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José Maria da Silva O CRISTIANISMO E O PLURALISMO RELIGIOSO: possibilidades dialogais com a pós-modernidade Juiz de Fora 2004

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José Maria da Silva

O CRISTIANISMO E O PLURALISMO RELIGIOSO:

possibilidades dialogais com a pós-modernidade

Juiz de Fora

2004

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José Maria da Silva

O CRISTIANISMO E O PLURALISMO RELIGIOSO:

possibilidades dialogais com a pós-modernidade

Tese apresentada ao programa de Pós-

Graduação em Ciência da Religião, Instituto

de Ciências Humanas e Letras, Universidade

Federal de Juiz de Fora, área de concentração

Razão e Religião, como requisito parcial à

obtenção do título de Doutor em Ciência da

Religião.

Orientador: Prof. Dr. Faustino Teixeira

Juiz de Fora

2004

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José Maria da Silva

O CRISTIANISMO E O PLURALISMO RELIGIOSO:

possibilidades dialogais com a pós-modernidade

Tese submetida à Universidade Federal de Juiz

de Fora como requisito parcial à obtenção do

título de Doutor em Ciência da Religião e

aprovada pela seguinte banca examinadora:

____________________________________________________________

Prof. Dr. Faustino Teixeira (Orientador)

Universidade Federal de Juiz de Fora

____________________________________________________________

Prof. Dr. Volney José Berkenbrock

Universidade Federal de Juiz de Fora

____________________________________________________________

Prof. Dr. Zwinglio Mota Dias

Universidade Federal de Juiz de Fora

____________________________________________________________

Prof. Dr. Paulo Fernando Carneiro de Andrade

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

____________________________________________________________

Prof. Dr. Tiago Adão Lara

Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora

Juiz de Fora

21/12/2004

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Dedico o resultado desses longos anos de

pesquisa àqueles que comigo sempre

estiveram, incentivando nas horas de

desânimo, compreendendo os tempos de

ausência e compartilhando os momentos de

alegria: Maria, André e Maria Lídia.

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AGRADECIMENTOS

Diversas foram as formas de acolhida percebidas ao longo desta pesquisa: material,

intelectual, emocional e espiritual. Todas me ajudaram a chegar a este momento. Maria,

André e Maria Lídia se fizeram presentes em todas elas. No aspecto material, agradeço o

auxílio financeiro da CAPES; no plano intelectual-acadêmico, lembro-me dos professores que

gentilmente participam da banca avaliadora deste trabalho, dos professores e alunos do

Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião com os quais convivi ao longo desses

anos, de todos os estudantes e colegas professores que, ao me pedirem ajuda em seus

trabalhos, também me ajudavam na reflexão acerca de minha pesquisa, e principalmente de

meu orientador, prof. Faustino Teixeira, que me acompanha desde minha iniciação nos

estudos da religião – Especialização, Mestrado e, agora, Doutorado, todos neste Programa de

Pós-Graduação em Ciência da Religião; emocionalmente, senti-me fortalecido com a presença

sempre constante da psicóloga Inês Pacífico, que me mostrou os seguros caminhos dos

sentimentos; no nível espiritual, a caminhada foi enorme: as reflexões acadêmicas ao longo

desses seis anos de pós-graduação me possibilitaram uma espiritualidade qualitativamente

melhor, menos ancorada na religião institucionalmente estabelecida. Percebi a

impossibilidade de se mergulhar nas águas da pesquisa acerca do fenômeno religioso e não se

molhar. Aqui, a outrora forte objetividade do pesquisador se mostrou completamente fluida.

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[...] existe identidade cristã em rupturas e modificações

culturais e não uma identidade com base naquilo que

antes foi, de mais a mais, chamado, de forma

meramente intelectualística, de ‘identidade homogênea’

(que não se permite, ademais, comprovar

historicamente).

SCHILLEBEECKX

O projeto teológico pós-moderno é reafirmar a verdade

de Deus sem abandonar os poderes da razão.

HARVEY

O caos é uma ordem por decifrar.

LIVRO DOS CONTRÁRIOS

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RESUMO

A não ser que queira flertar com o perigoso risco do fundamentalismo, o cristianismo, como

religião na história, deve abrir-se ao diálogo com o contexto cultural no qual está inserido:

esse é o pano de fundo desta pesquisa. O desajuste reflexivo teológico, ou seja, a inadequação

entre o que se escreve teologicamente e o contexto cultural onde estão situados esses escritos,

tolerável há alguns séculos, pois não se verificava um destoar dessas formas reflexivas na

cultura ambiental, na modernidade, contudo, provocou uma tensão que se foi tornando

insuportável, podendo ser mortal no alvorecer do século XXI! Foi ‘tardia’ a passagem

católico-cristã da antigüidade à modernidade. O adágio exclusivista – Extra ecclesiam nulla

salus – vigorou oficialmente na igreja católica e praticamente em sua reflexão teológica até o

concílio Vaticano II. Desde a contra-reforma até esse evento conciliar, o catolicismo e sua

reflexão teológica seguiram rechaçando as exigências modernas. Após o concílio, em meio a

avanços e retrocessos, abriu caminho na reflexão teológica católico-cristã, a partir do

inclusivismo conciliar, uma vertente reflexiva “aberta” às exigências modernas relacionadas à

pluralidade religiosa do mundo, culminando na proposição de um pluralismo de princípio (de

iure), segundo o qual o pluralismo religioso existente de fato no mundo é algo desejado por

Deus, faz parte de seus planos para a humanidade. Tais reflexões, ao mesmo tempo em que

respondiam aos desafios antropocêntricos modernos, percebiam, sob o processo de

globalização em marcha, a aproximação dos novos ventos culturais da pós-modernidade. As

primeiras aproximações reflexivas teológicas a esse novo contexto cultural, iniciais tentativas

de respostas diretas às exigências pós-modernas, são encetadas por Hans Küng (propõe, em

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1990, um novo macroparadigma: ético mundial), Andrés Torres Queiruga (propõe, em 2000,

um novo paradigma teológico: Deus está sempre aqui) e John Hick (propõe, em 1993, um

novo paradigma teológico: pluralista); Roger Haight, por seu lado, propõe-se a fazer uma

teologia em diálogo com essa nova realidade. De maneira geral, é bastante sensível a abertura

desses autores às exigências pós-modernas, sendo que, nos três primeiros, ela se faz ainda de

forma atrelada aos pilares da modernidade, enquanto em Roger Haight, ela mostra-se mais

afeita ao contexto pós-moderno. A tese central de Haight, a partir da qual surgem todos os

desdobramentos de sua reflexão, pode ser expressa na afirmação: para os cristãos, Jesus é o

símbolo concreto de Deus. Suas reflexões vão no sentido de que os cristãos hoje podem

relacionar-se com Jesus como normativo da verdade religiosa acerca de Deus, do mundo e da

existência humana, convictos, ao mesmo tempo de que também existem outras mediações

religiosas que são verdadeiras e, portanto, normativas. Essa é a concepção normativa, mas não

constitutiva de Jesus Cristo. Esta pesquisa enxergou a ligação entre a reflexão de Haight e as

exigências pós-modernas e, aqui, a apresenta, no sentido de uma teologia cristã católica, nesse

caso, especificamente, a partir desse autor, que se está movendo em direção ao atual contexto

cultural, ensaiando formas de diálogo frutífero com ele.

PALAVRAS-CHAVE: Teologia. Cristianismo. Catolicismo. Exclusivismo. Modernidade.

Inclusivismo. Pós-modernidade. Pluralismo. Símbolo. Diálogo.

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ABSTRACT

Unless one wishes to flirt with the dangerous risk of fundamentalism, Christianity, as a

religion in History, must open itself to dialogue with the cultural context in which it is

inserted: that is the background for this research. The theological reflective disagreement, that

is, the inadequacy between that which is written theologically and the cultural context in

which these texts are present, albeit tolerable for centuries since it is possible to notice the

discrepancy between those reflective forms and the cultural environment, in modern times,

however, caused a gathering unbearable tension potentially fatal in the dawn of the 21st

Century! The Catholic-Christian passage from ancient to modern times was ‘delayed’. The

exclusivist adagio – Extra ecclesiam nulla salus – was officially established within the

Catholic Church and practically within its theological reflection until the II Vatican council.

From the counter-reform until that council event, Catholicism and its theological reflection

went on repelling modern requirements. After the council, and building from the council's

inclusivism, in a midst of progresses and setbacks, a reflective view “open” to modern

requirements related to religious plurality throughout the world opened the path in the

Catholic-Christian theological reflection, which culminated in the proposal of a pluralism of

principle (iure), according to which the actual religious pluralism is something desired by

God, it is part of His plans for humanity. Such reflections, while answering modern

antropocentric challenges, perceived under the ongoing globalization process, are the scent of

new cultural winds of post-modernity. The first reflective approaches to this new cultural

context, initial attempts of direct answers to post-modern requirements, are broached by Hans

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Küng (who proposes, in 1990, a new macroparadigm: global ethical), Andrés Torres Queiruga

(who proposes, in 2000, a new theological paradigm: God is always here) and John Hick (who

proposes, in 1993, a new theological paradigm: pluralism); while Roger Haight sets himself to

formulate a theology in conversation with this new reality. Overall, the openness of these

authors to post-modern requirements is very sensitive and with the first three authors

mentioned it is still linked to the pillars of modernity while with Roger Haight it is more

adjusted to the post-modern context. Haight's central thesis, from which all the unfolding of

his reflection arise, can be expressed by the following: to Christians, Jesus is the concrete

symbol of God. His reflections underline that Christians today can relate to Jesus as normative

of religious truth about God, the world and human existence with confidence, in spite of there

being other religious mediations which are true and therefore also normative. This is the

normative, but not constitutive conception of Jesus Christ. This research has perceived the

link between Haight's reflections and post-modern requirements and presents it here in the

sense of a Catholic Christian Theology, specifically in this case from the above mentioned

author, who moves in the direction of the current cultural context, attempting forms of fruitful

dialogue with it.

KEYWORDS: Theology. Christianity. Catholicism. Exclusivism. Modernity. Inclusivism.

Post-modernity. Pluralism. Symbol. Dialogue.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO------------------------------------------------------------------------------------ 13 CAPÍTULO I RECUOS E AVANÇOS: TÔNICA DO OLHAR CRISTÃO AO OUTRO RELIGIOSO --------------------------------------------------------------------------------------- 22 1 ATITUDES HISTÓRICAS DE FECHAMENTO ----------------------------------------- 23 1.1 O Exclusivismo ------------------------------------------------------------------------------- 23 1.2 Extra eclesiam nulla salus------------------------------------------------------------------ 24 1.2.1 A preparação e o surgimento do axioma------------------------------------------------ 25 1.2.2 O axioma nos documentos eclesiais ----------------------------------------------------- 37 1.2.3 Tentativa de compreensão do axioma--------------------------------------------------- 42 2 O INÍCIO DA ABERTURA------------------------------------------------------------------ 60 2.1 O inclusivismo tradicional ----------------------------------------------------------------- 61 2.2 O Concílio Vaticano II---------------------------------------------------------------------- 67 2.2.1 As tendências imediatamente anteriores ------------------------------------------------ 67 2.2.2 Os debates conciliares e sua perspectiva------------------------------------------------ 71 2.2.3 As conseqüências e resultados posteriores --------------------------------------------- 83 3 AS ATUAIS INTERPRETAÇÕES CRISTÃS DA REALIDADE PLURAL

RELIGIOSA ------------------------------------------------------------------------------------ 96 3.1 O pluralismo ---------------------------------------------------------------------------------- 99 3.2 O inclusivismo aberto ----------------------------------------------------------------------- 107

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CAPÍTULO II A DIVERSIDADE RELIGIOSA E O PLURALISMO DE PRINCÍPIO--------------- 127 1 O CRISTIANISMO E A DIVERSIDADE RELIGIOSA --------------------------------- 128 1.1 A diversidade religiosa nas origens judaico-cristãs ----------------------------------- 129 1.2 Centelhas de percepção histórico-cristã da diversidade religiosa------------------ 135 1.3 A recente percepção cristã da diversidade religiosa ---------------------------------- 142 2 O PLURALISMO DE PRINCÍPIO---------------------------------------------------------- 147 2.1 Um Deus sem fronteiras -------------------------------------------------------------------- 148 2.2 Um reino sem fronteiras-------------------------------------------------------------------- 159 2.3 Um pluralismo original --------------------------------------------------------------------- 172 3 A GLOBALIZAÇÃO E SUAS CONSEQÜÊNCIAS ------------------------------------- 178 3.1 As sociedades nacionais e a sociedade global------------------------------------------- 178 3.2 Globalização: abordagens conceituais--------------------------------------------------- 186 CAPÍTULO III PÓS-MODERNIDADE RELIGIOSA: UMA APROXIMAÇÃO TEOLÓGICA----- 192 1 A PERSPECTIVA CULTURAL PÓS-MODERNA: UMA NOVA CONFIGURAÇÃO

DE IDENTIDADES --------------------------------------------------------------------------- 192 1.1 A origem do pós-modernismo ------------------------------------------------------------- 193 1.2 A cristalização do pós-modernismo ------------------------------------------------------ 200 1.3 A consolidação da pós-modernidade----------------------------------------------------- 210 1.4 As repercussões posteriores---------------------------------------------------------------- 216 1.5 A identidade cultural na pós-modernidade--------------------------------------------- 231 2 PROXIMIDADES TEOLÓGICAS À PÓS-MODERNIDADE ------------------------- 247 2.1 Hans Küng: exigências pós-modernas --------------------------------------------------- 248 2.2 Andrés Torres Queiruga: proposição de um novo paradigma --------------------- 265 2.3 John Hick: a metáfora do Deus encarnado --------------------------------------------- 280 3 A PERSPECTIVA TEOLÓGICA PÓS-MODERNA: UMA NOVA CONFIGURAÇÃO

DE IDENTIDADES RELIGIOSAS --------------------------------------------------------- 296 3.1 Roger Haight: uma reflexão teológica cristã em diálogo com a pós-modernidade

--------------------------------------------------------------------------------------------------- 296 3.1.1 Jesus, símbolo concreto de Deus: o caráter simbólico da linguagem teológica --- 297 3.1.2 Pluralidade na teologia cristã: a consciência de um novo ambiente cultural------- 308 3.1.3 Uma cristologia construtiva em um contexto crescentemente pós-moderno------- 318

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3.1.3.1 Pontes de passagem para a pós-modernidade ----------------------------------------- 320 3.1.3.2 Jesus como salvador----------------------------------------------------------------------- 330 3.1.3.3 Libertação e salvação: a cristologia e a vida cristã ---------------------------------- 332 3.1.3.4 Jesus e as religiões mundiais------------------------------------------------------------- 337 3.1.3.5 A divindade de Jesus Cristo -------------------------------------------------------------- 345 3.1.3.6 A trindade----------------------------------------------------------------------------------- 351 3.2 A teologia e a pós-modernidade: possibilidades dialogais --------------------------- 353 3.2.1 O cristianismo católico frente aos desafios de seu tempo ---------------------------- 353 3.2.1.1 Do “depósito da fé” ao “despertar” da modernidade: o desafio

antropocêntrico----------------------------------------------------------------------------- 356 3.2.1.2 Da modernidade à pós-modernidade: o desafio policêntrico------------------------ 369 3.2.2 Desafio religioso pós-moderno: a inteligibilidade num mundo fragmentado------ 378 3.2.3 Pós-modernidade religiosa: um caminho para o diálogo inter-religioso? ---------- 396 CONSIDERAÇÕES FINAIS ------------------------------------------------------------------- 399 BIBLIOGRAFIA ---------------------------------------------------------------------------------- 408

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INTRODUÇÃO

Nas ciências sociais, são ainda incipientes os estudos abordando a pós-modernidade;

na teologia, mais ainda. Há pouco tempo na área acadêmica, a possibilidade pós-moderna é

isso: uma possibilidade. No entanto, mesmo assim, percebe-se um recente despertar reflexivo

teológico a essa possibilidade. Há pouco iniciada na modernidade, respondendo

adequadamente ao desafio antropocêntrico, mesmo que de forma tardia, a teologia cristã, em

sua vertente católica, vê-se frente a um novo e difícil desafio: a pós-moderna fragmentação do

sujeito moderno e sua identidade fixada. O objeto de trabalho desta pesquisa encontra-se

nesse limiar, entre as respostas da teologia católica à modernidade e as aproximações e

ensaios de diálogo com a pós-modernidade.

A presente pesquisa pretende observar, e esse é o seu objeto de trabalho, se a reflexão

teológica católico-cristã está-se aproximando e dialogando com a realidade cultural pós-

moderna e o quão satisfatoriamente isso estaria ocorrendo, no sentido da adequação das

respostas iniciais. A hipótese aqui sugerida é a de que tal proximidade e diálogo estão de fato

ocorrendo, ainda de forma inicial, tateante e localizada, porém, aberta e conscientemente.

Este estudo não parte do pressuposto, e nem quer afirmá-lo, de que a teologia católica,

como um todo, está-se movendo em direção a uma abertura dialogal com a pós-modernidade.

O próprio texto mostrará, ao longo de seus capítulos, avanços e recuos, tanto no magistério

oficial católico quanto na reflexão teológica. Estará implícita, no entanto, perpassando essas

linhas, a crença de que é essencial um movimento teológico cristão em direção à nova

realidade cultural. Subjacente a essa crença está o reconhecimento da impossibilidade de se

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ignorar o atual contexto no qual está situado o labor teológico. Como se delimitará neste

texto, foi, não sem conseqüências, tardia a abertura católica à modernidade.

O campo desta pesquisa, no qual está situado o presente objeto de trabalho, limita-se à

teologia cristã, mais precisamente em sua vertente católica, e precisando mais ainda, a partir

de alguns autores, em específicas obras. São muitas, no entanto, as referências aos pensadores

protestantes; primeiramente, devido ao compartilhamento da característica cristã e, também,

pela influência exercida pela teologia protestante. Prova disso é a utilização de um de seus

expoentes, John Hick, no âmago das reflexões, que neste estudo se processam; isso não

compromete o campo delineado para esta pesquisa, pois as reflexões desse teólogo

protestante, ao se aproximarem da temática das religiões e da pós-modernidade, como se verá,

adentram uma teologia cristã das religiões, sem especificidades.

A estrutura da pesquisa está dividida em três capítulos:

No primeiro, aborda-se a ‘tardia’ passagem católico-cristã da antigüidade à

modernidade. O adágio exclusivista vigorou oficialmente na igreja católica e, praticamente,

em sua reflexão teológica até o concílio Vaticano II. Pode-se dizer que, desde a contra-

reforma até o último concílio, o catolicismo, tanto no plano de seu magistério quanto no

reflexivo teológico, seguiu rechaçando as exigências modernas.

A pesquisa pretende captar o deslocamento do olhar eclesial católico de si mesmo para

o outro religioso, cujo marco fundamental foi o Concílio Vaticano II e seu entorno reflexivo,

o que acabou por deixar quase totalmente para trás a visão exclusivista, simbolizada pelo

axioma Extra ecclesiam nulla salus. Uma pergunta, implicitamente presente, dará a tônica

deste texto quando da exposição dos resultados dos debates conciliares: o magistério católico,

ao abandonar, a partir do Vaticano II, o exclusivismo eclesial, buscando desde então o

inclusivismo cristão, o fez tendo por fundamento a teologia do "acabamento" ou da "presença

de Cristo nas religiões"? Essa questão mobiliza as reflexões teológicas desde então, também

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com recuos e avanços, posições extremadas e tentativas de síntese, envolvendo

posicionamentos magisteriais oficiais e de teólogos.

Estavam abertos os caminhos para um novo consenso, ou quase consenso, inclusivista,

de se lançar o olhar às demais religiões, mesmo que, inicialmente, ainda de modo bastante

preconceituoso. Aparecerá nestas linhas que estes não foram caminhos lineares e sempre à

frente, mas com recuos e avanços, idas e vindas.

Na reflexão teológica específica da teologia das religiões, os teólogos inclusivistas,

cada vez mais abertos à pluralidade religiosa, dialogam com a posição pluralista (Hick à

frente), que advoga um passo além do inclusivismo, propondo um novo paradigma a partir do

qual seja possível olhar as religiões como planetas girando em torno do sol (Deus ou a

Realidade última). Nesse posicionamento, como se verá, nenhuma religião pode,

historicamente, pretender superioridade sobre as demais, como fez o cristianismo durante

séculos, cabendo-lhe, então, nesse caso, o ônus da prova. A história do cristianismo, segundo

os pluralistas, não depõe muito a seu favor.

No segundo capítulo, procuram-se captar os avanços e retrocessos das reflexões

teológicas inclusivistas posteriores ao Vaticano II. Que leitura estariam fazendo do concílio

essas diferentes reflexões? A partir do caminho aberto pelo inclusivismo conciliar, os teólogos

inclusivistas, especialmente aqueles posteriormente denominados “inclusivistas abertos”,

abrem-se às exigências modernas relacionadas à pluralidade religiosa do mundo, avançando

paulatinamente em suas reflexões, culminando na proposição de um pluralismo de princípio

(de iure), segundo o qual o pluralismo religioso existente de fato no mundo é algo desejado

por Deus, faz parte de seus planos para a humanidade, ou seja, Deus é um Deus plural.

De um lado, esses teólogos percebem a diversidade na própria história do cristianismo,

desde suas origens judaicas; de outro, acolhem sensivelmente as novas possibilidades de

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conhecimento de outras realidades religiosas, proporcionadas por uma maior aproximação

cognitiva entre os diferentes povos, processo que se dá pela recente e crescente globalização.

Essas reflexões, desenvolvidas após o concílio, ao mesmo tempo em que respondem

aos desafios antropocêntricos modernos, já percebem, sob o processo de globalização em

marcha, os novos ventos culturais aproximando-se, os da pós-modernidade. Esta pesquisa

considera os avanços observados nas reflexões dos teólogos inclusivistas abertos como

sensíveis respostas às provocações pluralistas e preliminares percepções das exigências pós-

modernas.

No terceiro capítulo desta pesquisa, após minuciosa delimitação das coordenadas da

pós-modernidade, esboça-se o ensaio de uma segunda passagem, desta feita no nível reflexivo

teológico, da modernidade (assumida no Vaticano II) às iniciais tentativas de respostas

teológicas diretas às exigências pós-modernas. Como proximidades ao novo contexto, serão

abordadas, em obras específicas, as reflexões de Hans Küng, Andrés Torres Queiruga e John

Hick e, enquanto em diálogo com essa nova realidade, a reflexão de Roger Haight.

Esta pesquisa aponta sensível abertura dos quatro autores arrolados às exigências pós-

modernas, em tons e graus diferentes. Enquanto nos três primeiros essa abertura se faz ainda

de forma bastante atrelada aos pilares da modernidade, em Haight, ela mostra-se mais afeita

ao contexto pós-moderno. Contribui bastante nessa diferença a proposta inicial de cada um

dos autores.

Küng tem em mente uma questão prática, uma ética mundial em favor da

sobrevivência humana no planeta, no que se configuraria um novo macroparadigma. O autor

refere-se explicitamente à pós-modernidade e considera fundamental dar respostas às

exigências pós-modernas. Dos autores arrolados, Küng é o primeiro a colocar em evidência a

questão pós-moderna, considerada por ele como um novo paradigma. O momento de suas

reflexões, 1990, bastante próximo aos recentes acontecimentos envolvendo a queda do muro

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de Berlim, pode explicar o tom um tanto “apaixonado” de seus escritos. Na busca por critérios

que possam mobilizar todos os segmentos da sociedade mundial em favor da sobrevivência do

planeta [sua proposição (2001, p. 126-127) : “o verdadeiramente humano como critério

universal”], esbarra num momento cultural que carece de critérios universais ou os rejeita

abertamente.

Torres Queiruga parte do pressuposto de que a situação atual do labor teológico

encontra-se no que ele chama de “marco geral”, momento de “mudança radical” caracterizado

pela “dialética entre a modernidade e a pós-modernidade”, propondo para esse momento um

novo paradigma teológico (2003, p. 16): “levar a sério a absoluta primazia de Deus que nos

criou e continua nos criando por amor; única e exclusivamente por amor”. Não é verdade,

afirma o autor, que “‘Deus esteja no céu e tu na terra’”. Deus está sempre aqui “entre nós: no

homem e na mulher, na terra e na história”. Somente um novo paradigma na teologia cristã,

uma “guinada completa”, colocar de “ponta-cabeça o sentido de muitos e decisivos [de seus]

conceitos teológicos”, pode possibilitar respostas inteligíveis aos desafios dos novos tempos

modernos e pós-modernos.

O autor menciona explicitamente a pós-modernidade, considerando-a não como um

novo paradigma cultural, mas um momento no qual a modernidade se questiona e é

questionada em suas promessas não cumpridas, o que a coloca em posição de redefinições.

Isso, no entanto, não ofusca a percepção do autor no que se relaciona às exigências destes

novos tempos, dêem-lhes o nome que lhe derem. Atestam isso os outros possíveis títulos

sugeridos pelo autor para a sua obra, aqui objeto de análise: “A religião perante o terceiro

milênio”, “Desafios para a teologia no século vinte e um” ou “A mudança rumo a um novo

paradigma”.

As reflexões de Torres Queiruga, no entanto, apesar de trazerem o Deus “totalmente

outro” para o atual contexto multifacetado, fazem-no de uma maneira igual para todos os

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diferentes sujeitos deste contexto. Sua visão de um “Deus amor”, que a todos abarca, esbarra,

como se verá, nas exigências pós-modernas.

Hick propõe um novo paradigma teológico: o pluralista, única forma, segundo o autor,

de se ultrapassar tanto o exclusivismo quanto o inclusivismo. Para isso, os cristãos devem

olhar a encarnação como uma metáfora específica ao cristianismo, pois, vista à maneira

antiga, a encarnação continuaria denunciando uma religião necessariamente superior a todas

as demais, já que fundada pelo próprio Filho de Deus, enviado para salvar toda a humanidade.

Seria catastrófica ao diálogo inter-religioso, segundo o autor, a continuidade de tal concepção

acerca do cristianismo.

O ponto de partida de Hick, lugar onde se situam suas reflexões, é o atual mundo

teológico cristão, que se encontra num “ponto móvel de flexão”: entre a estrutura de crença

cristã de muitos séculos e a nova estrutura, ainda em formação, de um cristianismo consciente

de si mesmo enquanto uma resposta válida, entre outras existentes, à realidade transcendente

infinita a que chamamos Deus.

Uma das grandes preocupações de Hick, como se verá, é a de tornar inteligíveis os

enunciados religiosos à nova situação cultural que se apresenta. O autor não faz, no entanto,

explicitamente, qualquer relação com a pós-modernidade. Esta pesquisa inferirá, a partir do

âmago dessas suas reflexões, sua proximidade com as possibilidades pós-modernas.

Por outro lado, o questionamento que a pós-modernidade poderia fazer ao autor está

relacionado a uma crítica que o próprio Hick dirige aos inclusivismo. Esse, segundo o autor, à

revelia, inclui todos, em algum momento, à realidade cristã. Essa unificação, ou inclusão, não

se daria também em sua realidade última, visto ser ela única, por ser a última (senão, seria

uma “pluralidade de penúltimos” (HICK, 1995, p. 69))? Resvalaria, tal concepção, em uma

metanarrativa? É o que se tentará responder acerca das reflexões de Hick.

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Haight, por seu lado, perscruta a pós-modernidade, percebe suas exigências e propõe-

se fazer uma teologia em diálogo com ela. Com isso em mente, passa pelos pontos mais

fundamentais da teologia e interpreta-os à luz dos novos tempos. Sua tese central, a partir da

qual surgem todos os desdobramentos de sua reflexão, pode ser expressa na afirmação: para

os cristãos, Jesus é o símbolo concreto de Deus. Fundamental nas argumentações do autor é o

seu proposto quarto lugar para se fazer teologia, o referente ao caráter simbólico da linguagem

teológica, além dos lugares tradicionais (fé, revelação e Escritura).

De maneira geral, Haight (2003, p. 13) acredita que a “consciência histórica e

pluralista da pós-modernidade minou as pretensões totalizantes dos sistemas de pensamento”.

Por isso, ele considera que “as posições exclusivista e inclusivista constitutiva já não parecem

dignas de crédito”. Suas reflexões vão no sentido de que “os cristãos hoje podem relacionar-se

com Jesus como normativo da verdade religiosa acerca de Deus, do mundo e da existência

humana, convictos, ao mesmo tempo de que também existem outras mediações religiosas que

são verdadeiras e, portanto, normativas”. O que se exporá é essa sua concepção normativa,

mas não constitutiva de Jesus Cristo.

Esta pesquisa perscrutará a ligação entre as reflexões de Haight e as exigências pós-

modernas, apresentando-as no sentido de uma teologia cristã católica, nesse caso,

especificamente, a partir desse autor, em obra específica, que estaria ensaiando um

movimento em direção ao atual contexto cultural, tentando formas de diálogo frutífero com

ele.

Encerra-se o terceiro capítulo da presente pesquisa com a afirmação da

impossibilidade de uma sincera abertura ao diálogo inter-religioso a partir dos grandes relatos

da modernidade ou com categorias ou termos fortes como fé, decisão, adesão, convicção,

segurança. Falando acerca da fé na pós-modernidade, Vattimo (2004, p. 16) afirma: “uma

semelhante concepção da fé pós-moderna, obviamente, não tem nada a ver com a aceitação de

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dogmas rigidamente definidos ou de disciplinas impostas por uma autoridade”. O

multiculturalismo atual, o que no mundo religioso desdobra-se em diversidade de religiões e

religiosidades, aproxima-se mais do relativismo, ou da maior relativização, dos pós-modernos

e sua titubeante incerteza. Como lembra Fraijó (1997b), relativismo pode opor-se a absoluto,

mas de forma alguma opõe-se a verdadeiro. A pós-modernidade pode ter problemas com o

absoluto, mas admite diversas verdades. Isso porque algo pode ser “relativamente

verdadeiro”, porém, não “relativamente absoluto”.

É nascente a relação da teologia católica com a pós-modernidade! A pretensão desta

pesquisa é chegar, acerca dessa relação, não a resultados conclusivos, mas a algumas

considerações possíveis, dada a incipiência da pós-modernidade e, mais ainda, do contato da

teologia católica com essa nova realidade, além do que, é a possibilidade que se permite em

contexto tão fluido.

A escolha da presente temática de pesquisa, aqui esboçada, foi amadurecida ao longo

do percurso de vida e acadêmico deste pesquisador. Tais trajetórias possibilitaram paulatinas

percepções da enorme pluralidade religiosa presente no mundo e da possibilidade de

convivência e encontro entre as religiões: vitalmente, a religião fez-se presença sempre

constante, ora institucionalmente vivida, ora vivenciada através de arrumações internas;

academicamente, nos cursos de Especialização, Mestrado e, agora, Doutorado (todos no

Programa de Pós-graduação em Ciência da Religião, da Universidade Federal de Juiz de

Fora/MG), a partir da consciência inicial da pluralidade religiosa, paulatinamente, abriu-se um

caminho interrogativo sobre as possíveis relações entre essa pluralidade religiosa, o discurso

religioso sobre ela, a consciência global e a pós-modernidade, com suas características e

exigências.

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A aproximação a essa temática delineou-se, portanto, num espaço cronológico

bastante amplo, num processo onde se misturaram subjetividades deste pesquisador e

objetividades acadêmicas.

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CAPÍTULO I

RECUOS E AVANÇOS: TÔNICA DO OLHAR CRISTÃO AO OUTRO RELIGIOSO

A substância da antiga doutrina do depósito da fé é uma

coisa, e o modo no qual é apresentada é outra.

JOÃO XXIII

Esta primeira parte do presente trabalho de pesquisa quer mostrar o deslocamento do

olhar eclesial católico de si mesmo para o outro religioso. O marco desse deslocamento é o

início do Concílio Vaticano II, que deixa para trás uma visão totalmente exclusivista,

simbolizada pelo axioma Extra ecclesiam nulla salus, e vislumbra à frente a possibilidade de

se lançar o olhar às demais religiões, mesmo que ainda de modo bastante preconceituoso.

Como se verá, esse não foi um caminho linear e sempre à frente, mas, recheado de recuos e

avanços, idas e vindas. A pergunta que, implicitamente, aparece no texto quer saber se o

magistério católico, a partir do Vaticano II, ao abandonar o exclusivismo eclesial, buscando

desde então o inclusivismo cristão, o fez tendo por fundamento a teologia do "acabamento" ou

a da "presença de Cristo nas religiões". Com recuos e avanços, posições extremadas e

tentativas de síntese, o debate se prolonga até os dias atuais, envolvendo posicionamentos

magisteriais oficiais e de teólogos.

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1 ATITUDES HISTÓRICAS DE FECHAMENTO

Noventa por cento dos mais de dois milênios de vida do cristianismo, em sua vertente

católica, foram vividos sob os fundamentos da exclusividade, veladamente ou às claras, de

forma branda ou carregada de nuvens. Percebida ao longo da história eclesial, essa visão

exclusivista sustentava-se em uma prática concreta de negação do outro religioso, em suas

diferenças e em suas possibilidades. Tal longevidade e tal força dessa visão exclusivista

acabaram por moldar um modo de ser igreja, uma identidade religiosa que, só em tempos

recentes, começou a ser questionada. Daí a necessidade de se lançar o olhar para o histórico

desse modo de agir e pensar.

1.1 O exclusivismo

Característica marcante dessa visão e modo de agir é a sua pretensão de uma

universalidade1 ampla, geral e irrestrita, um cristianismo absoluto. Na luta pela ligação de

toda a realidade ao único Deus, ignora-se a existência de toda uma realidade de diferenças.

De origem bastante remota na história do cristianismo, essa posição, repudiada na sua

interpretação mais radical pela Carta do Santo Ofício de 1949,2 sobrevive aos ares

1 O autor desta pesquisa abordou (2001a) mais amplamente a questão da pretensão de universalidade por parte das religiões monoteístas em sua Dissertação de Mestrado, intitulada “Universalidade restringida: um caminho para o diálogo inter-religioso em Manuel Fraijó”, defendida (2001) na Universidade Federal de Juiz de Fora/MG. 2 Essa carta do Santo Ofício explicava, em 1949, a doutrina correta acerca da interpretação da encíclica Mystici Corporis, anunciada pelo papa Pio XII, em 1943. Além de explicações doutrinais, o texto, direcionado ao arcebispo de Boston, nos Estados Unidos, traz a condenação, e conseqüente exclusão da igreja, do padre jesuíta Leonard Freeney. Esse clérigo tinha afirmado radicalmente, em interpretação da encíclica de Pio XII, que quem não pertence expressamente à unidade visível da igreja católica não tem salvação.

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renovadores do Vaticano II e, mesmo em tempos mais recentes, encontra guarida em autores

conservadores do catolicismo (Van Straelen), do protestantismo (Netland, Clarke, Winter) e

na defesa fundamentalista das próprias crenças por parte de diversos grupos religiosos.

Embutida em suas práticas religiosas, está uma concepção de identidade homogênea e fechada

em si mesma, nada mais havendo a ser acrescentado ao seu modo de ser religioso cristão.

Dessa concepção, aliás pouco cristã, de que não se precisa do outro para crescer em seu

autoconhecimento, mesmo porque o outro é tido como o mal, brota a prática da exclusão.

Se, outrora, a posição exclusivista denotava orgulho e prepotência, atualmente, está

mais ligada ao medo da perda da própria identidade, no confronto diário com a identidade

alheia, questionadora e “invasora”.

O que se pretende, a seguir, é um breve histórico acerca do surgimento e

desenvolvimento daquele que é o fundamento do exclusivismo, o axioma "extra ecclesiam

nulla salus", além de uma rápida tentativa de compreensão do sentido de "ecclesia" que o

sustenta.

1.2 Extra eclesiam nulla salus

O centralizador axioma exclusivista católico-romano Extra eclesiam nulla salus teve

sua origem no século III com Orígenes e Cipriano, tendo sido retomado em 1442, no Concílio

de Florença (1438-1445), a partir de seu sentido mais absoluto, aquele utilizado pelo discípulo

de Agostinho, Fulgêncio de Ruspe, que viveu entre os anos 468 e 533. Esse posicionamento

exclusivista católico, que “teve seu equivalente protestante igualmente enfático na convicção

de que fora do cristianismo não há salvação” (HICK, 1998, p. 13-14), tinha como base de

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sustentação a crença de que a igreja católica era a única e absoluta “[...] instituição

divinamente constituída no sentido da salvação de todos os homens em Jesus Cristo”

(CONGAR, 1964, p. 410). Daí que todas as pessoas deveriam estar ou ser trazidas para dentro

dela a qualquer custo, ainda em vida, caso contrário, acabariam no “[...] fogo eterno,

‘preparado para o diabo e seus anjos’ (Mt 25,41) [...]” (DENZINGER, 1995, n. 1351).3

A compreensão da evolução do axioma, que se persegue a seguir, quer levar em conta

o contexto histórico de seu surgimento e desenvolvimento. Nesse sentido, contextualizações

cronológicas e factuais serão feitas no próprio texto ou em notas de rodapé, a fim de se lançar

luz sobre o tema pesquisado.

1.2.1 A preparação e o surgimento do axioma

O húmus preparatório do adágio pode ser remontado a Noé. A arca, no pensamento

judaico-tardio, é vista como símbolo da salvação do resto do mundo (RATZINGER, 1974). O

livro da Sabedoria (10, 4) afirma: "por sua culpa [Caim e, antes dele, Adão] a terra foi

submersa e outra vez a sabedoria a salvou, pilotando o justo [Noé] numa frágil embarcação".

A imagem de um grupo de justos, juntamente com Noé, sendo salvos, "esconde um

3 Menos de uma década após o Concílio de Florença, mais especificamente em 29 de maio de 1453, ocorria a queda de Constantinopla, sitiada pelas tropas de Mehmed II. Importante rota comercial e estratégico local de passagem para os lugares santos, a cidade conheceu tempos de glória com o império romano, tendo status igual a Roma, assim como na Idade Média, quando foi transformada na capital monetária do mundo medieval. Seu declínio começou, por volta de 1155, com os privilégios concedidos aos mercadores ocidentais, principalmente italianos, o que provocou o afastamento dos navios bizantinos, e acelerou-se com sua tomada pelos cruzados, em 1204, originando a criação do Império Latino. Esta IV Cruzada (1202-1204), inicialmente dirigida contra o Egito, para obrigar o sultão a restituir Jerusalém, foi desviada pelos grandes comerciantes venezianos que, para estender seu domínio comercial, levaram os cruzados a se apoderarem de Constantinopla. Esse é o período da crise no mundo islâmico, sendo um de seus momentos centrais a tomada de Constantinopla pelos cruzados (1204). Posteriormente, quando de sua tomada pelos turcos, em 1453, a cidade já estava despovoada (40.000 a 50.000 habitantes, dos 400.000 que chegou a ter no século VI) e com bairros parcialmente abandonados. Este é o período da crise no mundo islâmico, sendo um de seus momentos centrais a tomada de Constantinopla pelos cruzados (1204).

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exclusivismo muito claro" (LIBÂNIO, 1973, p. 24). A condição indispensável à salvação era

estar dentro da arca, de forma que todos aqueles que dela estavam excluídos conheceram a

morte.

Explicitada dessa forma,4 a consciência da imagem da arca aplicada ao resto de Israel,

desembocando na expressão "povo eleito", e ao batismo torna-se o húmus de onde brota a

idéia da exclusividade da salvação.

O Segundo Testamento bíblico, sem considerar de forma explícita a necessidade da

igreja para a salvação, apresenta dados preparatórios (LIBÂNIO, 1973).5 Exemplo clássico

pode ser encontrado em Marcos (16, 16): "Aquele que crer e for batizado será salvo; o que

não crer será condenado".6 Segundo Dupuis (1999a), quando a fé e o batismo são colocados

como requisitos necessários à salvação, emerge clara e implicitamente o papel salvífico da

igreja, visto que a fé e o batismo lhe dão acesso. 7

Pedro (3, 18-22) compara as águas do batismo com a arca de Noé:

Com efeito, também Cristo morreu uma vez pelos pecados, o justo pelos injustos, a fim de vos conduzir a Deus. Morto na carne, foi vivificado no Espírito, no qual foi também pregar aos espíritos em prisão, a saber, aos que foram incrédulos outrora, nos dias de Noé, quando Deus, em sua longanimidade, contemporizava com eles, enquanto Noé construía a arca, na qual poucas pessoas, isto é, oito, foram salvas por meio da água. Aquilo que lhe corresponde é o batismo que agora vos salva, não aquele que consiste em uma remoção da imundície do corpo, mas em um compromisso solene de

4 Para os objetivos específicos desta parte da pesquisa, esta é a consciência explícita que deve ser trazida.Outras explicitações da imagem da arca, no entanto, podem ser arroladas. Nelas, a arca, sem representar exclusão, é interpretada como o símbolo de uma segunda aliança de Deus "com toda a criação" (Gn 9, 1-17). O sinal dessa "aliança eterna" (Gn 9,16) entre Deus e a terra seria o arco-íris. Os padres da igreja mencionam quatro alianças de Deus, tendo como intermediários Abraão, Noé, Moisés e a definitiva, em Jesus Cristo. O capítulo seguinte desta pesquisa, no item que trata da diversidade religiosa no cristianismo e em suas origens judaicas, enfocará justamente as fagulhas ou tentativas de conhecimento e/ou reconhecimento da alteridade, em momentos nada ou pouco propícios para tal. 5 Ratzinger reflete no mesmo sentido dos dados preparatórios que podem ser encontrados no Segundo Testamento. Cf. RATZINGER, Joseph. O novo povo de Deus. São Paulo: Paulinas, 1974. 6 A exegese atual chega a duvidar de que esse texto de Marcos (16, 9-20) tenha integrado o original do evangelista. É possível que tenha sido acrescentado posteriormente (século II). 7 Isto, contudo, não autoriza a afirmação de que o Segundo Testamento exclua da salvação aqueles que, sem culpa pessoal, permanecem sem o batismo. Nas palavras de Theisen (1976, p. 5): "Seria melhor concluir que as Escrituras não levam em consideração a nossa questão precisa, isto é, que toda salvação que acontece no mundo passa pela Igreja, e que esta última é necessária à salvação de cada pessoa que é efetivamente salva".

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uma boa consciência para com Deus pela ressurreição de Jesus Cristo, que, tendo subido ao céu, está à direita de Deus, estando-lhe sujeitos os Anjos, as Dominações e as Potestades.

Posteriormente, autores cristãos tomariam esse texto lapidar como base para a

concepção da igreja como "arca da salvação", tendo como modelo a arca de Noé, concluindo,

finalmente, que fora da arca da igreja não há salvação.

Acerca da missão provisória, Jesus afirma (Mt 10, 14-15) que "[...] se alguém não vos

recebe e não dá ouvidos às vossas palavras, saí daquela casa ou daquela cidade e sacudi o pó

dos vossos pés. Em verdade vos digo que o Dia do Juízo será mais tolerável para Sodoma e

Gomorra do que para aquela cidade". Essas referências à salvação e condenação podem

também ser encontradas em outros lugares do Segundo Testamento: crer em Cristo é ter já a

vida eterna e não crer é condenar-se (Jo 3, 16-18; 6, 40; 20, 31; 3, 36; 5, 24; 6, 47);

necessidade de nascer pela água e pelo Espírito (Jo 3, 5); assim como o ramo que seca por

estar separado do tronco, também todo aquele que se separar de Cristo será lançado fora e

jogado ao fogo para ser queimado (Jo 15, 1ss); pedra angular, Jesus Cristo, rejeitado pelos

homens, torna-se o único meio através do qual se pode ser salvo (At 4, 11-12).8

Alguns padres da igreja, anteriores a Cipriano (séc. III), a cujo nome é geralmente

associado o axioma, podem ser trazidos à baila como antecedentes históricos da fórmula

lapidar final "Extra eclesiam nulla salus".

8 Devem ser evitadas as análises a partir, somente, dos extremos explicativos. Esta pesquisa parte do pressuposto de que a história do cristianismo e, posteriormente, do catolicismo, lócus epistemológico deste trabalho, sempre abrigou, apesar das opiniões e posições preponderantes, idas e vindas, contraposições e questionamentos. Algo natural em vista do fato de que a história do cristianismo/catolicismo não se desenrola paralelamente à história da humanidade, essa com imperfeições, erros, acertos etc., mas é parte integrante dela. Sobre essa fase de preparação bíblica do adágio em questão, lembra Libânio (LIBÂNIO, 1973, p. 25), "não se podem esquecer certas precisações". Se existem, como se viu, afirmações bíblicas que podem fundamentar ou se tornar o húmus do extra eclesiam nulla salus, por outro lado, podem ser arroladas outras afirmações que ampliam a possibilidade da salvação para além dos limites visíveis territorias de Cristo ou da recepção do batismo: Deus, com sua vontade salvífica universal, quer que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade (1 Tim 2, 3); os homens serão julgados simplesmente pela caridade feita a seus irmãos (Mt 25, 31-46); quem possui o amor, possui tudo, sem outra condição (Rm 13, 10).

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Os padres da igreja desempenharam um complexo e fundamental papel junto ao

cristianismo: a construção de seu edifício doutrinário, que a igreja acolheu e sancionou

(REALE; ANTISERI, 1991). Esse trabalho, iniciado com a necessidade de se defender das

acusações dos adversários (judeus, pagãos e heréticos), que deformavam a mensagem

evangélica, e que passou, aos poucos, pela construção da identidade dos cristãos em todos os

níveis, pode ser dividido em três momentos: a) o dos "padres apostólicos" (ainda ligados, no

século I, aos apóstolos e a seu espírito), que se debateram com problemas ainda não

filosóficos, mas morais e ascéticos; b) o dos "padres apologistas" (por realizarem, no século

II, uma defesa sistemática do cristianismo), que tinham nos filósofos seus principais

adversários, apesar de já se utilizarem de forma incipiente das armas filosóficas; c) o da

Patrística propriamente dita (século III ao início da Idade Média), quando o elemento

filosófico, especialmente platônico, desempenha papel bastante considerável.

Inácio de Antioquia9 parece ter sido o primeiro padre da igreja a quem se pode fazer

referência nesse contexto (DUPUIS, 1999a). Sua preocupação, bastante específica, a

deliberada e condenável separação da igreja, era com os cismáticos, que colocavam em perigo

aquilo que para ele era uma exigência deveras importante: unidade dentro da igreja e união

com o bispo, requisitos para a união com Deus em Jesus Cristo. Às tentativas de cisma, ele

exortava: "Não se enganem, meus irmãos: quando alguém segue quem divide, não herda o

reino de Deus".10

Irineu11 não foi menos incisivo. Seu contexto é o da pretensão dos gnósticos de

possuírem um conhecimento superior ao das comunidades cristãs normais. Para ele, todo o

9 Viveu no século I d. C., tendo se tornado bispo de Antioquia por volta do ano 69. Foi martirizado em Roma, onde faleceu no ano 107. Suas sete epístolas às igrejas do Oriente e de Roma constituem documentos importantes sobre a igreja antiga. 10 A tradução desta Lettera ai filadelfesi 3, 3 é a da edição italiana em IGNAZIO DI ANTIOCHIA. Lettera. Reggio Emilia: Centro Editoriale S. Lorenzo, 1990. p. 32. 11 Bispo e doutor da igreja, Irineu nasceu na Ásia Menor (Esmirna) por volta de 130, vindo a falecer, possivelmente martirizado, em Lyon, no ano 202. Sua obra teológica é, toda ela, dirigida contra o gnosticismo.

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prejuízo é daqueles que querem se separar da igreja, pois somente nessa, a verdadeira igreja, é

possível participar da vida da graça, da qual estariam se privando. Ao se separarem da igreja,

privando-se da graça, também a salvação lhes seria negada: "onde está a Igreja, ali está

também o Espírito de Deus; e onde está o Espírito de Deus, ali está a Igreja e toda a graça".12

Assim, como em Inácio de Antioquia, também em Irineu, a exclusão da salvação se deve à

separação da igreja.

Orígenes,13 já no século III, dirigindo-se aos judeus14 e cristãos separatistas,15 é

bastante explícito acerca da impossibilidade da salvação além da igreja:16

Então, se alguém quer se salvar, venha para esta casa, que pertence àquela que era prostituta. Se alguém que pertence ao antigo povo [o povo judeu] também quer se salvar, venha para esta casa, na qual há o sangue de Cristo, em sinal de redenção [...]. Ninguém se iluda, ninguém se engane: fora desta casa, ou seja, fora da Igreja, ninguém se salva (extra hanc domum, id est extra eclesiam, nemo salvatur). Se alguém sair dela vai se tornar réu da própria morte. [...] Obterão a salvação, por meio deste sinal [do sangue de Cristo], todos aqueles que se encontrarem na casa da ex-prostituta, purificados na água e no espírito Santo e no sangue do Senhor e nosso Salvador Jesus Cristo.17

12 Este texto foi tomado de BELLINI, E. (Org.). Contro le eresie e gli altri scritti. Milano: Jaca Book, 1979. p. 296. 13 De acordo com Reale e Antiseri (1991, p. 412), o pensamento de Orígenes representa "a primeira e grandiosa tentativa de síntese entre filosofia e fé cristã". Nasceu por volta de 185, em Alexandria, onde seu pai Leonídio morreu mártir, testemunhando a fé de Cristo. Com os bens da família seqüestrados, passou a ganhar a vida ensinando. Em 231, em conseqüência da aversão que lhe nutria o bispo local, foi forçado a abandonar Alexandria. Prosseguiu suas atividades, com grande sucesso, em Cesaréia, na Palestina, onde, com os cristãos, foi perseguido, preso e torturado. Morreu em 253, devido às conseqüências dessas torturas. 14 Para Libânio (1973, p. 26), "seria entender falsamente essa passagem de Orígenes, querer ler nela uma pesquisa teórica sobre os eleitos e condenados". O apelo primordial é dirigido aos judeus, no sentido de que entrem na igreja. Não se trata de uma reflexão teórica sobre a salvação (RATZINGER, 1974). 15 Dupuis (1999a), apesar das referências feitas aos judeus, considera mais claras ainda as admoestações aos cristãos que, tendo estado na igreja, dela voluntariamente se separaram. Segundo esse autor, a situação em Orígenes é mais complexa e ambígua do que parece. Apesar de suas fortes expressões acerca da igreja como arca da salvação, ele continua a teologia de Justino, afirmando que o Logos atua em todos os seres racionais. Mesmo a noção de igreja é por ele ampliada de modo considerável: "O corpo [de Cristo] é o gênero humano, ou melhor, talvez toda a criação, e nós somos os seus membros, cada um de sua parte". Estas palavras de uma das homilias de Orígenes foram extraídas de PRINZIVALLI, E. (Org.). Omelie sui salmi. Firenze: Nardini, 1971. p. 77. Theisen (1976, p. 7) acredita que esses posicionamentos de Orígenes "atenuam consideravelmente a gravidade intrínseca da posição assumida nas Homilias sobre Josué". 16 Canobbio (1994, p. 81) chama a atenção para o tom exortativo do texto de Orígenes. 17 Este trecho da 3ª homilia de Orígenes sobre Josué foi extraído de SCOGNAMIGLIO, R.; DANIELI, M. I. (Org.). Omelie su Giosuè. Roma: Città Nuova, 1993. p. 80-81.

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A prostituta referenciada por Orígenes é Rahab, cuja casa fora marcada por uma fita

vermelha, para que seus habitantes fossem poupados por ocasião da tomada de Jericó (Js 2,

17-19; 6, 24-25). Também a igreja, prostituta nos tempos do paganismo, às voltas com seus

ídolos, foi marcada pelo sangue de Cristo e todos aqueles que nela habitarem serão salvos.

Como na arca de Noé, a salvação é certa somente para aqueles que estão na arca da salvação

(igreja).

Cipriano,18 contemporâneo de Orígenes, é muito mais direto em suas afirmações,

tanto que lhe é atribuída a criação formal do axioma "Fora da Igreja não há salvação". A

fórmula aparece repetidamente em seus textos, às vezes de forma literal:19

Se o próprio batismo da confissão pública e do sangue derramado não pode aproveitar ao herético em vista de sua salvação, já que não há salvação fora da Igreja, quia salus extra Ecclesiam non est, com quanto muito mais razão não lhe servirá de nada ter sido lavado com uma água corrompida nas trevas de uma caverna de ladrões.

Outras vezes, de forma não literal, porém clara:20

Não se pode corromper a esposa de Cristo: esta permanece intacta e pura [...]. Todo aquele que, em separando-se da Igreja, se une a uma adúltera, frustra-se a respeito das promessas da Igreja. Não terá acesso às recompensas de Cristo, aquele que abandona a Igreja de Cristo. É um estrangeiro, um profano, um inimigo. Não pode ter Deus como Pai, aquele que não tem a Igreja como mãe. Se alguém pudesse ter-se salvado estando fora da arca de Noé, então quem estiver fora da Igreja, poderia também salvar-se [...]. Quem não guarda a unidade da Igreja não guarda nem a lei de Deus, nem a fé do Pai e do Filho, nem a vida nem a salvação, hac unitatem qui non tenet [...], vitam non tenet et salutem".

No entanto, há que se considerar que o contexto das exortações de Cipriano, como se

pode observar nos textos, é bastante específico: os movimentos cismáticos dentro da

18 Foi de fundamental importância para a vida da igreja da África. Grande pastor, com um grande sentido eclesial, tornou-se a maior autoridade teológica antes de Agostinho (REALE; ANTISERI, 1991). 19 Fragmento da Epístola LXXIII, de Cipriano, traduzido ao português a partir da citação na edição italiana de: TOSO, G. (Org.). Cipriano: opere. Torino: ETET, 1980. p. 439-440. 20 Fragmento de "De unitate Ecclesiae", de Cipriano, traduzido ao português a partir da citação na edição italiana de: TOSO, G. (Org.). Cipriano: opere. Torino: ETET, 1980. p. 183.

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comunidade e os hereges, tendo sempre como pressuposto sua culpabilidade pessoal. Sua

intenção é manter a unidade da igreja sob a autoridade do bispo, impedindo, assim, a ruptura

dentro da comunidade. O que está em questão é, segundo Libânio (1973), não a salvação da

humanidade, mas um problema intra-eclesial.21

A própria noção de igreja em Cipriano, tão fundamental quanto rígida, na qual se

baseia o axioma, leva-o mesmo a ultrapassar a ortodoxia, negando o valor do batismo

realizado fora da igreja.22 Sullivan (1992, p. 22-23) reafirma a intra-eclesialidade das

admoestações de Cipriano:

Nos seus textos, Cipriano nunca aplicou, explicitamente, o seu dito – fora da Igreja não há salvação – àquela maioria de pessoas que, no tempo dele, ainda eram pagãs. Sabemos que julgou os hereges e os cismáticos culpados de sua separação da Igreja. Além disso, teria ele atribuído a todos os pagãos a culpa da não aceitação do Evangelho cristão e do não ingresso na Igreja? Isto nós não sabemos.

É importante notar que tal intra-eclesialidade da problemática da salvação, bastante

forte quando os cristãos eram uma minoria perseguida, assume ares extramuros eclesiais

somente com a expansão do cristianismo através do Império Romano. Sullivan (1992, p. 23-

24) o expressa com clareza:

Quando estes antigos escritores cristãos [Inácio, Irineu, Orígenes e Cipriano] tratavam de pessoas excluídas da salvação por estarem fora da Igreja, vemos que, constantemente, dirigiam sua afirmação, como advertência, aos cristãos que julgavam culpados do grave pecado de heresia e cisma. É perfeitamente possível que, se lhes tivesse sido perguntado, respondessem que fora da Igreja não havia salvação nem mesmo para os judeus ou para os pagãos. Mas é significativo, para a história desse axioma, que, em épocas nas quais os cristãos eram ainda uma minoria perseguida, ele só fosse aplicado aos próprios cristãos [...]. A situação mudou, quando o Cristianismo se tornou a religião oficial do Império Romano, e a maioria das pessoas aceitou a fé cristã.

21 Apesar de exortativo, esse texto de Cipriano é bastante polêmico, segundo Canobbio (1994, p. 85). 22 Esta célebre polêmica do rebatismo será bastante contestada mais tarde, inclusive por Agostinho.

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32

No entanto, é paulatina a ampliação do contexto em que a fórmula exclusivista é

utilizada, até desembocar no seu sentido universalista, que não houve na sua origem.

Como se percebe nas falas dos padres da igreja, aos judeus e pagãos é também

aplicado o axioma. No entanto, isso acontece somente em circunstâncias bastante definidas: à

maneira dos hereges e cismáticos, culpados por terem-se afastado da igreja, também eles

tinham culpa por não se terem tornado cristãos, mesmo tendo tido a oportunidade de conhecer

a mensagem de Cristo.

A questão passa a ser então o conhecimento ou não do evangelho. No caso dos hereges

e cismáticos, faz-se compreensível a advertência expressa pelo axioma. Afinal, tendo

pertencido à igreja cristã e conhecido a mensagem de Cristo, por livre e espontânea vontade,

delas se distanciaram, colocando sobre os próprios ombros o ônus dessa culpa. Também os

judeus, mesmo que por oposição, travaram contato com os ensinamentos cristãos. Mas como

explicar a extensão do adágio aos pagãos? Decorre que os padres acreditavam que o

evangelho havia sido definitivamente promulgado em todos os lugares, de forma que todos

tinham tido a oportunidade de aceitá-lo. É o que se observa nas palavras de Ambrósio:23

Mas se alguém não crê em Cristo, priva-se a si mesmo de um bem oferecido a todos. Do mesmo modo, se alguém fecha as janelas e não deixa os raios do sol entrar, isto não quer dizer que o sol não tenha surgido para todos, porque é ele que se priva do seu calor [...]. Foi por meio da Igreja que a misericórdia do Senhor se difundiu por todas as nações, que a fé se difundiu em todas as nações.

Igualmente, encontra-se em Gregório de Nissa24 a afirmação de que todos já teriam

ouvido o chamado à fé, de forma que, os que estavam fora da igreja, eram também culpados.25

23 Bispo de Milão de 374 a 397, Ambrósio foi grande como pastor, como homem de ação, como erudito, não sendo pensador original. Sua originalidade se encontra, sobretudo, nos escritos ético-pastorais (REALE; ANTISERI, 1991). Esse seu comentário ao salmo 118 foi extraído de: PIZZOLATO, F. L. (Org.). Commento al salmo CXVIII. Roma: Città Nuova, 1987. p. 371. 24 Gregório de Nissa (335-394) tornou-se bispo de Nissa (371) e teve importante papel no Concílio de Constantinopla (381). 25 Essa parte da Oratio catechetica de Gregório de Nissa foi extraída de: NALDINI, M. (Org.). La grande catechesi. Roma: Città Nuova, 1982.

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Também João Crisóstomo,26 baseando-se na crescente afirmação do cristianismo, não

tinha dúvida da culpabilidade dos pagãos, por sua permanência fora da igreja, de modo que a

eles seria negada a salvação. Era mais severo ainda acerca da culpabilidade dos judeus, pela

sua não adesão ao corpo eclesiástico.

Se de um lado, ao contrário de Cipriano, Agostinho27 considera válido o batismo

administrado por hereges e cismáticos, o vê como algo inoperante para fins de salvação, dada

a impossibilidade de se conferir o Espírito Santo. Em suas palavras:28

Fora da Igreja pode ter tudo exceto a salvação. Pode haver honra, pode haver os sacramentos, pode-se entoar o Aleluia e cantar Amém, pode haver o Evangelho, pode-se possuir e pregar a fé em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo: mas em nenhum outro lugar pode-se encontrar a salvação, a não ser na Igreja católica.

Estavam excluídos da salvação, segundo Agostinho, todos aqueles que se encontravam

afastados da igreja, mesmo que batizados e praticantes dos sacramentos. Alguns desses

poderiam ser salvos, assim como alguns que estivessem na igreja poderiam não ser salvos,

"[...] pois, na sua [de Deus] inefável presciência, muitos que parecem estar fora, na realidade,

estão dentro, e muitos que parecem estar dentro, estão fora".29

Quanto aos judeus e pagãos, após o evento-Cristo, Agostinho estava convencido de

que eles não poderiam se salvar a menos que acreditassem em Jesus Cristo e fossem

26 Reformador rigoroso e austero, este padre da igreja grega viveu entre 344 e 407, tendo sido bispo de Constantinopla entre 397-404. 27 Agostinho (354-430), nascido na África, foi pregador incansável (400 sermões autênticos), exegeta e teólogo. De sua obra, destacam-se A cidade de Deus (413-427), As confissões (397) e sua correspondência pessoal. Foi adversário das doutrinas heterodoxas (maniqueísmo, donatismo, pelagianismo etc.). 28 Extraídas de seu sermo ad Caesarenssis pleben 6, em CSEL (Corpus Scriptorum Ecclesiasticorum Latinourm) 53, p. 174-175. 29 Palavras de Agostinho extraídas de seu De baptismo 5, 27, 38, em CSEL (Corpus Scriptorum Ecclesiasticorum Latinourm) 51, p. 295. Muitos autores, segundo Dupuis (1999a), chegaram a acreditar que Agostinho vislumbrava a possibilidade de que pessoas afastadas da igreja poderiam, apesar disso, estar no caminho da salvação. No entanto, como esclarece Sullivan (1992), Agostinho apenas se referia a um predicado de Deus (presciência), o saber quem, entre os hereges, será reintegrado na igreja, recuperando, assim, a salvação. Do mesmo modo, inversamente, como lembra Libânio (1973), Agostinho atribui a Deus o conhecimento da diferença entre aqueles que estão na arca "qui corde sunt intus", e se salvarão, e aqueles que estão fora dela no coração ("qui corde sunt foris"), mesmo estando dentro em corpo, e perecerão.

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batizados, pois a pregação do evangelho e a instituição da igreja eram fatos consumados.

Mesmo aqueles aos quais o evangelho não tinha ainda sido pregado, as tribos africanas, por

exemplo, tão familiares a Agostinho, estavam fora da salvação. Duas eram as motivações para

tal certeza: a) eram indignos aqueles a quem Deus recusava a oportunidade de se tornarem

cristãos, pois Ele, na sua grande sabedoria, previa que recusariam seu dom; b) assim como as

crianças que morrem sem o batismo, também os adultos que morrem na ignorância da fé

cristã podem ser condenados, dada a universalidade do pecado original e suas conseqüências.

Eis o resumo conclusivo de Theisen (1976, p. 16) acerca de Agostinho:

Em síntese, Agostinho transmite à Idade Média uma interpretação prevalentemente exclusivista do adágio Extra ecclesiam nulla salus. Recusa a posição de Cipriano sobre a validade do batismo fora da Igreja e continua a insistir na necessidade desta para a salvação. A união com a Igreja é concebida de maneira bastante rígida; ela é um requisito para a recepção do Espírito Santo e da vida eterna.

Da escola agostiniana podem ser trazidos, pelos propósitos desta pesquisa, e pelos

caminhos opostos trilhados, dois de seus discípulos: Próspero de Aquitânia e Fulgêncio de

Ruspe.

Próspero de Aquitânia,30 fiel seguidor de Agostinho, à maneira de seu mestre, também

aceitava a doutrina da primazia absoluta da graça e da liberdade de Deus em concedê-la. No

entanto, contra seu mestre, insistiu na tese de que Deus desejava, de alguma forma, a salvação

de todos os seres humanos. Tal dilema era por ele solucionado com a distinção entre graça

"geral" e graças "especiais". A graça "geral" era ofertada por Deus de forma universal,

enquanto as graças "especiais" eram reservadas àqueles que Ele escolhia para privilegiar com

tais dons. Afastando-se da concepção de Agostinho, Próspero afirma que Cristo não morreu

30 Esse teólogo gaulês nasceu perto de Bordeaux, por volta de 390, e morreu entre os anos de 455 e 463. Defendeu, diante dos semipelagianos, a doutrina de Agostinho sobre a graça – com a variação descrita acima – e a predestinação. De grande valor historiográfico é a sua Crônica universal, que contém informações preciosas sobre a história da Gália, de Roma e da Itália, no período de 412 a 455.

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apenas pelos fiéis, mas por todos, até mesmo pelos não crentes e pelos pecadores.31 E o caso

daqueles que nunca tinham ouvido a Boa Nova? De igual maneira, esses, mesmo não tendo

recebido esta graça "especial", destinada somente aos escolhidos livremente por Deus,

beneficiar-se-iam da graça "geral", concedida a todas as pessoas, antes e depois de Cristo.

Mediante essa graça "geral", elas poderiam ser salvas. Esta é a sua expressão:32

Não temos nenhuma dúvida de que, no julgamento oculto de Deus, também foi estipulado um tempo para o seu chamado, quando ouvirão e aceitarão o Evangelho que, por ora, permanece-lhes desconhecido. Agora mesmo eles recebem a quantidade de ajuda geral que o céu sempre concedeu a todas as pessoas.

Percebe-se, de forma clara, que foi atenuado decididamente por Próspero o rigorismo

de Agostinho, que afirmava a não possibilidade de salvação para aqueles que, após a vinda de

Cristo, não tinham ouvido e recebido a mensagem evangélica.

Fulgêncio de Ruspe,33 também seguidor de Agostinho, trilhou, no entanto, caminhos

bastante diferentes de Próspero de Aquitânia. Assumiu literalmente o ensinamento

antipelagiano34 de Agostinho. Na sua expressão:35

Se fosse verdade que Deus quer universalmente que todos sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade, com é que a própria Verdade oculta a alguns o mistério de seu conhecimento? Certamente, àqueles aos quais negou este conhecimento, ele também nega a salvação [...]. Ele quis, então, salvar aqueles aos quais deu o conhecimento do mistério da salvação, e não quis salvar aqueles aos quais negou o conhecimento do mistério salvífico. Se tivesse desejado salvar uns e outros, a todos teria dado o conhecimento da verdade.

31 Próspero de Aquitânia discute essas questões em seu "O chamado de todas as nações". Os pontos específicos de sua teoria aqui expostos foram extraídos da versão latina De vocatione omnium gentium 2, 16 em Patrologia latina 51, col. 702-703. 32 De vocatione omnium gentium 2, 17 em Patrologia latina 51, col. 704. 33 Fulgêncio viveu entre 468 e 533. Foi nomeado, no ano de 507, bispo no norte da África, em Ruspas (ou Ruspa, ou Ruspe, dependendo da tradução), constituindo-se num dos principais adversários do arianismo. 34 Pelágio pregava que, para se salvar, bastavam a boa vontade e as obras, independentemente da graça. 35 Texto extraído da Patrologia latina 65, col. 660-661: De veritate praedestinationis [Sobre a verdade da predestinação] 3, 16-18.

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A fórmula exclusivista, que até então mantinha uma certa característica dialética

(LIBÂNIO, 1973), com Fulgêncio torna-se rígida. Aplica-se aos hereges e cismáticos:

Creia com toda a fé e não duvide de modo algum: um batizado fora da Igreja católica não pode participar da vida eterna se, antes do fim desta vida, não se voltar para a Igreja católica e não se incorporar nesta. Porque, diz o Apóstolo, 'se tenho a fé e conheço todos os mistérios, mas não tenho a caridade, não sou nada' (1Cor 13, 2). De fato, também nos dias do dilúvio, lemos que ninguém pode se salvar fora da arca.36

Mas também aos pagãos e judeus:

Creia com toda fé e não duvide de nenhum modo que, não apenas todos os pagãos, mas também todos os judeus e todos os hereges e cismáticos, que terminam a vida presente fora da Igreja católica, irão 'para o fogo eterno preparado para o diabo e seus anjos' (Mt 25, 41).37

Assim, a fórmula adquiriu maior amplitude, abrangendo pagãos, judeus, hereges e

cismáticos. Na expressão de Libânio (1973, p. 28), o adágio, sob a ótica de Fulgêncio, leva à

conclusão de que "numa palavra qualquer pessoa que termine sua vida fora da Igreja condena-

se".38

36 De fide ad Petrum 37, texto de Fulgêncio encontrado em: BIANCO, M. G (Org.). Fulgenzio de Ruspe. Le condizioni della penitenza. La fede. Roma: Città Nuova, 1986. p. 170. 37 De fide ad Petrum 38, texto de Fulgêncio encontrado em: BIANCO, M. G (Org.). Fulgenzio de Ruspe. Le condizioni della penitenza. La fede. Roma: Città Nuova, 1986. p. 170-171. 38 Em 1442, o Concílio de Florença (1438-1445), como se verá em outro item deste capítulo, assumirá oficialmente o axioma, a partir deste seu sentido mais absoluto, utilizado pelo discípulo de Agostinho, Fulgêncio de Ruspe.

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1.2.2 O axioma nos documentos eclesiais

Documentos e ensinamentos oficiais da igreja, através de seu magistério, também

lançaram mão do axioma.

A carta do papa Inocêncio III39 (DENZINGER, 1995, n. 792, minha ênfase) ao

arcebispo de Tarragona40 apresenta as "condições" sob as quais Durando de Osca retornaria

dos valdenses41 para a igreja.42 Equivaleria a uma profissão de fé: "Com o coração

acreditamos e a com a boca confessamos uma só Igreja, não de hereges, mas a santa, romana,

católica e apostólica, fora da qual cremos que ninguém se salva [extra quam neminem salvari

credimus]".

A ênfase atribuída à palavra romana na citação acima se justifica pelo fato de que, pela

primeira vez, faz-se referência explícita à igreja romana. Em nenhum dos antigos documentos

39 Giovanni Lotario nasceu em Anagni (1160) e faleceu em Roma (1216). Nomeado papa em 1198, pontificou até 1216, ano de sua morte. Considerado o teórico da teocracia pontifícia, impôs sua autoridade sobre o senado de Roma e sobre o imperador. Com sua triunfante teocracia, leva a cabo o ideal de "domínio cristão do mundo". Com esse papa, a igreja romana alcança poder e prestígio, através da solução de autoridade dos conflitos políticos, da criação de tribunais supremos e da exclusividade do seu magistério (REALE; ANTISERI, 1991). Sob seu "comando", ocorreram a IV Cruzada e a cruzada (guerra) contra os albigenses (1209-1229. A guerra, na verdade, era contra os cátaros, numerosos e fortes no Languedoc. O termo Albigenses se deve ao fato de que um importante colóquio do grupo se deu em Lombers, próximo a Albi, em 1176, revelando na região a força do catarismo, ou albigenismo.). Não conseguiu revesti-las do espírito original das cruzadas, como era sua intenção. A IV Cruzada, como se sabe, desembocou no saque de Constantinopla (1204) e a guerra contra os albigenses degenerou em expedição punitiva (1226). 40 A carta foi escrita em 18 de dezembro de 1208. 41 Pedro Valdo (1140-1217), um rico mercador de Lyon, iniciou o movimento dos valdenses ao final do século XII. Em nome da Sagrada Escritura, ele pregava o retorno à pobreza evangélica e recusava o sistema romano e feudal, assim como o culto aos santos, as indulgências e o purgatório. Em nome desses ideais, ele teria abandonado tudo para reunir em torno de si os "pobres de Lyon", chamados valdenses. Perseguidos pela igreja, foram marginalizados e excomungados desde 1184. Posteriormente, no século XVI, aderiram à Reforma protestante. 42 O século XIII é o período da teocracia papal, momento em que Inocêncio III pretende a plenitude do poder (REALE; ANTISERI, 1991). A teoria das "duas espadas" vai dando lugar à teoria do primado do poder da igreja sobre o do Império. A fé católica professada pelo Ocidente penetra em todas as classes sociais. O papado, fortalecido pelo primado do catolicismo, obriga todos a reconhecerem a função mediadora da igreja. Inversamente, esse é o período da crise no mundo islâmico, sendo um de seus momentos centrais a tomada de Constantinopla pelos cruzados (1204).

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que se referiam ao axioma aparece tal menção. As palavras do papa querem agora enfatizar o

caráter romano da única igreja católica na qual se encontra a salvação.

O IV Concílio de Latrão (1215)43 foi dirigido, principalmente, contra os movimentos

espiritualistas e antieclesiásticos. Esses, aos olhos dos conciliares, reduziam a igreja a uma

congregatio fidelium, negando sua natureza de encarnação e mediação e, conseqüentemente, a

sua estrutura visível e sacramental. Em um de seus documentos, uma definição contra os

albigenses, inseriu uma profissão de fé (DENZINGER, 1995, n. 802, minha ênfase) na

comunidade visível, sacramental e eucarística.

Há apenas uma Igreja universal dos fiéis, fora da qual absolutamente ninguém se salva e na qual o próprio Jesus Cristo é sacerdote e vítima (idem ipse sacerdos est et sacrificium Jesus Christus). De fato, o seu corpo e o seu sangue estão contidos, realmente, no sacramento do altar, sob as espécies do pão e do vinho, visto que o pão é transubstanciado no corpo, e o sangue, no vinho, por poder divino. De forma que, para realizar o mistério da unidade, nós recebemos dele o que ele recebeu de nós (ut [...] accipiamus ipsi de suo, quod accepit ipse de nostro).

No entanto, a referência à ausência de salvação fora da igreja, nesse Concílio, é, ainda,

algo marginal, aparecendo apenas em uma oração subordinada. A preocupação maior,

expressa no texto, é com a unidade da igreja sacramental realizada pela eucaristia. No parecer

de Theisen (1976, p. 19),

Embora o axioma esteja inserido em um decreto de um concílio geral da Igreja e, mais exatamente, em uma profissão de fé, ele não constitui o objeto de considerações conciliares específicas. O concílio se limita a registrar o axioma tradicional (seguramente aceito) e não faz dele o objeto de uma definição.

43 Esse concílio foi conduzido por Inocêncio III, de 11 a 30 de novembro de 1215, momento em que o papado medieval conhecia o apogeu de sua autoridade política e religiosa. Sob seu comando, foi tornada obrigatória a confissão auricular para todos os cristãos adultos. A insistência na confissão privada mostra sua pronta resolução em combater os desvios e heresias por todos os meios disponíveis. Ao contrário da confissão pública, na auricular, o confessor assumia grande importância na hierarquia social, além de possibilitar à igreja, vislumbres reveladores da teoria política medieval (JOHNSON, 2001). Interessante notar também que, nesse concílio, os judeus foram proibidos de possuir terras e de assumir quaisquer funções civis e militares.

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A bula Unam sanctam44 do papa Bonifácio VIII45 teve grande peso na história do

axioma, por seu caráter categórico. A bula aparece no contexto eclesial em que transparecia a

preocupação com a relação recíproca entre os poderes espiritual e temporal. Mesmo

admitindo a existência de "duas espadas", o documento, perseguindo o ideal da unidade,

afirma o domínio e controle do poder espiritual – do papa, mais especificamente – sobre o

temporal. É nesse contexto que surge a menção às possibilidades de salvação. O papa prega

tão fortemente uma hierocracia a ponto de afirmar que necessária à salvação é não somente a

pertença à igreja mas também a submissão ao pontífice romano.

Nós somos obrigados, levados pela fé, a acreditar e a considerar uma só Igreja, santa, católica e, ao mesmo tempo, apostólica, e acreditamos nela firmemente e, com simplicidade, a confessamos, fora da qual não há salvação nem remissão dos pecados [...]; e ela representa um único corpo místico e, deste corpo, a cabeça é Cristo, enquanto que a de Cristo é Deus. Nela 'há um só Senhor, uma só fé, um só batismo' (Ef 4,5). Uma só, com efeito, foi, no tempo do dilúvio, a arca de Noé, e prefigurava uma só Igreja, e esta, levada por um único cúbito, teve um único comandante e condutor, ou seja, Noé, e, fora desta, nós lemos que todos os seres vivos da terra foram destruídos [...]. A única Igreja tem um só corpo, uma só cabeça, não duas como um monstro, ou seja, Cristo e o vigário de Cristo, Pedro, e o sucessor de Pedro, visto que o Senhor disse ao próprio Pedro: 'Cuide das minhas ovelhas' (Jo 21,17). 'Minhas', disse, e de modo geral, não particularmente estas ou aquelas: daí se entende que confiou-as todas a ele. Quando, então, os gregos ou outros dizem que eles não estão sob a tutela de Pedro e dos seus sucessores, é necessário que eles declarem que não fazem parte do rebanho de Cristo, pois o Senhor diz, em João, 'haverá um só rebanho e um só pastor' (Jo 10,16) [...]. Por isso declaramos, afirmamos e estabelecemos que submeter-se ao pontífice romano é, para qualquer criatura humana, necessário à salvação (DENZINGER, 1995, n. 870, 872, 875, minha ênfase).

44 De 18 de novembro de 1302. 45 Segundo Reali e Antiseri (1991, p. 611), a triunfante teocracia de Inocêncio III que, no século XIII, levou a cabo o ideal de "domínio cristão de mundo", levando a igreja romana a alcançar grande poder e prestígio, já não é tão visível e palpável no início do século XIV. Apesar das constantes afirmações teocráticas e gestos decididos e de repercussão por parte de Bonifácio VIII, nesse período, observa-se um contexto social e cultural já pouco disposto a compartilhar a política da supremacia eclesial. É o início da ruptura do equilíbrio entre razão e fé. Interessante notar que, à medida em que o poder eclesial tende a ser menos aceito pelo poder temporal, cresce na proporção inversa a necessidade eclesial de reafirmar-se a si mesma como condição sine qua non para a salvação de todos, chegando ao ápice com o concílio de Florença, exposto mais à frente nesta pesquisa.

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Sullivan (1992, p. 66), comentando a bula, no que se refere à insistência na submissão

ao pontífice romano – esta parte do texto já foi, inclusive, considerada geralmente como de

caráter dogmático e vinculatório (DUPUIS, 1999a) –, expressa que

Podemos concluir destacando que, hoje, nenhum teólogo católico defende que a teoria de Bonifácio – da supremacia do poder espiritual sobre o temporal – constitua um dogma da fé católica. É prudente afirmar que, se a bula definiu algo, foi simplesmente a doutrina tradicional de que não há salvação fora da Igreja católica.

Com uma ponta de ironia, Küng (1969) faz, a esse respeito, a seguinte observação: foi

Bonifácio VIII, que via a submissão ao papa como condição necessária à salvação, quem

levou o papado às margens da ruína, pois o grande cisma do Ocidente46 conheceu momentos

em que três papas se excomungavam mutuamente.

O concílio geral de Florença, em 1442,47 chamado o "concílio de união",48 resgata, de

forma extremamente rígida, a doutrina tradicional da necessidade da igreja para a salvação.

Não por acaso, quase que literalmente, é retomada a fórmula de Fulgêncio de Ruspe, exposta

no Tratado sobre a fé, onde o discípulo de Agostinho, de forma absoluta, estende o axioma

para além dos cismáticos e hereges, aos judeus e pagãos. Em se tratando de documentos

oficiais da igreja, esse, do concílio de Florença, é o primeiro a fazer a mesma extensão, da

necessidade da igreja para a salvação, aos judeus e pagãos.

46 Conflito que dividiu a igreja de 1378 a 1417, durante o qual houve, ao mesmo tempo, vários papas. A igreja tricéfala resolveu a questão somente com o concílio de Constança (1415-1418), quando foram depostos os três papas e inciado o conclave que culminou com a eleição de um papa único, Martinho V. 47 Comandado por Eugênio IV, este concílio, dando seqüência aos concílios de Basiléia e de Ferrara (1431-1442), situa-se num contexto em que há um esforço eclesial no sentido de conjurar a ameaça de desintegração da cristandade no início dos tempos modernos. Eugênio IV, nome pontifício de Gabriel Condulmer, nasceu em Veneza em 1383, faleceu em Roma em 1447, tendo sido papa de 1431 até o ano de sua morte. 48 Essa denominação advém do fato de que esse concílio, reunido, então, em Florença, aprovou decretos que apontavam para a união com as igrejas Armênia, grega e copta (jacobita). A proclamada união entre cristãos latinos e gregos acabou-se tornando simplesmente formal, pois não ocorreu na prática.

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Um dos decretos do concílio (DENZINGER, 1995, n. 1351), aquele direcionado aos

jacobitas ou coptas do Egito, na verdade uma bula preparada por Eugênio IV, tentando um

resumo da fé cristã, retoma as palavras de Fulgêncio de Ruspe em forma de símbolo de fé:

A Igreja crê firmemente, confessa e anuncia que "aqueles que estão fora da Igreja católica, não apenas os pagãos", mas também os judeus ou os hereges e os cismáticos, não poderão atingir a vida eterna, e irão para o fogo eterno, "preparado para o diabo e seus anjos" (Mt 25, 41), a não ser que, antes da morte, tenham-se unido (aggregati) a ela. Ela professa também que a unidade do corpo da Igreja é tão importante que, apenas para aqueles que permanecem nela, os sacramentos da Igreja serão úteis à salvação; somente para estes, os jejuns e as obras de piedade e os exercícios da milícia cristã obterão o prêmio eterno. Ninguém, não importa quanta esmola tenha dado ou mesmo se derramou seu sangue pelo nome de Cristo, pode ser salvo, se não estiver no seio e na unidade da Igreja católica.

Dupuis (1999a), ao mesmo tempo em que, à luz do contexto histórico, tende a

enxergar na principal intenção desse concílio justamente a reafirmação do axioma, questiona

acerca do valor dogmático que poderia ser atribuído ao decreto que reproduz a fórmula

exclusivista.

Theisen (1976, p. 27), questionando-se sobre a intenção imediata do concílio em

afirmar a relação entre a igreja e a salvação e sobre a exata situação, no que toca à salvação,

daqueles que estavam fora do corpo eclesiástico, afirma: "Parece que não. Ninguém, naquele

tempo, contestava a doutrina tradicional; por isso, ela não era objeto direto de consideração e

definição".

Sullivan (1992, p. 67-68), tentando entender essa possível ambigüidade do concílio

que, ao mesmo tempo em que mostra extrema severidade e rigidez, não transpareceria

intenção dogmática imediata acerca da questão salvífica, expressa-se:

Temos boas razões para interpretar o decreto à luz daquela que era, então, a crença comum: que todos – pagãos, judeus, hereges e cismáticos – eram culpados do pecado de infidelidade, porque tinham se recusado, propositalmente, a aceitar a verdadeira fé, ou a permanecer nela [...]. O seu [dos bispos de Florença] decreto só pode ser interpretado à luz do seu juízo sobre a culpabilidade de todos aqueles que, eles declaravam, seriam condenados ao inferno. [...] Os bispos do concílio de Florença acreditavam,

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certamente, que Deus é bom, que, sendo bom, é justo, e que um Deus justo não condena pessoas inocentes ao fogo do inferno. É inevitável concluir que eles devem ter considerado culpados, e merecedores da punição eterna, todos os pagãos, os hereges e os cismáticos.

O que se tentará, a seguir, é justamente ampliar essa observação da compreensão do

axioma através de alguns olhares teológicos.

1.2.3 Tentativa de compreensão do axioma

Devido à extensão da temática do axioma na história da igreja, além de sua grande

influência nos caminhos eclesiais católicos até tempos recentes, esta parte da pesquisa não

tem a pretensão de abarcar todas as vozes emitidas neste debate. Algumas foram arroladas.49

Há que se atentar inicialmente para o momento cronológico em que o axioma assumiu

força de doutrina eclesial no concílio de Florença: ano de 1442, cinqüenta anos antes da

chegada dos europeus ao Novo Mundo, ocaso da Idade Média e alvorecer da Idade Moderna.

Agregando-se a isso, como base de reflexão, a justificativa que fundamentava a utilização da

fórmula, a saber, a culpabilidade daqueles que não aderiram à fé cristã, cuja conseqüência

prática seria o retorno ou o ingresso na igreja, algumas reflexões podem ser avançadas.

Libânio (1973), tentando entender a rigidez da fórmula e a pressuposta culpa daqueles

que estavam fora da igreja, afirma que, para os homens antigos e da Idade Média, havia uma

49 Hick (1995, p. 86), sobre essa temática, é categórico: “se eu fosse um católico, eu deixaria a velha fórmula do extra ecclesiam trasladar-se silenciosamente para o museu dos dogmas defuntos, ao invés de revivê-la na atualidade tentando defendê-la. Aquela foi uma formulação profundamente infeliz, e com certeza é melhor que seja esquecida em nossos dias”. Para uma análise mais interna ao catolicismo, conferir o detalhado e recente trabalho de SESBOÜÉ, Bernard. « Hors de l’Eglise, pas de salut »: histoire d’une formule et problèmes d’interprétation. Paris: Desclée de Brouwer, 2004. Sesboüé é Jesuíta, professor da Faculté de Théologie du Centre Sèvres, Paris.

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identificação entre "cristandade", "oikumene" e "humanidade".50 Mesmo sabendo da

existência de outros povos,51 algo que não lhes interessava, de fato, por humanidade

entendiam aquela parte dentro do círculo cristão.52 Daí que o não-ser-cristão somente poderia

ser entendido como má vontade, culpabilidade e merecimento da condenação eterna. Se uma

defesa pudesse ser feita do axioma, essa poderia ser uma linha de raciocínio: a pressuposição

de grave culpa daqueles que não pertenciam à igreja (DUPUIS, 1999a).

Com a chegada européia ao “Novo Mundo”, em 1492, aflorou aos olhos cristãos algo

inusitado: o Evangelho ainda não tinha sido promulgado a “todo o mundo”. Os limites da

“cristandade” eram mais estreitos do que se pensava. Como responsabilizar alguém pela

própria condenação, pelo fato de não ter atendido o chamado de estar dentro da igreja de

Cristo, se ele nunca sequer ouviu falar nesse nome?

Bem antes disso, teólogos escolásticos, entre eles Tomás de Aquino, já tinham tentado

delinear novos enfoques da salvação, 53 objetivando perspectivas mais amplas. No entanto,

foi, nas palavras de Torres Queiruga (1997, p. 14), a consciência da “espetacular ampliação

espacial” do mundo religioso, ocasionada pelos descobrimentos europeus, que trouxe aos

cristãos enormes questionamentos. Para esse autor (1997, p. 14), a partir desses

acontecimentos históricos e geográficos, “a ecumene clássica aparece como uma pequena

50 A convicção de que o Evangelho já tivesse sido promulgado em todos os lugares tinha suas raízes no próprio Segundo Testamento: "Agora, eu pergunto: será que eles não ouviram? Ao contrário: pela terra inteira correu a voz deles e suas palavras foram até os confins do mundo" (Rm 10, 18). Também Lucas, ao final dos Atos dos Apóstolos, ao ver Paulo, em Roma, pregando o Reino de Deus com coragem e sem obstáculos, convence-se de que o Evangelho atingira o mundo todo. Posteriormente, o contato cristão com o mundo helênico e a adoção do cristianismo sob a oficialidade do império romano, alçaram às alturas tal certeza. 51 A esse respeito discutiu-se, no item anterior desta pesquisa, com olhar positivo, a adequação atenuante das afirmações de Agostinho levada a cabo por seu discípulo próspero de Aquitânia ao tomar conhecimento da existência de nações que ainda não tinham tido a oportunidade de ouvir a boa nova. 52 Ratzinger (1974), baseando nesta idéia da extensão do círculo cristão, afirma que, por esse motivo, a rigidez da fórmula fica bastante reduzida. Interessante notar que, quase três décadas após, esse mesmo autor, já proeminente e influente cardeal da cúria romana, responsável pelas questões de doutrina da fé da igreja, publicaria documento intitulado "Dominus Iesus" (2000), onde reafirma a unicidade e universalidade salvíficas de Jesus Cristo e da igreja. 53 Questões heterodoxas em questão do batismo, do martírio e do poder de consagrar naqueles que teriam se separado da igreja.

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mancha na imensidão dos continentes habitados”. Urgia, então, retomar a ilusão de Paulo de

“chegar aos extremos da terra, sem dúvida com a esperança de que o evangelho alcançasse a

todos os homens” (TORRES QUEIRUGA, 1997, p. 14). Inicia-se, então, a epopéia da

evangelização do Novo Mundo.

Dupuis (1999a) acredita que, a partir deste momento e mais ainda nos dias de hoje,

"tal pressuposto [o da culpabilidade] é totalmente inaceitável". Mesmo porque, como lembra

Küng (1969, p. 442), os europeus, nos finais do século XV e no século XVI, entraram em

contato com "humanidades civilizadas e honestas, longe da influência da Igreja", o que

possibilitou uma revisão de toda essa problemática.54

Libânio (1973, p. 29), deslocando o lócus da questão debatida, faz referência ainda a

uma possível "razão de cunho mais psicológico".55 Quando se mencionava, acerca da

impossibilidade de salvação extra eclesiam, uma "ignorância invencível",56 restringia-se a

questão apenas ao conhecimento. Sabe-se, nos tempos modernos, que, mesmo que se saiba

que algo deva ser feito, não significa que em não fazendo incorra-se automaticamente em

54 Ilustra bem essa questão o caso do jansenista Pascal Quesnel (1634-1719), condenado em 1713 pelo papa Clemente XI (constituição Unigenitus Dei Filius) por sua afirmação de que "fora da Igreja não se concede nenhuma graça" (DENZINGER, 1995, n. 2429). Cornelius Jansen (1585-1638), condenado após sua morte por suas posições teológicas, foi o líder do movimento reacionário – denominado jansenismo – à posição otimista dos jesuítas sobre a possibilidade de salvação sem a fé explícita em Jesus Cristo. Na polêmica entre jesuítas e jansenistas, note-se que esses levam ao extremo o axioma "fora da Igreja não há salvação", de forma que, conseqüentemente, também não haveria "graça". A própria igreja, defensora do axioma, na pessoa de Clemente XI, rejeita tal conseqüência. Segundo Congar (1964), os jesuítas se mostraram muito mais abertos acerca da salvação fora dos limites da igreja, sem dúvida, pelo contato de seus missionários com outras regiões e povos dotados de elementos muito válidos de bondade e justiça. Os jansenistas, por seu lado, teriam ficado rigidamente presos ao texto de Agostinho. 55 Não é intenção do autor, pelo que transparece em seus escritos, uma justificação das antigas posições favoravelmente assumidas acerca do axioma. O que ele tenta é perceber a extensão da "consciência possível" a um determinado tempo (LUKÁCS apud GOLDMAN, 1967, 1972). 56 O primeiro documento oficial da igreja a mencionar a "ignorância invencível" é a alocução Singulari quadam do papa Pio IX, em 1854.: "Naturalmente, é necessário afirmar, de fé, que fora da Igreja apostólica romana ninguém pode se salvar, que esta é a única arca da salvação, e que quem nela não entrar, perecerá no dilúvio; porém, deve-se considerar igualmente certo que aqueles que se encontram na ignorância da verdadeira religião, se esta ignorância for invencível, não têm nenhuma culpa perante os olhos do Senhor. E quem será tão arrogante para poder traçar os limites desta ignorância, levando em consideração a natureza e a variedade dos povos, das regiões, das inclinações e de tantos outros fatores?" Segundo Libânio (1973), a introdução de nuanças importantes como "ignorância invencível" e "erro de boa fé", foi tentativa de Pio IX no sentido de, retomando o problema da necessidade da igreja para a salvação, enfrentar o indiferentismo, de um lado; sem cair na intolerância, de outro.

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condenável culpa. A incapacidade e impossibilidade de aceitar uma verdade, a pertença à

igreja, no caso em pauta, têm razões muito mais profundas e complexas que a simples questão

de informação, remontando às camadas mais profundas do psiquismo. Disso não tinham

consciência os homens antigos. Pode-se ter intelectualmente certeza de alguma coisa e,

contudo, existencialmente, por razões até inconscientes, não aceitá-la.57

O que Libânio (1973) não quer que se perca é a natureza dialética dessa realidade.

Segundo ele, nenhum pólo pode ser acentuado sem que se corra em erro. Dialética, aliás, que

se percebe também na própria reflexão teológica acerca dessa temática, nas proposições de

um mesmo autor e entre autores diferentes.

Nessa linha, Küng (1969, p. 365), de um lado, indaga e responde de forma categórica e

direta.

Este axioma, na sua formulação negativa e exclusiva, não continua sendo pretexto, dentro e fora da Igreja católica, para inumeráveis mal-entendidos, que renascem incessantemente a despeito de qualquer esclarecimento? Embora possa já ter sido útil à Igreja e à sua missão, hoje só lhe traz grande dano. E não só porque, hoje, mais ninguém se decide a acreditar em Cristo por medo do inferno. A própria palavra é mais bem interpretada como intolerância ou como duplicidade: como intolerância, quando, de acordo com a antiga tradição, é considerada, exclusivamente em sentido literal; como duplicidade, quando deve significar que fora da Igreja católica ninguém pode ser salvo e, ao mesmo tempo, não deve excluir que fora da Igreja católica alguém, ou melhor, muitos milhões e bilhões de homens, a maior parte da humanidade, na verdade pode ser salva.

