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O curso técnico em agropecuária da Escola 25 de Maio: conflitos em torno da construção da proposta agroecológica FREITAS, Helana Célia de Abreu 1 1 Faculdade de Educação da Universidade de Brasília(UNB), Brasíĺia/DF - Brasil, helana- [email protected] RESUMO: Este artigo pretende analisar os conflitos entre os atores envolvidos na construção do curso técnico em Agroecologia desenvolvido na Escola 25 de Maio, localizada em Fraiburgo/SC. Este curso se insere no Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA), o qual apresenta como premissa para realização dos cursos de formação a parceria entre movimentos sociais do campo, universidades públicas e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). Embora os atores envolvidos no curso tenham o objetivo comum de desenvolver uma proposta de base agroecológica a qual os une em torno da proposta, as diferentes visões de Agroecologia, de educação, de mundo e de sociedade acabam gerando conflitos que interferem na elaboração e execução do Curso. Dentro deste quadro, como se constituiu a formação agroecológica do Curso? Como as diferentes visões interferiram nesta construção? Qual o papel que a Agroecologia ocupa neste quadro? PALAVRAS-CHAVE: Agroecologia, formação técnica, conflito. ABSTRACT: This paper analyzes the conflicts between the actors involved in building the agroecology technical course at the Escola 25 de Maio, located in Fraiburgo/SC. This course is part of the National Education Program in Agrarian Reform (PRONERA), which has as a premise for the training realization, the partnership between rural social movements, public universities and the National Institute of Colonization and Agrarian Reform (INCRA). Although the actors united around the course proposal have the common goal of developing a proposal based in the agroecology, the different visions of agroecology, education, world and society, cause conflicts that interfere with the establishment and implementation of course. Within this framework, how the formation agroecology Course was constituted? How the different visions interfere in this construction? What is the agroecology role in this picture? KEY WORDS: agroecology, technical training, conflict. Revista Brasileira de Agroecologia Rev. Bras. de Agroecologia. 6(2) : 13- 29 (2011) ISSN: 1980-9735 Correspondências para: [email protected] Aceito para publicação em 30/04/02011 The agroecology technical course of the “Escola 25 de Maio”: conflicts around the building of the agroecological proposal.

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O curso técnico em agropecuária da Escola 25 de Maio: conflitos emtorno da construção da proposta agroecológica

FREITAS, Helana Célia de Abreu1

1 Faculdade de Educação da Universidade de Brasília(UNB), Brasíĺia/DF - Brasil, [email protected]

RESUMO: Este artigo pretende analisar os conflitos entre os atores envolvidos na construção do cursotécnico em Agroecologia desenvolvido na Escola 25 de Maio, localizada em Fraiburgo/SC. Este curso seinsere no Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA), o qual apresenta comopremissa para realização dos cursos de formação a parceria entre movimentos sociais do campo,universidades públicas e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). Embora osatores envolvidos no curso tenham o objetivo comum de desenvolver uma proposta de baseagroecológica a qual os une em torno da proposta, as diferentes visões de Agroecologia, de educação,de mundo e de sociedade acabam gerando conflitos que interferem na elaboração e execução do Curso.Dentro deste quadro, como se constituiu a formação agroecológica do Curso? Como as diferentes visõesinterferiram nesta construção? Qual o papel que a Agroecologia ocupa neste quadro?

PALAVRAS-CHAVE: Agroecologia, formação técnica, conflito.

ABSTRACT: This paper analyzes the conflicts between the actors involved in building the agroecologytechnical course at the Escola 25 de Maio, located in Fraiburgo/SC. This course is part of the NationalEducation Program in Agrarian Reform (PRONERA), which has as a premise for the training realization,the partnership between rural social movements, public universities and the National Institute ofColonization and Agrarian Reform (INCRA). Although the actors united around the course proposal havethe common goal of developing a proposal based in the agroecology, the different visions of agroecology,education, world and society, cause conflicts that interfere with the establishment and implementation ofcourse. Within this framework, how the formation agroecology Course was constituted? How the differentvisions interfere in this construction? What is the agroecology role in this picture?

KEY WORDS: agroecology, technical training, conflict.

Revista Brasileira de AgroecologiaRev. Bras. de Agroecologia. 6(2) : 13- 29 (2011)ISSN: 1980-9735

Correspondências para: [email protected] para publicação em 30/04/02011

The agroecology technical course of the “Escola 25 de Maio”: conflicts around thebuilding of the agroecological proposal.

IntroduçãoA criação, elaboração e execução do Curso de

Formação Técnica em Agroecologia da Escola 25de Maio envolveram atores com diferentes visõesde mundo, de educação e de Agroecologia. Se porum lado, havia fortes vínculos entre os atoreslevando-os a unirem-se em torno de projetoseducativos, por outro, as diferenças entre elesprovocavam confrontos, que se refletiram noconhecimento construído no Curso.

Este Curso insere-se no âmbito do ProgramaNacional de Educação na Reforma Agrária(PRONERA)1 . O Programa tem como premissa aparceria entre movimentos sociais do campo,instituições públicas de ensino superior e oInstituto Nacional de Colonização e ReformaAgrária (INCRA), para a realização dos cursos deformação.

