o premium e o avesso do premium na publicidade: a retórica...
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PPGCOMESPM//SÃOPAULO//COMUNICON2016(13a15deoutubrode2016)
O premium e o avesso do premium na publicidade: a retórica visual da crise brasileira1
Bruno Pompeu2
Istituto Europeo di Design (IED-SP)
Resumo
Como desdobramento dos trabalhos apresentados em edições anteriores deste congresso, o presente artigo tem por objetivo analisar o discurso publicitário em tempos de crise, procurando evidenciar os valores e os significados que se propagam. Tendo como referencial teórico a antropologia (do consumo) e marco metodológico a semiótica (peirceana), busca-se trazer luz aos efeitos da atual crise brasileira na esfera do simbólico. As análises se concentram na estética do premium e em uma estética inversa, ambas assumindo funções e sentidos bastante peculiares frente ao contexto econômico, social e político brasileiro de hoje.
Palavras-chave: consumo; publicidade; crise; premium.
Introdução
Este trabalho brota da rua, das placas nos pontos de ônibus, das vitrines, das
páginas das revistas, dos cartazes, das embalagens e dos materiais de ponto de venda.
Brota também das telas, das telas dos celulares, dos tablets, das televisões e dos
computadores. Brota de tudo aquilo que serve de meio ou de suporte para o discurso
do consumo por excelência, a publicidade. Publicidade que, quando examinada pela
ótica das ciências do consumo e da linguagem, se revela portadora de significados,
oferecendo menos produtos bons ou preços baixos do que valores, ideias, conceitos,
1 Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho 10 – Consumo, literatura e estéticas midiáticas, do 6º Encontro de GTs de Pós-Graduação - Comunicon, realizado nos dias 14 e 15 de outubro de 2016. 2 Doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (PPGCOM-USP). Publicitário formado pela ECA-USP. Professor do Istituto Europeo di Design (IED-SP). Membro do Grupo de Estudos Semióticos em Comunicação, Cultura e Consumo (GESC3). E-mail: [email protected].
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pontos de vista sobre a realidade. Por cima do sabonete, o exotismo; para além da
margarina, a saúde; revestindo a pasta de dente, a liberdade.
E o que se pretende, neste estudo, é analisar justamente essa dimensão
simbólica da publicidade frente ao contexto de crise econômica que se instala no
Brasil nos dias de hoje.
Quando se pensa em crise econômica, a relação com o consumo é direta:
pensa-se naquilo que as pessoas não mais poderão comprar, discute-se as categorias
de produtos que podem ganhar ou perder (consumidores) durante a recessão. Só que
isso não é consumo – isso é compra. As discussões sobre os impactos da crise no
comportamento do consumidor giram quase sempre ao redor das compras, do
investimento estritamente financeiro que se faz, que se deixa de fazer ou que se passa
a fazer em determinados produtos, marcas ou serviços. Ao passo que pensar em
consumo é considerar também os significados que se trocam, que se deixa de trocar
ou que se passa a trocar por efeito da crise.
Ao ter que trocar de marca (daquela mais sofisticada por esta mais popular),
ao ter que mudar de categoria de produto (da manteiga para a margarina, da maçã
para a banana, do molho para o extrato) ou ao ter que reduzir quantidade (de dois para
um, de uma vez por semana para uma vez por mês, do concentrado ao diluído), o
consumidor muda apenas seus hábitos de compra. E se adapta com certa facilidade ao
novo panorama – os que viveram os anos 80 sabem disso. Mas a busca pelos
significados permanece. A falta de dinheiro pode limitar o acesso a determinados
produtos. Mas a busca por um significado não passa pela carteira ou pelo cartão de
crédito. Os sentidos que os produtos e a publicidade nos permitiram ter em casa, à
mão, compondo ao mesmo tempo nossa cultura e nosso cotidiano, não deixam de uma
hora para outra de ser atraentes, sedutores ou necessários. O discurso público sobre a mercadoria gera significados que transformam o objeto comercial em signo. Tendo o consumidor absorvido esses significados, ele provavelmente, em certo nível da sua consciência, redescobrirá esse signo no mercado, dentro do sistema de mercadorias. (SANTAELLA & NÖTH, 2010, p. 53)
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Eis o ponto de partida deste trabalho, que decorre de outros já apresentados em
edições anteriores deste congresso, mas que mira exatamente o contexto de
intensificação da crise brasileira atual, flagrando novos aspectos do discurso
publicitário, já absorvendo esse novo panorama.