De outro lado, esse mesmo teólogo (1969, p. 367), buscando uma formulação mais

positiva para o axioma, afirma que

[...] na sua formulação negativa e exclusiva, o [axioma] foi, desde o início, bastante problemático e, por isso, provocou erros de diversos graus; [...] além disso [ele] se revelou fonte de mal-entendidos na sua aplicação aos não cristãos, e absolutamente incompreensível na sua aplicação aos não-católicos. [...] com referência aos outros [os que não são cristãos católicos] é

57 Talvez, sem o intuito de justificar essa ou aquela posição, possa-se usar essa mesma reflexão, mudando-se o sujeito de análise. Mesmo conhecedores – no nível intelectual – da existência de outros povos, com práticas culturais e religiosas diferentes, os antigos defensores do axioma tinham uma "ignorância invencível", existencialmente falando – talvez a tenham maior ainda os atuais defensores do adágio, dadas as condições de conhecimento do outro diferente que o mundo de hoje possibilita.

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melhor formulá-lo positivamente: 'dentro da Igreja há salvação!' É necessário, portanto, preservar o núcleo positivo desse axioma, cuja formulação negativa é fonte de mal-entendido.

Bermejo (1990, p. 242-243) é mais severo em sua análise, afirmando que o axioma

teve um início, um desenvolvimento e um fim, esse, na verdade, bastante tardio, em sua

opinião, tornando-se a partir daí completamente nulo e ineficaz.

A história do extra ecclesiam demonstra, definitivamente, que a recepção eclesial não é sempre irreversível. O magistério da Igreja [...] afirma o axioma, no sentido rigorista de Cipriano, de 1208 a 1854. [...] Uma posição que era claramente insustentável [...] estava destinada a ser, cedo ou tarde, modificada [...]. A mudança – a transição da recepção à não-recepção – chegou, mas, certamente, depois de muito tempo.

Congar (1965, p. 354), por seu lado, encontra uma verdade bíblica no axioma, o que o

dotaria de significado: "a Igreja é a única instituição criada e dirigida por Deus para obter para

as pessoas a salvação que está em Jesus Cristo; ela recebeu de seu fundador e Senhor tudo o

que é necessário para obter a salvação de toda a humanidade". No entanto, por não poder mais

ser entendido literalmente, sendo que uma correta interpretação exigiria longas explicações,

esse teólogo (1963, p. 149-150), deslocando a visão do objeto para o sujeito da salvação,

sugere, sem mais, seu abandono.

[...] não se trata mais de aplicar a fórmula a uma pessoa concreta qualquer [...]. Portanto, de agora em diante, a fórmula deve ser considerada como correspondendo não à pergunta: Quem se salvará?, mas a questão: Quem está encarregado de exercer o mistério da salvação?

D'Costa (1990, p. 141), perseguindo o correto entendimento do valor permanente do

axioma, tornando interna aos cristãos essa questão, afirma:

A razão de ser fundamental do axioma era sustentar a convicção cristã de que Deus é a fonte de toda graça salvífica, e de que Cristo é, por meio do seu corpo místico – a Igreja – o mediador principal desta graça. [...] O axioma estabelece que, quando um cristão fala da salvação, não pode fazê-lo sem falar, ao mesmo tempo, de Cristo e da sua Igreja.

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Dupuis (1999a, p. 145) prefere ver o valor permanente do axioma sob o enfoque das

afirmações do concílio Vaticano II, na forma positiva: a igreja é "necessária à salvação" (LG,

n. 14), "instrumento de redenção de todos" (LG, n. 9), "sacramento universal de salvação"

(LG, n. 48) e "sinal da íntima união com Deus e da unidade de todo o gênero humano" (LG, n.

1).58 Esse teólogo jesuíta (1999a, p. 145) sabe, contudo, que "isto não é suficiente, porém,

para resolver todas as questões". Como entender teologicamente esta "necessidade" universal

da igreja na ordem da salvação, sendo que o Segundo Testamento atribui a Jesus Cristo a

"única mediação"?

Antes, no entanto, de redirecionar a questão para o cristianismo, ou seja, explicitar a

afirmação de que "fora do cristianismo não há salvação", propósito do item seguinte desta

pesquisa, faz-se necessária uma compreensão da significação e da extensão do elemento

"igreja".

Na polêmica entre jesuítas e jansenistas, como já comentado anteriormente neste texto,

os jesuítas defendiam a possibilidade da "graça" além dos muros eclesiais, algo negado pelos

jansenistas, fruto de sua interpretação extremamente rígida do axioma "fora da Igreja não há

salvação". Se a graça de Deus não estaria restrita ao território da igreja, o "ser igreja", ou seja,

a condição eclesial, também poderia estar sendo vivenciada por pessoas "fora da igreja"

visível, podendo, essas, com isso, conseqüentemente, serem salvas? O que se pretende indagar

agora, a partir de alguns textos do magistério eclesial pré-concílio Vaticano II, refere-se à

questão dessa possibilidade, para além dos limites físicos eclesiais, de se estar em estado

eclesial.

58 Mais à frente, neste mesmo capítulo, esta pesquisa abordará, mais detidamente, a tentativa de abertura do mundo católico, através do concílio Vaticano II, à diversidade religiosa.

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O concílio Vaticano I,59 em seu "Schema de Ecclesia", proclamando o axioma como

dogma de fé e retomando elementos já utilizados pelos papas Pio VIII60 e Gregório XVI,61 já

apresentava a igreja, no que tange à salvação, como necessidade de meio e não só de

preceito,62 ou seja, salva-se na igreja e pela igreja.

Na encíclica Mystici Corporis (DENZINGER, 1995, n. 3802), em 1943, Pio XII,63 por

sua vez, estabelece a identidade entre igreja católica apostólica romana e corpo místico de

Cristo e, na mesma linha do Concílio Vaticano I, evita falar de uma pertença invisível à igreja.

Na realidade (reapse), entre os membros da Igreja é necessário contar, exclusivamente, aqueles que receberam o banho da regeneração e que, professando a verdadeira fé, não se separaram, desgraçadamente, do conjunto deste corpo, nem foram, por gravíssimas culpas, separados pela legítima autoridade [...], de modo que quem tenha se recusado a escutar a Igreja deve, segundo a ordem de Deus, considerar-se pagão e publicano (cf. Mt 18, 17). Por isso, aqueles que estão divididos entre si, por razões de fé ou de governo, não podem viver na unidade deste corpo e, conseqüentemente, nem no seu Espírito divino.

Apesar de afirmar que só os católicos são na realidade (reapse) membros da igreja, a

mesma encíclica, mais à frente (DENZINGER, 1995, n. 3821, minha ênfase), contudo, não

exclui a possibilidade de que alguns que "não pertencem à unidade da Igreja Católica" sejam

ordenados ao corpo místico do Redentor por uma aspiração e desejo inconscientes.

Com o coração cheio de amor, convidamos [todos aqueles que não pertencem ao organismo da Igreja] a responder generosamente aos movimentos interiores da graça: que eles façam de tudo para sair desse seu estado, onde nada pode assegurar-lhes a salvação, porque, mesmo que por

59 Concílio ecumênico realizado de 8 de dezembro de 1869 a 18 de julho de 1870, com o objetivo inicial de examinar a posição da igreja diante do mundo moderno. 60 Francesco Saverio Castiglioni (1761-1830) teve seu breve pontificado (1829-1830) marcado sobretudo pelos ares da revolução francesa. 61 Bartolomeo Alberto, anteriormente frei Mauro Cappellari, viveu entre 1765 e 1846, exercendo o pontificado de 1831 até sua morte. De espírito excessivamente anti-revolucionário e político, no plano religioso era bastante reservado diante das novidades. Combateu o espírito liberal em seus Estados. 62 Conc. Vat. I, Schema Constitutionis dogmaticae de Ecclesia Christi Patrum examini propositum, Coll. Lac. VII 569. 63 Eugenio Pacelli nasceu em 1876 e foi papa de 1939 até 1958, ano de sua morte. Procurou cristianizar todos os aspectos do mundo moderno. Mesmo tendo criado uma comissão pontifícia de assistência e asilo aos judeus, é duramente criticado por seu silêncio diante das atrocidades nazistas durante a II Guerra Mundial.

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um certo anseio e desejo inconsciente eles estejam ordenados para o corpo do Redentor [inscio quodam desiderio ac voto ad mysticum Redemptoris Corpus ordinentur], eles são privados de muitos e grandes socorros e favores celestes, que só podem ser desfrutados na Igreja católica.

No entendimento de Chavasse (1948), "Pio XII fala de um 'inconsciente (inscio)

desejo', tentando comunicar, por meio de uma expressão, o fato de que a situação ontológica

da pessoa separada ordena esta última à Igreja, e que ela continua sem saber disso". Dupuis

presume que o "desejo inconsciente" vislumbrado pelo papa "estaria implícito na vontade

sincera de cumprir a vontade de Deus em relação a si mesmo" (1999a, p.179).

No entanto, é bom notar, frisa Libânio (1973), que o papa fala em estar "ordenados" à

igreja por desejo inconsciente e não em pertença à igreja por desejo ou voto. Na explicação de

Congar (1964, p. 431), "a encíclica não é muito favorável à idéia de uma pertença invisível à

Igreja visível, ou mesmo de pertença 'em desejo', porque, segundo ela, aquilo que o 'desejo'

realiza é meramente uma orientação para o corpo místico".

Na esteira da Mystici Corporis, outro texto eclesial, do Santo Ofício, explicando a

doutrina correta acerca da interpretação da encíclica, é dado a conhecer em 1949. Além de

explicações doutrinais, o texto, direcionado ao arcebispo de Boston, nos Estados Unidos, traz

a condenação, e conseqüente exclusão da igreja, do padre jesuíta Leonard Freeney. Esse

clérigo tinha afirmado radicalmente, em interpretação da encíclica de Pio XII, que quem não

pertence expressamente à unidade visível da igreja católica não tem salvação.64

64 Leonard Freeney era sacerdote da Companhia de Jesus, em New England, Estados Unidos. Quando os sacerdotes dessa província jesuítica morrem, são geralmente sepultados no cemitério central de Weston, em Massachusetts, onde se localizava o seminário de formação dos futuros padres. No entanto, o corpo de Freeney não foi ali depositado quando de sua morte. Seu sepultamento ocorreu no vilarejo rural de Still River, em Massachusetts, onde viveu os últimos anos de sua vida. Na lápide de seu túmulo, está estampado o epitáfio: NO SALVATION OUTSIDE THE CHURCH (extra ecclesiam nulla salus). Em 1945, Freeney foi desligado da congregação dos jesuítas por suas afirmações extremadas em relação à impossibilidade de salvação aos não católicos, afirmações fundamentadas na encíclica Mystici corporis, posta a público por Pio XII, dois anos antes, em 1943. Quatro anos após seu desligamento da Companhia de Jesus, em 1949, o clérigo é excomungado da igreja pelo papa. Dezenove anos depois, quando Freeney contava 75 anos de idade, o bispo Bernard Flanagan, da diocese de Worcester, a qual estava ligado o vilarejo rural de Still River, reconciliou-o à igreja católica sem, no entanto, que o padre se tivesse retratado de sua literal interpretação da doutrina "extra ecclesiam nulla salus". Daí, a explicação para a lápide aposta em seu túmulo. Maiores informações acerca do caso Freeney podem ser buscadas em Congar (1964).

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Inicialmente, o documento reafirma a infalibilidade do axioma, devendo esse, no

entanto, ser compreendido no sentido que lhe atribui a igreja.

Entre as coisas [...] que a Igreja sempre pregou e nunca deixa de pregar está contida aquela sentença infalível que nos ensina que "fora da Igreja não há nenhuma salvação". Este dogma, entretanto, deve ser entendido no sentido em que a própria Igreja o entende. Nosso salvador, de fato, não confiou a explicação das coisas contidas no depósito da fé aos julgamentos privados, mas sim ao magistério eclesiástico (DENZINGER, 1995, n. 1524-1543).

Estabelece, a seguir, as condições para a salvação daqueles que têm consciência delas:

submissão à igreja e obediência ao pontífice romano.

E, em primeiro lugar, a Igreja ensina que neste caso se trata de um rigorosíssimo preceito de Jesus Cristo. De fato, ele mesmo disse explicitamente aos seus discípulos que ensinassem todos os povos a observar o que ele havia ordenado (cf. Mt 28, 19-20). Entre os mandamentos de Cristo, não tem menos valor aquele que nos ordena a nos incorporarmos, com o batismo no Corpo místico de Cristo, que é a Igreja, e a aderirmos a Cristo e ao seu Vigário, por meio de quem ele mesmo governa na terra de modo visível a Igreja. Por isso, não se salvará aquele que, sabendo que a Igreja foi divinamente instituída por Cristo, não aceitar, mesmo assim, submeter-se à Igreja ou recusar a obediência ao pontífice romano, Vigário de Cristo na terra (DENZINGER, 1995, n. 1524-1543).

Afirma ter vindo do próprio Cristo a afirmação da necessidade da igreja como meio

para a salvação: "o Salvador, então, não só predispôs em um preceito que todos os povos

deveriam aderir à Igreja, como chegou a estabelecer que a Igreja era o meio de salvação sem o

qual ninguém poderia entrar no Reino da glória celeste" (DENZINGER, 1995, n. 1524-

11543).

Esclarece que os meios de salvação podem, em certas circunstâncias, ser ativados por

voto ou desejo.

Daqueles meios para a salvação que só por instituição divina, e não por necessidade intrínseca, estão dirigidos para o fim último, Deus, na sua infinita misericórdia, quis que, em certas circunstâncias, seus efeitos, necessários para a salvação, pudessem ser obtidos também quando estes meios sejam ativados apenas pelo anseio ou pelo desejo. Isso vemos claramente enunciado no sagrado concílio de Trento, quer em relação ao

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sacramento da regeneração, quer a respeito do sacramento da penitência (DENZINGER, 1995, n. 1524-1543).

Observa que à igreja, meio geral de salvação, também se aplica o enunciado.

Nas devidas proporções, o mesmo deve ser dito com relação à Igreja, já que esta é um meio geral de salvação. Pois, para se obter a salvação, não se exige a incorporação real (reapse), como membro, à Igreja, mas é exigida, pelo menos, a adesão a esta pelo voto e o desejo (voto et desiderio). Não é necessário que este voto seja explícito, como se exige dos catecúmenos. Se o homem sofre de ignorância invencível, Deus aceita um voto implícito, assim chamando porque contido naquela boa disposição da alma com a qual o homem quer a sua vontade conforme a vontade de Deus (DENZINGER, 1995, n. 3866-3872).

Fundamenta suas afirmações e as remete à encíclica de Pio XII.

Estas coisas são claramente ensinadas na [encíclica de pio XII] [...] em relação ao corpo místico de Jesus Cristo. [...] Quase no final desta encíclica [...], convidando à unidade, com espírito cheio de amor, aqueles que não pertencem à estrutura da Igreja católica, [o sumo pontífice] recorda aqueles que, 'por certo anseio ou desejo inconsciente, estão ordenados para o coro místico do Redentor'; não os exclui absolutamente da salvação eterna, mas, por outro lado, afirma que eles se encontram em um estado no qual 'nada pode assegurar-lhes a salvação [...], pois são privados de muitos e grandes socorros e favores celestes que só podem ser desfrutados na Igreja católica (DENZINGER, 1995, n. 3866-3872).

Exalta o equilíbrio das afirmações papais, que não dão margem a extremismos.

Com estas prudentes palavras, desaprova tanto aqueles que excluem da salvação eterna todos os que aderem à Igreja com um voto implícito, como aqueles que defendem falsamente que os homens podem ser igualmente salvos em qualquer religião (DENZINGER, 1995, n. 3866-3872).

Por fim, esclarece que tipo de desejo de se aderir à igreja é aceito.

E não se deve nem mesmo pensar que seja suficiente um desejo qualquer de aderir à Igreja para que o homem seja salvo. Se exige, realmente, que o desejo mediante o qual alguém é ordenado à Igreja seja moldado pela perfeita caridade; e o voto implícito não poderá ter efeito se o homem não tiver a fé sobrenatural (DENZINGER, 1995, n. 3866-3872).

Retomando a questão proposta anteriormente por esta pesquisa, qual seja, a da

possibilidade, para além dos limites físicos eclesiais, de se estar em estado eclesial, pode-se

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afirmar, à luz dos textos eclesiais trazidos e da querela com o padre jesuíta Leonard Freeney,

que a tradição da igreja navega por entre a dupla série de afirmações claras e apodíticas:

necessidade da igreja visível para a salvação, de um lado, e, de outro, a possibilidade de

salvação para quem não pertence à unidade visível da igreja.

Bastante tradicional é a linha de solução que afirma a necessidade de pertença à igreja

para a salvação, introduzindo, porém, uma distinção na maneira de se pertencer à comunidade

eclesial: pode-se pertencer à igreja de forma visível, total, de fato (re), ou em desejo

(desiderio vel voto).

No primeiro modo, conjugam-se as necessidades de meio e de preceito. Aqueles que

conhecem a verdadeira igreja de Cristo (tendo sido satisfeita a necessidade de preceito) devem

nela embarcar (satisfazendo, assim, a necessidade de meio), caso contrário serão condenados.

No segundo modo, duas situações podem apresentar-se, sendo que em ambas torna-se

impossível a conjugação das necessidades de meio e de preceito. A primeira se refere às

pessoas que conhecem e querem abraçar a verdadeira igreja de Cristo (tendo sido satisfeita a

necessidade de preceito), porém, por qualquer circunstância ou fato externo, são impedidas de

fazê-lo; pelo fato de desejarem explicitamente satisfazer a necessidade de meio, ou seja, entrar

na igreja, sem, contudo, poderem fazê-lo, têm a chance de salvação. Na segunda situação,

muitos outros, sem serem maus, ou não conseguem ver na igreja católica a igreja verdadeira

ou não percebem a necessidade da igreja para sua salvação ou nem chegam a conhecer a

igreja (não tendo sido satisfeita a necessidade de preceito, fica comprometida a possibilidade

de se satisfazer a necessidade de meio); esses, na honestidade de seu viver, possuem,

implicitamente, sem o saber, um desejo de pertencer à igreja, podendo, com isso, salvarem-se.

Segundo Libânio (1973, p. 34), "as soluções fáceis são as mais cheias de problemas".

O principal ponto fraco desta tradicional linha de reflexão, que tenta solucionar a questão da

não salvação daqueles que estão fora da igreja introduzindo uma distinção na maneira de se

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pertencer a ela, talvez seja "fazer pertencer à Igreja quem nunca pensou em tal e mesmo

rejeitou essa Igreja". Seria leal dizer que alguém pertence à igreja, sendo que esse alguém

nunca quis pertencer a ela?65 Como dizer isso a um protestante convicto e sincero em sua

prática religiosa, que considera, inclusive, a pretensão da igreja católica como algo

diabólico?66 Parece não restar dúvida, aos olhos de Libânio (1973), de que, sob o aspecto mais

externo e jurídico da questão, essa é uma solução artificial, que padece de um certo

juridicismo.

Na associação da igreja com a arca de Noé, de forma que ambas seriam lócus de

salvação, surge uma clara inconseqüência: como alguém poderia se salvar do dilúvio somente

com o "desejo" de estar na arca? O fato é que teria que, necessariamente, estar dentro dela. A

tradição patrística tinha este entendimento de pertença – de fato – , e não só de desejo, muito

menos implícito.

Outra questão diz respeito à contradição entre a possível pertença invisível e a igreja

visível. 67 É certo que a tradição eclesial não aceita a idéia de uma igreja invisível. Mas,

quando se fala em pertença invisível à igreja, não se está, no fundo, aceitando a realidade de

uma igreja invisível? A possível pertença invisível satisfaria uma necessidade de meio, só que

esse meio seria igualmente invisível, a igreja invisível. No entender de Küng (1969), o

problema da salvação estaria solucionado, deixando deturpado, porém, o conceito de igreja.68

65 Küng (1969) utiliza a mesma linha de reflexão, relacionando-a aos "não cristãos". Eles consideram desrespeitosa a pretensão católica de incorporá-los à igreja tacitamente, à sua revelia, atribuindo-lhes um desejo que nunca tiveram e nem querem ter. Essa questão será mais bem discutida mais à frente nesta pesquisa, quando do debate acerca do inclusivismo (fora de Cristo não há salvação). 66 Os reformadores protestantes viam na igreja de Roma uma obra diabólica e ímpia, ao arrogar-se muitos dos seus poderes. 67 Rahner dá um passo à frente, indicando a forma de se superar o impasse da igreja invisível. Segundo ele, o desejo ou voto tem uma estrutura visível, quase sacramental. Mais à frente, neste texto, o tema será retomado. 68 Cf. JOURNET, Ch. L'Eglise du verbe Incarné. II. Sa structure interne et son unité catholique. Bruges: [s. n.], 1962. p. 1056-1081. O autor detalha os tipos de pertença à igreja e sua relação com a salvação: a) os membros da igreja em ato (in actu) podem salvar-se, porém, não necessariamente todos. Algumas maneiras de se pertencer in actu não são salvíficas: é o caso dos herejes e cismáticos culpados, que ainda continuam com uma certa "pertença in actu não consentida"; é o caso também daqueles que pertencem "in actu perfecto", ou seja, estão na igreja (estão re), mas vivem em pecado grave (não estão voto); por fim, também não salvífica é a pertença de "fé

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Na verdade, o que acontece é uma diluição do conceito de igreja, pois na tentativa de

abarcar "in Ecclesia" aqueles que aparentemente estão fora dela, amplia-se ao máximo a

maneira de estar na igreja. Ampliado dessa forma, esse não é mais o conceito de igreja que se

entendia no axioma. Uma vaga comunidade de homens de "boa vontade" pode ainda ser

chamada igreja?, questiona Küng (1969, p. 444). Parece acontecer isso quando se amplia o

modo de pertencer à igreja, mesmo utilizando-se as expressões atenuantes "voto" e

"desiderio".

A questão, então, permanece: este modo de pertencer, pelo desejo, é ou não pertença?

Ou, na forma de indagação desta pesquisa, é possível ser igreja para além dos limites físicos

eclesiais? Com base na linha de solução discutida, qualquer que seja a resposta, dificuldades

se apresentarão. Se a resposta for negativa, fica restringida a salvação; se positiva, deturpa-se

o conceito de igreja, dada sua ampliação exagerada.

Há que se tentar uma outra linha de reflexão. Ela se fundamentaria numa nova fórmula

do axioma: "sine Ecclesia, nulla salus", nas palavras de Libânio (1973), ou, na forma positiva,

como propõe Congar (1968), "Ecclesia, universale salutis sacramentum". Dessa forma, o

axioma ficaria restrito àqueles que pertencem à igreja, tendo conhecido essa realidade como

sacramento de salvação. Por tê-la conhecido e dela participar, sua rejeição implicaria na

renúncia da própria salvação. Dito de outro modo, mais positivo: para os integrantes da

comunidade eclesial, a igreja é a esperança e promessa de salvação. Sob esse enfoque, o

axioma, no lugar de mirar ameaçadoramente os que estão fora de seus redutos visíveis

(KÜNG, 1969), torna-se certeza de salvação para seus membros.

Essa certeza de salvação está ancorada na promessa de Jesus Cristo e não mais na

pretensão de exclusividade salvífica, mesmo porque ela está inserida num mundo com cada

informe", daqueles que retêm algum elemento de fé em igrejas separadas, mas que não vivem na caridade. b) Não podem salvar-se os membros da igreja "in potentia" : adultos não batizados que recusaram a fé por um pecado pessoal de infidelidade e as crianças não batizadas, que permanecem no pecado original.

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vez mais e inúmeras possibilidades de se viver a dimensão religiosa. Ela se apresenta ao

mundo como oferta de serviço desinteressado e sem pretensão para a salvação do mundo. Sua

catolicidade advém daí, de seu serviço de salvação por todos, e não por suposta identificação

com o mundo ou mesmo com o mundo dos "homens de boa vontade".

Modifica-se, com isso, a direção da solução, pois, pelo plano de Deus, não existe

dentro nem fora da salvação (KÜNG, 1969), afinal, Ele não quer a salvação de todos os

homens (1 Tm 2, 4-6)?

Resta, ainda, a dificuldade relacionada à (im)possibilidade de uma igreja invisível.

Apesar de, como já dito anteriormente, a tradição eclesial não aceitar a idéia de uma igreja

invisível, "contudo devemos dizer que a Igreja não cabe dentro de um conceito que a delimite

a partir do visível" (LIBÂNIO, 1973, p. 39), seria racionalismo, já condenado, não ver nela

outra coisa que uma unidade jurídica e social (DENZINGER, 3301). Apesar de una e única, a

igreja traz em seu bojo uma tensão dialética entre o elemento visível e o elemento invisível. A

graça de Cristo, perceptível, porém invisível, mantém uma relação intrínseca com a realidade

visível da igreja, tornando-a, para além de uma simples organização jurídica, sinal,

proclamação da graça salvadora de Deus no mundo.

Se, no plano de Deus, graça e igreja estão tão intimamente ligadas, resultando que toda

graça tenha um caráter eclesial, sacramental e visível, não teria sentido a afirmação de que

toda salvação feita na graça teria caráter eclesial, mesmo que não "in ecclesia" (no sentido de

pertença visível), mas pela igreja?

Rahner (1961) dá um passo à frente. Mostra que pode ser superado o impasse da

pertença invisível à igreja, pois o desejo ou voto de pertença, mencionados por Pio XII em sua

encíclica, possuem, pela graça, segundo aquele, uma estrutura visível, quase sacramental,

deixando de ser uma pertença invisível. A suposta pertença invisível, artificial e arbitrária,

levada avante pela linha de solução anterior, assume pela estrutura sacramental da graça uma

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natureza eclesial. Graça e igreja se relacionam, então, ontologicamente, não de forma

extrínseca, mas imanente, estrutural. Com a proposição dessa relação ontológica entre graça e

igreja, Rahner supera o esquema membro-corpo. De que forma isso se dá?

Na reflexão teológica de Rahner (1961),69 a humanidade tem um destino sobrenatural,

é chamada à participação da vida íntima de Deus. Esse chamado é anterior às decisões

pessoais de cada um de seus membros, faz parte da natureza concreta do homem, de sua

dimensão histórica. A encarnação de Deus determina efetivamente, antes de qualquer decisão

pessoal, a condição do gênero humano, fazendo, com isso, da humanidade, um "povo de

Deus".

Nessa vocação real-ontológica da humanidade, a igreja surge como o "para-onde" de

totalidade visível do povo de Deus. Toda a estrutura salvífica contida nesse chamado-vocação

aparece, na sua plena visibilidade, na igreja. É dessa forma que a igreja pode ser chamada de

sacramento universal da salvação, estando presente em cada homem, pois é o para-onde do

chamado fundamental (RAHNER, 1961, p. 84). Claro está que a reflexão de Rahner não se

enquadra no esquema anterior "salus in ecclesia", mas sim no "salus per ecclesiam". Isso

porque o homem não se salva por uma pertença extrínseca ou forçada pertença à igreja, mas

pela graça eclesial e sacramental presente nele. A chave da reflexão rahneriana é a

continuidade interna existente entre graça e igreja.

Rahner (1961, p. 90) considera toda a humanidade radicalmente igreja.70 No entender

de Willems (1965), essa afirmação mostra como, no pensamento rahneriano, permanece

obscura a relação entre povo de Deus e igreja sacramental. Nesse sentido, Libânio (1973)

considera que melhor seria reservar o termo igreja para a concretização histórico-jurídico-

69 Para os propósitos do que aqui se discute, outras obras de Karl Rahner podem ser consultadas: Kirche und sakramente (Quaestiones disputat 10), Freiburg, 1961; Devoción personal y sacramental. In: Escritos de teologia, II, p. 115-140; Die anonymen Christen, VI, p. 545-554. 70 Essa é a base da posterior reflexão de Rahner referente ao inclusivismo, que amplia da igreja católica para o cristianismo a discussão acerca da salvação da humanidade. É o que esta pesquisa discutirá em seu próximo item.

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carismática dessa humanidade. A salvação de toda a humanidade se daria, não por estar toda

ela dentro dessa concretização, como membro dela ou pertencente a ela, mas em virtude do

chamado de Deus, dom gratuito, que é universal e historicizado pela Encarnação do Verbo.

Chamado esse, como disse Rahner, que antecede historicamente a igreja e, mesmo, a

ultrapassa em seus limites geográfico-históricos.

Uma questão, porém, se coloca neste momento da reflexão. Que os homens que estão

na igreja visível, lugar máximo de expressão da graça, dom gratuito de Deus a toda a

humanidade, salvem-se, é tranqüilo. Afinal, como se viu no esquema anterior, o adágio foi

reformulado para uma estrutura positiva: a salvação se dá na igreja (in ecclesia salus). No

entanto, a linha de solução que ora se apresenta é a do esquema "salus per ecclesiam", e não a

do esquema tradicional anterior "salus in ecclesia". Qual seria, então, a significação da

afirmação de que toda salvação se faz de certo modo pela igreja? Como se dá a relação entre

a igreja visível e a salvação daqueles que estão fora de seus arraiais? Como dizer que passa

pela igreja uma oferta de salvação que se dá fora dela, entre o homem e Deus?

Na compreensão de Libânio (1973), a reflexão de Rahner carece de uma explicação

mais satisfatória sobre isso. Um caminho de solução é indicado por De Lubac (1965, p. 148-

150). Se alguém que não pertence à igreja visível (o "menos") pode salvar-se, é porque ele é

possuidor do "mais" da igreja. Essa salvação acontece porque alhures existe a igreja, este

"mais" salvífico. A igreja, mesmo numericamente restrita, é um "mais" salvífico para todos os

"menos", podendo-se, com isso, dizer que todos se salvam pela igreja, ainda que não na

igreja.

Como se daria, nesta reflexão, a relação entre o "mais" da salvação na igreja com o

"menos" fora da igreja? De Lubac não aprofunda muito a questão, porém, a idéia de

"substituição" (LIBÂNIO, 1973, p. 44) poderia lançar uma luz para tal problemática. A

salvação só tem um caminho, faz-se por Jesus Cristo, mas tem um duplo raio (RATZINGER,

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1974): um que se refere à multidão de todos os homens e concomitante outro que toca a

igreja. Esta dialética do "pequeno número" e da "multidão" é equivalente ao "mais" e "menos"

refletido por De Lubac. Não existe separação entre "pequeno número" / "mais" e "multidão" /

"menos", mas sim uma relação dialética entre os termos. Essa correlação aparece no Primeiro

Testamento, onde "povo eleito" e "gentios" apareciam como dois momentos diferentes de

salvação. Com Jesus Cristo, no entanto, essa dialética fica bastante clara. Paulo (Rom 5, 15)

no-la apresenta: "Se pela falta de um só, todos os outros pereceram, com muito mais razão a

graça de Deus e o dom da graça, que nos vem de um só homem, Jesus Cristo, difundiu-se

sobre todos em abundância". O "mais" de Jesus Cristo (o "um") torna suficiente o "menos"

dos homens pecadores ("multidão").

A mesma dialética é vivenciada pela igreja. Ela substitui, ao modo vicário, a

humanidade, tornando-se presença de salvação, que se faz em Jesus Cristo, para todos os

homens, e não somente para seus membros.

Esbarra-se, então, no último problema a ser refletido: que sentido tem a pertença à

igreja, se fora dela também há salvação? Por que estar no "pequeno número" e não na

"multidão"? Se a reflexão parasse na encíclica Mystici Corporis de Pio XII, a resposta seria

conhecida: "eles [os que estão fora] são privados de muitos e grandes socorros e favores

celestes, que só podem ser desfrutados na Igreja católica" (DENZINGER, 1995, n. 3866). A

salvação, então, seria mais fácil e segura na igreja católica. Daí a maior segurança de se estar

na igreja.

O que se observa nessa linha de raciocínio é uma inversão de ordem, pois a salvação

deve ser vista da parte de Deus e não do homem. Ela não é criação do homem, mas dom,

chamado livre, gratuito e misterioso de Deus. Quando se toma consciência desse chamado, o

ser igreja torna-se uma necessidade, pois o homem, à maneira da igreja, é chamado a ser sinal

de salvação para toda a humanidade, algo mais plenamente possível nas hostes eclesiais.

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Veja-se o caso do amor humano de uma pessoa que é manifestado livre e gratuitamente a uma

outra pessoa. Quem o manifesta, como dom seu, o faz necessitando uma aceitação; o outro

pode livremente aceitá-lo ou rejeitá-lo, sabendo que a rejeição significa para ele uma perda.

Imagine o tamanho da perda para quem rejeita, se quem oferece o ser-igreja é o absoluto, o

criador.

E como seria possível conciliar essa necessidade de ser-igreja com a liberdade e

gratuidade? "Só o amor consegue fazê-lo", responde Libânio (1973, p. 46). Como o chamado

de Deus é uma vocação de amor e serviço a todos os homens, "a liberdade de aceitar esse

chamado, de constituir Igreja, se torna a necessidade do amor que me obriga". E como o amor

é de Deus, a necessidade do serviço à humanidade (ser-igreja) se torna radical. Radical a tal

ponto que não aceitá-lo é uma grave omissão, um colocar-se fora do caminho da salvação.

Assim, por outra via, positiva, pode-se afirmar que "extra ecclesiam (fora desse serviço, fora

da vocação de Deus confiada ao homem para ser o 'pequeno número', fora da exigência do

amor,) nulla salus" (LIBÂNIO, 1973).

A reflexão já se encontra próxima da fronteira entre igreja católica e cristianismo.

Como se viu na linha de solução tradicional, Pio XII, ao falar de "ordenamento" (ordinantur)

para a igreja, "não diferenciava o caso dos cristãos não católicos do caso dos membros das

outras religiões, como faria, mais tarde, o concílio Vaticano II" (DUPUIS, 1999a, p. 179). A

segunda linha de solução, vislumbrada por Libânio, leva em consideração a salvação em Jesus

Cristo, não à revelia da igreja, mas além dela.

Os autores do modelo71 inclusivista aberto da teologia cristã das religiões, em tons e

graus diferentes, como se verá ao final deste capítulo, rechaçam frontalmente, em seus

escritos, qualquer pretensão absolutista de exclusividade religiosa. Dupuis (1999a, p. 255),

71 Em um paradigma, podem existir modelos ou padrões diferentes. Um modelo permite a reprodução de exemplos similares. Vários modelos não se excluem reciprocamente. No entanto, na ciência, um paradigma raramente é susceptível de reprodução (KUHN, 1976). O início do terceiro item deste capítulo trará a explicitação de Kuhn acerca da questão.

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entre eles, qualifica de “insustentável” essa perspectiva eclesiológica, segundo a qual a

salvação é possível apenas mediante a profissão explícita da fé em Jesus Cristo dentro da

comunidade eclesial. Antes, porém, de arrolar o inclusivismo aberto, 72 faz-se necessário falar

do inclusivismo tradicional, fundamento e ponto de partida de todos os possíveis modelos

inclusivistas posteriores.

2 O INÍCIO DA ABERTURA

Levando-se em conta que noventa por cento dos mais de dois milênios de vida do

cristianismo, em sua vertente católica, foram vividos sob os fundamentos da exclusividade,

veladamente ou às claras, de forma branda ou carregada de nuvens, há que se considerar o

início do concílio Vaticano II, mesmo com suas limitações iniciais, uma extraordinária

abertura ao mundo pluralista das religiões. Até o momento, cinco por cento da história

católica foram dedicados a essa discussão, algo extremamente pequeno frente ao tempo de

predominância de um estreito exclusivismo. Não sem razão, como se verá a seguir, essa

pequena caminhada é ponteada por significativos avanços e grandes retrocessos em meio ao

magistério eclesial.

72 O inclusivismo aberto pretende ser um meio termo entre o inclusivismo tradicional e o pluralismo, no sentido de uma valoração positiva da diversidade religiosa do mundo, sem, no entanto, abdicar de seu ponto identitário mais forte, que é a unicidade de Jesus Cristo.

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2.1 O inclusivismo tradicional

Inclusivismo é o consenso, ou “quase consenso” (HICK, 1998, p. 22),73 de se

abandonar o antigo exclusivismo. Oficializada na igreja católica, basicamente, a partir do

concílio Vaticano II, essa posição teológica atribui valor positivo às demais religiões, aceita

que Deus tenha-se revelado também em seus fundadores e as reconhece como mediações

salvíficas para seus membros, só que não à margem de Jesus Cristo. Esse seria o mediador

universal na ordem da salvação.

Claramente cristocêntrica, essa posição apresenta dois modelos iniciais: a “teoria do

acabamento”,74 onde as religiões "não cristãs", naturais, são destinadas a encontrar o seu

“acabamento” (remate) no cristianismo, e a “teoria da presença de Cristo nas religiões”,75

onde se afirma que nos valores soteriológicos positivos das diversas tradições religiosas da

humanidade está a presença operativa de Jesus Cristo.

A teoria do acabamento, ou do cumprimento, a primeira posição do inclusivismo,

reconhece os valores positivos das religiões "não cristãs". No entanto, tais valores necessitam

73 Hick, possivelmente, visto que sua consideração leva em conta a posição inclusivista como um todo, ao falar em “quase consenso”, está-se referindo às posições iniciais desse paradigma. Não há como admitir, dada a incompatibilidade e a enorme distância do atual avanço observado nas discussões daquela posição exclusivista antiga, que a referência seja aos teólogos inclusivistas abertos, principalmente aqueles que, recentemente, tanto avançaram em suas avaliações acerca das demais religiões. Também Fraijó (1999a, p. 188), analisando essa questão, faz menção explícita aos momentos iniciais do inclusivismo: “não parece que a melhor refutação da doutrina do Concílio Ecumênico de Florença (1442) – ‘Fora da Igreja não há salvação’ – consista em afirmar que, pelo menos implicitamente, todos estão dentro”. Outra possibilidade seria a de que Hick esteja afirmando a existência, no momento atual, de resistências eclesiais e de setores da teologia aos novos tempos de pluralismo religioso. Esta pesquisa acredita nessa segunda possibilidade. Alguns exemplos, arrolados ao longo deste texto, reforçam essa crença. Algo normal nas concepções paradigmáticas de Kuhn (1976), explicitadas no início deste capítulo, pois, para esse autor, alguns pensadores resistirão aos novos paradigmas. Quase dois milênios de exclusivismo são um legado por demais pesado frente ao nascente inclusivismo e, mais ainda, frente ao paradigma pluralista, ambos formulados e engendrados no século anterior. 74 Representada pelos teólogos J. Daniélou, H. de Lubac, H. Urs von Balthasar e outros, essa posição, já entre os anos 1940 e 1960, teve sua primeira sistematização com J. Daniélou. Diferentes na forma, esses três expoentes da primeira posição do inclusivismo chegam praticamente às mesmas conclusões, no sentido de que os valores presentes nas demais religiões devem ser completados no cristianismo. 75 Pensamento teológico de Karl Rahner, que traz implícita a idéia de que os seguidores das demais religiões poderiam ser "cristãos anônimos".

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de um acabamento (remate) no cristianismo. Se, no exclusivismo católico, as religiões eram

obstáculos a serem vencidos, aqui, fazem parte de uma pedagogia divina cujo objetivo é a sua

preparação ao evangelho, sendo missão da igreja inseri-las em Cristo, a pedra angular. Dupuis

(1991a, p. 174) expressa com clareza qual é a concepção básica que norteia as formulações

desse inclusivismo inicial acerca das religiões.

Enquanto todas as outras religiões da humanidade constituem expressões diversas do homo naturaliter religiosus, sendo, portanto, ‘religiões naturais’, somente o cristianismo, enquanto resposta divina à procura humana de Deus, é ‘religião sobrenatural’.

Essa dialética natural-sobrenatural é bastante nítida em Jean Daniélou, primeiro

expoente ocidental da “teoria do acabamento”, assim como também em Henri de Lubac e

Hans Urs Von Balthasar, outros representantes dessa posição. Em sua teologia da história,

Daniélou (1964) afirma a existência de uma gradual manifestação de Deus à humanidade,

culminando com sua manifestação pessoal em Jesus Cristo, sendo que tudo o que a precede é

identificado como pré-história da salvação. Excetuando-se as três grandes religiões

monoteístas, todas as demais são simples elaborações ou aspirações humanas de uma

consciência de Deus, constituindo-se em “religiões naturais”, destituídas de poder salvífico. A

diferença entre essas religiões e o cristianismo é Jesus Cristo. Ele é o divisor de águas entre o

movimento do humano em direção a Deus e o movimento de Deus em direção ao humano.

Uma segunda posição do inclusivismo é encabeçada por Karl Rahner,76

proporcionando um avanço excepcional! Para Schillebeeckx (1994, p. 209), “Karl Rahner deu

um passo avante” e mesmo “as afirmações abertas do Concílio Vaticano II em ‘Lumen

gentium’, ‘Nostra aetate’ e ‘Ad gentes’ [...] não foram, ao menos literalmente, tão longe”. Na

concepção de Fraijó (1999a), a teologia de Rahner teve o grande mérito de brecar o

exclusivismo clássico da teologia católica.

76 Rahner, que viveu entre 1904 e 1984, foi o principal teólogo dessa corrente e, segundo Sartori (1977, p. 407), “somente depois dele é que se pode falar verdadeiramente de tendência”.

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Segundo a “teoria da presença de Cristo nas religiões”, as diversas tradições religiosas

da humanidade são portadoras de valores soteriológicos positivos para os seus membros, pois

Cristo e seu mistério salvífico estão operativamente presentes e manifestando-se nelas e

através delas. Exatamente por esse motivo, elas não podem ser consideradas simplesmente

como “religiões naturais”. Por representarem, cada uma a seu modo, uma ordem de mediação

deste mistério salvífico, são “religiões sobrenaturais”. Panikkar (1971, p. 219-220) considera

a expressão “religião natural” algo um tanto incongruente. Para ele,

descrever uma religião como 'natural' significa dizer que ela não é realmente uma religião. [...] uma religião puramente ‘natural' não poderia de forma alguma realizar aquilo que é o seu fim, isto é, a salvação do homem; em outras palavras seria meramente uma aparência de religião.

Rahner parte do pressuposto de que não existem duas histórias paralelas, uma salvífica

e outra profana. Com uma compreensão bastante ampla da história da salvação, o teólogo

alemão (1989, p. 402, 196) afirma que essa “abraça igualmente a história aparentemente

profana da humanidade”, mesmo “onde a ação salvífica não vem tematizada de forma

expressamente religiosa”. Os desafios da modernidade, absorvidos lentamente pela igreja,

encontram nesse teólogo uma grande ressonância, transformando-se em uma proposta de

retomada da perspectiva do otimismo da salvação universal. Seria, pois, um retorno aos

tempos mitológicos a afirmação de que a graça somente se manifesta no exato momento em

que a pregação do evangelho alcança o seu destino: aquele que ainda não a conhecia. O que se

observa, nesse momento, segundo Rahner, é a atualização, eficaz e estimulante, da graça.

Essa, mesmo que numa ordem sobrenatural, existe desde sempre no homem. Discorrendo a

respeito, Teixeira (2002c, p. 47) afirma que em Rahner

a livre aceitação da oferta divina da graça sobrenatural pode ocorrer mesmo fora do sacramento, antes mesmo do batismo, sempre e onde quer que homens e mulheres, mediante uma decisão ética, em absoluta coerência com a própria consciência e uma vida honesta, livremente acolham a própria transcendentalidade.

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O Mistério absoluto,77 ou realidade infinita, sem abdicar dessa condição, avizinha-se

do mais íntimo de todos os seres humanos, homens e mulheres, sem exclusão. Essa

universalidade faz parte do mistério do amor de Deus que, gratuitamente, “quer que todos os

homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade” (1Tm 2, 4). Por seu lado, o ser

humano adere a esse amor, não como “fatalidade ontológica” ou “inevitabilidade criatural”,

mas usufruindo “de uma liberdade e de uma doação de Deus” (Boff, 1976, p. 144). Rahner

não enxerga incompatibilidade entre permanência e gratuidade. A graça, segundo ele (1981,

p. 428), pode ser pensada

sem dano para a sua sobrenaturalidade e gratuidade, como um existencial permanente do homem, da humanidade e de sua história, dado, sempre e em todo lugar, como possibilidade permanente de uma relação salvífica da liberdade para com Deus.

Este oferecimento de amor à liberdade humana pode ser aceito ou recusado pelos

homens e mulheres, sendo que a história tem sido marcada mais pela recusa que pela

aceitação.

O que distingue exatamente a posição rahneriana das anteriores? Em Rahner (1965, p.

545), as diversas tradições religiosas apresentam “substanciais traços sobrenaturais da graça

doada por Deus ao homem em Jesus Cristo”, algo não admitido por Daniélou e seus

companheiros de teoria. Para esses, as religiões apresentam somente elementos de uma crença

natural em Deus. Segundo a teologia rahneriana (1969, p. 448), coexistem nas religiões o

“componente existencial sobrenatural” e a graça de Deus, de forma que seus membros estão

preordenados ao Deus inefável.

A temática dos “cristãos anônimos”, constantemente presente nos escritos de Rahner,

já está explicitada nessas considerações. Bastante controversa78 – porém, segundo Knitter

77 Expressão bastante cara a Rahner. 78 Rahner foi questionado tanto por avançar demais quanto de menos. Hans Urs von Balthasar (apud RATZINGER, 1974, p. 324) qualificou a tese rahneriana de um “caminho mais cômodo”, de forma a driblar o

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(1986, p. 107), uma “controvérsia intracatólica”79 –, essa categoria quer abarcar a todos

aqueles que, livremente, tenham aceitado a graciosa autocomunicação de Deus, mediante a fé,

a esperança e a caridade. O anonimato se dá justamente pelo fato de que esses ‘cristãos’, pela

fé, esperança e caridade, não necessitam de uma pertença à igreja através do batismo nem de

uma expressão explícita de fé em Jesus Cristo. Em suma, não se faz necessário que abracem o

cristianismo, e isso vale também para o ateu. Para Rahner (1967, p. 12), esse “não se acha

excluído da salvação, desde que no seu ateísmo não tenha agido contra a sua consciência

moral”.80

A pregação do evangelho tem o propósito não de tornar cristã uma “criatura

abandonada por Deus” (Rahner, 1975, p. 681), mas, sim, de fazer do cristão anônimo alguém

consciente daquele cristianismo que já está, pela força da graça, no mais íntimo de seu ser.

Esse teólogo acredita que todos os caminhos conduzem misteriosamente a uma direção

comum, Deus, apesar das divergências, e, por isso, mesmo aqueles que recusam o

dever missionário. Sua questão é: “Se há aqueles que acham tão bom refugiar-se no anonimato, por que haveriam de conservar ainda o rótulo de cristãos?” Henri de Lubac (1969, p. 133), por sua vez, criticou o conceito de “cristianismo anônimo” e aceitou o de “cristão anônimo”. Para Ratzinger (1985), essa teoria influenciou negativamente o pós-Concílio, ao enfatizar excessivamente os valores das religiões "não cristãs" em detrimento do cristianismo, esse sim, substancial e singular, além de desestimular o esforço missionário. Jacques Dupuis (1981) questiona se a diferença entre o ‘cristão anônimo’ e o cristão explícito, em Rahner apenas uma questão de consciência reflexa, ausente ou presente, não está no modo pelo qual o mistério da salvação é mediado, caracterizando-se a passagem, como o ingresso a uma nova ordem de mediação desse mistério. Bem mais críticos são Hans Küng (1976, p. 80), que fala em “conquista através do abraço”, ou “truque metódico”, e Paul Knitter (1980), que sustenta que dessa forma os "não cristãos" são introduzidos na igreja pela porta dos fundos. Fraijó (1999a, p. 189) explicita claramente que não compartilha com a concepção do cristianismo anônimo; por outro lado, suspeita que essa teoria, ao menos no espaço intrateológico no qual seu autor se movia, não seja facilmente refutável. Acredita que, a partir de sua ótica teológica, era quase inevitável que Rahner procurasse estabelecer um marco apropriado que sustentasse a sua contundente afirmação da universalidade do Deus cristão. Para Fraijó, esse teólogo, além de dogmático, nunca se dedicou ao estudo das religiões concretas. Talvez seja essa a sua principal “‘falha’”. Conseqüência disso é a sua valoração anacrônica extremamente pobre das demais religiões. Por outro lado, somente o cristianismo manifesta a essência pura da religião, é a “melhor religião concreta” e somente ele tem a coragem de exigir “absoluta adesão”. 79 Knitter (1986, p. 107) afirma que "Rahner propôs esta teoria do cristianismo anônimo não para ser proclamada aos de fora, mas apenas para consumo interno dos cristãos, a fim de convencê-los de que a presença salvífica de Deus é ‘maior do que os humanos e do que a Igreja’”. 80 É notável a abertura proporcionada por essas afirmações de Rahner. Aproximadamente quarenta anos depois, o magistério católico ainda encontra dificuldades no relacionamento não somente com as formas pós-modernas de expressão do religioso mas com as próprias manifestações do sagrado nas demais tradições religiosas. Esta pesquisa aventa, inclusive, a hipótese de que esse magistério católico comunga ainda das idéias iniciais do inclusivismo tradicional, aquelas expressas por Daniélou e outros.

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cristianismo, o fazem em decorrência de fidelidade à própria consciência, não incorrendo em

grave culpa. Nesse sentido, não se pode falar em ab-rogação das demais tradições religiosas

em favor do cristianismo, pois elas fazem parte dos amplos e múltiplos caminhos que levam

ao mesmo Deus.

Sem fechar os olhos às diversas críticas contrárias à teoria de Rahner, não há como

negar sua grande importância para a abertura de novos horizontes no que tange à aceitação da

alteridade religiosa.

Essa reviravolta paradigmática, nas palavras de Dupuis (1999a, p. 259) “algo

absolutamente necessário”, representou um descentramento da igreja com um conseqüente re-

centramento sobre o mistério de Jesus Cristo. Jesus é o mediador entre Deus e os seres

humanos (1 Tm 2,5; Hb 8,6; 9,15; 12,24), função que jamais poderá ser atribuída à igreja.

No entanto, a teoria do “acabamento” e a do “cristão anônimo”, mesmo com os

avanços observados nessa última, ao negar[em] a autonomia salvífica às demais religiões,

cada uma a seu modo, e de uma outra forma, mantêm o cristianismo absoluto e a pretensão de

universalidade ampla, geral e irrestrita do antigo exclusivismo. Se, no paradigma exclusivista,

as demais religiões são falsas e, por isso mesmo, devem ser excluídas, nesse inclusivismo,

elas podem ser consideradas verdadeiras, só que essa verdade advém de Jesus Cristo.

Tentando avançar nessa questão, alguns estudiosos do assunto propuseram um novo

paradigma na teologia das religiões: o pluralista. Em suma, como se passou de um

centramento da igreja para um centramento em Jesus Cristo, levado avante pelo paradigma

inclusivista, os pluralistas propõem um novo centramento, não mais em Cristo, mas em Deus,

ou “Realidade última”, ou “Centralidade do real”, ou “Real em si”.

Antes, contudo, de se falar desse novo paradigma, convém observar o contexto em que

surgiu o inclusivismo, o terreno de onde brotou o deslocamento da reflexão teológica do

eclesiocentrismo para o cristocentrismo.

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2.2 O Concílio Vaticano II

Várias e diversas são as opiniões acerca da importância do Vaticano II para a história

da igreja. Enquanto Schillebeeckx (1993, p. 30), um tanto comedido, vê três grandes

novidades no concílio (contribuição dos teólogos antes condenados, o anti-curialismo dos

bispos vindos a Roma e o discurso de abertura de João XXIII), Latourelle (1988, p. 9) afirma

tratar-se de um acontecimento pioneiro e de originalidade única, que provocou "a mais vasta

operação de reforma" realizada no âmbito da igreja católica romana. Esta pesquisa navega

nesta mesma perspectiva, apesar de conhecer, como se notará a seguir, todos os limites

embutidos nas proposições do concílio. Isso, distante de acarretar contradição, é fruto de um

olhar para trás, quando, diante do tamanho de tempo de uma determinada prática, percebe-se

o quão nova, para aquele momento, é a incipiente discussão conciliar.

2.2.1 As tendências imediatamente anteriores

O concílio Vaticano II ocorreu oficialmente entre 1962 e 1965. Pode-se dizer que seus

ares, no entanto, começaram a ser respirados nas duas décadas precedentes. Pelo exposto no

item anterior deste trabalho de pesquisa, viu-se que, entre os anos 1940 e 1960, Jean

Daniélou, Henri de Lubac, Hans Urs Von Balthasar e Karl Rahner já refletiam acerca do lugar

ocupado pelas religiões "não cristãs" frente ao cristianismo. 81 A problemática que vigorava na

teologia eclesial até então era a da "salvação dos infiéis". Novos ares, no entanto, novos

81 Esses autores escreveram sobre a temática das religiões, uns mais outros menos, até a década de 1970.

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horizontes, aos poucos, foram surgindo. O primeiro passo dessa ampliação de horizontes foi a

renovação teológica que caracterizou os anos imediatamente anteriores ao Vaticano II e que

foi reforçado pelo concílio. Se a pergunta anterior se relacionava ao tipo de fé salvífica, que

seria necessário e suficiente para a salvação daqueles que ainda não tinham ouvido ou aderido

à promulgação do Evangelho, um novo questionamento buscava a relação mantida pelas

tradições religiosas de tais pessoas com a mensagem evangélica e o cristianismo.

Nesse caso, mais importante que as respostas conseguidas naquele momento,

inicialmente a "teoria do acabamento" e, a seguir, a "teoria da presença de Cristo nas

religiões", foi o redirecionamento da questão: da "salvação dos infiéis" na e/ou pela igreja

para o tipo de relação existente entre o cristianismo e as demais tradições religiosas. Na

tradição católica, um avanço, o início da abertura, no entender desta pesquisa.

O labor teológico anterior, muitas vezes, tratava as religiões como obras do demônio,

constituídas que seriam de politeísmo, idolatria e práticas imorais.82 Um novo discurso

teológico começa a ser moldado, com o foco na diversidade religiosa. Será que as demais

religiões poderiam – e em que sentido – ser ainda consideradas, como sugeriu a tradição

antiga, uma "praeparatio evangelica" (Eusébio de Cesaréia83)? Seria possível enxergar nelas

não obstáculos à fé, mas realidades capazes de abrirem as pessoas à revelação de Deus em

Jesus Cristo? O desejo inato da pessoa humana de se unir a Deus estaria expresso e

contemplado nessas religiões, sendo elas, nesse caso, degraus rumo à revelação cristã?84

Seriam elas a natureza, enquanto o cristianismo, o sobrenatural, de modo que a natureza, em

82 Na teologia protestante, que não é o foco principal do presente estudo, Barth afirmava "a priori" (DUPUIS, 1999a, p. 301) que "as outras religiões não passam de incredulidades" (apud D'COSTA, 1992, p. 141). Estava convicto de que elas eram demoníacas e tentativa humana estéril de autojustificação da pessoa, pois apenas a fé em Jesus Cristo era capaz de salvar. Na verdade, suas afirmações acerca da religião, enquanto distinta da fé salvífica, tinham um direcionamento geral, englobando até mesmo o cristianismo. Seus discípulos, no entanto, as aplicaram às religiões "não cristãs", ao entrarem em contato com elas no trabalho missionário. 83 Escritor e prelado grego, viveu entre os anos de 265 e 340, aproximadamente. Foi eleito bispo de Cesaréia em 313. Considerado o verdadeiro fundador da historiografia eclesiástica, fixou as bases da cronologia até 323, em sua Crônica. Escreveu uma História eclesiástica fundamental para o conhecimento dos primeiros séculos cristãos. 84 Na expressão de Tertuliano, seriam, então, anima naturaliter christiana.

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lugar de destruída, seria aperfeiçoada?85 Seriam elas o ato, a aspiração, a sombra, enquanto o

cristianismo, a potência, o cumprimento e a realidade?

No tocante à questão da salvação, as indagações também se voltaram para as religiões.

Elas dariam alguma contribuição – e qual? – ao mistério da salvação – de seus membros – em

Jesus Cristo? Os adeptos das diversas religiões seriam salvos em Jesus Cristo, nelas, fora

delas, apesar delas ou, misteriosamente, em virtude delas? Se é que existia, qual a função

positiva dessas religiões – para seus próprios seguidores – no mistério da salvação em Jesus

Cristo? Enfim, poderiam elas ser chamadas – e em que sentido? – de "meios" ou "vias" de

salvação para seus membros, configurando-se, então, uma salvação sem o Evangelho?

Era esse o contexto teológico dos anos imediatamente anteriores ao concílio Vaticano

II. As perguntas que interessavam aos teólogos do período pré-conciliar permearam os

debates conciliares e avançaram nas reflexões posteriores, abrindo, recentemente,

perspectivas bastante amplas acerca da diversidade religiosa do mundo e seu significado.

A conjuntura histórico-religiosa dos anos em pauta, 1940 a 1960, engendrou e facilitou

a reflexão teológica ali iniciada. Fator determinante para a nova postura reflexiva da teologia

foi um maior conhecimento teórico e experiencial das tradições religiosas do mundo.

No plano teórico, os teólogos tiveram maior acesso acadêmico e científico ao

hinduísmo, budismo e islamismo. Surgiram, ou se tornaram disponíveis, obras que

analisavam as respostas dadas por essas tradições às perguntas que sempre acompanharam a

humanidade acerca de temas como: Absoluto, pessoa humana, mundo, história etc. Os

sistemas de pensamento peculiares a cada religião, até então pouco conhecidos pelo Ocidente,

vieram à tona, com visões específicas do mundo, umas irredutíveis às outras, com dimensões

místicas próprias, com videntes, profetas, santos, figuras salvíficas, ascetas e místicos

específicos.

85 Gratia non destruit sed perficit naturam.

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O conhecimento experiencial, até então superficial, aprofundou-se, dada uma mais

ampla interação entre os cristãos e os membros das demais tradições religiosas. Com a

gradativa e crescente queda das barreiras – processo que, ancorado no crescimento dos meios

de comunicação, tornar-se-ia irreversível, culminando progressivamente em uma "aldeia

global" – houve uma maior conscientização do que entendiam e propunham as tradições

religiosas acerca da salvação e libertação de seus seguidores. Diferentemente do que se

imaginava, que elas estivessem em declínio, estavam bem vivas, respondendo e sendo

mediadoras das aspirações de seus adeptos. Foi o início da conscientização teológica católica

de que o cristianismo era uma das muitas tradições a reivindicar a adesão de milhões de fiéis

e discípulos.

Nesse novo contexto, muda também, a partir daí de forma cada vez mais crescente, a

consciência possível (LUKÁCS apud GOLDMAN, 1967, 1972) acerca da diversidade

religiosa do mundo, e os teólogos respondem positivamente a ela, mudando o teor de suas

reflexões. Deslocam o debate da questão prevalentemente eclesiológica da salvação dentro ou

fora da igreja para o debate da salvação consciente ou inconsciente em Jesus Cristo. Não

importa mais o que acontece fora da "arca" da salvação (igreja), mas como Jesus Cristo e o

seu mistério chegam àqueles que não o conhecem. O ponto de vista, antes eclesiocêntrico,

torna-se cristocêntrico.

Tem início, com isso, a teologia das religiões e, em meio aos seus debates teológicos,

é convocado e transcorre o concílio Vaticano II.

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2.2.2 Os debates conciliares e sua perspectiva

O concílio Vaticano II foi convocado por João XXIII, em 1959, com preocupação não

doutrinal, mas eminentemente pastoral,86 no sentido de promover uma mudança de

perspectiva, "recíproca compreensão, estima, diálogo e cooperação" (DUPUIS, 2001, p. 123)

com respeito às religiões.87 Realizado entre os anos 1962 e 1965, iniciou seus trabalhos em

meio ao duplo debate teológico que ora se realizava acerca da avaliação das religiões

enquanto tais para seus seguidores: a) eram uma "preparação ao evangelho", a partir do qual

se tornavam obsoletas (teologia do acabamento)?; b) eram canais através dos quais fluía aos

membros dessas religiões a oferta da graça de Deus em Jesus Cristo (teologia da presença de

Cristo nas religiões)?

Segundo Dupuis (1999a), o concílio não tinha intenção deliberada de fazer uma

escolha entre essas duas vertentes do debate teológico das religiões, e não o fez

explicitamente, mesmo porque sua perspectiva, como mencionado, era pastoral, e não

doutrinal. Sua intenção era a de promover entre as religiões e o cristianismo novas atitudes

que conduzissem a uma melhor compreensão recíproca, estima, diálogo e cooperação. Optar

oficialmente por uma das posições teológicas ora em debate poderia prejudicar essa intenção

inicial. Deve-se levar em conta também que os padres conciliares, com formações teológicas

bastante diversas, poder-se-iam dividir com relação às questões teológicas mais intrincadas,

86 Segundo Gutiérrez (1985, p. 23-24), “João XXIII propôs ao Concílio três grandes temas em diferentes alocuções prévias ao início de seus trabalhos. São eles: a abertura ao mundo moderno, a unidade dos cristãos, a Igreja dos pobres. O Concílio foi mais sensível, e isto é perfeitamente compreensível, aos dois primeiros do que ao terceiro”. 87 A relação da igreja com as demais religiões não foi o foco principal do Vaticano II; no entanto, devido às suas declaradas preocupações pastorais e ao momento contextual no qual se situava, o concílio, inevitavelmente, esbarrou na questão religiosa. Segundo Gutiérrez (1985, p. 25-26), um dos grandes desafios que o Concílio teve que se defrontar foi o da diversidade religiosa no mundo.

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pondo em perigo, assim, a desejada maioria favorável88 a uma mudança de atitude dos

cristãos e da igreja em relação aos membros das outras religiões. 89

Mesmo assim, cabe ao pesquisador perscrutar as possibilidades de abertura, mesmo

que não assumidas de forma clara e oficializada, estando talvez implícitas nos textos do

concílio. Inicialmente, quando se pergunta se o concílio foi além de uma compreensão das

religiões como "praeparatio evangelica", há que se fazer uma importante distinção.

De um lado, está a questão da salvação individual daqueles que pertencem às outras

tradições religiosas. Mesmo que com enorme cautela, documentos eclesiais já mencionavam,

antes do Vaticano II, a possibilidade de salvação para aqueles que se encontrassem fora da

igreja. O concílio de Trento (1547) já mencionava a possibilidade de um "batismo de desejo".

A novidade, não pequena, é verdade, trazida pelo Vaticano II acerca dessa questão está na

constituição pastoral Gaudium et spes (n. 22). Aquilo que os documentos eclesiais anteriores

afirmavam prudentemente como possibilidade é agora ensinado pelo concílio com uma

segurança sem precedentes: todos podem-se salvar pela ação do Espírito.90

Isso não vale apenas para os fiéis, mas para todos os homens de boa vontade, em cujos corações atua a graça, de maneira invisível (cf. LG, n. 16). Como Cristo morreu por todos (cf. Rm 8, 32), todos são chamados a participar da mesma vida divina. Deve-se, pois, admitir (tenere debemus) que o Espírito Santo oferece absolutamente a todos os seres humanos a possibilidade de se associarem ao mistério pascal, de maneira conhecida somente por Deus.

88 Era grande a preocupação de Paulo VI no sentido de se buscar sempre o máximo de consenso na aprovação dos documentos conciliares, se possível, a unanimidade nas votações. O preço pago foi, em não raros momentos, a redução da clareza e/ou da coerência dos textos aprovados (ALBERIGO, 2000). 89 Nos bastidores, entretanto, as pressões ocorriam. Jean Daniélou, Henri de Lubac e Yves Congar ligados, de formas diferentes, à primeira vertente, atuaram, inclusive, como peritos no concílio. De Lubac, em especial, como consultor dos Secretariados "para as religiões não cristãs" e "para os não crentes", empenhou-se particularmente na resistência às teses favoráveis ao reconhecimento do valor salvífico das outras religiões. Moralli (1999) descreve o conteúdo de uma carta de Henri De Lubac a Jean Daniélou, em julho 1965, onde consta a confirmação de sua "luta" particular contra as pressões presentes nos Secretariados dos quais participa em favor do valor salvífico das diversas religiões. 90 Para Rahner (1994), não seria possível encontrar no século anterior teólogos católicos capazes de tamanha ousadia.

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De outro lado, está a questão acerca do significado que as tradições religiosas podem

ter no plano de Deus para a humanidade e a função salvífica que podem exercer na salvação

de seus membros. Sobre as religiões enquanto tais, nunca, ou quase nunca, os documentos da

igreja se pronunciaram, muito menos de maneira positiva, mesmo que minimamente.91

Na verdade, para se tentar estabelecer se a perspectiva do concílio vai ou não além da

"teoria do acabamento", deve-se deslocar o foco principal para a segunda questão apresentada.

Para além da salvação individual de seus membros, o concílio chega a afirmar uma função

salvífica permanente nas tradições religiosas? Quais são os valores positivos que os textos

conciliares enxergam nessas religiões? Somente as respostas a essas questões podem lançar

luz sobre os caminhos trilhados pelo Vaticano II no que tange à sua compreensão da

diversidade religiosa do mundo.

Cabe, então, em primeiro lugar, perscrutar os momentos em que os textos conciliares

abordam – e de que maneira o fazem – as tradições religiosas.

Nesse sentido, alguns documentos do concílio podem ser vislumbrados. A temática

das religiões aparece explicitamente em dez documentos,92 totalizando aproximadamente 34

referências.93 Eles focam mais de perto a questão da diversidade religiosa do mundo naquele

momento e o fazem a partir de três linhas básicas: a) a salvação daqueles que estão fora da

igreja; b) os valores autênticos que podem ser neles encontrados e em suas tradições

religiosas; c) como a igreja enxerga esses valores alhures, ou seja, qual a sua atitude frente às

91 Nesse sentido, pode-se afirmar que o concílio, mesmo tendo supostamente permanecido na "teoria do acabamento" de Jean Daniélou, representou um avanço e abertura com relação às religiões, nunca dantes experimentados oficialmente. Para Daniélou, as religiões, mesmo sendo imperfeitas, tendo, portanto, que ser rematadas, acabadas no cristianismo, eram consideradas como "praeparatio evangelica". 92 São eles por ordem de promulgação: Lumen Gentium (LG), Christus Dominus (CD), Optatum totius (OT), Gravissimum Educationis (GE), Nostra Aetate (NA), Dei Verbum (DV), Apostolicam Actuositatem (AA), Dignitatis Humanae (DH), Ad Gentes (AG) e Gaudium et Spes (GS). Os documentos enfatizados (LG, NA e AG) serão aqui olhados mais de perto. 93 Segundo Racca (1997), aconteceram 19 referências negativas ("religiões não cristãs", "não cristãos", "não batizados", "aqueles que não conheceram o evangelho", "culturas não cristãs") e 15 positivas ou, ao menos, neutras ("cultura", "tradições", "outras religiões", "ritos", "várias religiões", "iniciativa religiosa", "tradições religiosas", "norma religiosa", "religiões", "grandes religiões") acerca das demais religiões.

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tradições religiosas e seus membros. No que tange à questão do diálogo inter-religioso, três

documentos do concílio devem ser focados mais de perto, naquelas passagens mais

significativas para o que aqui se discute.

A Lumen Gentium, em seus números 16 e 17, traz pistas um tanto quanto ambíguas

para o que aqui se debate. Sobre a salvação individual das pessoas,94 afirma (n. 16, minha

ênfase) sua possibilidade – enquanto preparação evangélica – não somente àquelas que

vivenciam situações religiosas diferentes, mas também àqueles que

sem culpa expressa, ainda não alcançaram o conhecimento de Deus e procuraram seguir o caminho do bem, não sem assistência da graça divina. [...] A Igreja interpreta como preparação evangélica tudo que neles há de bom e de verdadeiro, dom daquele que ilumina todas as pessoas a fim de que tenham vida.

É clara a atribuição de valores positivos na forma individual às disposições de cada

pessoa, e não às suas tradições religiosas, mesmo porque esses valores também podem estar

presentes naqueles que "ainda não alcançaram o conhecimento de Deus", ou seja, naqueles

que não integram grupos religiosos. Essas prerrogativas positivas, contudo, não constituem

garantia de salvação, pois os homens muitas vezes "com raciocínios vazios trocam a verdade

de Deus pela mentira e servem à criatura em lugar do criador" (LG, n. 16). Daí a necessidade

de se anunciar o Evangelho da salvação para todos em Jesus Cristo, no que consistiria a

missão da igreja.

Trabalha para descobrir tudo que há de bom na mente e no coração das pessoas, em seus ritos e em sua cultura. Não visa destruir, mas procura tudo sanar, elevar e aperfeiçoar para a glória de Deus, confusão dos demônios e felicidade dos homens (LG, n. 17, minha ênfase).

94 A plenitude dos meios de salvação está na igreja católica, pois ela é "o sacramento ou o sinal e instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo gênero humano" (LG, n. 1). Com base nisso, o documento reflete a partir de uma gradualidade de pertença dos homens à igreja: os católicos são a ela incorporados plenamente; os "cristãos não-católicos" gozam de "certa união" verdadeira no Espírito Santo; os "não cristãos" estão "ordenados" ao povo de Deus.

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Os valores positivos são vistos com benevolência; no entanto, eles devem ser

cumpridos, acabados, rematados pela mensagem do Evangelho, daí a necessidade da missão

evangelizadora. As bases da teologia do acabamento aparecem claramente nos fundamentos

reflexivos da Lumen Gentium.95 Interessante notar, no entanto, o tênue limite entre

disposições subjetivas e valores objetivos, entre valores positivos presentes nas pessoas e nas

tradições religiosas. Mesmo enfatizando que as possíveis retas disposições "estão na mente e

no coração das pessoas", podem estar também "em seus ritos e em sua cultura".

Na Ad Gentes (n. 3, minha ênfase), nota-se também este tênue limite entre disposições

subjetivas e valores objetivos.

A realização do desígnio universal de Deus de salvar toda a humanidade é fruto da bondade e da providência divinas. Do mais íntimo do ser humano brotam inúmeros movimentos, até mesmo religiosos, de busca de Deus, com que os seres humanos 'procuram alcançá-lo ou encontrá-lo, embora não esteja longe de ninguém' (cf. At 17, 27).

Dentre os movimentos ou iniciativas pessoais (incepta), alguns podem ser religiosos

(etiam religiosa), os quais poderiam estar ancorados em possíveis valores objetivos nas

tradições religiosas. O esforço hermenêutico de busca de abertura positiva do concílio às

religiões enquanto tal não pode desconsiderar, contudo, que as mencionadas iniciativas

positivas detectadas em ambientes extracristãos, pessoais ou, possivelmente, nas religiões

"servem de pedagogia (paedagogia) e de preparação para o Evangelho, mas precisam ser

iluminadas e corrigidas" (AG, n. 3, cf. LG, n. 16).

Mais à frente, a Ad Gentes (n. 9, minha ênfase), ciente de que as iniciativas positivas

alhures "precisam ser iluminadas e corrigidas", expõe a função da atividade missionária da

95 Congar, simpatizante da teologia do acabamento, em seu diário do concílio (2002), afirma ter sido o primeiro redator dos números 16 e 17 da Lumen Gentium.

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igreja em relação ao mundo "não cristão", objetivando aperfeiçoar em Cristo o que há de bom

nas pessoas e, também, nas suas tradições religiosas.96

Toda verdade e graça (quidquid veritatis et gratiae) já existentes entre os povos, fruto de uma secreta presença divina, a ação missionária liberta do contágio com o maligno, restitui a Cristo, seu autor [...]. Tudo, porém, que haja de bom no coração e no espírito dos seres humanos, na cultura e nos ritos dos povos, não há de perecer, mas, uma vez curado, será elevado e se tornará perfeito para a glória de Deus, confusão do demônio e felicidade de todos os seres humanos.

Prosseguindo, a Ad Gentes (n. 11), em vista de sua admissão da existência de valores

fora do cristianismo, conclui acerca do modo como a missão cristã deve acontecer.

Para que o testemunho de Cristo seja válido, os cristãos devem valorizar o que têm de próprio os diferentes grupos humanos e neles se integrar com amor, participar integralmente de sua vida social e cultural e relacionar-se com naturalidade uns com os outros, sob todos os aspectos da vida humana de todo dia. Familiarizem-se com suas tradições nacionais e religiosas. Com alegria e respeito, assinalem os traços culturais destes povos que de algum modo têm referência aos valores cristãos e podem ser considerados como que sementes latentes da palavra. [...] Cristo entendeu em profundidade o coração humano. Convivendo humanamente com homens e mulheres, iluminava-os com a luz divina. Assim também o discípulo de Cristo, compenetrado de seu Espírito, deve procurar conhecer as pessoas com quem convive. Num diálogo sincero e paciente, levá-las a perceber o maravilhoso dom de Deus oferecido a todos e aprofundá-lo à luz do Evangelho, para sua libertação e para que venham a reconhecer o senhorio de Deus salvador.

A declaração Nostra Aetate foi, em todo o concílio, a que expressou de forma mais

positiva a perspectiva de abertura, podendo ser considerada, apesar da carência de perspectiva

teológica mais arrojada (GEFFRÉ, 2001)97, como um "divisor de águas" no modo de

abordagem cristã da questão das outras religiões (KNITTER, 1991, p. 124). Com muito mais

vigor e clareza que nos textos anteriores, é apontada a presença de valores autênticos nas

96 É bom relembrar que a Lumen Gentium (n. 17) já havia aberto a possibilidade de valores positivos presentes nas pessoas advirem objetivamente dos ritos e de cultura na qual estavam inseridos. 97 Segundo Geffré (2001), o documento não responde ou explicita a acolhida da pluralidade das religiões e sua positividade no desígnio misterioso de Deus.

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próprias tradições religiosas e não apenas nos fiéis que delas participam.98 Elas são acolhidas

e tratadas com respeito.

A Igreja católica não rejeita o que é verdadeiro e santo em todas as religiões. Considera suas práticas, maneiras de viver, preceitos e doutrinas como reflexo, não raramente autêntico, da verdade (radium illius Veritatis) que ilumina todos os seres humanos, ainda que se distanciem do que ela crê e ensina (NA, n. 2, minha ênfase).

Embora não exista no texto uma referência explícita, a alusão ao evangelho de João é

evidente: "[...] a luz verdadeira que, vindo ao mundo, ilumina todo homem" (Jo 1, 9). "A

Verdade", mesmo que de forma incompleta, está realmente presente nas outras religiões.99 Por

isso, deve-se anunciar Cristo a todos. No entanto, é um anúncio, detalhe importante, do qual

todos irão se beneficiar. Diferentemente da tônica percebida até então, aqui, todos, cristãos e

seguidores das demais religiões, devem orientar-se para a plenitude da religião, Cristo.100

[A Igreja católica] anuncia, porém, a Cristo, e se sente incessantemente obrigada a fazê-lo, como 'caminho, verdade e vida' (Jo 14, 16), em quem todos somos chamados a encontrar a plenitude da religião e em quem Deus reconciliou consigo todas as coisas (cf. 2Cor 5, 18-19) (NA, n. 2, minha ênfase).

98 Para Rahner (1981, p. 424), este é o traço inovador da Declaração, enxergar as religiões nelas mesmas, enquanto "realidades sociais concretas e com seus edifícios doutrinais e a sua vida". Mesmo antes do concílio, esse teólogo (1965, p. 559) já expressava sua dificuldade de compreender uma dinâmica salvífica direcionada unicamente ao fiel em sua intimidade, não considerando sua inserção social em sua própria religião. Para ele, aquele que se salva é sempre "'homo religiosus' nella religione". No entender de Racca (1997, p. 643), a Nostra Aetate, em seu n. 2, além de "inovadora", é "corajosa". 99 Os bispos tradicionalistas que compunham o Coetus internationalis patrum reagiram fortemente a esse e a outros documentos do concílio, criticando-os por atenuarem a diferença entre o cristianismo e as outras religiões. A grande preocupação era com as possíveis repercussões negativas e nefastas para o impulso missionário, acarretadas por tais concepções acerca das religiões "não cristãs". Faziam parte do grupo, que tinha ligações importantes com a cúria romana, os bispos brasileiros Geraldo Proença Sigaud (fundador) e Antônio de Castro Mayer, assim como o francês Marcel Lefbvre (colaborador) (ALBERIGO, 2000). 100 Apesar de sua grande abertura no tratamento das demais religiões enquanto tais, o documento, contudo, não lhes atribui uma mediação salvífica, mantendo-se, com isso, firme na teologia do acabamento (TEIXEIRA, 2004b). Bem o indicam algumas das expressões (NA, n. 2) utilizadas em referência às religiões: Elas teriam "[...] certa percepção daquela força misteriosa [...]", seriam "[...] lampejos daquela verdade [...]" etc. Eram tão grandes o receio e o cuidado na abordagem da questão que uma passagem de Irineu, presente na terceira sessão do concílio (1964), foi eliminada na quarta sessão (1965). O texto omitido expressava a diversidade e riqueza dos caminhos de salvação presentes no desígnio de Deus com o seu Verbo para a humanidade. O intuito de tal recorte no texto seria para se evitarem ambigüidades, o risco de se considerarem as outras religiões, enquanto tais, como disposições positivas de salvação (ROSSANO, 1993).

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De forma que nesta caminhada comum ao mesmo destino, Jesus Cristo, a plenitude da

religião, deve haver uma mútua colaboração e respeito.

Por isso, a Igreja católica exorta seus filhos ao diálogo e à colaboração com os seguidores das outras religiões, para que dêem o testemunho da fé e da vida cristã, reconhecendo, servindo e promovendo os bens espirituais e morais assim como os valores socioculturais presentes nelas (NA, n. 2).

Qual a compreensão que têm dos escritos conciliares os diversos teólogos? Os

documentos conclusivos apontam para qual direção? De que forma é vista a perspectiva

teológica do concílio? Qual das vertentes do debate teológico das religiões de então –

"acabamento" ou "presença de Cristo nas religiões" – pode ser apontada como a mais

influente e mais contemplada pelo Vaticano II?

Tendências divergentes podem ser observadas formando um amplo espectro de visões,

que vai das interpretações decididamente reducionistas (bastante negativas) até as claramente

maximalistas (otimistas demais) (DUPUIS, 1999a).

Na interpretação de Ruokanen (1992, p. 61, minha ênfase), no concílio "parece

existir uma continuidade entre as religiões não cristãs e a verdade cristã. A possibilidade de

uma presença da graça salvífica de Deus nas outras religiões não parece, portanto, totalmente

excluída". Entretanto, prossegue o autor, as religiões "não cristãs", na visão conciliar, "não

possuem nenhum estatuto independente quanto à revelação do mistério divino: a verdade

religiosa delas deve se referir à verdade do cristianismo". Quando se fala delas, nunca é

mencionado o termo revelação, mas o que nelas se aprecia são "seus aspectos naturais, isto é,

o conhecimento natural do único criador pessoal e da lei natural concedida por ele"

(RUOKANEN, 1992, p. 68). Há o bem moral em suas concepções e práticas, mas "quanto ao

Mysterium divinum, as religiões não cristãs permanecem na busca da verdade"

(RUOKANEN, 1992, p. 93). Com isso, pode-se afirmar que o fundamento do Vaticano II está

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na "teoria da perfeição ou cumprimento, tão comum na análise católica pós-conciliar das

religiões não cristãs" (RUOKANEN, 1992, p. 61).

Hacker (1980) distingue dois aspectos da religião: o humano ou antropológico e o

teológico e dogmático. Sob essa luz, conclui que os textos do concílio fazem referência

positiva apenas ao "aspecto antropológico da religião".

Eles descrevem os esforços religiosos realizados por homens de várias religiões, aprovando a busca de Deus feita por eles; mas não se pronunciam sobre a possibilidade de atingir a meta por meio desses esforços, nem dizem se os mitos contêm alguma verdade ou se os ritos são conformes à vontade de Deus (HACKER, 1980, p. 73).

O concílio, continua Hacker (1980, p. 72), insiste nas características negativas das

religiões "não cristãs", de modo que não poderia ser-lhe atribuída a tese segundo a qual "os

pagãos sejam salvos por intermédio de suas religiões, ou que suas religiões enquanto tais

tenham um significado salvífico. A tese da 'legitimidade' das religiões pagãs não recebeu

nenhuma ratificação ou defesa por parte do concílio".

Rossano, na outra extremidade, bem mais otimista acerca da positividade do olhar

conciliar em direção às outras religiões, afirma (1981, p. 102-103, minha ênfase) que

Quanto à função salvífica dessas religiões, isto é, à questão se elas são ou não caminhos de salvação, não há dúvida que 'graça e verdade' atingem ou podem atingir os corações dos homens e das mulheres por meio dos sinais visíveis, experienciais das diversas religiões. O Vaticano II é explícito a esse respeito.

Em outro momento, porém, mais circunspecto, sinaliza (ROSSANO, 1980, p. 374,

minha ênfase):

[É] improvável uma resposta unívoca, seja positiva ou negativa, à questão [das religiões como meio de salvação] [...]. Pode-se dizer com cautela que elementos concretos das religiões ou até, nos melhores casos, sistemas religiosos inteiros podem ser meios providenciais e vias de salvação, na medida em que concretizam e refletem aquela luz do verbo que ilumina todo homem. De fato, é claro para o cristão que a única via de salvação é Cristo. As religiões podem sê-lo na medida em que acolhem e expressam a sua

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influência e iluminação. Nessa direção se colocam as indicações do Concílio (cf. AG, n. 3, 11; NA, n. 2; LG, n. 16).

Kunnumpuram, também com um olhar bastante otimista, afirma que o concílio,

mesmo não querendo pronunciar-se, por seus objetivos pastorais, acerca do estatuto teológico

das religiões, sublinha a existência de valores positivos dentro das próprias tradições: em suas

doutrinas, em seus ritos, em suas normas de vida (1971, p. 66-68). A alusão feita à

"preparação evangélica" (LG, n. 16), em referência às outras religiões, não deve, segundo o

autor (1971, p. 87), ser reduzida a um substrato natural ou a um recipiente passivo do dom de

Deus: "O significado mais profundo delas consiste no fato de remeterem a Cristo. [...] Elas

possuem um dinamismo interno, uma dialética intrínseca que conduz a ele". Nas pegadas de

Rahner (1965), que antes do concílio já não se conformava com a separação salvífica dos

indivíduos de suas religiões, e à luz da Ad Gentes (n. 3): "Esse desígnio universal de Deus

para a salvação do gênero humano não se realiza apenas de um modo quase secreto, na mente

dos homens"; Kunnumpuram (1971, p. 88-91, minha ênfase) percebe que a salvação das

pessoas não é também uma matéria meramente privada, ao contrário, assume sempre uma

forma social. Nesse sentido, resume a questão da seguinte forma:

O concílio Vaticano II reconhece que as religiões não cristãs possuem muitos valores positivos, como a verdade e a bondade, a graça e a santidade. Ele considera esses valores como uma espécie de presença secreta de Deus, como sementes do Verbo e frutos do espírito. O concílio se dá conta de que essas religiões não podem ser consideradas no mesmo pé de meras religiões naturais, pois contêm elementos sobrenaturais, e até mesmo a própria fé salvífica. Apesar do erro, do pecado e da depravação humana, as religiões não cristãs possuem uma tendência inata, um dinamismo interno para Cristo e para sua Igreja. Para aqueles que ainda não encontraram existencialmente o cristianismo, as religiões não cristãs podem servir de vias de salvação, no sentido de que Deus os salva dentro e por meio das doutrinas e das práticas de tais religiões.

Moralli (1999), diferentemente de Kunnumpuram, observa que o concílio, ainda que

de forma implícita, define, com base justamente na "praeparatio evangelica" (LG, n. 16),

uma posição que exclui a tese do valor salvífico das outras religiões.

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Mesmo a admissão pelo concílio de valores nas demais religiões pode, segundo

Maurier (1966, p. 133-134), ser tomada como um limite da doutrina conciliar, pois são

reconhecidos como bons e positivos nas religiões não cristãs somente os elementos presentes

de forma superabundante na igreja. No seu modo de ver, uma perspectiva fortemente

"eclesiocêntrica", que se funda num modo de pensar "egocêntrico". Em suma,

posicionamentos tais que levam facilmente à "teoria do cumprimento".

Na verdade, a pergunta acerca da tendência teológica do concílio com relação às

religiões, se "teoria do cumprimento" ou "presença do mistério salvífico de Cristo", não

admite resposta num único sentido. É verdade que grande parte da terminologia conciliar

aponta para o "cumprimento" e "preparação (LG, n. 16)" (assumir e salvar, sanar e restaurar,

elevar e levar à perfeição), porém impulsiona fortemente na direção oposta à menção aos

elementos "de verdade e de graça", que "são frutos de uma secreta presença divina" (AG, n.

9, minha ênfase).

Rahner (1981, p. 423) considera que "o problema decisivo para o teólogo ficou

aberto". Mesmo com o avanço, não pequeno, da positividade do olhar eclesial às outras

religiões enquanto tais, o otimismo salvífico, claramente perceptível no caso das pessoas

individualmente falando, não é professado explicitamente em relação às religiões.

É o que percebe Knitter (1991, p. 124), para quem o Vaticano II, ao mesmo tempo em

que "é um divisor de águas nas atitudes católicas para com as outras fés", mantém "resíduos

de ambigüidade na sua concepção de quanto, exatamente, são eficazes a verdade e a graça

dentro das religiões". Tal ambigüidade, na sua percepção, advém "da tensão entre a vontade

salvífica de Deus e a necessidade da Igreja, evidente ao longo de toda a história do

pensamento católico".

Racca (1997) enumera alguns pontos que permanecem obscuros ao se lançar um olhar

mais agudo sobre o concílio: a) De que forma integrar as duas exigências colocadas pelo

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Vaticano II, quais sejam, o diálogo inter-religioso e o caráter absoluto e definitivo do

cristianismo?; b) Que critérios utilizar, ao se lançar ao necessário diálogo, no discernimento

do que é "bom e verdadeiro" e do que é falso nas outras religiões?; c) Do ponto de vista

soteriológico, o concílio não afirma que as demais religiões possam ser de fato vias de

salvação para seus membros.101 Acredita (2002), no entanto, que o traço mais inovador do

concílio seja mesmo o do reconhecimento, por parte dos documentos conciliares, da

positividade de elementos das outras tradições religiosas.

Esse traço, diante da estreiteza de horizontes do eclesiocentrismo dominante no

período, inaugura, segundo Geffré (2003), um novo momento de abertura na igreja, apesar de

o concílio ter evitado deliberadamente um juízo teológico positivo sobre o pluralismo

religioso.102 Sobre esse aspecto, Quatra (1998, p. 96-97) lança mão de uma importante

distinção, qual seja, entre pluralismo religioso "de fato" e "de direito". O concílio, em seu

modo de ver, reconhece a pluralidade religiosa "de fato", ou seja, ela aí está e não há mais

como negá-la, mas não admite que essa diversidade de religiões seja "de direito" ou "de

princípio", algo querido por Deus.103

Há que se ter cuidado, no parecer de Teixeira (2004b, p. 289), com as conclusões

apressadas sobre o tema. Em seu modo de enxergar o concílio, à luz dos documentos

aprovados, o que é possível afirmar é

101 Para Racca (1997), esse é o tema que mobiliza todo o debate teológico cristão das religiões desde o Vaticano II até o momento atual. 102 Para Geffré (2003), somente a Gaudium et Spes, em seu n. 22, que aborda a ação salvífica do Espírito, operada no "modo conhecido por Deus", talvez pudesse ser interpretada como uma possível abertura ao pluralismo religioso. Na sua compreensão, é a perspectiva do "acabamento" que está subjacente em importantes documentos do Vaticano II como Nostra Aetate e Ad Gentes. Mesmo Rahner, em seu modo de ver, estaria vinculado à mesma lógica da teoria do acabamento. Discordando, Schillebeeckx (1994, p. 209) afirma que “Karl Rahner deu um passo avante” e mesmo “as afirmações abertas do Concílio Vaticano II em ‘Lumen gentium’, ‘Nostra aetate’ e ‘Ad gentes’ [...] não foram, ao menos literalmente, tão longe”. Dupuis (1999a) também considera, no que é acompanhado por Teixeira (2004b), a teologia de Rahner um passo mais avançado, ao romper com a visão comum entre os teólogos do acabamento de considerar as outras religiões como religiões naturais. Teixeira (2004a, p. 63) chega a vislumbrar nos escritos de Rahner (1965; 1969) "sinais de uma discussão que será substantiva posteriormente: a questão do pluralismo de princípio". 103 A questão do pluralismo, de fato e de princípio, será melhor abordada no capítulo seguinte deste trabalho.

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o início de um processo de abertura dialogal e a presença de uma perspectiva mais positiva com respeito às religiões e otimista a propósito do mistério de salvação. Mas não há dúvida de que o concílio mantém viva a doutrina do caráter absoluto e definitivo do cristianismo, e nesse sentido, não rompe com a perspectiva eclesiocêntrica. Uma perspectiva que interdita ou obscurece os imperativos do diálogo inter-religioso.

É nessa perspectiva eclesiocêntrica da teologia conciliar que Dupuis (1999a, p. 238-

239) vê a provável razão dos limites e silêncios do Vaticano II.

Testemunha disso é o próprio título da declaração Nostra aetate: 'sobre a relação da Igreja com as religiões não cristãs'. O problema que aqui aparece não é diretamente o da relação vertical das tradições religiosas da humanidade com o mistério de Jesus Cristo, e sim o da relação horizontal dessas mesmas tradições com o cristianismo ou com a Igreja. O primeiro problema teria podido levar ao reconhecimento de uma presença secreta de Cristo nessas mesmas tradições e de certa mediação através delas do próprio mistério; o segundo problema não levava naturalmente nessa direção. Será que não é essa a razão pela qual o Concílio, apesar de sua afirmação sobre a presença de valores e de elementos positivos nessas tradições religiosas, não se aventura explicitamente [...] na direção de um reconhecimento dessas mesmas tradições como vias legítimas de salvação para seus membros, embora em relação necessária com o mistério de Cristo?

2.2.3 As conseqüências e resultados posteriores

O término oficial dos trabalhos do Vaticano II não importa tanto quanto o desenrolar

de seus desdobramentos ulteriores. Um concílio não é um produto final, mas sim um projeto

para um novo começo, onde ele estará à prova da recepção e da implementação (DUPUIS,

1999a). Sua intenção eminentemente pastoral, no sentido de promover uma mudança de

perspectiva, "recíproca compreensão, estima, diálogo e cooperação" (DUPUIS, 2001, p. 123)

com respeito às religiões, foi coerentemente seguida nos anos seguintes? A ambigüidade

conciliar, resvalando mesmo num eclesiocentrismo por demais fechado, deu lugar a uma

visão mais ampla, no sentido de um reconhecimento mais claro da função das religiões no

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desígnio salvífico de Deus? A visão acerca das religiões em si mesmas mudou significativa e

positivamente nos anos posteriores? Essas possibilidades serão observadas inicialmente no

magistério da igreja pós-conciliar e, a seguir, na reflexão teológica acerca das religiões. O

magistério pós-conciliar foi comandado pelos papas Paulo VI e João Paulo II, tendo entre eles

o brevíssimo pontificado de João Paulo I.

De Paulo VI, dois documentos que tratam a questão das religiões podem ser

observados mais de perto.

A encíclica Ecclesiam suam foi publicada em 6 de agosto de 1964, ainda em meio aos

trabalhos do Vaticano II, entre sua segunda e terceira sessões. Pela primeira vez, num

documento oficial da igreja, é utilizada a palavra "diálogo" (colloquium) (DUPUIS, 1994).

Ele estaria presente em toda a história da salvação, pois essa seria a história de um diálogo

contínuo de Deus com a humanidade. Em vista disso, a igreja não se pode furtar à sua missão,

qual seja, prolongar esse diálogo. O papa explica em detalhes no documento de que forma

poderia acontecer o diálogo a partir da igreja. Os quatro níveis do diálogo poderiam ser

simbolizados por círculos concêntricos, onde cada círculo representaria uma dimensão desse

colóquio. Do círculo mais externo, ou mais distante, ao núcleo, onde estaria a igreja, as

representações circulares dialogais estariam assim categorizadas, pela ordem: o diálogo da

igreja com o mundo inteiro (ES, n. 101-110), com os membros das outras religiões (ES, n. 60,

111), com as demais igrejas cristãs (ES, n. 113) e, enfim, no círculo mais interno, o diálogo

dentro da igreja.104 A dimensão dialogal do segundo círculo, com os "homens que antes de

tudo adoram o Deus único e supremo que nós adoramos" (ES, n. 60), refere-se não somente

aos judeus e muçulmanos mas também aos adeptos das grandes religiões afro-asiáticas.

104 Os mesmos quatro círculos concêntricos, só que em ordem inversa, serão utilizados pelo concílio Vaticano II, em sua constituição pastoral Gaudium et spes (n. 92). Dupuis (1999a, p. 240) considera esse texto "a Magna Charta do Concílio em matéria de diálogo". Também a encíclica de Paulo VI chegou a ser reconhecida pelos estudiosos como a “encíclica do diálogo” (RACCA, 1997, p. 657).

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As proposições da Ecclesiam suam denotam uma "abertura autêntica mas prudente"

(DUPUIS, 1994, p. 231). Se, por um lado, o papa afirma (ES, n. 60) que

não queremos recusar nosso respeitoso reconhecimento aos valores espirituais e morais das várias confissões religiosas não cristãs; queremos com elas promover e defender os ideais, que podem ser comuns [...]. De nossa parte, é possível um diálogo em ordem a esses ideais comuns; e não deixaremos de oferecê-lo onde, em recíproco e leal respeito, for bem aceito.

