o debate do estigma na atualidade

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243 Educação e Pesquisa, São Paulo, v.34, n.2, p. 243-254, maio/ago. 2008 Como incluir? O debate sobre o preconceito e o estigma na atualidade* Flávia Schilling Sandra Galdino Miyashiro Universidade de São Paulo Resumo O objetivo deste artigo é provocar um debate que amplie os ter- mos habituais da discussão sobre a Educação Inclusiva. Essa dis- cussão tem como um dos seus eixos a questão do preconceito que cerca aquele considerado “diferente”. Propõe-se, no presente artigo, que, além do preconceito, há de se considerar as formas atuais do estigma. O ponto de partida é dado pela análise já clás- sica de Goffman, atualizada pelas propostas de Zygmunt Bauman. Um grupo “invisível” — pois cercado pelo segredo — que fre- qüenta as salas escolares, é aquele formado por crianças e jovens que vivem — ou viveram — o encarceramento de um dos proge- nitores. No Brasil, o “estigma”, associado aos filhos de presidiários, tem origem no século XIX, por meio da penetração de teorias cri- minais, originárias em grande parte da Europa, das políticas eugenista e higienista. O discurso educacional se apropriou dessas concepções e, ao longo de décadas, despendeu esforços no senti- do de tentar recuperar indivíduos já “viciados geneticamente” ou influenciados pelo meio familiar e social. Esse foi o grupo estudado para compreender como operam com o estigma que os cerca e que se concretiza na maneira como suas imagens são fixadas e amalgama- das às figuras criminosas de seus pais. Como resultado, vêm-se vidas marcadas pela ambivalência: emergem as figuras dos “indefiníveis”, dos “estranhos”. Como lidar com esse grupo em uma proposta inclu- siva? Quais são as possibilidades e os limites da ação educativa em uma sociedade na qual o estigma parece se reatualizar? Essas são al- gumas reflexões que este artigo pretende introduzir. Palavras-chave Educação Inclusiva — Filhos de presidiários — Estigma — Direitos Humanos — Preconceito. Correspondência: Flávia Schilling Al. Joaquim E. de Lima 1667, ap. 32 01403-003 – São Paulo – SP e-mail: [email protected] *Este artigo foi organizado a partir das reflexões da dissertação de mestrado de Sandra Galdino Miyashiro, Filhos de presidiários: um estudo sobre estigma, orientada por Flávia Schilling.

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O debate do estigma na atualidade

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  • 243Educao e Pesquisa, So Paulo, v.34, n.2, p. 243-254, maio/ago. 2008

    Como incluir? O debate sobre o preconceito e o estigmana atualidade*

    Flvia SchillingSandra Galdino MiyashiroUniversidade de So Paulo

    Resumo

    O objetivo deste artigo provocar um debate que amplie os ter-mos habituais da discusso sobre a Educao Inclusiva. Essa dis-cusso tem como um dos seus eixos a questo do preconceitoque cerca aquele considerado diferente. Prope-se, no presenteartigo, que, alm do preconceito, h de se considerar as formasatuais do estigma. O ponto de partida dado pela anlise j cls-sica de Goffman, atualizada pelas propostas de Zygmunt Bauman.Um grupo invisvel pois cercado pelo segredo que fre-qenta as salas escolares, aquele formado por crianas e jovensque vivem ou viveram o encarceramento de um dos proge-nitores. No Brasil, o estigma, associado aos filhos de presidirios,tem origem no sculo XIX, por meio da penetrao de teorias cri-minais, originrias em grande parte da Europa, das polticaseugenista e higienista. O discurso educacional se apropriou dessasconcepes e, ao longo de dcadas, despendeu esforos no senti-do de tentar recuperar indivduos j viciados geneticamente ouinfluenciados pelo meio familiar e social. Esse foi o grupo estudadopara compreender como operam com o estigma que os cerca e quese concretiza na maneira como suas imagens so fixadas e amalgama-das s figuras criminosas de seus pais. Como resultado, vm-se vidasmarcadas pela ambivalncia: emergem as figuras dos indefinveis,dos estranhos. Como lidar com esse grupo em uma proposta inclu-siva? Quais so as possibilidades e os limites da ao educativa emuma sociedade na qual o estigma parece se reatualizar? Essas so al-gumas reflexes que este artigo pretende introduzir.

    Palavras-chave

    Educao Inclusiva Filhos de presidirios Estigma DireitosHumanos Preconceito.

    Correspondncia:Flvia SchillingAl. Joaquim E. de Lima 1667, ap. 3201403-003 So Paulo SPe-mail: [email protected]

    *Este artigo foi organizado a partir dasreflexes da dissertao de mestradode Sandra Galdino Miyashiro, Filhos depresidirios: um estudo sobre estigma,orientada por Flvia Schilling.