A concepção do Programa, centrada nanecessidade da participação dos movimentossociais desde sua concepção, passando pelaexecução, acompanhamento e avaliação dosprojetos, enfrenta conflitos de diferentes ordens, jáanalisados por vários autores (JESUS, 2003;BELTRAME, 2004; AZEVEDO, 2001; FOERSTE eSCHUTZ-FOERSTE, 2003; ARAÚJO, 2004;MOLINA; 2003). Tal constatação é também frutode nossa experiência com projetos educativos doPRONERA (FREITAS et al 2000, 2002, 2004a,2004b, 2005)

Para alguns destes autores esses conflitosseriam produtivos, pois levariam tanto asuniversidades quanto os movimentos sociais acompreenderem as diversas lógicas as quais estãopresentes na criação e execução dos projetos doPRONERA. No entanto há diversas interpretaçõesdos conflitos tanto por parte dos autoresacadêmicos, quanto dos movimentos sociais e quegeram fortes polêmicas. A visão sobre os própriosconflitos está permeada por posições político-ideológicas, fazendo um desafio à análise dosdiferentes níveis de conflitos, e tornando maiscomplexo ainda avaliar o conhecimento que é

gerado nesses projetos.No Curso analisado, observamos que os eixos

norteadores da construção da proposta foram aeducação e a Agroecologia. Se, por um lado, aperspectiva de se formar jovens dentro de umaproposta agroecológica uniu, integrou, geroualianças entre os diversos atores, as diferentesvisões políticas e ideológicas, muitas vezesconflitantes criaram fortes divergências entre osatores que interferiram no Curso e na forma comoa rede foi se estruturando. Dentro deste quadro,nos propomos a analisar como se constituiu aformação agroecológica do Curso? Como asdiferentes visões interferiram nesta construção?Qual o papel que a Agroecologia ocupou nestequadro?

A Perspectiva Orientada ao Ator em Situaçãode Interface foi o referencial adotado para aanálise proposta, com a finalidade de desvelar asrelações de poder entre os atores e a construçãodo conhecimento em tais processos. A TeoriaOrientada ao Ator em Situação de Interface,desenvolvida pelo antropólogo inglês NormanLong, permite compreender as relações de poder eo conhecimento gerado em processos dedesenvolvimento rural. Segundo LONG (2002), aanálise de interface torna possível analisar asdiversidades culturais, as diferenças sociais e osconflitos inerentes a processos de intervençãopara o desenvolvimento.

Em consonância com a Teoria Orientada aoAtor, utilizamos neste estudo a propostametodológica descrita por Latour (2000) noenfoque da Teoria do Ator-Rede (TAR). Esteenfoque permite analisar as diversas perspectivasdos atores sem privilegiar nenhuma visão,possibilitando identificar como determinadosatores (ator-mundo) conseguem ou não que suasrepresentações sejam assumidas por outros atorescom legítimas (tradução), o que lhes permiteformar redes de relações sociais em torno do tema

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em questão.Acompanhamos a construção do Curso Técnico

em Agroecologia entre 2005 e 2007. Seguimos aconstrução cotidiana do Curso, por meio de idas àEscola Agrícola 25 de Maio em Fraiburgo, deacompanhamento às atividades pedagógicas, departicipação em reuniões de planejamento eavaliação, tanto na Escola Agrícola 25 de Maioquanto na UFSC, em alguns encontros ocorridosna Superintendência do INCRA e na SecretariaEstadual de Educação.

Para realizar a pesquisa, utilizamos técnicas deobservação participante e entrevistasemiestruturada. Outra técnica utilizada foi aanálise documental (manuais, relatórios, memórias,atividades escritas com os alunos, avaliações etc).Esta técnica se reveste de especial importância,devido à centralidade assumida por atores não-humanos para a proposta metodológica adotada.

Os atores listados no Quadro 1 foram osentrevistados, pois formaram a rede que construiuo curso em Santa Catarina. No entanto, outrosatores foram incluídos ao longo da pesquisa comopais de alunos e técnicos da escola 25 de Maio(responsáveis pelo suporte aos professores nos

trabalhos de campo). Foram ainda entrevistados10 alunos do Curso Técnico em Agroecologia,perfazendo um total de 20% dos alunosmatriculados no Curso.

Além da entrevista semiestruturada, para quepudéssemos compor um quadro que abarcasse asdiferentes visões de Agroecologia, solicitamos atodos os alunos do curso Técnico querespondessem duas questões. A primeira questãoreferia-se à visão deles sobre Agroecologia e asegunda ao que pretendiam fazer ao terminar ocurso.

A Teoria do Ator-Orientado em Situação deInterface

As interfaces ocorrem tipicamente onde hajadiferentes e, com frequência, conflitantes visões demundo ou campos sociais que se cruzam, ou,mais concretamente, em situações sociais ouarenas em que as interações sejam orientadas emtorno de problemas de transposição, acomodação,segregação ou disputa social2 . A análise deinterface pretende elucidar os tipos e fontes dedescontinuidade social e as conexões presentesem tais situações e identificar os significados

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organizacionais e culturais da reprodução outransformação das mesmas (LONG, 1999;GUIVANT, 1997).

Segundo Long (1999), embora a expressão“interface” sugira algum tipo de relação ouconfrontação face-a-face, as situações de interfacesocial são muito mais complexas e múltiplas,contendo diferentes interesses, relações e modosde racionalidade e poder.

Os conceitos de poder e conhecimento sãofundamentais à Teoria da Interface. As suasdefinições serão apresentadas a seguir na análiseque Long (1999) realiza de alguns elementos-chave para a perspectiva de interface.

O primeiro elemento diz respeito à interfacecomo uma entidade organizada de interlocução derelações e intencionalidades. A análise de interfacetem como foco ligações e redes que sedesenvolvem entre indivíduos ou grupo próximoem vez de indivíduos isolados ou gruposestratégicos.

O segundo elemento descreve a interface comoum lugar de conflitos, incompatibilidades enegociações. Embora as interações de interfacepressuponham algum grau de interesse emcomum, elas também têm a propensão de gerarconflitos devido a interesses e objetivoscontraditórios ou ao poder desigual nas relações.

O terceiro elemento pode ser descrito como ochoque de paradigmas culturais. O conceito deinterface permite focar na produção etransformação de diferentes visões de mundo ouparadigmas culturais. As situações de interfacefreqüentemente evidenciam o significado com osquais indivíduos ou grupos dão a sua própriacultura ou posição ideológica, confrontando visõesde mundo opostas.