Por outro, bastante cauteloso, acerca das bases doutrinais do diálogo, escreve (ES, n.

60):

Não podemos, é claro, compartilhar essas várias expressões religiosas, nem podemos diante delas ficar indiferentes, como se todas, equivalendo-se mais ou menos, dispensassem os seus fiéis de investigar se Deus revelou a forma – infalível, perfeita e definitiva – de como quer ser conhecido, amado e servido. E, por dever de lealdade, devemos manifestar que estamos certíssimos de que uma só é a verdadeira religião, a cristã; alimentamos a esperança de que a venham reconhecer como tal, todos os que procuram e adoram a Deus.

Aparece inequívoca, no documento, a exclusividade do cristianismo como "única [...]

verdadeira religião" (ES, n. 60). Para Dupuis (1999a, p. 240), "nem os aprimoramentos e os

matizes produzidos pelo Concílio atenuarão a afirmação papal sobre as pretensões exclusivas

do cristianismo".

A exortação apostólica Evangelii nuntiandi foi publicada pelo papa Paulo VI, em 8 de

dezembro de 1975. Um ano antes, em 1974, acontecia o sínodo dos bispos sobre a

evangelização do mundo contemporâneo. Sobre o diálogo com as religiões, assim como sobre

a avaliação cristã dessas religiões em si mesmas, foram manifestadas no sínodo visões de

longo alcance, trazidas principalmente pelos bispos da Ásia. Assim como os representantes da

América Latina enfatizaram suas preocupações com as questões da justiça e da libertação, e

os africanos com o tema da inculturação, os asiáticos trouxeram ao sínodo sua longa

experiência no campo do diálogo inter-religioso e a expectativa de ver contemplado esse

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diálogo como parte constitutiva e integrante da evangelização.105 O sínodo, no entanto,

"incapaz de produzir um documento substancial" (DUPUIS, 1999a, p. 241) acerca de tão

importantes temas,106 publicou uma breve "Declaração", nada dizendo a respeito das religiões

mundiais.

Coube a Paulo VI voltar, então, ao assunto, retomando os resultados do sínodo, o que

foi feito um ano depois, em 8 de dezembro de 1975, com a exortação apostólica Evangelii

nuntiandi. "[...] De maneira claramente negativa", não correspondendo às muitas opiniões

expressas no evento sinodal, o papa adverte (EN, n. 53, minha ênfase):

[...] nem o respeito e a estima para com essas religiões, nem a complexidade dos problemas levantados são para a Igreja um motivo para ela calar, diante dos não cristãos, o anúncio de Jesus Cristo. Mesmo perante as expressões religiosas naturais mais merecedoras de estima, a Igreja apóia-se, portanto, sobre o fato de a religião de Jesus, que ela anuncia através da evangelização, pôr o homem objetivamente em relação com o plano de Deus, com a sua presença viva e com a sua ação; ela leva-o, assim, a encontrar o mistério da Paternidade divina que se debruça sobre a humanidade; por outras palavras, nossa religião instaura efetivamente uma relação autêntica e viva com Deus, que as outras religiões não conseguem estabelecer, se bem que elas tenham, por assim dizer, os seus braços estendidos para o céu.

105 É clara, positiva e bem articulada a expressão do bispo de Délhi (na Índia), Ângelo Fernandes: "Uma teologia das religiões mundiais nos obriga [...] a reconhecer plenamente o fato de que no passado Deus tratou com povos diferentes de maneira diferente, e que continua a fazer o mesmo ainda hoje. Formular uma teologia das tradições religiosas mundiais vivas e do significado atual delas no plano de salvação universal de Deus é para nós um dever urgente. A tarefa dessa teologia será mostrar que o Senhor ressuscitado, que é o único mediador entre Deus e os seres humanos, e apenas no nome dele podem encontrar salvação, está presente e operante, através do seu Espírito, não só nas mentes e nos corações daqueles que talvez nunca ouviram falar o seu nome, mas também nas manifestações concretas através das quais, no quadro de suas tradições religiosas e no meio de suas comunidades religiosas, a vida religiosa deles se expressa. Afirmar que a prática religiosa dos outros, seus livros sagrados e suas práticas sacramentais oferecem um canal através do que eles foram alcançados pelo Senhor ressuscitado não desabona em nada a unicidade de Cristo e de sua mensagem. Nossa teologia esclarecerá ainda mais que a unicidade do cristianismo está nisso, que ela não exclui nenhuma religião, abraçando todas elas. As outras religiões, nas quais Cristo está presente, mas oculto, com seu Espírito agindo secretamente dentro delas, estão destinadas a encontrar o seu cumprimento no reconhecimento explícito daquele que é o Senhor da história. É por dentro, e não de fora, que os membros dessas tradições religiosas são questionados pelo mistério de Jesus Cristo". Texto na íntegra em AMALORPAVADASS, D. S. (Ed.). Evangelisation of the Modern World. Bangalore: NBCLC, 1975. p. 129-134. 106 O esquema do documento final proposto à assembléia sinodal atendia a expectativa dos asiáticos, pois o diálogo inter-religioso surgia como "expressão concreta da missão da Igreja" e não como realidade extrínseca à sua missão evangelizadora. Esse esquema, no entanto, não obteve aprovação, e o Sínodo acabou optando por uma declaração mais breve (DUPUIS, 1991a, p. 306).

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As expressões enfatizadas deixam bastante clara a retomada pelo papa, perdendo de

vista os elementos de visão mais ampla do Vaticano II, da "teoria do cumprimento" ou

"acabamento" na sua forma clássica: enquanto Deus se "debruça sobre a humanidade" em

Jesus Cristo, as demais religiões têm os "seus braços estendidos para o céu"; enquanto as

demais religiões são "expressões religiosas naturais", o cristianismo é a única através da qual

se "instaura efetivamente uma relação autêntica e viva com Deus".107 Na conclusão de Dupuis

(1999a, p. 242), "Paulo VI que, com a encíclica programática Ecclesiam suam, havia se

tornado o ‘papa do diálogo’, não diz nada, na Evangelii nuntiandi, sobre o tema do diálogo

inter-religioso."

A contribuição peculiar de João Paulo II para a teologia cristã das religiões, Dupuis

(1999a, p. 243) a coloca na "ênfase com que ele afirma a presença operante do Espírito de

Deus na vida religiosa dos não cristãos e em suas tradições religiosas". Antes, no concílio, a

constituição pastoral Gaudium et spes (n. 32, 38, 39) concebia o Espírito de Deus como

agindo no mundo, não só e, principalmente, nas aspirações religiosas dos seres humanos mas

nos valores humanos que esses buscam unanimemente, como a justiça e a solidariedade, a paz

e a harmonia. De maneira mais incidental, porém, era tratada a influência do Espírito na vida

religiosa das pessoas (GS, n. 15, 37, 41). Paulo VI, em sua exortação apostólica Evangelii

nuntiandi, não faz qualquer menção ao Espírito Santo em relação à vida religiosa dos adeptos

das outras religiões. Ele é citado apenas como "principal agente da evangelização" (EN, n.

75), incentivador da igreja na sua missão.

107 Na preparação ao sínodo, em 1974, a Federação das conferências dos bispos asiáticos (FABC), falando das tradições religiosas asiáticas, afirmava, na contramão da perspectiva papal: "Nós [bispos asiáticos] as aceitamos como elementos relevantes e positivos na economia do plano salvífico de Deus [...]. Como podemos deixar de prestar-lhes nossa reverência e honra? E como podemos deixar de reconhecer que por meio delas Deus atraiu a si nossos povos?" Texto integral em ROSALES, G.; ARÉVALO, C. G. (Ed.). For all the peoples of Asia: Federation of Asian Bishops' Conferences Documents from 1970 to 1991. Maryknoll New York: Orbis Books, 1992.

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Em sua primeira encíclica, a Redemptor hominis,108 publicada em 4 de março de

1979, João Paulo II, num questionamento aos católicos, expressa sua visão acerca da relação

do Espírito com as demais religiões.

Será que a firme crença dos seguidores das religiões não cristãs – também ela efeito do Espírito da verdade, agindo além dos confins visíveis do Corpo Místico – não pode como que confundir os cristãos, tão dispostos a duvidar das verdades reveladas por Deus e anunciadas pela Igreja [...]?109

A crença de que a atuação do Espírito ultrapassa os limites físicos eclesiais permite a

João Paulo a percepção (RH, n. 11, minha ênfase) daquilo que une as diversas religiões entre

si.110

Justamente os padres da Igreja viam nas diversas religiões como que outros tantos reflexos de uma única verdade, como que 'germes do Verbo' (cf. AG, n. 11; LG, n. 17), os quais testemunham que, embora por caminhos diferentes, está contudo voltada para uma mesma direção a mais profunda aspiração do espírito humano, tal como ela se exprime na busca de Deus; e conjuntamente, na busca, mediante a tensão no sentido de Deus, da plena dimensão da humanidade, ou seja, do sentido pleno da vida humana.

Em vista disso, a missão adquire contornos específicos e diferentes do que até então se

considerava. Para o papa (RH, n. 12, minha ênfase), a atitude missionária

começa sempre por um sentimento de profunda estima por aquilo 'que há no homem' (Jo 2, 25), por aquilo que ele, no íntimo do seu espírito, elaborou quanto aos problemas mais profundos e mais importantes; trata-se de respeito por aquilo que nele operou o Espírito, que 'sopra onde quer' (Jo 3, 8).

108 O texto completo da encíclica encontra-se na Acta Apostolicae Sedis, n. 71, 1979. 109 Acta Apostolicae Sedis, n. 71, 1979, p. 257 (minha ênfase). 110 Essa mesma percepção talvez possa explicar a abertura positiva pessoal desse papa em relação às demais tradições religiosas, claramente observável em diversas atitudes ao longo de seu longo pontificado, em meio a uma cúria romana explicitamente avessa a tais possibilidades dialogais inter-religiosas: Dia de Oração pela Paz em Assis (outubro de 1986); as palavras proferidas aos jovens muçulmanos no Marrocos (1985); visita à sinagora de Roma (1986); crítica ao totalitarismo religioso e a defesa da liberdade religiosa em Nova Déli (1999); o relevo simbólico do mea culpa com respeito à perseguição dos judeus, ocorrido em Roma (2000); a dinâmica de respeito e sensibilidade para com as tradições judaica e Muçulmana em sua viagem à Terra Santa (2000) e, por fim, a visita à mesquita de Damasco (2001). Mais recentemente (2004), o papa pede perdão à humanidade pelos horrores e excessos provocados, em tempos idos, pela Inquisição católica (atenuando, contudo, os números de condenados à morte até então estampados pelos historiadores).

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Esse respeito àquilo que, no outro religioso, é obra do Espírito impulsiona uma

mudança até mesmo na concepção da oração. O Espírito está presente em qualquer oração

autêntica, cristã ou não. É o que expressa João Paulo II em sua Mensagem aos habitantes da

Ásia.111

Aquilo que parece fornecer algo em comum e unir, de modo particular, cristãos e fiéis de outras religiões, é o reconhecimento da necessidade da oração como expressão da espiritualidade do homem orientada para o Absoluto. Mesmo quando, para alguém, ele é o Grande Desconhecido, continua sendo na realidade o mesmo Deus vivo. Confiamos que onde quer que seja que o espírito humano se abra em oração para esse Deus Desconhecido, aí será ouvido um eco daquele mesmo Espírito que, conhecendo os limites e a fraqueza da pessoa humana, ele próprio ora em nós e em nosso nome, 'intercedendo por nós com gemidos inefáveis' (Rm 8, 26). A intercessão do Espírito de Deus que ora em nós é, para nós, fruto do mistério da redenção realizada por Cristo, na qual o amor universal do Pai manifestou-se ao mundo.

Compreender a oração dessa forma permite, inclusive, que se reze juntamente com os

adeptos de outras religiões. É o que ocorreu em Assis, em 27 de outubro de 1986, no Dia

mundial de oração pela paz, quando os presentes oraram pela paz no mundo, cada um com

sua respectiva identidade religiosa e na busca da verdade. 112 Por mais diferentes que fossem

suas vidas, havia neles um "mistério de unidade", pois "as diferenças são um elemento menos

importante em relação à unidade que, ao contrário, é radical, imprescindível e

determinante".113 Mais claramente que qualquer outro texto conciliar, o papa afirma a

presença ativa do Espírito Santo na vida religiosa dos membros das outras tradições

religiosas, o que lhe permite olhar o Dia mundial de oração pela paz como uma "manifestação

111 Acta Apostolicae Sedis, n. 73, 1981, p. 391. 112 Alocução do papa aos membros da Cúria romana, em 22 de dezembro de 1986, explicando o significado do evento ocorrido em Assis. O texto completo está em JUSTITIA ET PAX. Assisi: giornata mondiale di preghiera per la pace (27 ottobre 1986). Città del Vaticano: Tipografía Poliglota Vaticana, 1987. 113 JUSTITIA ET PAX. Assisi: giornata mondiale di preghiera per la pace (27 ottobre 1986). Città del Vaticano: Tipografía Poliglota Vaticana, 1987, n. 3.

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admirável daquela unidade que nos une para além das diferenças e divisões de todos

conhecidas".114

Toda oração autêntica se encontra sob a influência do Espírito 'que intercede com insistência por nós', 'pois nem sabemos o que convém pedir', mas ele ora em nós 'com gemidos inefáveis' e 'aquele que sonda os corações sabe quais são os desejos do Espírito' (Rm 8, 26-27). De fato, podemos considerar que toda oração autêntica é suscitada pelo Espírito Santo, que está misteriosamente presente no coração de todo homem.115

A encíclica Dominum et vivificantem, publicada em 18 de maio de 1986, é a mais

explícita manifestação de João Paulo II acerca da economia do Espírito. Nela, o papa

menciona (1986, n. 53) a atividade universal do Espírito Santo antes do tempo da economia

cristã e, hoje, fora da igreja.

No entanto, [...], também devemos alargar as nossas vistas para mais longe, 'para o largo', conscientes de que 'o vento sopra onde quer' [...] (cf. Jo 3, 8). O concílio Vaticano II, centrando a atenção sobretudo no tema da Igreja, recorda-nos a ação do Espírito Santo mesmo 'fora' do corpo visível da Igreja. Ele fala precisamente de 'todos os homens de boa vontade, no coração dos quais invisivelmente age a graça. Na verdade, se Cristo morreu por todos e a vocação última do homem é realmente uma só, a saber, a divina, nós devemos manter que o Espírito Santo oferece a todos, de um modo que só Deus conhece, a possibilidade de serem associados ao mistério pascal (GS, n. 22; cf. LG, n. 16)'.

Essa ação universal do Espírito "fora do corpo visível da Igreja", presente em "todos

os homens de boa vontade", manifesta-se também nas próprias tradições religiosas. É o que

afirma com bastante clareza o texto da carta encíclica Redemptoris Missio (JOÃO PAULO II,

1991, n. 28, minha ênfase), tornada pública em 7 de dezembro de 1990.116

O Espírito manifesta-se particularmente na Igreja e nos seus membros, mas sua presença e ação são universais, sem limite de espaço nem de tempo. [...]

114 JUSTITIA ET PAX. Assisi: giornata mondiale di preghiera per la pace (27 ottobre 1986). Città del Vaticano: Tipografía Poliglota Vaticana, 1987, n. 11. 115 JUSTITIA ET PAX. Assisi: giornata mondiale di preghiera per la pace (27 ottobre 1986). Città del Vaticano: Tipografía Poliglota Vaticana, 1987, n. 11. 116 Essa carta encíclica surgiu por ocasião do XXV aniversário do Decreto conciliar Ad Gentes, com o objetivo fundamental de "reafirmar as bases teológicas da identidade missionária da Igreja" (TOMKO, 1991, p. 139), que estaria hoje vivendo um momento "de afrouxamento, contra todas as indicações do Concílio" (RM, n. 2).

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O Espírito está [...] na própria origem da questão existencial e religiosa do homem, que surge não só de situações contingentes, mas sobretudo da estrutura própria do seu ser. A presença e a ação do Espírito não atingem apenas os indivíduos, mas também a sociedade e a história, os povos, as culturas e as religiões.

Não pairam dúvidas, em vista do exposto, acerca do reconhecimento da presença ativa

do Espírito de Deus nos membros das demais religiões e em suas próprias religiões. Contudo,

não são certezas que afloram quando se pergunta se tal reconhecimento influencia

positivamente a abordagem da encíclica acerca do significado e valor salvíficos dessas

religiões. Para essa questão, o texto papal arrisca somente duas frases e, mesmo assim, sem

muito esclarecer. De um lado, afirma a acessibilidade da salvação em Cristo para aqueles que

se encontram fora da igreja "em virtude de uma graça que, embora dotada de uma misteriosa

relação com a Igreja, todavia não os introduz formalmente nela, mas ilumina

convenientemente a sua situação interior e ambiental" (RM, n. 10). Se essas pessoas, sem

serem introduzidas "formalmente" na igreja, podem salvar-se, de que forma isso se daria? O

documento fala, com ressalvas, em "mediações participadas de diverso tipo": "se não se

excluem mediações participadas de diverso tipo e ordem, entretanto elas recebem significado

e valor unicamente da de Cristo, e não podem ser entendidas como paralelas e

complementares" (RM, n. 5). Estariam incluídas nessas "mediações participadas" as demais

tradições religiosas, de modo que, com isso, seus membros se salvariam em Cristo, nelas

mesmas? O texto não esclarece isso e tampouco o pesquisador pode, com os elementos de que

dispõe, avançar uma conclusão a respeito.

Em texto mais recente, o papa, desta feita de modo bastante claro, mesmo reafirmando

a presença do Espírito nas tradições religiosas, retoma a "teoria do cumprimento", de modo

parecido com o juízo pronunciado sobre as demais religiões por Paulo VI, na Evangelii

Nuntiandi (n. 53). É o que se observa na carta apostólica Tertio millennio adveniente,

publicada por João Paulo II, em 10 de dezembro de 1994.

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Jesus [...] não se limita a falar 'em nome de Deus' como os profetas, mas é o próprio Deus que fala no seu Verbo eterno feito carne. Tocamos, aqui, o ponto essencial onde o cristianismo se diferencia das outras religiões, nas quais se foi exprimindo, desde o início, a busca de Deus por parte do homem. No cristianismo, o ponto de partida está na encarnação do Verbo. Aqui, não é apenas o homem a procurar Deus, mas é Deus que vem em pessoa falar de si ao homem e mostrar-lhe o caminho, por onde é possível atingi-lo. [...] O Verbo encarnado é, portanto, o cumprimento do anseio presente em todas as religiões da humanidade: este cumprimento é obra de Deus e ultrapassa toda a expectativa humana. É mistério de graça. Em Cristo, a religião deixa de ser um 'procurar Deus como que às apalpadelas' (cf. At 17, 27), para se tornar resposta de fé a Deus que se revela [...]. Cristo é o cumprimento do anseio de todas as religiões do mundo, constituindo por isso mesmo o seu único e definitivo ponto de chegada (n. 6).

O texto não deixa espaço para um reconhecimento da possibilidade de uma iniciativa

divina, ainda que incompleta, nas demais tradições religiosas, menos ainda a visualização

nelas de uma função salvífica para seus seguidores. Elas se constituem em aspirações

religiosas naturais da humanidade, "a busca de Deus por parte do homem [...] como que às

apalpadelas", como se na escuridão estivessem. Isso em contrapartida ao cristianismo, onde "é

Deus que vem em pessoa falar de si ao homem e mostrar-lhe o caminho".

Outro documento pontifício, não papal, mas publicado em conjunto pelo Pontifício

Conselho para o diálogo inter-religioso e pela Congregação para a evangelização dos

povos, em 19 de maio de 1991, cinco meses após a publicação da encíclica Redemptoris

Missio, de João Paulo II, avança bem mais na questão aqui debatida. Intitulado Diálogo e

anúncio: reflexões e orientações sobre o diálogo inter-religioso e o anúncio do Evangelho

de Jesus Cristo, dedica toda uma seção para uma análise detalhada da "abordagem cristã das

tradições religiosas" (n. 14-32), no parecer de Dupuis (1999a, p. 249), "uma primícia entre os

documentos da Igreja dedicados aos membros das outras religiões e suas tradições". Ao final

dessa seção (n. 29, minha ênfase), expressa:

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Deste mistério de unidade117 deriva que todos os homens e todas as mulheres que foram salvos participam, embora de modo diferente, do mesmo mistério de salvação em Jesus Cristo por meio do seu Espírito. Os cristãos estão conscientes disso, graças à fé que possuem, enquanto os outros desconhecem que Jesus Cristo é a fonte de sua salvação. O mistério de salvação os atinge, por caminhos conhecidos por Deus, graças à ação invisível do Espírito de Cristo. É através da prática daquilo que é bom em suas próprias tradições religiosas e seguindo os ditames de sua consciência, que os membros das outras religiões respondem positivamente ao convite de Deus e recebem a salvação em Jesus Cristo, embora não o reconheçam como seu Salvador (cf. AG, n. 3, 9, 11).

Mesmo que com prudência,118 abre-se, pela primeira vez, em documentos oficiais do

magistério da igreja, a possibilidade de uma "mediação participada"119 das tradições religiosas

na salvação de seus membros. Na compreensão otimista de Dupuis (1999a, p. 249), "com tal

declaração, parece que se está realizando definitivamente a passagem da 'teoria do

cumprimento' para aquela de uma presença ativa do mistério de Jesus Cristo nas tradições".120

Dez anos depois, mais precisamente em 6 de agosto de 2000, viu-se que tal passagem,

se ocorreu, foi apenas pontualmente em um documento isolado, pois, nessa data, aconteceria

uma guinada radical acerca desta perspectiva da possibilidade salvífica nas demais religiões.

A Congregação para a Doutrina da Fé fez publicar a Declaração Dominus Iesus, assinada

por Joseph Ratzinger (cardeal) e Tarcisio Bertone (arcebispo), respectivos presidente e

117 Faz-se referência ao "mistério da unidade", mencionado por João Paulo II em sua explicação à cúria romana, 22 de dezembro de 1986, acerca do significado do Dia mundial de oração pela paz, evento ocorrido em Assis dois meses antes. 118 A prudência se explica. Na verdade, esse documento começou a ser esboçado em dezembro de 1986. Discutido inicialmente na Assembléia Plenária do Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-Religioso, em janeiro de 1987, passou, posteriormente, por cinco redações, sendo que, a partir da quarta, em 1989, já contava com a participação da Congregação para a Evangelização dos Povos. A partir daí, o texto original, sob novas emendas, adições ou cortes, perdeu visivelmente sua incidência original. Seu texto final foi aprovado na Assembléia Plenária do Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-Religioso, em abril de 1990. Com o surgimento da Redemptoris Missio de João Paulo II, em 7 de dezembro de 1990, ocorreram resistências à sua publicação (DUPUIS, 1993b). 119 Expressão utilizada pelo papa João Paulo II (RM, n. 5): "se não se excluem mediações participadas de diverso tipo e ordem, entretanto elas recebem significado e valor unicamente da de Cristo, e não podem ser entendidas como paralelas e complementares". O texto papal, no entanto, não esclareceu se dessas "mediações participadas" fariam parte as demais tradições religiosas, de modo que, com isso, seus membros se salvariam em Cristo, nelas mesmas. 120 Sob o aspecto pastoral, o documento foi considerado, de fato, um marco de grande importância na caminhada da Igreja para uma perspectiva dialogal. Esta importância foi reconhecida por João Paulo II, durante Assembléia Plenária do Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-Religioso, realizada em novembro de 1992. Nessa ocasião, o papa salientou que o documento deveria ser recomendado a todos os pastores da Igreja.

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secretário da nomeada congregação. Na tentativa de conferir força ao documento, ao seu final

(conclusão), é mencionado (n. 23, minha ênfase) o apoio do papa ao texto e, é interessante

notar, ressalva-se o fato de que João Paulo II está cônscio do que faz.

O Sumo Pontífice João Paulo II, na Audiência concedida, a 16 de Junho de 2000, ao abaixo-assinado Cardeal Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, com ciência certa e com a sua autoridade apostólica ratificou e confirmou esta Declaração, decidida em Sessão Plenária, e mandou que fosse publicada.

O retrocesso, causado por essa declaração, na concepção católico-cristã acerca das

demais religiões, incluindo aí as co-irmãs protestantes, é enorme. A impressão é a de que se

respiram novamente os ares do extra eclesiam nulla salus. A pretensão de universalidade que

permeia o texto é devastadora e incapaz de reconhecer e respeitar minimamente a existência

diferente do outro religioso. As reações surgiram de imediato e, no sentido contrário, com

igual força. Para citar apenas dois exemplos dessas fortes reações iniciais, Boff (2000, p. 9),

do lado católico, com uma ponta de ironia, afirma ser necessário até “agradecer” ao

“exterminador do futuro”, cardeal Ratzinger, o mentor da Dominus Iesus, por essa publicação,

pois com ela caem a “máscara” e os “subterfúgios”, revelando a visão que essa pequena parte

do cristianismo tem sobre o diálogo inter-religioso, entre outros temas. Rubem Alves (2000,

p. A3), na vertente protestante, aponta o caminho que conduz do “‘deixar de ser’ para o ‘vir a

ser’”, próprio da “semente”, propondo o abandono da “imutabilidade pétrea”, própria da

“pedra” e do “Vaticano”.

Outras considerações surgiriam posteriormente, teologicamente mais maturadas e

fundamentadas, dada a maior distância temporal dos acontecimentos.121

Os questionamentos da Declaração giram em torno de três eixos (TEIXEIRA, 2002c):

o cristológico, onde se afirma o caráter pleno e definitivo da revelação de Jesus Cristo (n. 5),

contestando-se as teses que confirmam um pluralismo religioso de princípio, que possam abrir

campo para uma compreensão mais ampla da revelação de Deus; o eclesiológico, onde se

reitera a questão da unicidade e unidade da Igreja católica, de sua indissolúvel relação com o

121 Na Revista Eclesiástica Brasileira (REB, v. 60, n. 240, p. 879-908, dez. 2000), pode ser conferido o artigo do teólogo Faustino Teixeira, intitulado "Do diálogo ao anúncio: reflexões sobre a Declaração Dominus Iesus".

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Reino de Deus, e sua condição de única religião verdadeira, criticando-se as concepções

teológicas que acentuam o reinocentrismo; enfim, o eixo da relação da Igreja católica com as

outras tradições religiosas, onde se afirma a necessidade da Igreja para a salvação.

A Declaração, ao fazer a distinção entre fé teologal (aceitação na graça da verdade

revelada) e crença (“tesouros humanos de sabedoria e de religiosidade”, mas que se

encontram ainda em busca da verdade absoluta) (n. 7), ancora suas reflexões na "teologia do

acabamento" ou do "cumprimento".

Apesar de mencionar a possibilidade de uma "cooperação múltipla" (n. 14) entre as

religiões e não poder negar as possibilidades abertas pelo Vaticano II no campo da ação

salvífica de Deus para além dos limites da Igreja católica (n. 12), a Declaração contesta as

teses teológicas contemporâneas que defendem a idéia de uma complementaridade na obra de

salvação (n. 9) e defende a unicidade e universalidade do mistério salvífico de Jesus Cristo (n.

14). No dizer de Teixeira (2002c, p. 188), as "escassas passagens de abertura presentes na

Declaração constituem, infelizmente, 'brisas' frágeis face aos blocos implacáveis de solidez

doutrinal".

A Declaração parte do princípio de que a Igreja católica participa da plenitude do

mistério salvífico de Jesus Cristo, pois a Ele está unida de modo inseparável (n. 16). Essa

idéia, que resvala no extra eclesiam nulla salus, vem apresentada como “verdade de fé

católica”.

Afirmando “a conexão íntima entre Cristo, o Reino e a Igreja” (n. 11), a Declaração

expressa também preocupação com certas posições teológicas que estariam desvinculando o

Reino seja com respeito a Jesus, seja com respeito à Igreja. A preocupação é com as

concepções “reinocêntricas”, "teses [...] contrárias à fé católica” (n. 19).

No que se refere à salvação, o documento afirma, como essencial para a fé cristã, a

necessidade não somente de Cristo, algo bastante enfatizado, mas também da igreja (n. 20,

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21). Os que não se encontram formalmente na igreja podem salvar-se, porém, sempre

mediante o Cristo no Espírito, em virtude de uma graça, dotada de relação misteriosa com a

igreja (n. 21). “A Igreja" não é, como consideram alguns, "um caminho de salvação ao lado

dos constituídos pelas outras religiões” (n. 21). Mesmo admitindo a existência de elementos

positivos nas outras religiões, à maneira concebida pela teologia do acabamento, insiste sobre

a impossibilidade de se atribuir às suas orações e ritos uma origem divina ou eficácia salvífica

(n. 21). À vista disso, os adeptos das outras religiões encontram-se objetivamente, afirma a

Declaração (n. 22), “numa situação gravemente deficitária, se comparada com a daqueles que

na Igreja têm a plenitude dos meios de salvação”, havendo, então, "a necessidade da

conversão a Jesus Cristo e da adesão à Igreja”.

3 AS ATUAIS INTERPRETAÇÕES CRISTÃS DA REALIDADE PLURAL RELIGIOSA

Tendo perscrutado os posicionamentos oficiais católicos, cabe agora ouvir o que

dizem atualmente os teólogos acerca da questão do pluralismo religioso do mundo. Da mesma

forma, também entre os teólogos, observam-se recuos e avanços, posições extremadas e

tentativas de síntese. O debate, apesar dos avanços verificados, está apenas começando, a

chamada teologia das religiões está ainda engatinhando e tem muito o que dizer.

Em meio a esse debate, surgem termos como paradigma, modelo etc. Faz-se

necessário um breve esclarecimento acerca da delimitação de significação dos conceitos

utilizados, para que o terreno onde se vai pisar seja o suficiente firme, até onde isso seja

possível, em se tratando do mundo religioso e da proximidade da chamada pós-modernidade.

Kuhn (1976) relaciona estreitamente o termo paradigma com “ciência normal”,

definindo-a como a pesquisa firmemente baseada em uma ou mais realizações científicas

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passadas. Essas realizações são reconhecidas durante algum tempo por alguma comunidade

científica específica como proporcionando os fundamentos para sua prática posterior. Por

algum tempo, elas servem para definir implicitamente os problemas e métodos legítimos de

um campo de pesquisa para as gerações posteriores de praticantes da ciência.

Em cada época, uma comunidade científica particular tem um paradigma dominante

que configura e dirige o trabalho científico. Nele, as pesquisas estão comprometidas com as

mesmas regras e padrões para a prática científica. Uma mudança de paradigma ocorre, quando

se adquire uma visão nova que transforma todas as coisas, dando-lhes uma nova forma e

dimensão, determinando, assim, uma nova visão da verdade. “Para ser aceita como

paradigma, uma teoria deve parecer melhor que suas competidoras, mas não precisa (e de fato

isso nunca acontece) explicar todos os fatos com os quais pode ser confrontada” (KUHN,

1976, p. 38).

Quando um paradigma substitui o antigo, não se trata de um dado a mais numa

estrutura de idéias já existente, mas, sim, uma mudança da imaginação científica, pela qual os

antigos dados são vistos de maneira totalmente nova. Logicamente, as convicções precedentes

dos cientistas resistirão aos novos paradigmas. Somente quando a geração anterior tenha-se

convertido, acabará impondo-se o novo paradigma.

Em um paradigma, podem existir modelos ou padrões diferentes. Um modelo permite

a reprodução de exemplos; bastante plástico é o caso da conjugação latina “amo, amas, amat”,

que serve a um grande número de outros verbos latinos (KUHN, 1976, p. 44). Vários modelos

não se excluem reciprocamente. No entanto, afirma Kuhn, na ciência, um paradigma

raramente é susceptível de reprodução.

É no contexto dessa conceituação de paradigma que são explicitadas, nesta pesquisa,

as interpretações paradigmáticas e modelares cristãs da realidade plural religiosa.

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Os teólogos cristãos enxergam as religiões e suas verdades, basicamente, através de

três lentes paradigmáticas: a lente eclesiocêntrica, resultando numa visão exclusivista; a lente

cristocêntrica, que traz no seu bojo o foco inclusivista; e, finalmente, a lente teocêntrica, que

gera uma imagem pluralista das religiões.122

No paradigma inclusivista, como se verá, abriu caminho um novo modelo,

denominado “aberto” por Teixeira (2002c).

Esses três paradigmas, em conformidade com a definição paradigmática de Kuhn,

excluem-se mutuamente, ou seja, cada um deles, em si mesmo, tem um universo completo de

explicações, aceito e defendido por seus respectivos pares pensantes, acerca das religiões. Os

seus limites cronológicos, no entanto, não têm fronteiras muito claras e definidas. A

conversão da geração anterior ao novo paradigma dominante, no caso religioso, pode ser

muito mais demorada que na ciência. É o caso da vivência prática religiosa cristã, de modo

mais claro ainda na representação magisterial católica, onde se percebe, num momento em

que se fala já de um paradigma pluralista, uma perpetuação, ora de maneira implícita, ora

abertamente explícita, da prática paradigmática exclusivista.

Não se deve conceber, e é isso que se quer mostrar, que existam momentos, com

início, meio e fim, de cada um dos paradigmas, com o início de um sendo sempre antecedido

pelo fim do anterior. Essa pretensa linearidade encontra-se, cada vez mais, na proporção

inversa do avanço dos tempos pós-modernos.123

122 Schineller (1976) introduz uma subdivisão na visão teocêntrica, dividindo seus representantes pluralistas em normativos (Jesus não tem uma função constitutiva, mas, sim, normativa na ordem das relações entre Deus e o gênero humano) e não normativos (não existe função constitutiva nem normativa). Recentemente, novas denominações modelares foram explicitadas por alguns autores, entre eles P. Knitter (1998), que fala sobre um “inclusivismo pluralístico”, e Aebischer-Crettol (2001), que divide os inclusivistas em “constitutivos” e “normativos”, e os pluralistas em “unitivos” e “conseqüentes”. 123 O capítulo terceiro desta pesquisa situará o debate teológico-religioso na pós-modernidade. Poderia o crente religioso conviver internamente com as diferenças religiosas, independentemente das grandes estruturas eclesiais e/ou das grandes narrativas explicativas paradigmáticas e modelares teológicas? Essa relação poderia ser positiva (aceitando) ou negativa (recusando) – ou ambos concomitantemente – com o outro diferente religioso? Enfim, a pós-modernidade poderia ser um facilitador para o encontro e diálogo com o outro religioso?

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3.1 O pluralismo

Assim como o paradigma inclusivista não se resume a um bloco monolítico de

posições teológicas,124 sendo seus extremos opostos intermediados por diversas teorias

diferentes, também seria “um simplismo considerar o modelo pluralista como algo monolítico

e sem nuances diferenciadas” (TEIXEIRA, 2002c, p. 57).

Schineller (1976) subdivide os representantes pluralistas em normativos e não

normativos.125 Os dois modelos concordam que Jesus não tem uma função constitutiva na

ordem das relações entre Deus e o gênero humano; no entanto, para os normativos, essa

função pode servir aos adeptos das diversas religiões como uma norma a ser livremente

observada.

A subdivisão dos pluralistas teocêntricos, proposta por Aebischer-Crettol (2001), mais

recente, porém, de maneira geral, em suas linhas maiores, não muito diferente daquela

idealizada por Schineller (1976), leva também em consideração a existência de duas correntes

diferentes, sendo que o que as distingue é a concepção de cada uma delas acerca da função

exercida por Jesus Cristo na relação do cristianismo com as demais religiões. A primeira

corrente, denominada “teocentrismo pluralista unitivo”, vê Cristo como uma das figuras

religiosas do mundo, na companhia dessas, sem qualquer tipo de superioridade. Nessa

vertente, estariam, segundo a autora dessa subdivisão, de um lado, John Hick, com sua

teologia pluralista radical e, de outro, Paul Knitter, pregando uma teologia das religiões

libertadora. Para esse último, o foco das atenções religiosas estaria centrado no reino e na

124 Como se viu anteriormente, o inclusivismo tradicional se dividia em duas teorias basicamente: a "teoria do acabamento" e a "teoria da presença de Cristo nas religiões". Posteriormente, rompeu caminho, no inclusivismo, um novo modelo: o "inclusivismo aberto". 125 Interessante notar que os inclusivistas também poderiam ser divididos, grosso modo, em normativos e não normativos; ambos, no entanto, mantendo a função constitutiva de Jesus Cristo na ordem das relações entre Deus e o gênero humano.

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salvação, sendo os pobres, fruto de uma realidade de desigualdade e exploração, o elo de

ligação entre as diversas religiões.

A segunda corrente pluralista, uma formulação mais amena, é denominada por

Aebischer-Crettol (2001) como “teocentrismo pluralista conseqüente”. Com nuanças

diferentes, Raimundo Panikkar (o mistério do Cristo desconhecido ou o princípio crístico),

Joseph A. DiNoia (uma teologia em diálogo), John B. Cobb (uma cristologia para além do

pluralismo), Reinhold Bernhardt (uma teologia pluralista no sentido de um inclusivismo

mútuo) e Michael von Brück (um modelo inclusivista recíproco), seus principais

representantes, refletem acerca do mistério de Cristo entre as religiões. À exceção de

Panikkar, que teria uma reflexão um tanto quanto diferenciada, Aebischer-Crettol acredita

poder incluir os demais autores dessa corrente numa “teologia cristã inclusivista-pluralista”.

Esta pesquisa, a seguir, no intuito de clarear os fundamentos da hipótese pluralista,

ater-se-á mais em John Hick, expoente desse paradigma e catalisador maior das críticas que se

fizeram a essa nova proposição. É necessário, no entanto, relembrar sempre a diversidade de

opiniões reinante nesse lugar teológico. Knitter (1998, p. 51), a propósito, questiona a imagem

estereotipada unificadora que acabou prevalecendo sobre a teologia pluralista das religiões.

Essa, na verdade, contrariamente, envolve, segundo esse autor, uma “pluralidade de

pluralistas”. Não há dúvida, e as subdivisões expostas acima mostram bem isso, de que nem

todas as declarações de Hick, por exemplo, são, em sua totalidade, aceitas pelos demais

autores dessa corrente. No entanto, ao privilegiá-lo no presente texto, sem universalizá-lo

como representativo de todos os teólogos pluralistas, esta pesquisa reconhece nele o mérito do

desbravamento.

Com Hick, teólogo e filósofo da religião, os teólogos dessa nova proposta

paradigmática, com matizes e graus diferentes, aderem à “revolução copernicana” (HICK,

1980), segundo a qual, assim como os planetas giram em torno do sol, todas as religiões estão

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voltadas para Deus. Concordam com Hick (1998, p. 24, 2000, p. 114), no sentido de que a

pretensão de tornar “as grandes religiões mundiais [...] dependentes secretamente da cruz de

Cristo” equivale a fazer uma inversão na revolução copernicana, onde “os raios solares que

concedem a vida somente podem atingir os outros planetas se forem antes refletidos a partir

da Terra” (HICK, 1998, p. 24).

Toda religião que pretenda qualquer tipo de superioridade última deve poder

demonstrar essa condição historicamente, colocando-a “como uma questão empírica a ser

resolvida (se é que pode ser resolvida) pelo exame dos fatos” (HICK, 1998, p. 24). A

alternativa à solução empírica seria a fé – que só é válida para os que dela comungam – ou,

então, esperar até que “se produza a ‘verificação escatológica’” (do grego, tà eschatoi, as

últimas coisas ou as coisas do fim), pois até que a “última curva” (HICK) não seja dobrada,

nada se saberá de maneira definitiva.

Muito ilustrativa, no sentido de se compreender o paradigma pluralista, é a parábola de

Hick:126

Dois homens avançam juntos por um caminho. Um deles está convencido de que a rota conduz à cidade celeste; o outro, no entanto, acredita que não conduz a parte alguma. Mas, como não existe outro caminho, viajam juntos. Nenhum dos dois percorreu jamais esse caminho; por isso, nenhum deles poderá dizer o que haverá depois de cada curva. Durante a viagem vivem momentos fáceis e gozosos, mas também momentos difíceis e perigosos. Um deles, durante todo o tempo, encara a viagem como uma peregrinação à cidade celeste. Interpreta os momentos agradáveis como estímulos e os obstáculos como provas de seu propósito e lições de perseverança, preparadas pelo rei daquela cidade e destinadas a fazer dele um habitante digno do lugar para o qual se encaminha. O outro, contudo, não crê em nada disto e considera a viagem como uma marcha inevitável e sem objetivo. Como não existe opção, desfruta do bem e suporta o mal. Para ele não existe cidade celeste a alcançar e nem uma fidelidade que dê sentido à sua viagem. Só existe o caminho e suas vicissitudes no bom e no mau tempo.

Hick acrescenta, a título de explicação, que “os caminhantes não têm distintas

expectativas sobre as coisas que irão encontrar no caminho, mas unicamente sobre o seu

126 A tradução citada é a de ANTISERI, D. El problema del lenguaje religioso. Madrid: Cristiandad, 1976. p. 137s. O autor desta pesquisa assume a responsabilidade pela versão ao português.

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destino último. Ao virar a última curva, é que se verá que tivemos razão todo o tempo e que o

outro sempre esteve equivocado”.

Enquanto não chega a última curva (Hick), isto é, até que não se produza a

“verificação escatológica”, afirma Fraijó (1999a, p. 209), “nem sequer saberemos se esse

Deus invocado pelas religiões, tão rico em nomes e rostos, existe”. Na melhor das hipóteses,

então, continua esse autor, a “única a ter acertado na mosca” seria a humilde samaritana.

Sibilinamente, ela “obrigou” Jesus a revelar-lhe que “os verdadeiros adoradores [...] de Deus

[são] aqueles que o adoram em espírito e verdade (Jo 4,23-24)”.

Segundo Hick (2000, p. 114, minha ênfase), o pluralismo reconhece “a validade de

todas as grandes religiões mundiais como contextos autênticos de salvação/libertação, os

quais não são secretamente dependentes da cruz de Cristo”. Nessas “grandes tradições,

naquilo que elas têm de melhor e mais ou menos na mesma proporção, está tendo lugar a

transformação salvífica da vida humana – transformação individual e coletiva que vai de um

autocentramento destrutivo a uma nova orientação centrada na Realidade divina”. As ênfases

querem ressaltar que Hick não ousa afirmar categoricamente que todas as religiões do mundo,

indiscriminadamente, são iguais. Primeiramente, porque suas referências são as “grandes

religiões mundiais”, as “grandes tradições" e não todas as religiões do mundo e, segundo,

porque, mesmo entre essas maiores, existiria “mais ou menos” a mesma proporção e não ‘a’

mesma proporção. Além do mais, esse autor refere-se à eficácia dessas religiões “em termos

salvíficos”/libertadores. Em outros momentos, ele (2000, p. 187, minha ênfase) refere-se à

impossibilidade de se reivindicar “superioridade moral total” ou superioridade “de maneira

única”.

Falando das experiências religiosas das diversas tradições, Hick (1989, p. 373, 375-

376) afirma que

essas escrituras e pessoas reveladoras remetem ao Brahman, ao Nirvana, a Sunyata ou ao Dharmakaya; a Adonai, ao Pai celeste ou à Santíssima

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Trindade; a Alá ou a Vishnu ou a Shiva; e estes são, segundo (a hipótese pluralista), manifestações diferentes, dentro de correntes diferentes da vida humana, da Realidade última. [...] As diferenças entre os conceitos e as experiências básicas das diversas religiões, as suas diferentes e muitas vezes contrastantes crenças históricas e trans-históricas, a incomensurabilidade das suas mitologias, e os diferentes e ramificados sistemas de crenças nos quais todas essas coisas estão inseridas, são compatíveis com a hipótese pluralista de que as grandes tradições do mundo são diferentes concepções e percepções do Real, e diferentes respostas ao mesmo, originadas dentro das diversas modalidades culturais do ser humano.

O Real “em si” (an sich), para esse autor (1989), encontra-se sempre além da

apreensão humana. Essa manifestação concreta do Real (personae divinas ou impersonae

metafísicas), diversamente experimentado e pensado por diferentes comunidades humanas,

não se confunde com o Real an sich. Essa distinção fundamental está presente em todas as

tradições, inclusive a cristã.

Os pluralistas, de uma maneira geral, de formas diferentes, rejeitam não somente a

centralidade da igreja, como os inclusivistas, mas também a centralidade de Jesus Cristo na

ordem da salvação. No centro está Deus e somente ele. Reside exatamente nesse

posicionamento a negação de um paradigma, a tentativa de sua superação e a proposta de

inauguração de um outro.

A proposição desse novo paradigma, o pluralista, tem seu ponto de arranque, segundo

Hick (1980), na realização da revolução copernicana no mundo teológico-religioso. Dela,

advêm conseqüências cruciais no campo da teologia das religiões, sendo que essas

conseqüências resumem os pontos que formam o crivo pelo qual tiveram que passar os

teólogos que se dizem pluralistas, ou que são, com matizes diferentes, catalogados pelos

pesquisadores como tal. Em Hick (2000), para que alguém se denomine pluralista, há que se

atravessar o Rubicão.127 Isso implica em:

127 Referência ao rio Rubicão. Atravessá-lo, teologicamente falando, significaria a derrubada do último bastião do paradigma inclusivista: a crença de que Jesus Cristo, mesmo que em última instância, é superior às demais personagens representativas das religiões.

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a) Reconhecer que cada uma das grandes tradições religiosas, mais ou menos na mesma

proporção, é um contexto autêntico de salvação.

b) Reconhecer a impossibilidade histórica de se determinar uma religião como sendo melhor

que a outra, ou tendo qualquer tipo de diferencial. Cabe àquela que reivindicar qualquer

tipo de superioridade o ônus da prova.

c) Renunciar a qualquer pretensão de exclusividade ou mesmo de normatividade para Jesus

Cristo. Se esse possui algum tipo de universalidade, é aquela que também podem ter os

demais fundadores ou figuras salvíficas das religiões, qual seja, a do fascínio que suas

mensagens poderiam exercer sobre as pessoas.

Os defensores desse paradigma pregam, para que haja um diálogo com as demais

tradições religiosas, a renúncia de qualquer pretensão de unicidade para a pessoa e a obra de

Jesus Cristo enquanto elemento constitutivo universal da salvação.

Radhakrishnan (1939, p. 64), filósofo e estadista hindu, sobre tal pretensão, afirma:

Precisamente esta pretensão de constituir um final absoluto, que vemos na Igreja, na Escritura, em Jesus Cristo ou em qualquer outro lugar [...] é o que nos deixa perplexos e parece-nos uma afronta a todos quantos temos um sentimento claro de nossas próprias limitações.

Puthiadam (1980, p. 276) adentrando a mesma trilha e servindo-se da expressão de

Ghandi, concorda, quando esse diz, que “a idéia de que Jesus era o único Filho de Deus e que

somente os que acreditassem nele possuiriam a vida eterna era muito mais do que [...] [se]

podia aceitar”.

A religião cristã, segundo Fraijó (1997b),128 prefere os grandes relatos da modernidade

ao titubeante relativismo dos pós-modernos. No entanto, não parece que as religiões possam

128 O responsável pela presente pesquisa, em trabalho anterior (2001a, p. 151) sobre esse autor, tentando situar suas reflexões em algum dos paradigmas da teologia das religiões, arriscou “a conjectura de que Fraijó é um pluralista! Não como Hick, devido às diferenças já explicitadas, nem ‘moderado’, como Knitter (1998, p. 40) se autodenominou, e nem mesmo ‘com concessões’, expressão utilizada por González Faus (1995, p. 110) para

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evitar o relativismo. O seu compromisso com o pensamento e com a busca da verdade as

introduz de cheio na aventura relativista. A não ser, obviamente, que se declarem possuidoras

da verdade. E é o que algumas têm feito, com intensidade diferente, sobretudo as monoteístas.

A verdade, se possuída e não buscada, pode levar à chamada “tirania do único anel”.

Fraijó (1997b) faz uma referência à bela “parábola do anel” (LESSING),129 que, por sua

clareza, é resumida a seguir.

Um anel que tinha passado de herdeiro em herdeiro chegou às mãos de um pai de três

filhos. Como todos eles mostraram-se dignos de receber o anel, o pai, já à beira da morte,

encomendou a um ourives que fizesse duas cópias idênticas. O trabalho ficou tão excelente

que nem o próprio pai foi capaz de distingui-los. Muito contente, chamou os filhos e deu a

cada um o seu anel juntamente com a bênção paterna. Após sua morte, aconteceu o inevitável;

cada filho apresentou seu anel e a pretensão de ser o dono da casa. Provas, reclamações,

pleitos de nada serviram: foi impossível distinguir o anel verdadeiro. Quase tão impossível

como distinguirmos a verdadeira fé.

Nota-se, aqui, uma convivência mais pacífica com a questão do relativismo, denotando

uma concepção de identidade bastante aberta. O depósito da fé, tão caro aos representantes do

paradigma exclusivista, encontra pouca ou nenhuma ressonância entre os pluralistas. Isso não

quer dizer, é bom deixar claro, que esses preguem o abandono da fé cristã. Dupuis (1999a, p.

265), que não comunga das reflexões mais arrojadas do paradigma pluralista, é clarividente

nesse aspecto:

Deve ficar bem claro que os pluralistas teocêntricos não pretendem minar nem a adesão de fé dos cristãos, nem a totalidade das exigências que essa adesão dirige à pessoa. O que está em questão é o significado universal e a função constitutiva atribuídas pelo Cristianismo a tal adesão. [...] Jesus é o

definir Hick, Knitter e Fraijó”. Na tentativa de localizá-lo no arcabouço reflexivo pluralista, aqueles escritos cunharam a expressão “‘pluralista agônico’, para definir toda a articulação teórica de Fraijó. Um pluralismo com relativismo histórico e incertezas futuras”. 129 Gotthold Ephraim Lessing descreve sua parábola na sétima cena do terceiro ato de sua obra denominada “Natan, o sábio”.

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caminho para os cristãos, mas a existência de outros caminhos faz com que ele não seja necessário também para os outros.

Hick (2000), representante maior do pluralismo, acredita que todos os esforços

inclusivos intermediários entre o exclusivismo e o pluralismo130 são indignos de análise, pois

são comparáveis aos “epiciclos” da ciência antiga: tentativas de adaptação da nova ordem

emergente ao antigo sistema. Hick parece conceber somente a existência de dois extremos

paradigmáticos, o exclusivismo e o pluralismo, tanto que prefere ignorar as alternativas

intermediárias, mesmo as mais arrojadas. Teixeira (2002c, p. 56-57), teólogo inclusivista

aberto, tentando entender, a partir da ótica pluralista, tal posicionamento, afirma:

Mesmo a perspectiva inclusivista é apreciada pelos teólogos pluralistas como insuficiente, ao não avaliar as outras tradições religiosas por si mesmas, mas sempre com a ‘unidade de medida do cristianismo’, bloqueando, assim, qualquer possibilidade de verdadeiro dialogo inter-religioso.

A questão que subjaz a essas afirmações é a da unicidade de Jesus Cristo como único

mediador entre Deus e a humanidade, perspectiva amplamente relativizada pelos pluralistas e

parcialmente pelos inclusivistas.

Dupuis (1999a, p. 253), contrapondo-se à visão de Hick, aborda a questão da

unicidade sob dois aspectos: ela pode ser “relativa”, no sentido de que qualquer pessoa ou

tradição religiosa é “única” e “singular” pelo próprio fato de ser diferente das outras ou, numa

segunda acepção, mais restrita, indicando, ora uma “unicidade única”, ora uma “unicidade

singular”. Para esse autor, tanto a unicidade única (risco de um exclusivismo estreito) quanto

a unicidade relativa (risco de reducionismo), dois extremos opostos, são perigosos. A

alternativa abraçada por Dupuis é o cristocentrismo aberto que, segundo ele (1991a, p. 146),

130 O questionamento que o autor da presente pesquisa poderia fazer aos adeptos do paradigma pluralista refere-se à questão da identidade em construção. Apesar de bastante aberta, sua concepção identitária estaria ainda em construção? A extrema aproximação das identidades religiosas, tão perceptível no mundo pós-moderno, estaria sendo considerada pelos pluralistas? Essa arrumação, mais teórica que observável na prática, não estaria ignorando os embates e conflitos existentes no dia-a-dia das religiões?

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“representa, provavelmente, a única estrada para uma teologia das religiões verdadeiramente

digna deste nome”.

De que forma se manifesta este cristocentrismo aberto, do qual Dupuis é um eminente

representante? Quais são seus desdobramentos? De que forma se configura sua proposta de

abertura às demais religiões sem que, no entanto, se caia no exclusivismo estreito nem no

reducionismo relativista? É o que se tentará observar a seguir.

3.2 O inclusivismo aberto

O modelo inclusivista, denominado por Teixeira (2002c) de “inclusivismo aberto”,

busca responder positivamente à questão da diversidade das religiões, “aceitando a

interlocução fecundante do pluralismo” (TEIXEIRA, 2002c, p. 77). De tal interlocução,

surgem pontos comuns e, também, questionamentos mútuos. O reconhecimento de valores

intrínsecos às demais tradições religiosas,131 a grande abertura ao diálogo inter-religioso e a

negação de uma atitude fundamentalista são alguns pontos de aproximação, sendo que as

maiores crispações giram em torno dos seguintes temas: identidade cristã, relativismo,

unicidade de Jesus Cristo, reserva escatológica etc.

O inclusivismo aberto, no entanto, assim como o pluralismo, não se constitui em um

bloco monolítico de posicionamentos. Além de estar em evolução constante, comporta

diferentes matizações. Aebischer Crettol (2001) propõe uma subdivisão do paradigma

inclusivista em duas vertentes principais: “cristologia inclusivista constitutiva” (o mistério de

Cristo nas religiões) e “cristologia inclusivista normativa” (o mistério de Cristo no contexto

131 Na expressão de Teixeira (1998a), valores irredutíveis e irrevogáveis.

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das religiões). Na primeira, estariam, entre outros, Jean Daniélou (a teoria do acabamento),

Karl Rahner (a teoria dos “cristãos anônimos”) e Jacques Dupuis (uma cristologia trinitária e

pneumática), enquanto, da segunda, fariam parte Hans Küng (uma teologia ecumênica), Hans

Kessler, Karl-Josef Kuschel (perspectiva cristológica quenótica e/ou escatológica), Andréas

Rössler (um modelo de gradação e de um universalismo fundado sobre o símbolo de Cristo) e

Gavin D’Costa (uma cristologia trinitária). Nessa divisão, proposta pela autora, é a

constitutividade de Cristo, basicamente, que traça a separação dos dois grupos mencionados.

O primeiro acredita que Cristo é constitutivo na ordem das relações entre Deus e os homens,

enquanto para o segundo grupo, a figura de Cristo é apenas normativa, não constitutiva.

Relacionando-se as subdivisões propostas por Aebischer-Crettol (2001) e Schineller

(1976), acerca do inclusivismo e pluralismo, respectivamente, observa-se uma enorme

proximidade entre os pensadores “inclusivistas normativos” (AEBISCHER-CRETTOL, 2001)

e os “pluralistas normativos” (SCHINELLER, 1976).

Trazendo Knitter à baila e juntando-o também aos dois autores relacionados, é

interessante notar sua menção (1998, p. 65) ao termo “inclusivismo pluralístico”. Utiliza-o

para definir a posição de Ogden132 que, para Knitter, busca encontrar um terreno intermediário

entre os inclusivistas e os pluralistas. Ao cunhar essa expressão, Knitter parece ter

vislumbrado uma proximidade reflexiva, um ponto de contato entre fazeres teológicos

diferentes.

132 OGDEN, Schubert. Is There Only One True Religion or Are There Many? Southern Methodist Press: Dallas, 1992. Essa é a obra analisada por Knitter.

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Esta pesquisa considera como expressões mundiais133, importantes na linha de

pensamento inclusivista aberto, os teólogos Andrés Torres Queiruga, Michael Amaladoss,

Edward Schillebeeckx, Claude Geffré e Jacques Dupuis.134 À guisa de esclarecimento dessas

diferentes matizações presentes no campo reflexivo inclusivo cristocêntrico aberto, serão

expostas, sucintamente, as linhas gerais que norteiam o arcabouço teórico desses seus

principais representantes, no que diz respeito às suas reflexões acerca da diversidade religiosa

do mundo.

Num espectro imaginário demonstrativo do processo reflexivo representado pelo

inclusivismo, que iria da teoria do “acabamento” (DANIÉLOU) às posições mais arrojadas do

cristocentrismo aberto, mais próximas da fronteira entre inclusivismo e pluralismo, apenas

com o cunho didático, e no sentido de mostrar o amplo leque de idéias reinantes nessa

posição,135 Torres Queiruga136 poderia ser situado mais próximo a Rahner, um lugar bastante

133 No Brasil despontam, trabalhando a temática do diálogo inter-religioso, só que em campos diferentes do inclusivismo cristocêntrico, o jesuíta Mário de França Miranda e Faustino Teixeira. Esse último, com uma constante e profícua produção reflexiva acerca da temática em questão, tornou-se, no caso brasileiro, a vanguarda da reflexão inclusivista aberta, conseguindo, no entanto, manter-se fiel às suas origens identitárias cristãs. Afirma (2002a, p. 13), de forma bastante aberta e honesta, que “a forma como o cristianismo ao longo da história interpretou sua verdade e singularidade nem sempre possibilitou uma salutar abertura ao horizonte da alteridade. A ênfase recaiu sobre a pretensão de domínio e posse absoluta da verdade, garantida pela observância de uma ortodoxia muitas vezes impiedosa”. Alternativamente a essa tendência histórica, afirma (1998a) a irredutibilidade e irrevogabilidade de valores das religiões. Diferença básica e fundamental de suas reflexões em relação às de França Miranda está na sua aceitação e admiração pelo “pluralismo de princípio”, conceito bastante criticado pelo teólogo jesuíta. 134 Outros autores estão, atualmente, debatendo a questão da alteridade religiosa no mundo e as possibilidades de diálogo entre as religiões. Os autores aqui arrolados foram escolhidos por seu pioneirismo ou por serem referências na área em questão. 135 A ‘catalogação’ é apenas didática, por questões acadêmicas de compreensão e para os objetivos deste trabalho, pois, ordenações, maniqueísmos, linearidades e dualidades à parte, na condição pós-moderna (Lyotard, 1998), explicações totalizantes e rígidas dão lugar às incertezas, entroncamentos, interpenetrações etc. No caso dos autores arrolados, além de uma evolução da linha de pensamento, observam-se ora avanços, ora recuos, dependendo da temática em pauta. 136 Foi dito, na nota anterior, que os autores arrolados nesse debate possuem uma obra escrita dinâmica, ou seja, além de uma evolução da linha de seu pensamento, observam-se neles ora avanços, ora recuos, dependendo da temática em pauta. É o caso, particularmente, de Torres Queiruga, que vem atualmente avançando bastante em suas reflexões, situando-as, inclusive, na arena da pós-modernidade. Não sem razão, seu nome consta no terceiro capítulo desta pesquisa, quando se abordam as possibilidades de aproximação entre o discurso teológico e a pós-modernidade.

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aquém daquele que ocuparia Jacques Dupuis, 137 esse mais próximo da fronteira

paradigmática, estando entre eles Michael Amaladoss, Edward Schillebeeckx e Claude

Geffré, mais ou menos nessa ordem.138

O teólogo sistemático Andrés Torres Queiruga (1997, p. 20), diante das três

alternativas teológicas formais normalmente apresentadas, os paradigmas exclusivista,

inclusivista e pluralista, justifica-se ao assumir a segunda posição:

A concepção que aqui tentamos expor move-se decididamente na órbita da segunda postura. Não por um afã formalista de mediação abstrata, e sim porque o inclusivismo parece responder muito bem, ou ao menos suficientemente bem, às preocupações legítimas do respeito e da abertura aos demais, sem para tanto ceder à vertigem do relativismo.

Em suas reflexões acerca da atual diversidade religiosa do mundo, Torres Queiruga

(1997, p. 33) prefere “encontro” a diálogo, pois esse termo, segundo o autor, “pode ter uma

conotação de verdade que já se possui e que se negocia com o outro”. É perceptível a abertura

do autor na afirmação, em referência às religiões: num processo vivo, ou seja, dinâmico, e

para fazer jus a essa característica, a reflexão, “ao buscar-se a si mesma encontra-se com

outros processos que a obrigam a inverter sua postura, reconsiderando-a sob nova luz”

(TORRES QUEIRUGA, 1997, p. 10). Uma maior abertura nessa questão não é possível,

segundo o autor (1995, p. 195), se não se faz uma revisão do próprio conceito de revelação.

Essa, com a consciência atual do pluralismo religioso, não pode mais ser concebida da forma

tradicional exclusivista, como “clausura” ou “depósito” estático. Sensibilizado com a questão

da necessidade do diálogo inter-religioso, o autor (1995, p. 195), tentando uma remodelação

137 O distanciamento, por parte de teólogos cristocêntricos atuais, das posições iniciais de Rahner não configura, é bom que se esclareça, um rompimento total com as concepções desse teólogo. Todos, independentemente do lugar ocupado neste proposto espectro imaginário, “bebem”, inicialmente, das considerações teológicas rahnerianas, afastando-se dele, posteriormente, em suas reflexões específicas. 138 Quanto mais os autores estejam distantes “ideologicamente” das idéias preconizadas por Daniélou, ou seja, mais próximos da fronteira entre inclusivismo e pluralismo, mais críticas receberão do magistério diretivo católico. Esse magistério, como já se aventou neste texto, comunga ainda das idéias iniciais do inclusivismo tradicional, aquelas que se referem à teoria do “acabamento”. Explicam-se, à luz dessas considerações, as recentes admoestações ao teólogo belga Jacques Dupuis por parte da Congregação para a Doutrina da Fé.

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do conceito de revelação, afirma que essa “não consiste num estático sempre aí, senão num

‘sempre aí’ dinâmico que se atualiza constantemente no novo de sua realização através da

liberdade do homem e de sua história”.

A revelação não é compreendida como uma “intervenção” de Deus que, dessa forma,

estaria sempre a “entrar” na vida do homem, como um ornamento postiço. Ela é a presença

viva desse Deus no humano, desde sempre, não tendo, pois, a necessidade de nele “chegar”

(TORRES QUEIRUGA, 1995, p. 154-155). Cabe ao homem apenas dar-se conta, abrir os

olhos, precaver-se (TORRES QUEIRUGA, 1993, p. 178). Essa infindável intimidade de Deus

para com o humano traz para a revelação uma singular dinâmica de gratuidade, abrindo

possibilidades inusitadas para o diálogo inter-religioso. O gratuito, segundo Torres Queiruga

(1997, p. 10), não comporta um Deus revelado “como possessão própria [ou como] salvação

exclusiva, e sim [revelado] como Aquele que mantém sua transcendência gratuita e

intrinsecamente destinada a todos”.

O tema em pauta é o da universalidade. Torres Queiruga (1997, p. 12), amparando-se

nas reflexões de Schillebeeckx (1981), afirma que, assim como “não existe uma

universalidade abstrata”, podendo essa somente realizar-se “através de uma mediação

particular”, também a revelação não se dá de uma forma isolada. A tradição bíblica não é “tão

divina” a ponto de poder prescindir dos limites humanos nem as demais religiões “tão

humanas” de forma que não transpareçam em si nada do divino. Dessa forma, “hoje é um fato

evidente que a revelação bíblica não constitui uma realidade tão à parte que a distinga

totalmente das demais religiões, nem que estas devam contar com ela para experimentar a

presença salvífica de Deus” (TORRES QUEIRUGA, 1997, p. 13).

Aqui, a questão que se coloca é a da unicidade de Jesus e da revelação de forma plena.

Como já explicitado neste espaço, essa é a principal diferença existente entre autores

pluralistas e inclusivistas. A plenitude histórica da revelação se daria somente no cristianismo

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ou, também, nas demais religiões? Torres Queiruga esforça-se por afastar-se tanto da

denominada “universalidade de conquista” quanto da universalidade que “nivela todas as

experiências reveladoras”. Esforço, aliás, empreendido, com graus variáveis de abertura, por

todos os inclusivistas cristocêntricos abertos. Exatamente por isso continuam

cristocêntricos!139 No caso de Torres Queiruga (1997, p. 27) existe a convicção de que a

plenitude única e definitiva está em Cristo, pois nele o encontro entre Deus e os homens

aconteceu de modo insuperável e total. Essa unicidade de Cristo, para esse autor, tem a

seguinte característica: é a “culminação” da revelação de Deus, mas, ao mesmo tempo, não a

esgota; essa pode fazer-se presente também nas demais religiões, constituindo-se, portanto, a

revelação em Cristo “uma plenitude relativa e aberta”.

Não se pode esquecer, lembra Torres Queiruga (1997, p. 27), da humanidade de Jesus,

de forma que ele “foi também receptor da revelação”. Somente a partir da ressurreição é que

se desvela o significado pleno de sua revelação. Essa, segundo o autor (1997, p. 27),

realiza-se numa difícil dialética de pertença e não-pertença à história. Não-pertença, porque o ressuscitado ‘vai ao Pai’, escapando radicalmente de nossa adequada compreensão. Pertença, porque, apesar de tudo, ‘permanece’, dando-se-nos a conhecer em nossa história e mantendo-nos abertos à plenitude em que ele agora vive.

Tendo essas reflexões como fundamento, Torres Queiruga (2001) introduz, em

escritos mais recentes, o conceito de “universalismo assimétrico”; na sua perspectiva, uma

alternativa tanto ao inclusivismo quanto ao pluralismo. O universalismo quer afirmar que

todas as religiões podem ser caminhos reais de salvação, expressões vivas da presença

universal e irrestrita de Deus, que a ninguém favorece ou discrimina. O assimétrico fica por

139 Segundo Torres Queiruga (1997, p. 25), somente um cristocentrismo mal entendido pode constituir-se em “obstáculo insuperável”. Para esse autor (2001, p. 348), uma compreensão equivocada do cristocentrismo seria, fora do âmbito de uma “linguagem confessante”, negar a possibilidade de conhecimento de Deus fora de Jesus Cristo.

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conta da natureza humana, em sua dinâmica antropológica, que explica as diferenças

existentes entre as religiões, independentemente da vontade de Deus.140

O segundo autor aqui retratado, também referência no inclusivismo aberto, é Michael

Amaladoss, teólogo jesuíta indiano. Descontente com as alternativas inclusivista e pluralista,

a primeira por resvalar num exclusivismo que mantém em segundo plano as demais religiões

e a segunda por não levar a sério as religiões, subestimando suas reais diferenças e

contradições, propõe (1993a) um modelo entre elas. Sem romper com o inclusivismo e

consciente das manifestações plurais de Deus na história, afirma (1993b) que o novo modelo

deve passar pelo reconhecimento da presença ativa e operante da vontade redentora universal

de Deus, pois esse manifesta-se em toda parte e de forma diversificada. Nas bases desse

modelo, está também a necessidade da consciência de que o projeto de Deus realiza-se

progressivamente na história, unificando todas as coisas.

Para Amaladoss (1993a, p. 97), “é sempre Deus quem salva, não as religiões. A pessoa

se salva numa religião e através dela, mas não é salva por ela. As religiões são simples

mediações, que tornam presente o amor salvífico de Deus, mas não o substituem”. A

afirmação dessa universalidade gratuita de Deus não induz ao relativismo, segundo o autor

(1998, p. 246). Relativismo seria “dizer que para cada um de nós em concreto é indiferente ser

cristão, hindu ou muçulmano, porque todos os caminhos levam a Deus". Se é verdade “que

todos os rios levam ao mar”, isso não é válido “para uma mesma pessoa”, ou seja,

continuando na simbologia geográfica, o que importa para as águas de um determinado rio,

que corre celeremente para o mar, é o seu leito, aquele que lhe proporciona essa possibilidade,

sem desconhecer, é claro, a existência de outros leitos.

Baseando-se nas reflexões de Geertz (1989), Amaladoss (1996, p. 27) considera

empiricamente a religião, entendendo-a como um sistema de símbolos. A simbologia

140 Mais recentemente ainda, Queiruga avança uma discussão acerca das possibilidades da vivência religiosa cristã na pós-modernidade. O capítulo terceiro da presente pesquisa contemplará esse aspecto de suas reflexões.

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religiosa, traduzida por palavras, relatos, gestos, objetos, pessoas e ações, é “fundamental para

a religião e a fé. Sem ela, a fé ficaria desincorporada, sem raízes na humanidade e na

comunidade”. Esses símbolos religiosos, eficazes, porém limitados, por estarem vinculados ao

nível dos sentidos, são “mediadores de transcendência”, apontando sempre para algo que está

além de sua representação. O cristianismo é “um dos modos simbólicos mediante os quais o

amor de Deus torna-se manifesto e ativo entre os homens (AMALADOSS, 1993b, p. 118)”.

Sem exclusividades, as demais religiões também podem constituir-se em singulares

mediações simbólicas.

A pergunta sobre se essa universalidade salvífica não minaria a unicidade de Cristo, no

caso indiano, onde o cristianismo é minoritário, ganha uma roupagem ainda mais realista e o

próprio Amaladoss (1993b, p. 89-90) a expressa: "Se ajudarmos hindus e muçulmanos a

crescerem em sua fé não falharemos na missão de proclamar que seu salvador é Jesus Cristo?

Como entendemos quem é ele e qual o seu papel salvador, principalmente em outras

religiões?”. Sua resposta (1993b, p. 153-154) parte do pressuposto, bastante controverso nos

meios teológicos, de que “Jesus é Cristo, mas Cristo é mais do que Jesus”.141 Jesus, mesmo

constituindo-se em uma expressão particular e específica, é somente o “símbolo do Cristo-

mistério”, estando esse em ação por toda parte, manifestando-se numa grande multiplicidade

de outros símbolos. No entanto, somente em Jesus Cristo este “Cristo desconhecido” torna-se

humano, ativo e corporalmente presente. Assim como o Cristo se deu a conhecer aos poucos

aos seus discípulos, sendo que seu aspecto divino só veio à tona após sua ressurreição, a

pessoa mesma do Cristo também “está em processo na história, ao mesmo tempo em que a

transcende” (AMALADOSS, 1993a, p. 100). Daí, a conclusão do autor (1993b, p. 120) de

que, ao se falar em “dois tipos de presença e ação”, Jesus histórico e Cristo da fé, Jesus da 141 O teólogo do Sri Lanka, Tissa Balasuriya (1995, p. 103), um caso menos conhecido de repreensão eclesial católica, concorda com Amaladoss ao afirmar que "para nós Jesus é divino, mas Jesus não é plena e totalmente Deus. Jesus é de Deus e Deus está com Jesus. Jesus manifesta Deus, como Pai que ama a todos. Jesus não esgota Deus; Deus não pertence a Jesus de modo tal que Deus não possa manifestar a divindade antes e depois de Jesus".

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história e Cristo cósmico ou pólo divino e humano, faz-se referência à mesma pessoa, mas

“não à mesma dimensão de sua personalidade e esfera de ação”.

O Jesus da história possui limites provenientes da sua condição humana, histórica e cultural, determinadas por uma escolha sua. Mas foi neste Jesus que a ação de Deus, na sua forma de Pai, Filho e Espírito, tornou-se manifesta. O Cristo alcançará a plenitude somente no último dia, quando todas as coisas serão reconciliadas (AMALADOSS, 1993b, p. 153-154).

Esta amplitude cósmica pode evitar, segundo o autor (1993a, p. 101), que se “isole a

ação de Deus em Jesus”, abrangendo, de outra feita, toda a história, com suas múltiplas

manifestações divinas, mesmo anteriores a Jesus.142 Cristo somente é a “última palavra” com

relação ao seu aspecto divino, pois sua plenitude, paulatinamente verificada ao longo da

história da salvação, será totalmente alcançada quando nele forem reunidas todas as riquezas

que Deus comunicou ao mundo.

Edward Schillebeeckx, teólogo holandês nascido em 1914, citado e reconhecido por

praticamente todos os autores que militam na área, é o terceiro nome inclusivista aberto, aqui

arrolado. Na terceira parte de sua trilogia cristológica (1980, 1981, 1994), aparecem mais

claramente suas reflexões acerca do pluralismo religioso, apesar de sua obra não estar inserida

na teologia das religiões, havendo, no entanto, coincidências pontuais. Considerado por

Teixeira (2002c, p. 122) como “certamente um dos maiores teólogos deste século”, foi o

primeiro a mencionar o “pluralismo de princípio” (1994, p. 243).

Sua reflexão (1994, p. 217-218) vai no sentido de que a identidade cristã, seu mote

principal, seja configurada de tal forma que permita ao cristianismo “reportar-se corretamente

às outras religiões: sem absolutismos ou relativismos, de uma parte, e sem discriminação ou

sentimento de superioridade, de outra”. O autor (1994, p. 24) utiliza a expressão

“imperialismo religioso e cultural” para definir a relação do cristianismo com as demais

142 Amaladoss refere-se às alianças cósmica e mosaica.

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religiões ao longo da história. Isso porque os valores presentes naquelas religiões eram

taxados de valores cristãos, roubando-lhes sua identidade própria.

À pergunta sobre como avançar nessa delicada questão, Schillebeeckx (1994, p. 218-

219) responde, reportando-se a uma categoria interna ao próprio cristianismo: Jesus anuncia o

Reino e não a si mesmo.143 Isso se deve ao fato de que

o que é peculiar, singular e único no cristianismo é justamente o fato de que a vida e essência de Deus encontram-se nesta particularidade histórica e limitada, que é Jesus de Nazaré, a quem os cristãos confessam como a manifestação humano-pessoal de Deus: uma manifestação ‘singular e única’, mas também ‘contingente’, ou seja, histórica e, assim, limitada, do dom salvífico de Deus a todas as criaturas.

Sua ênfase está centrada na discussão da historicidade de Jesus, algo fundamental na

relação do cristianismo com as demais religiões do mundo. Para Schillebeeckx, a humanidade

de Jesus não é algo apenas aparente, como consideram alguns, sendo que estar consciente

disso pode proporcionar uma abertura religiosa nunca dantes imaginada. Em suas palavras

(1994, p. 219-220),

sabemos melhor, por esta revelação de Deus em Jesus, que nenhuma singularidade histórica pode considerar-se absoluta e, por isso, por causa da relatividade presente em Jesus, toda criatura humana pode encontrar a Deus também fora de Jesus, a saber, em nossa história concreta e nas diversas religiões que nela surgiram.

Jesus não pode, defende o autor (1994, p. 24), por causa dessa sua contingência e

limitação, “representar toda a riqueza de Deus”. Sua principal característica, ou seja, o traço

mais essencial de sua identidade, aquilo que o simboliza, é a atitude de abertura. Com isso, o

pluralismo religioso, longe de ser algo maléfico ou problemático, apresenta-se como um

fenômeno rico e fecundo, encontrando sua explicação no próprio cristianismo. Essa

pluralidade religiosa do mundo, segundo o autor (1994, p. 220-221),

143 Ducquoc (1985b, p. 71) chega a afirmar, nesse sentido, que “o Espírito sopra onde quer, e que Jesus nunca pretendeu que soprava apenas nele”.

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não se deve eliminar historicamente por princípio, é internamente nutrida e sustentada por uma unidade não mais tematizável nem praticável expressamente dentro de nossa história: ou seja, a unidade de Deus (pelos cristãos confessado como trinitário), enquanto essa unidade transcendente se espelha nas imanentes semelhanças de família entre essas religiões [...].

Com essa defesa do pluralismo religioso, Schillebeeckx está já refletindo acerca do

que ele denomina de “pluralismo de princípio” (de direito). Através dele, o cristianismo se dá

a conhecer mas também, humildemente, aprende e se sente desafiado pelos valores

vivenciados pelos outros. No entanto, na base dessa atitude está o reconhecimento e admissão

de que “Deus é muito rico e acima das determinações, para poder deixar-se exaurir na sua

plenitude por uma determinada tradição de experiência religiosa, sempre determinada e

limitada” (SCHILLEBEECKX, 1994, p. 219-220), qualquer que seja ela.

Na esteira dessa grande valorização da pluralidade religiosa, considerada inclusive

como algo inerente à vontade de Deus, Schillebeeckx (1994, p. 29-30) propõe, em

substituição ao exclusivista adágio “fora da Igreja não há salvação” e repensando a tese

inclusivista de que “fora de Cristo não há salvação”, “uma tese mais radical ainda”

(TEIXEIRA, 1975, p. 92), resumida na expressão “‘extra mundum nulla salus’, fora do

mundo dos homens não há salvação”. Na explicação do próprio autor (1994, p. 14), “quem

ofende e profana este mundo comete, sob o ponto de vista teológico, um pecado contra o

Criador do céu e da terra, contra Aquele que muitos indivíduos chamam, ainda que com

nomes diferentes, Deus”.

Prosseguindo com a tentativa de elucidação do campo reflexivo da vertente aberta do

inclusivismo cristocêntrico, através de seus ícones mais representativos, vem à luz neste

momento um breve resumo da trilha proposta por Claude Geffré, teólogo francês nascido em

1926. A hermenêutica é a sua mola propulsora rumo a uma visão aberta e positiva acerca do

pluralismo religioso.

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Propondo uma “interpretação criativa do cristianismo”, sem receios de que esse esteja

sempre sob o “risco da interpretação”, o autor (1983, p. 6) vislumbra dois momentos

importantes e inseparáveis na evolução cristã: a experiência cristã fundamental e a sua

releitura. Os escritos do Segundo Testamento são a fonte do primeiro momento, enquanto a

tradição e a experiência histórica contemporânea, o palco do segundo. A não ser que se queira

fazer teologia dogmática, não cabe um rompimento desses dois momentos, lançando-se o

olhar apenas para a história passada de uma religião, explicando exclusivamente os dados

imutáveis da fé. Como “empreendimento hermenêutico” (GEFFRÉ, 1983, p. 6), a teologia

olha os textos da tradição da fé, porém interpretando-os à luz do tempo presente.

Nesse novo arcabouço teológico, nessa nova maneira de se fazer teologia, a

historicidade é peça fundamental (GEFFRÉ, 1989). Tanto a verdade, mesmo a revelada,

quanto o seu intérprete humano são historicamente determinados e localizados. É por esse

motivo que a mensagem cristã deve ser constantemente reatualizada, pois novas situações

históricas surgem e, com elas, inéditos e singulares aspectos culturais estarão sempre a exigir

o pronunciamento e a ação dialogal do cristianismo.

Na teologia das religiões, Geffré coloca-se numa posição eqüidistante tanto do

inclusivismo tradicional quanto do teocentrismo pluralista. Afasta-se do primeiro por causa de

seu traço de “imperialismo cristão” e do segundo pelo seu questionamento radical da

unicidade de Jesus Cristo. Na sua opinião (1997, p. 125), não pode ser desfeito o “liame único

entre o evento Jesus Cristo e a manifestação decisiva e definitiva de Deus”, algo inerente à

identidade do cristianismo.144 De outra feita, para se chegar a um cristianismo dialogal, o

melhor é, justamente, aprofundar a cristologia. Com isso, olhando-se para “o centro da própria

fé cristã, quer dizer, à irrupção de Deus na particularidade de Jesus de Nazaré, [é] que se tem

mais chance de fazer a prova do caráter não exclusivista do cristianismo”.

144 Para Geffré (1997), o cristianismo constitui testemunho privilegiado, apesar de não exclusivo, das ricas manifestações do religioso.

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Como já se observou em Schillebeeckx, Geffré (1999, p. 137-139) também reporta-se

ao pluralismo de princípio. Coerente com sua proposição hermenêutica, o pluralismo religioso

atual não é entendido apenas como um dado conjuntural e passageiro, uma fase histórica

provisória ou uma cegueira culpável dos seres humanos mas como realidade de direito,

“expressão mesma da vontade de Deus, que necessita da diversidade das culturas e das

religiões para melhor manifestar as riquezas da plenitude da verdade, que coincide com o

mistério mesmo de Deus”. Essa sua releitura hermenêutica permite olhar o significado do

pluralismo religioso no desígnio misterioso de Deus como “dom de Deus aos povos”,

possibilitando, com isso, falar-se em teologia do pluralismo religioso, ao invés de teologia das

religiões.

Essa teologia inter-religiosa (GEFFRÉ, 1989), acreditando que Deus bendiz o múltiplo

(Gn 10, 31-32) e reconhecendo o valor do pluralismo religioso como expressão da vontade de

Deus, faz uma nova avaliação do lugar ocupado pelas religiões no projeto salvifico de Deus.

Percebe-se, de um lado, a consciência da particularidade histórica do cristianismo e, de outro,

a grande vitalidade das tradições religiosas. No limiar do terceiro milênio, o desconhecimento,

ou a negação desses fatos, denota uma caminhada na contramão da história religiosa dos

povos.

Com base na reflexão dos padres da igreja acerca da presença universal do Logos,

Geffré (1985) preconiza, nessa história religiosa, a existência de uma única história universal

da salvação, dentro da qual conviveriam as diversas economias de salvação das diferentes

religiões. Da mesma forma, assim como a história da salvação não está circunscrita a Israel ou

à igreja, também a revelação pode ser considerada de uma forma diferenciada. Sem

comprometer a unicidade de Jesus Cristo, enquanto manifestação da verdadeira face de Deus,

o autor (1997) afirma a possibilidade de percursos diferenciados, convergentes e

complementares rumo à mesma meta comum. Os cristãos crêem que a revelação em Jesus

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Cristo foi plena, no entanto essa é uma plenitude qualitativa e não quantitativa,145 de forma

que, mesmo após a realização do evento histórico de Jesus de Nazaré, Deus continua

revelando-se por meio dos sábios e profetas das demais tradições religiosas.146

A verdade religiosa sobre Deus não pode, com isso, ser monopolizada pelos cristãos.

Contrariamente, afirma Geffré (1998b, p. 67), “há mais verdade de ordem religiosa no

concerto polifônico das religiões do mundo que no cristianismo, considerado em sua

exclusividade”.

Distanciando-se do conceito de cristandade, Geffré (1999, p. 147-148), baseando-se no

pensamento de Panikkar, fala em “cristianidade”, de forma que a humanidade inteira estaria

vivendo sob o signo do Espírito de Deus e marcada pela presença latente do mistério de

Cristo. Se a cristandade sugeria a expansão histórica do cristianismo a todas partes do mundo,

cristianidade supõe a presença da graça na humanidade em todos os tempos, desde seu mais

remoto alvorecer. Partilhar essa cristianidade, segundo Geffré (2001, p. 115), é partilhar os

valores crísticos, algo bastante diferente, enfatiza o autor, de valores “implicitamente

cristãos”. Falar em universalidade do cristianismo somente seria possível no contexto desses

valores crísticos, pois esses não se reduzem ao cristianismo histórico nem à humanidade

particular de Jesus de Nazaré. A tentativa de universalização desses últimos, como queria a

cristandade, equivale ao esquecimento ou à não aceitação de que o "irredutível e irrevogável"

(TEIXEIRA, 1998a, p. 55) de cada tradição religiosa não pode ser descaracterizado como

algo “implicitamente cristão”.

Se a antiga aliança jamais foi revogada com a vinda de Jesus Cristo, algo, hoje,

amplamente aceito nos debates teológicos e manifesto claramente por João Paulo II, em 1980,

por que não considerar a mesma possibilidade com relação às demais religiões? Na expressão

145 Geffré assume o posicionamento de Dupuis acerca da plenitude não quantitativa da revelação em Jesus Cristo. 146 Segundo Geffré (1998a, p. 138), o que “conserva o caráter de algo inacabado” à revelação cristã é a sua dimensão escatológica.

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de Geffré (1997, p. 133): “Assim como a Igreja nascente não integrava nem substituía as

riquezas do povo de Israel, assim, também hoje, o cristianismo histórico não pode ter a

pretensão de integrar e substituir as riquezas autênticas das outras tradições religiosas”. Com

isso, o que se propõe na verdade é uma substituição de uma compreensão abrangente e

totalitária do cristianismo, aquela que preconiza o “acabamento” das demais religiões, por

outra, que vislumbre uma transformação e enriquecimento mútuos entre as religiões através

de um “intercâmbio e partilha dos valores salvíficos” (DUPUIS, 1999a, p. 449).

Geffré, como se observa de suas reflexões, encontra-se eqüidistante, assim como seus

companheiros inclusivistas abertos, se bem que de formas e graus diferentes, tanto da “teoria

do acabamento” e dos cristãos “anônimos” quanto da proposição pluralista de nivelamento

entre todas as religiões. Um autêntico diálogo inter-religioso pressupõe, defende Geffré

(1997, p. 127), o reconhecimento não só da pluralidade religiosa mas também da

singularidade das demais tradições religiosas. Esse reconhecimento, por seu lado, torna-se

possível somente com uma nova compreensão da unicidade de Jesus Cristo. Uma unicidade

não mais de “excelência e integração” mas singular e relacional, “que não exclui outras

manifestações de Deus através da história das religiões e das culturas”.147 Essas manifestações

divinas, que imprimem caráter singular e irredutível às demais religiões, fazem dessas,

“mediações derivadas”, não complementares, pois não necessitam de complemento ou

acabamento no cristianismo, mas também não paralelas, pois se encontram animadas pela

potência universal do Logos e pela ação ilimitada do Espírito (GEFFRÉ, 2001, p. 112-113).

Nesse sentido, segundo o arcabouço teórico-teológico de Geffré, a salvação acontece

nas e através das tradições religiosas, lugares de genuína experiência religiosa e, por isso,

mediadoras da graça, apesar de suas ambigüidades históricas. Geffré acredita que, assim como

147 A revelação de Deus na humanidade de Jesus, na compreensão de Geffré, não significa a absolutização de uma particularidade histórica, pelo fato mesmo de sua historicidade. Absoluto, somente Deus! Segundo Schillebeeckx (1994), é exatamente a relatividade presente em Jesus que possibilita que se encontre, também fora dele, o Deus absoluto.

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não se pode nivelar todas as religiões, também seus elementos internos são diferenciados, de

forma que alguns deles podem constituir-se em símbolos salvíficos, enquanto outros não. Para

esse autor (1997, p. 129), a definição sobre se uma religião está ou não sendo uma mediadora

da salvação para os seus membros pode ser dada pela seguinte questão: ela estaria ou não

favorecendo o “descentramento do homem relativamente a algo maior que ele mesmo e

relativamente a outrem”? No campo ético, por exemplo, ela estaria testemunhando em favor

da justiça, da liberdade e da fraternidade? De maneira geral, à luz de suas ricas vivências

religiosas históricas, apesar de suas ambigüidades, e como não é possível “separar a vida

religiosa dos membros das outras religiões das tradições religiosas às quais pertencem, é lícito

concluir que as grandes religiões do mundo contribuem misteriosamente para a construção do

Reino de Deus desejado por Deus entre os homens” (GEFFRÉ, 1997, p. 131).

Finalmente, Jacques Dupuis é convidado a emprestar suas reflexões para a conclusão

deste breve delineamento do campo reflexivo do cristocentrismo inclusivo aberto atual.

Nascido na Bélgica, em 1923, esse teólogo jesuíta teve sua reflexão profundamente marcada

pelos anos em que viveu na Índia, de 1948 a 1984.

Sua proposta para o tema, que ora se discute nesta pesquisa, é a de uma teologia cristã

das religiões. Dupuis (1999a, p. 36) não considera tal tema como mais um da reflexão

teológica, mas como “um novo modo de fazer teologia” no contexto inter-religioso atual. Esse

contexto desafia o discurso teológico a um alargamento de suas reflexões, no sentido de uma

hermenêutica inter-religiosa, objetivando a descoberta das dimensões cósmicas do mistério de

Deus, de Jesus Cristo e do Espírito divino.

Dupuis promove uma distinção fundamental entre plenitude qualitativa e quantitativa

da revelação de Deus em Jesus Cristo; reflexão, como já se afirmou, assumida por Claude

Geffré. A fundamentação de Dupuis (1999a, p. 346) para tal distinção é cristalina:

Se a revelação divina atinge sua plenitude qualitativa em Jesus, é porque nenhuma revelação do mistério de Deus pode igualar-se em profundidade

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àquilo que aconteceu quando o Filho divino encarnado viveu em chave humana, numa consciência humana, a sua própria identidade de Filho de Deus. É isso que aconteceu em Jesus Cristo, e é isso que está na origem da revelação divina que ele nos entrega. Entretanto, essa revelação não é absoluta. Ela permanece relativa. A consciência humana de Jesus, embora sendo a do Filho, é uma consciência humana e, portanto, uma consciência limitada. E não pode ser de outro modo. Nenhuma consciência humana, nem mesmo a consciência humana do Filho de Deus, pode esgotar o mistério divino.

Ao abrir essa trilha, Dupuis descortina, para ele mesmo e para os autores

sensibilizados com esta temática, uma série de possibilidades reflexivas cristãs no sentido de

uma visão mais adequada ao momento atual, no que se refere às tradições religiosas da

humanidade e sua enorme diversidade. A plenitude em Jesus Cristo é qualitativa ou de

intensidade, de forma que nenhuma revelação, antes ou depois dele, pode superar ou igualar-

se ao que nele foi revelado. No entanto, ela não é quantitativa, ou seja, mesmo depois do

evento histórico vivenciado por Jesus, Deus continua a se revelar através dos profetas e sábios

de outras tradições religiosas. Essa compreensão da revelação, como um evento progressivo e

diferenciado, sem abrir mão da unicidade de Jesus Cristo, não única (risco de um

exclusivismo estreito) nem relativa (risco de reducionismo),148 dois extremos opostos e

perigosos,149 considera como “divinas” as palavras dirigidas “aos homens através dos profetas

das nações, das quais encontram-se traços nas sagradas Escrituras das tradições religiosas do

mundo” (DUPUIS, 1991a, p. 242-243).

Essa revelação diferenciada não compromete, acredita Dupuis, a unidade da história da

salvação e da revelação. Ela permanece uma só, perpassando, através da ação universal do

Espírito, por fases diferentes, cósmica, israelita e cristã, que se complementam mutuamente.

Essa complementaridade pode ser reafirmada com relação aos livros sagrados das tradições

148 Dupuis não utiliza o termo absoluto em referência a Jesus Cristo. Para ele (1999a, p. 390), a nenhuma realidade finita pode ser referida tal dimensão, somente a Deus. Fraijó (1999a), em escritos de 1992, publicados no Brasil em 1999, já propunha a substituição do termo “absoluto” por “verdadeiro”. 149 Dupuis (1991a, p. 290) preconiza uma “unicidade complementar” ou “relacional”, onde a unicidade do mistério de Cristo estaria relacionada com outras figuras salvíficas possivelmente presentes nas demais tradições religiosas.

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religiosas, de forma que os valores presentes alhures constituem-se em valores também para

os cristãos. Nesse sentido e em sintonia com as afirmações de Geffré a esse respeito, Dupuis

(1991a, p. 245) enfatiza que

alguns aspectos do mistério divino podem de fato ser melhor revelados nas outras sagradas Escrituras que no próprio Novo Testamento. [...] Por mais que isto possa parecer paradoxal, o contato prolongado com estas Escrituras não bíblicas − praticadas no interior da própria fé − pode ajudar o cristão a descobrir mais profundamente certos aspectos do mistério divino plenamente revelados em Jesus Cristo.

Essa nova avaliação acerca das demais religiões e suas verdades reveladas traz como

conseqüência a possibilidade de reconhecê-las como vias legítimas de salvação para seus

membros, ultrapassando a perspectiva inclusivista tradicional. Segundo Dupuis (1991b, p.

72), “a prática sincera das respectivas tradições religiosas, de certa maneira um veículo, sem

dúvida misterioso, do reencontro pessoal dos homens com Deus em Jesus Cristo, representa,

pois, para os membros de suas tradições, uma ordem de mediação do mistério de salvação”.

Nenhuma religião, em si mesma, acredita Dupuis (1999a, p. 422), é “causa” primária da

salvação, algo aplicável somente a Deus. As religiões podem, no entanto, ser “canais” de

salvação, “caminhos” ou “meios” de comunicação do poder salvífico divino, constituindo-se

em “diversos percursos religiosos”, não paralelos, mas em direção ao Deus uno e trino.

À guisa de conclusão, finalizando esta pequena incursão nos fundamentos do

arcabouço reflexivo inclusivista aberto, através de seus principais expoentes, alguns

comentários se fazem pertinentes. Torres Queiruga (1997, p. 20) mencionou a “vertigem do

relativismo”. Na vertigem, fica-se com a cabeça girando, o chão parece faltar, o ponto de

referência fica fugidio e a tendência é de queda. O campo de manobra é o da segurança

mínima! É o que parece estar ocorrendo no mundo hodierno. A “estrutura de plausibilidade”

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150 das grandes narrativas explicativas, outrora bastante ampla, reduz-se paulatinamente,

trazendo como conseqüência a vertigem que, como se viu, é justamente a falta de um ponto de

apoio consistente.

É o que parece ocorrer também com as religiões. Bastante representativa dessa

tendência é a recente menção ao relativismo, de forma muito veemente, e com tonalidade

exclusivista, talvez reação fundamentalista ao medo151 fantasmagórico da diminuição do

espaço de manobra, em declaração da católica Congregação para a Doutrina da Fé (2000, n.