  • Educao e Pesquisa, So Paulo, v.34, n.2, p. 243-254, maio/ago. 2008244

    How to include? The debate on prejudice and stigma inour days*

    Flvia SchillingSandra Galdino MiyashiroUniversidade de So Paulo

    Abstract

    The purpose of this article is to help widening the discussionabout Inclusive Education beyond its usual parameters. One of thepivoting points of that discussion is the issue of the prejudicesurrounding those regarded as different. In this article, wepropose that, in addition to prejudice, we should also consider thecurrent forms of stigma. The point of departure is given here byGoffmans already classic analysis, renewed by Zygmunt Baumanspropositions. An invisible group because surrounded bysecrecy that inhabits school classes is that formed by childrenand youngsters who went or are still going through theincarceration of one of their parents. In Brazil, the stigmaassociated to the offspring of convicts can be traced back to the19th century through the dissemination of crime theories, largelyoriginated in Europe, underlying eugenic and hygienist policies.The educational discourse incorporated these conceptions and fordecades endeavored to salvage individuals already geneticallyvitiated or influenced by their family and social environments.This is the group studied here in an attempt to understand howthey operate under the stigma surrounding them, and which isactualized in the way their images are fixed and merged to the cri-minal figures of their parents. As a result, we have lives marked byambivalence: they give rise to the figure of those indefinable, ofthe strange ones. How should we treat this group in an inclusiveproposal? What are the possibilities and limitations of educativeaction in a society in which stigma seems to be revitalized? Theseare some of the reflections this article tries to introduce.

    Keywords

    Inclusive education Convicts offspring Stigma Humanrights Prejudice.

    Contact:Flvia SchillingAl. Joaquim E. de Lima 1667, ap. 3201403-003 So Paulo SPe-mail: [email protected]

  • 245Educao e Pesquisa, So Paulo, v.34, n.2, p. 243-254, maio/ago. 2008

    Apresentao do debate:incluso, (a)normalidade e(in)diferena

    Incluso: encerrar, pr dentro de; fazerconstar de; juntar(-se) a; inserir(-se), introdu-zir(-se); fazer figurar ou fazer parte de um certogrupo, uma certa categoria de pessoas; pr;conter em si; compreender, conter, abranger;trazer em si; envolver, importar.

    O debate em torno de uma sociedade in-clusiva e de uma escola que inclua efetivamenteseus alunos tomou uma nova direo a partir dadcada de 1990, com a Declarao de Jomtien e,especificamente, com a de Salamanca, em 1994.Se, em um perodo anterior, a discusso era cen-tralizada na incluso nas escolas e nos diferentesespaos sociais de indivduos classificados comodeficientes em termos cognitivos, motores ouperceptivos, hoje se observa uma mudana deperspectiva na medida em que se prope a inclu-so de todos os indivduos que apresentam oupossam vir a apresentar uma necessidade educa-cional especial.

    Os princpios que subsidiam a Declara-o de Salamanca (1994) estabelecem, dentreoutros aspectos, que: todas as crianas e ado-lescentes, de ambos os sexos, tm o direitofundamental Educao; cada um possui ca-ractersticas, interesses, capacidades e necessi-dades de aprendizagem que lhe so prprios;os sistemas educativos devem ser projetados eos programas aplicados de modo que tenham emvista toda a gama dessas diferentes caractersticase necessidades; as escolas comuns, com essaorientao integradora, representam o meio maiseficaz de combater atitudes discriminatrias, decriar comunidades acolhedoras, construir umasociedade que integre e dar educao para todos.

    Esses princpios deveriam atingir prefe-rencialmente aqueles sujeitos que, mesmo nocontexto de uma sociedade democrtica, por-tanto de direitos, ainda no usufruem condiesplenas de sobrevivncia fsica, mental, emoci-onal e intelectual. A Declarao (1994) estabe-lece que os privilegiados por essa poltica so,

    em linhas gerais, crianas e jovens com condi-es fsicas, intelectuais, sociais, emocionais esensoriais diferenciadas; deficientes ou super-dotados; trabalhadoras ou que vivem nas ruas;de populaes distantes ou nmades; de mino-rias lingsticas, tnicas e culturais; de gruposdesfavorecidos ou marginalizados.

    escola, delegada a responsabilidadepara a construo de uma sociedade que pro-pe a incluso dos considerados diferentes. Noque se refere ao tratamento das diferenas oudas diversidades, a Declarao de Salamanca(1994) taxativa em afirmar que as escolasregulares so os meios mais capazes para com-bater as atitudes discriminatrias, criando soci-edades mais abertas e solidrias, construindouma sociedade inclusiva (p. 10). O que pos-svel observar nesse documento a tentativa detransformar a escola em lugar por excelncia daformao de indivduos inclusivos, que acei-tem conviver com as diferenas e no as obser-ve como trao de separao/excluso.

    A proposta de uma escola que respeite asminorias, os estrangeiros, os diferentes, enfimos considerados anormais de todo tipo, e querespalda a construo de uma sociedade inclu-siva, no parece esboar uma crtica ao modelopoltico e econmico que alimenta a produoda excluso e das condies que impedem aconcretizao do modelo inclusivo. Esse umaspecto a destacar, pois implica a necessidadede uma crtica que v alm das declaraes,percebendo necessidades de transformaesmais gerais e outras centradas na prpria insti-tuio escolar. O risco cair na iluso, comoafirma Adorno (2003), de uma sociedade que seorganiza em torno da aparncia de liberdade.

    A partir dessas reflexes iniciais, buscamosalguns suportes tericos (histricos e contempor-neos) que nos permitissem avanar na discusso doproblema de pesquisa que originou a dissertaode mestrado intitulada Filhos de presidirios: umestudo sobre estigma (Miyashiro, 2006). Paracompor a dissertao, realizamos uma pesquisaqualitativa envolvendo entrevistas com jovensque tiveram ou tinham, na ocasio, um de seus

  • 246 Flvia SCHILLING e Sandra MIYASHIRO. Como incluir? O debate sobre o preconceito...

    progenitores encarcerados. A pesquisa foi realiza-da com o apoio da Pastoral Carcerria e as entre-vistas foram feitas entre os anos de 2005 e 2006,com cinco jovens mulheres na faixa etria de 14a 26 anos e um jovem de 21 anos de idade. Os re-sultados dessas entrevistas serviram para ilustrar odebate acadmico em torno da poltica de inclu-so, confirmando ou mostrando suas limitaes.