1. Crise e consumo
Conforme visto acima, o que se vai privilegiar neste estudo é a dimensão
simbólica do consumo. Ou seja: ao analisarmos campanhas publicitárias e refletirmos
sobre o que está sendo oferecido pelas marcas e desejado pelas pessoas, vamos estar
falando sobre significados, conceitos, ideias. Vamos estar falando também de algo
que transcende ao individual – às necessidades ou aos desejos específicos de cada
consumidor – e que atinge a esfera do coletivo – dos anseios de uma população, dos
valores que a balizam. O consumo, por menos que individualmente se queira, une as
pessoas, cria grupo, integra. Ao redor dos sentidos carregados por um bem ou
produzidos por uma propaganda estão pessoas que não se conhecem, mas que
inevitavelmente partilham dos mesmos valores.
E não se pode pensar nisso tudo sem ser remetido diretamente a Mary Douglas
e Baron Isherwood, considerados fundadores do ramo da antropologia – ele,
conquanto, economista – que se dedica exclusivamente ao consumo. Quando se diz que a função essencial da linguagem é sua capacidade para a poesia, devemos supor que a função essencial do consumo é sua capacidade de dar sentido. Esqueçamos a ideia da irracionalidade do consumidor. Esqueçamos que as mercadorias são boas para comer, vestir e abrigar; esqueçamos sua utilidade e tentemos em seu lugar a ideia de que as mercadorias são boas para pensar: tratemo-las como um meio não verbal para a faculdade humana de criar. (DOUGUAS & ISHERWOOD, 2009, p. 108)
Inspirador.
Mas como se articulam produtos, bens e mercadorias (esfera material);
pessoas, indivíduos e consumidores (esfera social); significados, valores e sentidos
(esfera cultural); publicidade, discurso e propaganda (esfera comunicacional)?
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Quem nos dá a resposta é Grant McCracken (2012 e 2003), antropólogo
canadense, e seus seguidores brasileiros, Everardo Rocha e Cláudia Pereira (2013 e
2006), para quem o discurso publicitário se constitui especialmente como um
mecanismo de transferência de significados da cultura para os bens. E nós,
consumidores, linguageiros, humanamente ávidos por significados, querendo sempre
tudo aquilo que nos faça sentido, consumimos esses bens.
Desde os anos 90 do século passado, quando a economia brasileira alcançou
certo patamar de estabilidade, mas principalmente desde a primeira metade da
primeira década deste milênio, quando o crescimento econômico do país e uma série
de medidas institucionais permitiram uma profunda transformação na constituição
socioeconômica (e consequentemente cultural) do Brasil, temos tido acesso a uma
infinidade de ofertas mercadológicas maravilhosas. E nos acostumamos a elas. Ao
mesmo tempo, o mundo se acelerava tecnologicamente, com a popularização das ditas
novas tecnologias (basicamente, internet e celular), fazendo com que aquelas
transformações de âmbito nacional se potencializassem na interface com as
revoluções que se davam em esfera global.
Assim, tivemos uma verdadeira explosão de consumo – não apenas de coisas
ou produtos, mas também de serviços, marcas, causas, ideias, conteúdos, informações,
imagens, estilos etc. Ou seja: consumo de signos. E, se um dia, na virada do XIX para
o XX, Charles Sanders Peirce disse que os signos tendem ao complexo (1995), o que
passamos a ter nos últimos anos é um mundo extremamente sofisticado, intrincado,
quase caótico em sua dimensão semântica. Dizendo tudo isso com outras palavras: se
as novas tecnologias abriram globalmente imensas porteiras a um mundo de infinitos
significados, muitos dos quais saborosos e inebriantes, o favorável contexto
socioeconômico brasileiro nos permitiu pagar o bilhete de entrada.
Daí, mais do que carros, aparelhos eletrônicos, roupas ou comidas, o que
passamos a ter em nossas vidas foi o conforto, o deleite, a beleza, a rapidez, a
flexibilidade, a excelência, a diferenciação, o pertencimento, a juventude, a tradição, a
harmonia, a novidade, a estrangeirice, a exclusividade... significados amalgamados
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em produtos, sentidos esmaltados em matéria descartável, valores embrulhados nas
melhores e mais caras embalagens.
