tomadas afetam outros ao meu redor), a

ética efetivamente surgiu muitos milênios depois. A maioria dos estudiosos localiza o

início da ética no período grego clássico, por volta do século V a.C. com filósofos

como Platão e Aristóteles – ainda que se identifique as influências de Sócrates e Pré-

Socráticos no pensamento desses autores. Ao longo dos séculos, contudo, vários

outros sábios retomaram o tema da ética, que hoje é dos ramos mais férteis da

filosofia, e apresentaram concepções radicalmente diferentes entre si.

Considerando que nossa discussão exclui a possibilidade de uma “ética

individual” e, ao contrário, almeja uma ética maiúscula, de vida coletiva, e

considerando ainda que a discussão ética é uma discussão de princípios, avancemos

então às narrativas arquitetadas pelo suco Do Bem e pelo sorvete Diletto.

Mas afinal, qual concepção ética pode ser encontrada nas narrativas dessas

marcas? Uma boa pista pode ser encontrada na fala atribuída a Leandro Scabin, sócio-

fundador da Diletto, na reportagem da revista Exame, em que afirma: “A empresa não

teria crescido tanto sem a história do avô e o conceito visual que construímos. Como

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eu convenceria o cliente a pagar 8 reais num picolé desconhecido?”.

Passemos à busca do princípio ético, então, e não do comportamento moral

específico da ocasião. Nota-se na fala de Scabin a preocupação com a sustentabilidade

financeira de seu negócio. A ficção narrativa presta-se, assim, ao objetivo de

“convencer o cliente” a comprar um picolé considerado caro.

A preocupação da marca, portanto, é com o resultado de vendas. Não é, como

é fácil notar, uma preocupação estranha às empresas em geral. Nesse sentido, a Do

Bem age da mesma maneira: a história das “laranjas secretas” serve ao propósito de

tornar o produto mais desejável e mais qualificado: vender mais, vender mais caro.

Dentro dessa lógica, é possível afirmar que a preocupação ética dessas

empresas é pensada a partir das consequências de suas ações, e não dos princípios.

Em outras palavras, são aceitáveis as ações que produzem os resultados desejados. Se

assim pensarmos, aproximamo-nos do mais conhecido pensador da ética dita

consequencialista: Nicolau Maquiavel.

Maquiavel, pensador revolucionário, afasta no século XVI a discussão ética do

plano religioso e pensa numa ética de estado, para o governante, em que o Estado está

acima da pessoa. Embora nunca tenha escrito que os fins justificam os meios, a noção

é frequentemente atribuída ao autor por conta de sua proposta geral: a de uma ética a

partir da qual o valor moral das ações das pessoas seja medido somente depois de

avaliadas suas consequências, em uma perspectiva histórica.

Um exemplo muito contemporâneo desse pensamento pode ser encontrado nas

discussões de reforma da Previdência em países de financiamento de aposentadoria

deficitário como o Brasil. Podemos imaginar que, para Maquiavel, a reforma da

Previdência, embora pareça uma maldade ao elevar a idade mínima de aposentadoria

ou reduzir os seus benefícios, é na realidade virtuosa, por produzir frutos que

futuramente permitirão a manutenção do Estado. Como fundador da moderna ciência

política, Maquiavel preocupa-se sobretudo com a manutenção do Estado, ente maior

do que qualquer homem.

A ética de Maquiavel é consequencialista e pragmática por se preocupar com

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resultados concretos de ações tomadas em benefício (futuro) da coletividade.

Ousamos dizer, pensando agora no moderno sistema de organizações capitalistas, que

é a ética prevalecente entre as empresas do mundo atual.

É o caso de Diletto e Do Bem, segundo as quais é preciso, para se manterem

no mercado, recorrer a uma sedutora ficção, sem antes alertar seus clientes.