Outro ponto chave refere-se à centralidade doprocesso de conhecimento. O conhecimento éuma construção cognitiva e social que éconstantemente remodelada por experiências,encontros e descontinuidades que emergem de

pontos de interseção entre as diferentes visões demundo dos atores. Vários tipos de conhecimento,incluindo idéias sobre si mesmo, outras pessoas,contexto e instituições sociais são importantes nacompreensão da interface social. Implícito a issoestá o fato de que a geração e a utilização doconhecimento não é apenas uma questão deinstrumentalização, técnicas eficientes ouhermenêuticas (isto é a mediação para acompreensão do outro através da nossa própriainterpretação teórica), mas envolve aspectos decontrole, autoridade e poder que estão incrustadosnas relações sociais. Por essa razão, é provávelque haja choque entre as diferentes categorias deatores envolvidos na produção, disseminação eutilização do conhecimento (ARCE e LONG,1992).

Para a abordagem da interface, oconhecimento é descrito, portanto, como “encontrode horizontes”. A incorporação de novasinformações e estruturas discursivas ou culturaissó pode ocorrer onde já existe uma estruturabásica de conhecimento e formas de avaliação, osquais remodelam a si próprios, por meio deprocessos comunicativos. Assim o conhecimentoemerge como produto da interação, diálogo,reflexão e disputas de significado e está totalmenterelacionado a questões de poder.

Ainda como ponto chave analisado está opoder como resultado de lutas sobre significados erelações estratégicas. Como o conhecimento, opoder não é simplesmente possuído, acumulado eexercido sem obstáculos (FOUCAULT, 1980). Opoder implica muito mais do que controlehierárquico e hegemônico demarcado por posiçãosocial e oportunidade e acesso restrito aosrecursos. Ele é resultado de lutas complexas enegociações sobre autoridade, status, reputação erecursos, e torna necessária a inscrição de redesde atores (LATOUR, 1997).

A maior tarefa da análise de interface é exporas implicações do conhecimento e poder nas

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interações e a combinação ou segregação dediscursos opostos. Práticas discursivas ecompetências se desenvolvem primariamentedentro de circunstâncias do cotidiano social epodem se tornar pontos críticos dedescontinuidade entre visões de mundo de atores(LONG, 1999). Assim, por meio da teoria dainterface, o processo de criação/implantação docurso aqui em estudo pode ser compreendido.

As Interfaces no Curso Técnico emAgroecologia

O referencial teórico descrito anteriormentetrouxe um novo enfoque para a compreensão darelação entre os atores envolvidos na construçãodo Curso Técnico em Agroecologia da Escola 25de Maio, uma vez que abordamos a relação entreatores que pretendiam desenvolver uma propostade capacitação participativa, para formaragricultores familiares com um novo olhar sobre asua realidade. E, nesse processo, foram sendoformadas novas redes entre os capacitadores eagricultores.

A Escola 25 de Maio foi criada no final dadécada de 80 para atender aos assentamentos daReforma Agrária da região do Planalto CentralCatarinense. Desde a sua criação, a Escolaapresentou fortes vínculos com o Movimento dosTrabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), fato quese evidencia na escolha de seu nome3, emboratambém estivesse ligada às redes públicas deensino estadual e municipal de Santa Catarina,responsável pela estrutura física, de pessoal eoutras da instituição. No entanto, o nãoencaminhamento por parte destes órgãos estaduale municipal de educação sobre a implantação efuncionamento do curso técnico em agropecuáriade nível médio, culminou com a elaboração daproposta pelo PRONERA.

O PRONERA é descrito por alguns autoresacadêmicos envolvidos com o Programa (MOLINA,2003; DI PIERO e ANDRADE, 2003), como um

passo fundamental na construção de políticaspúblicas de educação para o meio rural. Os canaisabertos para a construção e implantação doPRONERA evidenciaram não apenas aimportância do Estado na construção de políticaspúblicas, mas também do papel fundamental queos movimentos sociais têm nesse processo. Como elevado número de projetos realizados4, oPRONERA provocou a aceleração do debateacerca das ações pertinentes à temática daEducação do Campo5.

O Curso Técnico em Agroecologia da Escola25 de Maio teve início em 2005 com 51 alunos,sendo que aproximadamente 40 deles já haviamcursado o ensino fundamental na própriainstituição. Os demais vieram de assentamentosde outras regiões como o Oeste de SantaCatarina. Todos os alunos estavam na faixa dos 15aos 23 anos exceto dois, com 45 e 30 anos.

O curso envolveu em sua criação, além daEscola 25 de Maio, o MST, o Centro de Educação(CED) da Universidade Federal de Santa Catarina(UFSC), a Superintendência Regional 10 doINCRA (SR-10), a Secretaria Estadual deEducação6 e a Rede Permear7.

O ano de 2005 marcou o início do CursoTécnico em Agroecologia na Escola 25 de Maiopelo PRONERA. O Curso foi estruturado para ter aduração de três anos, com uma carga horária totalde 1680 horas/aula distribuídas da seguinte forma:Tempo Escola com 1440 horas e TempoComunidade 240 horas. As atividadesdesenvolvidas pelo educando em seuassentamento, sua comunidade e/ou local detrabalho foram computadas como TempoComunidade. Além disso, tal curso incluiu ações ereflexões pedagógicas a partir do que foi abordadoem cada disciplina, bem como atividades depesquisa e conhecimento da realidade e deprodução agropecuária.

A construção da proposta curricular contou coma forte presença da Rede PERMEAR. As

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unidades que compuseram a Matriz Curricular doCurso foram as seguintes: I – Desenvolvimento,Estado, Políticas Agrárias, Agricultura Familiar,Camponesa e Outras; II – Agroecologia:Fundamentos e Tecnologias Agroecológicas; III–Agroecologia: Manejo Agroecológico na Criaçãode Animais; IV – Agroecologia: ManejoAgroecológico de Cultivos Anuais e Perenes; V –Reestruturação Produtiva; VI – Sustentabilidade ePlanejamento das Unidades Produtivas.