    Ambigidades do discursosobre a incluso: quem estdentro, quem est fora?

    Ao trazermos esse debate para o cenrioatual, deparamo-nos com um momento histricosingular: se por um lado, a todo instante, presen-ciamos a tentativa de apagar, naturalizar ou mes-mo neutralizar as supostas marcas distintivas que,de certa forma, funcionam ou funcionavam paradistribuir os territrios, os raios de ao, os direi-tos e os deveres dos indivduos, por outro lado,observamos na mesma medida o movimento inver-so que se materializa na exigncia de umposicionamento demarcado, a explicitao dasconcepes, da opo poltica, sexual etc. Qual a sua tribo? Qual o seu estilo? Qual ser asua loucura? Seu diagnstico? A definioprvia ao contato com o outro em que se tentadeterminar de que lado voc est, quem voc ,aparece como exigncia na contemporaneidade,aspecto que acaba fortalecendo algo que essemesmo discurso tenta eliminar: o estigma e o pre-conceito (Veiga-Neto, 2001).

    A poltica educacional implantada em inci-os da dcada de 1990, que afirma a necessidadedo respeito diversidade e a incluso dos diferen-tes ou indefinveis, parece comportar exatamentea necessidade de precisar, com maior detalha-mento, quem so os diferentes, anormais e, porconseqncia, os normais. A poltica inclusiva podepressupor, na atualidade, uma definio ainda maisprecisa dessa distino clssica. Novos desvios sodetectados e novos comportamentos so objetosda inquietao mdica e psicolgica.

    Ao recuarmos no tempo, possvel cons-tatar que tentativas de esquadrinhar o corpo e

    a mente dos indivduos, para encaix-los em umgrupo, no nenhuma novidade. Observadas asparticularidades de cada proposta, esta consis-tia, por exemplo, uma funo primordial da ins-tituio escolar, segundo o discurso higienistado sculo XIX. escola, na poltica higienista,caberia a funo de detectar o desvio para

    [...] manipular os corpos modelando-os, trei-nando para a obedincia e para a utilidadepor meio de inmeros regulamentos e inspe-es: uma operao cuja noo de docilidadeunia o corpo manipulvel ao corpo analisvel,num claro processo de disciplinamento. (Mar-ques, 1994, p.17)

    Imbudos do sentimento de otimismo peda-ggico, a escola era pensada como um veiculo deformao harmnica dos corpos e do esprito(Marques, 1994). Para eles, a escola, alm de cor-rigir e formar novas almas por meio da cultura dasfaculdades fsicas, intelectuais e morais, transforma-ria, num segundo momento, a prpria espcie. Aescola pensada pelos higienistas deveria funcionarcomo um instrumento de formao do corpo e doesprito, transformando-lhes a ndole mediante aao educacional e no havendo espao para aanormalidade em todos os seus aspectos.

    Se no momento histrico citado acimavemos a definio de polticas que buscavamatingir incisivamente os destinos dos considera-dos anormais, observamos com a mesma inten-sidade discusses calorosas sobre como impediro nascimento de sujeitos que poderiam carregarconsigo alguma marca de desvio. Certamente quea definio de normal/anormal sofreu inmerosdeslocamentos ao longo das ltimas dcadas.Hoje, esses dois conceitos nos so apresentadosem constante redefinio, seguindo as transfor-maes da modernidade que os forjou. Assistimos multiplicao de identidades, rtulos, estere-tipos, tipos e comportamentos dentro dessebinmio que a prpria modernidade deseja banir:

    Cada vez mais variados e numerosos na mo-dernidade que vem, incansavelmente, inven-

  • 247Educao e Pesquisa, So Paulo, v.34, n.2, p. 243-254, maio/ago. 2008

    tando e multiplicando: os sindr-micos, de-ficientes, monstros, psicopatas (em todas assuas tipologias), os surdos, os cegos, os alei-jados, os rebeldes, os poucos inteligentes, osGLS, os estranhos, os outros, os miserveis,o refugo enfim. (Veiga-Neto, 2001, p.105)

    As anlises foucaultianas nos permitempensar que essa busca incessante pela defini-o e, na contemporaneidade, pelo ideal daincluso, possuem como raiz relaes de poderque demarcam e restringem o espao e o lugara ser ocupado pelo grupo de indivduos con-siderado anormal. Para Veiga-Neto (2001),

    Se nos parecem duras as palavras com que designado aquele variado elenco de tipos etantos outros quanto mais continuarem se am-pliando e refinando os saberes sobre a diversi-dade humana justamente por que as prti-cas de identificao e classificao estoimplicadas com to poderosas relaes de po-der que a assimetria que delas resulta pareceno encaixar com alguns dos nossos ideaisiluministas. Se nos incomoda at mesmo a pa-lavra anormal porque sabemos ou, pelomenos, sentimos que o seu sentido modernogestou-se por sucessivos deslocamentos a partirde outros tipos situados em outras prticas eestratos discursivos como os monstros, osmastur-badores e os incorrigveis e s custasde oposies, excluses e violncia. (p. 106)

    Se o conceito de anormal trata daquele quese desvia de normas e estas so constantementevariveis, trata igualmente daquele ou daquela quegera surpresa ou inquietao. Seria o que se com-porta diferente, o que mora de maneira diferente,o que come de maneira diferente, o que vive demaneira diferente, o que possui hbitos e costumesdiferentes (Veiga-Neto, 2001).