22, minha ênfase), intitulada “Dominus Iesus”:152

Com a vinda de Jesus Cristo Salvador, Deus quis que a Igreja por Ele fundada fosse o instrumento de salvação para toda a humanidade (cf. Act 17,30-31). Esta verdade de fé nada tira ao facto de a Igreja nutrir pelas religiões do mundo um sincero respeito, mas, ao mesmo tempo, exclui de forma radical a mentalidade indiferentista imbuída de um relativismo religioso que leva a pensar que ‘tanto vale uma religião como outra’.

A expressão desse medo reflete uma postura identitária ainda vinculada por demais à

herança depositada no baú da fé cristã. Este inclusivismo anacrônico – tentativa de ligação do

Deus único a toda a realidade –, que parece ignorar não somente os avanços proporcionados

pelas reflexões posteriores a Jean Daniélou mas a própria diversidade plural religiosa

hodierna, traz no seu âmago a tentativa de uma homogeneidade identificadora, onde os outros

diferentes são moldados sob a própria ótica de quem olha.

150 Segundo Berger (1973), cada mundo, para manter-se "de pé", necessita de uma estrutura que o mantenha. A família, por exemplo, para manter-se como tal, precisa de uma base social que torne natural sua existência. Seus membros vivem tranqüilos, porque existe uma estrutura que torna plausível suas vidas em família. Daí a importância da estrutura de plausibilidade para cada mundo. Ela vai ser o termômetro que medirá o grau de simetria entre as realidades subjetiva e objetiva. Quanto mais plausível for a estrutura de um mundo, mais simétrica será a relação entre as realidades subjetiva e objetiva e, conseqüentemente, a possibilidade de se cair na anomia será menor. No mundo religioso, Berger (1985, p. 59) exemplifica da seguinte forma: "o mundo religioso do Peru pré-colombiano foi objetiva e subjetivamente real enquanto a sua estrutura de plausibilidade, vale dizer, a sociedade inca pré-colombiana, permaneceu intacta". E continua: "pode-se dizer que todas as tradições religiosas, independentemente de suas diversas 'eclesiologias' ou ausência das mesmas, exigem comunidades específicas para que se mantenha a sua plausibilidade". 151 Medo é o “estado afetivo suscitado pela consciência do perigo ou que, ao contrário, suscita essa consciência” (INSTITUTO ANTÔNIO HOUAISS, 2001, minha ênfase). 152 Reações parecidas podem ser vislumbradas em outras tradições religiosas, no entanto, devido aos limites desta pesquisa, não são trazidas à reflexão.

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126

Distantes dessa perspectiva, alguns mais outros menos, como se viu pela exposição

anterior, estão os inclusivistas abertos. Esses, de forma claramente observável, na proporção

direta de seus avanços reflexivos teológicos, constituem-se em alvo das críticas que partem do

setor mais ortodoxo do magistério católico. Eles estariam, na visão desse magistério, alguns

mais que outros, em suas reflexões, relativizando o dado da verdade cristã e valorizando em

excesso os valores das demais tradições religiosas.

Toda a questão parece vincular-se à forma como se olha, percebe-se, concebe-se e

valoriza-se o pluralismo religioso do mundo. Tanto que, em outro lugar, a mesma

Congregação para a Doutrina da Fé (2000, n. 4, minha ênfase) afirma que “o perene anúncio

missionário da Igreja é hoje posto em causa por teorias de índole relativista, que pretendem

justificar o pluralismo religioso”.153 Faz-se necessário, então, lançar um olhar sobre esse

ponto, no sentido de se perscrutar, mesmo que de forma sumária, e compreender o atual

contexto pluralista cultural-religioso, palco das divisões reflexivas teológicas paradigmáticas

e modelares, e as respostas hermenêuticas da teologia cristã a essa nova realidade plural.

Antes, serão arroladas, de forma bastante breve, nuanças histórico-cristãs desse pluralismo

religioso através dos tempos, captadas nas centelhas de percepção e valoração positiva da

diversidade religiosa, alguns lampejos histórico-cristãos de reconhecimento da alteridade.154 É

o que se tentará a seguir.

153 É bom relembrar que o presidente dessa Congregação é Joseph Ratzinger, figura eminente do atual magistério católico que, como já se observou, é considerado por esta pesquisa como estando ancorado ainda na teoria do “acabamento” de Jean Daniélou, cujas conclusões antecedem a teoria rahneriana. É de se compreender, dessa forma, a já explicitada crítica de Ratzinger a Rahner, no sentido de que esse possibilitaria um enfraquecimento do esforço missionário. É de se compreender também, mais ainda, os processos movidos pela Congregação para a Doutrina da Fé, presidida por Ratzinger, contra os teólogos inclusivistas mais arrojados. 154 A existência, ainda em grande escala no mundo atual, momento de grande visibilidade e crescimento das diversas religiões, de críticas à valorização da alteridade religiosa, torna mais premente a necessidade de se resgatar da história religiosa cristã, as manifestações pontuais, acontecidas nos momentos mais adversos, em favor do respeito à diferença. Além de servirem aos autores contemporâneos em suas reflexões acerca da pluralidade religiosa, essas centelhas históricas, por se darem em momentos históricos de mínima “consciência possível” (LUKÁCS apud GOLDMAN, 1967, 1972) da diversidade religiosa, podem ser exemplos àqueles que, neste momento atual de ampla “consciência possível”, estão ainda condenando a importância conferida ao pluralismo religioso.

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127

CAPÍTULO II

A DIVERSIDADE RELIGIOSA E O PLURALISMO DE PRINCÍPIO

[...] a identidade não é acumulada sempre nas

origens, a identidade nunca é algo fechado.

Sua conquista é progressiva e nunca total. O

momento fundacional não esgota as

possibilidades de configuração de um projeto

religioso.

FRAIJO

Considerando-se que noventa por cento dos mais de dois milênios de vida do

cristianismo, em sua vertente católica, foram vividos sob os fundamentos da exclusividade,

veladamente ou às claras, de forma branda ou carregada de nuvens; considerando-se que essa

visão exclusivista percebida ao longo da história eclesial sustentava-se em uma prática

concreta de negação do outro religioso em suas diferenças e em suas possibilidades;

considerando-se que a longevidade e a força dessa visão exclusivista acabaram por moldar um

modo de ser igreja e uma identidade religiosa que só em tempos recentes começaram a ser

questionados; mesmo assim, e apesar disso, devem ser consideradas também as exceções

históricas e/ou teológicas que se fizeram presentes ao longo desta configuração cristã: outrora,

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exceções à regra, centelhas de percepção e valoração positiva da diversidade religiosa,

lampejos histórico-cristãos de reconhecimento da alteridade; mais recentemente, ainda

exceções, mas conquistando espaços cada vez mais abrangentes, francas e corajosas

proposições de reconhecimento da pluralidade religiosa. Proposições essas engendradas a

partir do húmus dos novos tempos culturais de maior conhecimento, aproximação, contato e

reconhecimento dos diferentes povos e suas variegadas culturas e religiosidades.

A diversidade religiosa atual, no entanto, vem de tempos imemoriais. Sua percepção,

em graus diferentes, também. A seguir, serão apresentados alguns momentos histórico-

religiosos pontuais, nos quais cintilaram alguns posicionamentos de abertura frente à

realidade religiosa diversa. Em meio a essas atitudes de abertura, mesmo as reações à

diversidade que se fizeram presentes, e não foram poucas, podem ser tomadas como

consciência da existência do outro, porém, neste caso, sem o conseqüente reconhecimento.

Serão arroladas também reflexões de autores atuais acerca daqueles momentos históricos,

afinal, como já expressou Dupuis (1999a, p. 45), “presente é o resultado do passado, e

nenhuma das novidades que ele possa trazer é capaz de anular sua raízes históricas”.

1 O CRISTIANISMO E A DIVERSIDADE RELIGIOSA

Houve ao longo da história cristã, apesar da grande carga exclusivista, centelhas de

percepção do outro religioso. Subjacente a esses olhares e percepções do outro está a

“consciência possível” (LUKÁCS apud GOLDMAN, 1967, 1972), maior ou menor, da

diversidade religiosa nos diversos momentos históricos arrolados. O importante é notar que

em momentos de relativas ou pequenas possibilidades de consciência, conhecimento e

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reconhecimento, fagulhas de abertura à diversidade existiram. Filhas de seu tempo, e por isso

mesmo, elas foram por vezes mais intensas, às vezes menos brilhantes. Muito contribuíram

para essa diferença de intensidade as possibilidades concretas de se verem as demais religiões.

Sem intenção cronológica nem de abranger todos os fatos, faz-se necessária uma breve

mirada sobre essas percepções histórico-religiosas. Antes, um breve olhar e diálogo de e entre

alguns autores acerca da diversidade presente nas origens judaicas do cristianismo.

1.1 A diversidade religiosa nas origens judaico-cristãs

O olhar sobre as demais religiões mudou muito ao longo da história do cristianismo e,

mesmo antes do surgimento de Jesus Cristo, nas suas raízes israelitas, percebe-se a

convivência com a diversidade religiosa, mesmo que forçadamente, através da negação.

A religião de Israel, em suas origens, foi politeísta. Não é provável que o homem

primitivo agradecesse a chuva benéfica – ou a saúde – e temesse a tempestade arrasadora – ou

a doença – referindo-se ao mesmo deus. Fraijó (1999a) considera insustentáveis as teses de A.

Lang, W. Schmidt e Schelling a respeito do monoteísmo como a forma primitiva de religião.

Os casos de sacerdotes oferecendo incenso a Baal, ao sol, à lua e aos demais astros e a

destruição de imagens e ídolos são freqüentes no Primeiro Testamento. O segundo livro de

Reis 21-23 e Ezequiel 8 confirmam que o templo de Jerusalém tornou-se morada de muitos

ídolos.

Além disso, durante séculos, Israel foi mais monolátrico que monoteísta, ou seja, seu

povo adorava um só Deus, reconhecendo, porém, simultaneamente, a existência de outros

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vários.155 A introdução do culto a Iahweh por Moisés, no século XIII a.C., não contemplava a

exclusividade; ela foi uma árdua conquista dos profetas. A declaração “eu sou Iahweh, teu

Deus, desde o país do Egito. Não deves reconhecer outro Deus além de mim, não há salvador

que não seja eu” (Os 13, 4, minha ênfase) apareceu somente em 750 a.C., exigindo claramente

uma adoração exclusiva. No entanto, só no Dêutero-Isaías é que surgirão afirmações

estritamente monoteístas, onde Javé é reconhecido como o Deus absolutamente único,

expressando claramente pela primeira vez o universalismo religioso. Ao passar para o

Deuteronômio, essa idéia monoteísta alcançou expressão firme e decidida: “Iahweh é o único

Deus. Além dele não existe um outro!” (Dt 4,35). Está inaugurado, de maneira clara, o

universalismo religioso. A fé monoteísta não é mais uma mera monolatria, sendo negada, a

partir desse momento, a existência dos outros deuses (DUPUIS, 1999a).

A fé monoteísta alcançada pelo judaísmo e defendida ao longo de sua história é a que

seria transmitida ao cristianismo e ao islã. Sua conquista passou a ser tão importante a ponto

de se transformar em critério para a formação do cânon bíblico, tendo lugar no Antigo

Testamento somente escritos que defendiam o monoteísmo ou a exclusividade de Javé.

Por não se circunscrever na esfera de uma “monolatria momentânea” (FRAIJÓ, 1999a,

p. 166), o Deus de Israel está a salvo da ameaça de superação. O deus da peste, assim como os

demais, gozava de um culto exclusivo somente enquanto durava a epidemia. Os deuses do

mundo oriental, assim como os homens, não apareciam geralmente como indivíduos, mas

imersos numa rede de parentesco que tinha o matrimônio como célula principal. Adorar um

deus significava adorar também todos os seus parentes. O rompimento dessa dinâmica é a

circunstância que facilitou a exaltação de Javé por sobre todos os deuses adorados na

Palestina. Seu poder não é disputado por filhos nem parentes. O universalismo de Javé, assim

155 Cf. BOTTÉRO, Jean. Nascimento de Deus. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.

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como o de Alá, tem em suas raízes uma ortodoxia permanente que acabará com as

monolatrias esporádicas e implantará o monoteísmo estrito.

O elemento político esteve também presente na gestação do monoteísmo de Israel.

Tanto que o surgimento da idéia de um Deus único que domina o mundo todo se dá

justamente no momento da derrocada do reino de Judá pelo poderio babilônico. Sentindo

faltarem-lhe todas as forças, Israel se apega a um salvador: o Deus único. Claro está que esse

monoteísmo não foi fruto de uma laboriosa reflexão ou da necessidade de respostas

dogmáticas. Suas origens são de índole soteriológica. O que Israel buscava era a sua salvação.

O monoteísmo dogmático entrará em cena só muito posteriormente. Em seu início, ele foi

mais uma teologia da esperança.

G. von Rad (1974, p. 173) insiste em que o Deutero-Isaías, apesar de sua clara

profissão monoteísta e de sua amplitude de horizontes, permaneceu vinculado a um “decidido

particularismo histórico”. Israel e a revelação que recebeu de Deus são o centro da história

universal. Esse atrevimento profético torna-se ainda mais fascinante, quando se constata que

foi engendrado numa situação de extremo desamparo. Pequeno, politicamente derrotado,

tendo os estratos mais importantes de sua população deportados, Israel, justamente nessa

situação, ao invés de se perguntar se os deuses da Babilônia não seriam superiores ao seu – o

que de fato deve ter ocorrido com muitos israelitas –, assiste ao profeta levantar sua voz em

favor da centralidade histórico-universal de seu povo e de seu Deus. Justamente quando Israel

experimenta destruição e desolação, abre-se a idéia do Deus único. “Mas esse Deus único é o

seu Deus” (FRAIJÓ, 1999a, p. 167). Nota-se claramente o particularismo-histórico ao qual se

referia von Rad (1974). Com certeza esse é o motivo pelo qual os historiadores das religiões

consideram como religiões inequivocamente universais somente o budismo, o cristianismo e o

islã, excluindo o judaísmo dessa constelação. Contudo, justiça seja feita, vários elementos da

religião de Israel, entre eles a idéia da criação, a universalidade das promessas e o valor do

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indivíduo ante Javé, plenamente desenvolvidos, foram o germe da universalidade cristã

(VELASCO, 1978).

O povo eleito quer estender a universalidade do amor e do perdão de Deus aos demais

povos. Eles são chamados ao reconhecimento do Deus vivo. Não se sabe, através do Primeiro

Testamento, quantos atenderam a esse chamado; no entanto, essa é a vocação de Israel,

anunciar o Deus vivo a todas as nações, conseqüência de sua principal característica

identitária: a percepção de que foi eleito por Iahweh.

Torres Queiruga (1995, p. 280-300), na tentativa de entender a questão da eleição de

Israel, afirma que “cultivar intensamente apenas um é o melhor meio de alcançar rapidamente

a todos”. Ele se refere ao problema da escolha e sustenta que “o que poderia parecer um

privilégio dos ‘escolhidos’ não é mais que a estratégia de seu amor (o de Deus)”. Sua tese é

exemplificada com a figura do professor (Deus) que deseja que toda a classe entenda seus

ensinamentos, “mas quando em seu esforço [...] [vê] assomar nos olhos de algum aluno o

brilho da compreensão, é certo que fará o possível para apoiá-lo e impulsioná-lo para o fundo

do problema”. O professor procurará, então, intensificar sua relação com esse aluno para que,

através dele, toda a classe progrida. Para Torres Queiruga (1995, p. 280-300), nesse aluno

privilegiado, Israel, “desenvolve-se uma especial sensibilidade em captar a ‘pressão’ religiosa

de Deus sobre a consciência da humanidade”. Isso é possível, segundo o autor, devido à

existência de uma “‘genialidade’ religiosa que permite a captação pioneira” que, no entanto,

adverte, também está destinada aos demais.

Sênior e Stuhlmueller (1985), relacionando o povo eleito com os demais, explicitam a

presença de uma clara perspectiva etnocêntrica: a necessidade de os gentios tornarem-se

hebreus para participarem do status privilegiado de Israel. Fraijó (1999a, p. 210-211), na

mesma linha, mas questionando as afirmações de Torres Queiruga, afirma que a reflexão

desse autor, no que se relaciona ao tema em questão, é “paradigmática daquilo que não deve

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ser feito”. Denota um “etnocentrismo [...] por demais evidente”.156 Mesmo que Israel, fazendo

uma autoleitura religiosa, considere-se o povo escolhido, não seria correto fortalecer sua já

“nada enfraquecida autoconsciência”, lembrando-lhe sua condição de “aluno privilegiado”. Se

é que Deus realmente existe e escolhe, “não seria mais pertinente reconhecer não sabermos

por que razão Deus escolheu Israel?” Como pode ser possível medir a “maturidade religiosa”

de um povo? Como se pode descartar a hipótese da existência de culturas, anteriores a Israel,

“com maior sensibilidade e elevação religiosa que o ‘povo escolhido’”?

Em Panikkar (1988, p. 66), o caminho percorrido parece ter o mesmo sentido: “[...] a

própria idéia de pertencer a um povo eleito, de praticar a verdadeira religião, de ser uma

criatura privilegiada, se me apresentava não como uma graça, mas uma desgraça”.

Schillebeeckx (1994, p. 28) chega a afirmar que “Deus é Deus, e não parte integrante

do mundo”, de modo que “não se identifica com nenhum movimento de libertação e salvação,

sequer com o evento libertador do êxodo do povo judeu ou do surgimento redentor de Jesus

[...]”.

Dupuis (1999a, p. 68), mesmo consciente de que “não há dúvida que Deus se revele na

história de Israel”, pergunta-se, na linha de uma atitude positiva, se Deus não se manifesta

para além das fronteiras de Israel. Manifestação que se daria por sua Palavra e Sabedoria,

bastante evidentes no Primeiro Testamento.

Mesmo no caso da ação do Espírito, apesar de privilegiada em Israel, não poderia,

apesar de pouco evidente no Primeiro Testamento, exercer uma influência universal? “O

156 Em obra posterior (Um Deus para hoje. São Paulo: Paulus, 1998 (original de 1997)), Torres Queiruga, referindo-se ao termo eleição, diz que “na realidade, seria melhor abandonar a palavra, pois se trata de categoria perigosa de que, como repetidamente advertiram os profetas, tendem a apoderar-se a soberba e a vontade de poder para utilizá-la contra os outros”. Mais recentemente ainda (em Fim do cristianismo pré-moderno: desafios para um novo horizonte. São Paulo: Paulus, 2003 (original de 2000)), o autor, demonstrando estar plugado nos tempos em que vive, avança ainda mais em suas reflexões, no sentido de uma melhor compreensão religioso-cristã das atuais possibilidades modernas e pós-modernas do mundo. Mais à frente, detalhar-se-á esse ponto específico de suas elaborações teórico-teológicas.

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espírito do Senhor enche o universo” (Sb 1,7). O livro da Sabedoria (11,24-12,1) abre trilhas

nesse sentido:

sim, tu amas tudo o que criaste, não te aborreces por nada do que fizeste; se alguma coisa tivesses odiado, não a terias feito. E como poderia subsistir alguma coisa, se não a tivesses querido? Como conservaria sua existência, se não a tivesses chamado? Mas a todos perdoas, porque são teus: Senhor, amigo da vida! Todos levam teu espírito incorruptível!

Para Dupuis (1999a), a história é uma história da salvação, sendo essa a história das

relações de Deus com a humanidade. Esse diálogo com todos os homens, iniciado por Deus

na aurora dos tempos, conduz, passando por diversas fases, ao destino que ele escolheu.

Essa diversidade religiosa atual, no entanto, vem de tempos imemoriais. Sua

percepção, em graus diferentes, também. A seguir, serão apresentados alguns momentos

histórico-religiosos pontuais, nos quais cintilaram alguns posicionamentos de abertura frente à

realidade religiosa diversa. Em meio a essas atitudes de abertura, mesmo as reações à

diversidade que se fizeram presentes, e não foram poucas, podem ser tomadas como

consciência da existência do outro, porém, neste caso, sem o conseqüente reconhecimento.

Serão arroladas também reflexões de autores atuais acerca daqueles momentos históricos,

afinal, como já expressou Dupuis (1999a, p. 45), “presente é o resultado do passado, e

nenhuma das novidades que ele possa trazer é capaz de anular sua raízes históricas”.

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1.2 Centelhas de percepção histórico-cristã da diversidade religiosa

Em outros tempos (século II), Ireneu, padre da igreja, que pode ser definido como o

fundador da teologia da história, já falava também de alianças anteriores às de Moisés e de

Cristo.

[...] foram dados quatro testamentos ao gênero humano: um antes do dilúvio, no tempo de Abraão; o segundo depois do dilúvio, na época de Noé; o terceiro, que é a legislação, no tempo de Moisés; o quarto é o que renova o homem e resume em si todas as coisas, aquele que advém com o Evangelho e eleva os homens e os faz voar em direção ao reino celeste (IRENEU, 1979, p. 243).

Sua linha de reflexão passa pela existência de uma linha da história da salvação que

iria do Primeiro Testamento, passando pelo ponto central que é Jesus Cristo, e desembocando

no retorno final de Cristo. Ao mencionar os “homens” que são elevados ao reino celeste, esse

padre da igreja não se refere somente aos cristãos. Continua explícita a aliança com toda a

humanidade. Segundo Cullmann (1965, p. 80), “até os teólogos da escola ‘da história da

salvação’, no século XIX, nenhum teólogo reconheceu, de modo tão claro quanto [...] Ireneu,

que a mensagem cristã está intimamente ligada à história da salvação”. Ele, além de abordar o

significado histórico da economia mosaica, inseriu-a na história da salvação. Ao discorrer

sobre o Logos revelador, presente na criação desde o início e revelando progressivamente o

pai, Ireneu percebe o valor salvífico das religiões pré-bíblicas.

Nos primeiros padres da igreja, as opiniões variam de “uma atitude de abertura em

relação à cultura das ‘nações’ até a sua absoluta condenação” (DUPUIS, 1999a, p. 83).157

Exemplares do primeiro caso são, no século II e início do III, Justino (discorrendo sobre o

157 Maniqueísmos à parte, é bom relembrar que em Ireneu também se encontram momentos de grande fechamento aos demais diferentes. Algumas de suas afirmações são, inclusive, colocadas como sendo alguns dos antecedentes históricos, “ainda que sob formas e interpretações diferentes” (DUPUIS, 1999a, p. 126), do axioma Extra eclesiam nulla salus.

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Logos-semeador na história da salvação), Ireneu e Clemente (o Logos como toda

manifestação pessoal do Pai), teorizações com forte cunho filosófico.

Avançando um pouco mais no tempo, na Idade Média, momento em que o escudo

axiomático exclusivista158 era vigorosamente utilizado na e pela igreja católica, “outras

vozes” (DUPUIS, 1999a, p. 146) também emergiram. O contexto histórico no qual surgiram e

a sensibilidade perceptiva da existência do outro explicam e justificam a menção em função

dos propósitos desta parte da pesquisa.

Em 1076, ninguém menos que o papa Gregório VII, em agradecimento ao rei

muçulmano Anzir da Mauritânia, envia-lhe uma carta. O papa agradecia os presentes

recebidos, a libertação de prisioneiros e a promessa de libertar outros. O que impressiona,

além do fato de uma delegação de cristãos ter sido enviada aos muçulmanos em sinal de

amizade e por tratar-se da figura máxima da igreja, é o trecho da carta que fala que cristãos e

muçulmanos adoram o mesmo Deus: “[...] uma vez que cremos e confessamos um mesmo

Deus, embora de modo diferente [...]” (GREGÓRIO VII apud DUPUIS, 1999a, p. 146).

Pedro Abelardo (1079-1142), em “Diálogo entre um filósofo, um judeu e um

cristão”, narra um sonho, no qual essas três personagens lhe pedem um julgamento acerca dos

valores de suas respectivas posições. O livro termina antes que se chegue ao julgamento

pedido; perpassam, no entanto, esses escritos a mensagem de que o filósofo, o judeu e o

cristão, de maneiras e graus diferentes e diversos, estão à procura de mesmo bem e

reconhecem o mesmo Deus, o Absoluto.

Francisco nasceu em 1181 ou 1182159, em Assis, e morreu em 1226, em Porciúncula,

sua residência preferida. Viveu num momento em que a igreja se atormentava enormemente 158 Na primeira parte desta pesquisa, foi analisado, com detalhes, o adágio católico-romano “Extra eclesiam nulla salus”, em cujos fundamentos estão Cipriano, Orígenes e Fulgêncio de Ruspe, esse, discípulo de Agostinho. Foram detalhadas suas origens, solidificação, conseqüências negativas, significações e resignificações para o reconhecimento das demais religiões existentes. Pela sua extensão significativa e cronológica na vida da igreja católica e do cristianismo em geral, foi abordado em item específico como atitude histórica pontual de fechamento. 159 Segundo Le Goff (2001), não se pode precisar com certeza se o seu nascimento se dá em 1181 ou 1182.

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com a presença islâmica.160 Apesar disso, tentou laços de amizade com muçulmanos.161

Segundo Dupuis (1999a, p. 148), pela primeira vez na história da igreja formulou-se um

método de tratamento com o mundo muçulmano. Um capítulo das regras franciscanas referia-

se especialmente a essa questão: evangelização e aproximação dos muçulmanos. No entanto,

para grande tristeza dessa voz profética, redatores posteriores, para quem os muçulmanos

eram lobos que despedaçavam o rebanho de Cristo, alteraram substancialmente o texto das

regras.162

160 Entre 711 e 719 (século VIII), os árabes estabelecem em Al-Andaluz, a denominada Espanha muçulmana, um próspero califado independente com sede em Córdoba. Ao longo de oito séculos, a cultura árabe, tanto filosófica como científica e literária, conheceu um de seus períodos mais criativos (REALI; ANTISERI, 1991, v. I). Além dessa preocupação bastante próxima, foram realizadas as cruzadas, expedições militares e religiosas, conduzidas principalmente por nobres cristãos na Idade Média, entre os anos de 1096 (início da 1ª cruzada) a 1270, com o fim de fazer a guerra denominada santa contra os muçulmanos e reconquistar Jerusalém e o túmulo de Cristo. Pela cronologia exposta, percebe-se que Francisco viveu os 45 ou 46 anos de sua vida em meio a toda essa ebulição. 161 Le Goff (2001, p. 77, minha ênfase) conta que Francisco, mesmo tendo elegido Porciúncula como sua residência preferida, freqüentemente a deixará com o objetivo, entre outras motivações, de pregar "em Assis, por toda a Úmbria, na Itália central e na setentrional [...] [e] entre os Infiéis". Em sentido absoluto e, assim, com inicial maiúscula, é referência aos muçulmanos. Na percepção de Le Goff (2001, p. 240), "os franciscanos foram os principais difusores da idéia de que ninguém se salva sozinho, que é toda a humanidade, toda a criação que deve se salvar ela própria". Em 1212, após a vitória da Reconquista contra os muçulmanos em Las Navas de Tolosa, formou-se a "cruzada falsamente chamada 'das crianças'" (LE GOFF, 2001, p. 79), com jovens desejosos de irem à Terra Santa. Entre eles, Francisco e um de seus irmãos embarcam num navio de partida para a Síria. Seu projeto de contato e pregação aos Infiéis, contudo, teria que ser adiado. O navio em que viajavam é desviado pelos ventos para a costa Dálmata de onde, penosamente (sem dinheiro e clandestinos em um navio, descobertos, escapam dos maus tratos somente por que Francisco aplaca uma tempestade e multiplica as magras provisões de bordo, muito pequenas por causa de uma longa calmaria do mar), eles têm de voltar a Ancona. Em 1214, parte de novo para ir pregar aos Serracenos (Marrocos), tendo em mente um encontro com o Sultão, provavelmente abatido pela derrota em Las Navas. No entanto, cai doente na Espanha e tem de voltar à Itália. Em 1219, Francisco embarca em Ancona retomando seu velho desejo: "ir aos Infiéis" (LE GOFF, 2001, P. 83). Consegue parcialmente. Assistiu, desgostoso com o comportamento cúpido e sanguinário dos cruzados, à tomada de Damieta (Egito), conseguiu uma entrevista com o sultão Malik al-Kamil, sem grandes resultados, e foi provavelmente aos Lugares Santos na Palestina. 162 Segundo Le Goff (2001, p. 96), um longo artigo relativo à missão – recomendadíssima entre os mouros e outros infiéis – foi reduzida a quatro linhas – desaconselhando tal permissão a não ser com muita prudência. O texto termina com a menção do cardeal nomeado pelo papa para a Ordem (como "Governador, protetor e corretor dessa irmandade") e uma "última linha" em que "Francisco pôde citar 'o Santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo'". Enviado a Roma, o texto foi retocado pelo cardeal Ugolino e aprovado pelo papa Honório III, pela bula de 29 de novembro de 1223. Daí seu nome de Regula bullata. Le Goff (2001, p. 93) aponta que o texto inicial de vinte e três artigos, não aprovado, "rico em citações evangélicas e em efusões", transformou-se em "doze artigos secos", foi confirmado pelo papa e ainda está em vigor. Le Goff (2001, p. 48) afirma que grande parte destas mudanças se deve às dissensões existentes dentro da Ordem dos Frades Menores. Existiam duas tendências, "cada uma buscando atrair o fundador para si e interpretar em benefício próprio suas palavras e seus escritos": os rigoristas (defendiam a prática de uma pobreza total, simplicidade na liturgia dos ofícios e distância da cúria romana) e os moderados (defendiam a adaptação do ideal da pobreza ao crescimento da Ordem, abertura ao mundo e obediência à Santa Sé). Essas divisões causavam grande sofrimento em Francisco a ponto de, desanimado e mesmo amargo, despedir "sem simpatia os frades que iam importuná-lo para introduzir no texto disposições contrárias a suas intenções" (LE GOFF, 2001, p. 86) e deixar a direção da Ordem em 1220.

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Raimundo Lúlio (1232-1316), em “Livro do gentio e dos três sábios”, relata uma

discussão entre um agnóstico (gentio) e representantes das três religiões monoteístas (os

sábios). O primeiro quer saber dos demais como defenderiam suas crenças, no sentido de

ajudá-lo a optar por uma delas. Convencido da existência e da infinita bondade de Deus, e

antes de fazer sua opção, o gentio vê os sábios partirem juntos, comprometendo-se em

continuar sua discussão e seu diálogo. Possivelmente, o que Lúlio quer é “oferecer um

modelo exemplar de como tais discussões deveriam ser conduzidas” (DUPUIS, 1999a, p.

150).

Algum tempo depois, paradoxalmente, pelo contexto institucional, histórico e

cronológico em que se encontrava, um outro homem se pronunciava sobre a pluralidade das

religiões. Trata-se de Nicolau de Cusa (1401-1461).163 Muito impressionado pelas guerras de

religião e observando concretamente as atrocidades cometidas durante o assédio de

Constantinopla (tomada pelos turcos em 1453), o Cusano, nesse delicado momento vivido

pela igreja da qual era um eminente participante, escreve um tratado com o sugestivo título

De pace fidei (“Sobre a paz da fé”, publicado em 1454), colocando problemas que ainda hoje

são debatidos. O mais interessante a observar é a proximidade da publicação dessa obra de

dois fatos ocorridos pouquíssimo tempo antes: em 1453, ou seja, quase concomitantemente, a

já mencionada queda de Constantinopla e, em 1442, somente doze anos antes, a instituição do

extra eclesiam nulla salus no Concílio de Florença (1438-1445). Apesar de estar convencido

de que a única religião verdadeira e universal é o cristianismo (Una fides orthodoxa) e disso

querer convencer seus contemporâneos, esse teólogo acredita que ele se articula em diversas

confissões e ritos (religio una in rituum varietate). Não tem sentido uma religião lutar para O período após o fim de 1223, momento em que "Francisco, a morte na alma", aceitou a "Regra deformada", é denominado pelos seus biógrafos de "época da 'grande tentação'", qual seja, a de abandonar completamente a nova ordem, se não sua ortodoxia. Cf. também Sani (1975). 163 Teólogo e sábio alemão, feito cardeal em 1450. Foi pioneiro da união das igrejas grega e romana e inaugurou um modo novo de pensar, ao criticar a cosmologia dualista de Aristóteles. Sua obra principal é A douta ignorância (1440), que inspirou Giordano Bruno.

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triunfar sobre as demais, pois o Deus adorado pelas diversas religiões é sempre o mesmo,

sendo que sua representação sob diversos nomes é uma necessidade humana de diversidade.

Com a chegada oficial européia ao “Novo Mundo”, em 1492, aflorou aos olhos

cristãos algo inusitado: o Evangelho ainda não tinha sido promulgado a “todo o mundo”. Os

limites da “cristandade” eram mais estreitos do que se pensava. Como responsabilizar alguém

pela própria condenação, pelo fato de não ter atendido o chamado de estar dentro da igreja de

Cristo, se ele nunca sequer ouviu falar nesse nome?

Bem antes disso, teólogos escolásticos, entre eles Tomás de Aquino, já tinham tentado

delinear novos enfoques da salvação, objetivando perspectivas mais amplas. No entanto, foi,

nas palavras de Torres Queiruga (1997, p. 14), a consciência da “espetacular ampliação

espacial” do mundo religioso, ocasionada pelos descobrimentos europeus, que trouxe aos

cristãos enormes questionamentos. Para esse autor (1997, p. 14), a partir desses

acontecimentos históricos e geográficos, “a ecumene clássica aparece como uma pequena

mancha na imensidão dos continentes habitados”. Urgia, então, retomar a ilusão de Paulo de

“chegar aos extremos da terra, sem dúvida com a esperança de que o evangelho alcançasse a

todos os homens” (TORRES QUEIRUGA, 1997, p. 14).

Entende-se, dessa forma, não se justificando, porém, a grande epopéia da

evangelização dos nativos das Américas. Evangelização que, por sua vez, caminhou, salvo

algumas exceções, de braços dados com a colonização predatória de grande parte do

continente americano e de seus originais habitantes. A cruz seguiu a bandeira!

O trabalho de Bartolomeu de Las Casas (1474-1566)164 na América Latina, no

entanto, configurou-se como uma experiência missionária inovadora. Defensor dos índios e

dos negros, seu projeto evangelizador pacífico, no século XVI, confrontava com o projeto

164 Prelado espanhol, filho de um companheiro de Cristóvão Colombo, tornou-se dominicano em 1522. Foi um dos fundadores das “Novas Leis” que preparavam a extinção da escravidão indígena, o que, de certa forma, favoreceu o tráfico negreiro, em busca de uma outra mão-de-obra. Tornou-se bispo de Chiapas, no México, em 1544, retornando à Espanha em 1547, onde continuou a escrever seu Historia de las Índias, editada em 1875.

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colonial. Isso, principalmente, porque os nativos, no início, e os negros africanos,

posteriormente, eram fundamentais para a exploração das riquezas do novo continente.

O caráter pacífico da missão de Las Casas165 baseava-se em alguns princípios

fundamentais.

Em primeiro lugar, os ouvintes devem compreender que os missionários não têm intenção de dominá-los. Em segundo, os ouvintes devem estar convencidos de que nenhuma ambição de riquezas move os missionários. Em terceiro, os missionários devem ser tão doces e humildes, afáveis e mansos, amáveis e benévolos ao falar com seus ouvintes e, principalmente, com os infiéis, que façam nascer neles a vontade de ouvi-los prazerosamente e de ter sua doutrina na maior reverência. Em quarto, os pregadores devem sentir o mesmo amor e caridade por todos, como se conhece de São Paulo, levando-os a realizar os trabalhos tão extraordinários. Por fim, em quinto lugar, os pregadores devem levar vidas tão exemplares que fique claro para todos que sua pregação é santa e justa.

Considerados seres inferiores, os índios deveriam, segundo a visão oficial, tanto da

coroa quanto da igreja, ainda inseparáveis, ser domesticados ao trabalho e à religião cristã à

força. Dignos de nota são os embates de Bartolomeu de Las Casas com os representantes do

rei e do papa acerca da existência ou não de alma nos nativos. Com sua retórica eloqüente

conseguiu, inclusive, “que muitos decretos dos reis fossem promulgados em benefício dos

indígenas” (BOFF, 1990, p. 115).

O frei dominicano propunha a liberdade como forma de evangelizar. Liberdade e

exemplos, como se nota no texto citado. Eis sua grande inovação na forma de evangelizar:

evangelização pacífica e não evangelização armada, de conquista. Note-se que o inovador em

Bartolomeu de Las Casas não se refere à questão de se evangelizar ou não, mas sim no

tocante à forma de evangelização. Como religioso missionário, ele queria trazer as ovelhas

para o rebanho de Cristo. Não se observa nele tendência de reconhecimento da religião

indígena. Pelo contrário, ‘ídolos’ indígenas eram destruídos e seus sacerdotes e pajés

165 O método missionário de Bartolomeu de Las Casas está descrito em seu livro de 1536, intitulado Do único modo de atrair a todos os povos à verdadeira religião (livro V, par. 1, p. 65-66).

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perseguidos. Tanto que sua missão teve um fim trágico: os missionários dominicanos foram

expulsos, dois foram mortos em uma igreja, um sacrificado diante de um ‘ídolo’ e vários

índios convertidos ao cristianismo, talvez 30, morreram flechados.

Apesar disso, a não intenção de dominação parece ser o grande salto de Bartolomeu e

seus confrades. O primeiro quesito para o encontro religioso é a deposição de armas, algo que

fez o frei dominicano. No entanto, o passo seguinte, olhar para a religião do outro com

respeito e reconhecimento, para aquele momento específico, talvez fosse pedir demais àqueles

homens cheios de fé, crentes de que sua religião é que salva e desejosos de que todos se

salvassem com eles.

Enquanto isso, na Europa, delineava-se a Reforma protestante, com Martinho Lutero

(1483-1546)166, trazendo para a igreja católica um grande impacto.167 Sob o efeito do adágio

Extra eclesiam nulla salus, retomado no Concílio de Florença (1442) a partir de seu sentido

mais absoluto, o catolicismo oficial retraiu-se ainda mais, acentuando a perspectiva negativa

com relação à história e às demais tradições religiosas, tendência observada até o século

XX.168

Em defesa de sua identidade, colocada em questão, a igreja reafirma que as condições

necessárias para a salvação relacionam-se com o conhecimento explícito de Jesus Cristo e

com a pertença à igreja. Com a Contra-Reforma, o Extra eclesiam nulla salus, com nítidos

contornos, auxilia na afirmação de uma identidade católica reativa e defensiva com relação

aos novos fatos da história.

166 Já mestre em Filosofia, ingressou na ordem dos Agostinhos, em 1505, tornando-se padre, em 1507, e doutor em Teologia, em 1512, ensinando na Universidade de Wittenberger a partir de 1513. 167 A menção, aqui, a Lutero e seu movimento reformador, deve-se mais ao que poderia ter representado para a igreja em termos de abertura aos novos acontecimentos daquele momento, o que não ocorreu, devido à reação da Contra-Reforma. 168 A Contra-Reforma católica, reação à Reforma protestante, além disso, fez, entre outras coisas, por brecar a passagem do catolicismo à Modernidade, projeto retomado somente, de maneira oficial e sistemática, com o Concílio Vaticano II.

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Encerrando este brevíssimo olhar sobre alguns fatos e/ou personagens históricos

marcantes, fagulhas de consciência da existência do outro religioso, algumas considerações se

fazem necessárias. Uma cronologia linear não foi aqui privilegiada. Momentos pontuais foram

trazidos à tona, independentemente se compartilhavam ou não o mesmo espaço temporal. O

que se tentou evitar é o anacronismo, tanto de julgamentos e análises de períodos passados

com categorias do presente, quanto de tomar frases fora de seu contexto determinado.

“Consciência possível” (LUKÁCS apud GOLDMAN, 1967, 1972) é aquela que se manifesta

em um determinado momento histórico, fruto daquele espaço cronológico. Não seria, por

exemplo, metodologicamente correto, avaliar as afirmações e/ou atitudes de alguém do século

XIII, utilizando-se de categorias próprias do século XXI. Muitos dados disponíveis ao homem

na Modernidade, e mais ainda na pós-modernidade, inexistiam na Idade Média. Esta pesquisa

aceita e quer seguir respeitando as consciências possíveis a cada tempo. Isso, no entanto, não

inviabiliza o diálogo entre autores acerca de um momento histórico determinado. Uma coisa é

alguém do século XIII defendendo o adágio católico Extra eclesiam nulla salus; outra,

completamente diferente, é a mesma defesa no século XXI. As razões parecem óbvias. A

consciência possível no século XXI é realmente diferente daquela experimentada no século

XIII!

1.3 A recente percepção cristã da diversidade religiosa

A diversidade religiosa do mundo atual é um fato. Não pode mais ser ignorado. Faz-se

necessário um recuo no tempo para que se possa perceber o momento em que essa diversidade

aflorou concretamente. Na verdade, o que aflorou foi a consciência da diversidade religiosa.

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No subitem anterior deste trabalho foram abordados, de forma breve, alguns fugazes

momentos históricos pontuais onde esse afloramento da consciência aconteceu de forma

positiva. Ainda na Idade Média, com as cruzadas, em defesa da terra santa, os cristãos sabiam

da existência de outras religiões, no caso, o islamismo, tanto que se organizaram no sentido de

combatê-lo. Historicamente, o motivo do combate foi a tentativa de impedir o avanço do

outro e, conseqüentemente, evitar a perda do próprio espaço de influência e manobra. Os

motivos religiosos são outros: a crença de que somente a inserção no cristianismo, e naquele

momento específico, na igreja católica, seria a garantia de salvação futura a todos. Escudados

nessa concepção identitária, pronta, acabada e fechada, os cristãos envidaram todos os

esforços no sentido de propiciarem a todos os homens as condições necessárias à sua

salvação.

Essas fronteiras, fixas no seu significado religioso, em potencial expansão no seu

domínio territorial, proporcionavam uma margem de segurança física e religiosa bastante

ampla à igreja católica e, a partir do cisma protestante, à religião cristã. Muito longe estavam

os pagãos, ou infiéis, se o olhar for aos muçulmanos! O contato identitário com o outro era

praticamente nulo.169

Essa concepção absolutista cristã subsistiu até um período relativamente recente.

Segundo Hick (1998), essa é uma presunção medieval que se estende, porém, até mais ou

menos o século 19. Em 1901, Ernst Troeltsch, intitulando seu famoso livro,170 explicitava

claramente “o caráter absoluto do cristianismo”. Já em 1923, esse autor (apud Hick, 1998, p.

13), criticando sua própria posição anterior, afirmava um cristianismo “‘absoluto’ para os

169 Exceção a essa distância identitária foi a rica e fugaz experiência de convívio entre muçulmanos, judeus e cristãos na Espanha, infelizmente abortada em 1492, quando os seguidores do islamismo e do judaísmo foram expulsos daquele país, ao recusarem a conversão ao cristianismo. 170 TROELTSCH, Ernst. L'assolutezza del Cristianesimo e la storia delle religioni. Napoli: Morano, 1968 (original de 1902).

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cristãos, e que as outras religiões universais são igualmente ‘absolutas’ para seus adeptos”.

Percebe-se claramente a passagem de um absoluto extremo para um caráter absoluto relativo.

Hick (1998, p. 14, minha ênfase) pergunta-se, no que é acompanhado por esta

pesquisa: “o que teria conduzido muitos – talvez a maior parte – dos pensadores cristãos,

durante os últimos setenta anos ou em torno disso, a abandonar gradualmente essa posição

absolutista?” A ênfase à palavra utilizada pelo autor citado – abandonar – permite uma breve

reflexão discordante: tal posição não foi totalmente abandonada, seja no campo intelectual,

como já mencionado, nos documentos magisteriais,171 como já exemplificado, ou na prática

religiosa de alguns grupos eclesiais. Para Schillebeeckx (1994, p. 313), “repetições desta

[posição] encontramos quase até hoje”.

Deve-se perseguir tal resposta através de duas trilhas diferentes e, ao mesmo tempo,

dependentes entre si: de um lado, a realidade da diversidade religiosa, da forma como ela se

apresenta e, de outro, os graus de consciência dessa diversidade religiosa, trazendo no seu

bojo práticas e teorias diferentes com relação à alteridade religiosa. Cabe neste momento

afirmar a irrupção, no mundo ocidental cristão, das diversas religiões e tradições religiosas.

Segundo Hick (1998, p. 13),

o intelecto cristão sempre foi composto de muitos segmentos e camadas, exibindo graus diferentes de autoconsciência e reflexão autocrítica. Mas em seu hemisfério mais intelectual tem ocorrido, desde a Primeira Guerra Mundial, um nítido desenvolvimento no tocante às maneiras de conceber o lugar do Cristianismo dentro da vida religiosa total do mundo.

O lugar ocupado pelo cristianismo nos séculos anteriores é bastante diferente daquele

que se verifica no século XIX e, principalmente, no início do XXI. A grande – talvez única? –

“estrutura de plausibilidade” 172 de outrora não mais se observa nos dias de hoje. O quadro

171 Os documentos magisteriais chegam, no máximo, ao reconhecimento do pluralismo religioso de fato, ou seja, à percepção da existência das demais religiões. Não chegam, ao menos, perto do reconhecimento de um pluralismo de princípio. Algo, aliás, em alguns documentos, claramente rechaçado. 172 Expressão, como já mencionado no primeiro capítulo deste trabalho, tomada de Berger (1973; 1985).

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religioso atual não mais comporta a antiga plantatio Eclesiae. O “cristianismo não conquistou

o conjunto do planeta, e as grandes religiões do mundo dão prova de crescente vitalidade”

(GEFFRÉ, 1993, p. 61).

A proximidade religiosa aguçou-se nos últimos 70 anos173 e com ela, a consciência da

existência do outro. O islamismo, por exemplo, continua sua grande expansão, inclusive no

mundo ocidental, tendo-se já ultrapassado os católicos em número de adeptos e aproximado

da quantidade de cristãos. “Num mundo que se unifica aceleradamente” (TORRES

QUEIRUGA, 1997, p. 10), as religiões se tocam, esbarram-se e, às vezes, encontram-se quase

que compulsoriamente.

Interessante notar que muitos daqueles que, atualmente, defendem posições eclesiais

do passado, consciências possíveis de um determinado momento histórico, não utilizam todas

as possibilidades de conhecimento que o mundo atual lhes oferece. Parecem imergir em um

duplo anacronismo: das categorias utilizadas e das possibilidades desprezadas. De um lado,

no plano conceitual, mantêm categorias do passado na compreensão do momento religioso

presente e, de outro, na prática, são homens do século XXI tentando manter estruturas

religiosas do passado. Parece ser o caso daqueles que ainda insistem na plantatio Eclesiae em

tempos em que já se fala de pós-modernidade.

Segundo Dupuis (1999a, p. 46), “a avaliação teológica das outras religiões, por parte

da Igreja cristã, deve, sem dúvida, ser considerada no contexto da realidade histórica concreta

de cada período”. Isso vale também para o momento atual: na possibilidade atual de

conhecimento das demais religiões, que avaliações têm sido feitas a seu respeito?174

173 A última parte deste capítulo buscará uma compreensão dos fundamentos dessa recente e crescente proximidade religiosa e cultural nos tempos hodiernos, lançando um olhar para o processo de globalização mundial e suas conseqüências. 174 Relembrando: o olhar cristão, sua percepção e conscientização, às demais religiões possibilitou, historicamente, e ainda continua despertando nos cristãos atitudes diferentes, explicáveis pelos lugares diferentes ocupados por quem olha. Com o objetivo meramente didático-perceptivo, elas podem ser divididas: uma primeira, negativa, é caracterizada por um olhar negativo acerca das demais religiões (exclusivismo); uma segunda, com pequena abertura, aceita parcial e cautelosamente as demais religiões, essas devem ser acabadas

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Uma maior consciência e um maior reconhecimento da importância do pluralismo

religioso, embora recentes, não podem ser separados de toda uma história anterior de embates,

evoluções e involuções. Mesmo porque a memória cristã, apesar de passível de mudanças em

sua estrutura identitária, com o transcorrer do tempo fundamenta, naquilo que constitui seu

núcleo central, o seu âmago, todos os posicionamentos posteriores, inclusive os mais atuais e

abertos. Retomando as palavras de Dupuis (1999a, p. 45), “presente é o resultado do passado,

e nenhuma das novidades que ele possa trazer é capaz de anular sua raízes históricas”.

Cabe aos pesquisadores contemporâneos das religiões perscrutarem os momentos

históricos passados e relê-los à luz do presente. É o que tentam fazer alguns teólogos, quando,

mantendo-se fiéis ao núcleo central de seu passado cristão, relêem-no, atribuindo-lhe um novo

significado, à luz do rico presente das manifestações da diversidade religiosa. O que se exporá

a seguir é essa tentativa de releitura – simbolizada na expressão “pluralismo de princípio” –

que os teólogos inclusivistas abertos fazem do passado cristão, resignificando-o, à luz da

presente realidade religiosa, no intuito de uma melhor compreensão desta realidade.

no cristianismo, reconhecendo, porém, a possibilidade de salvação para seus seguidores (inclusivismo do “acabamento”); próxima ao concílio Vaticano II, vigora uma terceira atitude, a do reconhecimento de valores positivos nas tradições religiosas, estando essas, inclusive, aptas a conduzir os seus membros à salvação, se bem que é Jesus quem nelas salva (inclusivismo da “presença de Cristo nas religiões”); uma quarta atitude, mais recente, para além da questão da salvação individual dos membros das demais religiões, enxerga de maneira muito mais positiva as tradições religiosas, perguntando-se pelo significado que elas podem ter no desígnio de Deus para a salvação de toda a humanidade, submetendo a concepção tradicional da fé cristã em Jesus Cristo a uma grande tensão e a questionamentos sem precedentes (inclusivismo aberto); uma quinta atitude (a ordem aqui é apenas didática, pois essa é concomitante e está constantemente em diálogo com a anterior), que tem a pretensão de inaugurar um novo paradigma (o pluralista) nesse debate teológico, concebe as religiões em pé de igualdade, sem privilégios de qualquer para alguma delas, elevando a fervura do debate ao grau máximo.

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2 O PLURALISMO DE PRINCÍPIO

Poder-se-ia dizer, grosso modo, que o pluralismo de princípio está para o pluralismo

de fato, no nível da discussão teológica, da mesma forma que o Vaticano II está para os quase

dois milênios anteriores de história da igreja católica, no âmbito do magistério oficial. Com

isso, percebe-se o largo passo que se dá no momento em que se fala que a pluralidade

religiosa do mundo não é apenas algo de "fato", mas querido desde o "princípio". O que se

quer mostrar a seguir são os diversos momentos factuais culturais, religiosos e conceituais

teológicos do debate acerca dessa questão.

“Levar a sério as religiões é nelas reconhecer algo de irredutível e irrevogável, que

jamais será tematizado ou totalizado no cristianismo”. Essa afirmação de Teixeira (1998a, p.

55) lança a discussão acerca do olhar sobre as religiões a lugares nunca dantes visitados.175

Reconhecer que algo existente nas demais religiões “jamais” será “totalizado” no cristianismo

é avançar muito na consciência da diversidade religiosa. Afirmar, além disso, a possibilidade

de que esse algo também “jamais” poderá ser ao menos “tematizado” no meio cristão é ver no

outro religioso a possibilidade do próprio crescimento no conhecimento de Deus.

Esse avanço, incomensurável, poder-se-ia dizer, tendo em vista o que aqui já se expôs

acerca das dificuldades históricas de aceitação do pluralismo religioso, salvo momentos

luminosos de centelhas de reconhecimento e abertura à diversidade religiosa, é exemplar do

inclusivismo aberto praticado e teorizado por alguns pensadores cristãos. O que se pretende

175 O autor desta pesquisa sente, neste momento, a necessidade de uma pequena nota pessoal. O primeiro contato com essa afirmação deu-se no início de sua pós-graduação, durante o curso de especialização, de forma verbal, em disciplina ministrada pelo professor Faustino Teixeira. Publicadas posteriormente em artigo (1998a, p. 55), as palavras do professor e, desde então, orientador e amigo, calaram de uma forma a provocar questionamentos inusitados, abrindo trilhas maravilhosas na sempre árdua tarefa de desbravar caminhos no estudo das relações religiosas. Foi o início de uma caminhada que, ao que parece, continuará, devido à complexidade e empatia com relação ao tema, por toda a vida.

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neste momento é justamente explicitar os tons da abertura deste atual pensamento inclusivista

cristão.

2.1 Um Deus sem fronteiras

Segundo um versículo védico,176 “o Ser é um só – os sábios o chamam com vários

nomes”. Os pensadores cristãos pluralistas afirmam que é nesse Ser, ou “Realidade última”

(HICK, 1980, 1989), ou “Centralidade do Real” (HICK, 1989, p. 236-240), que convergem

todas as tradições religiosas com suas respectivas formas de expressá-lo: o Deus Pai cristão, o

Iahweh israelita, o Alá muçulmano, o Brahman hindu, o Nirvana budista, o Tao taoísta etc.

Essas experiências históricas diversas de Deus, ou do Mistério, não teriam, a não ser que se

comprove historicamente, nenhuma prevalência uma sobre a outra. São simplesmente

expressões diferentes de uma mesma realidade.

A questão implícita nessas afirmações se apresenta com roupagem nova, pois já estava

presente também nos ambientes cristãos do passado: o Deus das demais religiões é o mesmo

Deus dos cristãos? Com relação às religiões monoteístas, pode-se responder, com

tranqüilidade, que têm uma origem histórica comum: a fé de Abraão. Essa seria a identidade

pessoal do Deus adorado pelos cristãos, judeus e muçulmanos. Também, tranqüilamente,

pode-se observar a continuidade das características, sem prejuízo das diferenças de conceito

de Deus, existente entre o Iahweh judaico e o Deus Pai cristão. Também válidas, embora

menos reconhecidas, são as afirmações de continuidade, característica entre o Deus judeu-

176 Rg Veda I, 164, 46.

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cristão e o Deus do Corão. Nesse caso, contudo, as divergências no conceito de Deus são

ainda mais profundas.

Bem mais complicada é a relação com as religiões místicas do Oriente. Isso,

principalmente, pela sua variedade e enorme complexidade dos dados que oferecem, além de

sua diferente visão de mundo. Caberia, nesse caso, a pergunta pela relação existente entre a

“Realidade Absoluta” das religiões orientais e o Deus pessoal das religiões monoteístas? Para

os inclusivistas abertos, sim. Inclusive, com um ingrediente a mais, a pergunta poderia ser

reformulada da seguinte forma: qual a relação existente entre a “Realidade Absoluta” das

religiões orientais e o Deus pessoal das religiões monoteístas revelado, segundo a fé cristã, de

maneira decisiva em Jesus Cristo? O exato limite de separação das anteriormente explicitadas

afirmações pluralistas desta questão inclusivista aberta é justamente o acréscimo realizado

nessa segunda pergunta: não se abandona a decisividade de Jesus Cristo, mesmo se

perguntando acerca das várias faces do mistério divino.

A questão que se coloca, então, a partir dessa introdução de um elemento

especificamente do cristianismo, diz respeito à legitimidade de tal operação relacional. De que

forma um Mistério divino com muitas faces poderia ser interpretado segundo o teísmo

trinitário cristão? Aceitariam as demais religiões a afirmação de que “em qualquer lugar que

haja uma genuína experiência religiosa certamente é o Deus revelado em Jesus Cristo que

entra de modo escondido, secreto na vida dos homens e das mulheres” (DUPUIS, 1999a, p.

335)? Dupuis (1999a, p. 356) afirma categoricamente que tal questão nunca deveria chegar

aos ouvidos dos adeptos das demais religiões, por ser “declaradamente cristã”. No entanto,

continua esse autor, assim como a não-dualidade hindu entre Brahman e o eu ou a Sunyatã

budista são explicações aceitas por seus respectivos seguidores, o cristão, aderindo a um

monoteísmo trinitário, fundamentado na revelação judaica e na tradição cristã, poderá

interpretar o Mistério divino em termos da presença e da automanifestação universal de Deus

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uno e trino. Esse Mistério das muitas faces é o Deus e Pai que revelou sua face cristã em Jesus

Cristo. Tal interpretação poderia ser válida somente para os seguidores do cristianismo.

Dupuis (1999a, p. 359) prega uma defesa, do ponto de vista da fé cristã, de que a

Realidade última an sich (Hick, 1989), manifestada de modos diferentes à humanidade, não

somente é um Deus pessoal como também é representada pelo Deus trinitário cristão. Essa

afirmação possivelmente resume, à exceção de algumas matizações diferentes de outros

autores, a concepção aberta do inclusivismo. Está claro o limiar diferencial entre as

concepções pluralista e aberta do inclusivismo. Nas palavras de Geffré (1997, p. 125), não se

pode, como querem os pluralistas, desfazer o “liame único entre o evento Jesus Cristo e a

manifestação decisiva e definitiva de Deus”.

Mas seria legítimo, por outro lado, ao teólogo, asseverar sobre algo tão distante e

desconhecido quanto Deus, apesar da presença divina poder ser tão próxima, por vezes até

mais próxima do crente que sua própria veia jugular, como dizem os muçulmanos?

Fraijó, em um de seus escritos (1999a, p. 211), afirma que “com Deus, é preciso

guardar distâncias”. O grande perigo que o teólogo, sobretudo o dogmático, corre é o de

“familiarizar-se em excesso com Ele”. Qualquer descuido pode passar a impressão de que

esse especialista “sabe mais sobre Deus que o próprio Deus”. Schillebeeckx (1994, p. 28) diz

que “Deus é Deus, e não parte integrante do mundo”, de modo que “não se identifica com

nenhum movimento de libertação e salvação, sequer com o evento libertador do êxodo do

povo judeu ou do surgimento redentor de Jesus [...]”. A douta ignorância (Nicolau de Cusa)

prevalece na ciência sobre Deus. Ele continua sendo um mistério.

Os teólogos arrolados têm consciência da não possibilidade de se representar

positivamente o Ser íntimo de Deus. Com Schillebeeckx, Dupuis (1999a), corajosamente

afirma tal impossibilidade mesmo após a auto-revelação divina em Jesus Cristo. Quando se

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fala objetivamente do mistério do Deus uno e trino, é preciso estar consciente de que é apenas

uma representação analógica da realidade íntima de Deus. Para Dupuis (1999a, p. 354),

a teologia recente avaliou essa distância com mais precisão do que no passado. [...] A identidade divina deve ser claramente distinta da compreensão que os seres humanos podem ter dela em situações diferentes, mediante a reflexão humana ou a revelação divina, em tradições religiosas diferentes.

Findo esse pequeno desvio, necessário, no entanto, para que se amainem possíveis

tentações absolutistas dogmáticas nas afirmações sobre Deus, algo distante das concepções

abertas do inclusivismo,177 a trilha das múltiplas manifestações divinas pode ser retomada.

Nas três religiões monoteístas, observa-se a ênfase na unicidade do Deus por elas

adorado. Tanto o shemá de Israel (“Ouve, ó Israel: Iahweh nosso Deus é o único Iahweh” 178),

quanto o evangelho cristão (“Ouve, ó Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor”179) ou a

doutrina do Corão (“O nosso Deus e o Deus de vocês180 é um só”,181 ou “Não há outro Deus a

não ser Eu”182) concordam com isso. Segundo Kuschel (1996), não há dúvida de que as três

religiões do Livro183 partilham o mesmo Deus.

No entanto, isso não significa que as três tradições religiosas monoteístas

compartilhem o mesmo conceito divino. Existem, apesar da identidade do único Deus,

grandes diferenças nas experiências religiosas do mesmo Deus feitas pelas três religiões. No

caso das respectivas doutrinas, isso fica bastante clarividente. Enquanto o Deus de Israel é o

Onipotente, que libertou o seu povo da escravidão do Egito e o guia ao longo da história, e a

177 O fazer teológico como “empreendimento hermenêutico”, proposto por Geffré, ilustra bem isso. 178 Dt 6, 4. 179 Mc 12, 29. 180 Referência à “gente do Livro”, judeus e cristãos. 181 Sura 29, 46. 182 Sura 16, 2; 21, 14. 183 Na verdade, a rigor, somente o islamismo poderia ser considerado como uma “religião do Livro”, já que Israel tem como pedra fundamental sua “aliança” com Deus e o cristianismo o “evento Jesus Cristo”.

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tradição cristã, dando continuidade ao monoteísmo de Israel, desenvolve uma doutrina

trinitária, o islamismo, mesmo remontando suas origens ao Deus da fé de Israel, afirma

completá-lo e purificá-lo de possíveis corrupções doutrinárias. Na expressão de Arnaldez

(1983, p. 64),

é claro que o Deus do Islã, que elimina a Lei de Moisés e relativiza a aliança com Israel, não pode ser o Deus dos judeus. E muito menos e de nenhum modo ele pode ser o Deus dos cristãos, porque mostra o erro que a fé na Trindade e na encarnação – sem as quais não existe cristianismo – representa necessariamente para qualquer muçulmano. Nesse plano, os três monoteísmos não fazem outra coisa senão se excluírem reciprocamente. O judeu, porém, crê que Deus falou através da Bíblia; o cristão crê que Deus fala nos evangelhos através do seu Verbo feito carne; o muçulmano crê que Deus fala no Corão, ou até mesmo que este é a sua Palavra eterna.

As diferenças doutrinais entre as três “fés” são claras e irredutíveis. No entanto, além

das raízes históricas comuns em Abraão, uma outra convergência pode ser notada no nível da

fé vivida pelos místicos dessas religiões. O que os impulsiona é uma inextinguível busca de

união com o próprio Deus, transcendente e imanente, que graciosamente se comunica às suas

criaturas. Segundo Arnaldez (1983, p. 116-117),

para os místicos das três religiões, (a) Palavra anuncia o amor de Deus para com os seres humanos, a sua misericórdia, o seu perdão dos pecados, a sua vontade salvífica. Além disso, a palavra é penhor da assistência de Deus no caminho que revela, permitindo aos fiéis responder com o amor ao amor ‘preveniente’ de Deus. [...] Os místicos judeus, cristãos e muçulmanos, na essência, são concordes ao afirmar a verdadeira realidade da sua experiência de união com a vontade de Deus. [...] do seu amor para com Deus, acesso neles pelo amor de Deus para com eles. O traço específico dessa experiência é, em todos os místicos monoteístas, o fato de ser percebida como a concessão de um dom.

Mesmo nesse nível, porém, a convergência continua sendo parcial, pois o que se

observa é uma comunhão interpessoal de Deus com pessoas humanas, não a identidade do

humano com o Divino. Em nenhuma das tradições místicas monoteístas, segundo Dupuis

(1999a, p. 363), “a união extática com o ‘Absoluto’ pessoal implica a dissolução do Ego

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humano no ‘Uno’”. As divergências religiosas doutrinais, explicitadas anteriormente, influem

nas experiências místicas monoteístas experienciadas por seus membros.

No caso dos cristãos, o Deus de Abraão é “inseparavelmente” (DUPUIS, 1999a, p.

364) o Deus de Jesus Cristo. A doutrina do Deus uno e trino, centro da mensagem cristã,

imprime, também, “um ritmo trinitário ao êxodo de todas as coisas a partir de Deus e do

êxodo delas para Deus” (DUPUIS, 1999a, p. 364). A fé cristã acredita que a “Realidade

última”, que se revelou e continua revelando-se aos homens na história, é o Deus uno e trino,

Pai, Filho e Espírito Santo. O concílio Vaticano II (DV, n. 2) expressa claramente que

Deus, na sua bondade e sabedoria, quis revelar-se a si mesmo e manifestar o mistério de sua vontade: os homens têm acesso ao Pai e se tornam participantes da natureza divina por Cristo, Verbo encarnado, no Espírito Santo. Deus, invisível, revela-se por causa do seu muito amor, falando aos homens como a amigos e conversando com eles, para convidá-los a estarem com ele no seu convívio.

Esse Deus uno e trino, na visão dos cristãos, não é, portanto, apenas uma

‘manifestação’, ou uma ‘experiência’, entre outras, da ‘Realidade última’ vivenciada de

modos diferentes nas diversas tradições religiosas existentes no mundo. Ele é a própria

Realidade última. Isso não significa, no entanto, que uma representação positiva torne

possível uma apreensão humana direta de Deus. O Mistério permanece além do alcance

humano. Dupuis (1999a) reafirma que mesmo em Jesus Cristo a Trindade divina, embora

objetiva, corresponde tão somente de maneira imperfeita e analógica à realidade do Absoluto.

A doutrina da Trindade, do ponto de vista cristão, alertam sempre os autores

inclusivistas abertos, funciona como chave hermenêutica de interpretação da experiência da

Realidade Absoluta, testemunhada também por outras tradições religiosas. No entender de

Geffré (1983, p. 6), a teologia é essencialmente um “empreendimento hermenêutico”.

A crença cristã diz que a revelação bíblica do mistério de Deus deve ser considerada

como um processo que atinge seu ápice em Jesus Cristo. Além disso, Jesus Cristo é o Filho

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unigênito de Deus através do qual é oferecida a salvação a todos. Ele não é a salvação

somente para o cristão, mas nele e por meio dele o mundo e a humanidade encontram a

própria salvação. Em função, no entanto, do atual contexto pluralista das religiões e em vista

do diálogo inter-religioso, alguns pensadores arriscam uma nova hermenêutica do Segundo

Testamento. Tentam fazer teologia de maneira indutiva através de uma interpretação no

contexto, seguindo um círculo hermenêutico: inicia-se com uma ‘prática’, a partir daí remete-

se ao ‘dado’ da revelação cristã, objetivando a obtenção de luz e direção, para, em seguida,

voltar à prática. Geffré (1983, p. 71) define a teologia hermenêutica como “um novo ato de

interpretação do evento de Jesus Cristo, com base em uma correlação crítica entre a

experiência cristã fundamental, testemunhada pela tradição, e a experiência humana

contemporânea”.

Se num contexto de opressão humana, por exemplo, o “ato primeiro” é uma prática de

libertação, um contexto de pluralismo religioso requer uma prática do diálogo inter-religioso.

Nesse caso, o ‘dado’ da revelação cristã, vértice superior do triângulo hermenêutico, é dotado

de características tais que realmente iluminam e direcionam o terceiro movimento, o retorno a

uma prática de diálogo inter-religioso? Inicialmente, cabe afirmar que a fé do praticante nunca

pode ser colocada entre parênteses (epoché); 184 ao contrário, um diálogo autêntico requer

interlocutores, cristãos ou não, com a integridade de sua própria fé. Segundo Dupuis (1989, p.

328), “num espaço vazio de qualquer convicção religiosa não se dá nenhum (sic) diálogo

inter-religioso”. De maneira mais direta ainda, esse autor (1999a, p. 516) afirma que “é

evidente que os cristãos não podem dissimular, na práxis do diálogo inter-religioso, a própria

fé em Jesus Cristo”.

184 Em outro espaço (2001a), o autor desta pesquisa trouxe à baila os escritos do filósofo e teólogo espanhol Manuel Fraijó, em que ele propunha exatamente uma espécie de epoché no diálogo inter-religioso. Para ele, essa seria a solução para os irrevogáveis pontos da doutrina de cada uma das tradições monoteístas, inaceitáveis, porém, às demais. O autor estudado, em nome da paz entre as religiões, considerava valer a pena tal esforço.

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Isso, no entanto, não resolve a questão. Será que, na prática, pergunta Dupuis (1999a,

p. 406), “o choque do encontro entre fés vivas não pode ser tal que obrigue os cristãos a uma

‘reinterpretação’ de certezas há muito tranqüilamente possuídas, relativas ao cerne da própria

fé”? A hermenêutica bíblica no contexto da teologia da libertação “reatualiza” a palavra de

Deus na história presente. O evento do êxodo, assim como o de Jesus Cristo, não é memória

passada, apenas “revelação fundante”, mas algo vivenciado de uma outra forma no momento

presente, uma realidade que continua ainda hoje. A norma continua normans,185 porém, não

estática, confinada à letra morta, mas persiste com o seu poder criativo. Dupuis (1999a, p.

407) acredita que esse mesmo esquema é válido no contexto do pluralismo religioso.186

Segundo ele,

[neste contexto] a palavra de Deus continua sendo a norma normans para o “ato primeiro” da prática dialógica como também para o “ato segundo” do fazer teologia. Todavia, uma teologia indutiva das religiões deve ver a palavra de Deus como uma realidade dinâmica, que exige ser interpretada no contexto específico do encontro entre as fés.

Daí, depreende-se que a mensagem revelada não será uma verdade monolítica, a

unicidade “constitutiva” de Jesus Cristo, apesar de uma afirmação da fé cristã, não será

absolutizada. Em vez de se recorrer a alguns textos isolados (At 4, 12; 1Tm 2, 5; Jo 14, 6), a

palavra de Deus será vista como um todo. As tensões implícitas advindas de elementos de

verdade aparentemente contraditórios, complementares, no entanto, se vistos com outros

olhos, não impedirão o prosseguimento de encontro. À afirmação joanina (1, 14) de que “o

Verbo se fez carne (em Jesus Cristo) e habitou entre nós”, contrapõe-se o fato de que “a

Sabedoria já se havia apoderado de todos os povos e nações, buscando no meio deles um

lugar de repouso (Eclo 24, 6-7) e ‘armando sua tenda’ em Israel (Eclo 24, 8-12)” (DUPUIS,

185 Ou seja, mantém-se como normativa. 186 Não sem fundamento, em pronunciamento recente, o cardeal Joseph Ratzinger, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, órgão máximo da ortodoxia católica, afirmou que a teologia das religiões poderia estar ocupando o lugar que outrora foi da teologia da libertação, encampando alguns de seus propósitos.

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1999a, p. 407). Assim também, se Jesus Cristo é “o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14, 6), o

Verbo que existia antes dele era “a luz verdadeira, aquela que ilumina todo homem” vindo ao

mundo (Jo 1, 9), ou, mais ainda, se, “no período final”, Deus “falou a nós por meio do Filho”,

já havia falado anteriormente “muitas vezes e de muitos modos” (Hb 1, 1).

É no encontro entre as fés que os cristãos poderão descobrir novas dimensões de Deus,

testemunhadas a outras comunidades de fé. Ariarajah (1998, p. 114) é clarividente nesse

aspecto de abertura relacional com as religiões.

Se os cristãos cremos que o acontecimento Cristo tem uma significação salvífica para toda a humanidade, então o testemunho sobre ele deve apresentar-se como uma confissão de fé. Não podemos usar esta confissão de fé como base para negar outras confissões de fé. Por mais verdadeira que seja a nossa experiência, por mais convencidos que estejamos de uma confissão de fé, temos que mantê-la como confissão de fé e não como uma verdade em sentido absoluto.

Isso não implica, é bom deixar claro, numa teologia revisionista, como querem os

pluralistas. Para os pensadores inclusivistas, a pretensão cristã de uma unicidade

“constitutiva” de Jesus Cristo tem base sólida e fundamento válido. Distantes de tentativas de

demonstrações empíricas ou científicas, meros resultados de pesquisas acadêmica e histórica,

pois isso não seria fé, alguns autores ligados a essa vertente do pensamento teológico cristão

querem “mostrar os méritos e a credibilidade da afirmação de fé cristã em favor de Jesus

Cristo” (DUPUIS, 1999a, p. 408).

Sem a pretensão de adentrar em questões cristológicas, a exigüidade deste espaço não

permitiria, faz-se necessário evocar alguns pontos importantes para a questão da abertura,

nesse quesito, ao diálogo inter-religioso. Dupuis (1999a) afirma que a universalidade de

Jesus-o-Cristo não pode obscurecer a particularidade de Jesus de Nazaré. Uma universalidade

separada da particularidade não refletiria o Cristo da revelação cristã. Esses acentos têm

reflexo direto para uma teologia das religiões aberta e, conseqüentemente, na forma como é

tratada a questão da diversidade religiosa do mundo, proporcionando maior ou menor abertura

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ao diálogo entre as religiões. A sensibilidade dos teólogos indianos (ASSOCIAÇÃO

TEOLÓGICA INDIANA, 1991, p. 346) conseguiu captar a necessidade desses tons

quenóticos.

Nós olhamos para Cristo como alguém que, esvaziando-se a si mesmo, nos conduz ao mistério inefável de Deus. A quenose é o seu ‘não ficar apegado a’ seu status divino. Ela foi um ato de entrega incondicional ao Pai. Foi uma presença na submissão à vontade salvífica de seu pai. Cristo aceitou a condição humana até suas últimas conseqüências. Dedicou-se totalmente aos outros; para ser fiel à sua missão, não hesitou em deixar de lado até mesmo algumas convicções religiosas do seu povo. O Cristo quenótico está presente em todas as vicissitudes humanas como servo e fermento. Ele pertence a toda a humanidade. Mediante tal serviço, ele se doa incessantemente aos homens e mulheres de todas as culturas, e os conduz discretamente à auto-realização. Sua ação libertadora dá à pessoa sua inteireza, transforma as culturas que encontra, forjando-as numa comunidade de amor em que o outro é respeitado e aceito em sua própria autocompreensão.

Essa particularidade histórica de Jesus imprime ao evento-Cristo limitações

inevitáveis. Assim como Jesus não esgotou o mistério divino, deixando incompleta a

revelação de Deus, também o evento-Cristo não pode esgotar o poder salvífico de Deus. Em

suma, Jesus não substitui Deus (DUQUOC, 1984). As conseqüências relacionais religiosas

dessas afirmações são enormes. Nas palavras de Dupuis (1999a, p. 412-413, minha ênfase),

“se o evento-Cristo é o sacramento universal da vontade de Deus de salvar o gênero humano,

não é preciso para isso que ele seja a única expressão possível”. A ação salvífica de Deus,

continua Dupuis (1999a), pela presença universal do Espírito, existe antes e depois do evento

histórico de Jesus Cristo.

Deus tem um plano abrangente para a humanidade. Sem negar a unicidade do mistério

da encarnação, é possível enxergar, é o que mostra Dupuis (1999a, p. 413), outras “figuras

salvíficas” como também “iluminadas” pelo Verbo ou “inspiradas” pelo Espírito, tornando-se

indicadores de salvação para seus fiéis. A abertura dialogal propiciada por essa visão

inclusivista é exposta com clareza por Dupuis (1999a, p. 413).

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A particularidade do evento Jesus Cristo em relação à universalidade do plano salvífico de Deus abre aos teólogos mais atentos novos caminhos de acesso a uma teologia do pluralismo religioso capaz de dar espaço a vários ‘itinerários’ de salvação.

Teólogos mais atentos não faltam. Geffré (1997, p. 53) afirma que

Jesus é, a título único, o ícone do Deus vivo e não devemos esperar outros ‘mediadores’. Isso, porém, não nos leva a identificar o elemento histórico e contingente de Jesus com seu elemento ‘crístico’ e divino. É exatamente a lei da encarnação de Deus pela mediação da história que nos leva a pensar que Jesus não encerra a história das manifestações de Deus [...]. De acordo com a visão tradicional dos Santos Padres da Igreja, é permitido ver a economia do Verbo divino encarnado como o sacramento de uma economia mais ampla, aquela do Verbo eterno de Deus que coincide com a história religiosa da humanidade.

Na mesma linha, Schillebeeckx (1994, p. 219, minha ênfase) argumenta que

[...] a manifestação de Deus em Jesus, como o Evangelho cristão no-la anuncia, não significa que Deus teria absolutizado uma particularidade histórica [...]. Dessa manifestação divina em Jesus aprendemos que nenhuma singularidade histórica pode se considerar absoluta e, por isso, por meio da relatividade presente em Jesus cada criatura humana pode encontrar a Deus também fora de Jesus, isto é, em nossa história mundana e nas muitas religiões por ela produzidas. O próprio Jesus ressuscitado remete para além de si mesmo, para Deus. Podemos também dizer que Deus, por intermédio de Jesus Cristo e no Espírito, remete a si mesmo como Criador e Redentor: a um Deus de toda a humanidade. Deus é absoluto, enquanto nenhuma religião o é.

Duquoc (1985a, p. 137) é incisivo ao falar no respeito às diferenças.

[...] revelando-se em Jesus, Deus não absolutizou uma particularidade [...]; ao contrário, [...] nenhuma particularidade histórica é absoluta, e [...] por causa dessa relatividade, Deus pode ser alcançado em nossa história real [...]. Assim, a particularidade original do cristianismo exige que as diferenças permaneçam como tais e não sejam abolidas, como se a manifestação em Jesus concluísse a história ‘religiosa’.

Teixeira (2002a, p. 159), em trabalho recente, nota que “a afirmação e plausibilidade

da convicção religiosa articulam-se com o imperativo de abertura, e isto exige a não

absolutização do que é relativo, um risco sempre presente em toda fé religiosa”.

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Essa tentativa de se abrirem trilhas em direção às possibilidades cristãs de percepção

das faces humanas de Deus, levada a cabo pela vertente aberta do inclusivismo teológico das

religiões, concluindo na possibilidade de uma pluralidade divina de princípio, é explicitada

com clareza por Dupuis (1999a, p. 415).

A economia salvífica de Deus é uma só, da qual o evento-Cristo é ao mesmo tempo o ponto culminante e o sacramento universal; mas o Deus que salva é ‘três’, onde cada um dos três é pessoalmente distinto e permanece ativo de maneira distinta. Deus salva com ‘duas mãos’.

2.2 Um reino sem fronteiras

Diversas expressões utilizadas pela teologia tradicional permanecem presentes no

atual discurso teológico. Dentre elas: “não cristãos”, “novo povo de Deus”, “Antigo e Novo

Testamento”, “povo de Deus” etc. No entanto, essas expressões, com o seu significado

original tradicional, não traduzem mais as concepções teológicas da atualidade. Veja-se o

termo “não cristãos” que, além de definir os outros por aquilo que não são, ou seja, eles não

são cristãos, define-os em relação à identidade cristã.187 “Novo povo de Deus”, por seu lado,

substitui o povo anterior de Deus, Israel; por um outro, o da igreja católica. Documentos

recentes do magistério católico não evitam esse perigo. É o caso de Lumen gentiium,188 do

concílio Vaticano II, e “Temas escolhidos de eclesiologia”,189 da Comissão Teológica

Internacional. Segundo Dupuis (1999a, p. 453-454),

187 Aebischer-Crettol (2001), nessa linha, afirma que os integrantes das demais religiões não podem ser definidos pela sua não pertença ao cristianismo. Lembra, inclusive, a mudança de nome, em 1988, do Secretariado para os Não cristãos, renomeado como Conselho Pontifício para as Relações Inter-religiosas. 188 A conclusão de uma “nova aliança” fez da “Igreja” o “novo povo de Deus” (LG, n. 9). 189 O 2º capítulo desse documento de 1984 tem por título “A Igreja: ‘novo povo de Deus’”.

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se a ‘nova aliança’ é expressão bíblica (Jr 31, 31-34; 2Cor 3,6; Hb 9,15; 12, 14), o Novo Testamento, também onde descreve a Igreja como ‘povo de Deus’ (1 Pd 2, 9-10), não a qualifica como ‘novo povo’. Além disso, a exegese atual reage corretamente contra um abuso lingüístico segundo o qual o advento da Igreja impediria a Israel de ser o povo de Deus. Essa exegese mostrou que não se trata aqui da substituição de um povo por outro, e sim da expansão do único povo de Deus para além dos seus limites mediante a expansão da Igreja, que agora faz parte dele, às nações.

Analogamente, a distinção entre Antigo e Novo Testamento faz crer que esse

substituiu aquele. Santo Agostinho já dizia: Novum in Vetere latet, Vetus in Novo patet.190 É

pelo fato de não haver substituição nem eliminação que exegetas e teólogos preferem

atualmente utilizar as expressões “primeiro” e “segundo” em referência aos testamentos.191

Sem atenção e sensibilidade na utilização de tais expressões, corre-se o risco de se

manterem as barreiras artificiais que separam os cristãos e os fiéis das demais religiões.

A expressão “Reino de Deus” também está no rol daquelas que necessitam de um

tratamento cuidadoso. Esse reino estaria fazendo referência a quem? A Israel? Ao

cristianismo? À igreja? Ou o reino seria uma realidade universal, ou seja, não restrita às

fronteiras da igreja cristã?

Em 1955, ou seja, alguns anos antes do concílio Vaticano II, Zapelena (1955, p. 41)

afirmava que “toda a eclesiologia pode ser apresentada e ordenada mediante o seguinte

quadrilátero: Reino de Deus = Igreja de Cristo = Igreja católica romana = corpo místico de

Cristo na terra”. Pode-se pensar que essa afirmação é algo ultrapassado e, atualmente,

principalmente após o concílio proposto por João XXIII, tal ligação não seja mais feita, não

havendo, portanto, necessidade de se tratar essa questão. Isso não é verdade! Documento

recente da Congregação para a Doutrina da Fé (2000, p. 7-8, minha ênfase) afirma que

o perene anúncio missionário da Igreja é hoje posto em causa por teorias de índole relativista, que pretendem justificar o pluralismo religioso, não apenas de facto, mas também de iure (ou de principio). Daí que se considerem

190 O Novo está escondido no Velho, o Velho se desvela no Novo. 191 Esta pesquisa faz o mesmo.

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superadas, por exemplo, verdades como o carácter definitivo e completo da revelação de Jesus Cristo, a natureza da fé cristã em relação com a crença nas outras religiões, o carácter inspirado dos livros da Sagrada Escritura, a unidade pessoal entre o Verbo eterno e Jesus de Nazaré, a unidade da economia do Verbo Encarnado e do Espírito Santo, a unicidade e universalidade salvífica do mistério de Jesus Cristo, a mediação salvífica universal da Igreja, a não separação, embora com distinção, do Reino de Deus, Reino de Cristo e Igreja, a subsistência na Igreja Católica da única Igreja de Cristo.

O que explicaria essas crispações identitárias no alvorecer do novo milênio, algo

talvez paradoxal, dado o amplo conhecimento das demais religiões, facilitado pelas novas

tecnologias e pelo processo de aproximação global entre os povos? Há que se considerar que

conhecimento não leva necessariamente ao reconhecimento! Outras derivadas contribuem

para que essa expressão se torne positiva. A tomada de consciência não se dá de forma linear

e total. Nas palavras de Hick (1998, p. 13), “o intelecto cristão sempre foi composto de muitos

segmentos e camadas, exibindo graus diferentes de autoconsciência e reflexão autocrítica”.

Tanto é assim que foi possível neste texto trazer à luz atitudes de grande abertura às demais

religiões em contextos estruturais de total fechamento identitário religioso.192 Uma maior ou

menor consciência da diversidade religiosa pode, isto sim, possibilitar uma maior ou menor

abertura religiosa. No entanto, a consciência da diversidade religiosa não garante

automaticamente uma aproximação dialogal com as demais religiões. A medida de tal

aproximação será a aceitação ou não dessas religiões como caminhos verdadeiros de

salvação/libertação para seus seguidores. No caso negativo, a possibilidade é a crispação

identitária, fruto também da consciência da existência do outro, só que disputando com ele o

espaço religioso. Na tentativa de preservar o próprio espaço, combate-se o outro.

A identidade muda porque também muda a consciência possível, à medida que o

tempo passa e novos acontecimentos se apresentam. O anacronismo de se olhar o passado

192 Exemplos de grande abertura religiosa em momentos de pequena possibilidade de conhecimento do outro, caso de Nicolau de Cusa (1401-1461), e atitudes de total fechamento em momentos de enormes possibilidades de visão da alteridade, como no documento da Congregação para a Doutrina da Fé (2000).

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com olhos do presente, torna-se um anacronismo às avessas, quando se negam os novos

acontecimentos do mundo atual em que se vive, com suas amplas possibilidades de

conhecimento, pelo fato de se olhar para eles com olhos do passado. Dito de outra forma,

categorias disponíveis atualmente não podem servir a uma condenação pura e simples de atos

do passado, assim como categorias do passado não podem ser tomadas literalmente, pois

podem dificultar e mesmo impedir um olhar aos novos contextos mundiais.

Essas questões continuarão presentes e perpassando as linhas desta pesquisa. Por ora,

resta continuar observando a evolução da abertura e ampliação da expressão “Reino de Deus”,

tão cara aos estudiosos abertos do inclusivismo.

Se imediatamente antes do concílio Vaticano II, Zapelena afirmava uma identificação

total entre “Reino de Deus” e “Igreja católica romana”, como o concílio tratou a questão? Sua

comissão preparatória apresentou um esquema,193 recusado pelos padres conciliares,

defendendo uma rigorosa identificação entre mistério da “Igreja” e “Igreja católica romana”.

Posteriormente, o documento apresentou diversos esboços diferentes acerca desse tema

específico. Esse fato e os posteriores debates conciliares levaram o concílio a distanciar-se da

identificação da “Igreja” com “Igreja católica romana”, adotando a fórmula: “Haec Ecclesia

[...] subsistit in Ecclesia catholica”.194 A expressão “subsistit in” foi escolhida, em

substituição a “é”,195 não sem debates e questionamentos, pela sua característica atenuante,

estabelecendo um rompimento com a simples identificação. As atas do concílio196 indicam

que “em lugar de é diga-se subsiste em, como expressão que melhor concorda com a

afirmação de elementos eclesiais que podem ser encontrados em outros lugares”. A

193 Schemata Constitutionum et Decretorum (series secunda). Città del Vaticano, 1962. 194 “A Igreja [...] subsiste na Igreja católica” (LG, n. 8). 195 Se aprovado em sua primeira versão, o texto ficaria assim: "A Igreja [...] é a Igreja católica". 196 Relationes de singulis numeris, relação sobre o n. 8, 25, Relatio super caput primum textus emendati Schematis Constitutionis de Ecclesia. Città Del Vaticano, 1964.

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substituição possibilitava o reconhecimento de “vários elementos de santificação e verdade”

(LG, n. 8) nas demais igrejas cristãs. 197

Por outro lado, um dos documentos do concílio (LG, n. 5) afirma claramente que o

“Reino de Deus [foi] iniciado na terra pelo próprio Deus e destinado a crescer até o fim dos

séculos. Deus então o consumará”. Não há dúvida de que “Cristo cumpriu a vontade do Pai,

inaugurou na terra o Reino dos céus” (LG, n. 3). Apesar de se falar em um reino ainda

incompleto, em construção até a consumação final, a constituição dogmática citada, em outros

lugares, dá a impressão de que há uma identificação entre o Reino de Deus em sua fase inicial

e a igreja terrena,198 assim como o aperfeiçoamento do reino corresponderia à passagem da

igreja na terra à igreja nos céus.199

O mais correto, então, pela análise da Lumen gentium, é a afirmação de que, nesse

documento específico, “Igreja” e “Reino de Deus” continuam identificados. Essa asserção é

relacionada a essa constituição dogmática pelo fato de existirem aberturas e superações em

outros escritos do concílio. É o caso da constituição pastoral Gaudium et spes. Ao falar do

crescimento do Reino de Cristo e de Deus na história e de sua consumação escatológica, o

documento (GS, n. 39) não se refere à igreja, mas sim a toda a humanidade.200

Após o Vaticano II, já em 1985, a Comissão Teológica Internacional, em documento

(1988) comemorativo ao XX aniversário do concílio, aborda no capítulo II (p. 549-559) as

197 Aproximadamente 40 anos após o concílio, a querela retornou quando da publicação de Dominus Iesus pela Congregação para a Doutrina da Fé (2000). Questionado publicamente pelo cardeal Ratzinger, presidente da Congregação e idealizador do documento, acerca de seus posicionamentos contrários ao texto publicado, Boff (2000b) apresenta contra-argumento nessa mesma linha expressa acima (o Vaticano II não afirmou que a Igreja é a Igreja católica, mas sim que a Igreja subsiste na Igreja católica) e pergunta ao cardeal: “quem subverte o concílio?” 198 “Constitui, pois, a Igreja, o germe e o início do Reino na terra” (LG, n. 5). 199 A igreja, “enquanto vai crescendo, aspira de todo coração pela consumação do Reino” (LG, n. 5); ou, o “povo messiânico” tem como objetivo “o Reino de Deus iniciado na terra pelo próprio Deus e destinado a crescer até o fim dos séculos. Deus, então, o consumará” (LG, n. 9); ou ainda, “a Igreja, Reino de Cristo, desde já misteriosamente presente, cresce no mundo pela força de Deus” (LG, n. 3). 200 “O Reino, misteriosamente presente na terra, chegará à consumação com a vinda do Senhor” (GS, n. 39); ainda, “a Igreja caminha para um único fim: a vinda do Reino de Deus e a salvação de todo o gênero humano” (GS, n. 45).

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relações entre “Reino de Deus” e “Igreja”. Retomando o concílio, acerca da relação entre

igreja na terra e igreja no céu, a comissão insiste na distinção entre ambas: “Não se pode

limitar [...] a Igreja unicamente à sua dimensão terrena e visível”. Por outro lado, esta relação

é também de unidade, pois

a Igreja é essencialmente una nas suas diversas etapas; quer se trate da sua prefiguração na criação, da sua preparação na antiga Aliança, da sua constituição ‘naqueles tempos que são os últimos’, da sua manifestação mediante o Espírito Santo e, enfim, da sua consumação no fim dos tempos, na glória (cf. LG, n. 2) (COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL, 1988, p. 549-550).

Sobre a relação entre “Igreja” e “Reino”, a comissão afirma não existir no concílio

análise explícita da questão, sendo possível, no entanto, pela comparação de vários textos,

captar seu ensinamento a esse respeito. De antemão, o documento da comissão previne contra

a tendência de se acentuar “unilateralmente o aspecto escatológico para o Reino e o aspecto

histórico para a Igreja” (COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL, 1988, p. 553).

Os membros da comissão afirmam (COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL,

1988, p. 553) que, examinando os escritos do concílio, “não encontramos nenhuma diferença

entre a Igreja e o Reino. É evidente [...] que, no ensinamento do concílio, não pode haver

diferença quanto à realidade futura no fim dos tempos, entre a Igreja consumada

(consummata) e o Reino consumado (consummatum)”. No tempo presente, essa relação

apresenta-se de forma “sutil”. Tanto no destino quanto no crescimento, a “Igreja” e o “Reino”

“apresentam-se inseparáveis na origem [...]. Nascimento da Igreja e advento do Reino de

Deus se manifestam em perfeita simultaneidade” (COMISSÃO TEOLÓGICA

INTERNACIONAL, 1988, p. 553-555). Concluindo, a comissão expressa que “ser membro

do Reino implica uma pertença – ao menos implícita – à Igreja” (COMISSÃO TEOLÓGICA

INTERNACIONAL, 1988, p. 555).

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A relação igreja e reino de Deus recebe um tratamento um tanto diferente e “novo”

(DUPUIS, 1999, p. 464) em um documento pontifício (Redemptoris Missio) do início da

década de 90 (1991). Nele, há a estreita identificação do reino com Jesus Cristo:201 “Ao

ressuscitar Jesus dos mortos, Deus [...] inaugurou, definitivamente, o seu Reino [...]. Sobre o

anúncio de Jesus Cristo, com o qual o Reino se identifica, se concentra a pregação da Igreja

primitiva” (JOÃO PAULO II, 1991, n. 15). No entanto,

o reino diz respeito a todos: às pessoas, à sociedade, ao mundo inteiro. Trabalhar pelo Reino significa reconhecer e favorecer o dinamismo divino, que está presente na história humana e a transforma. Construir o Reino quer dizer trabalhar para a libertação do mal, sob todas as suas formas. Em suma, o Reino de Deus é a manifestação e a atuação de seu desígnio de salvação, em toda a sua plenitude (JOÃO PAULO II, 1991, n. 15).

Mais à frente, o mesmo documento (JOÃO PAULO II, 1991, n. 20) faz uma

ampliação ainda maior e, apesar de acrescentar que a “dimensão temporal do reino”

vivenciada pelas demais religiões “está incompleta, enquanto não se ordenar ao Reino de

Cristo, presente na Igreja”, afirma claramente que “é verdade que a realidade incipiente do

Reino pode encontrar-se também fora dos confins da Igreja, em toda a humanidade, na

medida em que ela viva os ‘valores evangélicos’ e se abra à ação do Espírito que sopra onde e

como quer (cf. Jo 3, 8)”.

Para Dupuis (1991, p. 467), embora “com grande cautela e não sem reservas”,

a carta encíclica Redemptoris missio é o primeiro documento do magistério romano que distingue claramente, embora mantendo-os unidos, a Igreja e o Reino de Deus em sua peregrinação no curso da história; o Reino presente no mundo é uma realidade mais ampla do que a Igreja; ele se estende para além das fronteiras da Igreja e inclui – embora de modo que possam ser diferentes – não só os membros da Igreja, mas também os ‘outros’.