As Interfaces na Construção da PropostaAgroecológica

A Escola 25 de Maio vem tentando seguir alinha agroecológica desde a década de 90, épocaem que se começou a discutir a Agroecologiacomo proposta dentro do MST. Neste período, aEscola também iniciou um debate sobre formaçãotécnica agroecológica. Portanto, a propostaagroecológica não inicia na Escola 25 de Maioapenas com a criação do curso técnico, fato quepode ser comprovado também pela inclusão daproposta no Projeto Político-Pedagógico daEscola8. Porém, esse projeto pedagógico não estásendo construído sem conflitos, e na visão dealguns professores, outras divergências ocorreramcom a entrada de novos atores para a construçãodo Curso que ignoraram a trajetória da Escola 25de Maio na linha agroecológica:

“Uma dificuldade é a própria aceitação daproposta agroecológica, não é de uma horapara outra que ela vai ser aceita, então aspessoas cobram a questão da produção, datécnica” (Professor – Escola 25 de Maio)

Outro aspecto observado foi a heterogeneidadedo corpo discente em relação à Agroecologia esuas práticas. Havia alunos que não tinham tidonenhum contato anterior com Agroecologia até oinício do Curso, e alunos que já vinham tendocontato ou até mesmo desenvolvendo práticas

agroecológicas, como um grupo de alunos ligadosa BIONATUR 9. Essa heterogeneidade refletiu-sena construção da proposta agroecológica do Cursocomo veremos mais adiante.

Os conflitos em Torno da Definição da PropostaAgroecológica

Além das questões abordadas, como oingresso de novos atores na construção do curso eda heterogeneidade do corpo discente, outrosconflitos surgiram devido à dificuldade central emse delimitar o que seria uma proposta dedesenvolvimento rural agroecológica. AAgroecologia, como prática social, política epedagógica, é o resultado de uma construçãocoletiva, social e historicamente delimitada, e,portanto, não tem uma definição única (Freitas,2007). Essa impossibilidade de existência de umaúnica definição anterior à construção coletiva deuma proposta, tornaram os conflitos ainda maiores,dado que novos atores significavam novas visõesde mundo, de sociedade e perspectivas dedesenvolvimento rural.

Este fato foi evidenciado ao solicitarmos aosprofessores da Escola que definissem o que elesentendiam por Agroecologia. Verificamos umasérie de fatores de ordem natural, social,econômica ou política, presentes nestasdefinições, como pode ser observado nosexemplos a seguir:

"Agroecologia está dentro de um grandecontexto e a Agroecologia também é bandeirade luta para nós, e é desafio construir essaexperiência a longo prazo"

"Um meio de vida, uma alternativa decultivar as plantas em harmonia com anatureza, buscando a integraçãohomem/natureza sem haver um impacto emambos os sujeitos, sem que haja destruição,para que haja garantia de sobrevivência para

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ambos"

Observamos ainda que, entre os alunos, existiaa mesma polissemia conceitual enunciada pelos

professores e técnicos da Escola. O Quadro 2apresenta a síntese das definições dadas pelosalunos do Curso sobre Agroecologia.

Dividimos as respostas pelos tópicos que

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apareceram nas respostas: alimentação saudável/saúde; salvação da terra/preservação da vida;preservação da natureza/ meio ambiente; não usode agrotóxicos e outros insumos externos; combateao agronegócio; resgate do conhecimentotradicional; preservação da biodiversidade; resgatede sementes; preservação do solo; auto consumo;lixo e outros. A diversidade de respostasdemonstrou uma dispersão em relação aossignificados de Agroecologia. Constatamos ainda aexistência de definições permeadas de visõesideologizadas10

A forma como professores e alunos do Cursodescreveram a Agroecologia mostrou que adefinição do termo é vaga e difusa, permitindoenvolver aspectos naturais, mas também sociais,políticos, ideológicos, econômicos e até mesmopsicológicos. Esta constatação evidenciou que, sepor um lado há a presença de questõespragmáticas na definição dos alunos, por outrolado, também foi grande o número de respostasque caracterizam uma visão romântica deAgroecologia. Entendemos por visão românticaaquela pautada por idéias, imagens ou devaneiosdesprovidos de senso prático.

Conflitos entre Agricultura Convencional XAgricultura Agroecológica

Outro conflito que surgiu foi devido à formacomo a Agroecologia passou a ser incorporadacomo proposta curricular, espelhando ummovimento maior que se iniciou dentro do MSTcomo uma reação ao modelo convencional deagricultura, sem uma discussão mais aprofundadaentre os dois modelos. Embora o MST tenhainvestido num discurso sobre um modelo dedesenvolvimento rural pautado na Agroecologiapara os assentamentos da Reforma Agrária, aindahá inúmeros conflitos gerados pela existência daforça da agricultura moderna, convencional, e dadistância que podem sentir os assentados emrelação a suas lideranças, que saem dos

assentamentos e se afastam das atividadesprodutivas.

“É tem um pessoal dentro do Movimentoque não apóia a Agroecologia, mas a maioriagostaria que pelo menos para o auto sustentonão usasse agroquímico e pregam isso, maseles não têm essa prática quase, nãotrabalham em lavoura. A maioria deles estãoliberados, não tem esse tempo, mas elesinsistem muito na questão da Agroecologia.”(Aluno – Escola 25 de Maio)

Embora alguns professores e o Movimentoafirmem que este problema esteja superado,constatamos que as divergências em torno daquestão ainda existem. Para o Setor de Produção,essas divergências refletem o conflito que semanifestou no Movimento de forma mais geral:

“Essa Escola também passou por umprocesso de contradições muito grande, sobrequais eram os seus objetivos não por parte daEscola, de quem está lá na Escola ou dadireção do Movimento, mas pela base mesmoque, como dissemos, muitos educandos emuitos pais gostariam de trabalhar no sistemaconvencional mesmo. Então a Escola teve umtrabalho de desconstrução dessa mentalidade etentativa de construção do novo. Esse processose deu internamente também na Escola.”(Coordenador do Setor de Produção – MST)

Assim os conflitos resultantes do debate entreagricultura convencional ou agroecológica, apesarde ocorrer com menor intensidade, aindasobrevivem. Tais conflitos acabam sendo a raiz deoutras divergências, como a prioridade naprodução de alimentos, na elaboração depropostas pedagógicas ou sobre o papel que oaluno deve ocupar neste contexto. Como afirmaLONG (1999), embora as interações de interface

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pressuponham algum grau de interesse emcomum, elas também têm a propensão de gerarconflitos devido a interesses e objetivoscontraditórios.