    O incmodo emerge do fato de que esseconceito, de to amplo, abarca uma imensa mas-sa humana dos sem-emprego, dos sem-teto, dossem-terra, dos sem-cidadania, dos sem-educao,dos sem-sade, dos sem-perspectivas. Acrescente-

    mos a esses grupos aqueles que no esto enqua-drados em nenhum dos grupos definidos a prioricomo anormais, mas vivem em uma condio queos coloca em sintonia com eles, deparando-se comas mesmas mazelas e carecendo dos mesmos di-reitos. A privao no s econmica, mas princi-palmente da ateno, da civilidade, do respeito, doexerccio espontneo e autnomo da dignidadehumana parece ser uma marca constitutiva dessessujeitos (Veiga-Neto, 2001; Cohn, 2004).

    Ao trabalharmos no registro do conceito deanormalidade, camos na armadilha da definio doque normalidade: quem ou poderia ser consi-derado normal? Aquele que segue a norma, a re-gra que usual, que no possui deformidades,problemas fsicos ou mentais; cujo comportamento considerado aceitvel e comum: em ltima ins-tncia, na atualidade, aquele que conseguiu en-caixe, classificao, escapou da ambigidade,alocando-se em um grupo identitrio reconhecvel?

    A atmosfera de incluso que se instalounessas ltimas dcadas e que exige a todo omomento um tratamento igualitrio aos suposta-mente diferentes de diversas ordens seria umrefinamento da produo dos diferentes. Novaspalavras, novas prticas? Ou antigas prticas(re)atualizadas? Incluir para observar, encaixar,colocar num ponto estratgico de observao dosdesvios? Estaramos, na escola inclusiva, prepara-dos para lidar com ambigidades, ambivalncias,indefinies, diferenas, sem, contudo, estigma-tizar, delimitar espaos, estabelecer fronteiras fixa-das de forma concreta ou imaginria?

    Como, no marco da educao/escola in-clusiva, pensar uma relao com filhos de pre-sidirios que no esto nem do lado l nemdo lado c, mestres que so, do segredo, daambigidade e da ambivalncia1?

    1. No Reino Unido, os filhos de criminosos sero identificados e acompanha-dos pelo governo desde a infncia para prevenir a possibilidade de seguirem oexemplo dos pais, enveredando pelo caminho do crime. Numa ofensiva contra acriminalidade juvenil, o Ministrio do Interior britnico prepara um programa quevisa impedir que 125 mil filhos de pais presos tenham o mesmo destino. Paraa secretria do Policiamento, Hazel Blears cerca de 125 mil crianas e adoles-centes tm um pai na priso [...]. um fator de risco enorme. Cerca de 65%dessas crianas vo acabar na priso [...]. Precisamos identificar e acompanharas crianas que correm risco maior. Podemos prever os fatores de risco quepodem conduzir uma criana ao comportamento delinqente (Wolf, 2004).

  • 248 Flvia SCHILLING e Sandra MIYASHIRO. Como incluir? O debate sobre o preconceito...

    Estigma e preconceito: acondio dos filhos de presidirios

    Estigma: marca ou cicatriz deixada por fe-rida; qualquer marca ou sinal; mancha infamantee imoral na reputao de algum; sinal infamanteoutrora aplicado, com ferro em brasa nos ombrosou braos de criminosos, escravos etc.; aquiloque considerado indigno, desonroso; falta delustre, brilho ou polimento; moral; desonra, des-crdito, infmia, demrito, descrdito, deslustro,enxovalho, infmia, labu, mcula, ndoa, perdi-o, perdimento, raiva, vergonha.

    O estigma que pressupomos cercar ospresidirios se estende para alm do indivduoencarcerado, passando para as pessoas que serelacionam diretamente com eles, seus familiaresou amigos, o que permite sociedade consider-los uma s pessoa. A sociedade os v de manei-ra fundida: a mulher de presidirio ou o filho depresidirio. Com base nesses pressupostos, pode-mos concluir que o olhar estigmatizante que direcionado famlia do presidirio uma exten-so do estigma que o cerca (Goffman, 1988):

    O Carandiru vai acabar, os presos vo virpara o interior, s que agora o interior vaificar mais perigoso, porque a famlia vemjunto com eles. (M., 56 anos)2

    Essa situao particular, segundo Goffman(1988), recebe o nome de estigma de cortesiae leva o indivduo que se relaciona diretamentecom o estigmatizado a descobrir que deve sofrerda maior parte das privaes tpicas do grupoque assumiu e, alm disso, de maneira semelhan-te que ocorre com o estigmatizado, corre orisco de no ser aceito por outros grupos. Osfilhos de presidirios compem um grupo quevive uma situao fronteiria e especificamentenessa condio de indefinvel que opera o des-locamento do estigma que cerca os presidiriospara seus descendentes diretos.