Antes, porém, em 1985, outro documento do magistério da igreja, no seu braço

asiático, já afirmava, sem hesitação, a ampliação do reino para além das fronteiras eclesiais

201 O documento coloca-se contra a perspectiva “reinocêntrica”, aquela estabelecida sem relação direta com Jesus Cristo.

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católicas como fato puro e simples. Para os bispos asiáticos (FEDERAÇÃO DAS

CONFERÊNCIAS EPISCOPAIS DA ÁSIA, 2000a, p. 32),

o reino de Deus é a própria razão de ser da Igreja. A Igreja existe no Reino e para o Reino. O Reino, dom e iniciativa de Deus, já começou e está em constante via de realização e se faz presente por meio do Espírito. Onde Deus é acolhido, onde os valores do Evangelho são vividos, onde o ser humano é respeitado [...], aí está presente o Reino de Deus. Ele é muito mais amplo do que as fronteiras da Igreja. Essa realidade já presente está ordenada para a manifestação final e para a perfeição plena do Reino de Deus.

Em documento 202 mais recente, de 1992, a mesma Federação das Conferências dos

bispos asiáticos, ampliando ainda mais as dimensões do reino e afirmando a compatibilidade

entre “reinocentrismo” e “cristocentrismo”, expressa que

o reino de Deus é uma realidade universal, estendida para além dos confins da Igreja. É uma realidade da salvação em Jesus Cristo, da qual participam juntos os cristãos e os outros. É o ‘mistério da unidade’ fundamental que nos une mais profundamente do que as diferenças religiosas que nos separam. Visto desse modo, uma abordagem ‘reinocêntrica’ à teologia da missão não coloca de modo algum em questão a perspectiva cristocêntrica de nossa fé. Ao contrário, o ‘reinocentrismo’ precisa do cristocentrismo, e vice-versa, porque Deus estabeleceu o seu Reino sobre a terra e na história humana em Jesus Cristo e através do evento-Cristo (cf. RM, nn. 17-18).

Essa relação entre “reino” e “Jesus” parece encontrar respaldo na atual exegese do

Segundo Testamento. Dupuis (1999a, p. 469) afirma que “o reino de Deus encontra-se, sem

dúvida nenhuma, no centro da pregação e da missão de Jesus, do seu pensamento e da sua

vida, das suas palavras e das suas ações”. Não é possível, em se tratando da história cristã,

relegar os momentos terrenos de seu “fundador” a um segundo plano.203 Um olhar sobre suas

atitudes, ações e pregações torna-se extremamente necessário. E a perspectiva do reino foi

202 Texto em Il Regno-Documenti, 37 (1992)/9, p. 315-320. 203 Indagado sobre as raízes da igreja da qual faz parte, o padre John McCloskey (Revista Veja, ano 35. n. 41, 16 out. 2002), membro da Opus Dei, organização católica ultraconservadora, afirma, sem mencionar a figura de Jesus Cristo: retornar às raízes da igreja “significa manter estrita fidelidade aos ensinamentos doutrinários e morais da Igreja, que são perpétuos e necessários para a salvação. Esses ensinamentos são passados pelo clero, por meio de concílios e encíclicas, e são imutáveis”.

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algo fundamental na vida de Jesus. Ligada a isso, e talvez por causa disso mesmo, sua grande

abertura ao outro diferente!

Para Fraijó (1997a, p. 39), sem Jesus não haveria cristianismo, ainda que Jesus não

pertença somente ao cristianismo, pois se tornou um bem comum de grande parte da

humanidade. Compaixão é “sofrer com”, ter a “capacidade de acompanhamento”! Essas

foram características de Jesus e são elas que explicam as suas atitudes de grande abertura ao

outro e também a persistência do cristianismo através dos séculos. Se as rígidas estruturas

eclesiais renascentistas não conseguiram acabar com o cristianismo foi porque esse, através de

um rico conjunto de símbolos, soube acompanhar o homem desde o berço até a sepultura,

iluminando os seus “momentos decisivos”.

Jesus era judeu! O termo cristão só apareceu mais tarde nas comemorações da morte e

ressurreição. Isso é importante, pois mostra que Jesus não veio fundar o cristianismo; era algo

que não figurava entre suas prioridades. Fraijó (1997a, p. 46-47) prefere considerar que “Jesus

resultou ser o fundador do cristianismo”. Na verdade, sua obsessão ia por outro caminho:

anunciar, seguindo a tradição de seu povo, o reino de Deus. Esse era “o tema central da

pregação de Jesus” (Dupuis, 1999b, p. 60). Um reino, porém, sem fronteiras políticas, mais

apocalíptico.

A missão histórica de Jesus parece “dirigida principalmente, se não exclusivamente, a

Israel” (DUPUIS, 1999a, p. 72), como afirma Mateus (15, 24): “Eu não fui enviado senão às

ovelhas perdidas da casa de Israel”. No entanto, em outro lugar, o mesmo evangelista traz à

baila frases de Jesus que denotam outro sentido, mostrando o mestre com “um

posicionamento bem mais aberto e arejado” (TEIXEIRA, 2002c, p. 14-15): “Em verdade vos

digo que, em Israel, não achei ninguém que tivesse tal fé” (Mt 8, 10), referindo-se ao

centurião, um pagão; “virão muitos do oriente e do ocidente e se assentarão à mesa no reino

dos céus” (Mt 8, 11), mostrando que o reino de Deus não é exclusivo; a parábola do banquete

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(Mt 22, 1-14), inclusive, simboliza a entrada dos “outros” no Reino, não somente na

escatologia, mas na própria história.

Os milagres envolvendo “estrangeiros” têm para Jesus o mesmo significado que os

demais: o Reino de Deus está presente e atuante (Mt 11, 4-6; Lc 4, 16-22; Mt 12, 25-28). A fé

de alguns “pagãos” chega a surpreender Jesus: ao curar a filha endemoninhada de uma

Cananéia, exclama: “Mulher, é grande a sua fé! Seja feito como você quer” (Mt 15, 28).

Na Samaria, Jesus dialoga com uma samaritana. Os discípulos ficam admirados, pois

“os judeus não se dão com os samaritanos” (Jo 4, 9). A admiração de Jesus, por outro lado, é

com a disponibilidade da mulher para a fé. Sobre o local do culto a Deus afirma à samaritana:

“Acredita-me, mulher, vem a hora em que nem neste monte [local do culto samaritano] nem

em Jerusalém [culto judeu] adorareis o Pai” (Jo 4, 21).

Em uma parábola, Jesus confronta as atitudes do “bom samaritano”, de um sacerdote e

de um levita. À vista de um homem ferido à margem da estrada, o sacerdote “passou adiante”

(Lc 10, 31), o levita “prosseguiu” (Lc 10, 32) e o samaritano, no entanto, “moveu-se de

compaixão” (Lc 10, 33) e cuidou dele. Dirigindo-se ao legista judeu, Jesus exorta: “Vai, e

também tu faze o mesmo” (Lc 10, 37).

Foi também somente um estrangeiro samaritano que, após ser curado com outros nove

leprosos (Lc 17, 11-19), voltou dando glórias a Deus. Perguntando onde estariam os outros

nove, Jesus diz ao samaritano: “Levanta-te e vai; a tua fé te curou”.

Percebe-se com clareza que para Jesus o chamado ao Reino de Deus “se estende para

além das fronteiras do povo eleito de Israel” (DUPUIS, 1999a, p. 74). Como se poderia,

então, resolver a nítida contradição, expressa anteriormente, sobre o objetivo da missão de

Jesus? Ela estaria direcionada “às ovelhas perdidas da casa de Israel” (Mt 15, 24) ou aberta a

todos, mostrando um Reino acessível aos demais? Jeremias (1956, p. 63) aponta uma solução,

afirmando que “o chamado de Israel e a incorporação dos pagãos no Reino de Deus são

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eventos sucessivos dentro da história da salvação”. Tanto histórica quanto escatologicamente

as nações “têm acesso [...] simultaneamente” (DUPUIS, 1999a, p. 75) ao Reino de Deus.

Esse “movimento”, levado adiante por Jesus em sua vida terrena e que estava

destinado a se tornar a igreja, não foi, segundo Dupuis (1999a, p. 470), identificado pelo

mestre com “o Reino”. Para ele, Jesus, ao enviar os apóstolos com a missão de anunciar a

vinda do Reino (Mt 10, 5-7), “já estava colocando a Igreja a serviço do Reino”. Mesmo após a

ressurreição, a boa nova (Mc 16, 15)204 a ser anunciada pela igreja continua sendo a vinda do

reino (Mc 1, 15)205: a mesma boa nova proclamada por Jesus durante a sua vida terrena.

Dupuis (1999a, p. 470) está certo de que “a Igreja não é destinada a anunciar a si mesma, e

sim o Reino de Deus”.

A pergunta que surge é: por que a expressão “Reino de Deus”, freqüentemente

presente nos lábios de Jesus, segundo os evangelhos sinóticos, “desaparece quase por

completo no resto do Novo Testamento” (1999a, p. 470)? Um brevíssimo retorno aos

momentos “finais” de Jesus e iniciais do cristianismo faz-se necessário.

Em algum momento se dá a passagem do Jesus histórico ao Cristo da fé, obra,

segundo Fraijó (1997a, p. 52), da pregação da primeira ou das primeiras comunidades. Na

expressão de Bultmann, 206 que, com o método histórico-crítico, ocasionou uma revolução

sem precedentes no cristianismo, isso foi decisivo: o “pregador” ambulante – Jesus de Nazaré,

que anunciou o reino de Deus e não o seu – converteu-se em “pregado”, objeto de pregação.

O que se passou? Como se deu essa passagem? Houve o envolvimento de interesses

obscuros? Com que direito foi dado esse passo?

A mais importante confissão de fé do nascente cristianismo, “Jesus é o Cristo”,

ocorreu quando já estava bastante avançado o século I, quando já estava claro para todos que

204 “‘Ide por todo o mundo, proclamai o Evangelho a toda criatura’”. 205 “‘O tempo está realizado e o Reino de Deus está próximo. Convertei-vos e crede no Evangelho’”. 206 Em sua obra, Teología del Nuevo Testamento, Salamanca: Sígueme, 1981 (original de 1968).

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Jesus, além de anunciar a salvação, era o salvador. Esse é o momento crucial, segundo

Bultmann, 207 em que o pregador se converte em pregado.

Crendo na ressurreição de Jesus, a igreja nascente passou a anunciar (Mc 16, 15) a boa

nova: nele, o Reino de Deus tinha chegado. Cumprindo o mandato do mestre, essa boa nova

foi levada inicialmente aos judeus, estendendo-se progressivamente ao mundo judeu-helenista

e aos gregos.

Encontra-se em Pedro uma primeira abertura ao reconhecimento da possibilidade de

que os pagãos também estavam sendo chamados ao Reino. Instado por um mensageiro de

Deus a ir à casa do centurião Cornélio em Cesaréia, o apóstolo, ao adentrar no recinto,

exclama: “Vós sabeis que é absolutamente interdito a um judeu relacionar-se com um

estrangeiro ou entrar em casa dele. A mim, porém, Deus acaba de mostrar que a nenhum

homem se deve chamar profano ou impuro” (At 10, 28). Além disso, “[...] Deus não faz

acepção de pessoas [...], em qualquer nação, quem o teme e pratica a justiça, lhe é

agradável” (At 10, 34-35, minha ênfase).

No entanto, em Paulo, encontram-se situações que caminham em sentido diverso. O

tom “pessimista” (TEIXEIRA, 2002c, p. 13) do ex-perseguidor dos cristãos na Carta aos

Romanos é direcionado aos pagãos, mas também aos judeus. Enquanto esses receberão a ira

de Deus por não reconhecerem a sua revelação (Rm 1, 18-32), também os judeus provarão

dessa ira divina, pois a eles foram dados dons adicionais, não transformados em obras (Rm 2,

3-6).

Os cristãos, na verdade, segundo Paulo, estão privilegiados. Tanto os judeus quanto as

nações, comparados à nova situação, representam um passado de perdição. “Oferecida aos

cristãos, a fé acaba, por decreto divino, com o valor de todas as religiões (Rm 6,6; 2Cor 5,17;

Ef 5,22; Cl 3,9)” (DUPUIS, 1999a, p. 76).

207 Em sua obra, Teología del Nuevo Testamento, Salamanca: Sígueme, 1981 (original de 1968).

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Mais contundente ainda é a passagem de Paulo por Atenas. Na contramão da visão

otimista de Dupuis (1999a, p. 77-78), que vê o discurso Paulino aos gregos como uma

“mensagem [...] de que as religiões das nações não são destituídas de valor”, sendo uma

“continuidade” do projeto de Deus, esta pesquisa percebe explícito não reconhecimento da

crença do outro. Paulo (At 17, 22-23) se expressa da seguinte forma:

atenienses, sob todos os aspectos sois, eu o vejo, os mais religiosos dos homens. Pois, percorrendo a vossa cidade e observando os vossos monumentos sagrados, encontrei até um altar com a inscrição: ‘Ao Deus desconhecido’. Aquele que adorais sem conhecer, eu venho vos anunciar.

Apesar de alguns terem aderido a ele (At 17,34), outros, ao ouvirem falar de

ressurreição dos mortos, zombavam de Paulo, fazendo-o retirar-se do meio deles (At 17, 32-

33).

Já a pregação de Paulo em Roma, relatada no final do livro Atos dos Apóstolos (28,

30-31, minha ênfase), termina com a seguinte consideração:

Paulo ficou dois anos inteiros na moradia que havia alugado. Recebia a todos aqueles que vinham procurá-lo, anunciando o Reino de Deus e ensinando o que se refere ao Senhor Jesus Cristo com firmeza e sem impedimento.

Note-se a expressão “Reino de Deus”, raridade, como já mencionado, em se tratando

dos demais livros do Segundo Testamento, excetuados os evangelhos sinóticos. Só que ela

aparece aqui de forma “renovada” (DUPUIS, 1999a, p. 471), fazendo menção ao senhorio de

Cristo ressuscitado, que continua o Reino de Deus. Esse senhorio, no entanto, se refere ao

mundo todo e não somente à igreja. Corroboram essa afirmação as cartas aos efésios e aos

colossenses, onde se lê: “[...] Ele é a cabeça de todo Principado e de toda Autoridade (Cl 2,

10)” e “[...] em Cristo recapitular todas as coisas, as que estão nos céus e as que estão na

terra” (Ef 1, 10).

Essa ampliação do reino de Deus ao mundo inteiro é afirmada com muita clareza por

Schnackenburg (1971, p. 305):

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[...] ‘Reino de Cristo’ é [...] uma expressão mais abrangente do que ‘Igreja’. Certamente, na existência terrena dos mesmos, a participação dos cristãos no Reino de Cristo e a própria expectativa deles do Reino escatológico ([conferir] também Fl 30, 20) se dá na Igreja, nesse ambiente de graça no qual o Cristo celeste age (Cl 1, 18-24); mas o Reino de Cristo supera os limites da Igreja, que um dia, cumprida a sua tarefa terrena, se dissolverá no Reino escatológico de Cristo ou, respectivamente, de Deus.

A importância da consciência e do reconhecimento dessa ampliação do reino para

além da igreja e os motivos de se olhar a questão sob esse viés são expostos por Dupuis

(1999a, p. 471) da seguinte forma:

a universalidade do Reino de Deus consiste no fato de que os cristãos e os ‘outros’ partilham o mesmo mistério de salvação em Jesus Cristo, embora tal mistério chegue até eles por caminhos diferentes. Reconhecer que o reino de Deus na história não está limitado às fronteiras da Igreja, mas se estende aos extremos do mundo, é importante e relevante para uma teologia cristã das religiões.

2.3 Um pluralismo original

Debates acerca das possibilidades de ampliação da aliança de Deus com os homens,

para além das fronteiras cristãs, aparecem na história do cristianismo, como se viu, desde

tempos remotos. Ireneu (1979, p. 243), padre da igreja, no século II, já afirmava que

[...] foram dados quatro testamentos ao gênero humano: um antes do dilúvio, no tempo de Abraão; o segundo depois do dilúvio, na época de Noé; o terceiro, que é a legislação, no tempo de Moisés; o quarto é o que renova o homem e resume em si todas as coisas, aquele que advém com o Evangelho e eleva os homens e os faz voar em direção ao reino celeste.

Desde o início dos tempos, o Deus trinitário estaria manifestando-se a todos os

homens, a toda a humanidade, indistintamente.

A partir dessa idéia da ampliação da aliança de Deus com os homens, que chegaria,

inclusive, ao nível de uma aliança cósmica, contrapartida à idéia da eleição de um povo,

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brotaram, mais recentemente, reflexões, de grande alcance na teologia das religiões, acerca de

um Deus que, além de não discriminar, revela-se de maneiras diversas ao longo da história.

Jacques Dupuis (1999a), refletindo a partir da doutrina trinitária, chave hermenêutica, em sua

opinião, para o diálogo com as demais religiões, afirma que essa doutrina pode ser antecedida

ao Primeiro Testamento, a partir da criação do homem, perpassando, a partir daí, todas as

manifestações plurais de Deus na história.208 A pluralidade das experiências religiosas,

facilmente perceptível nos dias de hoje, nada mais seria que uma conseqüência daquelas

manifestações plurais através das quais Deus se revela.

Para além, no entanto, da ampliação da revelação de Deus a toda a humanidade, e não

somente a Israel ou aos cristãos, e também da possibilidade das múltiplas manifestações

divinas, a grande novidade, trazida por alguns inclusivistas abertos, está na afirmação de que

o pluralismo religioso é “expressão mesma da vontade de Deus, que necessita da diversidade

das culturas e das religiões para melhor manifestar as riquezas da plenitude da verdade, que

coincide com o mistério mesmo de Deus” (GEFFRÉ, 1998a, p. 63). É o “princípio da

pluralidade” que, segundo Dupuis (1999a), tem seu fundamento primário na imensa riqueza e

variedade das automanifestações de Deus à humanidade.

Nas reflexões de seus defensores, esse pluralismo de princípio, além de valorizar a

grande diversidade religiosa do mundo como algo querido por Deus, um Deus que “bendiz o

múltiplo” (GEFFRÉ, 2001, p. 9), facilitaria e impulsionaria o diálogo inter-religioso. Diálogo

esse que possibilitaria aos cristãos descobrir novas perspectivas divinas até então

desconhecidas para eles, o mesmo podendo ocorrer com os adeptos das demais religiões. Na

expressão de Geffré (1998a, p. 67), “há mais verdade de ordem religiosa no concerto

polifônico das religiões do mundo que no Cristianismo, considerado em sua exclusividade”.

208 Na base dessas reflexões, está a formulação de que Cristo, um dos pólos da Trindade, ao encarnar-se em Jesus, humanizou-se, limitando-se e, dessa forma, esgotou todas as possibilidades da revelação divina, possibilitando, assim, diversas outras revelações nas demais tradições religiosas através de suas figuras salvíficas.

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Experiências religiosas autênticas e únicas, irrevogáveis e irredutíveis ao cristianismo

podem acontecer nas demais religiões e, exatamente pelo fato de serem irredutíveis, os

cristãos não conseguirão tematizá-las ou vivenciá-las. Assim como Israel tem algo de

irredutível ao cristianismo, também se deve admitir que o cristianismo histórico não pode ter a

pretensão de integrar e substituir as riquezas autênticas das outras tradições religiosas. O que

poderá ocorrer, isto sim, é uma “complementaridade recíproca” entre as religiões que lhes

possibilitarão estar sempre em contato, na busca do mútuo enriquecimento.

Teixeira (1998a, p. 55), refletindo acerca da teologia de Geffré, afirma que “levar a

sério as religiões é nelas reconhecer algo de irredutível e irrevogável, que jamais será

tematizado ou totalizado no cristianismo”. É a explicitação do pluralismo de princípio no seu

grau máximo. Deus, Mistério absoluto, inacessível a todos em sua totalidade, valoriza de tal

forma as manifestações religiosas, na sua rica diversidade, que revela a cada uma delas algo

totalmente inaudito para as demais.

No entanto, o grande mérito desse conceito, a grande valorização do outro religioso,

torna-se também o seu calcanhar de Aquiles. Críticos do pluralismo de princípio não faltam,

algo bastante compreensível em se tratando de reflexões tão ousadas.209 Catão (2001, p. 211-

212, minha ênfase), autor que reflete apenas esporadicamente acerca do diálogo inter-

religioso, mesmo percebendo que “todos reconhecem a realidade do pluralismo de fato, na

atual conjuntura religiosa”, acerca do pluralismo de princípio não é tão otimista.

Diante do fato pluralista, os analistas do fenômeno religioso chegam a pensar que o pluralismo é próprio da religião, e falam pura e simplesmente de um pluralismo de direito. Julgam mesmo, não sem certo abuso, que a busca de uma pretensa unidade de toda a humanidade, classicamente

209 Miranda (2003, p. 359, ênfase do autor) afirma que a pluralidade das religiões deve ser olhada a partir do único desígnio salvífico de Deus: Jesus Cristo. “Elas não estão aí para completar o que faltou em Jesus Cristo, mas sim o que falta em nossa apropriação dessa verdade última sobre Deus e sobre nós, que é inevitavelmene contextualizada e histórica. Diante do que dissemos, parece-nos secundária a discussão sobre uma possível ‘complementação’ entre as religiões, ou sobre o caráter de ‘religião em relação’ atribuído ao cristianismo, ou mesmo sobre a valoração, de jure ou de facto, qualificando teologicamente a pluralidade das religiões”.

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fundada na unidade da Realidade Primeira Pessoal, a que denominamos Deus, é abusiva e opressora.

Tentando um meio termo, o autor (2001, p. 212) fala em “pluralismo de contingência”

ou “pluralismo contingente”. Nele, haveria a valorização do pluralismo religioso, algo muito

mais do que simples fato, porém vivenciado numa situação decorrente da condição humana e

histórica, ou seja, em situações particulares contingentes.

Em outros lugares, neste caso, oficiais eclesiásticos católicos, (CONGREGAÇÃO

PARA A DOUTRINA DA FÉ, 2000, n. 4), a idéia de um pluralismo de princípio é taxada de

relativista: “o perene anúncio missionário da Igreja é hoje posto em causa por teorias de

índole relativista, que pretendem justificar o pluralismo religioso, não apenas de facto, mas

também de iure (ou de princípio)”.210

O tamanho de um avanço, no entanto, talvez possa ser medido, e mesmo melhor

compreendido, pelo tom das críticas recebidas e pela insegurança causada. Parece ser o caso

desse proposto pluralismo de princípio! Pensadores cristãos, em graus diferentes, mais ou

menos abertos, sensíveis e tocados pela realidade plural religiosa, conscientizando-se de que

as tradicionais respostas não mais satisfazem, de maneiras diferentes, avançaram em suas

reflexões no sentido de dialogar com essa nova realidade plural religiosa do mundo. Assim

como o contexto das religiões vai-se modificando historicamente, também o olhar cristão,

acerca das religiões, renova-se paulatinamente. A conseqüência prática pode ser uma melhor

convivência entre as diferentes crenças.

Para se pensar em diálogo, convivência ou mesmo possível encontro entre culturas

diferentes, é necessário pensar-se em paz. No caso de diálogo, convivência ou possível

210 Acerca dessa questão, a expressão de Geffré (1998a, p. 139, ênfase do autor) é cristalina: “sem comprometer o empenho absoluto inerente à fé, é permitido considerar o cristianismo como uma realidade relativa, não porém no sentido em que ‘relativo’ se opõe a ‘absoluto’, mas no sentido de uma forma relacional. A verdade da qual o cristianismo dá testemunho não é exclusiva nem inclusiva de qualquer outra verdade; ela é relativa àquilo que há verdade nas outras religiões.”

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encontro inter-religioso, 211 a necessidade da paz é ainda mais fundamental! A expressão de

Küng (2001, p. 108-109, ênfase do autor) é cristalina:

Todas as religiões do mundo devem hoje reconhecer a sua co-responsabilidade pela paz mundial. Por isso, deve-se repetir sempre de novo a tese, para a qual eu tenho encontrado em todo o mundo cada vez maior apoio: não haverá paz entre as nações sem uma paz entre as religiões. Em resumo: sem paz entre as religiões não haverá paz no mundo!

Ghandi afirmava que “não há caminhos para a paz, a paz é o caminho”! Mesmo que

inexistissem outros motivos, esse seria o bastante para que as religiões procurassem um

entendimento recíproco. Como se verá mais à frente, essa é a grande contribuição, não por

falta de outras, das trilhas abertas pelos teólogos inclusivistas e pelos pluralistas que ousaram

avançar em suas reflexões acerca do pluralismo religioso.

Saramago (2001, p. 8), distante de qualquer discussão teológica formal acerca da

pluralidade religiosa, porém bastante sensível às questões do mundo em que vive, afirma sem

reticências que

de algo sempre haveremos de morrer, mas já se perdeu a conta aos seres humanos mortos das piores maneiras que seres humanos foram capazes de inventar. Uma delas, a mais criminosa, a mais absurda, a que mais ofende a simples razão, é aquela que, desde o princípio dos tempos e das civilizações, tem mandado matar em nome de Deus.

211 Tolerar não é dialogar nem conviver, apesar de poder constituir-se em um primeiro passo para que tal diálogo aconteça, desembocando, finalmente na convivência mútua inter-religiosa. Na concepção de Libera (2002, p. 3), filósofo e historiador, o conceito iluminista de tolerância não dá conta das questões relacionadas ao diálogo inter-religioso no mundo atual. Isso porque, diz o autor, “para falar em tolerância é preciso pressupor a idéia de que não vale a pena, por uma série de razões, discutir os argumentos teológicos do outro”. E o diálogo, ainda segundo esse autor, deveria, sob pena de não se realizar, ser aberto justamente “nesse lugar em que religião e pensamento se encontram”, o “terreno [...] teológico e filosófico”. Libera considera ignorância tentar conversar com indivíduos religiosos somente a partir de pressupostos sócio-econômicos, psicológicos ou políticos, sem conhecimento sólido de religião e teologia.Dessa forma, não basta tolerar o outro religioso. Para Libera (2002, p. 3), é isso o que o pensamento filosófico medieval pode ensinar ao mundo pós-medieval. “A pergunta filosófica medieval é: o que autoriza intelectualmente você, a partir do seu livro religioso de referência, a afirmar o que afirma?” O que se percebe aí é a busca de um “consenso argumentativo”, implicando necessariamente na “idéia de que as partes entendem que é importante compreender logicamente e avaliar as formas religiosas de vida e de pensamento do outro”. É sob este ângulo, e não do anacrônico termo tolerância, que o autor vê o paraíso andaluz de convivência religiosa entre cristãos, muçulmanos e judeus.

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Assim como o homem atual tem acesso maior às diversas culturas do mundo, podendo

divisar com mais clareza seu pluralismo cultural, o homem religioso tem melhores

possibilidades de enxergar a diversidade religiosa presente no mundo. Possibilidade que, em

anos recentes, tem aumentado consideravelmente devido a uma maior aproximação cognitiva

entre os diferentes povos e religiões. Essa diversidade religiosa recebe, no debate teológico

cristão, o nome de pluralismo de fato. Faz referência à existência, melhor dizendo, à

consciência cristã da existência das religiões em si mesmas, da diversidade religiosa no

mundo, sem, no entanto, perguntar pelas causas de seu aparecimento ou de sua função no

plano de Deus. Dá-se como certo que são oriundas do mundo em sua diversidade, sendo que

apenas o cristianismo adviria do próprio Deus. Em que momento aflorou com maior

intensidade a possibilidade de se conhecer o outro religioso em sua própria identidade?

Muitos dados disponíveis ao homem na Modernidade, e mais ainda na pós-

modernidade, inexistiam na Idade Média. Retomando as palavras de Hick (1998, p. 14),

caberia perguntar: “o que teria conduzido muitos – talvez a maior parte – dos pensadores

cristãos, durante os últimos setenta anos ou em torno disso, a abandonar 212 gradualmente

[...] a posição absolutista [com relação às demais religiões]?” A resposta deve ser buscada nas

mudanças percebidas no mundo aproximadamente nos últimos 70 anos, período mencionado

por Hick, quando foi desencadeado e evoluiu um grande processo de globalização.213 É o que

se pretende vasculhar de forma bastante breve e esquemática a seguir.

212 É necessário relembrar a ênfase desta pesquisa à palavra utilizada pelo autor citado – “abandonar”: ela permitiu uma breve reflexão discordante, no sentido de que tal “posição absolutista” não foi totalmente abandonada, seja no campo intelectual, nos documentos magisteriais ou na prática religiosa de alguns grupos eclesiais. 213 Processo denominado por vezes, não sem conseqüências, de mundialização. Enquanto o termo “globalização” estaria mais ligado ao mundo econômico-financeiro e suas mazelas, “mundialização”, termo derivado de “mundialismo”, acenaria para uma comunidade humana única, um universalismo, objetivando a construção de sua unidade.

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3 A GLOBALIZAÇÃO E SUAS CONSEQÜÊNCIAS

Bauman (1999a, p. 7), acerca do tema, expressa que

a ‘globalização’ está na ordem do dia; uma palavra da ordem que se transforma rapidamente em um lema, uma encantação mágica, uma senha capaz de abrir as portas de todos os mistérios presentes e futuros. Para alguns, ‘globalização’ é o que devemos fazer se quisermos ser felizes; para outros, é a causa da nossa infelicidade. Para todos, porém, ‘globalização’ é o destino irremediável do mundo, um processo irreversível; é também um processo que nos afeta a todos na mesma medida e da mesma maneira. Estamos todos sendo ‘globalizados’ – e isso significa basicamente o mesmo para todos (BAUMAN, 1999a, p. 7).

A maneira como esse processo foi engendrado e se manifesta atualmente é o que se

tentará observar.

3.1 As sociedades nacionais e a sociedade global

De maneira geral, quando ocorrem conjunturas críticas, algumas características da

sociedade mundial se revelam de forma bastante nítida. Nesses momentos, explicitam-se

relações, processos e estruturas que têm pouca visibilidade, chegando mesmo a serem

insuspeitados. São acontecimentos que tornam explícitas características essenciais da

sociedade mundial, pois, de um lado, operam em escala global e, de outro, põem em evidência

características básicas das sociedades nacionais. Dentre os acontecimentos do século XX,

alguns podem ser vislumbrados como pertencentes a essa categoria.

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a) A Primeira Guerra Mundial, de 1914 a 1918.

b) A Grande Depressão Econômica Mundial, iniciada em 1929.

Nos anos 1930, sob os efeitos da Grande Depressão, economicamente em situação

fragilizada, quase todos os países da América Latina tiveram mudanças bruscas, violentas ou

ilegais de governos, regimes e blocos de poder.

c) A Segunda Guerra Mundial, de 1939 a 1945.

Nos anos posteriores aos da Segunda Guerra Mundial, praticamente todas as colônias

européias da África, Ásia e América Latina emanciparam-se politicamente. Germinando

desde o começo do século, algumas transformações sociais, econômicas, políticas e culturais

aceleraram-se depois da Segunda Grande Guerra, num processo que iria intensificar-se com a

futura Queda do Muro de Berlim e todos os acontecimentos de seu entorno.

d) A Guerra Fria, iniciada em 1946.

Inaugurada simbolicamente a partir do discurso de Winston Churchill em Fulton, nos

Estados Unidos, a Guerra Fria proporcionou um novo desenho da cartografia geopolítica,

onde os países capitalistas impuseram um alto custo social, econômico, político e cultural aos

regimes socialistas, através de cerco, bloqueio e agressividade sem par.

Desde o início da Guerra Fria, a indústria cultural do capitalismo passou a realizar tarefas fundamentais, e com eficácia, na guerra ideológica que acompanha a própria Guerra Fria. Em todos os níveis, o capitalismo aparece como um poderoso sistema, um processo civilizatório, impondo-se a todas as outras formas sociais de vida e trabalho (IANNI, 2003, p. 19, ênfase do autor).

Esse processo desencadeado a partir da Guerra Fria iria manifestar-se, no entender de

Ianni (2003), de forma aberta e expansiva após a queda do Muro de Berlim.

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e) A queda do Muro de Berlim, em 1989.

A inauguração da perestroika e da glasnost, em 1985, na então União Soviética, sob

Gorbachev, colocou em marcha o desmantelamento não somente do Muro de Berlim, como

também de todos os governos e regimes das sociedades do antigo bloco soviético,214 no Leste

Europeu, modificando radicalmente a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). A

perestroika atuou economicamente, acarretando mudanças profundas na estrutura do sistema

econômico soviético, substituindo uma economia estatal centralizada pela economia de

mercado. A glasnost, braço político das reformas, propôs a democratização, a quebra do

monopólio da vida política nacional pelo Partido Comunista, o abandono do esquema Estado-

partido-sindicato, a transparência nas relações políticas.

Além da crise do socialismo,215 o Muro de Berlim ao chão representou a abertura de

novas fronteiras à expansão do capitalismo. O que se percebe ocorrendo nas sociedades do

Leste Europeu naquele momento, ressalvadas as condições peculiares a cada uma, é uma

ruptura estrutural, revolucionária, de uma enorme significação (IANNI, 2003). A grande

transformação que se acha em curso nessa parte da história, quando se imaginava que essa já

havia realizado suas principais potencialidades, “surpreende praticamente a todos e faz ruir

esquemas, estratégias, interpretações, arranjos políticos, alianças econômicas e geopolíticas,

conveniências e cumplicidades” (IANNI, 2003, p. 21). O outrora impossível e inimaginável

214 União Soviética, Tchecoslováquia, Polônia, Hungria, Iugoslávia, Bulgária, Romênia, Lituânia, Letônia, Estônia e Albânia. 215 Segundo Sweezy (1990, p. 19), o socialismo em crise no Leste Europeu já teria nascido prematuro – muitíssimo prematuro, nos casos ocorridos na África, Ásia e América Latina, no dizer de Ianni (2003) –, sem as condições ideais para se impor como um novo sistema. Isso porque a teoria da revolução socialista, admitindo-se aceitá-la dessa forma, pressupõe as condições e as contradições da sociedade capitalista desenvolvida, o que não se observa quando da conquista do poder pelos partidos comunistas nas sociedades em questão. Além do predomínio de segmentos agrários, elas contavam ainda com remanescentes pré-capitalistas ou francamente feudais. Devido a esse nascedouro prematuro, as sociedades socialistas “ocorreram em partes débeis e relativamente subdesenvolvidas do sistema capitalista global e, conseqüentemente, nunca foram capazes de competir em condições de igualdade com as partes mais fortes e desenvolvidas do sistema. Desde o início, pois, tiveram que dedicar todas as suas energias às mais elementares tarefas de sobrevivência [...]”.

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torna-se realidade presente, simbolizada com extrema felicidade por Walter Russel Mead:216

“a história, depois de quarenta anos de moderação, caiu do trem. Vaga pelas ruas e ninguém

sabe para onde foi”. Traduz bem a sensação de espanto e incerteza que acometeu pensadores,

historiadores e cientistas políticos frente à “Grande Revolução Européia de 1989” (IANNI,

2003, p. 21).

Essas transformações representam uma ruptura teórica e histórica de profundas e

amplas implicações tanto para as sociedades particulares envolvidas, quanto para a nascente

sociedade global.217

É nesse contexto que se percebe de forma acentuada e generalizada o processo de

mundialização.218 Algo que já vinha ocorrendo em décadas anteriores, mas de uma forma

limitada, pois esbarrava nos blocos e alinhamentos mundiais antagônicos liderados pelos

Estados Unidos e pela União Soviética. Com o malogro dos experimentos socialistas nos

países onde eles se ensaiavam,219 o capitalismo parece não ter mais fronteiras e em pouco

tempo se mundializa, globaliza, universaliza.

As características da marcha da globalização incluem a internacionalização das finanças e seguros comerciais, a mudança da divisão internacional do trabalho, o vasto movimento migratório do sul para o norte e a competição ambiental que acelera esses processos. Elas incluem também mudanças na natureza dos Estados e nos sistemas de Estado. Os Estados estão sendo internacionalizados em suas estruturas internas e funções. Por toda a maior parte deste século [XX], o papel dos Estados era concebido como o de um aparato protetor das economias nacionais, em face das forças externas perturbadoras, de modo a garantir adequados níveis de emprego e bem-estar nacionais. A prioridade do Estado era o bem-estar. Nas últimas décadas, a prioridade modificou-se, no sentido de adaptar as economias nacionais às

216 Citado por ELSON, John. Sorting through the runes. Times, Nova York, p. 42-43, 23 abr. 1990. 217 Denominada também como “aldeia global” (Mcluhan), “sistema mundial” (Wallerstein), “nossa era de uma única teia” (Tilly), “ocidentalização mundial” (Ianni), numa forma mais crítica e “americanização do mundo”, na forma panfletária dos anos 1970. Outras denominações se fazem presentes: “mundo de fronteiras rompidas”, “comunidade mundial”, “nova ordem mundial”. 218 Segundo Held e Mcgrew (2001, p. 7-8), “foi somente nos anos 1960 e início dos anos 1970 que o termo ‘globalização’ passou a ser efetivamente usado”. 219 Held e Mcgrew (2001, p. 8) concordam com a idéia de que “depois do colapso do socialismo de Estado e da consolidação mundial do capitalismo, a discussão acadêmica e popular da globalização teve uma intensificação drástica”.

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exigências da economia mundial. O Estado está se tornando uma correia de transmissão da economia mundial à economia nacional (COX, 1990, p. 2).

Por tratar-se de um processo em marcha, e não de um fato acabado, além do que

enfrentando obstáculos, sofrendo interrupções, porém, ao mesmo tempo, generalizando-se e

aprofundando-se como tendência, a globalização ainda não chegou aos quatro cantos do

planeta. No início da década de 1990, Belli (1991, p. 50, ênfase do autor) afirmava com

relação a esse processo que

a globalização deixou bastante à parte duas imensas regiões do globo, compreendendo mais de 60 países, com cerca de 20% da população mundial e uma respeitável parcela dos seus recursos naturais: África e América Latina [...]. Além da liberalização do comércio, a privatização está mudando a forma e o desempenho dos mercados em muitas nações latino-americanas e africanas [...]. Já há indícios do que a América Latina e a África poderão se tornar. A liberalização do comércio, combinada com competente administração econômica, pode tornar as estruturas de custos e lucros destas regiões enormemente atrativas nos anos 1990 [...]. Os resultados poderão significar [...] também, com a inclusão da América Latina e África no mercado mundial, a verdadeira globalização da globalização.

A assertiva talvez permaneça válida para a África, que continua em sua maior parte

alijada desse processo.220 Por isso, globalização, o termo que definiu a economia dos anos

1990, talvez seja ainda inadequado atualmente. Porém é certo que as economias das nações

industrializadas têm-se interligado de forma crescente por meio do comércio global e dos

produtos globais. Não há como negar que não somente no Leste Europeu, União Soviética,

Europa e Estados Unidos mas também na Ásia, África, Oceania, América Latina e Caribe, em

todos os cantos do mundo, há repercussões mais ou menos notáveis da ruptura histórica 220 Eis o parecer de Arrighi (1994, p. 330-331) acerca dessa exclusão de continentes, o africano, entre eles, ou parte dele: “comunidades, países, até mesmo continentes inteiros, como no caso da África subsaariana, foram declarados ‘desnecessários’, supérfluos para a economia mutável de acumulação capitalista em escala mundial. Combinado ao colapso da União Soviética como potência mundial e império territorial, o desligamento dessas comunidades e lugares ‘desnecessários’ do sistema de abastecimento mundial deu início a inumeráveis disputas, a maior parte delas violenta, sobre ‘quem é mais supérfluo que quem’, ou, em termos mais simples, sobre a apropriação de recursos que praticamente desapareceram depois do desligamento. Em termos gerais, essas disputas foram diagnosticadas e tratadas não como expressões da autoproteção da sociedade contra a ruptura dos modos de vida estabelecidos sob o impacto da intensificação da concorrência no mercado mundial – o que é verdade na maior parte dos casos. Em vez disso, foram diagnosticadas e tratadas como expressões de ódios atávicos ou rixas entre valentões locais pelo poder, sendo que ambas as razões desempenharam, no máximo, apenas um papel secundário”.

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iniciada em 1989, quando a queda do Muro de Berlim simbolizou o fim da guerra civil

internacional iniciada em 1917.

O fim de um ciclo não deixa para trás, no entanto, todos os problemas que com ele

caminhavam. Continuam as desigualdades, tensões e contradições que estavam e continuam a

estar na base da vida das nações e continentes. Habermas (1991, p. 56), logo após os eventos

que envolveram a queda do Muro de Berlim, pronunciava-se sobre os novos tempos,

pronunciamento que ainda conserva certo frescor.

Com efeito não se deve pensar que a queda do muro foi apenas a superação de um de nossos problemas específicos gerados pelo sistema. Entre nós, tanto quanto anteriormente, a insensibilidade do sistema econômico de mercado em relação aos seus custos externos sobre o meio ambiente social e natural não enxerga que se trata de uma via de crescimento econômico em crise, com as conhecidas disparidades e marginalizações no plano interno, com os atrasos e involuções econômicas, ou seja, com as condições bárbaras de vida, com as expropriações culturais e catástrofes de fome no Terceiro Mundo, e não menos com os riscos de alcance mundial de uma intensa utilização da natureza.

O mesmo processo de globalização que possibilita o ocaso do Estado-nação, ou ao

menos a redefinição das condições de sua soberania, 221 também provoca o desenvolvimento

de diversidades, desigualdades e contradições em escala mundial. Não se deve esquecer que a

221 Percebem-se diferentes concepções acerca do papel do Estado-nação no mundo globalizado. Dessas diferentes concepções, brotam posturas e explicações diversas para o alcance dos efeitos – benéficos ou maléficos – da globalização. Vejam-se, por exemplo, as trajetórias de crescimento muito diferentes da Ásia oriental e da África subsaariana na última geração. Duas das economias de crescimento mais rápido no mundo atual estão nos países mais populosos, China e Índia; a África subsaariana, em contraste, viu sua renda per capita declinar tragicamente no mesmo período. Compartilhando a visão de que aí se encontram, de uma forma ou de outra, conseqüências da globalização, as diferentes concepções divergem, no entanto, com relação à explicação dessa diferença. Porque a China e a Índia se integraram à economia global, enquanto a África subsaariana é uma parte do mundo que mal foi tocada pela globalização ou pelas corporações multinacionais? Enquanto Francis Fukuyama responde que é devido à existência, nos dois primeiros, de governos fortes, pois “a solução não é minar a soberania, mas construir Estados mais fortes no mundo em desenvolvimento” (Cf. FUKUYAMA, Francis. Marx mon amour. New York Times Book Review. [Publicado pela Folha de São Paulo, no caderno Mais!, p. 4, em 1/8/2004]), Michael Hardt aponta, como dado fundamental no caso chinês, para “a criação de uma enorme população de pobres e excluídos e de uma pequena população de ricos” e isso tem “muito a ver com a crescente divisão de classes dentro do país”, o que torna necessária, não uma ênfase às fronteiras e à soberania nacionais, mas às conexões globalizadas, o intercâmbio (Cf. HARDT, Michael. A rede concreta. [Entrevista à Folha de São Paulo, publicada no caderno Mais!., p. 7, em 1/8/2004]).

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história da mundialização, da globalização do mundo, é a história do próprio capitalismo

(IANNI, 2003).222

Algumas características podem ser apontadas como específicas dessa nova sociedade

global em curso (IANNI, 2003):

a) o domínio da energia nuclear: inicialmente, uma poderosa técnica de guerra e,

posteriormente, como fonte de energia, mobilizada no início pelas grandes potências e,

depois, expandindo-se a outras nações de segundo e terceiro escalão;

b) a revolução informática: as conquistas da eletrônica migram aos poucos dos países do

primeiro mundo para os demais, não todos, em absoluto, propiciando uma capacidade

excepcional de formar e informar, induzir e seduzir, jamais alcançada na mesma

escala;223

c) a organização de um sistema financeiro internacional alinhado às exigências da

economia capitalista mundial, cuja liderança é exercida pelos Estados Unidos, mas

numa disputa de espaço224 com a União Européia, correndo por fora o Japão e, mais

recentemente, com pretensões e vislumbres futuros, a China. As estruturas principais

desse sistema são emanadas do Fundo Monetário Internacional (FMI) e Banco

Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD), também chamado de

Banco Mundial;

222 Anderson (1992, p. 10) chegou a comentar que se todas as pessoas na Terra possuíssem a mesma quantidade de bens materiais que as da América da Norte e da Europa Ocidental, o planeta ficaria inabitável, porquanto a “ecologia global do capital” exige, para que se mantenha o privilégio de poucos, a miséria de muitos. 223 “O mundo tornou-se uma aldeia global e a rede de computadores um posto de trocas instantâneo” (MAGALHÃES, 2004, p. 41). 224 Na expressão de Bauman (1999a, p. 15), “é bem provável que o último quarto deste século [XX] passe à história como o da Grande Guerra de Independência em relação ao Espaço”.

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d) as relações econômicas mundiais são influenciadas e mesmo ditadas pelas exigências

das grandes empresas transnacionais:225 corporações, conglomerados

multinacionais, mundiais, globais, planetários;

e) reprodução ampliada da concentração e centralização do capital, num processo de

universalização em nova escala, novo ímpeto, novas relações;

f) o surgimento de uma espécie de “língua franca”,226 o inglês, meio universal de

expressão de indivíduos, grupos e classes;

g) o neoliberalismo assume ares de pauta econômica mundial, como ideologia e prática,

modo de compreender e agir, forma de gestão do mercado e poder político, concepção

do poder público e privado, ordenação da sociedade e visão do mundo.

A gradual e constante passagem das sociedades nacionais, Estados-nação fortes, para

uma sociedade global, com as características acima mencionadas, desloca nações, indivíduos

e idéias, desenraizando-os, o que faz por estabelecer um processo de “desterritorialização

generalizada” (IANNI, 2003, p. 58).227

225 Segundo Held e Mcgrew (2001, p. 45), “o que impressiona na globalização cultural de hoje é o fato de ser impulsionada por empresas, e não por países. As empresas, dizem os globalistas, substituíram os Estados e teocracias como produtores e distribuidores centrais da globalização cultural. As instituições privadas internacionais não são novas, mas seu impacto de massa o é”. 226 Para Jameson (2001, p. 17), essa é a “língua franca do dinheiro e do poder, que deve ser aprendida e usada para fins práticos mas raramente estéticos. E é precisamente essa conotação de poder que tende a reduzir, aos olhos de falantes de outros idiomas, o valor de todas as formas de alta cultura em língua inglesa”. 227 Ianni (2003) acredita que esse processo de desterritorialização pode lançar a idéia de sociedade global tanto no cerne da pós-modernidade (no lugar de espaços e tempos, simulacros) quanto abrir novas possibilidades para a realização do modo de ser da modernidade (novas possibilidades de expressão da universalidade da razão iluminista). Enquanto Ianni tende mais para a segunda perspectiva, esta pesquisa explorará mais adiante as possibilidades da primeira.

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3.2 Globalização: abordagens conceituais

Deve-se partir do princípio de que não existe uma definição única e universalmente

aceita e incontestável para a globalização. É bastante variado o naipe de formas com as quais

ela é concebida:228

a) ação à distância: quando os atos dos agentes sociais de um lugar podem ter

conseqüências significativas para “terceiros distantes”;

b) como compressão espaço-temporal: referência ao modo como a comunicação

eletrônica instantânea vem desgastando as limitações da distância e do tempo na

organização e na interação sociais;

c) como interdependência acelerada: entendida como a intensificação do entrelaçamento

entre economias e sociedades nacionais, de tal modo que os acontecimentos de um

país têm um impacto direto em outros;

d) como um mundo em processo de encolhimento: erosão das fronteiras e das barreiras

geográficas à atividade sócio-econômica;

e) como interação global;

f) como reordenação das relações de poder inter-regionais;

g) como consciência da situação global;

h) como intensificação da interligação inter-regional.

Quais seriam os fundamentos em que se baseiam essas diferentes concepções de

globalização? Na expressão de Held e Mc grew (2001), o que as fundamenta e diferencia é a

ênfase em aspectos que formam um conjunto tripartite de características:

228 Os autores que mais têm trabalhado a questão conceitual da globalização são: David Harvey, Anthony Giddens, J. N. Rosenau, Fredric Jameson, R. Robertson, J. A. Scholte, T. Nierop, M. Geyer e C. Bright, R. J. Johnston et al., M. Zürn, M. Albrow, E. Kofman e G. Youngs, Held et al.

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a) Aspectos materiais: identificados nos fluxos de comércio, capital e pessoas em todo o

globo, fluxos esses facilitados por tipos diferentes de infra-estrutura – física

(transportes e sistemas bancários), normativa (regras do comércio) e simbólica (a

língua franca: inglês) – que criam as precondições para formas regularizadas e

relativamente duradouras de interligação global. Conseqüência disso são sociedades e

Estados cada vez mais enredados em sistemas mundiais e redes de interação, em

substituição aos antigos contatos ao acaso.

b) Aspectos espaço-temporais: o alcance espacial da ação e da organização social passa

por mudanças significativas, atingindo uma escala inter-regional ou intercontinental. A

ordem global pode não suplantar necessariamente ou ter precedência sobre as ordens

locais de vida social; essas é que podem inserir-se em conjuntos mais amplos de

relações e redes de poder inter-regionais. As coordenadas vitais da vida social

moderna – as limitações do tempo social e do espaço geográfico – já não parecem

impor barreiras fixas. Exemplos claros disso são a internet e a negociação em

mercados financeiros durante as 24 horas do dia. Como encolhem as distâncias,

aumenta a velocidade relativa da interação social, de modo que crises em qualquer

parte do globo produzem um impacto mundial imediato, o que implica num tempo

menor para a reação por parte dos responsáveis pela tomada de decisões.

c) Aspectos cognitivos: expressos numa conscientização popular229 crescente do modo

como os acontecimentos distantes podem afetar os destinos locais (e vice-versa), bem

como em percepções públicas da redução do tempo e do espaço geográfico.

Held e Mcgrew (2001, p. 13), tentando, em vista dos aspectos sugeridos, uma

conceituação básica de globalização, expressam que ela

229 Referência às pessoas de maneira geral e não como classe, como entendida anteriormente.

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denota a escala crescente, a magnitude progressiva, a aceleração e o aprofundamento do impacto dos fluxos e padrões inter-regionais de interação social. Refere-se a uma mudança ou transformação na escala da organização social que liga comunidades distantes e amplia o alcance das relações de poder nas grandes regiões e continentes do mundo.

Isso, no entanto, enfatizam os autores (2001), não quer dizer que está se prenunciando

o surgimento de uma sociedade mundial harmoniosa, onde haveria uma convergência

crescente de culturas e civilizações.230 Mesmo porque, apesar de crescente, ela não é um

processo “uniformemente experimentado em todo o planeta” (HELD; MCGREW, 2001, p.

14).

Juízos críticos são externalizados, a todo momento, lamentando ou celebrando a

globalização. Tomando as expressões de Held e Mcgrew (2001, p. 9), de um lado posicionam-

se os “globalistas” (é um acontecimento histórico real e significativo) e, de outro, os “céticos”

(é uma construção primordialmente ideológica ou mítica de valor explicativo marginal).231

Com propósitos meramente didáticos, Held e Mcgrew (2001, p. 92) apresentam, justapostos,

as principais diferenças de foco acerca da globalização.

230 Segundo Ianni (2003, p. 158), “esse é um processo complexo, múltiplo e contraditório por meio do qual as culturas se encontram, colaboram, tensionam, agridem, mimetizam e modificam reciprocamente”. 231 Os autores esclarecem (2001, p. 9-10) que esses rótulos referem-se a construções de um tipo ideal, recurso heurístico que ordena um campo de investigação e identifica áreas primárias de consenso e dissensão: “eles ajudam a esclarecer as linhas mestras de argumentação e, com isso, a estabelecer os pontos de discordância fundamentais. Proporcionam uma via de acesso à confusão de vozes que se enraíza na literatura sobre a globalização, mas que, por definição, não corresponde a nenhum trabalho, autor ou posição ideológica isolados”.

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Quadro 1 – O grande debate sobre a globalização: resumo232

Céticos Globalistas CONCEITOS Internacionalização, não

globalização Regionalização

Um só mundo, moldado por fluxos, movimentos e redes sumamente extensos, intensivos e rápidos através das regiões e continentes

PODER Predomina o Estado nacional Intergovernamentalismo

Desgaste da soberania, da autonomia e da legitimidade do Estado Declínio do Estado-nação Aumento do multilateralismo

CULTURA Ressurgimento do nacionalismo e da identidade nacional

Surgimento da cultura popular global Desgaste das identidades políticas fixas Hibridização

ECONOMIA Desenvolvimento de blocos regionais Triadização Novo imperialismo

Capitalismo global informacional Economia transnacional Nova divisão global do trabalho

DESIGUALDADE Defasagem crescente entre o norte e o sul Conflitos de interesse irreconciliáveis

Desigualdade crescente nas e entre as sociedades Desgaste entre as antigas hierarquias

ORDEM Sociedade internacional de Estados Persiste inevitavelmente o conflito entre os Estados Gestão internacional e geopolítica Comunitarismo

Gestão global em camadas múltiplas Sociedade civil global Organização política global Cosmopolitismo

Apesar das diferenças de opinião e juízo, muito significativas, há que se dizer, acerca

do dinâmico processo de globalização, pode ser detectado certo “terreno comum” (HELD;

MCGREW, 2001), a partir do qual ambas as partes podem admitir que:

a) Houve certo aumento, nas últimas décadas, da interligação econômica nas e entre as

regiões, ainda que com conseqüências multifacetadas e desiguais nas diferentes

comunidades.

232 Fonte: HELD, David; MCGREW, Anthony. Prós e contras da globalização. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p. 92.

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b) A competição (política, econômica e cultural) inter-regional e global desafia as velhas

hierarquias e gera novas desigualdades de riqueza, poder, privilégio e conhecimento.

c) Os problemas transnacionais e transfronteiriços, como a disseminação de alimentos

geneticamente modificados e a lavagem de dinheiro, têm ganhado destaque cada vez

maior, questionando o papel, as funções e as instituições de responsabilidade

tradicionais dos governos nacionais.

d) Houve uma expansão da gestão internacional nos planos regional e global – desde a

União Européia até a OMC –, que levanta importantes questões normativas acerca do

tipo de ordem mundial que está sendo construído e dos interesses a que ela serve.

e) Esses fenômenos exigem novas maneiras de pensar sobre a política, a economia e a

mudança cultural. Exigem também respostas criativas dos políticos e legisladores

sobre as futuras possibilidades e formas de regulação política eficaz e de

responsabilidade democrática.

Jameson (2001), um tanto temeroso acerca dos perigos dos dualismos, ampliando os

focos sobre a globalização, aponta quatro possíveis posturas perante seu desenvolvimento,

declarando-se simpatizante da última:

a) não existe globalização: percebem-se ainda Estados-nação e situações nacionais, de

modo que não se pode caracterizar um novo paradigma;

b) a globalização não é um fenômeno recente, sempre existiu, desde período neolítico

(alcance global das rotas de comércio: artefatos polinésios na África, cacos de

cerâmica asiáticos no Novo Mundo);

c) a globalização está estreitamente relacionada ao mercado mundial, o horizonte

último do capitalismo, de forma que as redes mundiais da atualidade são diferentes

somente em grau e não em gênero;

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d) a globalização é uma característica intrínseca de um novo ou terceiro estágio

multinacional do capitalismo, 233 a pós-modernidade.

Essa última possibilidade marca o tom das buscas epistemológicas que perpassam o

terceiro e último capítulo da presente pesquisa.

233 Chomsky (1997) adverte que , numa época de globalização, as empresas podem funcionar através das fronteiras, mas não os sindicatos. Assim, não há como a massa trabalhadora reagir contra a internacionalização da produção. Talvez resida aí a diferença entre o capitalismo tradicional e o capitalismo da pós-modernidade. Nesse sentido, Michael Hardt (professor de literatura da Universidade Duke, EUA) e Antonio Negri (filósofo italiano) propõem uma adaptação de conceitos da esquerda nacional, como classe trabalhadora e proletariado, à realidade atual do mercado de trabalho e do mundo corporativo globalizado, criando um novo termo, chamado “multidão”. Esse termo, segundo os autores, pode melhor capturar o caráter “comum e singular” dos novos trabalhadores. Cf. HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multitude: war and democracy in the age of empire. Duke: Penguin, 2004.

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CAPÍTULO III

PÓS-MODERNIDADE RELIGIOSA: UMA APROXIMAÇÃO TEOLÓGICA

A religião cristã prefere os grandes relatos da

modernidade ao titubeante relativismo dos pós-

modernos. No entanto, não parece que as religiões

possam evitar o relativismo. O seu compromisso

com o pensamento e com a busca da verdade as

introduz de cheio na aventura relativista. A não ser,

obviamente, que se declarem possuidoras da

verdade. E é o que algumas têm feito, com

intensidade diferente, sobretudo as monoteístas.

FRAIJÓ

1 A PERSPECTIVA CULTURAL PÓS-MODERNA: UMA NOVA CONFIGURAÇÃO

DE IDENTIDADES

Fundamental aos objetivos da presente pesquisa é perscrutar de onde vêm, de que

forma sopram atualmente e para onde sinalizam os ventos denominados pós-modernos. A

nova configuração de identidades, que se observa ao raiar do século XXI, não é fruto de um

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mero acaso temporal, mas tem muitas de suas raízes no século XX. Esta pesquisa, de forma

um tanto quanto minuciosa, tenta perseguir as trilhas marcadas pelo avanço da pós-

modernidade, culminando com o delineamento de suas coordenadas principais. Essas

coordenadas básicas darão o tom das reflexões, a partir das quais poderia-se afirmar, e esta

pesquisa pretende fazê-lo, que uma dada teologia estaria em sintonia com a pós-modernidade,

objetivo final deste capítulo. Há, então, que se adentrar e perscrutar a perspectiva pós-

moderna.

1.1 A origem do pós-modernismo

Há duas décadas, Huyssens (1984) percebia que a transformação cultural que

acontecia no Ocidente estava relacionada, no seu entender, aos ventos pós-modernos. Ainda

de forma bastante cautelosa, é certo, ele afirmava:

o que parece num nível como o último modismo, promoção publicitária e espetáculo vazio é parte de uma lenta transformação cultural emergente nas sociedades ocidentais, uma mudança da sensibilidade para a qual o termo ‘pós-moderno’ é na verdade, ao menos por agora, totalmente adequado. A natureza e a profundidade dessa transformação são discutíveis, mas transformação ela é. Não quero ser entendido erroneamente como se afirmasse haver uma mudança global de paradigma nas ordens cultural, social e econômica; qualquer alegação dessa natureza seria um exagero. Mas, num importante setor de nossa cultura, há uma notável mutação na sensibilidade, nas práticas e nas formações discursivas que distingue um conjunto pós-moderno de pressupostos, experiências e proposições do de um período precedente.

Bem mais audacioso, mesmo porque acerca de um campo menos fluido e fugidio, a

arquitetura, Jencks (1984) chegou a datar o final simbólico do modernismo e o conseqüente

início do pós-modernismo: 15h32m de 15 de junho de 1972. Esse foi o momento da explosão

do projeto de desenvolvimento da habitação Pruitt-Igoe, de St Louis, dinamitado como um

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ambiente inabitável para as pessoas de baixa renda que abrigava. A partir daí, novas idéias

irromperam como fortes lâminas cortantes na arquitetura. Por elas, os arquitetos aprenderiam

mais com o estudo de paisagens populares (subúrbios) e comerciais (locais de concentração

de comércio) do que com a busca de ideais abstratos, teóricos e doutrinários. Havia chegado a

hora de se construir para as pessoas e não para o Homem. As torres de vidro, os blocos de

concreto e as lajes de aço, que dominavam a paisagem urbana das grandes metrópoles,

impedindo-lhes o ornamento (visto como um crime), o individualismo (visto como

sentimentalismo) e o romantismo (visto como kitsch), foram progressivamente sendo

substituídos por obras projetadas para as necessidades dos habitantes, em nome de um

ambiente urbano mais satisfatório.

Na área do planejamento, semelhante evolução pode ser identificada. Em 1973,

Douglas Lee, em influente artigo,234 previu a queda do que considerava os fúteis esforços dos

anos 60 para se desenvolverem modelos de planejamento de larga escala, abrangentes e

integrados (alguns pretendendo rigor matemático computadorizado) para regiões

metropolitanas. Desde então, observam-se estratégias pluralistas e orgânicas para a

abordagem do desenvolvimento urbano envolvendo “colagem” de espaços e misturas

altamente diferenciados, em substituição aos planos grandiosos baseados no zoneamento

funcional de atividades diferentes. A “cidade-colagem” (HARVEY, 2004, p. 46) passa a ser o

tema dominante, a “revitalização urbana” substitui a “renovação urbana” no léxico dos

planejadores. A admoestação da primeira onda da euforia planejadora modernista do fim do

século XIX, “não faça pequenos planos” (Daniel Burnham), pode agora ser modestamente

respondida pelo pós-modernista: “a que, então, poderia eu ter aspirado em minha arte? Por

certo a pequenas coisas, tendo visto que a possibilidade das grandes estava historicamente

superada (Algo Rossi)”.

234 Requiem for large-escale planning models. Journal of the American Institute of planners, New York 1973.

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Mudanças semelhantes podem ser detectadas em outras áreas e campos. O romance

pós-moderno, por exemplo, nas palavras de McHale (1987), caracteriza-se pela passagem de

um dominante “epistemológico” a um “ontológico”. Mudança de perspectiva, na verdade.

Daquela que permitia ao modernista uma melhor apreensão do sentido de uma realidade

complexa, mas mesmo assim singular àquela que enfatiza questões sobre como realidades

radicalmente diferentes podem coexistir, colidir e interpenetrar-se. A conseqüência direta é a

real dissolução da fronteira entre ficção e ficção científica e a confusão das personagens pós-

modernas acerca do mundo em que estão e de como deveriam agir com relação a ele. Uma

das personagens do poeta argentino Jorge Borges caracteriza bem a redução da perspectiva à

autobiografia, algo como se sentir em um labirinto, como se nota pelos pontos de

interrogação: “Quem era eu? O eu de hoje estupefato; o de ontem, esquecido; o de amanhã,

imprevisível?”.

Na filosofia, o pragmatismo americano aliado à onda pós-marxista e pós-estruturalista

que abalou Paris depois de 1968 produziu a “raiva do humanismo e do legado do Iluminismo”

(BERNSTEIN, 1985, p. 25), desembocando numa vigorosa denúncia da razão abstrata e numa

profunda aversão a projetos de emancipação humana universal que tentavam mobilizar forças

da tecnologia, da ciência e da razão. Enfim, a crise moral do nosso tempo é uma crise do

pensamento iluminista (HARVEY, 2004).

A expressão pós-moderno ou pós-modernismo já era usada, no entanto, antes das três

últimas décadas.

Distante do centro cultural da época (Europa e Estados Unidos), no mundo hispânico,

nos anos 1930, Frederico de Onís, amigo de Unamuno e Ortega, imprimia o termo

postmodernismo (ANDERSON, 1999). Originalmente ligado à estética,235 descrevia um

235 A origem estaria na Nicarágua de 1890, como tentativa de independência cultural diante da Espanha, quando o poeta nicaragüense Rubén Darío, em artigo a um jornal guatemalteco, cunhou o termo, dissertando acerca de um embate literário ocorrido no Peru (ANDERSON, 1999).

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refluxo conservador dentro do próprio modernismo. Mesmo tendo entrado para o vocabulário

da crítica literária espanhola, a idéia de um estilo “pós-moderno” teve pouca ressonância,

sendo raramente usada com precisão pelos escritores subseqüentes. Somente vinte anos

depois, aproximadamente, o termo apareceu no mundo das letras anglo-saxão, num contexto

bastante diferente, no entanto, como categoria de época. Em 1954, Toynbee, no oitavo

volume de seu Study of History, denominou de “idade pós-moderna” a época iniciada com a

guerra franco-prussiana.

As raízes dessas suas reflexões podem ser recuadas, porém, em vinte anos. Em 1934,

Toynbee, no primeiro volume de sua grande obra, via no industrialismo e no nacionalismo

duas poderosas forças que concorreram para moldar a história recente do Ocidente. Essas

forças, no entanto, desde fins do século XIX, teriam entrado em destrutiva contradição mútua,

quando a escala internacional da indústria rompeu as barreiras da nacionalidade. A categoria

de nação-estado estava então ultrapassada, o poder nacional não era mais auto-suficiente, o

que teria aberto espaço e condições, inclusive, para a Primeira Grande Guerra, fruto do

conflito entre as duas tendências.

Toynbee, nos seis volumes seguintes de seu livro, até 1939, tenta vislumbrar o

horizonte apropriado para a época, uma categoria para além daquilo que se denominava

nação-estado. Com a Segunda Guerra Mundial, trazendo em seu bojo uma profunda

hostilidade ao nacionalismo e uma forte suspeita em relação ao industrialismo, e com a

descolonização, o historiador confirmou sua cética visão acerca do imperialismo ocidental.

Em 1954, quando da publicação de seu oitavo volume, vinte anos após suas reflexões iniciais

acerca do dilema industrialismo / nacionalismo, menciona o que denominou de “idade pós-

moderna”. A numerosa, competente e predominante burguesia das comunidades ocidentais

“modernas” estavam deixando sua posição de mando em favor de uma ascendente classe

operária industrial, aliado ao crescimento de intelligentsias não ocidentais prestes a dominar

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os segredos da modernidade e voltá-los contra o mundo ocidental. Entre elas, destacavam-se

Japão da era Meiji, a Rússia bolchevique, a Turquia de Mustafá Kemal e a recém-nascida

China maoísta. Como se percebe, sua definição da “idade pós-moderna” era essencialmente

negativa, tendo-se em vista a perspectiva ocidental. Longe de ser um adepto desses regimes

orientais, Toynbee mostrava-se, isso sim, bastante severo com as últimas e arrogantes ilusões

do Ocidente imperial.

Depois disso, nem mesmo a categoria de civilização parecia pertinente a Toynbee em

sua tentativa de reescrever o padrão do desenvolvimento humano. Percebia a possibilidade de

uma terceira guerra – agora nuclear –, fundada provavelmente no primado desenfreado da

tecnologia que, apesar de universal, apenas desencadearia a ruína mútua de todos. A

hegemonia de uma potência, com autoridade política global, poderia ser a saída para a guerra

fria, mas a longo prazo somente uma religião universal – necessariamente uma fé sincrética –

poderia garantir o futuro do planeta. Seus erros empíricos e suas conclusões proféticas,

combinados, acabaram por isolar a obra de Toynbee, legando-a ao esquecimento, juntamente

com seu argumento de que o século XX já podia ser descrito como uma era pós-moderna.

Do outro lado do oceano Atlântico, na América do Norte, em 1951, Charles Olson

fala236 de um “mundo pós-moderno”, posterior à era imperial dos Descobrimentos e da

Revolução Industrial. No seu modo de ver, “a primeira metade do século XX” foi “o pátio de

manobras em que o moderno virou isso que temos, o pós-moderno, ou pós-Ocidente”. No dia

da eleição de Eisenhower, 4 de novembro de 1952, Olson, em manifesto237 lapidar, começa

com as seguintes palavras: “minha mudança é que considero o presente como prólogo, não o

236 Em carta endereçada ao também poeta Robert Creeley, no verão de 1951. Em outra carta (3 de outubro de 1951), Olson, indignado com a bomba atômica detonada em cidades japonesas, escreve uma espécie de declaração intitulada “A lei”, onde afirma que o ato de terror nuclear encerra a idade moderna: “Bem recentemente, uma porta se fechou com estrondo [...]. A bioquímica é pós-moderna. E a eletrônica já é uma ciência da comunicação – o ‘humano’ já é a ‘imagem’ da máquina de computar”. Cf. OLSON, Charles; CREELEY, Robert. The complete correspondence. v. 7. Santa Rosa: [s. n.], 1987. p. 75, 115, 241. 237 Possivelmente encomendado por um catálogo biográfico intitulado Twentieth Century Authors, first supplement, New York, p. 741-742, 1955.

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passado”. Ao final, define esse “presente vivo em andamento” como “pós-moderno, pós-

humanista, pós-histórico”. Na verdade, tais afirmações estavam ancoradas em um típico

projeto poético, levado a cabo pelo poeta ao longo de sua vida. Nesse ínterim, às voltas com

movimentos políticos, quando chegou a ser interrogado pelo FBI por supostas ligações

suspeitas durante a guerra, em meio à reação, sua poesia tornou-se mais esporádica e sintética,

e a referência ao pós-moderno sumiu.

O termo reapareceu ao final dos anos 1950, na forma negativa, querendo expressar o

que era menos, não mais, moderno. Esse foi o sentido a ele atribuído por C. Wright Mills e

Irving Howe em 1959. O sociólogo (1959),238 mais cáustico, indicava uma época em que os

ideais modernos do liberalismo e do socialismo tinham simplesmente falido, na esteira da

separação entre razão e liberdade numa sociedade pós-moderna de impulso cego e

conformidade vazia.239 Percebe-se aqui uma antecipação das críticas, que se avolumariam na

década de 1960, a uma sociedade que sacrificava seus ideais em favor do conforto e do

consumo. O crítico (1959), mais brando, descrevia uma ficção contemporânea incapaz de

manter a tensão modernista numa sociedade onde as divisões de classe tornavam-se cada vez

mais amorfas devido à prosperidade do pós-guerra.

Um ano depois, em 1960, Harry Levin,240 inspirando-se no sentido atribuído por

Toynbee, usa o termo pós-moderno para descrever uma literatura derivada, de relaxada meia

síntese, que havia renunciado aos rígidos padrões intelectuais do modernismo. Tem início aí

uma versão inequivocamente pejorativa do pós-moderno.

238 Foi com Mills, em 1959, que o termo entrou no domínio da linguagem sociológica, no interior da esquerda norte-americana. 239 Mills (1959, p. 165) afirmava de forma clara: “Estamos no final da chamada Idade Moderna. Assim como a Antigüidade foi seguida por vários séculos de ascendência oriental, que os ocidentais chamam provincianamente de Idade das Trevas, assim também a Idade Moderna está sendo seguida agora por um período pós-moderno.” 240 Cf. LEVIN, Harry.What was Modernism?. The Massachussetts Review, p. 609-630, ago. 1960.

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Nos anos 1960, o termo assumiu ares de sinal fortuito, estranho. Em meados da

década, o crítico Leslie Fiedler afirmava241 que os jovens americanos, uma geração de

“excluídos da história”, mutantes culturais cujos valores eram o desinteresse e o

desligamento, alucinógenos e direitos civis, encontravam guarida numa nova literatura pós-

moderna. Em explicação posterior a uma revista,242 Fiedler explicaria que essa literatura

produziria um cruzamento de classes e uma mistura de gêneros, um franco repúdio às ironias

e formalismos modernistas, o que equivaleria a uma volta desinibida ao sentimental e

burlesco.

Ao final da década, em 1968, ano da rebelião universitária francesa, o sociólogo

Amitai Etzioni, em seu livro The Active Society,243 dedicado aos seus alunos, falava num

período pós-moderno, realizando uma total inversão argumentativa em relação às proposições

de Mills. A partir do fim da guerra, declinava o poder das grandes empresas e das elites

estabelecidas, podendo a sociedade, pela primeira vez, tornar-se uma democracia “senhora de

si mesma”.

Somente a partir dos anos 1970 é que o termo pós-moderno ganharia difusão mais

ampla e corajosa, como se antecipou no início deste item. É o que se detalhará a seguir.

241 Em conferência patrocinada pelo Congresso da Liberdade Cultural, organizado pela CIA para atuar na frente intelectual da guerra fria. Cf. FIEDLER, Leslie. The new mutants. The Massachussetts Review, p. 505-525, verão 1965. 242 Cf. FIEDLER, Leslie. Cross the border, close the gap. Playboy, New York, p. 151, dez. 1969. 243 Cf. ETZIONI, Amitai. The Active Society. New York: [s. n.], 1968. p. vii, 528.

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1.2 A cristalização do pós-modernismo

O outono de 1972 foi, na consideração de Anderson (1999), o momento decisivo na

cristalização do pós-modernismo, quando do lançamento de uma publicação periódica –

Boundary 2 244– que tinha expressamente o seguinte subtítulo: Revista de literatura e cultura

pós-moderna. Seus artigos e ensaios exaltavam a vitalidade do presente pós-moderno após a

falência de uma debilitada ortodoxia poética dos anos 1960. Um ano depois, a Boundary 2

dedicaria uma edição dupla a Charles Olson, intitulada reminiscências, ensaios, crítica. Era o

ressurgimento do legado de Olson. A importância dedicada a esse momento e a essa

publicação especificamente reside no fato de, que pela primeira vez, estabelecia-se a idéia de

pós-moderno como referência coletiva.

Um pouco antes, em 1971, e concomitantemente, o crítico egípcio Ihab Hassan

lançava uma noção do pós-modernismo,245 abrangendo um espectro bem amplo de tendências

que radicalizavam ou rejeitavam as principais características do modernismo: artes visuais,

música, tecnologia e sensibilidade em geral. Posteriormente, lançando mão da noção de corte

epistemológico de Foucault,246 indicava mudanças semelhantes na ciência, inspiradas em

244 Bastante sugestivo o título, no tocante ao que queria simbolizar, Fronteira 2, no português. 245 Cf. HASSAN, Ihab. POSTmodernISM: a paracritical bibliography. New Literary History, New York, p. 5-30, outono 1971. 246 As idéias de Foucault foram e têm sido uma fonte fecunda de argumentação pós-moderna. Seu tema principal, notadamente nas primeiras obras (final da década de 1960 e início da de 1970), é a relação entre o poder e o conhecimento, rompendo com a noção de que o poder esteja situado em última análise no âmbito do Estado. Conclama (1972, p. 159) a “conduzir uma análise ascendente do poder, começando pelos seus mecanismos infinitesimais, cada qual com a sua própria história, sua própria trajetória, suas próprias técnicas e táticas, e ver como esses mecanismos de poder foram – e continuam ser – investidos, colonizados, utilizados, involuídos, transformados, deslocados, estendidos etc. por mecanismos cada vez mais gerais e por formas de domínio global”. Fala também em “desenvolver a ação, o pensamento e os desejos através da proliferação, da justaposição e da disjunção”, convidando a “preferir o que é positivo e múltiplo, a diferença à uniformidade, os fluxos às unidades, os arranjos móveis aos sistemas”.

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Heisenberg, e na filosofia, na esteira de Nietzsche.247 Hassan chega a elaborar, em 1980, uma

taxonomia da diferença entre os paradigmas modernos e pós-modernos.

Quadro 2 – Diferenças esquemáticas entre modernismo e pós-modernismo248

MODERNISMO PÓS-MODERNISMO Romantismo / simbolismo parafísica / dadaísmo forma (conjuntiva, fechada) antiforma (disjuntiva, aberta) propósito Jogo projeto acaso hierarquia anarquia domínio / logos exaustão / silêncio objeto arte / obra acabada processo / performance / happening distância participação criação / totalização / síntese descriação / desconstrução / antítese presença ausência centração dispersão gênero / fronteira texto / intertexto semântica retórica paradigma sintagma hipotaxe parataxe metáfora metonímia seleção combinação raiz / profundidade rizoma / superfície interpretação / leitura contra a interpretação / desleitura significado significante lisible (legível) scriptible (escrevível) narrativa / grande histoire antinarrativa / petit histoire código mestre idioleto sintoma desejo tipo mutante genital / fálico polimorfo / andrógino paranóia esquizofrenia origem / causa diferença-diferença / vestígio Deus Pai Espírito Santo metafísica ironia determinação indeterminação transcendência imanência

247 Visitado freqüentemente pelos estudiosos e adeptos pós-modernos, como algo ao qual o pós-modernismo remonta, Nietzsche enfatizava o profundo caos da vida moderna e a impossibilidade de lidar com ele com o pensamento racional. Nessa idéia, bebem os teóricos da pós-modernidade. Para Habermas (1990), o pensamento de Nietzsche é a tradução da reviravolta radical na crítica à modernidade, sendo por isso considerado aquele que inaugura o horizonte que fundamenta toda a crítica contemporânea à razão. 248 Fonte: HASSAN, Ihab. The culture of postmodernism. Theory, culture and society, n. 2, v. 3, p. 119-132, 1985.

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Na tentativa de entender as diferenças esquemáticas entre modernismo e pós-

modernismo, Hassan estabelece uma série de oposições estilísticas para capturar as maneiras

pelas quais o pós-modernismo poderia ser retratado como uma reação ao moderno. As

oposições apresentadas esquematicamente por Hassan podem parecer caricaturas,249 e ele

mesmo (1985) tinha consciência de que as próprias dicotomias são inseguras, equívocas, “mas

é difícil haver uma arena da atual prática intelectual em que não possamos identificar uma

delas em ação” (HARVEY, 2004, p. 49).

A dúvida crucial de Hassan, no entanto, presente em diversos escritos seus, e para a

qual direcionou seus esforços, pode ser resumida na pergunta: o pós-modernismo é apenas

uma tendência artística ou também um fenômeno social? Se social, como se juntam e separam

os vários aspectos desse fenômeno – psicológicos, filosóficos, econômicos, políticos?250 Não

conseguiu responder a contento a questão, no entanto, fez uma importante observação:251

O pós-modernismo, como forma de mudança literária, poderia ser distinguido tanto das vanguardas mais antigas (cubista, futurista, dadaísta, surrealista etc.) como do modernismo. Nem olímpico e distante como este nem boêmio e rebelde como aquelas, o pós-modernismo sugere um tipo diferente de acomodação entre a arte e a sociedade.

Apesar de sua contribuição pioneira, estendendo a concepção de pós-moderno a todas

as artes, Hassan não conseguiu responder sua principal questão, percebendo um limite que

barrava a passagem ao social. Essa foi uma das razões pelas quais parou de refletir sobre o

tema no fim dos anos 1980, quando, desiludido com o pós-moderno, intitulou sua coletânea

de textos como “A guinada pós-moderna” (The postmodern turn). Guinada errada, a seu ver,

249 A crítica maior à forma esquemática dessa tentativa vem de Harvey (2004, p. 48-49): “considero perigoso (como o faz Hassan) descrever relações complexas como polarizações simples, quando é quase certo que o real estado da sensibilidade, a verdadeira ‘estrutura do sentimento’ dos períodos moderno e pós-moderno está no modo pelo qual essas posições estilísticas são sintetizadas”. 250 Cf. HASSAN, Ihab. The question of postmodernism. In: ______. The postmodern turn. Ithaca: [s. n.], 1987. p. 89-91. 251 Cf. HASSAN, Ihab. The question of postmodernism. In: ______. The postmodern turn. Ithaca: [s. n.], 1987. p. 89-91.

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pois “o pós-modernismo tornou-se uma espécie de pilhéria eclética, refinada lascívia de

nossos prazeres roubados e descrenças fúteis”.252 Aparentando inquietação, certa falta de

rumo e melancolia, afirma (apud KUMAR, 1997, p. 221):

Deus, Rei, Razão, História e Humanismo, todos vieram e todos desapareceram, embora seu poder ainda ressurja em alguns círculos de fé. Matamos nossos deuses – por raiva ou lucidez, não sei –, mas ainda permanecemos escravos da vontade, do desejo, da esperança e da crença. E agora nada temos – nada que não seja parcial, provisório, ato-criado – para fundamentar nosso discurso.

O que Hassan imaginou, sem, no entanto, conseguir definir, o que o levou à

desistência, ou seja, como relacionar arte e sociedade, foi conseguido por Robert Venturi e

seus colegas arquitetos Denise Scott Brown e Steven Izenour. Ao publicarem, em 1972, o

manifesto arquitetônico da década, Learning from Las Vegas, iniciaram a mais destacada

teorização do pós-modernismo após Hassan.253 Refletindo acerca das relações entre

arquitetura e propaganda comercial, lucros do jogo e instinto competitivo, tendo em mente as

estruturas arquitetônicas, econômicas e comerciais da cidade de Las Vegas,254 daí o título da

publicação, eles afirmavam que a maior preocupação do arquiteto “não deveria ser com o que

deveria ser, mas com o que é” e “como ajudar a melhorá-lo”.255 Sob sua aparente neutralidade

moral – não há que se questionar, nesse momento, diziam, se a sociedade estava certa ou

errada – observa-se latente uma oposição que desarmava. Suas análises contrastavam as

mega-estruturas modernistas – planejadas, puras, monótonas, uniformes, frias – com o

crescimento urbano espontâneo – alegre, heterogêneo, vigoroso. Essa dicotomia podia ser

252 Cf. HASSAN, Ihab. The postmodern turn. Ithaca: [s. n.], 1987. p. xvii. [Coletânea dos textos escritos pelo próprio autor]. 253 Apesar de formular seus princípios, Venturi e seus colegas não falaram explicitamente em pós-modernismo, o que seria feito por Charles Jencks. 254 Eco (1984, p. 51), falando sobre Las Vegas, afirma: “Nos Estados Unidos [...] existem as cidades das diversões. Las Vegas é um exemplo. Concentra-se sobre o jogo e o espetáculo; sua arquitetura é totalmente artificial e foi estudada por Robert Venturi como um fato urbanístico completamente novo, uma ‘cidade-mensagem’, toda construída de signos, não uma cidade como as outras, que comunicam para poder funcionar, mas uma cidade que funciona para comunicar”. 255 Learning from Las Vegas. Cambridge: Mass., 1972. p. 85.

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resumida numa frase: “construção para o Homem” (as mega-estruturas) versus “construção

para homens (mercados)” (crescimento espontâneo).256 Estava feita a relação entre arte e

sociedade, tão perseguida e não encontrada por Hassan.

Entende-se agora a audácia de Jencks que chegou, como se antecipou na abertura do

item anterior, a datar o final simbólico do modernismo e o conseqüente início do pós-

modernismo em 15 de junho de 1972, às 15h32m. É clara a influência de Venturi e seu

Learnig from Las Vegas. Jencks via na arquitetura, como já comentado, a possibilidade,

inspirada certamente nas reflexões de Venturi, de se construir, não para “o homem”, mas para

“as pessoas”. Ele acreditava no pós-moderno como uma civilização mundial de tolerância

pluralística e opções superabundantes, uma civilização que “tornava sem sentido” polaridades

ultrapassadas como esquerda e direita, capitalista e classe operária. Em sua área de atuação,

ele imaginava uma arquitetura eclética que poderia ser definida como “estilo de codificação

dupla” (JENCKS, 1984, p. 6-8). O que equivaleria a uma

arquitetura que adotava um híbrido da sintaxe moderna e da historicista, com apelo tanto para o gosto educado quanto para a sensibilidade popular. Era essa mistura liberadora do novo e do velho, do elevado e do vulgar que definia o pós-modernismo como um movimento e lhe assegurava o futuro.

O modernismo, na visão de Jencks (1984), padece de elitismo, sendo que no pós-

modernismo está a tentativa de superar esse elitismo, o que transportado para a arquitetura,

em dieta forçada há cinqüenta anos, equivaleria à possibilidade de se divertir e,

consequentemente, torná-la mais forte e mais profunda.

Na rede eletrônica global, sem inimigos a derrotar, as vanguardas artísticas perdiam o

sentido de existir. Em seu lugar, existiam indivíduos em diversos lugares do planeta,

comunicando-se e competindo na arte, no mundo financeiro etc. Jencks chegou a vislumbrar

256 Learning from Las Vegas. Cambridge: Mass., 1972. p. 84.

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“uma ordem simbólica comum do tipo fornecido por uma religião”.257 De uma outra maneira,

parece ter retornado o sonho sincrético de Toynbee.

Após sua apreensão arquitetônica, consolidada ao final da década de 1970, o emblema

pós-moderno teve seu alcance ainda mais ampliado, desta vez numa direção inesperada. Em

1979, uma primeira obra filosófica adota a terminologia e a noção do termo aqui pesquisado.

Em “A condição pós-moderna”,258 Jean-François Lyotard utiliza o termo, tomando-o

diretamente de Hassan.

Para Lyotard, ao surgimento de uma sociedade pós-industrial259 estava relacionada a

chegada da pós-modernidade. Sociedade na qual a principal força econômica de produção

desvia-se dos Estados nacionais para o conhecimento. Nesse contexto, a sociedade não podia

mais ser concebida como um todo orgânico e integrado (Durkheim) nem como um campo de

conflito dualista ou jogo de forças contraditórias (Marx), mas como uma rede de

comunicações lingüísticas. A própria linguagem, o que para ele caracterizava todo o vínculo

social, era composta de uma multiplicidade de jogos diferentes, sem regras ou cujas regras

não se podem medir, e inter-relações agonísticas.

Nessa disseminação dos jogos de linguagem, é o próprio sujeito social que parece dissolver-se. O vínculo social é da ordem da linguagem, mas ele não é de uma única fibra. É uma textura onde se cruzam pelo menos duas espécies – na realidade, um número indeterminado de jogos de linguagem que obedecem a regras diferentes (LYOTARD, 1998, p. 73).

Com isso, a própria ciência passa a ser um jogo de linguagem dentre outros, sem o

privilégio imperial dos tempos modernos.260 Privilégio advindo, outrora, de duas grandiosas

257 Cf. JENCKS, Charles. What is post-modernism?. London: [s. n.], 1986. p. 44-47. 258 A obra foi sistematizada a partir de um relatório produzido por Lyotard a pedido do Conselho Universitário do governo de Quebec (Canadá). 259 Lyotard assume aqui as análises de Daniel Bell e Alain Touraine acerca do surgimento de uma sociedade pós-industrial. Cf. BELL, Daniel. The coming of pos-industrial society. New York: Basic Books, 1973. [Ed. bras.: O advento da sociedade pós-industrial: uma tentativa de previsão social. São Paulo: Cultrix, 1977] e TOURAINE, Alain. La société post-industrielle. Paris: Le Semil, 1969. 260 A ciência e a tecnologia eram os fogosos cavalos de batalha da modernidade.

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narrativas, os grandes mitos justificadores da modernidade: com base na Revolução Francesa,

a que colocava a humanidade como agente heróico de sua própria libertação através do

avanço do conhecimento, e descendente do idealismo alemão, a que via o espírito como

progressiva revelação da verdade.

O que define a condição pós-moderna e explicita a espinha dorsal das reflexões de

Lyotard é justamente a perda da credibilidade dessas metanarrativas, ou a incredulidade diante

delas. As metanarrativas, as científicas inclusive, ao perderam sua credibilidade, não

desapareceram, continuam tendo importância, mas como pequenas narrativas, miniaturas e

competitivas. O paradoxo e o paralogismo, já presentes em Nietzsche, Wittgenstein e Lévinas,

propiciam uma grande pluralização de argumentos. A condição pós-moderna, avessa aos

consensos, é a tendência para o contrato temporário em todas as áreas da existência humana,

com laços mais econômicos, flexíveis e criativos que os da modernidade.

Lyotard viu-se frente a um problema de difícil solução. Ao anunciar o eclipse de todas

as narrativas grandiosas, tinha em mente especificamente o socialismo clássico, ampliando

posteriormente a lista com a redenção cristã, o progresso iluminista, o espírito hegeliano, a

unidade romântica, o racismo nazista, o equilíbrio keynesiano. E o capitalismo? Quando da

publicação de A condição pós-moderna, em 1979, o Ocidente entrava numa grave recessão,

era o encerramento da era Carter nos Estados Unidos. Lyotard podia sugerir, então, com certa

plausibilidade, que o que validava o capitalismo contemporâneo era apenas um princípio de

desempenho, apenas uma sombra da autêntica legitimação. Os anos 1980, contudo, trouxeram

novos ares: o boom do período Reagan, a triunfante ofensiva ideológica da direita, o colapso

do bloco soviético, a queda do muro de Berlim etc. Tornara-se menos plausível a posição de

Lyotard acerca do capitalismo. O mundo, de uma forma ainda não vista, caía sob o domínio

da mais grandiosa narrativa de todas: a vitória global do mercado, com sua história única e

absoluta de liberdade e prosperidade. Inicialmente, tentando responder aos novos fatos,

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Lyotard insistiu numa tecla que se mostrou frágil demais. Afirmava que o capitalismo, mesmo

parecendo uma finalidade universal da história, na verdade destruía qualquer finalidade, isso

porque seus valores mais altos não passavam da mera segurança factual. Nas suas palavras, “o

capital não tem necessidade de legitimação, não prescreve nada no sentido estrito da

obrigação, não tem que fixar nenhuma regra normativa. Está presente em toda parte, mas

como necessidade e não como finalidade”. 261 No máximo estaria escondendo uma quase

norma, “ganhar tempo” – mas será que isso poderia ser considerado como um fim universal?

No fim dos anos 1990, Lyotard encontrou uma saída mais efetiva para a dificuldade

explicitada. O triunfo do capitalismo sobre sistemas rivais foi o resultado de um processo de

seleção natural vindo desde antes da própria vida humana, quando, num planeta minúsculo,

sistemas rudimentares de vida competiam entre si pela limitada energia externa. Milhões de

anos depois surgiria a espécie humana com suas várias formas improváveis de agregação,

selecionadas pela sua capacidade de descobrir, captar e conservar fontes de energia.

Finalmente, milhares de anos depois, competindo entre si, as democracias liberais derrotaram

os demais competidores, e impuseram-se. Somente a inevitável extinção do sol poderia deter

o desenvolvimento desse sistema sempre em competição. Mesmo assim, a pesquisa científica

já estaria trabalhando no sentido de resolver esse problema, possivelmente um êxodo do

planeta, dentro de aproximadamente quatro bilhões de anos. Esse cenário vislumbrado foi

chamado por Lyotard de “novo décor”.262

O desenvolvimento, então, não é uma invenção dos seres humanos; esses é que são

uma invenção do desenvolvimento.263 E não se constitui em narrativa grandiosa, porque é

uma história sem historicidade ou esperança.264

261 Cf. LYOTARD, Jean-François. Mémorandum sur la légitimité. In: Le postmoderne exoliqué aux enfants. 1984. p. 94. 262 Cf. LYOTARD, Jean-François. Billet pour um nouveau décor. In: Le postmoderne exoliqué aux enfants. 1984. p. 131-134. 263 Cf. LYOTARD, Jean-François. Une fable postmoderne. In: Moralités postmodernes. p. 86-87.

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Apesar de todos os questionamentos posteriores aos escritos de Lyotard acerca de sua

concepção do pós-moderno, algumas sérias, outras não, dentre essas a de que teria inspirado

um relativismo vulgar, dando a falsa impressão – a amigos e inimigos – de que essa era a

marca do pós-modernismo, essa sua obra foi, por dois motivos básicos e fundamentais, um

marco no desenvolvimento da temática: a) por ter sido a primeira a tratar a pós-modernidade

como uma mudança geral na condição humana; b) por ter possibilitado à pós-modernidade a

aquisição do status da “cidadania” intelectual. Acrescente-se a isso o fato de que continua, até

hoje, a obra mais citada sobre o assunto.

Exatamente um ano depois, no outono de 1980, surge “Modernidade – Um projeto

incompleto”, que iria ocupar posição peculiar no discurso da pós-modernidade. Esse foi o

título da fala de Jürgen Habermas, em Frankfurt, ao receber o prêmio Adorno da

municipalidade. Mesmo tendo abordado o pós-moderno de forma limitada, no que toca ao

espaço ocupado em seu discurso, os efeitos posteriores é que foram importantes: a partir daí o

pós-moderno se destacou como um referencial padrão. Tal destaque deveu-se tanto ao lugar

acadêmico ocupado pelo filósofo – o mais importante e influente da Europa no momento –

quanto ao teor crítico de sua intervenção, sem paralelo desde o impulso da pós-modernidade

nos anos 1970. Foi tão grande o impacto de suas críticas265 que seu texto tem sido apontado

como o pólo negativo, extremamente necessário à tensão produtiva que deve caracterizar o

surgimento de qualquer área intelectual tipicamente, no caso a pós-modernidade

(ANDERSON, 1999). Seus fundamentos reflexivos principais ancoravam-se na premissa de

264 Em vez de confrontar a realidade num plano político, a solução apresentada por Lyotard, na compreensão de Anderson (1999, p. 42-43), foi uma sublimação metafísica dessa realidade. Além disso, “a condição pós-moderna, anunciada como a morte da grande narrativa, acaba assim na sua quase imortal ressurreição com a alegoria do desenvolvimento”. 265 O âmago do debate estabelecido entre Habermas e os pós-modernos, ainda se fazendo, resume-se ao seguinte: os adeptos da pós-modernidade acentuam em suas reflexões o local e particular, destacando as diferenças culturais, étnicas, de gênero etc., enquanto Habermas enfatiza a importância intersubjetiva e universal, embora num sentido diferente da tradição moderna.

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que a idéia de pós-moderno deve seu poder ao declínio do espírito da modernidade estética, 266

que considerava o tempo como um presente prenhe de um futuro heróico. Na verdade, ele

referia-se ao projeto inacabado da Modernidade.267 As vanguardas tinham envelhecido,

sentenciava. Sua proposição passava pela manutenção da racionalidade moderna, como

concebida por Weber, que se expressaria na especialização das esferas de valor, combinando-

a com a abertura ao mundo da vida, ao cotidiano por meio da comunicação intersubjetiva.