Por fim, uma questão que foi abordada pelosalunos nas entrevistas e que tem vínculo comquestões que foram analisadas anteriormente,refere-se à ausência de uma discussão maisaprofundada da relação entre Agroecologia eagricultura convencional no Curso. Há um conflitode posições com relação à questão, como emrelação ao espaço de discussão sobreAgroecologia/agricultura convencional dentro doscurrículos. Para alguns professores, o previsto nagrade curricular é suficiente.

“Nós só podemos constituir a Agroecologiaconcebendo o que é a agricultura convencional,então dentro da grade curricular tem 60 horassó para discutir o que é agriculturaconvencional, em 60 horas não dá para fazermilagre, mas eu acredito que isso está colocadono cotidiano das pessoas. Nós não precisamosfalar muito o que é: a questão dos insumosexternos químicos, revolvimento exagerado dosolo com grade e arado, uso de sementeshíbridas altamente responsivas a adubosquímicos, mas que não constituem umprocesso de manutenção da vida.” (Professor -Escola 25 de Maio)

Para outros professores e alunos, no entanto,essa questão necessita de um maior espaçodentro da grade curricular. Para este grupo énecessário fazer um paralelo entre a agriculturaconvencional e a Agroecologia e ver em que sediferenciam. A elaboração da grade curricular tevea participação efetiva da Rede PERMEAR quepriorizou totalmente a formação agroecológica.Para um aluno:

“A formação em agricultura convencional fazfalta, porque saber os dois se puder comparar,ficaria mais fácil. Não que nós vamos usar oagroquímico, mas pelo menos como quefunciona um pouco. Na turma nós conversamossobre isso e pedimos que trabalhassemtambém um pouco do convencional.” (Aluno –Escola 25 de Maio)

Os Conflitos em Torno da PermaculturaOutro ponto que gerou divergências entre os

atores envolvidos refere-se ao papel ocupado pelaPermacultura no Curso Técnico. Houve diferentesinterpretações sobre a contribuição que aPermacultura deu para a construção do que, nessacomplexidade de abordagens, entenderam comoum modelo de desenvolvimento rural pautado naAgroecologia. Para o grupo, cuja visão é de que acontribuição foi bem pontual e não teve umacontinuidade, os conflitos com a Rede PERMEARdificultaram a permanência do modelopermacultural na Escola.

Observamos que o maior conflito entre aEscola 25 de Maio e a Rede PERMEAR ocorreuapós a realização do curso de formação emPermacultura direcionado para a comunidadeescolar e que teve como resultado a elaboraçãoda proposta do design permacultural da Escola. Ocurso envolveu professores, técnicos da Escola,pais de alunos e alunos da UFSC. O grupo saiu docurso com o design permacultural da Escolapronto incluindo a construção da caixa d’água. Foitambém proposto o projeto do alojamento, subindoo telhado, com banheiro seco. Enfim, as propostasencaminhadas visavam enquadrar a Escola 25 deMaio numa estrutura permacultural e criar asbases para a execução do Curso nesta linha.

O projeto proposto foi, no entanto, alterado parase adequar à forma como o INCRA construiria oalojamento na Escola. Para a Rede PERMEAR,isso representou por parte da comunidade escolar

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um descompromisso com a construção daproposta agroecológica na escola.

Segundo a Rede PERMEAR, após dois mesesda elaboração da proposta permacultural,professores da Escola 25 de Maio disseram que oalojamento não poderia ser feito daquele jeito,porque o engenheiro do INCRA teria dado outroencaminhamento, envolvendo amianto. A crítica darede Permear foi clara em relação aos perigos doamianto, tema mundialmente discutido desde adécada de 1980. Vejamos como um membro daRede expôs precisamente o conflito que decorriada deliberação da Escola em seguir as diretrizesdo INCRA:

“E nós dissemos, então quem tem quedefinir como vai ser a escola são vocês e não oengenheiro do INCRA. Se vocês vão fazer umaescola agroecológica, não podem colocar telhade amianto, porque é proibida no mundo todo,não vão por fossa céptica, porque vaicomprometer o lençol freático. Vocês vão seragroecológicos na íntegra ou só meioagroecológicos?” (Membro– Rede PERMEAR)

A construção da cisterna , assim como outrasobras realizadas na Escola, também receberamcríticas da Rede PERMEAR. Essas críticas sefundaram, principalmente, quanto ao grau e aoscanais de participação da mesma com o grupo daEscola nas decisões do projeto.

Para os professores da Escola 25 de Maio, aquestão é que não houve a incorporação daproposta. A Escola não garantiu a realização deobras no modelo permacultural alegando quequando as pessoas não se sentem sujeitos doprocesso, eles não se sentem donos, como nocaso da construção da cisterna. Embora estesprofessores afirmem não ter havido umaincorporação da proposta, como demonstradoanteriormente o design permacultural foi construídodurante o curso que envolveu a Rede Permear,

professores e técnicos da Escola, comunidadeescolar e alunos da UFSC, tendo havido, portanto,participação do grupo da escola na elaboração daproposta.

Para os professores da Escola 25 de Maio, teriahavido, também por parte da Rede PERMEAR,certa intransigência. Este fato seria reflexo dodesconhecimento das reais condições da Escola,frente às determinações do INCRA:

“Às vezes, as pessoas por mais bemintencionadas que sejam ou estejam emdeterminados momentos, se elas não têm acompreensão das possibilidades na construçãode um projeto, faz com que sejam irredutíveisem alguns momentos, como na construção doalojamento e da cisterna.” (Professor – Escola25 de Maio)

Embora as divergências entre a RedePERMEAR e a Escola 25 de Maio sejamevidentes, não percebemos que conflitos tenhamsido gerados pelos princípios da Permacultura e avisão de Agroecologia presente na Escola 25 demaio. Podemos afirmar que os conflitos entre estesatores surgiram mais em função da inviabilidadede se seguir a proposta permacultural na Escola25 de Maio do que por problemas de conflitos depoder. No entanto, o centro irradiador de podernão era a Escola ou a Rede PERMEAR, mas,neste caso, o INCRA que tinha meios depressionar os professores já que financiou asobras realizadas na Escola.