    Ser depositrio de um estigma requer certahabilidade para lidar com ele no trabalho, naescola, na vizinhana e nas diversas instncias da

    vida social. Os olhares desconfiados buscam adefinio, a fixao da conduta dos sujeitos:

    Eles comentavam: olha l a filha daquele pre-so eles comeavam a falar [...]. Se ele foi preso porque algum crime ele fez, mas a famliano tem culpa s que eles globalizam tudo,tanto a famlia quanto o preso. (M., 14 anos)

    Se o preconceito algo que emerge nasfalas dos entrevistados como algo que incomodae provoca indignao, o estigma evidencia algoque extrapola uma atitude de prejulgamento,como sinal infamante, indigno e desonroso,mancha infamante na reputao de algum pres-supe a contaminao, o contgio, a transmisso,tornando urgente e necessrio o isolamento doagente contaminador. Essa idia de contgio parteem alguma medida da crena de que algo foi her-dado ou adquirido no convvio social:

    As pessoas acham que porque a pessoafez, a famlia tambm vai fazer [...], achaque tudo igual [...], acha que voc damesma laia, que voc pode cometer qual-quer coisa contra ela. (V., 22 anos)

    Quem no conhece a famlia assim de perto[...], porque acha que as pessoas dessa fam-lia so todas um bando de animais que doafeto pra uma pessoa que j tirou cadeia[...], so um bando de animais (E. 21 anos).

    Para compreender a origem do conceitomoderno de estigma, sua aplicao e adinamicidade com que empregado nos dife-rentes contextos sociais, uma obra de referncia,sem duvida, Estigma: notas sobre a manipu-lao da identidade deteriorada, de ErvingGoffman, publicado em 1963. Goffman desvendaas nuances desse conceito que parece ser oopositor direto do lema que impregnou a soci-edade contempornea e suas diversas institui-

    2.Depoimento coletado em fevereiro de 2001 no perodo posterior srebelies organizadas pelo PCC (Primeiro Comando da Capital) em pres-dios do interior do estado de So Paulo.

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    es encarregadas de propagar, legitimar e refor-ar o discurso da aceitao da diferena.

    Segundo Goffman, o termo estigma foicriado pelos gregos e inicialmente se referia a:

    Sinais corpreos com os quais se procuravaevidenciar alguma coisa de extraordinrioou mau sobre o status moral de quem osapresentava. Os sinais eram feitos com cor-tes ou fogo no corpo e avisavam que oportador era um escravo, um criminoso outraidor: uma pessoa marcada, ritualmentepoluda, que deveria ser evitada, especial-mente em lugares pblicos. (1988, p. 11)

    Na contemporaneidade, Goffman (1988)ratifica que o conceito aplicado a todos os ca-sos em que uma caracterstica observvel salien-tada e interpretada como um sinal visvel de umafalha oculta, iniqidade ou torpeza moral propor-cionando ao individuo um sinal de aflio ou ummotivo de vergonha (p. 12-13). Com base nessadefinio, possvel concluir que a pessoa porta-dora desse trao facilmente identificvel comomenos desejvel, inferior, ruim e perigosa. O con-ceito indica, portanto, a inferioridade do carter oufraqueza moral do indivduo que porta essa mar-ca, designao atribuda pelos demais membros dasociedade, funcionando como elemento quepredetermina a conduta do sujeito.

    Na dinmica das relaes sociais, quan-do mantemos contato com um indivduo, for-mulamos hipteses a respeito do seu carter, dasua conduta, das suas preferncias. Tendocomo base essa premissa, possvel pensarque, quando um indivduo assume uma identi-dade diante de um determinado grupo socialou desempenha um papel, solicita de seusobservadores que acreditem na impresso sus-tentada perante eles,

    [...] para acreditarem que a personagem quevem no momento possui os atributos queaparenta possuir, e que, de um modo geral,as coisas so o que parecem ser. (Goffman,1988, p. 25)

    Quando essas hipteses formuladas apriori divergem substancialmente da realidadevivida por esse individuo, podem surgir evidn-cias de que ele possui atributos que o tornamdiferente e menos desejvel.

    O que determina se uma condio estigmatizante ou no a representao quepossui no contexto das relaes e dos diferen-tes grupos nos quais o indivduo estigmatiza-do circula e mantm relaes. O estigma, talcomo nos apresenta Goffman (1988), , narealidade, um tipo especial de relao entreatributo o que prprio e peculiar a algum e esteretipo a idia u convico classifi-ctria preconcebida sobre algum ou lago ,resultanto de expectativa, hbitos de julgamen-to ou generalizaes. Nesse sentido, um atribu-to que estigmatiza algum pode confirmar anormalidade de outrem

    Nas palavras de Goffman, quando nor-mais e estigmatizados realmente se encontram napresena imediata uns dos outros, especialmentequando tentam uma relao mais prxima, queocorre uma das cenas fundamentais da sociologia:esses momentos sero aqueles em que ambosos lados enfrentaro diretamente as causas eefeitos do estigma (1988, p. 127).

    Se em uma determinada localidade o atode assumir uma identidade estigmatizante noprovoca nenhum tratamento pejorativo oumedo de contgio, em outras instncias davida social, assumi-la equivale a compactuarcom o mal e se constituir como um sujeitocontaminado e que, portanto, deve ser evitado:

    Isso da uma vergonha que ningum querpassar [...], a minha me fala que isso umavergonha [...], ningum fala que uma coisanatural da pessoa [...], pra eles, pra toda asociedade na verdade [...]. (E., 21 anos)

    Ento, s vezes quando eu vou pro lado del procurar emprego, eu procuro nem co-mentar [...], eu procuro ser uma pessoa maisengajada na sociedade possvel [...], procuroser uma pessoa normal. (E., 21 anos)

  • 250 Flvia SCHILLING e Sandra MIYASHIRO. Como incluir? O debate sobre o preconceito...