Nesse sentido, os casos em questão não tratam apenas de uma oposição entre

os princípios do LUCRO e da VERDADE, como pode parecer. Trata-se, mais

profundamente, de uma situação que opõe os princípios da VIDA e da

SINCERIDADE, entendida na ética corporativa como “a qualidade que busca evitar

uma autoavaliação incorreta, o perjúrio e o falso testemunho” (ALONSO, LÓPEZ e

CASTRUCCI, 2010).

Observar o storytelling de Diletto e Do Bem sob a ótica de uma oposição entre

VIDA e SINCERIDADE complica significativamente uma discussão que parecia

resolvida. Desde Kant, a solução para essa controvérsia não para de receber

contribuições e críticas. Para o filósofo alemão, que elaborou uma ética de princípios

a partir da noção do imperativo categórico (princípio universalizante da conduta como

legitimador dela), o dever de dizer a verdade se impõe em absoluto sobre todos os

outros. Imagine a vida numa sociedade em que todos mentem, propõe o autor, e

facilmente você verá que esse comportamento é inaceitável. Portanto, jamais minta.

Mas, no século 20, filósofos contemporâneos como Edgar Morin (1991)

introduzirão o princípio da complexidade, segundo o qual cada valor tem um

contravalor igualmente defensável, e abrirão espaço para uma ética ainda mais

cinzenta, ainda mais plural e inacabada. Se a verdade tem seu valor, dirá Morin,

também a mentira o tem.

Imagine, por exemplo, uma situação em que seja preciso mentir, em que a

mentira seja eticamente fundamental: no início do filme “Bastardos Inglórios” (EUA,

Alemanha, 2009), de Quentin Tarantino, há uma excelente ilustração desse problema.

Quando um oficial nazista pergunta a um camponês se ele esconde judeus em casa,

como defender a verdade como princípio categórico superior à própria vida de

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cidadãos inocentes, que serão barbaramente torturados e assassinados?

A ética da discussão, a ética contemporânea, não admite tabelas e conjuntos de

normas, não comporta decálogos. É preciso discutir, argumentar, refletir e ponderar

sobre cada ato. Nesse sentido, a pergunta “Diletto e Do Bem agiram bem ao

apresentar ficções como se reais fossem?” é complexa ao considerarmos que, em um

mercado ultracompetitivo, a pequena ficção ajuda a manter viva a empresa, que paga

centenas de salários e milhões em impostos.

Por outro lado, quando pensamos em uma ética maiúscula, da vida coletiva, o

comportamento soa condenável. A resposta, como dirá Habermas (2004), está na

esfera pública. A ética contemporânea, segundo proposta do pensador alemão, deve

ser uma ética fundamentalmente de debate, em que triunfam os melhores argumentos

– visto que argumentos há para cada valor e para cada contravalor, complexamente.

Nesse sentido, a empresa pode argumentar a favor do princípio de sua própria VIDA,

ou subsistência, como valor maior. Mas, pensando na ética maiúscula, não temos

dúvidas. A verdade, ou a SINCERIDADE, paira acima da busca do lucro. A

manutenção da empresa não pode ser um valor que tudo justifique, pois assim, em

última análise, estariam legitimadas quaisquer atrocidades – mentir sobre um

ingrediente tóxico, desrespeitar direitos trabalhistas ou o que fosse. O caminho mais

correto, mais ético, parece estar na conjugação desses valores: a partir de um princípio

de sinceridade, buscar meios de obter o lucro necessário.

Encerramos esta provocação com um pensamento de Clóvis de Barros Filho,

durante diálogo com Mário Sérgio Cortella registrado em livro, que soa oportuno:

A capacidade de problematizar significa a condição que se tem de perguntar por que certo princípio deve triunfar sobre outro. Essa é a condição do funcionário de um banco que deveria poder questionar por que o foco é no resultado e não na honestidade no trato com o cliente. E a palavra foco, para mim, é muito boa. É ela que indica a necessidade de, diante da complexidade dos princípios, ter que escolher. Se os meus princípios apontam para soluções de vida contraditórias, tenho que “dar a cara a tapa”. Tenho que dizer: “Isto aqui deve preponderar sobre isso”. (BARROS FILHO e CORTELLA, 2014, p. 36)

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