Porém, como veremos a seguir, houve conflitosentre a visão de Agroecologia do MST e a RedePERMEAR, e estas divergências acabaraminterferindo na relação da Escola 25 de Maio e aCoordenação do Movimento para a construção doCurso Técnico em Agroecologia. Os dois atoresdivergiram quanto ao papel que a Permaculturapoderia ter na construção de um novo modelo de

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desenvolvimento rural. Mas houve tambémconflitos de poder em termos de quem iriainfluenciar a escola, e que não são sempreexplícitos e que podem ser expressos através dedivergências sobre assuntos que pareciam mais“neutros”.

Para integrantes da Rede PERMEAR, ocrescimento do interesse pela Agroecologia dentrodo MST foi bastante significativo. O Movimentoteria começado a vislumbrar que a Agroecologiapoderia apresentar possibilidades que não são um“colete de chumbo” para o agricultor, comofinanciamentos, insumos e comercialização.

Para a Rede PERMEAR, o Movimento aindateria muito o foco na comercialização. Este fato sejustificaria, na visão da Rede, por ser o MST ummovimento com grandes proporções. Mas, apesardo foco na comercialização, para eles, oMovimento vinha mostrando interesse nadiscussão sobre as potencialidades daAgroecologia.

Para os integrantes dessa ONG, os conflitoscom o Movimento iniciaram quando a formação emPermacultura começou a fazer parte dos cursos doPRONERA, o que gerou uma resistência àproposta por parte da liderança estadual do MST.Esta resistência teria ocorrido devido ao fato dosagricultores terem tido acesso à formação emPermacultura antes da liderança, o que gerariaincertezas na Coordenação do Setor de Produção.

“O MST estabeleceu uma parceria com aPermacultura de um ponto que eles nãoqueriam, que é de baixo para cima. Não entrouna liderança e chegou. Eles assumiram eaceitaram a coisa de ter permacultorestrabalhando”. (Membro – Rede PERMEAR)

No entanto, na visão da Rede PERMEAR osconflitos teriam cessado quando os técnicos doMovimento passaram a participar dos cursos deformação e passaram a fazer outra avaliação da

Permacultura. Além disso, todos teriam chegado aum consenso sobre o objetivo de fazer a Escola 25de Maio ter sua própria produção de alimentosagroecológica.

“Nós falamos a mesma coisa, a Escola temque produzir alimentos.” (Membro– RedePERMEAR)

Contudo, para o Setor de Produção do MST, aPermacultura é uma técnica, e não um modelo deprodução. Portanto, não haveria de fato umaoposição à proposta da Permacultura, mas ela foivista como uma técnica que não daria conta deuma perspectiva de construção de um novomodelo de produção, o que incluiria também aquestão polêmica da comercialização.

“A Permacultura é uma linha de pensamentoque deve ser usada não como um todo, mascom adaptações”. (Coordenador do Setor deProdução – MST)

Ainda para o Setor de Produção, a construçãode um novo modelo demandava umacompreensão da formação histórica do assentado,não sendo resolvido apenas pela adoção de umanova técnica.

“A adoção de uma determinada formatecnológica de produção não nos satisfaz. Elaseria como uma mesa faltando uma daspernas, há a necessidade de compreender aformação histórica da nossa base, a formaçãohistórica desses agricultores, para a construçãode uma nova forma de produção”.(Coordenador do Setor de Produção – MST)

Os coordenadores do Setor de Produçãolevantaram ainda a questão do tempo necessáriopara a concretização de uma propostapermacultural e a sobrevivência imediata dasfamílias assentadas. O sistema permacultural, por

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mais rápido que seja feito, em toda sua plenitude,demandaria um processo de no mínimo três acinco anos. A partir desta constatação, o Setorlevantou a indagação de como seria possívelsistematizar e organizar a produção e comosustentar essas famílias durante esse período.

A análise anterior mostra como, para o Setor deProdução, a Permacultura tem limites, nãopodendo ser adotada como um todo. Essa visãotambém é compartilhada pelo Setor de EducaçãoEstadual do MST.

“A Permacultura é uma das técnicas, umadas possibilidades da Agroecologia. Ela não étudo que o Movimento defende, não é umaproposta do MST, ela não está fora, mas não daconta.” (Coordenadora do Setor de Educação –MST)

Uma professora da Escola 25 de Maio observoutambém o conflito, mas para ela a Permacultura éum bom caminho:

“Não é que o Movimento seja contra aPermacultura, mas há pessoas da linha defrente do Setor de Produção que não acreditammuito nisso, mas nós discutimos muito isso. Euparticularmente acho muito interessante aquestão da Permacultura”. (Professora – Escola25 de Maio)

Podemos constatar que houve conflitos entre avisão da Rede PERMEAR e a coordenação doMovimento sobre as possíveis contribuições daPermacultura para a construção do Curso Técnico.Se para a Rede PERMEAR, as divergênciassurgem em decorrência do fato da base doMovimento ter tido acesso primeiro do que aliderança à formação em Permacultura, para oSetor de Produção a Permacultura não propiciariaa construção de um novo modelo de

desenvolvimento rural.Além deste conflito, vimos que, para a Rede

PERMEAR, a grande importância do CursoTécnico em Agroecologia é despertar no aluno aidéia de que é possível ter autonomia do mercadoe produzir prioritariamente para o autoconsumo, sócomercializando o excedente. Esta visão gerouconflitos tanto com a coordenação do MST comocom outros atores que destacaram a importânciada comercialização da produção agroecológica.

Podemos observar aqui um conflito concretoentre ambos movimentos: apesar das divergênciasem relação à Agroecologia, a liderança do MSTtem uma visão mais pragmática no que se refereao futuro da produção, visando a comercialização.Por outro lado, a Rede Permear apresenta umavisão pragmática na condução do Curso Técnico,tendo levado encaminhamentos concretos para asua realização.