    Ao aplicar o conceito de estigma, preci-so atentar para o contexto e para a linguagemque permeia a relao dos indivduos nos diferen-tes grupos. O que designar a condio de estig-matizado ou no do filho de presidirio, porexemplo, no a priori o encarceramento de umdos progenitores, mas o contexto sociocultural ede relaes em que essa informao fornecidaou visvel. preciso analisar em quais circunstn-cias esse aspecto da trajetria pessoal constituium fator estigmatizante ou de distino. At queponto ser filho de um traficante, de um ladro vi-olento ou membro de uma faco criminosa motivo de vergonha, orgulho ou distino3?

    A ambivalncia, a condio doestranho e o estigma

    Ao trazermos o debate sobre o estigmaque cerca os filhos de presidirios na atualida-de, deparamo-nos com um momento histricosingular que busca, como j mencionado inici-almente, apagar as marcas que distinguem deforma pejorativa os indivduos. Se a todo ins-tante presenciamos, seja nas diferentes mdias,nos discursos acadmicos ou em iniciativas doEstado, objetivadas em polticas pblicas, a ten-tativa de naturalizar ou mesmo neutralizar taisdiferenas, observamos na mesma medida ummovimento que exige dos indivduos a tomadade postura, enfim, a definio do lugar queocupam na sociedade, de onde voc fala? ou,em outras palavras, de que lado voc est?

    Estaramos, hoje, mais preparados para li-dar com o sujeito indefinvel? Com crianas,adolescentes ou adultos que no esto nem dolado l nem do lado c, mas desfrutam deuma condio que provoca estranheza, mal-estare curiosidade: a de estar em ambos os lados aomesmo tempo ou na fronteira? Os discursos dosfilhos de presidirios so discursos mornos, oque prevalece , de fato, a ambigidade de suasidentidades, aspecto que aos olhos daqueles quevivenciam cotidianamente o medo e a inseguran-a diante do crime e de seus possveis agressoresparece algo aterrador (Bauman, 1999).

    possvel concluir que esse grupo odos filhos de presidirios parece vivenciaruma condio que permite a vivncia de doispapis distintos, de acordo com o contextosocial em que esto inseridos. As diferentes es-feras da vida social em que esses indivduostransitam delimitam a posio que ocupam naestrutura social. Fragmentos de discursos dosjovens entrevistados demonstram a negociaoconstante que estabelecem na relao com osdiferentes e com seus iguais: a ambigidadee a indefinio esto presentes na forma comoesses jovens se colocam. O mal-estar que a seproduz remete posio do estranho, cujopecado irremedivel a incompatibilidade en-tre a sua presena indefinida e outras pre-senas encaixadas, fixadas em uma ordempredeterminada (Bauman, 1999).

    Bom, [...] as pessoas aqui dessa parte dec comentam, mas no se importam muito,mas quando eu passo pro lado de l, euprocuro nem comentar muito [...] porquepra sociedade em si ns somos anormais,somos pessoas que matam, que roubam,que estupram, quem faz isso, um monstro[...] nem todas as pessoas so assim [...].(E., 21 anos)

    A posio de estranho ou ambivalente re-quer um processo de autoconstruo. Nesse senti-do, preciso que o indivduo alvo dessa condio,atribuda pelo nativo aquele sujeito definido,enquadrado, cujas aes so previsveis e no cau-sam surpresa , aceite e reafirme por meio dos seusdiscursos e aes a posio que a todo o momen-to reavivada pela angstia da indefinio queprovoca. Segundo Bauman (1999),

    Mesmo que o fenmeno da estranheza sejasocialmente estruturado, assumir o status deestranho, com toda a sua conseqente am-

    3. O movimento de violncia que ocorreu em So Paulo em maio de 2006,comandado pela faco criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital), co-loca em questo a idia de vergonha e desloca a discusso para o pressupos-to do fascnio possvel de algumas crianas e jovens pela criminalidade.

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    bigidade, com toda sua incmoda sobre-definio e subdefinio, algo que carregaatributos os quais no fim so construdos,sustentados e utilizados com a ativa partici-pao de seus portadores no processo f-sico da autoconstituio. Como todos osoutros papis, o papel de estranho precisade aprendizado, da aquisio de conheci-mentos e habilidades prticas. (p. 85)

    No caso especfico dos filhos de presidi-rios, possvel observar a ambivalncia de suasposturas na medida em que, na condio derepresentante de seus pais ou mes, vivem aposio de advogado de defesa. A indefinioque baliza suas identidades permite que obser-vem os comentrios e as atitudes dos nativoscom uma afronta:

    Eles acham que famlia de bandido [...]porque diferente o tratamento de um bur-gus na priso e de um pobre [...], achoque nas penitencirias 100% so pobres deCOHAB [...], agora da burguesia so poucos[...]. (N., 16 anos)

    s vezes rouba, mas porque precisa [...]porque est na preciso, v uma casa sembotijo pra fazer uma comida, abre um ar-mrio e no tem nada dentro de casa, vocfica revoltado com aquilo [...] e voc no vuma situao de sada e voc procura asada mais fcil. (E., 21 anos)

    Segundo as anlises propostas porBauman (1999), ao estranho e indefinvel, negado o luxo da confiana em si mesmo e daautocomiserao. A sua existncia opaca, pou-co precisa, confusa, incompreensvel, obscura,no h transparncia e, por esse motivo, seu cr-dito nulo. Sua identidade foi deslegitimada;seu poder de determinao, de afinao, foideclarado criminoso ou aviltante. A peculiarida-de da situao do estranho em relao aosnativos no se limita ao fato de no estaremafinados. No a falha em adquirir conheci-

    mento do mundo do nativo que constitui oestranho ou forasteiro, mas a incongruenteconstituio existencial do estranho como nosendo nem de dentro nem de fora, nemamigo nem inimigo.