Essa sua defesa do projeto do Iluminismo denota, na verdade, a reação a um tipo de

relativismo268 e derrotismo presentes, segundo ele, no pós-modernismo. Sem negar o que

denomina “a realização deformada da razão na história” e os perigos de se impor de forma

simplificada uma metanarrativa a relações e eventos complexos, Habermas (1999) insistia em

que “a teoria pode localizar uma delicada, mas obstinada, nunca silente, mas raramente

redimida, reivindicação da razão, uma reivindicação que deve ser reconhecida de fato quando

quer e onde quer que deva haver ação consensual”. Acerca da linguagem, insiste nas

qualidades dialógicas da comunicação humana; por ela, falante e ouvinte orientam-se,

necessariamente, para a tarefa da compreensão recíproca. É a partir daí que surgem de fato

266 Para Bauman (1998, p. 136), um aspecto específico “transforma a arte pós-moderna numa força subversiva – em sentido oposto às acusações muitas vezes enunciadas (especialmente por Habermas) de conservadorismo”: sua desconstrução do significado, revelando o segredo do significado, segredo que a moderna prática teórica tentou firmemente esconder ou deturpar. “Esse significado só “‘existe’” no processo da interpretação e da crítica”, morrendo “completamente” com ele. 267 Habermas (1990, p. 11) não rejeita totalmente a modernidade, preferindo resgatá-la sob novas coordenadas, numa correção de rota. No seu modo de ver, não é possível um abandono do projeto da modernidade: “[...] nem que seja por razões metodológicas, não creio que nos seja possível, adaptando nós o ponto de vista rígido de uma fictícia etnologia da contemporaneidade, transformar o racionalismo ocidental num objeto que nos é estranho, passível de ser observado numa atitude de neutralidade, e que, assim, consigamos colocar-nos simplesmente do lado de fora do discurso da modernidade”. 268 Habermas está nitidamente preocupado em salvar a razão do relativismo consciente, relativismo esse que significa, de imediato, abrir mão de qualquer projeto emancipador para a sociedade. Esse é, no parecer de Goergen (2001), um simpatizante das posições de habermas, o ponto fulcral de todo este debate em termos políticos, éticos e educativos. Vattimo (1992, p. 21), amenizando um pouco a radical recusa da história por parte de Lyotard, afirma: “a modernidade é a época da legitimação metafísico-historicista, a pós-modernidade é a colocação em questão explícita desse modo de legitimação”. Para ele, colocar em questão não leva simplesmente ao abandono do historicismo da metafísica. Não se pode declarar inválida toda a forma de legitimação com referência à história como quer Lyotard, e nem pode, por medo do relativismo ou niilismo, ficar no metarrelato como o faz Habermas ao dizer que os fatos mencionados por Lyotard representam apenas uma prova da frustração circunstancial do projeto moderno.

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declarações consensuais e normativas, no que constitui o fundamento do papel da razão

universalizante na vida diária.

1.3 A consolidação da Pós-modernidade

Em 1982, Fredric Jameson, o maior crítico literário marxista faz, pela primeira vez,

uma conferência sobre o pós-modernismo. O grande mérito de suas reflexões foi ter

propiciado uma abordagem coerente da pós-modernidade. Inicialmente, sua visão acerca do

pós-modernismo levava a crer que ele era uma degenerescência interna do modernismo, algo

que talvez pudesse ser curado com um novo realismo ainda não pensado. Em outro texto,269 à

mesma época, apareciam mais claras ainda as tensões presentes em suas reflexões iniciais.

Tudo no ar parece confirmar a sensação generalizada de que ‘os tempos modernos agora terminaram’ e que alguma divisão, algum corte fundamental ou salto qualitativo, agora nos separa decididamente daquele que foi o novo mundo do início do século XX, o do modernismo triunfante.

Alguns fenômenos, no seu modo de ver, explicavam tais mudanças, dentre eles o papel

desempenhado pelos computadores, a genética, a détente e outros, além, enfatizava, do

surgimento do pós-modernismo na literatura e na arte. 270

A crítica de Lyotard às metanarrativas, e talvez a Jameson pelo tipo de sua adesão ao

marxismo,271 fizeram esse último refletir mais ainda acerca do pós-modernismo e sua possível

269 Cf. JAMESON, Fredric. The ideology of the text. Salmagundi, n. 31-32, p. 204-205, outono-inverno 1975. 270 Cf. JAMESON, Fredric. The ideology of the text. Salmagundi, n. 31-32, p. 204-205, outono-inverno 1975. 271 Possivelmente o que tenha havido é uma provocação de Lyotard, pois, um ano antes da publicação de “A condição pós-moderna (1982)”, em 1981, Jameson, em seu recém lançado e importante livro de teoria literária, The political unconscious, apresentava de forma eloqüente e expressa, como não se tinha visto ainda, o marxismo como uma grande narrativa: “Só o marxismo pode nos dar uma visão adequada do mistério essencial do passado cultural, [...] mistério que só pode ser reencenado se a aventura humana for uma. Tais assuntos só

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relação com as teorias de Marx. Partia do pressuposto de que “é mais seguro entender o

conceito de pós-moderno como uma tentativa de pensar o presente historicamente numa

época que, para início de conversa, esqueceu de pensar historicamente” (JAMESON, 1996, p.

13). É o que tentou fazer, sem abandonar as exigências marxistas. Foi nelas que encontrou

seus insights mais instigantes, ampliando consideravelmente a compreensão do pós-moderno.

O vislumbre mais importante foi o de que era preciso enxergar a pós-modernidade pensando-

se historicamente e situando-se dentro dela. Com isso, evitar-se-ia incorrer em tentadores

moralismos, aos quais estavam tão afeitos tanto a esquerda quanto a direita.

Tentando olhar a pós-modernidade historicamente e desde dentro dela, enxergou-a

como a “lógica” de um tipo (ou tempo) histórico de capitalismo. Sua formação marxista, e

não uma elaborada teoria sociológica ou pós-moderna, permitiu-lhe ver, no interior da pós-

modernidade, uma forma de ligação entre economia e cultura. Dessa forma, alargou

horizontes, distanciando-se daquele marxismo pessimista para o qual o presente era

implacável e o futuro nunca suave. Sua intervenção na área da pós-modernidade, nas palavras

de Anderson (1999, p. 66), “redesenhou todo o mapa pós-moderno de uma tacada”. Isso se

deu através de cinco “lances” decisivos a partir de suas reflexões:272

a) Um dos subtítulos de seu ensaio resume bem o primeiro e mais fundamental: “a

ancoragem do pós-modernismo em alterações objetivas da ordem econômica do próprio

capital”.273 Não se trata mais de rupturas estéticas ou epistemológicas, como até então era

podem recuperar sua urgência para nós se forem recontados dentro da unidade de uma única grande história coletiva; somente se, não importa sob que forma disfarçada e simbólica, forem vistos partilhando um único tema fundamental – para o marxismo, a luta coletiva para arrancar de um reino de Necessidade um reino de Liberdade; somente se forem entendidos como episódios vitais numa única e vasta trama inacabada”. Cf. JAMESON, Fredric. The political unconscious. Ithaca, 1981. p. 19-20. Ironicamente, Jameson, um ano depois, quando do lançamento da tradução inglesa do livro de Lyotard, foi convidado a escrever uma introdução. 272 Reflexões presentes em seu ensaio “Postmodernism: the cultural logic of late capitalism”, publicado em 1984, e cujo núcleo principal estava ancorado no texto de abertura daquela sua conferência proferida no museu Whitney de artes contemporâneas, no outono de 1982, intitulada “A guinada cultural”. 273 Segundo Jameson (1996, p. 22), “hoje temos uma idéia aproximada desse novo sistema (chamado de capitalismo tardio, para marcar sua continuação em relação ao que o precedeu, e não a quebra, ruptura ou mutação que conceitos como sociedade pós-industrial pretendiam ressaltar)”.

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caracterizada a pós-modernidade, mas “o sinal cultural de um novo estágio na história do

modo de produção reinante” (ANDERSON, 1999, P. 66).274 O novo capitalismo, já

multinacional, impingiu às sociedades, já de consumo, basicamente países industriais

avançados, mudanças avassaladoras.275 A mais fundamental, no entanto, situa-se no horizonte

existencial dessas sociedades, onde se observa uma radical mudança de ordem cultural:

desapareceram os últimos vestígios de formas sociais pré-capitalistas (legado moderno),

juntamente com todo território natural intacto, espaço ou experiência que as sustentara ou

sobrevivera a elas. Com isso, a cultura expandiu-se de tal forma que se tornou praticamente

coextensiva à própria economia. A cultura vira base sintomática das maiores indústrias do

mundo – o turismo é um bom exemplo –, mas não somente isso, de maneira muito mais

profunda, todo objeto material ou serviço imaterial se transforma, e de modo inseparável,

numa marca trabalhável ou produto vendável. A cultura, entranhada inseparavelmente no

capitalismo avançado, torna-se a segunda natureza dos homens.

b) O segundo lance passa pela “morte do sujeito”,276 tema cujo desenvolvimento tornou-se a

mais famosa das interpretações de Jameson acerca do pós-moderno. A dissolução das

restrições dos costumes, a partir da grande agitação dos anos 1960, praticamente desfez os

invólucros de identidade tradicionais, gerando uma nova subjetividade, reduzida à experiência

do cotidiano, desprovida do senso ativo de história, não mais como as identidades modernas

que ligavam os indivíduos a um tempo, como esperança (futuro) ou como memória (passado).

274 Anderson (1999) considera incompreensível como essa idéia, tão perseguida por Hassan e que o fez desistir, não tenha ocorrido a Lyotard e Habermas, ambos com sólida formação marxista. 275 Explosão tecnológica da eletrônica moderna (principal fonte de lucro e inovação), o predomínio empresarial das corporações multinacionais (deslocando as operações industriais para países distantes com salários baixos), gerando uma nova divisão internacional do trabalho e, conseqüentemente, a crise do trabalho tradicional, o imenso crescimento da especulação internacional, gerando uma nova dinâmica vertiginosa de transações bancárias e das bolsas de valores, e a ascensão dos conglomerados de comunicação (com poder sem precedentes e ultrapassando fronteiras) (JAMESON, 1996). Em trabalho posterior, o autor atualiza com novos dados e detalha ainda mais essas mudanças. Cf. JAMESON, F. Globalização e estratégia política. In: ______. A cultura do dinheiro: ensaio sobre a globalização. Petrópolis: Vozes, 2001. 276 Mais à frente, ao final deste item, serão focadas as passagens características do sujeito pré-moderno para o sujeito moderno, sendo o sujeito do Ilumismo a “ponte” de transição, e a passagem do sujeito moderno para o pós-moderno.

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A partir de então, podia-se falar no máximo num perpétuo presente em substituição ao

temporal, enfim, a ascendência do espaço (pós-moderno) sobre o tempo (moderno).277

c) O terceiro lance dá-se no terreno da própria cultura. O pós-moderno, que até então

recebera sondagem apenas setorial,278 expande-se, a partir das reflexões de Jameson, por

praticamente todo o espectro das artes e grande parte do discurso sobre elas. Partindo da

arquitetura, estopim de sua virada para o pós-moderno, passa pelo cinema, procedendo à

teorização mais completa de sua história, pelo vídeo (TV comercial e vídeo underground),

pela propaganda gráfica, pelo design gráfico, pela pop art, pela pintura, pela escultura, pela

música, pela literatura. O que ocorre, então, no campo cultural, é uma implosão dos discursos,

pois as disciplinas, outrora bem separadas, começam a perder os seus claros limites, gerando

cruzamentos em investigações híbridas e transversas, difíceis de situar num ou noutro

domínio. O campo intelectual sofre uma ruptura, onde a moderna diferenciação estrutural

(Weber) cede lugar à indiferenciação das esferas culturais.

d) O quarto lance está ligado à pergunta: quais seriam as bases sociais e o padrão geopolítico

do pós-modernismo? Apesar de continuar sendo uma sociedade de classes, esse capitalismo

tardio, ou avançado, percebia uma mudança de classes no interior de seu sistema. Nenhuma

classe era exatamente a mesma de antes. As bases sociais estavam sendo recriadas. Dessa

forma, na nova e decisiva arena pós-moderna ainda não se percebia já cristalizada nenhuma

estrutura estável de classe, como existira no capitalismo anterior. Mesmo tendendo fortemente

para as camadas de empregados e profissionais de afluência recente criadas pelo rápido

crescimento dos setores de serviços e especulativo das sociedades capitalistas desenvolvidas,

277 Com propriedade, Kumar (1997, p. 156), pessoalmente defensor da modernidade, fala sobre a mudança da percepção e da vivência do espaço: “com a desvalorização do tempo ocorreu a valorização do espaço. O plano do presente eterno é espacial. Se as coisas não tiram importância de seu lugar na história, podem tirá-la de sua distribuição no espaço. A Pós-modernidade se movimenta pelo contemporâneo e pelo simultâneo, em tempo antes sincrônico do que diacrônico. Relações de proximidade e distância no espaço, e não no tempo, tornaram-se os critérios de importância”. 278 Na literatura, com Levin e Fiedler, na pintura e na música, com Hassan, na arquitetura, com Jencks, na ciência, com Lyotard e na filosofia, com Habermas.

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o novo “trabalhador coletivo” ainda não surgira. No plano geográfico, ocorre o alargamento

horizontal do sistema, a integração pioneira de praticamente todo o planeta no mercado

mundial; com isso, novos povos entram no palco global. A autoridade do passado modernista,

já encolhido pelas pressões das inovações econômicas no Primeiro Mundo, conhece uma crise

ainda maior com a explosão demográfica do Terceiro Mundo, pois esse fato traz como

conseqüência a superação quantitativa das velhas gerações pelas novas. Essa expansão das

fronteiras do capital, inevitavelmente, dilui cada vez mais o peso das culturas locais, herdadas.

Esse é o motivo de se falar de queda de “nível”, ou empobrecimento cultural, com o pós-

moderno, pois a elitista cultura modernista vai cedendo espaço a uma muito mais demótica

cultura pós-moderna, numa direção inequivocamente populista, marcando novos padrões de

consumo e produção.279

e) Finalmente, o quinto lance, talvez o mais original de todos (ANDERSON, 1999), ligado à

atitude adequada em relação ao pós-moderno. Tentando indicar a saída do espaço fechado e

repetitivo da forte valoração do pós-moderno, negativa ou positiva,280 de repreensão ou

adesão, lamentando-o como corrupção do moderno ou celebrando-o como emancipação,

Jameson percebe que um outro tipo de abordagem se fazia necessária. Tal abordagem teria de

passar ao largo de moralismos tão freqüentes na análise do tema.281 Era inútil, a seu ver, a

simples condenação do pós-modernismo pelo fato inequívoco de sua cumplicidade com a

279 Jameson (1996) credita a esse fato o poder do pós-moderno. O modernismo, mesmo no seu auge, nunca passou de um enclave, ao passo que se percebe claramente a hegemonia do pós-modernismo. Hegemonia querendo significar sistema dominante e não total, pois ele não esgota o campo da produção cultural, garantindo a coexistência de formas “residuais” e “emergentes” que a ele resistem. A grande diferença é que esse dominante, pela primeira vez, tendia a ser global. O pós-modernismo tornara-se o éter cultural de um sistema global que rejeitava todas as divisões geográficas. 280 Haja vista os juízos antitéticos de Levin e Fiedler, de Hassan, mais ao final de suas reflexões, de Jencks, de Habermas e de Lyotard (ANDERSON, 1999). 281 Jameson tinha em mente as reflexões de Nietzsche que desmascararam as categorias do bem e do mal como vestígios sedimentados das relações de poder. Ele acreditava que “a ética, onde quer que reapareça, pode ser tomada como um sinal de tentativa de mistificar e em particular de substituir os juízos complexos e ambivalentes de uma perspectiva mais propriamente política e dialética pelas confortáveis simplificações de um mito binário”. Cf. JAMESON, F. Fables of aggression: Wyndham Lewis, the modernist as fascist. Berkeley: [s. n.], 1979. p. 56.

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lógica do mercado e do espetáculo. Sem propor saídas salvadoras, não mais em voga, o maior

vislumbre de Jameson foi perceber que uma crítica autêntica do pós-modernismo não podia

ser uma recusa ideológica dele, mas sim, dialeticamente, abrir caminho através dele, de uma

forma completa, uma compreensão tal que impedisse respostas maniqueístas. A desordem282

do novo capitalismo ilimitado somente poderia ser confrontada por um agente coletivo, ainda

não existente, sendo que a condição para seu surgimento seria a capacidade de compreender

aquela desordem por dentro, como um sistema.

Após reservas iniciais, como se viu, com relação ao pós-modernismo, Jameson

proporcionava, a partir dos parâmetros expostos, uma abordagem coerente da pós-

modernidade,283 estabelecendo os termos do debate subseqüente.

282 Bauman, em suas reflexões, menciona a desordem do mundo atual, não em oposição a uma ordem experimentada anteriormente, mas como uma nova desordem, apenas de outro tipo: “após meio século de divisões bem definidas, tanto interesses evidentes como indubitáveis desígnios e estratégias políticas privaram o mundo de estrutura visível e de qualquer – por mais sinistra – lógica. A política dos blocos de poder, que não há tanto tempo dominou o mundo, assustado com o caráter horripilante de suas possibilidades: o que quer que venha a lhe tomar o lugar assusta, no entanto, por sua falta de coerência e direção – e talvez pela vastidão das possibilidades que pressagia”. 283 Fiel à sua formação marxista, Jameson criou uma tensão criativa com os diferentes instrumentos e temas do repertório do marxismo ocidental, conseguindo uma formidável síntese. As principais contribuições vieram de: Lukács (compromisso com a periodização e o fascínio pela narrativa), Bloch (respeito pelas esperanças e sonhos escondidos num empanado mundo objetivo), Sartre (a excepcional fluência com as texturas da experiência imediata), Lefebvre (a curiosidade pelo espaço urbano), Marcuse (a investigação da pista do consumo hight-tech), Althusser (uma concepção positiva da ideologia como um imaginário social necessário) e Adorno (a ambição de representar a totalidade do seu objeto como sendo apenas uma “composição metafórica”).

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1.4 As repercussões posteriores

Através das importantes contribuições de Alex Callinicos,284 David Harvey,285 Terry

Eagleton286 e Perry Anderson,287 o debate subseqüente direciona para uma tentativa de

suplementação ou correção, nunca de negação, do relato original de Jameson. Os problemas

colocados por esses autores com relação às proposições de Jameson resumem-se ao aspecto

da demarcação: de período, de contornos e de abrangência do pós-moderno. Esse tripé

investigativo se desdobra em temas e/ou questões que exigem um olhar mais acurado.288

A questão central e primeira é a do tempo. Estaria aqui um primeiro aspecto frouxo na

formulação de Jameson, uma das críticas da esquerda.289 Se o pós-modernismo constitui-se na

lógica cultural do capitalismo, não deveriam coincidir os dois no tempo? Mandel, em quem se

ancoram as reflexões de Jameson acerca do novo estágio do desenvolvimento do capitalismo,

datava a chegada geral do Capitalismo avançado290 aproximadamente em 1945. A

emergência do pós-modernismo, por seu lado, foi situada por Jameson no início dos anos

1970. Essa defasagem era embaraçosa, mesmo considerando-se que a realização integral do

modelo de Mandel não se deu da noite para o dia.

284 Em Against postmodernism, Callinicos (1989) faz uma análise detalhada do background político do pós-moderno. 285 Em Condition of postmodernity, de 1990, Harvey faz uma análise bem mais completa das pressuposições econômicas do pós-moderno. Cf. ed. bras.: HARVEY, David. Condição pós-moderna. 13. ed. São Paulo: Loyola, 2004. 286 Em The illusions of postmodernism, de 1996, Eagleton aborda o impacto da difusão ideológica do pós-moderno. Cf. ed. bras.: EAGLETON, Terry. As ilusões do pós-modernismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. 287 Em The origins of postmodernity, de 1998, Anderson aborda os primórdios, cristalização, compreensão e efeitos posteriores da pós-modernidade. Cf. ed. bras.: ANDERSON, Perry. As origens da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. 288 Neste restrito espaço de pesquisa, serão apresentadas, à guisa de esclarecimento, umas breves pinceladas acerca desses pontos específicos. Para um maior aprofundamento sobre a temática aqui debatida, conferir os diversos escritos indicados nas notas de rodapé ao longo deste item, além da bibliografia, ao final. 289 Cf. DAVIS, Mike. Urban renaissance and the spirit of postmodernism. New Left Review, n. 151, p. 106-113, maio-jun. 1985. 290 Esse é o título da obra de Mandel acerca do tema, na qual Jameson baseou suas reflexões.

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O esclarecimento inicial vem de Harvey (2004), na afirmação de que o advento da

pós-modernidade, corretamente situado no começo dos anos 1970, é, na verdade, não uma

ruptura com o capitalismo de antes da segunda Grande Guerra, o que lhe proporcionaria

realmente uma defasagem de aproximadamente 20 anos, mas sim uma ruptura contemporânea

com o fordismo, modelo de desenvolvimento capitalista do pós-guerra.291 Sob essa ótica, pós-

modernismo e capitalismo tardio, para usar expressão de Jameson (1996), estariam alinhados

no espaço temporal dos seus surgimentos, trazendo sentido para aquela afirmativa de que o

pós-modernismo se constitui na lógica cultural do capitalismo (JAMESON, 1996).

O fordismo, em 1973, mergulha numa profunda crise de superacumulação adiada já há

muito tempo. Isso ocorreu devido à nova conjuntura que se apresentava e que minaram suas

forças: uma crescente competição internacional, lucros corporativos em baixa e inflação

acelerada. Na esteira dessa crise, surgia um novo período, agora, sim, podendo ser

caracterizado como uma ruptura, que trazia no seu encalço uma nova condição cultural, a pós-

moderna. Esse novo regime de acumulação, ora mais flexível, tinha como base o capital,

agora com uma enorme margem de manobra. A maior flexibilidade acumulativa era

claramente observável nos mercados de trabalho (contratos temporários, mão-de-obra

doméstica e imigrante), nos processos de fabricação (mudança de fábricas para outros paises,

produção a toque de caixa), na produção de mercadorias (lotes em consignação) e,

principalmente, nas operações financeiras desregulamentadas (mercado de dinheiro e crédito).

Esse sistema especulativo e inquieto estava na base das várias formas de cultura pós-

moderna. A acumulação cada vez mais flexível, daí oriunda, mesmo não podendo ser descrita

como universalmente dominante, trazia no seu bojo, de maneira bastante crítica, pode-se

dizer, ao ponto de significar uma instabilidade sistêmica sem precedentes, um fato inovador

no capitalismo: a posição e a autonomia dos mercados financeiros em seu interior.

291 Em obra anterior, Harvey traçou a mais sistemática e original teoria marxista das crises econômicas. Cf. HARVEY, David. The limits to capital. Oxford: [s. n.], 1982.

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Callinicos (1989), refletindo em outra direção, oposta, inverte essa linha de

argumentação. Na sua observação, o capital, sem dúvida, já global, mesmo estando mais

integrado que nunca e detendo uma nova mobilidade, de forma alguma poderia ser

caracterizado como uma ruptura na história do capitalismo. Isso porque os Estados nacionais

ainda preservavam substancial poder de regulamentação, haja vista o sucesso do

keynesianismo militar de Reagan, no sentido de reaquecer a economia mundial na década de

80. Com relação aos demais aspectos da acumulação flexível, eles estariam sendo exagerados

ou mitificados.292

Da mesma forma, o pós-modernismo, mesmo como conjunto distinto de práticas

artísticas, quanto mais como cultura dominante, era em grande parte ficção. Assim como não

era observável uma ruptura no capitalismo, também não se podia falar em uma ruptura crítica

com o moderno. Os principais recursos ou aspectos estéticos atribuídos ao pós-modernismo

podiam virtualmente ser encontrados no modernismo: a bricolagem da tradição, o jogo com o

popular, a reflexividade, o hibridismo, o pastiche, o figurativismo, o descentramento do

sujeito. Algo diferente, isso sim, era observável, qual seja, uma degradação paulatina do

próprio modernismo na medida em que se tornava mais acomodado e integrado aos circuitos

capitalistas do pós-guerra. Ligada diretamente a esse declínio, no entanto, estavam, não

exatamente mudanças econômicas ou qualquer lógica estética imanente, mas, a história

política da época. As vanguardas revolucionárias293 do período entre-guerras, que marcaram o

apogeu do modernismo, tinham sucumbido ante as vitórias de Stálin e Hitler.

292 A força de trabalho estava menos segmentada, a produção em lotes, menos difundida e o setor de serviços era menos significativo do que sugeriam as teorias pós-fordistas. O próprio fordismo, na visão do autor (1989), era uma noção que cresceu demasiadamente, projetando um predomínio homogêneo da produção em massa padronizada que nunca teria existido na realidade, exceto num limitado número de indústrias de bens de consumo duráveis. 293 O autor (1989) refere-se especificamente aos seguintes movimentos: o construtivismo, na Rússia, o expressionismo e a neue sachlichkeit (nova objetividade), na Alemanha; e o surrealismo, na França.

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O pós-modernismo,294 de forma análoga, também podia ser visto como produto da

politicamente derrotada geração radical do final dos anos 1960. Vendo frustradas suas

esperanças revolucionárias, essa geração encontrou compensação num cínico hedonismo que,

por sua vez, alimentou-se da superexplosão de consumo da década de 1980. Para Callinicos

(1989, p. 168), “essa conjuntura – a prosperidade da nova classe média ocidental combinada

com a desilusão política de muitos dos seus integrantes mais articulados – fornece o contexto

para a proliferação do discurso pós-moderno”.

Diante de diagnósticos tão contrastantes acerca do período mais adequado a se situar o

início do pós-modernismo, Anderson (1999) busca uma maior precisão. No seu entendimento

(1999, p. 98), “o ponto de ruptura proposto para o modernismo a partir de 1945 era

certamente muito abrupto”. O que se pode falar é que o ímpeto modernista cedeu com a

paulatina liquidação das forças que o incitaram. Tal processo veio à tona com a Primeira

Guerra Mundial, quando o cenário europeu começou a ser modificado pela destruição dos

anciens régimes na Rússia, na Áustria-Hungria e na Alemanha e o enfraquecimento dos

proprietários fundiários por toda a parte. A ruptura se apresentou, levando esse cenário a

conhecer o seu ocaso, com o advento da Segunda Guerra Mundial e suas conseqüências: as

velhas elites agrárias e seu estilo de vida na maior parte do continente foram esmagados, uma

democracia capitalista estável foi instaurada, os bens de consumo duráveis no Ocidente foram

padronizados e os ideais da revolução, no Leste, estripados. Tinha início “o estável e

monótono Estado da ordem atlântica do pós-guerra (ANDERSON, 1999, p. 97)”, onde toda

arte ainda radical estava normalmente fadada à integração comercial ou à cooptação

institucional.

Mesmo nesse novo contexto, porém, permanecia de certa forma o legado das

vanguardas de antes da guerra. Sua extinção não se daria da noite para o dia, permanecendo

294 Callinicos (1989) vê o pós-modernismo, no seu aspecto estético, como algo pouco mais que um capricho menor na espiral descendente do modernismo; ideologicamente, no entanto, com uma significação muito maior.

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ainda como modelo interno e memória, mesmo em meio às desfavoráveis circunstâncias

externas para sua reprodução.295 Dessa forma,

o quarto de século após o fim das hostilidades parece assim, visto em retrospectiva, um interregno no qual as energias modernistas não foram sujeitas à súbita anulação mas ainda brilhavam de forma intermitente aqui e ali, onde as condições permitissem, em um clima geral inóspito. Só na virada dos anos 70 o terreno estava preparado para uma configuração totalmente nova (ANDERSON, 1999, p. 100).

Anderson (1999) acredita que uma demarcação mais precisa acerca do surgimento do

pós-modernismo requer uma verificação dos substitutos dos principais determinantes do

modernismo. Em seu modo de ver, três novas coordenadas históricas constituem os três

ângulos do campo cultural pós-moderno.296

a) A primeira está ligada ao destino da própria ordem dominante. Nos anos 1990, o

fenômeno mais notável é uma degradação das classes dominantes. A burguesia, em sentido

estrito, como classe dotada de autoconsciência e moral, estava em extinção. O sólido

anfiteatro burguês do passado cede lugar a um universo monetário que não conhece rigidez

social ou identidade fixas, constituindo-se em um aquário de formas flutuantes e

evanescentes: os projetistas e gerentes, auditores e zeladores, administradores e especuladores

do capital contemporâneo. Configura-se o pano de fundo social pós-moderno. Se o

modernismo se definia desde seus primórdios como “antiburguês”, o pós-modernismo se dá

quando, sem qualquer vitória, esse adversário desaparece (ANDERSON, 1999, p. 102).

295 Nos Estados Unidos, o expressionismo abstrato virou uma ortodoxia ainda em seu curto período de vida, transformado em investimento simbólico pelo grande capital e valor ideológico pelo Estado. Na Europa, onde a anexação da arte se fazia menos esmagadora e a resistência ao sistema de guerra fria se mostrava mais ativa, ao menos em seu lado mais ocidental, eram muito mais fortes as correntes que davam continuidade aos objetivos das vanguardas da entre-guerra. 296 As coordenadas triangulares anteriores, fundamentos das origens do modernismo na belle époche européia, segundo estudo de Anderson, eram: “uma economia e uma sociedade apenas semi-industriais ainda, nas quais a ordem dominante continuava em larga medida agrária ou aristocrática; uma tecnologia de grandes invenções cujo impacto era ainda recente ou incipiente; e um horizonte político aberto no qual levantes revolucionários de um ou de outro tipo contra a ordem dominante eram amplamente esperados ou temidos. Cf. ANDERSON, Perry. Modernity and revolution. A zone of engagement, London, p. 25-55, 1992.

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b) A segunda coordenada relaciona-se à evolução da tecnologia. Os primeiros anos do século

XX e suas invenções que transformaram a vida ubana – o paquete, o rádio, o cinema, o

arranha-céu, o automóvel, o avião – proporcionaram ao modernismo maior poder. O período

entre-guerras, sem acrescentar nada de significativo à lista tecnológica, assistiu a sofisticação

e a extensão das tecnologias-chave da decolagem modernista com o hidroavião, o carro

conversível, o som e as cores do cinema, o giroplano. O período da Segunda Guerra, por sua

vez, conheceu a faceta apocalíptica da tecnologia: o progresso científico produzia

instrumentos poderosos de destruição e morte, como as bombas nucleares. O pós-guerra se

depara com a produção industrial bélica, convertendo-se num princípio permanente, dado o

acirramento da guerra fria. Com a posterior reconstrução do período de paz e o duradouro

crescimento, a produção em massa de bens padronizados integrou a mesma dinâmica.

Minguou, de forma tácita, aquele período inicial de excitação do moderno, anterior à Primeira

Guerra, que conhecera um conjunto decisivo de invenções.

O cenário foi modificado com o surgimento da televisão, o primeiro avanço

tecnológico de importância histórica mundial no pós-guerra, proporcionando um salto

qualitativo no poder das comunicações de massa.297 Sua característica audiovisual possibilitou

uma combinação de poder jamais sonhada: “a contínua disponibilidade do rádio com um

equivalente ao monopólio perceptivo da palavra impressa, que exclui outras formas de

atenção do leitor”. Comercializada a partir dos anos 1950, a televisão adquiriu maior

importância nos anos 1960, ainda carregando a marca da inferioridade, pois, transmitindo em

preto e branco, era tida como uma enteada atrasada do cinema. Sua ascendência mesmo

ocorreu no início dos anos 1970 com as transmissões em cores, desencadeando uma crise na

indústria cinematográfica.

297 O rádio já havia ultrapassado a imprensa como instrumento de conquista social no período entre-guerras, por suas exigências menores de qualificação educacional, pela recepção mais imediata e pelo alcance temporal. Seus ouvintes eram permanentes nas 24 horas de radiodifusão, o que era proporcionado pela possibilidade de se exercerem as atividades com o rádio ligado ao fundo, pois havia o desligamento entre olho e ouvido.

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Em existindo um isolado divisor de águas tecnológico do pós-moderno, seu nome

seria televisão298 (ANDERSON, 1999, p. 104). O outrora modernismo tomado, em júbilo ou

alarmado, por imagens de máquinas foi sendo substituído pelo pós-modernismo dominado

por máquinas de imagens, constituindo-se num ambiente técnico das “cataratas de tagarelice

visual”.299

c) A terceira coordenada histórica da nova situação está nas mudanças políticas da época. A

guerra fria, a partir de 1947, na Europa, congelou as fronteiras estratégicas e esfriou todas as

esperanças insurrecionais e, na América, neutralizou o movimento operário e caçou a

esquerda. Junto a isso, a estabilização do pós-guerra proporciona um rápido crescimento

internacional na história do capitalismo, proclamando, nos anos 1950, o fim da ideologia, o

que parecia relegar o mundo político dos anos 1920 e 1930 a um passado remoto. As

vanguardas alimentadas pelos fortes ventos da revolução não encontravam mais onde se

ancorar.

As movimentações ainda perceptíveis nos horizontes políticos ocidentais dos anos

1960, que mostravam que era ainda enganosa a aparência externa de completo fechamento,

certa conjuntura de abertura, onde se viu arderem de novo as chamas vivas da vanguarda,300

298 Posteriormente, o aparelho de televisão viria a fundir-se ao computador. David Bennett, falando sobre a “indústria da imagem” e situando-a no mundo de hoje, expressa que “a incerteza radical a propósito dos mundos material e social que habitamos e dos nossos métodos de atividade política dentro deles [...] é o que a indústria da imagem nos oferece [...]”. Cf. BENNETT, D. Hollywood’s indeterminacy machine. Arena, n. 3, p. 30, 1994. As imagens geradas a partir desses meios de comunicação cultural são, nas palavras de Bauman (1998, p. 36), apesar de carregadas de grande poder de persuasão, mensagens de indeterminação e maleabilidade do mundo: “neste mundo, tudo pode acontecer e tudo pode ser feito, mas nada pode ser feito uma vez por todas – e o que quer que aconteça chega sem se anunciar e vai-se embora sem aviso”. Marc Augé (2003, p. 108) diz que na “situação de supermodernidade” os “não-lugares” (ocupados, em parte, pelas imagens) são tão freqüentes que se tornam a “oportunidade de uma experiência sem verdadeiro precedente histórico de individualidade solitária e de mediação não-humana (basta um cartaz ou uma tela) entre o indivíduo e o poder público. Ver nesse jogo de imagens apenas uma ilusão (uma forma pós-moderna de alienação) seria um erro”. 299 Expressão tomada de empréstimo a Robert Hughes. Cf. HUGHES, Robert. Nothing if not critical. New York: [s. n.], 1990.p. 14. 300 Os partidos comunistas de massa continuaram irreconciliados com a ordem vigente na Europa continental (França, Itália, Espanha, Portugal e Grécia); Krushchev delineava um modelo soviético menos repressivo e mais internacionalista que na época de Stálin; levantes revolucionários (Indochina, Egito, Argélia, Cuba, Angola) no Terceiro Mundo abalavam importantes fortalezas do domínio imperialista; inspirado nos ideais da Comuna de Paris, Mao orquestrava contra a burocracia estabelecida na China; os jovens instruídos dos países capitalistas

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acabariam, no entanto, revelando-se apenas um climatério. A calmaria política dos anos 1970

acabaria por inverter os sinais, extinguindo os sonhos políticos da década anterior 301 e

possibilitando à década de 1980 a ofensiva de uma direita vitoriosa.302

Mais do que significar simplesmente a derrota de todas aquelas forças outrora

dispostas contra ele, o triunfo do capital internacional mais profundamente representa o

cancelamento das alternativas políticas. Sem essa sua condição essencial de existência, o

horizonte de outras ordens sociais, o modernismo vê surgir “em seu lugar algo como o pós-

modernismo” (ANDERSON, 1999, p. 108).

Uma conjuntura pós-moderna, em resumo, nasce da combinação de uma ordem

dominante desclassificada (primeira coordenada histórica), uma tecnologia mediatizada

(segunda coordenada) e uma política sem nuanças (terceira coordenada). Essas coordenadas,

no entanto, devem ser vistas apenas como dimensões de uma mudança mais ampla que

sobreveio com os anos 1970.

A questão das polaridades da pós-modernidade, que diz respeito aos seus contornos,

constitui-se no segundo ponto temático a ser esclarecido. Contrariamente ao post facto

moderno, característica do pós-modernismo que unificava a posteriori uma ampla variedade

de formas e movimentos experimentais cujos nomes por si mesmos nada revelavam dele, o

pós-modernismo aproxima-se mais de uma noção ex ante, uma concepção que brotou avançados provocavam ondas de revolta estudantil; a agitação operária se fazia notar na França (maio a junho de 1968), na Itália (1969) e na Inglaterra, um pouco tardia (1973-1974). 301 A revolta de maio na França foi absorvida praticamente sem deixar vestígios; a mais audaciosa de todas as experiências de reforma comunista – a Primavera de Praga – foi esmagada pelos exércitos do Pacto de Varsóvia; as guerrilhas latino-americanas, inspiradas em Cuba, foram liquidadas; a Revolução Cultural chinesa semeou o terror em vez de libertação; a era Brejnev conhece o longo declínio soviético; a militância operária reflui, apesar de uma ou outra agitação aqui e ali. 302 Reagan e Thatcher, no mundo anglo-saxão, anularam o movimento operário e fizeram recuar a regulamentação e a redistribuição; da Grã-Bretanha para o restante da Europa espalhou-se um novo padrão de desenvolvimento neoliberal através da privatização do setor público, dos cortes nos investimentos sociais e dos altos níveis de desemprego, padrão posteriormente adotado tanto por partidos de esquerda quanto de direita; na Europa Ocidental, a Internacional Socialista abandona o ideal social-democrata do pós-guerra – o bem-estar social baseado no pleno emprego e no abastecimento geral; na Europa oriental e na união soviética, o comunismo é destroçado por sua incapacidade de competir economicamente no exterior e de se democratizar internamente; no Terceiro Mundo, os Estados nacionais foram pegos na armadilha da nova subordinação internacional, representada pelas pressões dos mercados financeiros mundiais e de suas instituições supervisoras.

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antecipadamente das práticas artísticas que veio a retratar. Além disso, há ainda uma grande

diferença de peso entre o modernismo e o pós-modernismo. Enquanto os tempos modernos se

caracterizaram pelo gênio inigualável303 ou pela vanguarda intransigente,304 num mundo de

claras demarcações e fronteiras balizadas por meio de manifestos,305 o pós-moderno carece

disso.306

A partir da década de 1970, caiu em suspeição a idéia de vanguarda307 ou gênio

individual, os movimentos coletivos e combativos de inovação escassearam e rarearam os

“ismos” como símbolos de originalidade. Nesse universo pós-moderno, no lugar de

delimitação, celebram-se a mistura, o cruzamento, o híbrido e o pot-pourri. Na ausência dos

manifestos, outrora tão fortes e significativos no modernismo, e na falta de um sistema de

autodesignação próprio ao campo das práticas artísticas, surge um unificador, externo, o pós-

modernismo, adquirindo relevo contemporâneo e abrangendo todas essas práticas. Não se

percebe mais uma lacuna entre o nome e a época (ANDERSON, 1999).

As discrepâncias, no entanto, fizeram-se sempre presentes. Como já anunciado, a

história da idéia de pós-moderno aparece bem antes do advento de qualquer forma

prontamente identificável como pós-moderna, na sua concepção atual. O mesmo pode ser dito

acerca da teorização com relação ao aparecimento do fenômeno pós-moderno. As primeiras

noções de pós-modernismo são literárias, enquanto sua projeção como estilo foi arquitetônica.

303 O “alto modernismo” de Proust, Joyce, Kafka e Eliot. 304 Os movimentos coletivos do simbolismo, futurismo, expressionismo, construtivismo e surrealismo. 305 Manifestos que se constituíam em declarações de identidade estética que separavam o terreno escolhido pelo artista dos terrains vagues além. 306 Nos tempos pós-modernos, “as fronteiras que tendem a ser ao mesmo tempo mais fortemente desejadas e mais aguçadamente despercebidas são as de uma justa e segura posição na sociedade” (BAUMAN, 1998, p. 38, ênfase do autor). 307 Avant-garde significa, literalmente, vanguarda, posto avançado, ponta-de-lança da primeira fileira de um exército em movimento. Um pelotão das forças armadas que vai à frente preparando o caminho para o restante da tropa é de vanguarda porque sabe que os restantes lhe seguirão o exemplo. “O conceito de vanguarda trasmite a idéia de um espaço e tempo essencialmente ordenado”, onde já se sabe, “com toda certeza, de que lado está a frente e onde a retaguarda, onde é ‘na dianteira’ e onde ‘atrás’”. “Por esse motivo, não faz muito sentido falar de vanguarda no mundo pós-moderno” (BAUMAN, 1998, p. 121).

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Bem antes disso, no entanto, na pintura, não por acaso,308 afloraram praticamente todos os

seus aspectos, marcando-a provavelmente como o lugar privilegiado de uma transição para o

pós-moderno, de forma drástica, através de um questionamento radical da própria natureza

das artes. Não seria mais possível uma história da arte coerente, mas apenas discretas

investigações de episódios específicos do passado, nem “algo como uma ‘obra de arte’

constante como fenômeno singular suscetível de uma interpretação universalmente válida” 309

(ANDERSON, 1999, p. 115).

Na própria origem do termo pós-modernismo observa-se uma bifurcação. Quando,

como já mencionado anteriormente, distante do centro cultural da época (Europa e Estados

Unidos), no mundo hispânico, nos anos 1930, Frederico de Onís, amigo de Unamuno e

Ortega, imprimia o termo postmodernismo, originalmente ligado à estética, o fez

contrastando-o com ultramodernismo. Ambos seriam reações opostas ao modernismo

hispânico. Segundo Anderson (1999), a polaridade atual do pós-moderno pode ser expressa

num outro par de prefixos – intrínseco ao pós-modernismo: “infra” e “ultra”.310 No

“inframoderno”, estariam todas as tendências que, rompendo com o alto modernismo,

308 Uma combinação de características explica porque a pintura rompe as convenções da representação muito antes de qualquer outra arte, incluindo a poesia, passando por um grande número de revoluções formais e constituindo-se no “sismógrafo mais sensível de mudanças culturais mais amplas” (ANDERSON, 1999, p. 111): custos de produção mais baixos, maior independência do artista (no caso, o pintor), taxas potencialmente mais elevadas de retorno do investimento inicial (algo explicado pelo seu caráter especulativo). Seus lados opostos se inter-relacionam, pois no seu aspecto “único”, de forma concomitante, duas explicações se processam: a exigência de baixos investimentos, por não envolver técnicas de reprodução (guindaste, câmera, estúdio, orquestra, prensa tipográfica etc.), e o valor incomensurável, exatamente por não ser reprodutível. Além disso, em nenhuma outra arte é tão frágil a barreira à inovação formal, visto que os hábitos do olho são menos rígidos que as leis da engenharia, por exemplo, ou que as limitações da inteligibilidade verbal. 309 Hegel, no século XIX, proclamou o fim da arte e, ao mesmo tempo, inaugurou um novo discurso de história da arte. A arte contemporânea, segundo Anderson (1999), escapa da moldura. Nas palavras de Belting, vemos o fim de uma história linear da arte, quando se percebe o fim das definições. Advém daí, não um fechamento, mas uma abertura bem-vinda e sem precedentes. Cf. a volumosa obra Bild und kult (Imagem e culto) (1990) do historiador de arte alemão Hans Belting. Dele, cf. também Das ende des Kunst-geschichte (O fim da História da arte) (1993). 310 Os termos são tomados de empréstimo ao passado revolucionário francês. Em discurso, Robespierre distingue entre as forças “infra-revolucionárias” (os moderados que queriam um recuo da República com relação às medidas resolutas necessárias para salvá-la) e os extremistas (aqueles que queriam precipitar a República nos excessos que com certeza a fariam sucumbir). Expurgada da polêmica local, essa dualidade, para Anderson (1999) é a que melhor expressa a polaridade do pós-moderno.

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pretenderam reinstalar o ornamental e de mais fácil acesso; já no “ultramoderno” estariam as

tendências que foram além do modernismo, radicalizando suas negações da inteligibilidade

imediata ou a gratificação sensual. Uma virtual definição do inframoderno passa por algo que

se ajusta ou apela ao espetacular, sendo o ultramoderno aquilo que busca iludi-lo ou recusá-lo.

Segundo Anderson (1999, p. 123),

o que pode ser dito com absoluta certeza é que no pós-moderno o infra inevitavelmente predomina sobre o ultra. Pois o mercado faz o seu próprio abastecimento numa escala maciçamente além de quaisquer práticas que a ele resistiriam. O espetáculo é por definição o que hipnotiza o máximo do social.

Essas polaridades empurram a arte contemporânea em duas direções, incompatíveis,

na observação de Wollen: 311 um desejo de “reavaliar a tradição modernista, de reincorporar

elementos dela como corretivos da nova cultura visual pós-moderna” e um impulso de “se

lançar de cabeça no novo mundo sedutor da fama, do comercialismo e do

sensacionalismo”.312

A pergunta pelo alcance das reflexões de Jameson expressa o terceiro ponto

nevrálgico acerca da demarcação do pós-moderno.

No entendimento de Anderson (1999), mesmo tendo buscado vez ou outra inspiração

no Oriente, na África e na herança indígena americana, através dos movimentos heterodoxos,

as vanguardas clássicas modernistas permaneceram ocidentais. Essa fronteira é ultrapassada

pela obra de Jameson. A questão que se apresenta é se, ao ultrapassar fronteiras, o pós-

modernismo estaria projetando um universo cultural excessivamente homogêneo modelado no

sistema norte-americano. Na compreensão de Wollen,313 “o modernismo [...] não está sendo

sucedido por um totalizante pós-modernismo ocidental, mas por uma nova estética híbrida na

311 Cf. HOLLEN, Peter. Thatcher’s artists. London Review of Books, p. 9, 30 out. 1997. 312 Hollen acredita não haver muitas dúvidas acerca de qual dos dois caminhos apresenta maior tráfego. Cf. HOLLEN, Peter. Thatcher’s artists. London Review of Books, p. 9, 30 out. 1997. 313 Cf. WOLLEN, Peter. Raiding the icebox. p. 205, 209.

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qual novas formas de comunicação e exibição estarão sendo constantemente confrontadas por

novas formas vernáculas de invenção e expressão”, algo para além tanto do “sufocante

discurso europeu” do último modernismo como também do pós-modernismo. A mesma

espécie de objeção pode ser encontrada, numa forma mais doutrinária, na estrutura da “teoria

pós-colonial”,314 como reação direta à influência de idéias de pós-modernismo nos países

metropolitanos e também à interpretação de Jameson.

Segundo esses críticos, a teoria de Jameson ignora ou omite práticas periféricas que,

além de não se acomodarem às categorias do pós-moderno, positivamente as rejeitam. Para

eles, existe algo mais contestador e mais político que o pós-modernismo de centro: a cultura

pós-colonial. Essa sim, apresenta-se como desafiadora das arrogantes pretensões da

metrópole, apelando para suas próprias formas radicais de representação ou realismo, algo

proscrito pelas convenções pós-modernas. Segundo During,315 os defensores da cultura pós-

colonial vêem o pós-modernismo como “neo-imperialista”. Isso porque “o conceito de pós-

modernidade foi construído em termos que mais ou menos intencionalmente eliminam a

possibilidade de identidade pós-colonial”, impossibilitando que as vítimas do imperialismo

ocidental adquiram uma noção de si mesmas “não contaminada por conceitos e imagens

universalistas ou eurocêntricas”.316

Dentre as réplicas e críticas317 direcionadas a essa teoria, sobressai aquela que

questiona a própria noção de “pós-colonial”: da forma como é tipicamente usada, ela torna-se

tão elástica ao ponto de perder praticamente todo o gume crítico, além de, dificilmente, poder

atingir o alvo. Essa elasticidade viria das concepções defendidas pelos próprios adeptos da

314 Corpo crítico desenvolvido a partir de meados dos anos 1980. 315 Cf. DURING, Simon. Postmodernism or postcolonialism?. Landfall, v. 39, n. 3, p. 369, 1985. 316 Os adeptos da cultura pós-colonial dizem necessitar não das perniciosas categorias de um marxismo ocidental totalizante, mas das discretas genealogias de Foucault, por exemplo. 317 Cf. DIRLIK, Arif. The postcolonial aura: third world criticism in the age of global capitalism. Critical Enquiry, p. 328-356, inverno 1994. Cf. também AHMAD, Aijaz. The politics of literary postcoloniality. Race and Class, p. 1-20, outono 1995.

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teoria acerca de sua amplitude temporal e espacial. Temporalmente, a história pós-colonial

não se restringe ao período que sucede a independência das ex-colônias, abarcando toda a sua

experiência desde o momento da própria colonização. Espacialmente, ela não se restringe às

terras conquistadas pelo Ocidente, abrangendo também aquelas ocupadas por ele. Daí advém

uma lógica perversa:318 o próprio ápice do neo-imperialismo, Estados Unidos, se constituir-se-

ia em uma sociedade pós-colonial, buscando sua identidade violada. No nascedouro da teoria

pode estar uma possível explicação para essa dilatação conceitual que esvazia o conceito de

toda importância operacional que pudesse lhe ser própria: a) suas origens geopolíticas estão

não na Ásia ou na África, mas nos antigos domínios brancos – Nova Zelândia, Austrália,

Canadá; b) em suas origens intelectuais, encontra-se também Foucault e sua empreitada de

superexpansão do conceito de poder, trazendo como conseqüência certa banalização deste

conceito.319

Uma outra abordagem do termo pós-colonial,320 mais razoável e cuidadosa, utiliza o

prefixo “pós” denotando um período histórico em que de fato ocorreu a descolonização sem

que cessasse, no entanto, a dominação neo-imperialista, com base não mais na força militar,

mas em formas de consentimento ideológico que exigem novos tipos de resistência política e

cultural. Essa segunda versão para o termo pós-colonialismo está mais próxima de traduzir

com maior clareza a realidade do mundo contemporâneo. No entanto, em vez de se opor, ela

em muito se assemelha às reflexões de Jameson acerca do impacto do pós-modernismo,

chegando mesmo a confirmá-las, quando se analisam os detalhes. Um deles é a “sua

insistência sobre a forma de penetração do mercado nas culturas populares fora da área central

do capitalismo avançado” (ANDERSON, 1999, p. 138).

318 Cf. ASHCROFT, Bill; GRIFFITHS, Gareth; TRIFFIN, Helen. The empire writes back: theory and practice in colonial literatures. London: [s. n.], 1989. p. 2. 319 Anderson (1999, p. 137) dá maior ênfase à explicação geopolítica, referindo-se à origem intelectual exposta com “talvez um pouco também as suas origens intelectuais [...]”. 320 Cf. XIE, Shaobo. Rethinking the problem of postcolonialism. New Literary History, v. 28, n. 1, p. 9ss, inverno 1977.

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Se pretensões pós-coloniais não objetam de forma mais substantiva o argumento de

Jameson acerca de um predomínio global do pós-moderno, o mesmo não se pode dizer da

ausência de uma plena modernização capitalista em tantas áreas do antigo Terceiro Mundo.

Como falar em pós-modernidade em lugares onde estão ausentes ou presentes de forma

irregular elementos mínimos da modernidade como alfabetização, indústria, mobilidade etc.?

Na verdade, a questão colocada deve ser redirecionada, pois a argumentação de Jameson não

pressupõe nem está atrelada a um capitalismo contemporâneo mundial homogêneo

socialmente. A desigualdade é inerente ao sistema, pois esse, na sua “nova e abrupta

expansão”,321 ao mesmo tempo em que eclipsa formas antigas de desigualdade, multiplica

novas formas que ainda não estão claramente compreendidas. A questão real a ser colocada,

então, é se essa desigualdade é grande demais para fundamentar uma lógica cultural comum.

Parece natural a argumentação: se o pós-modernismo surgiu como “um dominante

cultural em sociedades capitalistas de riquezas sem precedentes e com índices bastante

elevados de consumo”,322 não seria razoável pensar que “nas sociedades com níveis de

consumo bem mais baixos e um estágio de desenvolvimento industrial bem menos avançado

prevaleceria, provavelmente, uma configuração mais próxima do modernismo, tal como

floresceu outrora no Ocidente”? Anderson confessa já ter sentido atração por essa

possibilidade.323 Não se configuraria aí um acentuado dualismo de formas elevadas e baixas,

com uma distância mais abissal ainda, que poderia ser comparada àquela divisão européia

entre vanguarda e cultura de massa? Atualmente, tal argumentação carece de sentido,324 em

vista do fenômeno da globalização, onde “os sistemas de comunicação global garantem um

321 A expressão faz referência ao “capitalismo tardio” abordado por Jameson (1996) e já detalhado anteriormente neste espaço. 322 Jameson (1996) reconheceu essa ligação inicial diretamente com essas sociedades, insistindo, posteriormente, mais ainda nas suas específicas origens americanas. 323 Cf. ANDERSON, Perry. Modernity and revolution. A zone of engagement, London, p. 40, 54, 1992. 324 Sua possibilidade maior nos anos 1960 deve-se ao fato de que os Estados Nacionais, com um mercado nacional extremamente protegido, estavam menos vulneráveis às invasões externas econômicas ou culturais.

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grau incomparavelmente maior de penetração cultural dos antigos Segundo e Terceiro

Mundos pelo Primeiro. Nessas condições, a influência das formas pós-modernas é inevitável

[...] (ANDERSON, 1999, p. 139)”.

Por outro lado, como argumenta Jonathan Arac,325 influência não se traduz

necessariamente em predomínio, indícios pós-modernos326 podem não se constituir em

hegemonia local.327 Os escritos de Jameson permitiriam retrucar no sentido de que a

hegemonia global do pós-moderno é um predomínio claro em nível mundial, sem excluir a

possibilidade de que ele se constitua em papel secundário em nível nacional em certos casos.

No entanto, um outro fator adquire significação maior nessa questão: o pacote tecnológico

pós-moderno, a televisão como locomotiva inicial, sem passado modernista, tornou-se o mais

poderoso meio na passagem para uma nova época, incidindo com força e impactos bem

maiores no antigo Terceiro Mundo que no próprio Primeiro, mostrando a improbabilidade de

se ficar isolado neste contexto.

O advento de novos tipos de conexão e simulação, 328 longe de dividir os centros

urbanos do século XXI, tenderá a unificá-lo mais ainda, mesmo prevalecendo as grandes

diferenças de renda média. Por isso,

Enquanto prevalecer o sistema do capital, cada novo avanço da indústria da imagem aumenta o raio de alcance do pós-moderno. Nesse sentido, pode-se

325 Cf. ARAC, Jonathan. Postmodernism and postmodernity in China: an Agenda for Inquiry. New Literary History, p. 144, inverno 1997. 326 Presença de importantes grupos de artistas ou de edifícios cujas referências são claramente pós-modernas. 327 O crítico Jonathan Arac situa suas reflexões na República popular da China, onde suas conclusões realmente adquirem bastante força, pois ali se encontram quase 1 bilhão de pessoas. 328 No rastro da televisão, logo adiante, surgiram as novas tecnologias de simulação – ou prestidigitação –, eminentemente pós-modernas, a fotografia digital, a comunicação no ciberespaço, os jogos de computador etc., algumas recentes mesmo nas culturas mais ricas, outras, como o computador, com mercado próspero mesmo no Terceiro Mundo. No mundo pós-moderno, salientou perspicazmente Baudrillard (1987, p. 13ss), todos os seres surgem como “simulacros”. O simulacro, em sua concepção, é a obra da simulação que, no entanto, não se confunde com fingimento ou dissimulação, com aparentar que estão presentes certos atributos que, de fato, não estão (feito alguém saudável que finge uma doença para faltar ao trabalho). “Fingir ou dissimular deixa intato o princípio da realidade: a diferença é sempre clara, está apenas mascarada; ao passo que a simulação ameaça a diferença entre ‘verdadeiro’ e ‘falso’, entre ‘real’ e ‘imaginário’” (como num paciente psicossomático, que apresenta e experimenta todos os sintomas esperados da enfermidade).

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dizer, seu predomínio global está praticamente predestinado (ANDERSON, 1999, p. 141).

Para Jameson, isso pode ser demonstrado, como uma prova dos nove, nas próprias

práticas culturais, onde as próprias obras exemplares da periferia podem julgar a

proeminência de um pós-moderno que não é mais somente ocidental. 329 De modo inverso,

também a esterilidade e o provincianismo nas metrópoles podem ser transformados em

notações de imaginativa renovação na perifieria. Segundo Jameson,330 o pós-moderno pode

também ter esse significado. Se isso acontece

é porque no capitalismo avançado e no seu sistema mundial até o centro é marginalizado. [Daí] expressões do marginalmente desigual e do desigualmente desenvolvido resultantes de uma experiência recente do capitalismo são com freqüência mais intensas e poderosas [e] acima de tudo mais profundamente sintomáticas e significativas que tudo o que o centro fragilizado ainda se acha capaz de dizer.

1.5 A identidade cultural na pós-modernidade

Esse novo contexto traz conseqüências para a questão da identidade. Como poderiam

ser relacionadas as novas ordens econômica e cultural expostas acima com uma possível

“crise de identidade”? Essa crise estaria ligada ao declínio de velhas identidades, aquelas que

por tanto tempo asseguraram a estabilização do mundo social e mantiveram o sujeito

329 Jameson pensa especificamente em algumas transformações e adaptações: “o formato modernista e a determinação moral do Os moedeiros falsos de Gide servem de marcos para sua impressionante transformação contemporânea no Terrorista de Edward Yang [...]”; “a concepção brechtiana de Umfunktionierung [antifuncionalidade] é adaptada de forma imprevisível na ‘nobre hilaridade’ de Pesadelo perfumado, de Kidlat Tahimik” onde são deformadas em compostos arruinados as oposições-padrão do nacionalismo cultural – Primeiro e Terceiro Mundos, velho e novo. De qualquer forma, está vez mais fora de moda a escolha entre um autêntico nacionalismo e uma modernidade homogeneizante. Cf. JAMESON, F. The geopolitical aesthetic: cinema and space in the world system. London: [s. n.], 1992. p. 120, 211. 330 Cf. JAMESON, F. The geopolitical aesthetic: cinema and space in the world system. London: [s. n.], 1992. p. 155.

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unificado? Tal crise estaria simbolizando a fragmentação do indivíduo moderno e trazendo no

seu encalço novas identidades? Seria ela parte de um processo mais amplo de mudança que,

ao deslocar as estruturas e processos centrais das sociedades modernas, estaria abalando os

próprios quadros de referência dos indivíduos, aqueles que lhe proporcionavam uma

ancoragem estável331 no mundo social?

Tratar questões tão complexas em espaço tão exíguo332 torna-se extremamente difícil e

perigoso. O debate é bastante recente e as tendências ainda demasiadamente ambíguas. 333 O

conceito, “identidade”, demasiadamente complexo, necessita de maior desenvolvimento e

compreensão que, com certeza,334 advirão com o aprofundamento das reflexões. O que se

331 “Estrutura de plausibilidade”, na expressão de Berger (1973). Cada mundo, para manter-se "de pé", necessita de uma estrutura que o mantenha. A família, por exemplo, para manter-se como tal, precisa de uma base social que torne natural sua existência. Seus membros vivem tranqüilos porque existe uma estrutura que torna plausível suas vidas em família. Daí a importância da estrutura de plausibilidade para cada mundo. Ela vai ser o termômetro que medirá o grau de simetria entre as realidades subjetiva e objetiva. Quanto mais plausível for a estrutura de um mundo, mais simétrica será a relação entre as realidades subjetiva e objetiva e, conseqüentemente, a possibilidade de se cair na anomia será menor. No mundo religioso, Berger (1985, p. 59) exemplifica da seguinte forma: "o mundo religioso do Peru pré-colombiano foi objetiva e subjetivamente real enquanto a sua estrutura de plausibilidade, vale dizer, a sociedade inca pré-colombiana, permaneceu intacta". E continua: "pode-se dizer que todas as tradições religiosas, independentemente de suas diversas 'eclesiologias' ou ausência das mesmas, exigem comunidades específicas para que se mantenha a sua plausibilidade". 332 Estudos posteriores poderão proporcionar a este pesquisador aprofundamento específico na questão ora refletida. Neste espaço, podem ser encontradas diversas obras na bibliografia, ao final, ou notas de rodapé, que tratam mais demoradamente a questão da identidade na pós-modernidade. 333 É bom esclarecer que as reflexões dos estudiosos da pós-modernidade, mesmo entre os que se assumem pós-modernos, desenvolvem-se em muitas frentes e envolvem significativas diferenças entre elas. A própria terminologia que envolve a nomeação do momento que ora se viveria é diversa: “modernidade tardia” (Anthony Giddens), “modernidade reflexiva” (Ulrich Beck), “supermodernidade” (Georges Balandier), “modernidade líquida”, “modernidade fluida”, “segunda modernidade”, “sobremodernidade”, “pós-modernidade” (Zygmunt Bauman). Em recente publicação (2004), Lipovetsky (Os tempos hipermodernos) afirma que o pós-moderno nunca existiu e que a lógica cultural da atualidade é hipermoderna, uma combinação de excesso e moderação que fragiliza o indivíduo. Como afirma McLaren (1993, p. 23-24), “não há nenhuma dúvida de que esse conceito tem proporcionado toda uma gama de articulações paradigmáticas que podem ser usadas para repensar a produção do conhecimento fora de um quadro de referência que tende a reduzi-lo a uma totalidade homogênea [...]. O termo ‘pós-moderno’ é um termo fugidio e seus referentes estão saturados de significados que se sobrepõem. Refere-se simultaneamente ao estado da cultura de consumo contemporânea, a complexos de estados de espírito metropolitanos e a novas tendências nas teorias contemporâneas do sujeito social”. 334 O próprio processo de expressão verbal das idéias trafega num terreno nada moderno – seguro, de base sólida, certeiro; antes, num terreno de características já pós-modernas – escorregadio, de limites curtos, não afeitos a certezas. Feito a pretendida certeza expressa acima e, provavelmente, em outros lugares deste texto, por este pesquisador. A sensação é a de estar “pisando” uma nova realidade sem, no entanto, dispor de categorias reflexivas suficientes para expressá-la ou, mais ainda, com categorias reflexivas pertencentes a uma realidade anterior que na verdade contradizem a nova realidade que se quer expressar. Em O fim das certezas (1996), Prigogine, refletindo sobre o mundo moderno, de “criação permanente”, diz que é apenas agora, depois de séculos de determinismo, dos esforços para rejeitar a diferença entre o passado e o futuro, que chegamos à realidade do panorama, também realidade natural, como invenção contínua, governada não por leis imutáveis,

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pretende aqui não são afirmações conclusivas ou julgamentos seguros, mas observação das

tendências do debate, além de lançar um olhar para uma questão crucial – identidade – num

contexto que se caracteriza por redefinições, para dizer o mínimo. 335

Essas redefinições estariam ancoradas numa mudança estrutural que está

transformando, desde o final do século XX, as sociedades modernas. Essas transformações se

concretizam em novas paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e

nacionalidade, outrora bases sólidas de localização dos indivíduos sociais, agora em processo

de fragmentação.336 A conseqüência advinda daí, no que toca à identidade, é um duplo

deslocamento – dos indivíduos, de seu lugar no mundo social e cultural; e dos indivíduos, de

si mesmos –, o que se configurariam tempos de “crise de identidade”. Nas palavras de Mercer

(1990, p. 43), “a identidade somente se torna uma questão quando está em crise, quando algo

que supõe como fixo, coerente e estável é deslocado pela experiência da dúvida e da

incerteza”.

Essa mudança, por ser estrutural, resultando em processos de transformação tão

fundamentais e abrangentes, traz na sua esteira a indagação se não é a própria modernidade

que está sendo transformada.337 A essa possibilidade, amplamente discutida desde os itens

mas pela contingência e probabilidade. Como bem lembrou Ferguson (), “no mundo pós-moderno todas as distinções se tornam fluidas, os limites se dissolvem, e tudo pode muito bem parecer seu contrário, a ironia se torna a sensação perpétua de que as coisas poderiam ser um tanto diferentes, ainda que nunca fundamental ou radicalmente diferentes”. Cf. FERGUSON, Harvie. Glamour and the and of irony. The Hedgehog Review, p. 10-16, outono 1999. 335 Por honestidade intelectual, faz-se necessário expor que este pesquisador tem simpatia pelas posições que afirmam o descentramento das identidades modernas, processo que se caracteriza pelo deslocamento e fragmentação. Tal explicitação se justifica pelo fato de que, na construção das palavras, as crenças acabam por emergir. 336 Fragmentos que não poderão ser colados novamente, como expressam Deleuze e Guattari (1977, p. 42): “não acreditamos mais no mito da existência de fragmentos que, como peças de uma antiga estátua, estão meramente esperando que apareça o último caco para que todas possam ser coladas novamente para criar uma unidade que é precisamente a mesma que a unidade original. Não mais acreditamos numa totalidade primordial que existiu uma vez nem numa totalidade final que espera por nós numa data futura”. 337 Max Weber definiu a modernidade como o “desencantamento” do mundo. Nietzsche, Heidegger, Adorno & Horkheimer, Foucault e atuais estudiosos da pós-modernidade tratam, sob ângulos diversos, do “desencantamento” da modernidade (GOERGEN, 2001). Na Dialética do esclarecimento, um dos mais destacados marcos da crítica ao programa da modernidade e seu ulterior desenvolvimento, Adorno e Horkheimer (1985, p. 19) afirmam: “no sentido mais amplo do pensamento, o esclarecimento tem perseguido sempre o

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iniciais deste capítulo da presente pesquisa, Hall (2002, p. 10) acrescenta uma nova dimensão:

“a afirmação de que naquilo que é descrito, algumas vezes, como nosso mundo pós-moderno,

nós somos também ‘pós’ relativamente a qualquer concepção essencialista ou fixa de

identidade”. Identidade essa que, desde o Iluminismo, define o núcleo ou a essência do ser das

pessoas e fundamenta sua existência como sujeitos humanos. Pelo exposto, percebem-se em

jogo concepções diferentes de identidade. Faz-se necessário um breve olhar sobre elas no

sentido de se observar se realmente estão sendo processadas passagens de uma a outra e em

que momento isso estaria acontecendo. Estarão sendo focados adiante, com suas respectivas

características identitárias, o sujeito do Iluminismo, o sujeito sociológico e o sujeito pós-

moderno.

O sujeito do Iluminismo ancorava-se numa concepção bastante clara da pessoa

humana: um indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de

consciência e de ação. Seu núcleo interior, que emergia ao nascer, mesmo se desenvolvendo,

permanecia essencialmente o mesmo ao longo da existência do indivíduo, de forma contínua

ou idêntica a ele. Como “o centro essencial do eu era a identidade de uma pessoa” (HALL,

2002, p. 11), e como esse centro permanecia, entende-se a menção à identidade fixa.

Essa concepção foi possibilitada pelo nascimento do “indivíduo soberano”,338 uma

ruptura importante com o passado, entre o Humanismo Renascentista do século XVI e o

Iluminismo do século XVIII. Anteriormente, nos tempos pré-modernos, a individualidade era

objetivo de livrar os homens do medo e de investi-los na posição de senhores. Mas a terra totalmente esclarecida resplandece sob o signo de uma calamidade triunfal”. É necessário esclarecer que essa posição dos autores, embora assuma por vezes traços de uma crítica radical à racionalidade, pretende, na verdade, salvar a razão das armadilhas de sua instrumentação e de seu uso contra o próprio ser humano. Segundo Bauman (2001, p. 37-38), duas são as características que fazem da situação do mundo atual diferente daquela da modernidade: a) o colapso gradual da moderna e ilusória “crença de que há um fim do caminho em que andamos, um telos alcançável da mudança histórica, um Estado de perfeição a ser atingido amanhã, no próximo ano ou no próximo milênio, algum tipo de sociedade boa, de sociedade justa e sem conflitos em todos ou alguns de seus aspectos postulados [...]”; b) “a desregulamentação e a privatização das tarefas e deveres modernizantes”; o que antes era considerada tarefa para a razão humana, para a espécie humana, foi fragmentado e deixado à administração dos indivíduos e seus recursos. 338 Não poucas reflexões caminham no sentido de se argumentar ser esse o motor que colocou todo o sistema social da modernidade em funcionamento.

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“vivida” e “conceptualizada” de forma diferente, apoiada com estabilidade em tradições e

estruturas, acreditava-se, divinamente estabelecidas, não sujeitas a mudanças fundamentais.339

O sujeito individual moderno se distingue, por um lado, por ser indivisível – unificado

no seu próprio interior – e, por outro, por ser singular, distintivo e único (WILLIAMS, 1976).

Alguns fatores foram decisivos para a emergência dessa nova concepção: a) a Reforma e o

protestantismo;340 b) o Humanismo Renascentista;341 c) as revoluções científicas;342 d) o

Iluminismo.343

Na filosofia, foi Descartes (1596-1650) 344 quem formulou primariamente essa

concepção, num contexto de profunda dúvida, gerada pelo deslocamento de Deus do centro

do universo. O dualismo entre “mente” e “matéria”, que tanto tem mobilizado a filosofia

desde então, foi refocalizado por esse filósofo a partir da postulação de duas substâncias

distintas: a substância espacial (matéria) e a substância pensante (mente). As coisas, para

serem explicadas, devem ter seus elementos essenciais reduzidos à quantidade mínima,

praticamente àqueles que são irredutíveis. Isso se consegue no centro da “mente”, onde está o

sujeito individual que se caracteriza pela capacidade de raciocinar e pensar. É o

posteriormente denominado “sujeito cartesiano”, racional, pensante e consciente, simbolizado

pela palavra de ordem de Descartes: Cogito, ergo sum (penso, logo existo).

339 Lyotard (1998) vê um marco divisório entre as sociedades pré-modernas e as modernas: a forma de legitimação de ambas (por meio de narrações míticas ou religiosas, nas primeiras, e do discurso de racionalidade, nas sociedades modernas). A pós-modernidade surge como ruptura com essa forma de pensar, com a idéia de um sistema fechado que pretendia a articulação do sentido do todo. 340 Deslocando a consciência individual das instituições religiosas da igreja diretamente aos olhos de Deus. 341 Colocando o Homem no centro do universo. 342 Conferindo ao Homem a faculdade e as capacidades para inquirir, investigar e decifrar os mistérios da Natureza. 343 Percebendo o Homem racional, científico, libertado do dogma e da intolerância, que tem à sua frente a totalidade da história humana para ser compreendida e dominada. 344 O filósofo francês René Descartes (1596-1650), denominado, por vezes, “o pai da Filosofia Moderna”, foi matemático e cientista, fundador da geometria analítica e da ótica, influenciado profundamente pela “nova ciência” do século XVII.

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John Locke (1632-1704) 345 também contribuiu para a definição da identidade

moderna.346 Suas reflexões 347 abordavam o indivíduo em termos de “mesmidade (sameness)

de um ser racional”, cuja identidade permanecia a mesma e era contínua com seu sujeito. A

extensão da identidade da pessoa está diretamente relacionada à possibilidade de sua

consciência em ir para trás, para qualquer ação ou pensamento passado (LOCKE, 1967). Esse

“indivíduo soberano”, dispositivo conceitual inscrito em cada um dos processos e práticas

centrais que fizeram o mundo moderno, pode ser chamado o “sujeito” da modernidade em

dois sentidos: como a origem ou “sujeito” da razão, do conhecimento e da prática e como

aquele que sofria as conseqüências dessas práticas, estando “sujeitado” a elas (FOUCAULT,

1986).

Esse processo de identificação moderno é exposto com clareza na reflexão de

Williams (1976, p. 135-136):

A emergência de noções de individualidade, no sentido moderno, pode ser relacionada ao colapso da ordem social, econômica e religiosa medieval. No movimento geral contra o feudalismo houve uma nova ênfase na existência pessoal do homem, acima e além de seu lugar e sua função numa rígida sociedade hierárquica. Houve uma ênfase similar, no Protestantismo, na relação direta e individual do homem com Deus, em oposição a esta relação mediada pela Igreja. Mas foi só ao final do século XVII e no século XVIII que um novo modo de análise, na Lógica e na Matemática, postulou o indivíduo como a entidade maior (cf. as “mônadas” de Leibniz), a partir da qual outras categorias (especialmente categorias coletivas) eram derivadas. O pensamento político do Iluminismo seguiu principalmente este modelo. O argumento começava com os indivíduos, que tinham uma existência primária e inicial. As leis e as formas de sociedade eram deles derivadas: por submissão, como em Hobbes; por contrato ou consentimento, ou pela nova versão da lei natural, no pensamento liberal. Na economia clássica, o comércio era descrito através de um modelo que supunha indivíduos separados que [possuíam propriedade e] decidiam, em algum ponto de partida, entrar em relações econômicas ou comerciais. Na ética utilitária,

345 John Locke nasceu em Wrington, proximidades de Bristol, na Inglaterra. É com ele que o empirismo consegue sua primeira formulação paradigmática, metodológica e criticamente consciente. Sua obra-prima, gestada ao longo de vinte anos, publicada em 1690, é constituída pelo imponente Ensaio sobre o intelecto humano. 346 Segundo Mardones (1992, p. 21-39), o pensamento pós-modeno se constitui como a “revolta contra os pais do pensamento moderno”, Descartes, Locke, Kant e, inclusive, Marx. 347 Principalmente em “Ensaio sobre a compreensão humana”.

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indivíduos separados calculavam as conseqüências desta ou daquela ação que eles poderiam empreender.

O sujeito sociológico está relacionado à crescente complexidade do mundo moderno.

Seu núcleo interior, diferentemente do sujeito do Iluminismo, não era autônomo e auto-

suficiente, mas formado na relação com outras pessoas importantes para ele. Pessoas que

mediavam para ele os valores, sentidos e símbolos de seu mundo. Denomina-se “interativa”

348 essa concepção da identidade e do sujeito. Permanece o núcleo interior (o “eu real”), mas

ele é formado e modificado – diferentemente do sujeito do Iluminismo, que permanecia

essencialmente o mesmo ao longo da existência do indivíduo – num diálogo contínuo com os

mundos culturais “exteriores” e suas respectivas identidades.

Nessa nova identidade,349 ocorre o preenchimento do espaço entre o “interior” e o

“exterior”, entre o mundo pessoal e o mundo público, numa costura do sujeito à estrutura. De

que forma isso se dá? As pessoas projetam a “si mesmas” nas identidades culturais, isso

concomitantemente à internalização dos significados e valores dessas identidades culturais

por essas mesmas pessoas, num processo de alinhavação dos sentimentos subjetivos aos

lugares objetivos ocupados no mundo social e cultural (HALL, 2002). A conseqüência é uma

dupla estabilização: dos sujeitos e dos mundos culturais que eles habitam. Ambos se tornam

mais unificados e predizíveis.350

348 Figuras importantes no desenvolvimento dessa concepção sociológica clássica foram G. H. Mead, C. H. Cooley e os interacionistas simbólicos. 349 Segundo Bauman (1998, p. 30-31), “o projeto moderno prometia libertar o indivíduo da identidade herdada. Não tomou, porém, uma firme posição contra a identidade como tal, contra se ter uma identidade, mesmo uma sólida, exuberante e imutável identidade. Só transformou a identidade, que era questão de atribuição, em realização – fazendo dela, assim, uma tarefa individual e da responsabilidade do indivíduo. [...] a identidade do indivíduo foi lançada como um projeto, o projeto de vida [...]. A identidade devia ser erigida sistematicamente, de degrau em degrau e de tijolo em tijolo, seguindo um esquema concluído antes de iniciado o trabalho. A construção requeria uma clara percepção da forma final, o cálculo cuidadoso dos passos que levariam a ela, o planejamento a longo prazo e a visão através das conseqüências de cada movimento. Havia, assim, um vínculo firme e irrevogável entre a ordem social [a ordem que protege o dique do caos] como projeto e a vida individual como projeto, sendo a última impensável sem a primeira”. 350 Berger (1973), com palavras um pouco diferentes, chega às mesmas conclusões, ao explicar a “estrutura de plausibilidade”.

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O pano de fundo sobre o qual foi redefinida a identidade do sujeito moderno foram as

mudanças percebidas pelas sociedades modernas que, ao se tornarem mais complexas,

adquiriam uma forma mais coletiva e social. As teorias clássicas liberais de governo, que se

baseavam em direitos e consentimentos individuais, viram-se frente às estruturas do estado-

nação e às grandes massas da democracia moderna. As leis clássicas da economia política, da

propriedade, do contrato e da troca se defrontaram, após a industrialização, com as grandes

formações de classe do capitalismo moderno. O empreendedor individual deu lugar aos

conglomerados empresariais, e o cidadão individual viu-se enredado nas maquinarias

burocráticas e administrativas do estado moderno.

Se a evolução das estruturas econômicas da modernidade sustentou a passagem para

uma concepção mais social de seu sujeito, o que dizer dos fundamentos propriamente

conceptuais? Eles se articularam a partir de dois importantes eventos: a biologia darwiniana (o

sujeito humano foi “biologizado” 351) e o surgimento das novas ciências sociais.

O segundo evento, o surgimento das novas ciências sociais, que, a partir das

redefinições acontecidas na primeira metade do século XX, faz por assumir sua forma

disciplinar atual, tem grande importância para a formação desse modelo sociológico

interativo, com reciprocidade estável entre “interior” e “exterior”. As transformações que esse

evento pôs em marcha foram, no entanto, desiguais, no que se refere à questão do sujeito

(Hall, 2002). Por um lado:

a) Permanece o “indivíduo soberano” (com vontades, necessidades, desejos e interesses)

como a figura central dos discursos da economia moderna e da lei moderna.

b) A divisão das ciências sociais entre a psicologia (estudando o indivíduo e seus processos

mentais) e as demais disciplinas institucionalizou o dualismo típico do pensamento cartesiano.

Por outro lado, entretanto, a sociologia:

351 Na explicação de Hall (2002, p. 30), “a razão tinha uma base na Natureza e a mente um ‘fundamento’ no desenvolvimento físico do cérebro humano”.

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a) forneceu as bases para uma crítica do “individualismo racional”, próprio do sujeito

cartesiano;

b) localizou o indivíduo nos processos de grupo e nas normas coletivas. Essas, pelas suas

definições, prevaleciam sobre quaisquer contratos individuais;

c) explicou como os indivíduos são subjetivamente formados pela sua participação nas

relações sociais mais amplas (internalização);

d) explicou como os processos e as estruturas são sustentados pelos papéis que os indivíduos

neles desempenham (externalização);

e) fundamentou a teoria da socialização pela qual se descreve o sujeito moderno numa

interação352 com o mundo social através dos processos de internalização e externalização.353

As mudanças, porém, não pararam por aí! Aproximadamente nesse mesmo período de

redefinições e recomposições nas ciências sociais, com conseqüências para o sujeito moderno

e sua identidade, na primeira metade do século XX, “um quadro mais perturbado e

perturbador do sujeito e da identidade estava começando a emergir” 354 a partir de

movimentos estéticos e intelectuais associados aos inícios do modernismo355 e “pós-

modernismo”.356

O novo sujeito, pós-moderno, ancorado nessas mudanças, porém engendrado ao

longo da segunda metade do século XX, e somente ao final desse, caracterizado como tal, é

352 Como já mencionado, foram G. H. Mead, C. H. Cooley e os interacionistas simbólicos que adotaram uma visão radicalmente interativa desse processo. 353 Uma das críticas a esse processo de transformação na sociologia foi que se manteve, de certa forma, o dualismo cartesiano, principalmente ao se relacionar duas entidades, conectadas, porém separadas, neste caso, o “indivíduo” e a “sociedade”. 354 Esse quadro vai se delinear melhor na “modernidade tardia”, expressão utilizada por Hall (2002) para se referir aos acontecimentos da segunda metade do século XX, principalmente década de 60, que consolidaram o questionamento dos fundamentos da Modernidade. 355 “O movimento intelectual alimentado pelo nojo e impaciência para com o preguiçoso e indolente passo da mudança que a modernidade ensinou as pessoas a esperar e prometeu cumprir. O modernismo foi um protesto contra promessas descumpridas e esperanças frustradas, mas também um testemunho da seriedade com que as promessas e as esperanças foram tratadas”. (BAUMAN, 1998, p. 122) 356 Cf. o primeiro item dessa parte da presente pesquisa (“A origem do pós-modernismo”), onde se detalharam o surgimento e desenvolvimento do termo e suas respectivas molas propulsoras.

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percebido como “a figura de um indivíduo isolado,357 exilado ou alienado, colocado contra o

pano de fundo da multidão ou da metrópole anônima e impessoal” (HALL, 2002, p. 32).358

Esse sujeito pós-moderno já não tem uma identidade fixa,359 essencial ou permanente, mas

uma identidade que se mostra como uma “celebração móvel”360 (HALL, 1987), formada e

transformada continuamente, definida historicamente e não mais biologicamente. As

identificações desse sujeito361 se deslocam continuamente, conseqüência da presença, nele, de

identidades contraditórias, diferentes em diferentes momentos, que o empurram em diferentes

direções. 362 Essas identidades não são mais unificadas ao redor de um “eu” coerente, e se

ainda é perceptível uma sensação identitária que parece unificar a pessoa do nascimento à 357 Bauman (2001, p. 43) afirma que ninguém deve se enganar: “agora, como antes – tanto no estágio leve e fluido da modernidade quanto no sólido e pesado –, a individualização é uma fatalidade, não uma escolha. Na terra da liberdade individual de escolher, a opção de escapar à individualização e de se recusar a participar do jogo da individualização está decididamente fora da jogada”. 358 Alguns exemplos dessa situação foram retratados (Hall, 2002): O “Pintor da vida moderna” (de Baudelaire), que ergue sua casa “no coração único da multidão, em meio ao ir e vir dos movimentos, em meio ao fugidio e ao infinito” e que “se torna um único corpo com a multidão”, entra na multidão “como se fosse um imenso reservatório de energia elétrica”; o flaneur (vagabundo) (celebrado por Walter Benjamin no seu ensaio sobre a Paris de Baudelaire), que vagueia entre as novas arcadas das lojas observando o passageiro espetáculo da metrópole, provavelmente simbolizado, nesse período de mudanças, pelo “turista” (URRY, 1990); “K” (personagem de “O processo” de Kafka), a vítima anônima, confrontado por uma burocracia sem rosto; além de uma legião de figuras alienadas, “instâncias exemplares da modernidade” (FRISBY, 1985), retratadas pelos principais teóricos sociais da virada do século XIX para o XX, tais como George Simmel, Alfred Schutz e Siegfried Kracauer. Segundo Hall (2002, p. 33), “estas imagens mostraram-se proféticas do que iria acontecer ao sujeito cartesiano e ao sujeito sociológico na modernidade tardia”. Marc Augé (2003, p. 36-38), que menciona a possibilidade de uma “antropologia pós-moderna”, que se originaria da “análise da supermodernidade”, denomina tais situações de “não-lugares”, em “oposição à noção sociológica de lugar”. Em sua expressão (2003, p. 73), “se um lugar pode se definir como identitário, relacional e histórico, um espaço que não pode se definir nem como identitário, nem como relacional, nem como histórico definirá um não-lugar”. 359 “O eixo da estratégia de vida pós-moderna não é fazer a identidade deter-se – mas evitar que se fixe”. A “adequação” (“a capacidade de se mover rapidamente onde a ação se acha e estar pronto a assimilar experiências quando elas chegam”) do indivíduo pós-moderno passa por uma nova “estratégia de vida racional”, qual seja, “a determinação de viver um dia de cada vez”, o que significa “cortar o presente nas duas extremidades, separar o presente da história”, num “presente contínuo”. Isso porque “o mundo construído de objetos duráveis foi substituído pelo de produtos disponíveis projetados para imediata obsolescência” (BAUMAN, 1998, p. 112-113, ênfase do autor). 360 Bauman (2001) simboliza a modernidade e pós-modernidade com as imagens do hardware (modernidade pesada) e software (modernidade leve ou pós-modernidade), respectivamente. 361 No parecer de Bauman (1998, p. 32), “a imagem do mundo diariamente gerada pelas preocupações da vida atual é destituída da genuína ou suposta solidez e continuidade que costumavam ser a marca registrada das ‘estruturas’ modernas”. 362 Bauman (1998, p. 32) descreve com clareza tal situação: “Os projetos de vida individuais não encontram nenhum terreno estável em que acomodem uma âncora, e os esforços de constituição da identidade individual não podem retificar as conseqüências do ‘desencaixe’, deter o eu flutuante e à deriva”. Bauman usa a expressão “desencaixe”, afirmando a impossibilidade da tentativa, principalmente de Giddens (2002), de um possível “reencaixe” dos “eus desencaixados”.

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morte, deve-se à necessidade humana de construção de uma cômoda estória sobre ela

mesma363 ou uma confortadora “narrativa do eu” (HALL, 1990). No lugar de uma identidade

unificada, completa, segura e coerente, uma fantasia nos novos tempos, as pessoas são

confrontadas por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis,364

posto que os sistemas de significação e representação também se multiplicam,365 podendo

identificar-se com cada uma delas, ao menos temporariamente.366

Bauman (1998, p. 32) explicita com clareza o sentimento que agora perpassa esse

indivíduo:

O sentimento dominante, agora, é a sensação de um novo tipo de incerteza, não limitada à própria sorte e aos dons de uma pessoa, mas igualmente a respeito da futura configuração do mundo, a maneira correta de viver nele e os critérios pelos quais julgar os acertos e os erros da maneira de viver. O que também é novo em torno da interpretação pós-moderna da incerteza (em si mesma, não exatamente uma recém-chegada num mundo do passado moderno) é que ela já não é vista como um mero inconveniente temporário, que com o esforço devido possa ser abrandado ou inteiramente transposto. O mundo pós-moderno está se preparando para a vida sob uma condição de incerteza que é permanente e irredutível.

363 Tomada de empréstimo a Marcus Doel e David Clarke, uma expressão, usada por eles em outro contexto, poderia identificar essa nova situação de vida do novo indivíduo: atmosfera do “medo ambiente”. Cf. em CRYSLER, G.; HAMILTON, C. Street wars: space, politics and the city. Manchester: University Press, 1955. 364 Segundo Bauman (1998, p. 23), “no mundo pós-moderno de estilos e padrões de vida livremente concorrentes, há ainda um severo teste de pureza que se requer seja transposto por todo aquele que solicite ser ali admitido: tem de mostrar-se capaz de ser seduzido pela infinita possibilidade e constante renovação promovida pelo mercado consumidor, de se regozijar com a sorte de vestir e despir identidades, de passar a vida na caça interminável de cada vez mais intensas sensações e cada vez mais inebriante experiência”. 365 Bauman (1998, p. 36) fala que “a imagem de si mesmo se parte numa coleção de instantâneos, e cada pessoa deve evocar, transportar e exprimir seu próprio significado, mais freqüentemente do que abstrair os instantâneos do outro”. Uma identidade sob essas condições, Bauman a denomina “identidade de palimpsesto [...], uma série de ‘novos começos’, que se experimentam com formas instantaneamente agrupadas mas facilmente demolidas, pintadas umas sobre as outras”. Isso – “viver sob condições de esmagadora e auto-eternizante incerteza” – se distingue, e muito, da moderna idéia de “construção da identidade, gradual e pacientemente, como se constrói uma casa – mediante a adição de tetos, soalhos, aposentos, ou de corredores”, identidade essa “vivida num mundo voltado para a constituição da ordem”. 366 Temporariamente como numa “fita de vídeo, sempre pronta a ser apagada a fim de receber novas imagens” (BAUMAN, 1998, p. 37).

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A partir dessas identidades fragmentadas, o sujeito, na modernidade tardia, 367 conhece

não simplesmente uma desagregação mas um deslocamento, oriundo de uma série de rupturas

nos discursos do conhecimento moderno. Hall (2002) esboça cinco grandes avanços na teoria

social e nas ciências humanas no Ocidente que teriam possibilitado o descentramento final do

sujeito cartesiano.

a) O primeiro refere-se às tradições do pensamento marxista que, apesar de estar situada no

século XIX, foi redescoberta na última década de sessenta a partir da afirmação de Marx de

que “os homens fazem a história, mas apenas sob as condições que lhe são dadas”. A releitura

dessa afirmação mostrava que os indivíduos não poderiam ser os autores ou os agentes da

história, pois sua ação se dava com base e sob condições históricas criadas por outros,

partindo de recursos materiais e de cultura que lhes foram fornecidos por gerações

anteriores.368

b) O segundo avanço rumo ao descentramento do sujeito moderno vem da descoberta do

inconsciente por Freud. A afirmação de que nossas identidades, nossa sexualidade e a

estrutura de nossos desejos estão fundamentadas em processos psíquicos e simbólicos do

inconsciente, com outra lógica que não a da Razão, arrasa o “penso, logo existo” cartesiano

367 Expressão utilizada por Hall (2002) e outros autores para se referir aos acontecimentos da segunda metade do século XX que consolidaram o questionamento dos fundamentos da Modernidade. Em alguns autores, o termo é tomado em substituição a pós-modernidade, no sentido de que o que hoje se verifica não é um novo paradigma, pós-moderno, mas um repensar das coordenadas da modernidade. Não é o caso de Hall (2002), confesso simpatizante da existência de uma cultura pós-moderna, sendo modernidade tardia apenas um momento de passagem para uma realidade outra. 368 Foi Louis Althusser (1918-1989), estruturalista marxista, quem melhor simbolizou essa reinterpretação marxista. No seu modo de ver, quando Marx coloca no centro de seu sistema teórico as relações sociais e não uma noção abstrata de homem, desloca duas proposições-chave da filosofia moderna: a) que há uma essência universal de homem e b) que essa essência é o atributo de “cada indivíduo singular”, o qual é seu sujeito real. “Esses dois postulados são complementares e indissolúveis. Mas sua existência e sua unidade pressupõem toda uma perspectiva de mundo empirista-idealista. Ao rejeitar a essência do homem como sua base teórica, Marx rejeitou todo esse sistema orgânico de postulados. Ele expulsou as categorias filosóficas do sujeito do empirismo, da essência ideal, de todos os domínios em que elas tinham reinado de forma suprema. Não apenas da economia política (rejeição do mito do homo economicus, isto é, do indivíduo, com faculdades e necessidades definidas, como sendo o sujeito da economia clássica); não apenas da história; ... não apenas da ética (rejeição da idéia kantiana); mas também da própria filosofia” (ALTHUSSER, 1966, p. 228). O importante, aqui, não é discutir o quão certo ou errado estava Althusser, ele foi fortemente contestado por teóricos humanistas, mas, sim, apontar o impacto considerável que esse seu anti-humanismo teórico exerceu sobre muitos ramos do pensamento moderno.

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que preconizava um sujeito cognoscente e racional provido de uma identidade fixa e

unificada.369

c) O terceiro avanço rumo ao descentramento do sujeito moderno está associado ao trabalho

de Ferdinand de Saussure (1857-1913).370 Em sua lingüística, argumentava que nós não

somos, em nenhum sentido, os “autores” das afirmações que fazemos ou dos significados que

expressamos na língua. Não é suficiente se posicionar no interior das regras da língua e dos

sistemas de significado de nossa cultura para, com a utilização da língua, produzir

significados. Isso porque ela é um sistema social, preexistente a nós, e não um sistema

individual. Falar não significa apenas a expressão de pensamentos mais interiores e originais,

mas a ativação de uma imensa gama de significados que já estão embutidos em nossa língua e

em nossos sistemas culturais. O significado das palavras não é fixo, equivalendo cada palavra

a um objeto ou evento específico do mundo, mas surge nas relações de similaridade e

diferença que as palavras têm com outras palavras no interior do código da língua.371

369 Jacques Lacan (1901-1981), numa tentativa de praticar a via do “retorno a Freud”, levantou-se contra a tendência que a psicanálise, especialmente a norte-americana, passou a manifestar depois de Freud, isto é, tendência a readaptar os indivíduos à ordem existente (REALE; ANTISERI, 1991). Pensadores psicanalíticos, Lacan entre eles, fazem uma leitura de Freud, concluindo que a imagem do eu como inteiro e unificado é algo que a criança aprende apenas gradualmente, parcialmente, e com grande dificuldade. Sua imagem é formada em relação com os outros, não a partir do interior do núcleo do ser da criança. Isso acontece principalmente em sua primeira infância (“fase do espelho”), através de complexas negociações psíquicas e inconscientes entre a criança e as poderosas fantasias que ela tem de suas figuras paternas e maternas. É a formação do eu no “olhar” do outro. Daí, as principais conseqüências para a visão moderna: a identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo, através de processos inconscientes, e não algo inato, existente na consciência no momento do nascimento. Por ser um processo em andamento, deve-se falar de identificação e não de identidade como uma coisa acabada. 370 Lingüista estrutural, nascido em Genebra, influenciou o pensamento de estudiosos como Merleau-Ponty, Lévi-Strauss, Roland Barthes, Jacques Lacan, Michel Foucault e, através deles, as “ciências humanas” e a filosofia. Sua grande obra, Curso de lingüística geral, foi publicada postumamente, em 1916. 371 Observe-se a relação “noite” e “dia”, por exemplo. Sabe-se o que é a “noite” porque ela não é o “dia”. Pode-se subtrair daí a analogia existente entre língua e identidade: eu sei quem “eu” sou em relação com “o outro” (por exemplo, minha mãe) que eu não posso ser. Bebendo nessa “virada lingüística”, modernos filósofos da linguagem, entre eles Jacques Derrida, argumentam que , apesar de seus melhores esforços, o/a falante individual não pode, nunca, fixar o significado de uma forma final, inclusive o significado de sua identidade. Segundo Derrida (1981), as palavras são “multimoduladas”, ou seja, mesmo com os esforços por cerrar seu significado, elas sempre carregam ecos de outros significados. O significado é inerentemente instável: procura o fechamento (identidade), mas é constantemente perturbado (pela diferença).