Mas agora o contexto é outro. Instala-se no Brasil uma crise econômica das
boas, daquelas que não se viam desde os tempos do Sarney, fazendo com que o acesso
a essa dimensão material do consumo esteja severamente ameaçado – se não já
plenamente comprometido. E onde vamos buscar a dignidade que aquele carro off-
road nos dava, se o trabalho já não dignifica ninguém? E como podemos nos sentir
mais leves sem o iogurte que é laxante, se a nossa moral vigente só nos puxa para o
fundo e para baixo? Ou ainda: como é que eu posso me diferenciar de todos os outros,
sem dinheiro para o resort, para o camarote ou para a ala VIP, já que o sol nasceu para
todos, já que a Praça Castro Alves é do povo e já que a festa é sua, a festa é nossa e é
de quem vier?
2. O premium e o avesso do premium
Por mais que se as queira condenar ou questionar, as lógicas dualistas usadas
desde há muito para tentar explicar a história, o povo ou a cultura brasileira são as que
mais encontram eco na realidade, no mundo cotidiano que está ao nosso redor. A
casa-grande e a senzala, do monumental Gilberto Freyre (2006), e a casa e a rua, do
pungente Roberto DaMatta (1997), nos parecem paradigmas importantes quando se
quer pensar no comportamento de consumo do brasileiro. E o que ambas as lógicas
têm em comum – pelo menos no que nos interessa neste texto – é a questão da
diferenciação.
Se o uísque é até hoje uma bebida que marca o consumo do estado de
Pernambuco, justamente por não se parecer visualmente com a cachaça, demarcando
ostensiva e socialmente o espaço da elite (da casa-grande) – produto caro, raro,
importado – e diferenciando-o do espaço do povo (da senzala) – produto barato, banal
e brasileiro –, o “sabe com quem você está falando” é patente nacional atemporal,
podendo ser usado em todas as horas, em qualquer ocasião. Um é distinção vertical,
demarcando o rico do pobre, o senhor do escravo, a elite do povão; o outro é distinção
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horizontal, separando o indivíduo do coletivo, diferenciando o eu do eles,
transformando a regra em exceção.
E o premium, conceito mercadológico usado tão largamente em nosso país,
concentra essas duas possibilidades de diferenciação. A existência de um produto
premium depende da existência de um produto “normal”. E não estamos falando de
algo necessariamente caro – estamos falando de algo simplesmente sugere o especial,
o diferente, o exclusivo. As imagens abaixo apresentam algumas das diferentes
possibilidades que o mercado tem usado para expressar o conceito do premium.
Figura 1 - Diferentes possibilidades usadas no mercado para se "premiunizar" um produto.
A ideia de diferenciação, elemento básico para a construção do conceito de
premium, pode se dar a partir de uma embalagem menos previsível ou comum, seja
na forma, no material ou na funcionalidade. É o que acontece com a água Minalba,
por exemplo, que oferece exatamente o mesmo produto de sempre – água mineral da
fonte Água Santa – porém em uma garrafa de vidro, de design mais inventivo.
No caso do açúcar União, o premium se constitui a partir das sugestões de
ocasião de uso do produto. Se a versão “normal” do açúcar, em pacotes de um quilo, é
para os bolos e os açucareiros de casa, a sua versão premium é para o cafezinho e o
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suco, ambos tomados na rua, já que vem em sachês ou cubinhos. Importante destacar,
entretanto, que já existe uma versão híbrida do produto: é premium, mas vem em
pacote de um quilo.
A qualidade do benefício oferecido, por sua vez, é o que marca a distinção
entre a versão premium e a versão regular tanto do sabão em pó Ypê quanto dos
produtos de beleza Racco. Oferecem-se mais limpeza, mais intensidade, melhores
resultados... ainda que não se aponte com clareza quais são os fatores que possam
contribuir para essa distinção.
E, por fim, no caso dos néctares (pseudosucos) Jandaia, é a concentração do
seu ingrediente principal que faz com que se possa falar em um produto premium.
Mas também se destacam atributos do produto, como a ausência de conservantes e a
presença de vitamina C. Ou seja: saudabilidade e naturalidade.
Como fica evidente, o premium é um conceito – ou uma estratégia –
absolutamente relativo e subjetivo. Não está pautado em critérios rigorosos, tampouco
se constrói a partir de uma regularidade de práticas mercadológicas. Não tem a
precisão e o aspecto indiscutível do luxo, sendo muito mais flexível e variável. Se o
luxo é absoluto, o premium é relativo; se o luxo custa caro, o premium pode ser de
graça; se o luxo é de fato para poucos, o premium apenas sugere uma exclusividade;
se o luxo tem qualidade total, o premium pode ser apenas aparência. A diferenciação
que o premium oferece não é a que reforça os extremos de uma polarização radical.