    Manipular essa identidade precisamente oque o estranho tenta fazer. Ele foi definido an-teriormente como uma ameaa clareza do mun-do. O conhecimento da presena dos filhos deencarcerados no cotidiano dos nativos, homense mulheres que no possuem nenhum parentescoou afinidade com esse grupo, sinaliza uma trans-formao: o que era antes considerado um abrigoseguro, torna-se um territrio contestado, inseguroe tenso. A boa vontade dos filhos de encarceradosem fazer parte do mundo dos definidos, observan-do a sua condio como no contraditria ouambivalente, torna-se uma arma contra seu esfor-o de assimilao e de aceitao e isola-o aindamais, realando mais do que nunca sua estranhe-za e fornecendo a prova da ameaa que con-tm (Bauman, 1999, p. 87-88).

    A condio intermediria ou de ambiva-lncia que os filhos de presidirios enfrentam osfixa em um dilema que mobiliza a construode uma srie de valores e referenciais moraisque permitem explicar a ao criminosa de seusfamiliares. Essa construo necessria e pos-sibilita que seus entes queridos no sejam ex-cludos moralmente da sociedade e percam oseu estatuto de ser humano. Essa condio,com todos os direitos que dela emergem, (re)introduzida na sociedade por meio dos seusdiscursos. Com o objetivo de neutralizar a con-dio de descrdito e de desumanizao deseus pais ou mes reclusos, seus filhos elegemdiversos motivos que servem para explicar oque impulsionou seus progenitores a cometerum ato criminoso. A busca por uma explicaoameniza, na perspectiva desses sujeitos, a rejei-o e a sensao de ambigidade diante dosdemais membros da sociedade (Bauman, 1999).

    As pessoas no sabem que l tem um serhumano, muitas vezes tem um cara que inocente, muitas vezes um cara que sofre

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    por onde mora, pelo que passa e est so-frendo [...]. (E., 21 anos)

    Ser um estranho, portanto, significa sercapaz de viver uma ambivalncia perptua, umavida de dissimulao, de manipulao e de nego-ciao constante. A naturalizao da situao deambigidade pode ser um recurso utilizado parase inserir no grupo dos nativos. Para que essaestratgia de (re)insero seja concretizada e o in-divduo seja aceito, preciso que ele reflita sobreas possibilidades que o contexto lhe oferece paraque se aventure nesse empreendimento de acei-tao ou, melhor, de assimilao (Bauman, 1999).

    A condio de sujeito indefinido retira apossibilidade de receber atributos ou qualidades,o que o eleva condio de um indivduo semvalor: ele se torna um homem ou uma mulhersem qualidades, desprovido de atrativos essen-ciais para o convvio social. Sejam quais foremas qualidades que possam lhe dar um corpo eassim retir-lo do vazio, so qualidades empres-tadas de maneira benevolente e podem ser reti-radas a qualquer momento (Bauman, 1999).

    Na ausncia de definio, de ocupaode um lugar que designe a que veio e quaisso suas reais intenes,

    [...] o estranho modelo da idia de universali-dade: sem peso, em nenhum lugar est em seulugar natural, a prpria anttese do concreto,do especfico, do definido, ele universal porno ter lar nem razes. (Bauman, 1999, p. 101)

    A construo da ordem na modernidadecoloca no centro a tentativa sempre precria deeliminao da ambivalncia. Ao contrrio do quepensamos e do que ouvimos, o mundo atual nooferece qualquer esperana de que o estranho, oanormal, o diferente, possa ser redimido. medidaque a ambivalncia se torna uma experincia cada vezmais universal, ocorre a diminuio da possibilidadede manifestao da liberdade e do exerccio efetivoda possibilidade de indefinir-se (Bauman, 1999).

    Nesse sentido, o estigma parece ser umaarma conveniente na defesa contra a importuna

    ambigidade do estranho. A essncia do estig-ma enfatizar a diferena e uma diferena queest, em princpio, alm do conserto e que jus-tifica uma permanente excluso. Essa excluso inerente ao conceito provoca uma fissura nosideais do mundo moderno com sua crena naonipotncia da cultura e da educao, com suasconstantes exortaes ao aprimoramento pessoale o axioma da responsabilidade individual pelaconstruo de si mesmo. O estigma permanececomo um dos resduos da natureza. Ele traa olimite da capacidade transformadora da cultura:

    [...] os sinais exteriores podem ser mascara-dos, mas no podem ser erradicados e olao entre sinais e verdade interior podeser negado, mas no pode ser rompido.(Bauman, 1999, p. 77-78).