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d) O quarto avanço rumo ao descentramento do sujeito moderno ocorre no trabalho de Michel

Foucault.372 Em suas reflexões e estudos acabou por produzir uma espécie de “‘genealogia do

sujeito moderno’” (HALL, 2002, p. 42). Nela, destaca-se o “poder disciplinar”, que se produz

ao longo do século XIX e atinge seu ápice no início do XX. A preocupação primeira de tal

poder seriam a regulação, a vigilância e o governo da espécie humana ou de populações

inteiras e, em segundo plano, do próprio indivíduo e de seu corpo. Ele estaria sediado

naquelas instituições, filhas do século XIX, sob as quais estaria a responsabilidade pelo

policiamento e pela disciplina: oficinas, quartéis, escolas, prisões, hospitais, clínicas etc.373 O

objetivo básico desse poder seria produzir “um ser humano que possa ser tratado como um

corpo dócil” (DREYFUSS; RABINOW, 1982, p. 135). Isso se conseguiria pelo estrito

controle e disciplina da vida, das atividades, do trabalho, das infelicidades, dos prazeres, da

saúde física e moral, das práticas sexuais e da vida familiar do indivíduo. Na base dessa

possibilidade disciplinar, estariam o poder dos regimes administrativos, o conhecimento

especializado dos profissionais e o conhecimento fornecido pelas “disciplinas” das Ciências

Sociais.374

e) O quinto avanço rumo ao descentramento do sujeito moderno refere-se ao impacto do

feminismo, como movimento social e como crítica teórica. Compõe, junto com outros, os

372 Filósofo e historiador nascido na França, em 1926, tornou-se um dos mais significativos estruturalistas contemporâneos. Levou o estruturalismo para o campo tradicional reservado à cultura humanista e por ela zelosamente guardado: a história, particularmente a história da cultura e das idéias (REALE; ANTISERI, 1991). 373 Cf. História da loucura na época clássica (1961), saudada pelo estruturalista Roland Barthes como a primeira aplicação do estruturalismo à ciência histórica, Nascimento da clínica (1963) e Vigiar e punir (1975). 374 O interessante a notar é que as técnicas do “poder disciplinar”, mesmo estando esse ancorado em instituições coletivas, acabam por individualizar ainda mais o sujeito e envolver mais intensamente seu corpo. “Num regime disciplinar, a individualização é descendente. Através da vigilância, da observação constante, todas aquelas pessoas sujeitas ao controle são individualizadas [...]” (FOUCAULT, 1975, p. 159). Independentemente de se aceitar ou não todos os detalhes esboçados por Foucault acerca dos “regimes disciplinares” do moderno poder administrativo, seu grande mérito foi mostrar “o paradoxo de que, quanto mais coletiva e organizada a natureza das instituições da modernidade tardia, mais o isolamento, a vigilância e a individualização do sujeito individual” (Hall, 2002, p. 43).

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denominados “novos movimentos sociais” da década de 1960.375 O feminismo, no entanto,

teve uma relação mais direta com o descentramento conceitual do sujeito cartesiano e

sociológico. Basicamente, porque: 1) com o slogan “o pessoal é político”, questionou a

clássica distinção entre o “dentro” e o “fora”, o “privado” e o “público”; 2) abriu a arena da

contestação política a novos grupos e bandeiras sociais (família, sexualidade, trabalho

doméstico, divisão doméstica do trabalho, cuidado com as crianças etc.); 3) enfatizou e

politizou a subjetividade, a identidade e o processo de identificação (homens/mulheres,

mães/pais, filhos/filhas etc.); 4) a partir da contestação da posição social das mulheres,

expandiu-se para incluir a formação das identidades sexuais e de gênero; 5) questionou a

noção de que homens e mulheres eram partes integrantes de uma mesma identidade, a

“Humanidade”,376 trazendo para o seu lugar a questão da diferença sexual.377

A expressão de Bauman (1998, p. 155, ênfase do autor) clareia as características que

permeiam a identidade pós-moderna, fruto, em grande parte, dos descentramentos paulatinos

do sujeito moderno descritos acima.

O aspecto novo, caracteristicamente pós-moderno e possivelmente inaudito, da diversidade dos nossos dias é a fraca, lenta e ineficiente institucionalização das diferenças e sua resultante intangibilidade,

375 Entre eles, as revoltas estudantis, os movimentos juvenis contraculturais e antibelicistas, as lutas pelos direitos civis, os movimentos revolucionários do Terceiro Mundo, os movimentos pela paz e tudo o que está associado com o simbólico “1968”. Esses movimentos: a) opunham-se tanto ao liberalismo quanto ao stalinismo; b) afirmavam tanto as dimensões subjetivas quanto as dimensões objetivas da política; c) suspeitavam de todas as formas burocráticas de organização, em favor da espontaneidade e da vontade política; d) tinham uma ênfase e uma forma cultural fortes (abraçaram o “teatro” da revolução); e) representavam a fragmentação em vários e separados movimentos sociais das outrora fortes classes e organizações políticas; f) apelavam, cada um particularmente, para a identidade social de seus sustentadores (mulheres, gays e lésbicas, negros, pacifistas etc.). 376 Vattimo fala de um processo de “emancipação da diferença” que, negando a idéia de uma racionalidade central da história, permite a emergência de uma multiplicidade de racionalidades “locais” de minorias étnicas, sexuais, religiosas, culturais ou estéticas, que agora tomam a palavra. Cf. VATTIMO, G. Die transparente Gesellschaft. Wien: Passagen Verlag, 1992. p. 21. 377 Segundo Henry Giroux (1993, p. 42), “a crítica pós-moderna é importante [...] porque promete desterritorializar e desenhar as fronteiras políticas, sociais e culturais do modernismo, insistindo ao mesmo tempo numa política de diferença racial, étnica e de gênero. [...]. Com efeito, a crítica pós-moderna chama a atenção para as profundas mudanças de fronteiras (relacionadas com a crescente influência dos meios eletrônicos de massa e da tecnologia de informação), para a cambiante natureza das formações sociais e de classe nas sociedades capitalistas pós-industriais e para a crescente transgressão das fronteiras entre a vida e a arte, alta cultura e cultura popular, imagem e realidade”.

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maleabilidade e curto período de vida. Se desde a época do ‘desencaixe’ e ao longo da era moderna, dos ‘projetos de vida’, o ‘problema da identidade’ era a questão de como construir a própria identidade, como construí-la coerentemente e como dotá-la de uma forma universalmente reconhecível – atualmente, o problema da identidade resulta principalmente da dificuldade de se manter fiel a qualquer identidade por muito tempo, da virtual impossibilidade de achar uma forma de expressão da identidade que tenha boa proba-bilidade de reconhecimento vitalício, e a resultante necessidade de não adotar nenhuma identidade com excessiva firmeza, a fim de poder abandoná-la de uma hora por outra, se for preciso.

O que se privilegiou na elaboração deste item do presente estudo foram as situações,

as possibilidades, as reflexões daqueles que estão ousando, não importa a partir de que

posição, lançar um olhar para esta nova realidade que se está apresentando ao mundo

contemporâneo. Quando se reflete acerca de identidade (s), contextualizada (s) neste

denominado mundo pós-moderno, não cabem definições, pois, entre outros motivos,

“definições são inatas; identidades são constituídas. As definições informam a uma pessoa o

que ela é, as identidades atraem-na pelo que ela ainda não é, mas ainda pode tornar-se”

(BAUMAN, 1998, p. 94, ênfase do autor).

Esta pesquisa pretende, no que segue, perceber de que maneira a teologia começa a

ensaiar alguns passos no sentido de dar respostas adequadas à essa nova situação pós-moderna

descrita acima. Para isso, delimitou obras específicas de três autores, Hans Küng, Andrés

Torres Queiruga e John Hick, a partir das quais serão percebidas aproximações à pós-

modernidade.

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2 PROXIMIDADES TEOLÓGICAS À PÓS-MODERNIDADE

Nesta parte da presente pesquisa pretende-se olhar as reflexões de três autores

especificamente: Hans Küng,378 Andrés Torres Queiruga379 e John Hick. 380 Devido às

limitações deste espaço, o que se encontrará, a seguir, destes autores são algumas pontuações

de seus mencionados textos,381 a partir das quais este pesquisador percebe com clareza (casos

de Küng e Torres Queiruga),382 ou ousa fazer (no caso de Hick), 383 um paralelo aproximativo

com a pós-modernidade.

378 Teólogo ecumênico suíço. Nasceu em 19 de março de 1928, em Surcee (proximidades de Lucerna). A retirada da "missio canonica" (perda da licença para ensinar como teólogo católico, ou seja, a perda da autorização eclesiástica de ensino) de Hans Küng ocorreu em dezembro de 1979, o que o impediu de lecionar em faculdades católicas. Com isso, ele foi obrigado a retirar-se do ensino na faculdade teológica católica de Tubingen em 1980. 379 Doutor em Filosofia e Teologia, atualmente ensina Filosofia da Religião na Universidade de Santiago de Compostela. 380 Teólogo e filósofo da religião nascido na Inglaterra. Atualmente, o professor Hick é felow do Instituto de Pesquisa Avançada em Artes e Ciências Sociais na Universidade de Birmingham, Reino Unido. 381 KÜNG, Hans. Projeto de ética mundial: uma moral ecumênica em vista da sobrevivência humana. 3. ed. São Paulo: Paulinas, 2001 (original alemão de 1990). / TORRES QUEIRUGA, Andrés. Fim do cristianismo pré-moderno: desafios para um novo horizonte. São Paulo: Paulus, 2003 (original espanhol de 2000). / HICK, John. A metáfora do Deus encarnado. Petrópolis: Vozes, 2000 (original inglês de 1993). Em notas de rodapé, outras obras desses autores serão aqui referenciadas e/ou suas reflexões citadas no sentido de se tornarem mais claras suas proposições. 382 Nos seus respectivos textos em pauta, Küng (2001) e Torres Queiruga (2003), como se verá a seguir no detalhamento de suas reflexões, mencionam explicitamente suas tentativas de diálogo com a pós-modernidade. Küng é mais explícito ainda, ao considerar a pós-modernidade como um novo paradigma cultural, asserção não corroborada por Torres Queiruga, que vê a pós-modernidade como uma segunda etapa da modernidade. 383 No seu respectivo texto em pauta, Hick (2000), como se verá a seguir no detalhamento de suas reflexões, não faz menção explícita à pós-modernidade. Em escritos posteriores, Hick (1995) reafirma sua hipótese pluralista e afirma (1995, p. 38) não ser “muito favorável ao uso do termo ‘pós-moderno’ por significar tantas coisas diferentes para pessoas diferentes”; continuando, diz que “tão grande é sua [do termo pós-moderno] abrangência de significados que eu mesmo fui criticado por um escritor evangelical por ser um pós-modernista – o que talvez seja ainda pior do que ser atacado pelos pós-modernistas!”.

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2.1 Hans Küng: exigências pós-modernas384

Na obra ora analisada,385 Küng menciona explicitamente a pós-modernidade.386 Esta

pesquisa quer, a partir do âmago destas suas reflexões, perceber seus pontos de proximidade

com as possibilidades pós-modernas. Para isso, faz-se necessária a explicitação dos

fundamentos de sua reflexão na obra em pauta.

O autor clareia logo de início o tema central dessas suas reflexões (2001, p. 7, ênfase

do autor): “não haverá sobrevivência sem uma ética mundial. Não haverá paz no mundo sem

paz entre as religiões. E sem paz entre as religiões não haverá diálogo entre as religiões”.387

Como justificativa, ele diz tratar-se “de uma tentativa provisória de uma análise do tempo das

transformações atuais, da nova constelação geral que está se esboçando e vai marcar época,

do novo macroparadigma – para mim um termo chave de envergadura histórico-universal”.

Esse mundo, na visão de Küng (2000, p. 8), não necessita de uma “religião unitária”

nem de uma “ideologia única”, mas sim de uma “ética básica para toda a humanidade”.

Afinal, pergunta Küng (2000, p. 9), “a questão das religiões não foi sempre a de motivar

384 Esta parte específica da pesquisa, que traz à luz uma obra específica de Küng (2001), quer, sem fugir às regras metodológicas científicas, evitar repetições redundantes e desnecessárias. Logo, onde não houver menção expressa a um autor diferente ou não se configurar expressão pessoal do autor desta pesquisa, a autoria é de Küng. 385 KÜNG, Hans. Projeto de ética mundial: uma moral ecumênica em vista da sobrevivência humana. 3. ed. São Paulo: Paulinas, 2001 (original de 1990). Possíveis referências e/ou citações de outras obras do autor estarão sempre em notas de rodapé. 386 Küng (1989, p. 17, minha tradução) expressa que “pessoalmente gostaria de denominar esta época, na qual estamos adentrando, de ‘ecumênica’ (no sentido de um novo acordo global entre as diversas religiões, confissões e regiões), no entanto, este termo tem uma conotação religioso-teológica excessivamente clara e, por outro lado, esta Oikumene, esta ‘terra habitada’, chegou a um grau demasiadamente alto de inabitabilidade, possivelmente numa relação essencial com o desenvolvimento ‘moderno’”. 387 Küng (2001) não se refere somente às religiões mundiais. O propósito dessas suas reflexões (2001, p. 7) é “considerar a religião como tal, as discussões com a moderna crítica da religião, a ética secularizada, a situação política e sócio-cultural”.

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pessoas em todo o globo para normas, valores, ideais e objetivos?”388 A credibilidade futura

de “todas as religiões”, acredita o autor, grandes e pequenas, “vai depender em que medida

acentuam mais aquilo que as une e menos aquilo que as divide”.

Küng (2001, p. 15) é claro ao afirmar os tempos atuais como os da “pós-

modernidade”,389 “uma nova época mundial após a modernidade”.390 Várias são as

coordenadas e características desse novo mundo que se esboça – denominado por Küng

(2001, p. 7, minha ênfase) de “novo macroparadigma”391 e que se caracteriza por uma

“nova constelação geral”392 – que está a exigir novas condutas das religiões.393

388 Küng (2000, p. 9) afirma que “isto é inegável, apesar de toda a duplicidade facial das religiões, das quais experimentei o suficiente”. Essa referência específica à sua pessoa se deve ao fato já mencionado anteriormente: a retirada de sua "missio canonica" (perda da licença para ensinar como teólogo católico, ou seja, a perda da autorização eclesiástica de ensino), em dezembro de 1979, o que o impediu de lecionar em faculdades católicas. Com isso, ele foi obrigado a retirar-se do ensino na faculdade teológica católica de Tubingen em 1980. 389 Küng (2001, p. 15) diz reconhecer que o termo envolve problemas, ainda não solucionados, devendo ser melhor determinado. Mesmo assim, apesar de expressar mais a indecisão que a determinação, essa nova época mundial, pós-moderna, à falta de um nome próprio, ao final do século XX, torna-se cada vez mais consciente. Em seu modo de ver, “pós-modernidade não é nem uma palavra mágica que tudo abarca nem um termo-chave polêmico que tudo expressa. Trata-se antes de um termo heurístico inevitável, mas que pode ser mal entendido”. Explicando a relação de pós-moderno com heurístico, Küng (1989, p. 16, minha tradução) afirma que é no sentido de “busca”, termo “característico de uma época que – apesar de todas as reações tanto das direitas quanto das esquerdas – está abrindo caminho há décadas, se bem que é agora que se manifesta na consciência geral das massas”. 390 Küng (2001, p. 15-44) discorre acerca das origens e desenvolvimento da pós-modernidade e o faz, basicamente, a partir dos elementos conceituais e históricos já expressos no item anterior deste capítulo (A perspectiva cultural pós-moderna: uma nova configuração de identidades), o que permite a este pesquisador não entrar novamente nesses detalhes, que podem, contudo, ser relembrados, retornando-se aos escritos anteriores desta pesquisa. No entanto, em função dos objetivos desta pesquisa, duas observações se fazem necessárias: 1) Küng (2001, p. 38-39) afirma que o “pós” do termo em questão se refere, além de outras realidades (“pós-eurocentrista”, “pós-colonialista e pós-imperialista”, “pós-capitalista e pós-socialista”, “pós-industrial”, “pós-patriarcal”, “pós-ideológica”), ao mundo religioso (“pós-confessional e inter-religioso”); 2) diferentemente do que foi expresso no item anterior deste capítulo, a pós-modernidade, no entender de Küng (2001, p. 30, ênfase do autor), está para além não somente do comunismo mas também do capitalismo: “os dois sistemas sociais antagônicos típicos, comunismo (socialismo) e capitalismo, devem ser entendidos como sistemas desesperançadamente comprometidos e superados”. 391 Na visão de Küng (2001, p. 42-43), trata-se de novo paradigma, não de “antimodernidade” ou “ultramodernidade”. 392 Nessa nova constelação, afirma Küng (2001, p. 39), observa-se, não necessariamente uma decadência de valores, mas uma “fundamental transformação de valores”. O autor se mostra bastante otimista nesse sentido, vislumbrando “a passagem de uma ciência sem ética para uma ciência eticamente responsável, a passagem de uma tecnocracia que domina as pessoas, para uma tecnologia que serve à humanidade das pessoas, a passagem de uma indústria, que destrói o meio ambiente para uma indústria, que promove os verdadeiros interesses e necessidades das pessoas em harmonia com a natureza, a passagem de uma democracia formalmente de direito para uma democracia vivida, na qual liberdade e justiça estão reconciliadas”. 393 Advém daí o título deste item da presente pesquisa, tomado de empréstimo ao texto de Küng ora analisado: “Exigências pós-modernas”.

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No que tange à cultura de uma maneira geral, incluída aí a religião, Küng (2001, p. 53,

ênfase do autor) lança a questão, para ele fundamental: “que princípios fundamentais as forças

dirigentes da política, da economia, da ciência e das religiões devem seguir? E sob que

pressupostos também a pessoa individual pode chegar a ter uma existência feliz e realizada?”

O autor responde, não deixando margem à dúvida: “a pessoa humana deve vir a ser mais do

que é, ou seja, a pessoa humana deve ser mais humana”.

Para que isso possa ocorrer, na visão de Küng (2001, p. 58), “a humanidade pós-

moderna necessita de valores, objetivos, ideais e visões comuns”. Daí será possível uma ética

geral que garanta a sobrevivência da humanidade.394 Inevitável, nesse processo, será a

participação da(s) religião(ões). Os parênteses se justificam, uma vez que Küng (2001, p. 58)

se questiona acerca de um assunto bastante discutido: “tudo isso [a necessidade de uma ética

geral] não pressupõe uma única fé religiosa?”

Nos milênios anteriores, “não se pode negar” (KÜNG, 2001, p. 59), as religiões

constituíram sistemas orientadores que engendraram o fundamento para uma determinada

moral, sendo que estes podiam ser legitimados, motivados e sancionados, não poucas vezes

mediante castigos. Os tempos, no entanto, mudaram; a secularização da sociedade, processo

engendrado na modernidade, colocou em questão aquela ampla plausibilidade institucional

religiosa e da própria religião.395

Nesses novos tempos, antes, então, da pergunta acerca da (im)possibilidade de uma

única fé religiosa, há que se perguntar sobre a própria necessidade de uma religião (KÜNG,

394 Küng, como já expresso em nota anterior, tem uma visão otimista com relação ao desenvolvimento da história e seus protagonistas. Isso o leva a utilizar termos que os próprios teóricos da pós-modernidade rejeitam ou criticam abertamente, como é o caso de “humanidade”, abarcando sob uma mesma identidade, todos os seres humanos. Relembrando, o item anterior desta pesquisa, ao seu final, expressava o fato de que o descentramento do sujeito moderno trouxe consigo, entre outras coisas, o questionamento da noção de que homens e mulheres eram partes integrantes de uma mesma identidade, a “Humanidade”, trazendo para o seu lugar a questão da diferença sexual. Deve-se considerar o fato de que Küng escreve em 1990, momento ainda de ebulição devido aos recentes fatos ligados à queda do muro de Berlim, em 1989. Pesa também a seu favor o fato de ter sido o primeiro teólogo a falar abertamente das possibilidades religiosas pós-modernas. 395 Algo exacerbado na pós-modernidade, notadamente no aspecto institucional-religioso.

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2001, p. 61). Não faltam justificativas a tal questionamento: biográfico-psicológicas (a

religião foi reduzida ao obscurantismo, à superstição, à ilusão e ao ópio), empíricas (pessoas

não-religiosas e pessoas não-crentes, porém religiosas, imbuíram-se de valores éticos e morais

fundamentais no sentido da dignidade humana), antropológicas (pessoas não religiosas

desenvolveram e possuem objetivos e prioridades, valores e normas, ideais e modelos, além

de critérios fundamentais para aquilo que é certo e errado) e filosóficas (mesmo sem ter uma

fé em Deus, a autonomia racional humana permite uma fé fundamental na realidade no

sentido de uma responsabilidade no mundo).

Se existe a liberdade religiosa, ou seja, cada indivíduo pode praticar a religião que lhe

aprouver, isso significa também que se pode escolher não ter religião, algo que “muitos

crentes fanáticos muitas vezes gostam de suprimir” (KÜNG, 2001, p. 61-62). As questões

mundiais, então, referem-se a crentes e não-crentes (teístas, ateístas e agnósticos), urgindo

uma necessária coalizão396 em prol de uma ética mundial.

Essa necessidade de união traz, por outro lado, problemas imanentes, dentre eles,

“donde tomaremos [...] padrões397 que nos orient[...][e]m e, se necessário, nos apont[...][e]m

os nossos limites?” As diferentes áreas do conhecimento e da cultura podem fazer-se essa

pergunta.398 No que toca ao aspecto religioso, afirma Küng (2001, p. 69), o questionamento se

396 Em torno de pontos comuns: direito fundamental de todas as pessoas a uma vida humana digna, diminuição da barreira entre ricos e pobres, nações ricas e pobres, diminuição das favelas nos cinturões de pobreza do quarto mundo, união contra as catástrofes ecológicas e movimentos migratórios internacionais que arrasam o nível de bem-estar social, esforço por uma sociedade sem guerra. 397 Küng (2001) tenta propor soluções para algo bastante debatido na pós-modernidade: como conceber padrões e critérios gerais num mundo que, por mais globalizado que esteja, aponta fortemente para o diferente, para a alteridade, para o totalmente outro, para a diversidade? 398 Acerca da filosofia, Küng (2001, p. 66-67) afirma: “podemos nos alegrar que, em especial desde os anos 80 também a filosofia alemã tem-se preocupado novamente mais com a prática e com isso também com a fundamentação racional de uma ética válida para todos. Essa preocupação com a prática se percebe, por exemplo, na filosofia lingüística (Karl-Otto Apel), ou na teoria crítica da escola de Frankfurt (Jürgen Habermas), ou na teoria da história (Rüdiger Bubner)”. Prosseguindo, Küng toca numa questão que ainda mobiliza os debates na pós-modernidade, qual seja, a relação entre universal e particular: “logicamente, a filosofia tem muitas dificuldades com a fundamentação de uma ética para grandes camadas da população, uma ética que seja praticável e sobretudo necessária e comum a todos. Por isso, não são poucos os filósofos (desde Alasdair MacIntyre e Richard Rorty até Michel Foucault e Rüdiger Bubner) que preferem desistir de normas universais e se restringir às realidades dos diferentes mundos e formas de vida”. Questionando esses autores, Küng expressa

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desdobra: junto com “qual a possível contribuição da religião?”, apresenta-se de outra forma o

questionamento: “na época pós-moderna [...] qual é o futuro da religião?”

Sem titubear, Küng (2001, p. 69) responde afirmando que “uma análise de conjuntura

que exclui a dimensão religiosa é deficiente”. Assim como a arte e o direito, ela é um

“fenômeno universal”, a “realização dos desejos mais antigos, mais fortes e mais necessários

da humanidade”.399 Longe de se ter demonstrado seu possível caráter ilusório, o conteúdo

central da religião é “coisa de uma confiança racional”. No entender de Küng (2001, p. 70-

71), qualquer análise que exclua, por negligência, ignorância ou ressentimento, esse fenômeno

geral da humanidade, é apressada.400 O niilismo profetizado por Nietzsche, seja do tipo

“fundamental ou prático-vulgar”, não se observa de forma generalizada, manifestando-se

somente ali onde a fé em Deus desapareceu, algo que também não se generalizou, na

“medida401 em que para muitas pessoas a fé em Deus não está morta”.402

seu posicionamento, que norteia, inclusive, sua proposição de um Projeto de Ética Mundial (título deste seu livro, ora analisado): “Mas será que as racionalidades e possibilidades, prescrições e leis regionais não tendem a ter um horizonte estreito? Será que, no interesse do todo, as fixações em interesses regionais ou nacionais não devem ser constantemente abertas?” 399 Küng (2001, p. 69) faz referência a Freud (Die Zukunft einer Illusion). 400 Küng (2001, p. 200, nota 70) considera deveras interessante que a seguinte afirmação parta justamente de um filósofo cético como Macintyre: “o que a esta altura dos acontecimentos interessa é a construção de formas de comunidades locais, dentro das quais a civilização, a intelectualidade e a moral podem ser mantidas durante a era cinzenta [comparável como os tempos após o desmantelamento do império romano] que paira sobre nós. E se a tradição das virtudes foi capaz de sobreviver aos horrores da última era cinzenta, não estamos totalmente sem motivos para esperança. Neste tempo, porém, os bárbaros não estão esperando além das fronteiras; eles já estão nos governando desde algum tempo. E é justamente a nossa falta de memória sobre isso que constitui parte de nossa lamentável situação. Nós não estamos esperando por Godô, mas por outro alguém – sem dúvida alguém bem diferente – por São Benedito”. 401 No parecer desta pesquisa, na “medida [cada vez mais crescente] em que para muitas pessoas a fé em Deus não está morta”. 402 Küng (2001) chama a atenção no sentido de não se confundir crise institucional religiosa, esta sim, crescente, com crise religiosa pura e simplesmente.

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O que ocorre, na verdade, e que muitos estudiosos não se deram conta ainda,403 na

visão de Küng (2001, p. 73), é que a religião se transforma paulatinamente na medida em que

adentra nos novos tempos pós-modernos. Nesse contexto, “de uma forma libertadora, a

religião está psíquica e socialmente viva [...] [, algo que se constitui como] uma característica

fundamental da pós-modernidade [...]”.404 “Toda a sua [da religião] riqueza metafórica”405

(Küng, 2001, p. 73) pode servir como “expressão da superação de limites ou como esperança

de redenção”.406

Ao final do século XX,407 as pessoas religiosas não podem deixar de olhar para

algumas dificuldades (KÜNG, 2001, p. 74-75) típicas dos novos ventos que sopram. Uma

primeira diz respeito ao fato de que as pessoas acreditam cada vez menos em soluções morais

e/ou religiosas derivadas de forma fixa “do céu, do taoísmo [...][,] da Bíblia ou de algum livro

403 Küng (2001, p. 73) faz referência, aqui, a Jürgen Habermas, que afirma: “eu não acredito que nós europeus podemos entender corretamente conceitos como moralidade e ética, pessoa e individualidade, liberdade e emancipação [...] sem assumir a substância do pensamento histórico-salvífico de procedência judaico-cristã”. Küng lança o seguinte questionamento a esse filósofo que afirma um “pensamento pós-metafísico” para uma “época pós-metafísica”, objetivando uma ética racionalmente fundada: “porque eu deveria assumir a ‘substância’ da tradição judaico-cristã de forma ‘pós-metafísica’, ou seja, de forma racional-ateísta?” Segundo Küng, até então (momento em que terminava seu livro, 1990), Habermas não respondera tal questão. Cf. HABERMAS, J. Nachmetaphysisches Denken. Philosophische Aufsätze: Frankfurt, 1988. 404 Na verdade, toda a discussão atual se move nesse sentido, lugar em que pretende estar também esta presente pesquisa: qual é o novo papel da religião e, mais especificamente, da teologia católica, em tempos de pós-modernidade; quais as mudanças internas necessárias para que elas continuem a dar respostas, como sempre fizeram, umas mais, outras menos, às novas demandas de seus seguidores; quais os ajustes que se fazem prementes para que elas sejam a “consciência possível” nestes novos tempos pós-modernos. As proposições de Küng (2001) (mais relacionadas às religiões de maneira geral), Torres Queiruga (2003) (a presença plena do Deus plenamente amor no mundo, como se verá no próximo subitem), Hick (2000) (Jesus, o Deus encarnado, como metáfora, como se verá ao final deste item) e Haight (2003) (Jesus como símbolo de Deus, explanado mais à frente no último item desta pesquisa) são tentativas, em tempos e de maneiras diferentes, mais e menos ousadas, mais explícitas e mais implícitas, de dar respostas aos novos ventos que estão a exigir novas posturas e respostas. 405 A metáfora, como figura de linguagem a ser utilizada na atual compreensão do(s) dogma(s) cristão(s), é a proposta de Hick, no sentido de tornar compreensíveis antigas proposições que nada têm a ver com o momento cultural-religioso que se vive hoje. Mais à frente, serão detalhados esses aspectos da reflexão de Hick. 406 “Por que”, pergunta Küng (2001, p. 73) a Habermas, essa nova forma da religião poderia vir à tona “somente na medida em que a filosofia pós-metafísica não oferecer algo mais adequado? Por que não posso dar também uma dimensão filosófica ao insaciável ‘desejo pelo outro’? (Infelizmente Jürgen Habermas nunca assumiu esta idéia fundamental do seu mestre Max Horkheimer)”. 407 Momento em que Küng publicava esse seu livro: 1990. Sua afirmação, contudo, segue tendo firme validade no início do século XXI.

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sagrado”.408 Historicamente, “as normas, os valores, as observações e termos-chave

eticamente concretos das grandes religiões tiveram origem num processo sócio-dinâmico

muito complexo”. Experimentados, preservados e acolhidos durante gerações, tais elementos

eram finalmente reconhecidos, na forma de prioridades, convenções, leis, mandamentos,

indicações e costumes, determinadas normas éticas, em resumo. É por isso que muito daquilo

que, na Bíblia, por exemplo, é proclamado como mandamento de Deus, “já consta no Código

de Hamurabi, da Babilônia do século 17/18 antes de Cristo”. No entanto, afirma Küng (2001,

p. 74), “às vezes, devido a mudanças históricas muito rápidas, tais normas podem também ser

esvaziadas ou extintas”. “Será”, questiona-se o autor, “que nós vivemos num tempo assim?”

Uma segunda dificuldade (KÜNG, 2001, p. 75) que deve hoje ser olhada de perto

pelas pessoas religiosas refere-se ao fato de que se deve “procurar e forjar soluções

diferenciadas, ‘na terra’”, para todos os problemas e conflitos. Não importa de onde elas

venham, se dos judeus, cristãos, muçulmanos, adeptos de uma religião índica, chinesa ou

japonesa, mas sim que as pessoas são responsáveis pela organização concreta de sua moral,

partindo de suas experiências, da diversidade de sua vida para se orientar acerca de

determinados fatos. Muitas dessas pessoas religiosas que, de fato, “muitas vezes andam com a

cabeça nas nuvens, precisam reconhecer hoje que não podem apelar a uma autoridade, por

mais alta que esta seja, para tirar das pessoas a sua autonomia no mundo”.409

A terceira dificuldade está ligada ao fato de que numa sociedade altamente

tecnologizada, com uma realidade diversificada, mutável, complexa e, por vezes, pouco

transparente, “as religiões não podem deixar de empregar métodos científicos para o mais

408 Por isso, hoje, no mundo pós-moderno, a teologia “somente poderá alcançar uma nova credibilidade e relevância social apresentando a fé cristã com uma responsabilidade científica fiel a seu tempo e ao evangelho (KÜNG, 1989, p. 15, minha tradução). 409 Küng (2001, p. 75) lembra que Kant já afirmava: “na consciência existe uma autolegislação ética e auto-responsabilização para a nossa auto-realização e para a organização de nosso mundo”.

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objetivamente possível analisar a realidade quanto às suas leis internas e quanto às suas

possibilidades de futuro” (KÜNG, 2001, p. 75).

Uma última dificuldade estaria relacionada à forma de convivência das religiões entre

elas mesmas no sentido de uma ética comum410 ao bem-estar da humanidade. Küng (2001, p.

80) parte do pressuposto de que não se pode contar mais, “principalmente após a exaltação

que Nietzsche fez da época ‘além do bem e do mal’”, com um “‘imperativo categórico’,

congênito a todas as pessoas, de tomar o bem de todas as pessoas como critério do próprio

agir”. Esse categórico, acredita Küng, somente pode ser fundamentado a partir de um

incondicional, a partir de um absoluto que abarque e permeie tanto a pessoa humana

individual quanto toda a sociedade humana.411 Seria a realidade última412 e mais elevada,

impossível de ser demonstrada racionalmente, mas possível de se aceitar numa fé sensata.413

Isso independentemente de como seja denominada, entendida e interpretada nas diferentes

religiões.

Uma religião assim concebida e vivenciada tem, na pós-modernidade, “uma nova

chance – nem mais nem menos” (KÜNG, 2001, p. 82). O grande feito da pós-modernidade,

410 Küng (2001, p. 84-90) pergunta-se por que os adeptos da diferentes religiões sabem tanto daquilo que as separam (doutrinas, ritos, escritos, e questões práticas como uso de bebida alcoólica, carne de porco, corte de barba e cabelo, matar animais, ter mais de uma esposa etc.) e tão pouco do que as une. Essa deveria ser a tarefa “importante e significativa” para os estudiosos das diversas religiões: a percepção dos pontos comuns a partir de um trabalho com base nas fontes. No que se relaciona à ética e suas possibilidades, Küng chama a atenção para seis pontos de vista decisivos que deveriam ser melhor olhados: “o bem-estar das pessoas” (todas as grandes religiões oferecem uma orientação religiosa fundamental nesse sentido), “as máximas elementares da humanidade” (cinco grandes mandamentos da humanidade têm validade em todas as grandes religiões: não matar, não mentir, não roubar, não praticar imoralidade, respeitar pai e mãe e amar filhos e filhas), “o sensato caminho do meio” (entre o libertinismo e o legalismo), “a regra áurea” (todas as grandes religiões promovem algo como uma lei áurea, isto é, uma norma incondicional, categórica e apodíctica), “motivações éticas” (até hoje continuam motivadores aqueles modelos de vida que se orientam na vida e na doutrina dos grandes líderes das religiões mundiais), “horizonte de sentido e determinação de objetivos” (todas as religiões, em termos concretos, respondem a pergunta pelo sentido do todo, da vida, da história com vistas à realidade última já aqui experimentada). 411 Torres Queiruga (2003), como se verá no item seguinte, propõe algo parecido, ao falar da presença plena do Deus plenamente amor no mundo, como um novo paradigma cristão. 412 Hick (2000), como se verá ao final deste item, utiliza a expressão “Realidade Última”, no sentido de um absoluto que se manifesta de diferentes maneiras aos povos do mundo. 413 Neste ponto, concordam os três autores arrolados neste item da presente pesquisa (Küng, Torres Queiruga e Hick): os dados da fé têm de ser compreensíveis, apesar de não demonstrados racionalmente, às pessoas em suas atuais condições culturais e religiosas.

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qual seja, a desmitologização, desendeusamento e relativização do panteão da modernidade

(“deusa razão”, “deus progresso”, além de todos os seus “subdeuses”, ciência, tecnologia,

indústria etc.), não pode ser perdido com a substituição por um novo ídolo, o “mercado

mundial”, por exemplo, ao qual todos os valores estariam subordinados. Uma ética mundial,

com valores diferentes e que promova fundamentalmente a vida humana, somente será

possível com uma “grande coalizão entre crentes e não crentes” e com o “engajamento

especial das diferentes religiões” (KÜNG, 2001, p. 91).

No caso cristão, essa “nova chance” passa por uma auto-avaliação – de maneira

diferente, objetivando não simplesmente uma autojustificação,414 mas, primeiramente, uma

autocrítica – e por um sincero olhar às atuais exigências pós-modernas.

Um verdadeiro cristianismo (e outras religiões também) que queira estar em linha com

os novos tempos, no sentido de se fazer compreensível aos seus ouvintes, não se pode

contentar com uma autojustificação, que até pode passar por uma confissão de culpa, porém

não leva, necessariamente, à conseqüência mais exigente, qual seja, “uma transformação

radical” (KÜNG, 2001, p. 97).415 Uma transformação que chegue às raízes (radical) exige um

passo a mais, a autocrítica sincera. Assim, sendo exemplo, o cristianismo pode propiciar aos

seus seguidores uma transformação “a partir de seu centro”, uma “‘meta-noia’” (profunda

mudança no jeito de pensar), uma “conversão [...] da pessoa, da humanidade para o absoluto,

para Deus”.

Além de uma autocrítica sincera, a “nova chance” passa também por um abrir-se às

novas exigências pós-modernas (KÜNG, 2001, p. 99-102):416 a) não somente liberdade mas,

414 Segundo Küng (2001, p. 96), como se observa “em muitos documentos do Vaticano e do Conselho Mundial de Igrejas”. 415 Alguns recentes pedidos de perdão por parte dos dirigentes católico-romanos dão um pouco essa impressão, pois não se percebem ações concretas que os acompanhem. 416 Küng (2001, p. 98) acredita que as convicções modernas (liberdade, igualdade, fraternidade) “necessitam justamente de uma complementação dialética”, algo que pode ser conseguido na pós-modernidade, objetivando-se uma ética global, que conclame a todos a uma responsabilidade global pelo futuro da humanidade.

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ao mesmo tempo, justiça, objetivando uma nova ordem social no mundo (uma sociedade na

qual as pessoas têm os mesmos direitos e convivem em solidariedade); b) não somente

igualdade mas, ao mesmo tempo, pluralidade, objetivando uma ordem mundial pluralista (um

caminho para a diversidade de culturas); c) não somente fraternidade mas também irmandade,

objetivando uma ordem mundial companheira (um caminho para uma sociedade renovada de

homens e mulheres, na igreja e na sociedade); d) não somente coexistência mas paz,

objetivando uma ordem mundial promotora da paz (um caminho para uma sociedade apoiada

incondicionalmente no estabelecimento da paz e na solução pacífica dos conflitos); e) não

somente produtividade mas também solidariedade com o meio ambiente, objetivando uma

ordem mundial amiga da natureza (um caminho para uma comunhão das pessoas humanas

com todas as criaturas); f) não somente tolerância 417 mas ecumenismo, objetivando uma

ordem mundial ecumênica (um caminho para uma comunhão que está consciente de que

necessita do constante perdão e da constante renovação).

A “nova chance – nem mais nem menos” (KÜNG, 2001, p. 82), da qual as religiões

dispõem, tendo em vista aquela necessidade de autocrítica e essas exigências pós-modernas,

leva à tese fundamental de Küng (2001, p. 108-109), para a qual ele tem “encontrado em todo

o mundo cada vez maior apoio: Não haverá paz entre as nações sem uma paz entre as

religiões. Em resumo: sem paz entre as religiões não haverá paz no mundo”.

417 Como já mencionado no capítulo anterior desta pesquisa, tolerar não é dialogar nem conviver, apesar de poder se constituir em um primeiro passo para que tal diálogo aconteça, desembocando finalmente na convivência mútua inter-religiosa. Na concepção de Libera (2002, p. 3), filósofo e historiador, o conceito iluminista de tolerância não dá conta das questões relacionadas ao diálogo inter-religioso no mundo atual. Isso porque, diz o autor, “para falar em tolerância é preciso pressupor a idéia de que não vale a pena, por uma série de razões, discutir os argumentos teológicos do outro”. E o diálogo, ainda segundo esse autor, deveria, sob pena de não se realizar, ser aberto justamente “nesse lugar em que religião e pensamento se encontram”, o “terreno [...] teológico e filosófico”. Libera considera ignorância tentar conversar com indivíduos religiosos somente a partir de pressupostos sócio-econômicos, psicológicos ou políticos, sem conhecimento sólido de religião e teologia.Dessa forma, não basta tolerar o outro religioso. Para Libera (2002, p. 3), é isso o que o pensamento filosófico medieval pode ensinar ao mundo pós-medieval. “A pergunta filosófica medieval é: o que autoriza intelectualmente você, a partir do seu livro religioso de referência, a afirmar o que afirma?” O que se percebe aí é a busca de um “consenso argumentativo”, implicando necessariamente na “idéia de que as partes entendem que é importante compreender logicamente e avaliar as formas religiosas de vida e de pensamento do outro”. É sob este ângulo, e não do anacrônico termo tolerância, que o autor vê o paraíso andaluz de convivência religiosa entre cristãos, muçulmanos e judeus.

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Küng (2001, p. 110) não desconhece as dificuldades que têm impedido uma maior

proximidade entre as religiões mundiais, sendo a maior delas “a pergunta pela verdade”.418

Ele está consciente de que “não poderá haver paz entre as religiões sem esclarecer a pergunta

pela verdade”. As estratégias utilizadas até então em nada contribuiram, segundo Küng (2001,

p. 111-115), “para solução politicamente relevante da questão da paz”:

a) A estratégia da fortaleza: somente a própria religião é verdadeira! Todas as outras

religiões não são verdadeiras! A ‘paz’ religiosa somente poderá ser garantida através

de uma verdadeira religião (estatal).419

b) A estratégia da harmonização: o problema existencial da ‘verdade’ não existe

realmente. Pois cada religião é verdadeira a seu modo; na sua essência cada uma delas

é de igual modo verdadeira. A ‘paz’ pode ser realizada da melhor forma na medida em

que se ignoram as diferenças e as contradições. 420

c) A estratégia do abraço: uma única religião é verdadeira, mas todas as religiões que se

desenvolveram historicamente têm parte nessa uma religião! A ‘paz’ religiosa alcança-

se da melhor forma através da integração das outras religiões. 421

Se essas três estratégias, na visão de Küng (2001, p. 111), levam a “nenhuma

solução”, haveria “um caminho teologicamente lícito que permit[...][iria] a cristãos como

418 Nenhuma outra pergunta na história das igrejas e das religiões “já derramou tanto sangue e lágrimas como justamente a pergunta pela verdade” (KÜNG, 2001, p. 111). De um lado, o “fanatismo pela verdade” e, de outro, o “esquecimento da verdade”. 419 O autor faz referência ao paradigma exclusivista. Uma discussão em detalhes acerca dessa posição pode ser revista no capítulo I da presente pesquisa, quando em seu primeiro item (Atitudes históricas pontuais de fechamento) foi abordado o adágio extra Ecclesiam nulla salus. 420 O autor parece fazer referência ao paradigma pluralista. Uma discussão em detalhes acerca do posicionamento pluralista pode ser revisto ao final do capítulo I (3.1 O pluralismo) e encontrado também mais adiante neste capítulo III (2.3 John Hick: a metáfora do Deus encarnado) da presente pesquisa. 421 O autor faz referência ao paradigma inclusivista. Uma discussão em detalhes acerca do posicionamento inclusivista pode ser revisto nos capítulos I (2 O início da abertura / 3.2 O inclusivismo aberto) e II (1 O cristianismo e a diversidade religiosa / 2 O pluralismo de princípio) da presente pesquisa. Ali se encontram esboçadas as diferentes perspectivas internas ao próprio inclusivismo, o que Küng apresenta como um bloco monolítico inclusivista.

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adeptos de outros credos aceitar a verdade das respectivas outras religiões sem renunciar à

verdade da própria religião e com isso à própria identidade?”

Küng (2001, p. 121) considera a possibilidade de uma “quarta estratégia” religiosa no

sentido de se chegar a critérios éticos comuns para o bem-estar da humanidade sem esbarrar

nas, ou melhor, ultrapassando as, ou melhor ainda, discernindo422 as diferenças relacionadas à

pergunta pela verdade: “o humano como critério ecumênico fundamental”, “o

verdadeiramente humano como critério universal” (KÜNG, 2001, p. 126-127). Enunciando

esse critério, Küng (2001, p. 127) expressa: “a pessoa humana não deve ser desumana, não

somente instintiva, ‘bestial’, mas humanamente sensata, verdadeiramente humana, enfim,

viver humanamente”.

No que toca às religiões, se estariam sendo contextos de bondade ou de maldade, de

verdade ou de falsidade, o critério poderia ser expresso na “forma positiva, ou talvez de uma

forma mais incisiva, negativamente” (KÜNG, 2001, p. 128):

• Positivamente: a religião é boa e verdadeira na medida em que ela serve à

humanidade, na medida em que, em suas doutrinas de fé, de ética, em seus

ritos e instituições, ela promove a identidade humana, o sentido e o sentimento

de valor das pessoas.

• Negativamente: a religião é falsa e ruim, na medida em que ela difunde a

desumanidade, na medida em que, em suas doutrinas de fé e ética, nos seus

ritos e suas instituições, ela freia as pessoas em sua identidade humana, na sua

busca de sentido, no senso de valores, dificultando, assim, uma existência

frutífera e com sentido.

422 Esse discernimento passa, segundo Küng (2001, p. 119), pela autocrítica que cada religião pode realizar de duas maneiras diferentes: “não somente através da percepção e da expressão da crítica aos outros, mas também através da orientação na sua própria origem”. Para isso, muito contribuiriam os “Escritos e figuras normativas” de cada uma delas, “a necessidade e a limitação de critérios próprios e específicos para o discernimento da verdade” e, finalmente, os “critérios éticos comuns”.

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Alguns problemas se apresentam frente “[a]o humano como critério ecumênico

fundamental” (KÜNG, 2001, p. 126) e Küng não se escusa em dar respostas a eles:

1º) O humano, constituído dessa forma, não seria uma espécie de ‘superestrutura’, acima das

religiões, mas que poderia avaliá-las e até condená-las? Não seria esse um critério tipicamente

ocidental – resultado do humanismo europeu influenciado pelo cristianismo – que não se

aplicaria às religiões orientais? Não seria esse um critério vago demais para poder interligar

todas as religiões?

Resposta: “De modo algum! Há, isso sim, um relacionamento dialético” (KÜNG, 2001, p.

129) que pode ser descrito da seguinte maneira: verdadeira humanidade é o pressuposto para a

verdadeira religião (esse é o critério mínimo a cada religião, ou seja, se não houver pelo

menos humanidade não se realiza uma verdadeira religiosidade) e verdadeira religião é a

realização da verdadeira humanidade (esse é o critério máximo; onde se busca realizar a

humanidade, deve haver religião).

2º) Será que na disposição ao diálogo com as demais religiões, numa tal busca e formação de

consenso, não se perde a identidade das religiões individuais? Disposição ao diálogo estaria

substituindo falta de posição própria? Em outros termos, de tanta pluralidade, a verdade não é

relativizada?

Resposta: Não existe contradição entre disposição ao diálogo e firmeza de posição (KÜNG,

2001, p. 132). Semanticamente “firmeza de posição” (Standfestigkeit) pode ser reconhecida

como uma antiga e clássica virtude – comparável à disposição ao diálogo –, fazendo parte

primeiramente da virtude cardinal da valentia.423 Mais próxima de uma concepção moderna

de “firmeza de posição” estaria a constância (constantia), a virtude clássica dos antigos

romanos. No Segundo Testamento, ela aparece somente uma vez, nos Atos dos Apóstolos 4,

423 Segundo Küng (2001, p. 205, nota 107), “já entre os gregos e latinos a palavra valentia abrange todo um campo semântico: desde uma forma mais ou menos passiva de agüentar, da resistência e da perseverança até formas mais ativas do ataque e do conflito”. Termos correspondentes no cristianismo são esperança (elpis), perseverança (hypomoné), paciência (makrothymia), fundamentados na fé confiante (pistis).

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13 como parresia, a coragem de Pedro e João. “Consta-re” significa manter-se firme,

preservar uma postura firme, manter-se firme, fiel e conseqüente. “Constantia” significa uma

posição e uma direção firmes, firmeza de posição, e também perseverança, conseqüência,

resistência, intrepidez, coragem. Não há, então, que se abrir mão dos pontos cruciais a cada

realidade religiosa.

3º) A questão anterior permanece sem uma consideração completa. Mantendo-se os pontos

cruciais de cada tradição religiosa, não se está, justamente por isso, impossibilitando o diálogo

com as demais convicções de fé? Em outros termos, pode uma posição de fé bloquear o

diálogo?

Resposta: Contra a disposição ao diálogo inter-religioso as palavras de ordem que aparecem

são “indiferentismo”, “relativismo” e “sincretismo”. “Também eu rejeito quaisquer [dessas]

formas [...] que obscurecem qualquer posição mais transparente. Porém, pura negação ainda

não é uma posição crítica. Nesse ponto há que diferenciar melhor” (KÜNG, 2001, p. 134).

Uma posição ecumênica que interligue firmeza de posição com disposição ao diálogo pode

ser descrita da seguinte forma: “há que se buscar” (KÜNG, 2001, p. 135),

• não um indiferentismo, para o qual tudo é indiferente, mas mais indiferença em

relação a qualquer pretensa ortodoxia que se coloque como medida para a

salvação ou a perdição das pessoas e busca impor a sua verdade através de

poder e meios de coerção.

• não um relativismo, para o qual não existe um absoluto, mas, sim, mais

sensibilidade para a relatividade em relação a todos os absolutismos humanos,

os quais bloqueiam uma coexistência produtiva das diferentes religiões.

Necessitamos também mais sentido para a relacionalidade, que permite

entrever qualquer religião em sua tessitura de relações.

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• não um sincretismo, no qual tudo, o possível e o impossível, é misturado e

fundido, mas mais vontade para a síntese, para a paulatina junção face a todas

as contradições e antagonismos confessionais e religiosas, que, dia a dia,

custam muitas lágrimas. Assim, talvez, haja mais paz do que guerra entre as

religiões.

Em vista disso, Küng (2001, p. 136-137) arrisca a proposição de uma criteriologia

inter-religiosa que seria “válida para todas as religiões”, no sentido de “uma distinção entre a

verdadeira (boa) e a falsa (ruim) religião”:

• Critério ético geral: uma religião é verdadeira e boa, na medida em que ela é

humana, não oprime e destrói o humanismo, mas o protege e fomenta.

• Critério religioso geral: uma religião é verdadeira e boa, na medida em que ela

permanece fiel à sua origem ou ao cânone, isto é, à sua verdadeira ‘essência’, a

seu escrito ou à sua figura normativa, à qual sempre de novo recorre.

• Critério específico (cada religião adapta este critério às suas coordenadas de fé

e crença): no caso cristão, uma religião é verdadeira e boa, na medida em que

na sua teoria e prática permite reconhecer o espírito de Jesus Cristo.

Em vista deste critério específico, há que se olhar para a situação das “grandes

religiões [...] no terceiro milênio. O que deve ser preservado? O que deve ser jogado fora? O

que é substância de fé duradoura? E o que é que faz parte de um paradigma em mudança?”

(KÜNG, 2001, p. 148).

Interligando, no caso do cristianismo, “a perspectiva da narrativa da história do

desenvolvimento e a perspectiva tópico-temática”, Küng (2001, p. 166-167) propõe, com base

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na teoria dos paradigmas de Thomas S. Kuhn (1976), “um esquema fortemente simplificado

da mudança de paradigma no cristianismo”.

Quadro 3 – Mudanças de paradigmas na história do cristianismo424

424 Fonte: KÜNG, Hans. Projeto de ética mundial: uma moral ecumênica em vista da sobrevivência humana. 3. ed. São Paulo: Paulinas, 2001. p. 167.

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É bastante perceptível, segundo Küng (2001, p. 171), no caso religioso, a

“concorrência de paradigmas religiosos antigos nos dias de hoje”, que se constitui, em grande

parte, “uma das principais causas dos conflitos dentro das religiões e entre as religiões”.

Servir à paz, então, requer uma atenção especial à análise de paradigma.425

425 Segundo Küng (2001, p. 171), no cristianismo, “ainda hoje há católicos que espiritualmente vivem no século 13”, “há certos representantes da ortodoxia oriental que espiritualmente permanecem no 4º ou 5º séculos”, “para muitos protestantes, a constelação pré-copernicana do século 16 ainda é normativa”.

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2.2 Andrés Torres Queiruga: proposição de um novo paradigma426

Torres Queiruga427 menciona explicitamente, na obra ora analisada,428 a pós-

modernidade. Esta pesquisa quer, a partir do âmago dessas suas reflexões, perceber seus

pontos de proximidade com as possibilidades pós-modernas. Para isso, faz-se necessária a

explicitação dos fundamentos de sua reflexão na obra em pauta.

Apesar de não pretender tanto para este seu livro, Torres Queiruga (2003) afirma que

seu título bem poderia ser “A religião perante o terceiro milênio”, “Desafios para a teologia

no século vinte e um” ou “A mudança rumo a um novo paradigma”. De maneira geral, suas

426 Esta parte específica da pesquisa, que traz à luz uma obra específica de Torres Queiruga (2003), quer, sem fugir às regras metodológicas científicas, evitar repetições redundantes e desnecessárias. Logo, onde não houver menção expressa a um autor diferente ou não se configurar expressão pessoal do autor desta pesquisa, a autoria é de Torres Queiruga. 427 Em outro momento desta pesquisa (capítulo I, item 3.2, ênfase somente aqui), afirmou-se o seguinte acerca de alguns teólogos, entre eles Torres Queiruga, e suas reflexões: “Esta pesquisa considera como expressões mundiais, importantes na linha de pensamento inclusivista aberto, os teólogos Andrés Torres Queiruga, Michael Amaladoss, Edward Schillebeeckx, Claude Geffré e Jacques Dupuis. À guisa de esclarecimento dessas diferentes matizações presentes no campo reflexivo inclusivo cristocêntrico aberto, serão expostas, sucintamente, as linhas gerais que norteiam o arcabouço teórico desses seus principais representantes, no que diz respeito às suas reflexões acerca da diversidade religiosa do mundo. Num espectro imaginário demonstrativo do processo reflexivo representado pelo inclusivismo, que iria da teoria do “acabamento” (DANIÉLOU) às posições mais arrojadas do cristocentrismo aberto, mais próximas da fronteira entre inclusivismo e pluralismo, apenas com o cunho didático, e no sentido de mostrar o amplo leque de idéias reinantes nessa posição, Torres Queiruga poderia ser situado mais próximo a Rahner, um lugar bastante aquém daquele que ocuparia Jacques Dupuis, esse mais próximo da fronteira paradigmática, estando, entre eles, Michael Amaladoss, Edward Schillebeeckx e Claude Geffré, mais ou menos nessa ordem”. Foi dito também (capítulo I, item 3.2, ênfase somente aqui) “[...] que os autores arrolados neste debate possuem uma obra escrita dinâmica, ou seja, além de uma evolução da linha de seu pensamento, observa-se neles, ora avanços, ora recuos, dependendo da temática em pauta. É o caso, particularmente, de Torres Queiruga, que vem atualmente avançando bastante em suas reflexões, situando-as, inclusive, na arena da pós-modernidade. Não sem razão, seu nome consta no terceiro capítulo desta pesquisa, quando se abordam as possibilidades de aproximação entre o discurso teológico e a pós-modernidade”. A evolução apontada merece um comentário: o caráter dinâmico abarca também a presente pesquisa, principalmente quando é o caso, e o é agora, de um trabalho de longa duração (4 anos) e de se pesquisar obras de autores vivos. Apesar de se poder colocar um recorte cronológico, o pesquisador está sempre querendo saber das últimas novidades. No caso do tema da pós-modernidade essa curiosidade acadêmica se aguça ainda mais, dado o caráter de ebulição que a temática ostenta! Um grande perigo é apontado por Hick (1995, p. 7): “[...] seria flagrantemente injusto juntar, numa mesma discussão, uma afirmação antiga e outra mais recente com o intuito de apresentá-las como uma única posição em si contraditória”. De qualquer modo, houve um recorte, neste caso, compulsório-institucional-acadêmico, visto que findava o tempo legal para o encerramento da pesquisa. Adiantando algo das considerações finais, que virão mais à frente, pode-se afirmar: as pesquisas continuarão! 428 TORRES QUEIRUGA, Andrés. Fim do cristianismo pré-moderno: desafios para um novo horizonte. São Paulo: Paulus, 2003 (original de 2000). Possíveis referências e/ou citações de outras obras do autor estarão sempre em notas de rodapé.

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reflexões se constituem em uma proposta de aproximar o atual labor teológico cristão aos

desafios representados, já há bastante tempo, pela modernidade e, nos dias de hoje, pela pós-

modernidade.429 Em vista dos objetivos desta pesquisa, e desta parte mais especificamente, os

esforços de compreensão serão concentrados nas reflexões do autor acerca do que ele

denomina de “marco geral”, “a mudança radical que determina a situação do nosso momento”

e que se configura “na dialética entre modernidade e pós-modernidade” (TORRES

QUEIRUGA, 2003, p. 109).

Torres Queiruga (2003, p. 9-10) inicia suas reflexões lançando um olhar ao atual

“labor teológico”: “um dos eixos decisivos sobre os quais se deve articular a atual

preocupação teológica” é a tentativa de que “a fé se torne intelectualmente significativa e

possa ser vivida e praticada culturalmente”. 430

Uma olhadela no mundo religioso real basta para mostrar que, tanto na vivência

comum e concreta quanto no modo de fazer teologia, “tudo procede como se nós, os

humanos, fôssemos os ativos e os preocupados, os que têm de conquistar a salvação”

(TORRES QUEIRUGA, 2003, p. 17). Percebe-se “um desajuste profundo entre a intenção e a

realização, entre o sentido genuíno da experiência fundante e os modos vivenciais, práxicos e

conceituais em que a expressamos”.431

429 “Quando se produz uma mudança de tal calibre”, afirma Torres Queiruga (2003, p. 23-24), “a vertigem ameaça apoderar-se do espírito, e tendem a se produzir reações polares”. Essas acontecem sobretudo na parte institucionalmente mais influente do mundo religioso, que não vê “melhor maneira de defender a experiência da fé, senão mantendo-a prisioneira de modelos do passado, encerrando-se em uma atitude apologética”. 430 Essa também é a preocupação de Küng (como se viu no item anterior) e de Hick (como se verá no próximo item): de que forma a teologia pode e deve fazer-se compreendida em tempos que fazem essa exigência e também rejeitam qualquer tentativa de proposição impositiva. De maneiras diferentes, e em espectros modelares diferentes na Teologia das Religiões, esses pensadores parecem objetivar o mesmo “horizonte”. Há que se ter cuidado com as palavras, muitas vezes carregadas de um sentido que não é o que se quer dar em um determinado momento ou texto; horizonte, aqui, refere-se a objetivo específico, concreto, que se quer atingir. 431 Esse desajuste é claramente perceptível, quando se observa alguém ou um grupo orando para que Deus extirpe o mal ou algum mal específico do mundo. Isso, segundo Torres Queiruga (2003, p. 39), equivale a misturar “o antigo com o novo, quer[er] responder às perguntas atuais de uma cultura secularizada sem revisar o pré-(s)suposto herdado da cultura anterior ao Iluminismo – de que é possível um mundo sem mal”.

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Era tolerável esse desajuste há alguns séculos, pois não se verificava um destoar

dessas formas na cultura ambiental. No entanto, com o início da Modernidade, a tensão foi-se

tornando insuportável, até que, “às portas do século XXI,432 compreendemos que o desajuste

pode ser mortal” (TORRES QUEIRUGA, 2003, p. 18). A crise que originou a Modernidade

consistiu “em pôr em questão, desde seus mais profundos alicerces, todo o marco em que a

experiência cristã tinha sido modelada e configurada”. Um mundo cultural tinha vindo abaixo

e havia a necessidade de reconstruí-lo a partir de novas coordenadas. Torres Queiruga acredita

que “a teologia necessita pensar muito a sério [...] [esse] fato”. Afinal, o cristianismo entrou

em crise no mundo moderno “precisamente por não se ter adequado a forma da fé à nova

situação”.433 Ele insiste na necessidade “deveras premente de que a teologia enfrente com

decisão a necessária mudança de paradigma, 434 empreendendo a reconstituição de suas

coordenadas gerais e repensando todos e cada um de seus grandes problemas à luz da nova

situação”. 435

Consciente de “quão ousada e parcial é sua tentativa”, Torres Queiruga (2003, p. 15)

não ignora que suas reflexões oferecem tão-somente “uma perspectiva” entre outras, “lícita

432 O autor escrevia no ano de 2000, praticamente virada do milênio. 433 Torres Queiruga toma de empréstimo uma afirmação do Concílio Vaticano II, na Gaudium et Spes, n. 19, que reconhecia uma “parte não pequena” de culpa dos cristãos no nascimento do ateísmo. 434 No campo da cultura, Torres Queiruga trata a Modernidade como um novo paradigma, porém não faz o mesmo com a pós-modernidade que, para ele, constitui-se em desafios enormes, mas não de superação da Modernidade. Ele fala (2003, p. 121-122) em “primeira etapa” e “segunda etapa” da Modernidade e em “primeira modernidade” (podendo-se inferir que o correspondente à “segunda etapa” seria a segunda modernidade, que se vive hoje e que alguns denominam, não sem conseqüências, pós-modernidade). Referenciando Hans Küng, Torres Queiruga (2003, p. 23, nota 8) afirma: “H. Küng prestou muita atenção ao conceito de paradigma e estrutura sobre ele sua visão do cristianismo (parece dar por pressuposto que a ‘pós-modernidade’ representa um paradigma novo, algo que eu não assumo aqui)”. Tanto é verdade que o título deste seu livro, aqui abordado, é “Fim do cristianismo pré-moderno” e não “Fim do cristianismo moderno”. Esta pesquisa percebe que, com atraso, o cristianismo abre os olhos à Modernidade, já sentindo as cutucadas da pós-modernidade! Hans Küng e suas relações teológico-religiosas com a pós-modernidade foram abordados por esta pesquisa no item anterior. 435 A “irrenunciável tarefa da retradução do cristianismo que é postulada por nossa situação cultural” (TORRES QUEIRUGA, 2003, p. 91). Essa retradução toma a forma, em Küng (como se viu anteriormente), de um ecumenismo abrangente, em Hick (como se verá a seguir), de possibilidades metafóricas, em Haight (como se verá ao final deste capítulo), de possibilidades simbólicas. A forma dessa retradução em Torres Queiruga é o que se está explicitando neste momento.

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unicamente à medida que permanece aberta a integrar-se no diálogo e na colaboração com as

demais”.

Torres Queiruga (2003, p. 16, minha ênfase) percebe que a teologia cristã atual

necessita dar uma “guinada completa”, 436 colocar de “ponta-cabeça o sentido de muitos e

decisivos [de seus] conceitos teológicos”.437 Faz-se necessária uma inversão no modo de

conceber e vivenciar a relação de Deus com o homem: “levar a sério a absoluta primazia de

Deus que nos criou e continua nos criando por amor; única e exclusivamente por

amor”.438 Não é verdade, afirma Torres Queiruga, que “‘Deus esteja no céu e tu na terra’”.439

Deus está sempre aqui “entre nós: no homem e na mulher, na terra e na história”.

O movimento fundamental e infalível é o que vai de Deus ao ser humano, enquanto

que o outro, que vai do ser humano a Deus, falha, e, por isso mesmo, Deus está sempre a

“suscitá-lo, solicitá-lo e sustentá-lo”.

Esta é a proposição de Torres Queiruga (2003): um novo paradigma na teologia cristã,

para que se tornem possíveis as respostas aos desafios dos novos tempos modernos e pós-

modernos.

Nesse novo paradigma, no que toca à revelação de Deus, aparece uma “nova

compreensão da relação imanência-transcendência” (TORRES QUEIRUGA, 2003, p. 48).

Como “já está sempre dentro,440 sustentando, promovendo e iluminando a própria

436 Seria um decisivo “repensar da Transcendência nas novas coordenadas que emergiram no processo histórico”. No plano religioso, essa “mudança significativa” aparece como uma “nova sacralização do cosmos e da subjetividade humana, que se manifesta de mil modos em movimentos pára-religiosos ou nessa religiosidade difusa que caracteriza nosso tempo” (TORRES QUEIRUGA, 2003, p. 25). 437 Torres Queiruga (2003, p. 27) lembra-se de Bultmann que dizia muito bem: “não se pode usar a luz elétrica e o aparelho de rádio ou empregar na enfermidade os modernos meios clínicos e medicinais e, ao mesmo tempo, crer no mundo de espíritos e milagres do Novo Testamento”. 438 A parte enfatizada constitui-se na “hipótese de trabalho” de Torres Queiruga (2003, p. 122), apresentada em maiores detalhes nas linhas seguintes do presente item desta pesquisa: “a intuição básica capaz de contribuir hoje para a articulação de um novo paradigma da espiritualidade humana é a do Deus que cria por amor”. 439 Essa foi a proclamação de Karl Barth, não sem se remeter a Kierkegaard, no prólogo à segunda edição de seu comentário à Epístola aos romanos. Cf. BARTH, Karl. Carta a los romanos. Madri, 1998. p. 54. 440 Daí nasce uma conseqüência decisiva: “a ruptura de todo dualismo natural-sobrenatural, e também sagrado-profano” (TORRES QUEIRUGA, 2003, p. 80).

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subjetividade”, Deus “não necessita romper, de forma milagrosa ou intervencionista,441 a justa

autonomia do sujeito, para poder se anunciar em sua imanência”.442

A correta compreensão desse novo paradigma conta também com um segundo dado:

“o de uma razão ampliada”, que seria capaz de superar toda estreiteza iluminista, racionalista

e instrumental, “remetendo-a ao processo mais profundo da razão na Modernidade”

(TORRES QUEIRUGA, 2003, p. 49).443

Num tempo em que não é mais possível falar em uma fuga culturae,444 “a verdadeira

tarefa da teologia é manter viva e atuante a experiência da revelação” (TORRES

QUEIRUGA, 2003, p. 62). Sem dúvida, uma tarefa por demais difícil, dada a enorme e

revolucionária mudança produzida na cultura; no entanto, é a radicalidade da mudança que

abre a autêntica possibilidade da solução. A crise não nasce justamente porque os moldes

culturais se romperam, tornando-se opacos à experiência originária? Nesse momento, ou se

repensa a experiência originária ou se continua sem perceber seus reflexos naquela cultura

determinada. Já não basta o “prolongamento horizontal” da tradição,445 sendo necessária uma

“verificação vertical”, ou seja, “buscar o contato com a experiência fundante, para configurá-

441 Até a linguagem precisa ser “re-feita”: “cada vez que, por exemplo, falamos de Deus como um ser que interfere na casualidade empírica, cura uma enfermidade ou faz alguém ser aprovado em um exame, por melhor que seja nossa intenção subjetiva, nós o estamos reduzindo à categoria de ser mundano. Toda a linguagem acerca dos milagres [...], grande parte de nossas orações precisa, neste ponto, de uma revisão drástica” (TORRES QUEIRUGA, 2003, p. 76). A virada epistemológica nas reflexões de Torres Queiruga parece dar-se a partir de sua pequena obra intitulada “Um Deus para hoje” (1998, original de 1997), onde o autor, instigado por questionamentos anteriores de Manuel Fraijó (1999b, original de 1992), principalmente acerca da idéia de Israel como povo eleito, abandona essa idéia de eleição e propõe uma nova forma de oração para novos tempos religiosos. 442 Para Torres Queiruga (2003, p. 49, ênfase do autor), esse novo paradigma teológico “abre uma perspectiva renovadora e fecunda para a compreensão da revelação como realidade presente em todas as religiões e, até mesmo, em todo conhecimento filosófico que, verdadeiramente, descubra a Deus”. Não se compreende essa afirmação a partir do outro paradigma, “com um Deus distante que necessita intervir em cada ocasião”, ao contrário, ela soaria, não mais como uma heresia, mas como um puro e simples “disparate teológico”. 443 É clara a opção do autor por uma modernidade “adequadamente” encarada, uma razão questionada, não uma razão abandonada; uma razão “fundada” (Descartes), “histórica e aberta à positividade” (Idealismo), sensível a todas as dimensões do real (fenomenologia), intersubjetiva (personalismo e teoria da ação comunicativa), essencialmente ética (Lévinas). 444 Schillebeeckx tinha já expressado que “Fora do mundo não há salvação” (1994). 445 Não se trata de um abandono ou de ignorar a tradição, mas de percebê-la como uma “configuração da experiência fundante no marco de cada tempo, legítima e necessária então, mas ultrapassada para nós” (TORRES QUEIRUGA, 2003, p. 63).

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la nos moldes culturais de nosso tempo,446 da mesma forma que nossos antepassados fizeram

no seu”.447

Essas reflexões de Torres Queiruga, culminando na proposição de um novo paradigma

para a teologia cristã, fundamentam-se na atual realidade cultural-religiosa do mundo. A

vertente religiosa dessa nova realidade cultural, à primeira vista, “oferece um espetáculo

paradoxal” (TORRES QUEIRUGA, 2003, p. 107): de um lado, crise da religião,

desencantamento do mundo, secularismo generalizado, ateísmo rampante; de outro, New Age,

mundo de novo povoado de deuses, religiosidade redescoberta, florescimento renovado da

religiosidade popular etc.448

Frente a essa “proliferação de novas formas de religião, com suas correspondentes

espiritualidades” 449 (TORRES QUEIRUGA, 2003, p. 108, ênfase do autor), há que se

perguntar pela participação do cristianismo nesse processo. Acredita-se, de forma “quase

unânime”, que “o fenômeno responde a uma insatisfação generalizada, que procura preencher

o vazio provocado pelo abandono da religião herdada, em alguns casos, ou pelo

descontentamento com suas formas estabelecidas, em outros”. Aparece, com isso, na

expressão de Torres Queiruga, o “terreno abandonado”, lugar onde o anseio de transcendência

446 Segundo Torres Queiruga (2003, p. 87-88), é a mutação cultural que “nos impede” tomar ao pé da letra um relato bíblico e, ao mesmo tempo, “nos permite” libertar o significado permanente de sua escravidão como respeito ao significante temporal. “O significado jamais existe desnudado, em “estado puro”, mas sempre já traduzido em uma forma concreta”, assim como o corpo que está vestido de tal ou qual forma. Perceber, por exemplo, o relato da Ascensão, não como um subir na atmosfera, já significa necessariamente que ele está sendo lido no marco de outra interpretação. A água e sua figura podem simbolizar melhor essa relação: a água terá sempre a forma do recipiente – vaso, garrafa, jarra ou bacia. É impossível haver a água em “estado puro”. 447 Torres Queiruga (2003, p. 97) afirma que “a partir do novo paradigma tudo se torna relativamente claro. Mas, enquanto este não é assumido, as dificuldades se multiplicam, porque a nova situação é julgada a partir dos pressupostos da antiga e então, efetivamente, a proposta é tida como inaceitável”. Somem-se a isso as resistências no interior do paradigma anterior em face da proposição e surgimento do novo, como bem lembrou Kuhn (1976). Em outra parte desta pesquisa (capítulo I, item 3) foram detalhadas as reflexões de Kuhn acerca dos paradigmas e suas mudanças. 448 Torres Queiruga (2003, p. 107) diz sentir necessidade de um mínimo de clareza em meio a essa ‘confusão’, para que se possa compreender aos demais e para situar ou re-situar corretamente a própria postura. 449 Fato tão notório, tão influente e tão maciço, que suscitou e continua suscitando numerosos estudos, segundo Torres Queiruga (2003, p. 107-108). O que lhe interessa, teologicamente falando, “é analisar as causas [...] especificamente em relação ao cristianismo”.

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é sentido e não encontrou uma resposta satisfatória. Esse terreno poderá, então, ser ocupado450

“por uma das múltiplas formas que hoje oferece o mercado religioso ou pára-religioso”.

Torres Queiruga (2003, p. 108) quer, frente a essa nova situação religioso-cultural, não

apenas constatá-la historicamente, tampouco assumir uma atitude beligerante com relação a

ela, mas estudá-la atenta e compreensivamente, analisando as causas dessa insatisfação em

sua referência específica ao cristianismo. Tal atitude pode possibilitar a consecução de “dois

objetivos fundamentais”, segundo o autor:

a) ver o que tais manifestações podem ensinar como sintomas de possível insuficiência

na resposta cristã;

b) captar o que há nelas de chamada e desafio para uma necessária renovação, isto é, para

a busca de um cristianismo que se queira viver à altura de seu tempo.

Para que se consiga isso, faz-se necessário, segundo Torres Queiruga (2003, p. 109),

um enquadramento do fenômeno descrito: ele se encontra dentro do processo da cultura

ocidental; é aí que ele se faz sentir com toda a sua força. De forma mais concreta ainda, “é

preciso situá-lo no marco preciso da crise aberta pela entrada da Modernidade. Foi nela, com

efeito, que teve origem a mudança radical que determina a situação de nosso momento”.

Como o processo é por demais complexo, continua o autor, faz-se “indispensável

esquematizar” ainda mais, ao máximo, para que se consigam “linhas de força fundamentais”.

“E também aqui existe, de início, um consenso quase unânime: o marco geral se configura na

dialética entre modernidade e pós-modernidade”.451

O confronto entre a modernidade e o cristianismo pode ser explicado, segundo Torres

Queiruga (2003), pela “estreiteza dogmática” que se apoderou de ambos. A realidade histórica 450 O autor, na verdade, utiliza o termo “acolhido”, e não “ocupado”. Esse foi integrado ao texto no sentido de dar continuidade à simbologia do “terreno abandonado” e, também, porque o que parece acontecer nesse disputado mercado religioso de oferta e procura é mais “ocupação” que “acolhida”. 451 Torres Queiruga parece relutar um pouco em chegar à afirmação de que o atual momento vivido cultural e religiosamente é denominado pós-modernidade; no entanto, corajosamente o faz, sem todavia, como já exposto em nota anterior, afirmar a pós-modernidade como um novo paradigma, vendo nessa uma “mudança radical” (TORRES QUEIRUGA, 2003, p. 109) percebida dentro da Modernidade.

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presente oferece a oportunidade para uma visão de conjunto que propicie um diálogo realista,

uma atitude mais compreensiva e dialogante. Afinal, um cristianismo que pretenda ser crível

não se pode encerrar em uma simples “reação apologética”.

Muito colaborou para essa nova atitude o próprio processo cultural, ao desmascarar os

excessos, quebrar as ilusões absolutizantes, obrigar a um maior comedimento nas expectativas

e a uma maior cautela nas críticas. Em meio à crise do Ocidente, floresce uma nova

consciência, que segue os sinais emitidos por Adorno e Horkheimer452 e “onde se enraíza o

significado fundamental da pós-modernidade” (TORRES QUEIRUGA, 2003, p. 111). Advêm

daí suas duas “valências fundamentais”: a negativa, pois, como reação polar diante do

otimismo anterior, assumiu uma postura de renúncia de toda utopia e de toda esperança de

renovação do mundo e da sociedade; a positiva, que se constitui no seu núcleo “mais

verdadeiro” (TORRES QUEIRUGA, 2003, p. 112), pois propiciou a percepção de novos

valores. Além disso, no âmbito do individual, “suscitou, ou ao menos avivou, a revalorização

do pequeno, a tolerância para com o diferente, a desabsolutização do estabelecido, o novo

apreço do corpo, a revitalização da experiência etc.”. Na expressão de Torres Queiruga, algo

mais ainda, no plano coletivo, abrindo o sentido para a captação e vivência de uma nova

universalidade, “que busca sua expressão através de uma espiritualidade centrada na harmonia

com a natureza, em um ‘nova aliança’ com o cosmos e em uma fraternidade de escala

humana, sem credos exclusivistas e sem imperialismos culturais”.453

Torres Queiruga (2003, p. 115-116) percebe que são dois os pólos que estruturam o

campo de forças e organizam a “riquíssima polifonia” desse ainda por demais complexo e

confuso, mas “autêntico universo religioso-cultural”: a) a busca da fraternidade, universal e

452 Os autores dissecam o Iluminismo, pondo a descoberto sua dialética. Cf. ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. La dialéctica de la ilustración. Madri, 1994. É aí o lugar onde se inspiram muitas das reflexões pós-modernas. 453 As proposições de Küng (como se viu no item anterior) passam justamente por essas mesmas coordenadas. Esta “fraternidade de escala humana” propalada por Torres Queiruga (2003, p. 112), em Küng (2001), é traduzida por “projeto de ética mundial”.

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concreta, num impulso “‘holístico’” de abertura à totalidade; b) a busca intensa de experiência

do Absoluto e de comunhão mística com ele (ou isso454), de sorte que todas essas relações se

vivam como sua manifestação mais ou menos transparente.455

Uma síntese da síntese poderia ser arriscada, no dizer de Torres Queiruga (2003, p.

116), no sentido de se concretizar o que foi expresso:

1) A Modernidade ‘descobre’ a nova densidade do mundo como tarefa exaltadamente humana. O choque inevitável com seus limites fez renascer a nostalgia de uma plenitude distinta. Mas esta não termina por reconhecê-la no Deus da religião estabelecida. 2) A Pós-modernidade “religiosa”, partindo dessa abertura, se difrata em múltiplas formas, em busca de uma vivência de fraternidade que abrace todo o real e leve a uma experiência atual do Absoluto. Seu maior perigo enraíza-se na evasão esotérica e descomprometida, em um apersonalismo que tende a regressar às limitações de uma religião meramente cósmica e natural. Nesse caso, se perderia o melhor da modernidade, convertendo-se em restrição que desativa o irrenunciável deste protesto contra a injustiça.

Frente a essas possibilidades religioso-culturais, o cristianismo, numa encruzilhada,

pode escolher entre dois caminhos: o da reação apologética ou o da criatividade histórica. O

primeiro, seja nas formas duras dos fundamentalismos, seja nas mais brandas do

endurecimento institucional, buscando “cerrar fileiras” em torno do “pequeno rebanho”, seria,

na opinião de Torres Queiruga (2003, p 117), um caminho por demais equivocado. Ele

colocaria o cristianismo a salvo dos desafios do mundo, no entanto, sob o preço de ocultar sob

a mesa a luz que deveria brilhar para todos no cume da montanha da nova cultura.

Uma reação, para ser crível, necessariamente, terá que tomar o segundo caminho, o da

criatividade histórica, deixando-se honestamente questionar, renovando o contato com suas

raízes, mostrando-se disposto à mudança e à renovação: “à ‘conversão’” (TORRES

454 Torres Queiruga tem o cuidado de não personificar ou pessoalizar esse Absoluto, sabedor das dificuldades daí advindas. 455 Segundo o autor (2003, p. 116), advém desse segundo pólo o recurso às tradições esotéricas e mesmo àquelas dos grandes místicos mas, sobretudo, o contato com as religiões orientais.

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QUEIRUGA, 2003, p. 117). Adentrando esse caminho, o cristianismo precisará dar respostas

diferenciadas às duas etapas do desafio global: a modernidade e a pós-modernidade.

A primeira resposta, à modernidade, pôde ser mais elaborada, dado que “um longo e

duro caminho” foi trilhado, além do que essa oferece uma figura relativamente clara de sua

configuração (TORRES QUEIRUGA, 2003, p. 18-19). Dessa maneira, uma nova situação foi

criada. No plano teórico, mesmo sendo impossível a unanimidade, dado o enorme pluralismo

que caracteriza a cultura atual, abandonou-se o terrível fechamento da fortaleza escolástica, o

que propiciou a abertura à crítica histórica e o reconhecimento da legitimidade das novas

filosofias – desde as transcendentais até as hermenêuticas. Com isso, foi possível abrir

caminho rumo à Transcendência e para atualizar a inteligibilidade da fé.456 No plano prático,

chegou-se às visões integrais que oferecem as diversas teologias políticas e da libertação, aí

incluída a feminista, não antes de passar por teologias parciais como a do trabalho ou das

realidades terrestres, além de ter sofrido marcação cerrada da secularidade. Os dois planos,

teórico e prático, foram acompanhados da gestação de uma nova espiritualidade, 457 inerente

ao compromisso libertador da fé.

A segunda resposta (s), à pós-modernidade, uma situação ainda em “plena ebulição

atual” (TORRES QUEIRUGA, 2003, p. 119-120), não permite tanta nitidez quanto a anterior.

No entanto, as respostas estão acontecendo, “de um modo mais intenso e plural do que é

possível suspeitar, pois o próprio fato de o cristianismo estar sendo vivido nesta situação

significa que, de algum modo, estão sendo dadas respostas reais”. Torres Queiruga (2003, p.

120) acredita que “ter fé hoje é, no final das contas, ser, em alguma medida, ‘cristão pós-

moderno’”. Levam essa marca, “sem sombra de dúvida”, mesmo que não sejam reflexo

456 Esse é o objetivo básico e fundamental das reflexões de Hick (como se verá no próximo item): falar teologicamente às pessoas de hoje numa maneira inteligível; daí sua proposição de um olhar metafórico. 457 Claramente visível, segundo Torres Queiruga (2003, p. 119), “nos esforços de renovação querigmática, litúrgica e pastoral, assim como na vivificação da dogmática”.

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imediato, os “movimentos carismáticos de diferentes matizes”, “certos aspectos das próprias

comunidades de base” e a “acentuação do fenômeno dos ‘cristãos sem Igreja’”.458

Mesmo recente, uma reflexão explícita foi surgindo nesse novo contexto, descobrindo

profundas afinidades entre o cristianismo e aspectos importantes do novo clima. De um lado,

através do “enlace com a tradicional ‘teologia negativa’” 459 e, de outro, detectando aqueles

“pontos nos quais as novas inquietudes ressoam na consciência cristã” 460 (TORRES

QUEIRUGA, 2003, p. 120).

Mardones461 sintetiza bem a forma desse ressoar na consciência cristã:

Sede de experiência de Deus, necessidade de mistério, busca do contato com ‘homens espirituais’, de expressar de maneira nova a presença do Espírito, desejo de novos sinais e sacramentos, superação do moralismo tradicional e zelote, vivência comunitária, festa como comunhão, religião para o ser humano, valorização das demais religiões.

Segundo Torres Queiruga (2003, p. 121), a resposta da teologia à Modernidade, apesar

de não ser pouco o que se conseguiu, faz-se insuficiente com relação à Pós-modernidade. No

primeiro caso, foram dadas respostas imediatas, mais na base de acomodações e acréscimos

(remendo de pano novo sobre o pano velho), dado o tamanho do calibre dos desafios

modernos. A Pós-modernidade 462 “permite e exige um passo a mais” da consciência

teológica, visto que já foram elaboradas respostas “no fio de desafio fático”. Há que

458 A expressão foi popularizada por KOLAKOWSKI, L. Cristianos sin iglesia. Madri, 1982. Küng (2001, p. 61) atualiza ainda mais a expressão, indo ao encontro de uma tendência atual, ao falar das “pessoas não-religiosas e pessoas não-crentes, porém religiosas”. Um termo mais atual e bastante utilizado nas Ciências Sociais é “sem religião”. 459 Principalmente a desabsolutização do estabelecido, a crítica dos ídolos, a valorização do pequeno e marginal. 460 Um ressoar feito um chamado a reencontrar-se com potências e latências que germinam em seu seio. 461 MARDONES, J. M. Las nuevas formas de religión. Estella, 1994. p. 177. Cf. também deste autor: Postmodernidad y cristianismo: el desafio del fragmento. Santander, 1998. 462 Na compreensão de Torres Queiruga (2003, p. 121, ênfase do autor), vive-se hoje “a perspectiva que se ganhou com o passar do tempo, com o sentimento generalizado de culminação de uma etapa [“primeira modernidade” (TORRES QUEIRUGA, 2003, p. 122)] e inauguração de outra – a isso aludem, sem dúvida, tanto os prefixos pós (pós-modernidade, pós-cristianismo) como os qualificativos de novidade (nova era, novas religiões, nova espiritualidade)”.

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“empreender um repensamento mais claramente de princípio”, “um repensar verdadeiramente

sistemático”.

Torres Queiruga (2003, p. 121) afirma que “já passou o tempo da acomodação ou do

simples ajuste” (remendo de pano novo sobre o pano velho), pois a nova etapa evidencia a

“necessidade da mudança”, uma “resposta de conjunto” (odres novos para o vinho de um

tempo novo), enfim, numa terminologia mais atual, ‘se impõe uma mudança de paradigma”.

O autor (2003, p. 122) a expressa como uma “hipótese de trabalho”: “a intuição básica capaz

de contribuir hoje para a articulação de um novo paradigma da espiritualidade humana é a do

Deus que cria por amor”.

Esse novo paradigma se desdobra em “três eixos” (TORRES QUEIRUGA, 2003, p.

122-127):

a) O eixo da criação: esse eixo se “aviva” 463 diante do grande desafio da “primeira

modernidade”, ao insistir em que “a criação se realiza única e exclusivamente por amor às

criaturas, permite ver a Deus como afirmação infinita do ser humano e de seu mundo”. Assim,

junto com a Modernidade, cujas grandes inspirações são a realização humana e a

transformação do mundo, o Deus Criador promove a criatura, alegra-se com cada avanço

autêntico dela, longe de substituir sua ação, “cria criadores”;464

b) o eixo da salvação: nesse eixo, apresenta-se uma dupla resposta. De um lado, à primeira

modernidade, com sua afirmação positiva e otimista, e, de outro, à sua segunda etapa, a pós-

modernidade, com sua crise provocada pelo duro choque com os limites e as contradições do

progresso, que deixa um rastro terrível de “‘vítimas’” que a história jamais poderá redimir.

463 “No duplo sentido de ser questionado e, por isso mesmo, de se mostrar capaz de responder” (TORRES QUEIRUGA, 2003, p. 122). 464 Expressão tomada de empréstimo a GESCHÉ, A. L’homme créé créateur. Revue Théologique de louvain, n. 22, p. 153-184, 1991.

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Para dar essas respostas, o cristianismo se assumiria, de um lado, como a “religião da cruz” (a

inevitabilidade humana do mal que, no entanto, não tem a última palavra) e, de outro, como a

“religião da ressurreição” (Deus acolhendo a “finitude infinita” e transformando em

“infinita”, resgatando todas as vítimas).465 Há que se repensar, no entanto, a versão “vitimista”

da cruz, que “empana a ressurreição e deforma a visão dos dois grandes mistérios que

encontram sua luz definitiva no destino de Cristo: o mal da criatura e sua salvação por Deus”.

Pela salvação, simbolizada na cruz e ressurreição,466 o cristianismo, de um lado, “pode

recolher o mais autêntico da modernidade, evitando as conseqüências terríveis que foram o

preço de suas ilusões”, e, de outro, “imped[...][ir] que se caia na pura decepção de uma pós-

modernidade desmobilizadora”;

c) O eixo da revelação: a continuidade entre criação (primeiro eixo) e a salvação (segundo

eixo) prolonga-se na revelação (terceiro eixo). O criador não é um “‘fazer’” que desprende de

si o produto, mas sim uma “creatio continua”, que o suscita e apóia, sempre e em cada

instante. Por isso, “Deus é presença sempre atual que sustenta, promove e habita a sua

criatura”.467

Uma revelação assim repensada permite atualmente a assimilação de alguns dos

valores fundamentais da sensibilidade pós-moderna, ora apoiando-a – naquilo que ela tem de

mais positivo –, ora questionando-a – para não sucumbir aos demônios que ameaçam deitar

fora suas conquistas. A situação poderia ser assim colocada:

465 O que tornaria, inclusive, o cristianismo, uma religião singular entre todas as demais. O autor (2003, p. 125) faz a comparação com o islamismo, onde, pela soberania triunfante de Alá, não há lugar para a cruz e o fracasso da história (no Alcorão, Maomé, como todos os profetas, sai sempre triunfante; mesmo Jesus tem uma morte aparente). 466 Há que se fazer “uma leitura atualizada e não fundamentalista da cruz e da ressurreição de Jesus” (TORRES QUEIRUGA, 2003, p. 248). 467 Agostinho já o notara: “interior intimo meo et summior summo meo” (“Mais íntimo que nossa maior intimidade e mais elevado que nossa maior altura”). Cf. suas Confissões III, 6, 11 (CSEL 33, 53).

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a) Primeiro aspecto: o que tem sido caracterizado com o qualificativo débil.468 É a renúncia

das grandes idéias, das grandes narrativas e dos grandes sujeitos, com a correspondente

valorização do humilde. Não há como negar, afirma Torres Queiruga (2003, p. 128), que está

“irremediavelmente rompida a ilusão totalitária”. A consciência cristã, contudo, “nos diz que

nem por isso temos de nos tornar prisioneiros da pura finitude”. Isso se torna possível, “uma

vez que Deus habita tudo, que é ‘o Todo no fragmento’”.469

b) Segundo aspecto: a revelação bíblica parece capaz de mostrar sua genuína entranha

experiencial. Nesse aspecto, confluem os resultados da crítica ocidental da Bíblia com o apelo

oriental à experiência do Absoluto. De um lado, ao romper com o “fundamentalismo da letra”

(TORRES QUEIRUGA, 2003, p. 129), a crítica ocidental da Bíblia faz perceber que a

revelação não é um “‘ditado literal’”, caído do céu como um aerólito já perfeitamente

acabado, senão que se realiza em e através do lento, duro e sinuoso trabalho da subjetividade

humana (maiêutica histórica). De outro, o apelo do Oriente ajuda a reconhecer que a vivência

da revelação – apesar de difícil, profunda e nunca perfeitamente objetivável – é experiência

real e verdadeira. Nesse sentido, o contato com a religiosidade oriental se faz “necessário”.470

468 Expressão bastante refletida pelo filósofo italiano Gianni Vattimo. Cf. VATTIMO, Gianni. Acreditar em acreditar. Lisboa: Relógio D’Água, 1998. Em Vattimo, “pensamento débil” refere-se ao pensamento da diferença, em primeiro lugar, pela própria tentativa de experimentar algo diferente da tradição. Em segundo lugar, por sua tentativa de radicalizar a idéia heideggeriana de “diferença ontlógica”, ou seja, a idéia de que o ser se subtrai essencialmente de tal modo que qualquer tentativa de busca de um fundamento último contradiz a dinâmica do ser. O pensamento débil é uma certa forma de niilismo. Cf. também VATTIMO, Gianni. Depois da cristandade: por um cristianismo não religioso. Rio de Janeiro: Record, 2004. 469 No que toca à relação humana, “todo homem ou mulher – incluídos os pobres e os leprosos, os marginalizados pelo progresso, os imigrantes e os indocumentados – adquire a íntima presença do ‘próximo’” (TORRES QUEIRUGA, 2003, p. 128). 470 Torres Queiruga (2003, p. 130) afirma que “seria mesquinho sucumbir a um particularismo provinciano e não ver o enorme potencial de profundidade e amplitude que aqui se nos oferece”. Comprovação disso é a enorme importância que vem adquirindo o diálogo das religiões, que deverá criar novos e inéditos modos para o encontro. “Não é mais cabível pretender impor aos demais a própria verdade”.

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c) Terceiro aspecto: a reação pós-moderna, em sua insatisfação com as respostas

institucionalizadas, gerou essa espiritualidade que, ao menos, através do Oriente, explicita

algum tipo de referência religiosa. Mas algo além disso. Uma outra pós-modernidade, mais

difusa, “‘fora das fronteiras’” de todo credo e de toda igreja, possibilita, também, uma

vivência simplesmente não religiosa. Mesmo aí também não é difícil descobrir uma presença

real do espírito, nesse caso, “acolhido sem nome nos lábios”, mas com eficácia na realização

das obras. Pode-se encontrar aí uma busca de novos caminhos mais compreensíveis e, até

mesmo, mais justos para com as aspirações íntimas de “um tempo tão duramente

escarmentado de dogmatismos cerrados e exclusivismos intolerantes” 471 (TORRES

QUEIRUGA, 2003, p. 134).

A situação descrita aparece em seu dinamismo fundamental, segundo expressão de

Torres Queiruga (2003, p. 135), como um “processo de trânsito”,472 momento em que o velho

já não serve mais e o novo ainda carece de figura. As proposições, essas e outras, devem,

então, ser recebidas como “buscas, às apalpadelas, de novos caminhos, uma vez enfraquecidas

ou esgotadas a eficácia e a ilusão dos antigos”.

471 Torres Queiruga (2003, p. 134) afirma que reconhecer isso não implica em indiferença ou relativismo. Isso por dois motivos: 1) essas considerações remontam ao próprio Jesus; 2) reconhecer o Espírito em ação para além das barreiras institucionais, longe de equivaler ao relativismo do “‘tudo é a mesma coisa’”, “o que faz é ‘relativizar’ nossas estreitezas a partir do respeito e da abertura ao Mistério que ultrapassa a todos”. 472 O que Amor Ruibal descrevia como “fase de elaboração”. Cf. dele Los problemas fundamentais de la filosofia y el dogma. Santiago, 1914. 10 v.