Pelo contrário, é a que acentua a constante inter-relação entre esses dois universos. No Brasil, mais importante do que os elementos em oposição, é a sua conexão, a sua relação, os elos que conjugam os seus elementos. (...) O segredo de uma interpretação correta do Brasil jaz na possibilidade de estudar aquilo que está “entre” as coisas. Seria a partir dos conectivos e das conjunções que poderíamos ver melhor as oposições, sem desmanchá-las, minimizá-las ou simplesmente toma-las como irredutíveis. (DAMATTA, 1997, p. 25)
O que o premium faz é oferecer uma chave de acesso a uma série de
significados extremamente valorizados no contexto cultural brasileiro. E isso, em um
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momento de crise como este que se enfrenta, revela-se um valor inestimável – para as
pessoas e para as empresas.
Mas o inverso também tem se visto. No lugar das faixas douradas, das
embalagens escuras e das letras rebuscadas, uma estética diferente, marcada pela
simplicidade, pela economia de elementos e pela objetividade da mensagem. Estamos
falando de algo novo, que ainda não foi batizado por nenhum guru do marketing, mas
que, igual ao premium, sendo, enfim, o seu avesso, surge dessa imensa capacidade
sensível que a publicidade tem – que os publicitários têm, junto dos marqueteiros e
dos designers – de compreender o mundo e transformar esse mundo em linguagem.
Se as portas ao consumo exacerbado estão menos abertas, a sensação de
restrição é generalizada, não sendo exclusiva de pobres ou de ricos, ainda que recaia
com pesos diferentes sobre cada grupo. E o que se tem visto, no sentido inverso ao do
premium, são marcas elitizadas abrindo mão do universo simbólico construído,
centrando seus discursos na economia, na racionalização e na compra cotidiana,
prosaica e miúda. Abre-se mão dos significados elitizados – justamente aqueles
buscados através do premium – e parte-se para uma estratégia no mínimo inusitada:
trazer os valores da marca para as pequenas ações do dia-a-dia. Em vez de um
produto ou uma marca feitos para ocasiões especiais (ainda que diárias), funcionando
como signo de sofisticação, elitização e superioridade, oferecem-se esses mesmos
valores, só que diluídos e concretizados no consumo cotidiano, no banal de cada dia.
3. O premium e seu avesso no discurso publicitário
Os anúncios apresentados abaixo são todos recentes, alguns inclusive ainda
em veiculação, o que reforça tanto o caráter de urgência deste texto, que nasce, como
já dito, do quente ambiente midiático-publicitário das ruas e das telas, quanto seu
aspecto de imprecisão. Está tudo aí, acontecendo, meio que em resposta ao que se
estudou nos artigos apresentados nas últimas edições deste congresso. Em 2014,
apresentamos uma publicidade já tensionada entre um universo simbólico de elite e
um universo simbólico popular, cada qual com seus valores próprios (POMPEU &
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AKINAGA, 2014). No ano passado, a dita crise já se fazia notar e o que flagramos
foram peças publicitárias que já incorporavam em seu discurso o novo contexto de
recessão, seguindo caminhos argumentativos diferentes (idem, 2015).
O que temos agora é como a combinação desses dois pontos de vista, que salta
à percepção do publicitário-pesquisador sensivelmente atento, metodologicamente
vestido com as armas de Peirce. Neste ponto, semiótica e antropologia do consumo se
unem na mesma intenção: a de se buscar entender a realidade por meio dos signos que
compõem o discurso publicitário.
Quando os indivíduos atentam para os anúncios ou para qualquer outra forma de estímulo, estão olhando para um material que foi culturalmente constituído, e eles o interpretam de acordo com as convenções culturais. Essas convenções especificam dos mais simples aos mais complexos atos perceptíveis, como regras retóricas. (MCCRACKEN, 2012, p. 179)
Ou seja: os valores assumem estéticas, ganham forma, ganham cores, texturas,
enquadramentos e tudo o mais. Por trás de uma determinada materialidade estética,
temos os significados que a publicidade oferece.