Os Conflitos entre a Escola 25 de Maio e aSecretaria Estadual de Educação

A proposta agroecológica do Curso técnico nãogerou confrontos com a perspectiva da SecretariaEstadual de Educação, ao contrário, parece seresta a linha que vem sendo implantada nasescolas agrotécnicas estaduais, embora encontreresistências nas comunidades. Assim, dentro daSecretaria Estadual de Educação, a Agroecologiatambém estaria começando a ser contempladacomo proposta curricular.

O conflito entre Secretaria de Educação, MST eEscola 25 de Maio surgiu, porém, na forma como oCurso foi proposto. Para os técnicos da Secretaria,há a responsabilidade institucional do ensinopúblico e o reconhecimento da demanda porformação técnica agroecológica na região daEscola 25 de Maio. Porém, os técnicos afirmaramque, por estarem dentro de um sistema de ensino,que tem uma certa amplitude e uma rigidez deorganização, teriam que seguir determinações as

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quais o MST buscaria um rompimento, o que gerouconflitos com o Movimento.

Neste contexto, a Secretaria Estadual deEducação pretendia trazer para a sala de aula doscursos de agropecuária currículos quecontemplassem a produção agroecológica, aprodução para a pequena propriedade e aprodução em pequena escala, para que o alunotivesse as noções gerais e básicas do mundo dotrabalho nessa área profissional. Na visão dostécnicos da Secretaria, essa perspectiva de umaformação ampla para o mundo do trabalho teriaentrado em conflito com o que o MST buscavaconstruir na Escola 25 de maio de Fraiburgo, queseria formar um técnico em Agroecologia paraatuar em assentamentos da Reforma Agrária. Parauma técnica,

Eles pegam e dizem “Nós vamos fazer emregime de alternância”, mas o que é isso? Ocurso técnico dentro dos padrões daqueles quejá estão postos desde a década de 30 e 40, osalunos ficam internos, produzem boa parte desua alimentação. O Estado tem gastado cadavez menos com essas escolas, tem colocadomenos recursos e daí como colocar a Escola 25de Maio nesse contexto? Porque tem toda aquestão teórica, a questão da aprendizagem, aquestão que nós queremos que o cursoaconteça, mas que também dê certo, que elesformem profissionais com condições detrabalhar não só no seu grupo, mas emqualquer ponto da sociedade que ele queira seinserir. (Técnica – Séc. de Educação)

Como vimos, os técnicos afirmaram que asescolas agrotécnicas têm se tornadoindependentes dos recursos do estado, produzindoseu próprio alimento e comercializando parte daprodução. E para técnicos da Secretaria estaindependência seria difícil de ser alcançada naEscola Agrícola 25 de Maio, devido aos limites daAgroecologia.

Na visão dos técnicos, a Agroecologia seriavoltada para a pequena produção, necessitandode subsídios para alimentar um grupo maior. Seriadifícil de se manter numa produção agroecológica,por ser necessário toda uma série de cuidados,como estar muito junto da própria natureza, nãoaceitar devastação, a questão do respeito à próprianatureza e a não interferência tão grande dohomem.

Considerações Finais

Nosso trabalho aqui apresentado não esgotoua análise dos conflitos que surgiram na elaboraçãoe execução do Curso Técnico em Agroecologia daEscola 25 de Maio de Fraiburgo/SC em torno daquestão agroecológica e permacultural. Váriosoutros conflitos marcaram a construção do Curso,os quais envolviam a UFSC, o MST, a Escola 25de Maio, a Rede PERMEAR e o INCRA. Osconflitos interferiram profundamente noconhecimento que foi gerado no curso e no perfildo técnico que foi capacitado nele.

As diversas definições dadas paraAgroecologia e Permacultura evidenciaram que ofato das mesmas permanecerem difusas, dentroda estrutura curricular, permitiu que diferentes eaté divergentes interpretações da questão sócio-ambiental e das necessidades de superar omodelo agrícola convencional emergissem nosdebates. Essas divergências se fundamentaramem diversas visões de mundo que não chegaram aser explicitadas entre os diversos atoresenvolvidos.

Houve uma presença forte de um viésideológico no Curso e isto gera dúvidas sobre oconhecimento que foi construído. O elevadonúmero de respostas marcadas por visõesideologizadas leva ao questionamento da formacomo estes jovens foram formados e de que formavirão a atuar após a conclusão do Curso. E podemainda indicar que estes alunos terão significativasdificuldades quando tiverem concluído o Curso etiverem que lidar com questões pragmáticas em

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seu trabalho cotidiano e com todas as disputas quemarcarão a construção de modelo dedesenvolvimento rural pautado na Agroecologia.

Em nosso estudo, observamos que a opção porum modelo de desenvolvimento sustentável debase agroecológica num estado em que a tradiçãoagrícola se vincula fortemente as práticas deagricultura convencional cria a necessidade de umprocesso pedagógico que explicite as diferençasentre os dois modelos de forma a permitir aosalunos transitarem criticamente entre as diferentespráticas e vislumbrar as possibilidades na suarealidade concreta. Se esse debate não foraprofundado, corre-se o risco de transformar estecurso de Agroecologia num discurso inócuo,ideológico ou mistificado ao invés de ser umpropulsor de ações que promovam de formademocrática o diálogo para atingir odesenvolvimento sustentável dos assentamentos.

Entre a Secretaria de Educação, com o MST ea Escola 25 de Maio também identificamos eanalisamos conflitos que vão além das disputas depoder que se restringem à ocupação do espaço daEscola. Observamos que o avanço ou o retrocessoda implantação do Curso Técnico na Escola comouma política pública de educação está fortementevinculada à própria visão de formação para otrabalho. Enquanto para os técnicos da Secretaria,o educando deve ter uma formação ampla quepossibilite a sua atuação em diferentes contextosda agricultura familiar, para o MST o técnicoformado deverá atuar nos assentamentos deReforma Agrária como articulador político eideológico da proposta agroecológica do MST.