    Para Bauman, o momento histrico atualconspira exatamente para que haja uma constantepresso no sentido de naturalizar o estigmati-zado e, conseqentemente, o estigma. Essa pres-so, que provoca inquietao e mal-estar,

    Decorre de atributos bem essenciais e cons-titutivos da sociedade moderna, como oprincpio da igualdade de oportunidades, daliberdade pessoal e da responsabilidade doindivduo por seu prprio destino. A moder-nidade uma rebelio contra o destino e aatribuio a priori. De alguma forma poss-vel pensar que o estigma, enquanto conceitoe a atitude de estigmatizar um indivduo,restabelece a idia de um destino, de estarpredestinado e lana uma sombra sobre apromessa de aperfeioamento ilimitado eesta premissa destoa de tudo que a moder-nidade representa e tudo aquilo que a soci-edade moderna de-ve acreditar para (re)pro-duzir sua existncia. (1999, p. 78-79)

    Essa seria a explicao para o uso de ou-tro recurso por parte de filhos de encarcerados: osilncio, o segredo. O mascaramento dos sinais,que no podem ser erradicados, faz com que o se-

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    gredo em relao recluso de algum familiar nose restrinja apenas aos vizinhos ou outras relaes,mas parece algo que, por certo perodo, funda-mental para os prprios filhos.

    A instituio do estigma serve eminente-mente tarefa de imobilizar o estranho na suaidentidade de outro excludo: com o estigma, acultura traa uma fronteira para o territrio queconsidera sua tarefa cultivar e circunscreve umarea que deve ser deixada de lado (Bauman, 1999,p. 77-78). Serve, fundamentalmente, para que onativo, que porta consigo a certeza do lugar queocupa e rejeita a idia de um outro no estar oupermanecer enquadrado, definido, guetizado, te-nha a certeza da segurana.

    [...] uma vez que os sinais do estigma soirremovveis, uma categoria s pode deixarde ser estigmatizada se o significante do es-tigma for reinterpretado como incuo ouneutro ou se for completamente negada suasignificao semntica e este se tornar soci-almente invisvel. (Bauman, 1999, p. 79)

    Consideraes finais

    Em princpio, no mundo plural da ps-modernidade, toda forma de vida , em princ-pio, permitida, uma vez que a diferena no vista como um problema que exige soluo, de-mandando a delimitao precisa de territrios epapis. A coexistncia pacfica de formas distin-tas de vida deveria se tornar possvel. A idia depolissemia e de diferentes possibilidades de vi-ver, na ps-modernidade, refere-se em geral, pri-meiro e acima de tudo, a uma aceitao dapluralidade do mundo. Citando Bauman,

    [...] a ps-modernidade significa uma deci-dida emancipao face nsia caracteristica-mente moderna de superar a ambivalncia epromover a clareza que pressupe um nicosentido: o da uniformidade. (1999, p. 110)

    Estar e viver na ps-modernidade signi-ficaria conviver com a excitao provocada

    frente ambivalncia, ambigidade e indeter-minao. Os discursos contemporneos suge-rem que existe a possibilidade de abandonar-mos as clssicas perguntas: Quem voc? Qual o seu lugar? Quais so suas intenes?

    A ambigidade que permeia os discursose as prticas dos filhos de encarcerados provo-ca, nos desavisados, medo, insegurana e an-siedade: so de l? ou so de c? Esses su-jeitos, de alguma forma, representam em umclaro movimento de reatualizao do estigma , para muitos, um germe da criminalidade, dadegenerao, da ruptura com os valores cole-tivos de respeito propriedade privada, vidasocial moralizada, s normas. O que presenci-amos uma reatualizao do estigma e ainexistncia dos espaos de segredo: precisoser esquadrinhado, mapeado, ser visto, estartransparente, possibilitar a previso de compor-tamentos e atitudes (Veiga-Neto, 2001).

    Os filhos de presidirios, portadores dessesinal infame, manifestam mais do que descon-forto diante dessa condio que resgata antigasdiscusses. Seu mal-estar se expressa no embar-go da voz, no choro, no silncio, nas reticnci-as. Assumir o discurso de uma herana para avida criminosa parece ser um recurso de auto-afirmao diante das ausncias de perspectivas ouda necessidade de ocupar um lugar. A identida-de desses jovens construda com base na ausn-cia, nas interrogaes dos olhares desconfiadosdaqueles que esperam e, de forma implcita, co-bram que eles ocupem o mesmo lugar do paiou da me, constituindo-se como mais um nme-ro na estatstica de reclusos do sistema prisional.

    Grupo cercado pelo silncio, portador deestigma, herdeiro, enfim, de uma construo his-trica sobre a origem do crime e do criminoso, de-safia os limites de uma educao e de escola quese pretende inclusiva. Nossa proposta foi irmosalm do que j contemplado nesse debate, ouseja, a discusso sobre o preconceito, chamandoa ateno para a permanncia e reatualizao doestigma na contempora-neidade, abrindo o deba-te sobre as necessidades educacionais especiaisem relao a esse grupo social.

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    Referncias bibliogrficas

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    Recebido em 15.01.07

    Aprovado em 18.08.08

    Sandra Galdino Miyashiro graduada em Pedagogia pela UNESP/Marlia e mestre em Educao pela Universidade de SoPaulo. Foi professora do Ensino Fundamental na rede pblica e do ensino superior na rede privada. Atualmente CoordenadoraPedaggica no Cursinho Popular Pr-Universitrio Psico.

    Flvia Schilling professora da Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo. Integra a Ctedra Unesco deEducao para a Paz, Direitos Humanos, Democracia e Tolerncia da USP.