Assim é, por exemplo, com algo que se costumou chamar – principalmente
nos últimos anos da bonança socioeconômica brasileira – de “gourmet”, uma espécie
de guardachuva semântico, que abrigava ideias de sofisticação relacionadas ao
universo da alimentação e da gastronomia. Os ingredientes exóticos, rústicos ou
orgânicos (sal do Himalaia, quinoa), os processos mais elaborados de preparação
(selar, reduzir), as combinações inerentes a um determinado prato (manga e brie, pato
e pitanga), a “harmonização” entre um prato e sua bebida acompanhante (vinho,
cerveja), tudo isso passou a fazer parte do imaginário cotidiano brasileiro, fosse na
forma concreta de produtos para essas finalidades, fosse nos inúmeros programas
televisivos de culinária, fosse nas páginas virtuais ou nas redes sociais.
Dentro desse universo, destaca-se o mercado das chamadas cervejas artesanais
ou especiais. Diferente da cerveja “comum”, loira, barata e gelada, essas versões
especiais do produto ofereciam ao consumidor novos valores, como elaboração,
sofisticação, internacionalização, refinamento etc. E a um preço bem mais caro,
lógico.
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Com a crise instalada, veio a oportunidade: lançar uma cerveja de marca
popular (conhecida, barata, do dia-a-dia), porém trazendo em sua comunicação os
códigos visuais do consumo gourmet. Ou seja: uma cerveja premium.
Figura 2 – Cerveja Brahma Extra
Deixam-se de lado as mulheres boazudas, as festas cheias de gente ou a
sugestão do botequim. Na campanha de Brahma Extra, há lugar apenas para essa
linguagem visual típica do universo gourmet: uma superfície de madeira rústica,
como que sugerindo algo ligado ao universo da raw food ou da oger food, um forte
trabalho tipográfico, de leve inspiração hipster, transformando letra em forma,
fundindo texto e imagem; molduras que remetem a um estilo decorativo antigo,
porém revisitado na sua combinação com os demais elementos, talvez algo entre o
vintage e o retrô; e, mais interessante de tudo, a presença de uma chave nas três peças
analisadas, simbolizando quase que literalmente o acesso (a chave de acesso) ao
universo gourmet. Isso sem falar no slogan da campanha – “Abra um mundo
extraordinário.” –, fortemente sugestivo: é acesso (“abra” - diante da restrição e do
fechamento), é universo (“mundo” – de sentidos, não apenas de produtos), é especial
(“extraordinário” – não é comum, não é banal).
Estratégia semelhante está sendo adotada pela rede de sanduíches
McDonald’s. Recentemente, aproveitando a onda dos food trucks, também sob o
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guarda-chuva do gourmet, a marca
lançou um produto especial, que
oferece um pouco do que as
caminhonetas gastronômicas ofereciam
– o premium relacionado ao gourmet –,
só que na sua propaganda e a um preço
mais baixo. As texturas rústicas, o
trabalho tipográfico e o aspecto
artesanal da produção visual (estêncil,
giz, grafite, caligrafia) reforçam os
mesmos sentidos oferecidos na
campanha de Brahma Extra.
Sabem os que estudam o mercado de luxo (DINIZ, 2012; TEJON et al., 2010;
STREHLAU, 2008) o quanto os perfumes, os óculos, os lenços e as maquiagens,
desses que se compram em free shops, contribuíram simultaneamente para a
popularização e para a elitização das marcas. Se, por um lado, ficam mais conhecidas,
parcialmente ao acesso de muitos; por outro permanecem intocáveis em suas lojas
pouco acessíveis e em seus produtos inatingíveis. Cada perfume dessas marcas
oferece ao consumidor a preciosa migalha de um universo simbólico maravilhoso –
de sonho, beleza, sedução, poder etc. Entretanto, hoje, por questões cambiais e
conjunturais, essas migalhas estão mais caras – assim como também estão as viagens
internacionais, o ambiente mítico da sala VIP e a sensação de se estar em alguma
medida apartado do grosso da população.
Daí vem a Jequiti – marca popular de perfumes e cosméticos que, se não tem
seu marketing diretamente comandado pelo insuperável Silvio Santos, carrega em sua
essência corporativa o senso oportunista e a sensibilidade ao popular que esse
empresário sempre demonstrou ter – e lança a seguinte campanha.
Figura 3 - McDonald's Club House
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Figura 4 - Perfume Luan Santana VIP
Mais literal, impossível. Adota-se uma estética completamente alinhada ao
universo da elitização, sobretudo na opção pelo preto-e-branco mais refinado, em
detrimento do colorido mais festivo. E vai-se além. Uma grade, ao fundo, não deixa
dúvidas: não é para qualquer um, povão fora, distância, diferenciação.