Os fatores analisados anteriormenteevidenciaram a importância do referencial teórico-metodológico adotado neste estudo. A TeoriaOrientada ao Ator em Situação de Interface, aodesvelar as relações de poder entre os atores,trazendo à tona os conflitos e as alianças queenvolveram os atores envolvidos na construção do

Curso, pode vir a fortalecer o diálogo sobre osconflitos e diferenças, o que entendemos serfundamental para garantir uma participação efetivados diversos atores envolvidos e para estimular aentrada de outros na construção dos projetoseducativos.

A Teoria Orientada ao Ator em Situação deInterface mostrou também que o conhecimentoque foi gerado no Curso Técnico em Agroecologiaé algo novo que não pode ser previsto por nenhumator. Daí a necessidade de fortalecimento dodiálogo entre os atores, para que o conhecimentogerado seja uma construção aberta, resultado doencontro das diferentes posições e não aperspectiva de um único ator que imponha a suavisão de mundo, de Agroecologia, Permacultura oude educação.

Por fim podemos afirmar que as questõesapontadas mostram claramente os problemas quea nosso ver dificultam o fechamento da rede dosatores envolvidos no Curso e que necessitam deuma intensificação do diálogo entre eles. Mastambém trazem à luz as possibilidades que osprojetos do PRONERA têm de construir propostaseducativas consistentes, efetivamenteparticipativas, se os conflitos são assumidos comoparte das relações sociais cotidianas. O debatesobre essas diferenças pode contribuir para oavanço da construção de propostas educativas.

Notas1 O PRONERA foi criado em abril de 1998, por

meio da Portaria nº 10/98 do MinistérioExtraordinário de Política Fundiária, paraimplementar ações educativas para as populaçõesdos acampamentos e assentamentos rurais.

2 É importante salientar, no entanto, que Long ePloeg (1995) não negam o significado dasrelações sociais de produção e nem dispensam oconceito de relação social de produção, masapenas enfatizam que as relações sociais

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específicas são construídas, reproduzidas etransformadas. O ponto importante de referência éa elaboração, negociação e confrontação dosprojetos dos atores. A análise da Interface nãodeseja excluir a idéia de estrutura, mas considerara construção das relações sociais específicascomo tema central da análise.

3 Foi no dia 25 de maio de 1985 que ocorreuuma grande ocupação de terras em SantaCatarina, no município de Abelardo Luz, com aparticipação de 1.659 famílias. Esta ocupaçãoassinalou o início do Movimento Sem-Terra noestado, apesar de outras ocupações terem sidoorganizadas anteriormente. Do conjunto dasfamílias acampadas, oitenta e cinco foramdestinadas para o município de Fraiburgo, em1986, constituindo os dois primeirosassentamentos deste município: União da Vitória eVitória da Conquista.

4 Estima-se que no período de 1999 e 2002,cerca de 110 mil alunos freqüentaram os cursos dealfabetização. No mesmo período, foram realizados18 cursos técnicos e de especialização,envolvendo 1288 jovens . De 2003 a 2006, onúmero de educandos chegou a 244.451, tendohavido uma ampliação significativa no número dealunos atendidos nos cursos de formaçãoprofissional de nível médio e superior, e em 2006foram firmados 141 convênios (Dados doPRONERA/ MDA/ INCRA).

5 Para setores identificados com o movimentoda Educação do Campo, esta refere-se a umamultiplicidade de experiências educativasdesenvolvidas por diferentes instituições, quecolocaram como referência para suas propostaspedagógicas uma nova concepção de campo, deeducação e do papel da escola. Assim, aidentidade dos sujeitos sociais do campo em suadiversidade que engloba os espaços da floresta, dapecuária, das minas, da agricultura, dospescadores, dos caiçaras, ribeirinhos, quilombolas

e extrativistas, conforme posto pela ResoluçãoCNE 01 de 2001, tornou-se um fator primordialpara reivindicação de políticas educacionais eelaboração das diversas práticas educativas.

6 A Secretaria Estadual de Educação não éparceira fundamental do PRONERA. Como vimosno início, o INCRA, os movimentos sociais docampo e as universidades são os responsáveispelos projetos ligados ao Programa. No entanto, aEscola 25 de Maio está ligada à rede pública deensino estadual e municipal de Santa Catarina,responsável pela estrutura física, de pessoal etc,da escola, o que implica, mesmo queindiretamente, uma participação da Secretaria narede.

7 A Rede Permear integra hoje catorze projetosautônomos em quatro estados brasileiros (SantaCatarina, São Paulo, Rio de Janeiro e MinasGerais) e mais o Distrito Federal. Os projetos sãochamados de autônomos porque são iniciativas depessoas, famílias e comunidades que trabalhamem cooperação e com recursos próprios paramultiplicar os conhecimentos em Permacultura(todos recebem formação como professores doIPAB) e para oferecer exemplos de sistemasprodutivos de apoio à vida no lugar onde moram.

8 Na página 12 do PPP, está escrito:“Educaçãovoltada à Agroecologia: estando a escola inseridano meio rural, e propondo um novo modelo dedesenvolvimento agrícola, torna-se fundamental adefesa da proposta agroecológica. EntendendoAgroecologia não apenas como um método deprodução, mas como uma forma de “vida” emanutenção da terra conquistada. Tendo semprecomo princípio a defesa da natureza e o respeitoao ser humano. Formar, através da Agroecologia,sujeitos capazes de atuar junto às pequenaspropriedades e assentamentos promovendoassistência técnica e contribuindo com a promoçãodo desenvolvimento sustentável da agriculturacamponesa.”

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9 Em abril de 1997, foi criada a RedeBIONATUR, que é a marca registrada daCooperativa dos Assentados (COOPERAL), queresponde oficialmente pela produção de sementesagroecológicas de hortaliças, legalizada junto aoMinistério da Agricultura.

10 Entendemos por visão ideologizada oconjunto de idéias sustentadas por um gruposocial, as quais refletem, racionalizam e defendemos próprios interesses e compromissosinstitucionais, sejam estes morais, religiosos,políticos ou econômicos.

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