É claro que estamos falando de um produto bastante popular, ainda que não se
possa considera-lo propriamente barato. O que estamos ressaltando é a capacidade
que a linguagem visual de sua publicidade tem de sugerir o acesso a um universo
distinto, o da elitização, sendo, portanto, premium. Ou melhor: VIP, como o próprio
nome do produto sugere. É o mesmo VIP das salas especiais em aeroportos e das
áreas separadas em eventos, que agora já não podem fazer parte da rotina da
população. E o slogan é ainda mais didático: “O significado de ser exclusivo”. Ignora-
se se o redator de tal pérola é semioticista ou poeta, mas reconhece-se nele uma
enorme capacidade de ser claro, objetivo e direto. O que o perfume Luan Santana VIP
oferece a você? Bom cheiro? Não. Simplesmente o significado de ser exclusivo –
destacamento social, distinção, diferenciação.
Mas existe também um outro lado dessa moeda. O das marcas elitizadas que,
diante da crise, precisam se mexer. A American Express – marca de cartões de crédito
que é referência quando se pensa em exclusividade e esnobismo – está veiculando
atualmente uma campanha que surpreende a quem estava acostumado com seu
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universo simbólico característico. São peças publicitárias simples, compostas apenas
por um fundo chapado, um texto em tipografia comum e uma imagem ilustrativa.
Figura 5 - American Express
E o que mais surpreende são os textos, em relação de complementariedade
com as imagens. “Não é só para passagens aéreas”, junto de um gatilho de
combustível, sugere a distância daquele mundo encantando dos aeroportos, dos
comissários, das compras sem imposto e das salas VIP. American Express é também
para a rua esburacada da capital, para o ambiente sujo do posto de gasolina, para o
congestionamento e o rame-rame de cada dia.
A peça com a frase “Não é só para o almoço de negócios” é também precisa,
fazendo distanciar a mesa com duas toalhas, o atendimento personalizado, o tilintar
dos copos caros e o contrato milionário fechado, firmado por mãos e punhos com
relógios e ataduras. A imagem é mais direta ainda: pode ser para o hambúrguer na
esquina, para o pão na padaria, para o lanche rápido, de pé, para voltar rápido ao
escritório e tentar escapar das demissões que vão ocorrer no fim do mês.
Ao adotar uma linguagem (visual e textual) seca, fria, simples e direta, a
marca se aproxima do cotidiano, do ordinário, fazendo o caminho inverso ao do
premium. Curiosamente, o hambúrguer premium-gourmet de McDonald’s encontra
eco no hambúrguer seco de American Express; enquanto que a área VIP de Jequiti é
tudo o que se evita na gasolina também de American Express. Não são coincidências.
São evidências de que o contexto simbólico-cultural que molda, provoca e filtra a
publicidade está se modificando e as marcas já trazem sensivelmente essas mudanças
para o seu discurso.
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4. Considerações finais
A ideia deste estudo era essa mesmo: interpretar uma parte do contexto
cultural brasileiro, principalmente no que se refere ao consumo, a partir do discurso
publicitário vigente. Ou ainda: verificar de que forma a nova conjuntura
socioeconômica do país está se refletindo no discurso das marcas. Isso porque: A publicidade serve como um tipo de dicionário que constantemente nos mantém informados dos novos significantes e significados do consumo. Não podemos ler o contexto cultural sem essa fonte de instrução. Nesse sentido, a publicidade fornece uma contribuição importante para o contexto do consumo. (MCCRACKEN, 2012, p. 177)
E, quanto mais exemplos buscássemos, mais
evidências encontrar-se-iam. Magnun, por exemplo,
linha de sorvetes da Kibon, acaba de lançar no Brasil
uma versão premium, com cobertura de chocolate
belga. American Express, por sua vez, diz no painel
do relógio da avenida (que infelizmente ainda não
foi fotografado): “Não é só para o chocolate belga”,
mostrando a imagem de um brigadeiro. Ou seja:
enquanto a marca popular oferece o distante, o
importado e o deleitoso, como formas de acesso à
diferenciação; a marca de elite oferece a rotina, o
brasileiro, o popular.
São os dois lados da mesma coisa: a publicidade brasileira reagindo diante de
um novo panorama social, político, econômico e consequentemente cultural. E, na
condição de pesquisador da comunicação e do consumo, o que se pode fazer – o que
se deve fazer – é seguir acompanhando essas transformações, procurando relacionar
valores, linguagens e contexto.
Figura 6 - Sorvete Magnun
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