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2.3 John Hick: a metáfora do Deus encarnado473

Hick não faz explicitamente qualquer relação, na obra ora analisada, 474 com a pós-

modernidade. Esta pesquisa infere, a partir do âmago dessas suas reflexões, sua proximidade

com as possibilidades pós-modernas. Faz-se necessária, então, a explicitação dos fundamentos

de sua reflexão na obra em pauta.

Hick (2000, p. 9-10) inicia suas reflexões esclarecendo quais são as linhas gerais e

fundamentais que norteiam sua compreensão acerca da figura central do cristianismo:

Jesus.475 Essas linhas mestras são apresentadas como “argumentos” da “alternativa”

apresentada por ele à tradicional compreensão cristã de Jesus de Nazaré,476 compreensão essa

que gera conseqüências para o relacionamento com as demais religiões.

A tradição cristã compreende Jesus, o Cristo, como Deus encarnado [que] tornou-se

homem a fim de morrer pelos pecados do mundo e fundou a Igreja para proclamar esse

desígnio. Conseqüentemente, se Jesus “de fato foi Deus encarnado, o cristianismo é a única

religião fundada por Deus em pessoa e deve, como tal, ser incomparavelmente superior a

todas as outras religiões” (HICK, 2000, p. 9).477

473 Esta parte específica da pesquisa, que traz à luz uma obra específica de Hick (2000), quer, sem fugir às regras metodológicas científicas, evitar repetições redundantes e desnecessárias. Logo, onde não houver menção expressa a um autor diferente ou não se configurar expressão pessoal do autor desta pesquisa, a autoria é de Hick. 474 HICK, John. A metáfora do Deus encarnado. Petrópolis: Vozes, 2000 (original de 1993). Possíveis referências e/ou citações de outras obras do autor estarão sempre em notas de rodapé. 475 Hick (2000, p. 16) afirma que fará referência a essa importante figura histórica como “Jesus” ou “Jesus de Nazaré”, “pois tão logo acrescentemos o termo ‘Cristo’ nos envolvemos em suas ambigüidades”. 476 A teologia hoje, afirma Hick (1995, p. 16), “precisa de revisões. Pois não resta dúvida de que a função da teologia é interpretar os fatos corretamente, e não ser um instrumento cujo objetivo está em ignorá-los ou contradizê-los sistematicamente”.

477 Hick (2000, p. 21-24) esclarece que o que esbarra na crítica e nos novos tempos não é a palavra “encarnação”, ou seus vários possíveis significados, mas o sentido particular adotado pela igreja nos concílios de Nicéia (325 d. C.) e Calcedônia (451 d. C.). Seis sentidos foram cuidadosamente distinguidos por Coakley (1988), a partir dos quais tornar-se-ia possível a afirmação de que uma teologia é encarnacional: a) uma teologia encarnacional é aquela que afirma o envolvimento de Deus na vida humana (segundo Hick (2000), não questionável, pois serve a

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A alternativa apresentada por Hick a essa tradicional compreensão478 está estampada

no título dessa sua obra: “A metáfora do Deus encarnado”: olhar a encarnação como uma

metáfora específica ao cristianismo.479 Seus argumentos (2000, p. 9-10) são:

1) Jesus não ensinou aquilo que se tornaria a compreensão cristã ortodoxa a seu respeito; 2) o dogma das duas naturezas de Jesus, uma humana e outra divina, demonstrou sua incapacidade de ser explicado de maneira satisfatória; 3) historicamente, o dogma tradicional foi utilizado para justificar grandes males humanos; 4) a idéia de encarnação divina é melhor compreendida como idéia metafórica, e não literal – Jesus incorporou, ou encarnou, o ideal da vida humana vivida em fiel resposta a Deus, de sorte que Deus foi capaz de agir através dele, e que ele, por conseguinte, foi a corporificação de um amor que é reflexão humana do amor divino; 5) podemos concretamente considerar Jesus, assim entendido, como nosso Senhor, como aquele que tornou Deus real para nós e cuja vida e ensinamentos nos desafiam a viver na presença de Deus; e 6) pode-se considerar um cristianismo não tradicional, baseado nessa compreensão de Jesus, como uma entre as diferentes respostas humanas à Realidade transcendente última que denominamos Deus, podendo servir melhor ao desenvolvimento da comunidade mundial e da paz mundial do que um cristianismo que continua a ver a si mesmo como o lócus da revelação final e o portador da única salvação possível para todos os seres humanos.

todas as religiões); b) uma teologia cristã pode ser encarnacional no sentido de se poder declarar que, na vida de Jesus, Deus esteve envolvido de uma maneira particular e especialmente poderosa e efetiva, sem que se reivindique para ele qualquer exclusividade da revelação, preexistência, plenitude etc. (sentido tampouco questionado por Hick); c) a encarnação pode significar, num passo significativo para além dos anteriores, que Cristo, preexistente a seu nascimento terreno (geralmente como Logos), assumiu a carne (aqui se dá o início dos questionamentos de Hick); d) a encarnação pode significar, num salto ainda maior que o anterior, uma interação total do divino e do humano em Cristo, numa completa autodoação de Deus, configurando uma revelação divina quantitativamente superior a outras porque, aqui, Deus se dá plenamente – plenamente Deus e plenamente homem (Hick recomenda que esse sentido deixe de ser usado); e) indo ainda mais longe, uma teologia encarnacional pode estipular que Jesus foi e será a única encarnação divina no sentido anterior, significando que cristo se encontra em uma categoria distinta de todas as outras formas de revelação, sendo, por isso, qualitativamente superior a todas as outras, não podendo jamais ser superada (Hick propõe que esse sentido seja descartado); f) por fim, outro sentido (também descartado por Hick), eclesiasticamente definido, equipara a cristologia encarnacional com a cristologia do concílio de Calcedônia, de forma que o assentimento à crença na encarnação torna-se ao mesmo tempo assentimento à linguagem da metafísica da substância – expressa nos termos physis, hypostasis e ousia. Essas idéias não são mutuamente excludentes, pelo contrário, cada idéia posterior inclui as anteriores, numa escala ascendente. O que diferencia as diversas cristologias é “uma diferença relativa ao ponto em que os teólogos crêem que a progressão já foi tão longe quanto deveria”. A cristologia de Hick cessa, segundo sua afirmação, no segundo sentido, enquanto uma versão tradicionalmente ortodoxa vai até o quinto sentido e, às vezes, mas em um número decrescente de casos, até o sexto sentido. 478 Essa é a ortodoxia padrão e é expressa através da quinta idéia (sentido) de encarnação (letra “e”) exposta em nota de rodapé acima: Jesus de Nazaré foi o filho divino ou o Logos preexistente vivendo uma vida humana. Como tal, ele era plenamente Deus e plenamente homem, de sorte que “nele toda a plenitude da divindade habita em forma corpórea” (Col 2, 9); e ele foi o único ser humano que já foi ou será Deus encarnado. 479 Em suas palavras (2000, p. 25): “a principal conclusão do livro, embutida em seu título, é que a idéia de encarnação divina em sua forma cristã-padrão, na qual se insiste tanto na humanidade genuína como na divindade genuína, nunca recebeu um sentido literal satisfatório; por outro lado, porém, conclui-se que proporcionou um excelente sentido metafórico”.

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O ponto de partida de Hick (2000, p. 11) é o atual mundo teológico cristão situado,

segundo ele, no “ponto móvel de flexão”480 entre a estrutura de crença cristã de muitos

séculos “e a nova estrutura, ainda em formação,481 de um cristianismo consciente de si mesmo

enquanto uma resposta válida, entre outras existentes, à realidade transcendente infinita que

chamamos Deus”.482

A consciência da existência de outras respostas válidas, além do cristianismo, à

realidade transcendente adveio de uma maior sensibilidade no que toca à variedade de

culturas e religiões na humanidade, proporcionada por uma nova consciência global. Alguns

fatores, segundo Hick (2000, p. 20), foram decisivos para isso: a) explosão de informações

sobre as religiões do mundo ocorrida no século vinte; b) movimento de expansão de viagens

pelo mundo desde a Segunda Guerra Mundial; c) imigração em larga escala para o ocidente a

partir de áreas muçulmanas, hindus, sikhs, budistas, taoistas e confucianas.

Dessa forma, foi possível perceber paulatinamente que: a) aquilo que a fé cristã é para

o cristão devoto, a fé islâmica é para o muçulmano devoto, a fé budista para os budistas

praticantes, a fé hindu para os hindus dedicados, e assim por diante; b) a religião a qual

alguém adere (se é que isso venha a acontecer) normalmente depende do mero fato acidental

do nascimento (no Irã, muçulmano, no México, cristão católico etc.); c) quando se conhece

480 “Ponto móvel de flexão” (HICK, 2000, p. 11) entre duas diferentes gerações (HICK, 1995, p. 8): uma que foi criada à própria imagem da religião, formada em sua tradição, sendo, nesse caso, para essa geração, “óbvio que ela [sua religião] é correta / verdadeira / normativa / superior a todas as outras. Mas essa obviedade normalmente não depende de evidências e argumentos, nem será facilmente abalada por evidências e argumentos contrários”; por outro lado, “parece provável que, no Ocidente em grande medida pós-cristão, nós estejamos entrando numa nova era na qual os jovens não são tão fortemente formados por uma tradição a ponto de assumir sem questionamento a sua verdade. E não obstante, continua a haver um alto nível de interesse, a maior parte dele fora das igrejas, nas questõs profundas acerca do significado da nossa existência”. 481 Segundo Hick (2000), uma nova autocompreensão cristã vem sendo buscada de várias maneiras desde os dois últimos séculos, devido às modificações que vêm ocorrendo na consciência humana. 482 Também bastante importante no arcabouço estrutural reflexivo de Hick (2000, p. 18), e que serve como o motor de arranque de suas conclusões teológicas, é a sua crença de que “a teologia é uma criação humana” e, por isso, “não se pode supor, razoavelmente, que doutrinas teológicas sejam imutáveis. Na verdade, o corpo doutrinal tem estado em desenvolvimento, às vezes mais lenta e outras vezes mais rapidamente, por toda a história cristã”. Um exemplo importante, e também relevante para os seus argumentos, é, segundo Hick, o adágio extra ecclesiam nulla salus que “por mais de mil anos subsistiu como um dogma cristão firme” sendo que “bem poucos católicos, porém, sonhariam em afirmar isso hoje, e a maioria dos que são indagados a respeito do assunto o consideram apenas embaraçoso”.

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283

um pouco mais os adeptos seriamente praticantes das religiões,483 não se constata neles

intenção menos sincera em viver em obediência às suas realidades transcendentes, nem que

sejam menos amorosos e compassivos para com outros seres humanos, nem menos honestos,

verdadeiros, generosos ou solícitos do que cristãos seriamente praticantes; d) um olhar aos

grandes santos das tradições religiosas mostra que não causam menor impressão que os

grandes santos cristãos; e) ao estudar suas escrituras sagradas e sua literatura teológica,

filosófica e mística, não se constata superioridade nos equivalentes cristãos; f) as longas

histórias das grandes tradições e as civilizações construídas sobre elas estão, sem exceção,

eivadas de grandes bênçãos e males horripilantes.

Hick (2000, p. 27) acredita que se vive atualmente, de maneira crescente, uma “época

cristã pós-tradicional”. Nela, abre-se a possibilidade da vivência de um “cristianismo não-

tradicional”484 que “não deve considerar-se como a única ‘religião verdadeira’, mas sim como

um caminho espiritual autêntico entre outros, aberto a influências da experiência religiosa

mais ampla da humanidade”.

Delimitadas, nessa obra de Hick, as condições sob as quais se desenvolvem suas

premissas filosófico-teológicas, assim como esclarecida de antemão sua tese central, cabe um

retorno aos seus argumentos, já delineados esquematicamente acima.

1) Jesus não ensinou aquilo que se tornaria a compreensão cristã ortodoxa a seu respeito.

Hick (2000) parte do pressuposto de que, mesmo em se tratando da cristologia – “a

área mais controversa de todas” (HICK, 2000, p. 27) –, “existe uma área de consenso modesta

mas significativa” (HICK, 2000, p. 28). E ela começa com uma distinção entre o Jesus de 483 Hick (1995, p. 12) diz que: “gostaria, contudo, de enfatizar a expressão ‘povos de crenças diferentes’, pois irei sugerir que a maneira de avançar nessa área que tanta perplexidade nos causa deve ser encontrada mediante um exame que se dirige, em primeiro lugar, às vidas reais de pessoas situadas dentro dos contextos de nossa própria tradição e de outras tradições”. 484 “Uma fé cristã intelectualmente honesta e realista pode ainda ser capaz de falar ao profundo interesse e preocupação religiosos que existem, tão fortes como nunca, entre uma população ocidental que há muito tempo deixou de cativar-se pela religião tradicional e institucional”.

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Nazaré histórico e o desenvolvimento pascal. A moderna pesquisa neotestamentária trabalha

com a premissa de que somente se tem acesso ao primeiro através do segundo.

Há que se olhar, então, para as comunidades cristãs pós-pascais e suas memórias que

por sua vez, em certos casos, talvez já sejam memórias de memórias. Com relação aos textos

escritos, mesmo os mais antigos, nenhum de seus autores foi testemunha ocular dos principais

acontecimentos que retratam: algumas cartas de São Paulo (aproximadamente 20 anos após a

morte de Jesus, em torno do ano 50), o evangelho de Marcos (em torno do ano 70) e o restante

durante os 30 anos seguintes ou mais, até se chegar ao final do século I.

As memórias de “primeira mão” (HICK, 2000, p. 30) acerca de Jesus foram

“preservadas, peneiradas, desenvolvidas, distorcidas, aumentadas e embelezadas” de diversas

maneiras e fatores.485 Kee (1990, p. 90) é claro nesse sentido ao explicitar que “neste período

os historiadores não estavam simplesmente interessados em relatar acontecimentos do

passado, mas vislumbravam seu papel na atividade de prover o sentido daqueles

acontecimentos passados para os leitores do presente”.

As dificuldades parecem claras: interpretar textos religiosos que em si mesmos já

refletem fé, idéias, presunções, preconceitos e disputas das comunidades cristãs; além disso,

textos religiosos que foram escritos em um ambiente cultural inteiramente diferente daquele

em que tiveram lugar os acontecimentos originais. Mesmo assim, alguns pontos de

concordância geral podem ser arrolados: a) Jesus era um judeu galileu; b) era filho de uma

mulher chamada Maria; c) foi batizado por João Batista; d) pregava curava e exorcizava; e)

chamou discípulos para si e mencionou que havia doze; f) em grande parte, restringiu sua

atividade a Israel; g) foi crucificado fora de Jerusalém pelas autoridades romanas; h) após sua

morte, os seus seguidores continuaram existindo como um movimento identificável. 485 Entre eles, a tendência universal de exaltar cada vez mais a figura do próprio líder, o deleite do mundo antigo no maravilhoso, uma oposição à vertente principal do judaísmo, do qual a igreja fora separada, uma intensificação da fé devido à perseguição, a polêmica com diferentes correntes da própria comunidade cristã, uma praxe de apresentar os acontecimentos da vida de Jesus como o cumprimento de profecias antigas ou como a exemplificação de temas religiosos aceitos.

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O que passa disso, algo inevitável em se tratando de uma figura que mobiliza tantas

mentes e corações, são interpretações baseadas em conjecturas, imagens mentais que se faz de

Jesus. No caso de Hick (2000, p. 32), a imagem que lhe parece mais importante acerca de

Jesus em termos religiosos é a da sua “consciência forte e contínua de Deus como abba,

‘pai’”. Uma consciência tão extremamente intensa, tão real para Jesus que, em sua presença, o

Pai celeste tornou-se uma realidade viva para muitos de seus ouvintes.486 Essa potente

consciência de Deus foi, evidente e inevitavelmente, estruturada nos termos das idéias

religiosas próprias da cultura daquele tempo. É possível que Jesus estivesse consciente de ser

não somente um profeta mas, provavelmente, de ser o último profeta. Ele “parece ter tido

nítida consciência de que o Fim finalmente estava próximo” (HICK, 2000, p. 34) e de que sua

missão era convocar Israel ao arrependimento, de sorte que estivesse preparado para o grande

dia. Havia a crença, desenvolvida pela igreja, ou talvez presente em Jesus mesmo, de que ele

seria o Filho do Homem aparecendo nas nuvens no grande dia.

Uma outra imagem do imaginário judaico para identificar o profeta escatológico era a

do Messias, só que, nesse caso, é pouco provável que Jesus tenha aplicado essa imagem a si

mesmo, sendo mais provável que a igreja tenha feito essa identificação posteriormente.487

Em suma, vivia-se uma expectativa apocalíptica geral por uma intervenção divina

decisiva na história humana, e isso se refletiu em muitos pontos do Segundo Testamento e,

seguramente, deve remontar ao próprio Jesus.

Um outro ponto com amplo consenso entre os estudiosos das escrituras cristãs refere-

se ao fato de que “o Jesus histórico não reivindicou para si o atributo da divindade, atributo

este reivindicado para ele pelo pensamento cristão posterior: ele não se compreendeu como

486 Como disse Bornkamm (1960, p. 62), “tornar presente a realidade de Deus, eis o mistério essencial de Jesus”. 487 Em Marcos (14, 62), Jesus, perguntado sobre se era o Messias, responde: “Eu sou, e vereis o Filho do homem assentado à direita do Todo-poderoso e vindo com as nuvens do céu”. Nota-se que as duas imagens – Filho do Homem e Messias – haviam mais ou menos se fundido no pensamento cristão, quando os evangelhos começaram a ser escritos. Acerca dessas palavras de Jesus, Schillebeeckx (1979, p. 315) afirma que são “aquilo que a Igreja pós-pascal mais tarde colocou na boca de Jesus”.

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Deus, ou o Deus Filho encarnado” (HICK, 2000, p. 43).488 Essa rocha firme da própria

reivindicação de Jesus durou pelo menos de século V até o final do século XIX, quando os

cristãos acreditavam que Jesus se autoproclamara como Deus filho, a segunda pessoa de uma

trindade divina, que vivia uma vida humana.

Com o desmoronamento dessa outrora sólida base de sustentação do dogma niceno-

calcedônio, os teólogos cristãos, que ainda aderem a ele, tiveram que encontrar uma nova base

para sustentá-lo. E o fizeram, concluindo que a doutrina da encarnação não requer o

conhecimento ou consentimento do próprio Jesus histórico. Supondo-se, afirma Hick (2000,

p. 46-47), por um instante, no sentido de favorecer a argumentação, que isso possa ser

possível e inteligível, uma nova pergunta coloca-se prontamente: “como é possível que a

Igreja saiba algo de tamanha importância a respeito de Jesus, algo que ele mesmo não

sabia?”.489

Faz-se necessária, então, afirma Hick (2000), uma tentativa de compreensão dessa

transição imensamente significativa do Jesus de Nazaré terreno ao Cristo divino da fé.

Inicialmente, há que se considerar a enorme diferença entre o ambiente intelectual do

primeiro século e o do ocidente moderno industrializado, científico e secularizado. Qual era a

compreensão das pessoas do início do século I, quando os discípulos de Jesus o chamavam de

“filho de Deus”? Num mundo em que havia “muitos deuses e muitos senhores” (Cor 8, 5) as

488 Essa evidência levou os historiadores do período a concluir, com um grau impressionante de unanimidade, que Jesus não teve a pretensão de ser Deus encarnado. Atualmente, a concordância é bastante geral a esse respeito, mesmo entre os teólogos mais ortodoxos. 489 Segundo Hick (2000), as tentativas de resposta a essa questão originaram quatro diferentes linhas de raciocínio (todas questionadas pelo autor) que, apesar de aparecerem por vezes separadamente, mais freqüentemente surgem em várias combinações: a) Jesus estava implicitamente consciente de sua divindade e a ensinou também implicitamente; b) não são as próprias palavras e ações de Jesus que autorizam a crença de que ele foi o Deus encarnado, mas, sim, o elástico e, por isso, útil, conceito “evento de Cristo”: faz parte dele não somente a vida de Jesus mas também a formação da igreja e o crescimento de sua fé na divindade de Jesus; c) essa linha de raciocínio, principalmente católico-romana, tem parentesco íntimo com a anterior e afirma que o Espírito Santo concedeu aos discípulos uma compreensão verdadeira de Jesus Cristo e de sua obra e guia a igreja em seu desenvolvimento teológico; d) a última resposta se dá pelo abandono do Jesus terreno em favor do Cristo celestial ou cósmico (na tradição católica) ou Jesus ressurreto experimentado no presente (no protestantismo evangelical), ambos entendidos como o objeto da fé cristã.

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exigências eram muito menores;490 contrariamente, do ponto de vista hodierno, sob a

influência de séculos de pensamento cristão, “seriam necessários milagres de fazer tremer a

terra” (HICK, 2000, p. 60) para que um indivíduo histórico fosse considerado também Deus.

Logo, em vista da elasticidade da idéia de divindade no mundo antigo e no judaísmo do

primeiro século, não é de surpreender que Jesus viesse a ser tido como alguém pertencente à

classe das pessoas divinas. Segundo Hick (2000, p. 63), “surpreendente” seria se “a

metáfora491 hebraica do ‘filho de Deus’ não tivesse sido aplicada a ele”.

Assim, “filho de Deus”, uma metáfora492 amplamente utilizada e prontamente

compreendida no mundo antigo foi tratada pela teologia cristã subseqüente como uma

linguagem de sentido literal. Nesse processo, evoluiu-se da designação honorífica do Jesus

humano como “filho de Deus” – e a seguir mais especificamente como “o filho de Deus”

(com o F maiúsculo suplantando, no devido momento, o f minúsculo) –, até se chegar,

finalmente, após vários séculos de debates, a designá-lo como o Deus Filho, segunda pessoa

de uma Trindade divina (HICK, 2000, p. 65-66).

Foi no concílio de Nicéia, convocado por Constantino em 325, “com o propósito de

restaurar a concórdia na Igreja e no império” (PELIKAN, 1985, p. 52), que a crescente igreja,

na tentativa de explicar suas crenças em termos filosóficos aceitáveis, para a cultura grega e

para si mesma, adota o conceito grego, não-bíblico, de ousia: Jesus, como o Deus Filho

490 Como destaca Dunn (1980, p. 16-17), no mundo romano do período do Segundo Testamento, as palavras “divino” e “Filho de Deus”, e mesmo “Deus”, eram usadas de modo mais ou menos intercambiável. Além disso, heróis eram freqüentemente chamados de “divinos”, sendo que, a partir de Augusto, “divino” tornou-se um termo fixo no culto imperial, “o César divino”. Na outra ponta do espectro , o termo poderia simplesmente significar “pio”, “piedoso”. 491 Rigorosamente, na expressão de Hick (2000, p. 63), a palavra metáfora não caberia para aquele momento, pois é moderna a “distinção entre o uso literal da linguagem e seus vários usos metafóricos e não literais de outra espécie. Na tradição hebraica, o significado de um acontecimento lembrado pessoal ou comunitariamente ou então de uma pessoa encontrada nessas mesmas formas, era prontamente expresso em termos metafóricos e míticos”. 492 Mesmo a última carta de Paulo, aos colossenses (muitos especialistas, inclusive, dividam que seja de Paulo), onde sua linguagem se move na direção da deificação, cabe a pergunta: “o que esta linguagem significou para o escritor e seus leitores no primeiro século?” (HICK, 2000, p. 64).

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encarnado, era homoousios toi patri, da mesma substância que o Pai. Um filho de Deus

metafórico se transforma, assim, no Deus Filho metafísico, segunda pessoa da Trindade.493

Em Calcedônia, concílio de 451, a formulação nicena foi aumentada, mantendo-se a

conceptualidade filosófica: Cristo era “homoousios com o Pai quanto a sua divindade, e ao

mesmo tempo homoousios conosco quanto a nossa humanidade [...], dado a conhecer em duas

naturezas [que existem] sem confusão, sem modificação, sem divisão, sem separação [...]”.

2) O dogma das duas naturezas de Jesus, uma humana e outra divina, demonstrou sua

incapacidade de ser explicado de maneira satisfatória.

Segundo Hick (2000, p. 69-71), o problema não está na linguagem e conceptualidade

antiquadas (ousia e hypostasis, familiar aos círculos educados do século V e durante todo o

período medieval, mas que já deixou faz bastante tempo de ser linguagem corrente), mas no

fato de que, na verdade, “o Concílio apenas afirmou que Jesus foi ‘verdadeiramente Deus e

verdadeiramente homem’, sem tentar dizer como um tal paradoxo é possível”. O que foi

apresentado foi um “mistério”, e não uma “idéia clara e distinta”. Mistério esse não divino,

mas “criado por um grupo de seres humanos que se encontrou em Calcedônia”, numa região

que hoje pertence à Turquia, em meados do século V. Todas as tentativas,494 imediatamente

antes e depois desse concílio, no grande período dos debates cristológicos, de dotar de

significado inteligível a idéia de um Deus-homem, “deixaram de satisfazer os desideratos

básicos de Calcedônia”. Com isso, herdou-se a fórmula original de Calcedônia sem qualquer

significado claramente detalhado ligado à mesma, sendo que o século XX presenciou “um

493 Na expressão de Hick (2000, p. 110, minha ênfase), “a metáfora original da encarnação pode exprimir a resposta distintivamente cristã a Jesus como o mediador da presença salvífica de Deus. Esta resposta tomou corpo em uma vida de discipulado comum, criando assim a comunidade cristã. E a metáfora do filho de Deus faz parte do dialeto familiar privado e idiossincrático desta comunidade. Mas ela não deve ser transformada em um dogma metafísico que supostamente possuiria verdade objetiva e universal”. 494 Essas tentativas, algumas bastante engenhosas, podem ser conferidas detalhadamente em YOUNG, Frances. From Nicaea to chalcedon. Londres: SCM Press; Minneapolis: Fortress Press, 1983 e YOUNG, Frances. The making of the creeds. Londres: SCM Press; Filadélfia: Trinity Press International, 1991.

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sem número de tentativas infrutíferas495 de expressar a essência religiosa de Calcedônia sem

recorrer à tradicional linguagem das duas naturezas”.

3) Historicamente, o dogma tradicional foi utilizado para justificar grandes males humanos.

Hick (2000, p. 111) acredita que cada uma das principais tradições religiosas conheceu

na sua história “grandes males morais perpetrados por seus adeptos”, muitas vezes validados

por meio de um apelo aos ensinamentos oficiais da própria tradição.496 No caso do

cristianismo, exemplos desses males não faltam, causados pela cobiça, crueldade e

preconceitos dos cristãos e não pelo dogma da encarnação, no entanto, “defendidos por meio

de um apelo à idéia da divindade de Jesus”.

a) Anti-semitismo: apesar de não ter começado com o cristianismo, experimentou uma

escalada quando a religião cristã tornou-se a oficial do Império Romano, aumentou

assustadoramente no período medieval, declinou um pouco a seguir, aumentando de novo nos

séculos XIX e XX, quando conheceu uma intensidade verdadeiramente demoníaca com a

tentativa nazista de exterminar a população judia da Europa. Em todos esses momentos, “o

anti-semitismo justificou-se como um tratamento moralmente apropriado daqueles que

haviam cometido ‘deicício’497 ao crucificar o Deus encarnado” (HICK, 2000, p. 112).

495 A principal delas foi a de que se deveria compreender as duas “naturezas” como duas mentes, a mente divina do Logos/Filho e a mente humana de Jesus de Nazaré. Hick (2000, p. 71-86) analisa em detalhes essa tentativa, concluindo que “ela é um excelente exemplo da maneira com que a determinação de fazer sentido a todo custo da idéia da encarnação divina conduz a um emaranhado de conseqüências inadmissíveis”. Outra alternativa, também analisada detalhadamente por Hick (p. 87-110), é a quenose ou auto-esvaziamento divino, idéia bastante antiga, porém moderna quanto à sua utilização com a finalidade de resolver os enigmas criados pelo dogma das duas naturezas. Sobre elas, conclui: “A quenose é uma metáfora vívida para a qualidade de autodoação do amor divino assim como foi revelado em Jesus, e para o amor autodoador a que somos chamados como seus discípulos. No entanto, quando a metáfora é utilizada com a intenção de fazer sentido literal da idéia da encarnação, sugerindo-se que o Deus Filho se despojou de certos atributos seus a fim de tornar-se homem, ela acaba gerando problemas demais para ser aceitável. Essas teorias quenóticas são exemplos [...] de uma boa metáfora sendo transformada em má metafísica”. 496 Na Índia, os ensinamentos védicos relativos ao sistema de castas foram utilizados para justificar o tratamento de milhões de pessoas como párias sem qualquer dignidade; em alguns países islâmicos, punições repulsivamente inumanas foram justificadas por meio de um apelo ao Corão. 497 Foi somente em 1965, no Concílio vaticano II, que a igreja anulou formalmente a acusação de deicídio.

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b) A exploração imperialista ocidental: do século XV ao XIX ocorreu a colonização – com

todas as conseqüências negativas que o termo carrega – européia daquelas partes do planeta

que atualmente compõem o Terceiro Mundo: África, Índia, América do Sul e Extremo

Oriente. Sob a alegação de servir ao senhorio divino de Cristo, o ‘homem branco’ assumia,

como um ‘fardo’, a “sua vocação de assumir o controle dos continentes atrasados para que

estes pudessem se beneficiar do Evangelho salvífico de Cristo e das bênçãos da civilização

ocidental” (HICK, 2000, p. 115).

c) A subordinação social das mulheres: apesar de não ser algo peculiar às culturas cristãs, e

apesar de Jesus ter sido excepcionalmente simpático em relação às mulheres, a igreja como

um todo tomou um caminho patriarcal, de início possivelmente sob a liderança de São Paulo

(“Cristo é a cabeça de todo o homem, e o homem a cabeça da mulher, e Deus a cabeça de

Cristo” – 1 Cor 11,3). Essa é a origem da validação teológica da dominação masculina,

porém, “a relevância específica da doutrina da encarnação torna-se evidente nos debates

acerca da ordenação de mulheres nas Igrejas Católica, Anglicana e Ortodoxa” (HICK, 2000,

p. 119). O Deus-Filho, sendo masculino, encarnou-se como um homem, e não como uma

mulher, portanto, somente os homens podem ser representantes sacerdotais de Deus na terra.

d) A atitude dos cristãos diante de pessoas ligadas às outras grandes religiões mundiais: essa

situação “tem uma conexão ainda mais direta com a idéia do status de Cristo enquanto a

encarnação única da segunda pessoa de uma Trindade divina” (HICK, 2000, p. 119, ênfase do

autor). Durante séculos, e ainda nos dias de hoje, um complexo de superioridade religiosa,

numa medida exageradamente grande, manifestou-se na forma de arrogância, condenação e

hostilidade, afetando as relações entre a minoria cristã da raça humana e a maioria não-cristã.

A conexão com a doutrina tradicional da encarnação é evidente: “Se Jesus foi Deus

encarnado, a religião cristã é única por ter sido fundada por Deus em pessoa” (HICK, 2000, p.

120). Acreditando nisso, a igreja, a comunidade nova e redimida inaugurada por Jesus Deus

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que desceu à terra, saiu à conversão da raça humana à fé cristã. No entanto, essa expectativa

de cobrir toda a terra foi aos poucos sendo arrefecida, sendo que “o quinhão cristão da

população mundial encolheu e provavelmente continuará a encolher. É provável que já no

começo do século vinte e um o Islã venha a tornar-se, em termos numéricos, a maior das

religiões mundiais” (HICK, 2000, p. 120).498 Tentativas de resposta a esse “sério estado de

dissonância cognitiva” foram empreendidas: intensificação da fé fundamentalista,499 de um

lado, e, de outro, mais liberal, “vários epiciclos teóricos se desenvolveram a fim de evitar as

implicações absolutistas do dogma da encarnação”: “fé implícita” e “batismo do desejo” 500

(século XIX), “cristãos anônimos” 501 (século XX) e, mais recentemente ainda, o

inclusivismo,502 representando provavelmente a abordagem mais próxima de atingir um

consenso entre os pensadores cristãos da atualidade.503

A alternativa proposta por Hick (2000, p. 121), tanto ao exclusivismo antigo504 quanto

ao inclusivismo recente, é a de “um pluralismo505 que reconheça a validade de todas as

498 De fato, o islamismo conta hoje, em 2004, dentre todas as religiões, com o maior número de adeptos, tendo ultrapassado o número de católicos e próximo do número de cristãos. 499 Recente exemplo desse tipo de resposta é o já citado e comentado documento da católica Congregação para a Doutrina da Fé, denominado “Declaração Dominus Iesus: sobre a unicidade e universalidade salvífica de Jesus Cristo e da Igreja” (2000). 500 Os indivíduos que não tiveram uma oportunidade adequada de dar sua resposta ao Evangelho, mas cujo estado espiritual assim mesmo era tal que dariam uma resposta se aquele lhes fosse adequadamente apresentado, eram inconscientemente incluídos dentro da esfera da salvação. 501 Segundo Hick (2000), adotado pelo Concílio Vaticano II (embora sem usar o termo de Rahner) e reiterado por João Paulo II nas encíclicas Redemptor Hominis (1979, parágrafo 14) (“qualquer homem, sem qualquer exceção, foi redimido por Cristo, e [...] com o homem – com todo e cada homem, sem qualquer exceção – Cristo está de certa forma unido, mesmo quando o homem não tem consciência disso”.) e Redemptoris Missio (1991, parágrafo 55) (“O diálogo deveria ser conduzido e implementado com a convicção de que a Igreja é o meio ordinário da salvação, e de que somente ela possui a plenitude dos meios de salvação”.). Em seu primeiro capítulo acima, esta pesquisa apresenta em detalhes os debates que cercaram o Concílio Vaticano II, assim como seu entorno, anterior e posterior. 502 Para Hick (2000, p. 121), “um inclusivismo segundo o qual os não-cristãos estariam incluídos dentro da esfera da salvação cristã”. Tal concepção estaria sendo criticada por uma minoria crescente “como a continuação, de forma mais branda, do antigo imperialismo teológico”. Esta pesquisa apresenta em detalhes os posicionamentos inclusivistas nos capítulos I e II acima. 503 Hick (1995, 23) sugere que “o inclusivismo religioso é uma concepção vaga que, quando colocada sob a pressão de aclarar-se, move-se na direção do pluralismo”. 504 Esta pesquisa discute em detalhes o posicionamento exclusivista histórico, o adágio “Extra ecclesiam nulla salus”, no início do capítulo 1 acima.

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grandes religiões mundiais como contextos autênticos de salvação/libertação [“numa

proporção mais ou menos igual”], os quais não são secretamente dependentes da cruz de

Cristo”.

4) A idéia de encarnação divina é melhor compreendida como idéia metafórica, e não literal:

Jesus incorporou, ou encarnou, o ideal da vida humana vivida em fiel resposta a Deus, de

sorte que Deus foi capaz de agir através dele, e que ele, por conseguinte, foi a corporificação

de um amor que é reflexão humana do amor divino. Faz-se importante, segundo Hick (2000,

p. 136-137), a distinção entre os termos “literal” e “metáfora”.

Os sentidos literais de uma palavra são, em termos aproximados, seus sentidos lexicais, e falar literalmente equivale a pretender que nossos enunciados sejam compreendidos em seu sentido padrão ou de dicionário. Em contraste com isso, a metáfora é uma forma de discurso não-literal ou figurativo – junto com a metonímia, a ironia, a sinédoque, a hipérbole, o símile, o idiomatismo e a atenuação retórica. Portanto, o discurso metafórico é uma forma de linguagem em que o sentido do falante difere do sentido de dicionário. Mas revelou-se difícil situar a forma precisa em que o sentido difere; na verdade, ela jamais foi definida de qualquer modo genericamente aceitável. A idéia central, porém, é indicada pela derivação da palavra a partir do grego metaphorein, ‘transferir’. Trata-se de uma transferência de sentido. Ilumina-se um termo ao vincular-lhe algumas das associações do outro termo, de sorte que a metáfora é ‘aquele tropo ou figura de linguagem em que falamos de uma coisa em termos que são sugestivos de uma outra’. Desta forma, o sentido metafórico é gerado pela interação de dois conjuntos de idéias. É isso que acontece quando se fala, por exemplo, do ‘berço do cristianismo’; ou de uma ‘cortina-de-fumaça’; ou de ‘alimento para a alma’; ou de ‘olhar afiado’; ou de ‘nosso Pai celeste’, de ‘a fúria dos ventos’ e do ‘cordeiro de Deus’; ou então quando dizemos que ‘o orador levantou a lebre’ ou que ‘o Pai gerou o Filho antes de todos os tempos’.

5) Podemos concretamente considerar Jesus, assim entendido, como nosso Senhor, como

aquele que tornou Deus real para nós e cuja vida e ensinamentos nos desafiam a viver na

presença de Deus.

505 A proposta pluralista é apresentada em detalhes por esta pesquisa ao final do capítulo 1 acima.

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Aceitando-se a possibilidade da metáfora da encarnação divina de Jesus, três maneiras,

no mínimo, de concebê-la podem ser indicadas (Hick, 2000): a) à medida que Jesus cumpria a

vontade de Deus, Deus estava agindo através dele na Terra, e estava, nesse sentido,

“encarnado” na vida de Jesus; b) à medida que Jesus cumpria a vontade de Deus, ele

“encarnava” o ideal de uma vida humana vivida em abertura e em resposta a Deus; c) à

medida que Jesus vivia uma vida de amor autodoador ou agape, ele “encarnava” um amor que

é uma reflexão finita do amor divino infinito.

A verdade ou propriedade da metáfora, afirma Hick (2000, p. 144), “depende da

condição de ser literalmente verdadeiro que Jesus viveu em resposta obediente à presença

divina, e de que viveu uma vida não-egoísta”. No caso afirmativo, como indica o caso de

Jesus, seus seguidores são convidados a fazerem o mesmo.

6) Pode-se considerar um cristianismo não tradicional, baseado nessa compreensão de Jesus,

como uma entre as diferentes respostas humanas à Realidade transcendente última 506 que

denominamos Deus, podendo servir melhor ao desenvolvimento da comunidade mundial e da

paz mundial do que um cristianismo que continua a ver a si mesmo como o lócus da revelação

final e o portador da única salvação possível para todos os seres humanos.

Uma religião que aceita as outras grandes tradições como igualmente autênticas pode unir-se a elas para promover a paz internacional e solucionar os problemas da ecologia planetária e da pobreza, da subnutrição e doença endêmicas em dois terços do mundo, bem como os problemas dos vastos desastres periódicos da guerra e da fome (HICK, 2000, p. 180).

506 A possibilidade para a qual Hick (1995, p. 25, ênfase do autor) quer apontar é a de que “a Realidade inefável e última é passível de ser autenticamente experimentada em termos de conjuntos diferentes de conceitos humanos, como Javé, como a Santa Trindade, como Alá, como Shiva, como Vishnu, como Brahman, como o Dharmakaya, como o Tal, e assim por diante, sendo que estas diferentes personae e impersonae ocorrem na interface entre o Real e nossas diferentes mentalidades e culturas religiosas”. Hick (1995, p. 27-28) entende inefável como “aquilo que possui uma natureza que está além do alcance de nossas redes de conceitos humanos. Assim, não se pode propriamente dizer que o Real em si mesmo é pessoal ou impessoal, que tem um propósito ou não, que é bom ou mau, que é substância ou processo, ou mesmo que seja um só ou muitos”. Em suma, “nós não podemos descrevê-lo como ele é em si mesmo, mas somente como ele é pensado e experimentado em termos humanos”.

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Mas como isso se daria, visto que cada uma das tradições apresenta, implícita ou

explicitamente, algo absoluto e insuperável? Diferenças vastas e radicais advêm daí. Hick

(2000, p. 181-182) propõe uma direção diferente, “em termos das reivindicações das várias

tradições no sentido de oferecerem ou (melhor!) serem contextos efetivos de salvação”.507

Nesse sentido, mais amplo, pode-se dizer que tanto o cristianismo quanto as outras grandes

tradições são, todas, igualmente, caminhos de salvação. Todas as “diferentes concepções de

salvação508 são especificações daquilo que, em uma fórmula genérica, é a transformação da

existência humana que começa no autocentramento e chega a uma nova orientação centrada

na Realidade divina”.

Não é possível medir a qualidade espiritual desse centramento no Real, mas é possível

avaliar os frutos dos diversos projetos de salvação na vida humana. Afinal, cada uma das

tradições não reivindica constituir um contexto efetivo de transformação da existência

humana? Faz-se necessária aqui uma “investigação [...] empírica em sentido amplo, pois

lidamos com uma questão de fato – embora com um tipo de fato difícil de definir e medir –, e

não com uma questão que poderia ser resolvida por meio de uma estipulação a priori” (HICK,

2000, p. 183).

O critério comum para tal avaliação seria o respeito altruísta por outras pessoas, papel

que se pode denominar amor ou compaixão. É “o princípio de valorizar outras pessoas assim

como valorizamos a nós mesmos, e de tratá-las de modo correspondente” (HICK, 2000, p.

184), algo que perpassa os textos de todas as tradições religiosas.509Quanto mais se avança no

507 Mesmo sendo, primordialmente, um termo cristão, Hick (2000) afirma utilizá-la para incluir seus análogos funcionais nas outras principais religiões mundiais. 508 Uma comunidade redimida pela morte reparadora de Jesus (cristianismo), a obtenção do satori ou despertamento (budismo mahayana) etc. 509 No Mahabharata hindu: “jamais se deveria fazer a outrem aquilo que se considerasse prejudicial a si próprio” (Anushana parva, 113.7) e “aquele que beneficia pessoas de todas as ordens, que se devota sempre ao bem de todos os seres, que não sente aversão a ninguém [...] consegue subir ao céu”(Anushana parva, 145.24); “assim como uma mãe cuida de seu filho todos os seus dias, também a mente de um homem deveria abraçar, sem reservas, todas as coisas vivas” (Sutta Nipata budista, 149); no jainismo: “tratar todas as criaturas no mundo assim como ele próprio gostaria de ser tratado”(Kitanga Sutra, I.ii.33); em Confúcio: “não faças a outros o que

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conhecimento dos diferentes contextos religioso-culturais,510 percebe-se neles que a

preocupação altruísta pelos outros tem lugar e é altamente valorizada. No entanto, “– é

desnecessário dizer –, assim como vemos o amor e a compaixão, também vemos, de uma

maneira demasiadamente abundante e uniformemente difundida de modo mais ou menos

igual em todas as sociedades, a crueldade, a cobiça, o ódio, o egoísmo e a maldade”.

Na verdade, Hick (2000, p. 185-186) diz querer enfatizar não a facilidade, mas, sim,

ao contrário, “a dificuldade de emitir juízos responsáveis nesta área”. Não tanto pela

insuficiência de informações completas, mas pela necessidade de se interpretar informações

fragmentárias “à luz das várias condições da vida humana em diferentes períodos da história e

em diferentes circunstâncias econômicas e políticas”. Em suma, “não temos boas razões para

crer que qualquer uma das grandes tradições religiosas tenha se revelado mais produtiva de

amor/compaixão do que qualquer outra”, não estando nenhuma delas em posição de

reivindicar uma superioridade moral total, “nenhuma [...] sobressai como religião mais

salvífica do que as outras”. O ônus da prova recai sobre aquela que almejar tal status.

Explicitados os parâmetros aproximativos à pós-modernidade nos autores arrolados,

esta pesquisa pretende agora afirmar a possibilidade de uma perspectiva teológica pós-

moderna, tendo como base uma nova configuração de identidades religiosas e, como âncora,

as reflexões do teólogo John Haight, em sua obra delimitada a seguir.

não desejarias que te fizessem” (Analecta, xxi, 2); no taoísmo: “considerar os ganhos [de outros] como se fossem seus, e suas perdas da mesma forma” (Thai Shang, 3); no zoroastrismo: “a natureza somente é boa quando não fizer a outrem o que não é bom para si mesma” (Dadistan-i-dinik, 94.5); em Jesus: “o que quereis que os homens vos façam, fazei também a eles” (Lc 6, 31); no Talmude judeu babilônico: “não faças ao teu semelhante o que consideras odioso para ti mesmo. Este é o todo da Torá” (Shabbath 31a); no Hadith islâmico diz Maomé: “nenhum homem é um verdadeiro crente a menos que deseje para seu irmão aquilo que deseja para si mesmo” (Ibn Madja, Intr. 9). 510 Conhecimento cada vez mais facilitado pelo crescente processo de globalização mundial. Esta pesquisa apresentou esse processo em detalhes ao final de seu capítulo II acima.

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3 A PERSPECTIVA TEOLÓGICA PÓS-MODERNA: UMA NOVA CONFIGURAÇÃO

DE IDENTIDADES RELIGIOSAS

Esta pesquisa parte da premissa de que a pós-modernidade está em processo, mesmo

que se lhe dê nome diverso, o que não altera suas atuais configurações e transformações. A

partir de tal premissa, há que se perceber de que maneira poderia ser feita uma reflexão em

linha com essas coordenadas pós-modernas.511 Haight, em obra específica, delineada a seguir,

é considerado aqui como uma tentativa de inserção teológica nesse novo contexto pós-

moderno, dito de outra forma, como uma teologia em diálogo com a pós-modernidade.

3.1 Roger Haight: uma reflexão teológica cristã em diálogo com a pós-modernidade512

Haight, diferentemente de seus colegas teólogos arrolados na segunda parte deste

terceiro capítulo, não somente menciona explicitamente a pós-modernidade (como Torres

Queiruga e Küng) ou permite inferências (como em Hick) mas, bastante além disso, propõe

uma teologia a partir da e em diálogo com a pós-modernidade: “foi no espírito [...] de diálogo

com a cultura pós-moderna que este livro foi escrito” (HAIGHT, 2003, p. 12). Esta pesquisa

511 Em detalhes, tais coordenadas pós-modernas podem ser revistas no início deste terceiro capítulo da presente pesquisa. 512 Esta parte específica da pesquisa, que traz à luz uma obra específica de Haight (2003), sem fugir às regras metodológicas científicas, quer evitar repetições redundantes e desnecessárias. Logo, onde não houver menção expressa a um autor diferente ou não se configurar expressão pessoal do autor desta pesquisa, a autoria é de Haight.

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quer, a partir do âmago dessas suas reflexões, 513 perceber seus pontos de inserção na pós-

modernidade. Para isso, faz-se necessária a explicitação dos fundamentos de sua reflexão na

obra em pauta.514

3.1.1 Jesus, símbolo concreto de Deus: o caráter simbólico da linguagem teológica

Haight (2003, p. 17, minha ênfase) tem uma compreensão clara de que “o período

compreendido entre o final do século XX e o começo do século XXI é cada vez mais

denominado pós-moderno”. Nele, percebe-se “uma consciência do pluralismo em todos os

níveis de reflexão acerca da humanidade: sua natureza, sua história, seu propósito, seu Deus”.

De maneira geral, pode-se falar que essa “consciência histórica e pluralista da pós-

modernidade minou as pretensões totalizantes dos sistemas de pensamento” (HAIGHT, 2003,

p. 13).

Haight (2003, p. 12) pretende, nesses seus escritos,515 “um diálogo com [ess]a cultura

pós-moderna”. Pode-se fazer presente a idéia de inculturação.516 O autor (2003, p. 11) a

compreende não como um “acomodar a mensagem evangélica à cultura humana, e sim

permitir que a substância do evangelho assuma a forma de uma cultura local”, permitindo 513 HAIGHT, Roger. Jesus: símbolo de Deus. São Paulo: Paulinas, 2003 (original de 1999). Possíveis referências e/ou citações de outras obras do autor estarão sempre em notas de rodapé. 514 Dada a extensão deste livro de Haight em questão (576 páginas), o que em si poderia ser o objeto central de uma pesquisa acadêmica, serão realçadas nele apenas aquelas partes que se relacionam especificamente com o tema desta pesquisa, sem deixar de passar, é claro, pelos alicerces prévios construídos pelo autor, . 515 Haight (2003, p. 12) afirma que este seu livro (“um ensaio sobre teologia sistemática e cristologia” (HAIGHT, 2003, p. 13)) “não foi produzido como parte de um debate interno à Igreja católica romana; busca antes reunir teólogos cristãos de todas as denominações para, nas coordenadas do terceiro milênio, apresentar a fé cristã, de maneira inteligível, a pessoas instruídas, de dentro e de fora da Igreja, que transcendem fronteiras nacionais e partilham um conjunto de valores e idéias constituinte de uma subcultura”. 516 O tema, objeto de intensa discussão nas igrejas da Ásia, da África e da América Latina desde o Concílio Vaticano II, foi debatido em 1995, segundo Haight (2003, p. 11), na congregação geral, reunião de três meses dos Jesuítas em Roma com delegados de todas as partes do mundo.

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“que a Palavra de Deus exerça um poder no interior da vida das pessoas sem, ao mesmo

tempo, impor fatores culturais alheios que dificultem a verdadeira recepção dessa palavra”.

Ao mesmo tempo em que a mensagem cristã se mostra a uma determinada realidade cultural,

ela deve fazê-lo de forma compatível com a capacidade de compreensão dessa realidade,

tendo consciência de que, por outro lado, será também moldada por essa realidade. Esse

processo, segundo Haight (2003, p. 11), “está apenas se iniciando, de maneira consciente, em

diversas partes do mundo hoje em dia”.517

Como ficaria um processo de inculturação da mensagem cristã no atual contexto pós-

moderno? Haight (2003, p. 12) parte do pressuposto518 de que não se pode “falar aos outros,

se a linguagem religiosa que utilizamos lhes é inteiramente estranha”.519 Além disso, “tal

como ocorreu com o processo de helenização, 520 o esforço por dialogar com a cultura

intelectual contemporânea também haverá de afetar a linguagem por meio da qual

compreendemos nossa fé”. Haight (2003, p. 12) afirma estar

convencido de que o cristianismo, no século XXI, deverá enfrentar novos problemas e questões, os quais, por sua vez, irão efetivamente engendrar novas compreensões e padrões de comportamento, tanto no seio das Igrejas como por seu intermédio. O símbolo generalizado dos fatores culturais mediadores dessas mudanças é a pós-modernidade. Ao mesmo tempo, contudo, o cristianismo, nesse caso em sua teologia e em sua cristologia, há de permanecer fiel à sua revelação original e à tradição estabelecida.

517 Na citada congregação geral dos Jesuítas, os asiáticos e africanos, segundo Haight (2003, p. 11), “exprimiram suas experiências de alienação decorrentes da cisão entre a própria vivência cultural e o caráter ainda ocidental da Igreja”. 518 Comum também aos seus pares da congregação geral jesuítica reunida em Roma, apesar de nos documentos conclusivos dessa não aparecer a expressão pós-modernidade, mas a alusão ao “atual ambiente intelectual das sociedades industriais ocidentais como uma cultura”. Cf. MCCARTHY, John L. (Ed.). Documents of the Thirty-Fourth General Congregation of the Society of Jesus. St. Louis: The Institute of Jesuit Sources, 1995. 519 Haight (2003, p. 12) diz estar também em sintonia com o documento Gaudium et Spes do Vaticano II, que se colocou o “imperativo” de “dirigir-se ao mundo contemporâneo, procurando tornar a fé inteligível em seus próprios termos”. 520 Haight (2003, p. 11) vê o anúncio da fé cristã ao helenismo como o surgimento do grande paradigma da inculturação. Ao mesmo tempo em que a mensagem cristã chegou ao mundo cultural do helenismo de forma compatível com a capacidade de compreensão desta realidade cultural, foi também por ela moldada.

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Haight (2003, p. 13) abre-se a esse debate a partir de uma cristologia que se baseia em

algo que a precede, a soteriologia,521 o que “leva a um método freqüentemente caracterizado

como ‘a partir de baixo’”, cujo olhar perspectivo é o “ponto de partida” e não o “ponto final”

(“que é uma cristologia alta”). Isso explica a denominação que encabeça a presente obra de

Haight, ora analisada, Jesus: símbolo de Deus. 522 De um lado, na palavra “Jesus”, expressa

um “arcabouço de pensamento em que a figura histórica, Jesus de Nazaré, desempenha

sempre o papel de fonte e de referente último em afirmações acerca de Jesus Cristo”; de outro,

na expressão “símbolo de Deus”, mesmo que “esse símbolo seja um sacramento e nunca

meramente um símbolo”, “‘símbolo’ é a categoria interdisciplinar mais ampla e mais

reconhecida”, o que permite maior inteligibilidade, algo premente no novo e atual contexto

cultural. O símbolo, na cristologia das reflexões de Haight (2003, p. 13), exerce função

mediadora em duas direções: “atrai a consciência humana para Deus e medeia a presença de

Deus ao espírito humano”. Mais adiante será explicitada a estrutura conceitual do símbolo, o

qual exerce papel fundamental no universo reflexivo teológico do autor.

A teologia, em sua definição etimológica e geral como “‘discurso acerca de Deus’”,

“encobre profundamente diferenças de concepção e de prática” (HAIGHT, 2003, p. 18).

Fundamentalmente, são três os lugares por onde a teologia circula: a fé, a revelação e a

Escritura.

A fé constitui-se numa forma universal da experiência humana. O seu braço religioso

envolve uma experiência religiosa que implica “a consciência da realidade última” ou

“transcendente” e a lealdade a ela (HAIGHT, 2003, p. 18-20). De tão internalizada que é, o

objeto de fé como que possui o sujeito cognoscente e por ele é possuído. Seu caráter 521 Precedência com a qual “nem todos os teólogos concordam” (HAIGHT, 2003, p. 12), no entanto, há que se considerar “que toda compreensão cristã de Jesus Cristo tem sua fonte na experiência da salvação”. 522 Fosse a partir de uma cristologia de cima, denominar-se-ia esse livro como Cristo: o sacramento de Deus, querendo sacramento expressar “explicitamente um símbolo do encontro humano com Deus”. Haight (2003, p. 13) afirma que o título deste seu livro, ‘Jesus: símbolo de Deus’, “é uma tradução” do clássico neotomista de Schillebeeckx intitulado ‘Cristo: sacramento do encontro com Deus’, “em um novo marco, ‘a partir de baixo’”. Cf. SCHILLEBEECKX, Edward. Cristo: sacramento do encontro com Deus. Petrópolis: Vozes, 1967.

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experiencial, aliado ao fato de que é primordialmente uma resposta humana elementar e

existencial, possibilita a afirmação de que “quando dizemos que a teologia repousa sobre a fé,

em última instância sempre nos remetemos a alguma experiência humana existencial em sua

origem”. A fé expressa-se nas crenças, podendo distinguir-se delas, porém, “nunca” delas

podendo separar-se. Assim, mesmo que dialeticamente relacionadas, “a fé pode preservar

certo grau de identidade autônoma em meio a diferentes expressões de crença”. Mesmo que se

modifique, a fé, em seu nível mais profundo, permanece constante, ao passo que as crenças

podem mudar. É aí que Haight vê a possibilidade de uma teologia ao mesmo tempo “fiel à

norma histórica e livre para inculturar-se em uma variedade de formas históricas”.

A revelação e a fé religiosas autênticas são dois aspectos do complexo fenômeno da

experiência religiosa. Haight (2003, p. 20-21) vê a revelação como “a fé sendo correspondida,

ou mesmo estimulada e desencadeada, pela realidade última”, em suma, “o encontro com o

transcendente”. Conceber a revelação como uma experiência religiosa tem inegável alcance

para a teologia: expresso na forma negativa, pode-se dizer que “o critério decisivo para a

interpretação teológica cristã não pode residir em outra interpretação teológica”, visto que

todas as interpretações teológicas “são projetos humanos, historicamente condicionados, em si

mesmos relativos ao encontro com a presença de Deus que expressam e medeiam”; na forma

positiva, “pode-se dizer que a medida da ortodoxia reside na fé da comunidade”. É pelo

concurso da linguagem religiosa da comunidade que se torna passível de conhecimento o

conteúdo do encontro revelacional. O termômetro da autenticidade de uma teologia será o

olhar para a experiência que a comunidade tem da presença de Deus, seguido da pergunta se

essa teologia está preservando e suscitando ou não essa experiência existencial.523

A Escritura, na teologia cristã, é a principal fonte universalmente reconhecida, ao

mesmo tempo em que sua utilização pela teologia se torna “uma questão mais complicada”

523 Sem isso, acredita Haight (2003, p. 21), “a teologia não poderia avançar, tornando-se fadada a repetir as palavras do passado”.

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(HAIGHT, 2003, p. 21). Desde a era moderna,524 “a consciência histórica tem solapado a

mera citação de textos escriturísticos como aval e prova de posições teológicas”. A visão da

Escritura e de seu emprego, nessa reflexão de Haight, passa pela articulação de diversos

elementos: 1º) o problema da revelação não consiste na escassez e, sim, na pluralidade de suas

manifestações; 2º) a revelação, quando ocorre, é sempre mediada por meio de eventos, coisas,

pessoas e lugares históricos; 3º) para o cristianismo, Jesus de Nazaré é a mediação central de

Deus na história, a mediação constitutiva da revelação de Deus para a fé cristã; 4º) Na

ausência de Jesus de Nazaré, a Escritura, sobretudo os evangelhos, constitui a sempre presente

(de forma manifesta, mas secundária) mediação de segunda ordem da revelação de Deus.525

As reflexões de Haight estão situadas num lugar distinto nesse universo do discurso

teológico. O distintivo em Haight é que ele acrescenta “um quarto” lugar para essa reflexão,

“concernente ao caráter simbólico da linguagem teológica”.526 O símbolo exerce papel

fundamental no universo reflexivo teológico do autor.527

524 Foi a partir daí que teólogos liberais e evangélicos reconheceram que “não se pode simplesmente identificar a revelação com os textos da Escritura” (HAIGHT, 2003, p. 21). 525 “A utilização de textos escriturísticos deve levar em conta as diferenças que se verificam entre um significado original de uma passagem e seu significado em uma situação atual” (HAIGHT, 2003, p. 22). Daí, a necessidade de algum método hermenêutico que dê conta da interpretação. A tradição do pensamento hermenêutico adquiriu nova importância para a teologia por meio das interpretações de Heidegger, Bultmann, Gadamer, Ricoeur, Tracy, Jeanrond, Schneiders e outros. Haight (2003. p. 60-65, minha ênfase) denomina o seu de “método hermenêutico de correlação crítica”. Hermenêutico, num duplo sentido: como “desvinculação do significado em relação à sua particularidade no passado” e como “uma recuperação desse significado em uma nova situação específica”. Correlação crítica: correlação, no sentido de uma “justaposição do presente e do passado”, um encontro (por vezes confrontamento) que propicia uma interpretação; crítica, no sentido de uma “relação dialética ou interativa entre o passado, o presente e o futuro, e entre diferentes interpretações culturais [...]”. 526 Segundo Haight (2003, p. 123), “muitos teólogos sustentam que a linguagem religiosa é, por sua própria natureza, intrinsecamente simbólica. Dessa forma, toda linguagem das Escrituras que se refere a Deus ou a outras realidades transcendentes é simbólica”. O exegeta Norman Perrin aplica expressamente o conceito de símbolo religioso à idéia de reino de Deus na pregação de Jesus. Para Haight, essa foi uma valiosa contribuição à interpretação teológica. Cf. PERRIN, Norman. Jesus and the language of the kingdom: symbol and metaphor in New Testamente interpretation. Philadelphia: Fortress Press, 1976. 527 Haight (2003, p. 233) afirma que procede na tradição ao tomar a idéia de símbolo como princípio teológico central: “algumas décadas atrás, os teólogos católicos [Rahner, Schillebeeckx e outros] redescobriram o conceito de símbolo e o aplicaram a Jesus Cristo, e, por derivação, à Igreja e aos sacramentos. Por meio das idéias de símbolo e de causalidade simbólica, revitalizaram uma teologia dogmática a partir de cima”. O que o distingue é a utilização do símbolo a partir de baixo.

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O símbolo serve para lembrar o “tipo de percepção humana que se encontra na base da

teologia528 e a posição de sua linguagem” (HAIGHT, 2003, p. 23). O conhecimento

simbólico,529 assim como sua linguagem, corresponde ao caráter tensivo que se observa na

relação entre fé e crenças, entre o encontro revelador e sua expressão discursiva. O símbolo

possibilita o conhecimento de alguma coisa que dele próprio difere, ele medeia a percepção

dessa coisa, presentificando-a. Freqüentemente, “um símbolo desvela algo diferente, alguma

coisa que não poderia ser reconhecida sem seu concurso” (HAIGHT, 2003, p. 234). Segundo

Eliade (1991, p.12), o símbolo “revela certos aspectos da realidade – os aspectos mais

profundos – que resistem a quaisquer outros meios de conhecimento”. Esse é o caso dos

símbolos religiosos. Esses apontam para realidades transcendentes e servem-lhes como

instância mediadora, em resposta à interpelação religiosa.

No sentido de se entender a especificidade do símbolo, pode-se diferenciá-lo de signo.

Esse é referencial, designa alguma outra coisa, no entanto, não presentifica e não revela essa

alteridade, ou seja, não é mediacional. Falta ao signo uma conexão intrínseca com seu

referente. O signo baseia-se em uma convenção meramente humana.530 Um símbolo, ao

contrário, revela e evoca uma presença.531 Quando um símbolo, assim tomado inicialmente,

perde a capacidade de revelar e de evocar uma presença, “torna-se signo” (HAIGHT, 2003, p.

234).532

528 Apesar de existirem análises de símbolos em uma série de disciplinas, segundo Haight (2003, p. 234), “o uso do conceito em teologia requer sua própria definição”. 529 O conhecimento simbólico é denominado “conhecimento participativo engajado”. Haight (2003, p. 24) empresta a expressão de DULLES, Avery. The symbolic structure. Theological Studies, n. 41, p. 60-61, 1980. Não se trata de uma forma atenuada de cognição, mas uma extensão da plenitude da percepção humana. 530 Haight (2003, p. 234) exemplifica com os semáforos das ruas que controlam o trânsito das cidades: o sinal vermelho indica ‘pare’, e isso é tudo o que ele faz. Um sociólogo pode ficar maravilhado com a maneira como as cores do semáforo conseguem organizar o frenético comportamento humano de forma relativamente segura. No entanto, “não existe nenhuma conexão objetiva ou subjetiva profunda entre ‘vermelho’ e ‘pare’”. 531 “Cruz”, por exemplo, para o cristão, “não pode” simplesmente ser uma referência à morte de Jesus, pois revela e evoca algo mais, uma longa tradição de profundo sentimento, reflexão e significado (HAIGHT, 2003, p. 234). 532 Haight (2003, p. 234) afirma estar aí o significado da expressão “‘meramente um símbolo’”. Essa expressão passou a ser utilizada significando que alguma coisa “‘refere-se a alguma outra coisa’”, “‘não significa o que diz

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Haight (2003, p. 234) distingue dois tipos de símbolos: “concretos” e “conceituais” 533.

As diferentes modalidades de símbolo significam que “o próprio termo ‘símbolo’ é análogo”.

O símbolo concreto é um objeto: coisas, lugares, eventos ou pessoas que medeiam a

presença e a consciência de uma outra realidade. 534 Um símbolo religioso concreto “é uma

entidade que revela e presentifica alguma outra coisa” (HAIGHT, 2003, p. 234). Isso acontece

porque, via de regra, existe uma íntima conexão entre símbolo e simbolizado e isso permite ao

símbolo revelar e presentificar o simbolizado.535 O símbolo concreto, como objeto físico ou

evento, “é um ser, o que o torna possível sujeito de ontologia” 536 (HAIGHT, 2003, p. 235).

Assim, “deve restar claro que um símbolo concreto é um ser que medeia uma real presença

em si mesmo de alguma outra coisa que não ele próprio”. No caso de Jesus, um símbolo

concreto, está-se falando “da real presença de Deus a ele e, através dele, ao mundo, da qual é

mediador”. Qual é a credibilidade da afirmação de que Jesus é um símbolo de Deus? Nas

palavras de Haight, “sabemos que Jesus é um símbolo concreto de Deus porque as pessoas

encontraram e ainda encontram Deus nele”.

O símbolo conceitual é um conceito, uma palavra, uma metáfora,537 uma parábola, um

poema, um evangelho ou relato. Ele revela uma outra coisa e torna-se presente à imaginação e

literalmente’” e, portanto, “‘não é realmente verdadeiro’”. Ora, argumenta Haight, “se alguma coisa é ‘meramente’ um símbolo, então não é absolutamente símbolo, pois um símbolo, tal como entendido aqui [nas reflexões do autor], verdadeiramente revela e torna presente o que simboliza”. 533 Ou “conscientes” (HAIGHT, 2003, p. 29). 534 “Por exemplo, o corpo humano medeia a presença do espírito humano em diversos níveis: para os outros, por meio do gesto e da fala; para a autopercepção consciente, pela reflexão sobre o próprio agir; ontologicamente, de vários modos, dependendo de como seja concebido em diferentes sistemas metafísicos” (HAIGHT, 2003, p. 29). 535 Exemplos (HAIGHT, 2003): em um mundo que se concebe criado por Deus, pode-se entender que a criatura revela e comporta a efetiva presença do criador; o Itinerarium Mentis ad Deum de Boaventura é um extenso hino à real presença simbólica de Deus em toda a criação; em Israel, a Torá não é simplesmente um conjunto de preceitos pelos quais se deve pautar a própria existência mas o símbolo de uma aliança que opera a fiel presença de Deus a um povo e convida à reciprocidade ou a determina. 536 Haight aprofunda essa questão da ontologia do símbolo em HAIGHT, Roger. Dynamics of Theology. New York: Paulist Press, 1990. Cf. também RAHNER, Karl. Theology of symbol. Theological Investigations, Baltimore, n. 4, p. 221-252, 1966. 537 Essa é a simbologia usada por John Hick (2000), cujas reflexões foram expostas anteriormente, onde o autor propõe que se veja a encarnação de Deus em Jesus, no sentido de melhor compreensão, como uma metáfora (símbolo conceitual), pois considerá-la literalmente, segundo Hick, equivale a mantê-la sem sentido nos dias atuais.

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à mente. São noções, idéias, ditos ou textos que medeiam uma consciência mais profunda de

um nível de realidade que vai além de seu sentido manifesto. Se quiserem ser reveladores de

Deus, “os símbolos conceituais devem ser mais do que signos convencionais” (HAIGHT,

2003, p. 235). Eles têm que possuir alguma conexão interior com o que é revelado, de forma

que, assim, esse revelado se presentifica à mente.538

Haight utiliza a categoria do símbolo como base para a descrição de todo

conhecimento religioso da realidade transcendente. A revelação, no âmbito da experiência

humana, ocorre através da mediação simbólica. Mesmo a resposta de fé, que tem por objeto a

realidade transcendente, exprime simbolicamente, ou em símbolos. Com isso, a categoria

torna-se muito abrangente, com aplicações por demais diferentes. Na cristologia, as

aplicações mais freqüentes do simbolismo religioso são (HAIGHT, 2003, p. 236):

1ª) toda linguagem acerca de Deus é simbólica: são extraídos desse mundo os símbolos

utilizados para se conhecer, iluminar-se e estruturar-se a “experiência do mistério absoluto

que chamamos Deus” (Pai – ou Mãe –, criador,539 êxodo, aliança, lei etc.);

2ª) o conhecimento de Deus em Jesus, ou desvelado por Jesus, constitui uma esfera de

conhecimento simbólico especificamente cristão a respeito de Deus: nítidos exemplos desse

conhecimento simbólico são as parábolas de Jesus, e mesmo o relato de seu ministério ou de

si mesmo como pessoa é referido como parábola e, portanto, símbolo de Deus;

538 “Um símbolo conceitual, por exemplo, pode remeter a um símbolo concreto e, por seu intermédio, veicular uma verdade transcendente” (HAIGHT, 2003, p. 235). Esse exemplo pode ser ilustrado pelas maravilhas operadas por Jesus: o exorcismo foi um símbolo concreto; seu relato, contudo, é um símbolo conceitual, pois difunde o episódio através da escrita. Nesse caso do exorcismo, qual é a íntima ligação entre o símbolo e o que ele revela? “É a causalidade [conexão interior] do poder divino [revelado] manifestando-se em Jesus [símbolo]”, responde Haight. De outro lado, “um símbolo conceitual pode conter uma semelhança icônica por analogia com aquilo que é simbolizado ou revelado”. Quando, por exemplo, Jesus é chamado de ‘sabedoria de Deus’, está-se reconhecendo a sabedoria de Deus representada pelo ensinamento de Jesus; sabedoria essa incorporada por ele em suas ações e implementada por todo o decurso de seu ministério, morte e ressurreição. Nessa simbologia, reconhece-se uma conexão íntima (a sabedoria) entre o símbolo (Jesus) e o simbolizado (Deus). A metáfora do Deus encarnado, proposta por Hick (2000), pode ser encaixada nesse aspecto do símbolo conceitual. Importante ressaltar, segundo Haight, que “esse reconhecimento não decorre do conhecimento acerca desses dois elementos e de uma comparação objetiva. Pelo contrário, a sabedoria de Deus revela-se no encontro e mediante o encontro com Jesus”. 539 Haight (2003, p. 236) afirma que “as atuais teorias científicas da criação, quando as entendemos como implicando a ação de um criador, podem ser uma vigorosa linguagem reveladora acerca de Deus”.

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3ª) a linguagem a respeito de Jesus como Cristo também é simbólica: “a dimensão divina que

se encontra em Jesus só pode ser articulada em linguagem simbólica extraída da experiência

intramundana, mesmo que essa dimensão divina seja outra, diferente, transcendente”. Por

isso, tanto as cristologias neotestamentárias (que tentam expressar o papel especial de Jesus

como portador da salvação de Deus e, desse modo, sua condição relativamente a Deus)

quanto as que se fazem hoje540 exprimem o transcendente em linguagem simbólica, pois “não

temos acesso imediato à realidade transcendente”.

A categoria do símbolo, na compreensão de Haight (2003), proporciona a base para

uma cristologia sistemática. Isso se torna possível graças às características dos símbolos

religiosos e do conhecimento simbólico. Para a compreensão de como a noção do símbolo

funciona na cristologia, Haight (2003, p. 237-239) enumera seis “cruciais” qualidades ou

atributos da mediação simbólica:

1ª) a comunicação simbólica demanda participação: ela não é objetiva, ou seja, não pode

realizar-se sem o engajamento subjetivo ou existencial daquele sujeito em quem está sendo

processada;541

2ª) os símbolos medeiam o significado pela ativação da mente: diferentemente do signo, cujo

significado referencial reside na superfície e é convencional e imediato, o símbolo, cujo

540 O item seguinte desta parte da pesquisa enumera e define sumariamente essas cristologias, objetivando mostrar o pluralismo reinante nesse campo do conhecimento. 541 Haight (2003, p. 237) enfatiza que “Jesus não funcionará como mediação de Deus para uma pessoa na qual a questão religiosa inexiste”. Reino de Deus fazia sentido em cultura dotada de uma tradição religiosa na qual o símbolo mantinha referências com o passado e respondia às reais expectativas religiosas. Em uma cultura que não se enxergasse naquele símbolo, “feneceria”. É o que de fato vem ocorrendo nos últimos tempos, segundo Haight, o que equivaleria a parte dos problemas que o cristianismo vem enfrentando, dado que a simbolização cristã da realidade foi substituída por outros símbolos (por exemplo, nas culturas modernas, a ciência e a tecnologia).

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significado não se acha na superfície, tem a necessidade de que a mente se esforce por

descobrir seu significado, a mente deve buscá-lo;542

3ª) os símbolos religiosos participam da transcendência e para ela apontam: é, por demais,

importante reconhecer que, mesmo cognitivo, o conhecimento não abarca nem domina

adequadamente a realidade transcendente, estando profundamente imerso no desconhecido,

no não-saber e no agnosticismo;543

4ª) os símbolos religiosos revelam a essência da existência humana: o conhecimento torna

acessível o caráter primordial, ideal e paradisíaco da humanidade. “Os símbolos religiosos

medeiam um autoconhecimento, um discernimento acerca do sentido mais fundamental da

humanidade em relação ao cosmo, às demais dimensões da realidade e ao próprio eu”;

5ª) os símbolos são polivalentes em sua estrutura: se a mente humana utiliza símbolos para

apreender a realidade última, é porque a própria realidade última revela-se de maneiras

contraditórias que não se submetem à conceituação.544 “O símbolo exprime os múltiplos

aspectos da realidade que não são redutíveis a uma série de proposições”;545

6ª) os símbolos religiosos possuem caráter dialético: “o caráter dialético do símbolo permite

que se afirmem coisas contrárias a seu respeito porque, embora não seja o simbolizado,

presentifica-o”.546

542 Quando se diz, por exemplo, que “Jesus é o Filho de Deus”, “a mente tem de descobrir o sentido no contra-senso, a verdade na inverdade, o propósito da identidade na diferença” (HAIGHT, 2003, p. 238). O caráter da cognição simbólica, segundo Haight, “decorre da tensão dialética entre ‘é’ e ‘não é’. A interpretação é que irá revelar o verdadeiro sentido”. 543 Haight (2003, p. 238) explicita que quando se cai no “excedente significativo”, quando se toma o conhecimento simbólico como diretamente representativo, como informação prontamente disponível acerca de Deus, positivamente se “distorce o que pretende revelar”. 544 Hick (1995) insiste bastante nessa impossibilidade de se conceituar razoavelmente a realidade última. Algo disso foi explanado anteriormente nesta pesquisa, quando se delineou a reflexão de Hick. 545 Haight (2003, p. 239) se pergunta “o que significa exatamente dizer que Jesus é Filho de Deus?”. Não é exatamente claro o que se quer dizer com essa afirmação. “Quanto mais questões se formulam, mais o símbolo revela e encobre a um só tempo”. Uma compreensão diretamente representativa ou não simbólica dessa afirmação é reduzi-la, subtrair e comprometer seu significado, além de restringir seu escopo cognitivo. 546 Utilizando uma imagem de Eliade (1991), uma pedra sagrada continua sendo uma pedra. Segundo Haight (2003, p. 239), “um objeto torna-se uma hierofania, um elemento revelador do sagrado, ou um receptáculo do sagrado, ao mesmo tempo em que continua a participar de seu próprio ambiente mundano”.

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Por lidar com a realidade transcendente, “a teologia”, segundo Haight (2003, p. 24), “é

uma disciplina simbólica”. Dessa constatação advêm dois axiomas que interagem

dialeticamente na teologia: 1º) como a teologia é simbólica, suas assertivas não são

enunciados diretos de informação acerca de Deus (falando na forma negativa);547 2º) as

asserções simbólicas da teologia comunicam por meio da experiência participativa engajada a

qual estimulam e ativamente engendram. Elas introduzem ao mistério do transcendente

(positivamente falando).548

Com base nessas premissas, Haight (2003, p. 25-26) propõe uma sucinta

caracterização da teologia e uma síntese de alguns de seus axiomas, que fundamentam suas

reflexões na obra aqui esmiuçada:

a) teologia é reflexão sobre a natureza da realidade segundo a perspectiva dos símbolos

da fé cristã;

b) o aspecto mais importante da teologia decorre de sua fundação na fé e na revelação;549

c) crença e fé se distinguem tensivamente numa interação dinâmica e dialética entre si;

d) a teologia é simbólica;

e) o símbolo, de forma tensiva, dinâmica e dialeticamente, medeia alguma outra coisa

que não ele próprio;550

f) a Escritura é essencialmente um livro de símbolos religiosos.

547 Segundo Haight (2003), esse axioma negativo deve mobilizar criticamente o teólogo e seu discurso, pois questiona a forma como se lida com o tema transcendente. 548 Isso, a não transmissão de fatos, segundo Haight (2003, p. 24), não leva a uma perda de valor epistemológico, pois “as asserções religiosas simbólicas desvelam e medeiam à consciência áreas que, de outro modo, permaneceriam fechadas”. 549 Haight (2003, p. 25) as vê como cognitivas, não no sentido de qualquer forma de conhecimento de que dispomos neste mundo, dado seu objeto essencialmente transcendente. “Mediante uma fé existencial e uma participação engajada[não individual, mas numa comunidade], o sujeito encontra a realidade transcendente como dada, como presente”. 550 Segundo Haight (2003, p. 26), “dizer que a linguagem religiosa é simbólica e metafórica não anula o realismo na predicação, mas proporciona uma análise alternativa da lógica da predicação”.

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À luz dessas premissas, e enfatizando-se as considerações de que “toda fé e toda

revelação são historicamente mediadas” e de que “os símbolos podem ser divididos em

símbolos conscientes e símbolos concretos”, Haight (2003, p. 29-30) afirma que “para os

cristãos, Jesus é o símbolo concreto de Deus”.551 Isso significa que Jesus é a “mediação da

presença de Deus para o cristianismo”, o “mediador da fé especificamente cristã”. Usando a

metáfora do círculo, pode-se dizer que “só pode haver um centro em um círculo. Jesus,

chamado Cristo, é o único determinante central,552 mas não exclusivo, do caráter da fé cristã”.

3.1.2 Pluralidade na teologia cristã: a consciência de um novo ambiente cultural

A cristologia, enquanto disciplina integral, como o estudo e a discussão a respeito de

Jesus Cristo, ou de Jesus como Cristo, é passível de distinção entre um sentido estrito (o

problema cristológico) e um sentido mais amplo (a cristologia) (HAIGHT, 2003, p. 30-32).

Em seu sentido estrito, “o foco incide sobre o próprio Jesus e a posição por ele ocupada,

relativamente a Deus e aos demais seres humanos, como Cristo”. Essa questão é tão antiga

quanto a própria cristologia. As antigas fórmulas,553 da maneira como foram expressas em um

dado momento histórico, não dão conta da problemática como ela atualmente se apresenta;

“faz-se necessária uma nova linguagem”. Isso não quer dizer que elas não serão levadas em

conta, pois, “ainda que de maneira problemática, continuam a moldar a consciência

551 “Em virtude da função que desempenha na imaginação religiosa cristã”, Haight (2003, p. 113) afirma que Jesus também “pode ser considerado como uma parábola de Deus, de maneira que se pode discernir um ensinamento implícito ou uma revelação mediadora de Deus na atividade de Jesus”. 552 O fundamento dessa centralidade no âmbito da fé cristã “repousa no fato de que [“Jesus foi” e] continua a ser alguém em quem as pessoas encontram Deus” (HAIGHT, 2003, p. 111). 553 A definição da divindade do Filho ou Logos, em Nicéia, no século IV, e a clássica fórmula cristológica de Calcedônia, no século V.

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cristológica mil e quinhentos anos depois”. Três são as alternativas possíveis frente a essas

formulações clássicas: 1ª) evitá-las; 2ª) repeti-las; 3ª) interpretá-las. Não se pode evitá-las,

pois a questão continua sempre de pé, “não irá desaparecer nem é irrelevante”; não há como

simplesmente repeti-las, visto “não possuírem em nossa cultura o mesmo significado de que

se revestiam na época em que foram enunciadas”.554 A solução, então, é “assumir as

formulações conciliares clássicas e interpretá-las explicitamente para nossa própria época”.555

Em seu sentido amplo, a cristologia é concebida “como o estudo da fonte geradora da

fé cristã” (HAIGHT, 2003, p. 32). Dessa forma, de maneira mais ampla, ela deve ser

entendida como reflexão sobre o âmago e a base do próprio sistema simbólico cristão.556 É

uma “cristologia expansiva como essa” que Haight tem “em vista” ao formular suas reflexões.

A cristologia, atualmente, conhece um enorme “pluralismo” de tendências

cristológicas. Segundo Haight (2003, p. 33), “não se pode duvidar d[...][e seu] caráter

pluralista”. Objetivamente, as correntes que atualmente compõem o campo da cristologia são

(HAIGHT, 2003, p. 33-40):

a) a cristologia transcendental: constitui-se numa resposta ao “‘extrinsecismo’” 557 no

pensamento cristão. Quer mostrar que Jesus Cristo é precisamente a realização do humano;558

b) a pesquisa sobre Jesus: muita coisa de natureza histórica pode ser dita a respeito de Jesus,

mas há que se admitir também que o que desconhecemos vai muito além do que sabemos. De

qualquer forma, a pesquisa histórica vem exercendo impacto sobre a cristologia;

554 Haight (2003, p. 31-32) afirma que repeti-las, hoje, significa interpretá-las, só que em um sentido que não corresponde ao que pretendiam. 555 No entender de Haight (2003, p. 32), “as tentativas cristológicas de suplantar as doutrinas clássicas pecam por incompletude”. 556 Haight (2003, p. 32) afirma que Hans Küng “estava certo ao centrar sua interpretação abrangente da existência cristã em Jesus Cristo”. Cf. KÜNG, Hans. Ser cristão. Rio de janeiro: Imago, 1976. 557 Idéia de que a interpelação de Deus à existência humana, em Jesus Cristo, provém inteiramente de fora e contraria os interesses humanos e as exigências internas da liberdade humana. 558 Para isso, parte da fenomenologia transcendental da existência humana.

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c) a cristologia narrativa: preocupa-se com o que podemos saber a respeito de Jesus, seu

comprometimento com o reino de Deus e até sua fé, essa, porém, na medida em que pode ser

discernida a partir de suas ações;559

d) a cristologia existencial: considera que nada se sabe nem se pode saber acerca de Jesus.

Não são os dados históricos ou coisas que Jesus tenha feito que possibilitarão o

estabelecimento da fé, mas, sim, a vivência de cada fiel e da comunidade como um todo.

Apesar de pressupor a figura histórica de Jesus, o que importa mesmo é em que medida ele

exerce influência sobre as pessoas e, portanto, de que maneira é interpretado;

e) a cristologia da libertação: incorporando muitos dos aspectos anteriores, essa cristologia,

simbolizada na expressão “opção pelos pobres”, interpreta Jesus do ponto de vista da situação

social e cultural de privação, que relega as pessoas a condições subumanas de sobrevivência;

f) a cristologia feminista: compartilha com a cristologia da libertação um arcabouço dialético

comum, a estrutura formal da opressão e da libertação;

g) a cristologia inculturada: na mesma medida em que se fez grego e latino, sendo

reinterpretado profundamente por sucessivas ondas de cultura ocidental, hoje, Jesus Cristo

tem de tornar-se africano, indiano, filipino e boliviano. “Isso envolve interpretação e sublinha

a necessidade de mudança e de diferença na compreensão” (HAIGHT, 2003, p. 37);560

h) Jesus Cristo e as outras religiões: questão central para o projeto de inculturação, para a

identidade cristã e, portanto, para a cristologia. O “fato de haver pouco consenso, se é que

existe algum, em torno da posição de Jesus relativamente a outras mediações de Deus na

história, revela tratar-se efetivamente de uma questão aberta, definidora de uma matriz

atitudinal que precede outras problemáticas cristológicas” (HAIGHT, 2003, p. 38);

559 Os teólogos políticos e os da libertação “reivindicam uma cristologia narrativa que seja ao mesmo tempo uma teologia da práxis” (HAIGHT, 2003, p. 34). 560 Segundo Haight (2003), os temas que estão na ordem do dia e que irão adquirir extrema relevância nos próximos anos são: pluralismo, identidade nas diferenças, a possibilidade de reconhecimento mútuo na comunicação intercultural, identidade cristã focada em Jesus e através dele, em meio a diferentes concepções de salvação.

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h) outras interpretações religiosas de Jesus: a pesquisa sobre Jesus, os estudos de religião

comparada e o diálogo inter-religioso geram interpretações e representações mais explícitas a

partir da perspectiva de outras religiões. Essas interpretações assumem dupla função: de um

lado, servem de espelho aos cristãos na sua avaliação de como estão retratando Jesus para o

mundo e, de outro, revelam possibilidade de novas e diferentes interpretações;

i) a cristologia do processo: é uma tentativa de conciliar a experiência da historicidade e da

mudança, reformulando questões que requerem as categorias da fluidez e da ação. É o caso da

encarnação, que passa a ser concebida, de forma dinâmica, no contexto da contínua presença

comunicante de Deus ao mundo;

j) questões cristológicas específicas: os debates envolvem também alguns tópicos essenciais,

independentemente desta ou daquela cristologia, que geram toda uma série de interpretações

diferentes, e que por isso estão sendo objeto de revisão. Haight (2003, p. 39) enumera quatro

tópicos cruciais: (1º) “qual o significado da encarnação?”; (2º) como tornar Nicéia e

Calcedônia inteligíveis “positivamente em nossas diversas situações sociais e culturais

hoje?”;561 (3º) “do mesmo modo como a linguagem do Logos foi adotada pela cultura grega”,

que outras cristologias neotestamentárias poderiam falar com maior inteligibilidade à cultura

atual?;562 (4º) de fato, “a doutrina da economia trinitária da salvação de Deus é o sustentáculo

561 O credo do Concílio de Nicéia e a doutrina cristológica do Concílio de Calcedônia são “os dois documentos cristológicos mais importantes do período patrístico” e seus ensinamentos “são considerados oficiais e normativos para a fé cristã” (HAIGHT, 2003, p. 319). “Como doutrinas cristológicas clássicas, [esses ensinamentos] devem ser interpretados em cada época”. 562 Haight (2003, p. 189) menciona e detalha sucintamente cinco cristologias neotestamentárias. Neste espaço, elas estarão apenas citadas, pois não compõem a espinha dorsal do que aqui se quer explicitar das reflexões do autor. São elas: 1ª) Jesus Cristo como último Adão (o texto clássico de onde se capta a essência dessa imagem é Rm 5, 12-21); 2ª) Jesus Cristo como Filho de Deus (aglutina diferentes cristologias que não podem ser racionalizadas em um significado isolado; Haight privilegia a de Marcos); 3ª) Jesus potencializado pelo Espírito (Haight reflete a partir de Lucas e seu assumido significado da tradição judaica: “a presença ativa, criativa ou profética de Deus a seu mundo ou a seu povo”); 4ª) Jesus Cristo como a sabedoria de Deus (a cristologia sapiencial é, com freqüência, considerada como ponte para uma plena concepção encarnacional em três estágios de um Jesus Cristo preexistente); 5ª) Jesus Cristo como Logos de Deus (nenhum texto bíblico teve mais influência sobre o desenvolvimento da cristologia do que o prólogo do evangelho de João 1, 1-18: Jesus Cristo é o Logos do Deus encarnado). O que Haight (2003, p. 217-218) quer mostrar é que “existe um pluralismo de cristologias no Novo Testamento”, diferentes e, em certos aspectos, até contrapondo-se ou contradizendo-se uma à outra. Todas elas “são precisamente afirmações simbólicas, concernentes a aspectos transcendentais de Jesus Cristo, concebidas a partir de diferentes perspectivas, e não adequadamente contendo seu objeto”. Essas

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do próprio cristianismo, mas está tornando-se difícil propor a doutrina da Trindade imanente

como a premissa ou o ponto de partida para uma cristologia crítica e apologética”.

É possível afirmar, a partir do que se expôs, que “atualmente a teologia pode ser

caracterizada como pluralista” (HAIGHT, 2003, p. 41). “Não se pode duvidar d[...][esse seu]

caráter pluralista”, já o disse anteriormente Haight (2003, p. 33).

Haight (2003, p. 33, minha ênfase) sugere que “a consciência envolvida n[...] [essas]

diversas tendências cristológicas pode ser chamada de pós-moderna”.563 O autor (2003, p.

41) fundamenta sua sugestão na crença de que “os movimentos e os problemas que estão

impulsionando a cristologia refletem uma temática cultural”, visto que a atual cultura

intelectual ocidental denomina-se cada vez mais pós-moderna.564 A pluralidade de cristologias

na teologia cristã, a análise de seus autores e dos problemas por eles tratados sinalizam que

também “a cristologia está começando a transpor as fronteiras da cristologia moderna”

(HAIGHT, 2003, p. 382). Haight enxerga a reflexão da pós-modernidade na cristologia como

“desafios e oportunidades” e não como um entrave ao desenvolvimento teológico. Tudo

depende de como se encara a pós-modernidade e também o fazer teológico.

Haight (2003, p. 382) entende a pós-modernidade a partir de duas perspectivas: uma

material e outra formal. No sentido material, faz referência ao efetivo mundo em que vivem

os povos das sociedades desenvolvidas. Haight se restringe a essa definição puramente

diferentes perspectivas se fundamentam nas próprias culturas nas quais cada uma delas estava inserida (pauta específica de problemas, tradição religiosa particular, comunidade de origem etc.), no âmbito das quais se apropriavam de Jesus. 563 Segundo Haight (2003, p. 350), “a situação surgida de uns tempos para cá, a que se aplicou o rótulo de ‘pós-moderno’”, tem em sua base os desenvolvimentos políticos e sociais que se verificaram em todo o mundo após a Segunda Guerra Mundial, junto com os avanços na ciência, na tecnologia e na cultura intelectual. 564 Haight (2003, p. 41) acredita ser de “importância crítica” a “avaliação reflexiva dos modos e dos atributos contemporâneos do pensamento”. O que “se pode discutir”, isto sim, afirma Haight, é “se os elementos dessa situação atual transcendem claramente a modernidade”. O autor faz referência à questão, já amplamente discutida anteriormente neste espaço, que divide as reflexões, em matizações diversificadas, em duas frentes: de um lado, os que olham as atuais manifestações culturais como apenas um ‘soluço’ da modernidade (o que demandaria uma reforma ou aprimoramento desta) e, de outro, os que enxergam o atual momento cultural como uma etapa de superação da modernidade. No campo teológico, dos autores aqui arrolados, como se viu anteriormente, Torres Queiruga (2003) opta pela reforma; Küng (2001), pela superação; Hick (2000) não entra na querela; e, segundo Haight (2003), como já expresso aqui, é algo que “se pode discutir“.

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material para assegurar-se de que nas suas reflexões e caracterizações acerca da pós-

modernidade, “a imaginação permaneça radicada na experiência contemporânea”. Afinal,

pós-modernidade não designa somente a teoria intelectual ou a cultura intelectual, um

conjunto de premissas que norteia várias disciplinas intelectuais e teorias interpretativas, mas

designa também “as formas de vida que influenciam e são os efeitos do pensamento

intelectual”. O olhar de Haight com relação à pós-modernidade fixa-se, então, em certos

aspectos das culturas fragmentadas que mais e mais caracterizam as sociedades

industrializadas avançadas. Suas referências são certas concepções da realidade, por vezes

bastante teóricas e outras vezes implícitas, que acompanham a vida contemporânea.

Haight (2003, p. 382) lembra-se de Lakeland,565 que traz à tona a existência de uma

gama de valorações da pós-modernidade: a) como radicalmente nova; b) como prolongamento

da modernidade e, portanto, não dramaticamente diferente dela; e c) como nostálgica e pré-

moderna ou contramoderna, ou seja, como um repositório de idéias e valores em reação

conservadora contra a modernidade.566 Haight expressa, contudo, que, como uma cultura, “a

pós-modernidade pode ser caracterizada sem valoração, nem boa nem má, e sim como um

dado”.567 Sua análise, afirma (2003, p. 383-383), não privilegiará a pós-modernidade vista a

partir de seus extremos de completo relativismo e de negação da verdade transcendente ou

universalmente relevante, porque

a cristologia per se não aborda essas posições. Estou mais interessado na forma como a pós-modernidade como cultura existe no interior da Igreja, na medida em que os cristãos vivem em uma sociedade secular e compartilham sentimentos e idéias pós-modernos. Por conseguinte, o que [...] [se privilegia aqui] é menos uma análise objetiva da pós-modernidade e mais uma definição de como essa constelação cultural embasa os problemas que ocupam a cristologia atual. A própria descrição é parcialmente gerada pela

565 Cf. LAKELAND, Paul. Postmodernity: Christian identity in a fragmented age. Minneapolis: Fortress Press, 1997. 566 Essas questões foram exaustivamente discutidas na primeira parte deste capítulo da presente pesquisa. 567 Como se viu na primeira parte deste capítulo, esse foi o caminho seguido por Fredric Jameson, o maior crítico literário marxista. O grande mérito de suas reflexões foi ter propiciado uma abordagem coerente da pós-modernidade.

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disciplina da cristologia, na medida em que responde à cultura contemporânea. Entretanto, também desejo indicar sumariamente como essa situação não é apenas ameaçadora, mas também oferece possibilidades novas e positivas à cristologia.

No âmbito de uma conceituação material, Haight (2003, p. 383-386), que, como se

mencionou, privilegia esse aspecto em suas reflexões em detrimento de um conceito mais

formal, caracteriza sinteticamente568 a consciência pós-moderna em quatro temas:

1º) a pós-modernidade envolve uma consciência histórica radical: o progresso, meta em

direção à qual a história está se encaminhando, um telos que provê um destino e confere um

sentido ao movimento, não desperta mais a confiança. Agregou-se a isso, a esse senso da pura

contingência da história, no século XX, um novo senso: do mal e do pecado humano coletivo,

proporcionados por um século de guerras e destrutividade humana, e que traz como

conseqüência um profundo pessimismo. De fato, a história é aberta, podendo os seres

humanos como grupo destruírem a própria história humana, e essa parece ser a tendência do

momento. Cruzam-se, então, essa consciência histórica e a relatividade das idéias e dos

valores, gerando uma situação que, em seu extremo, é caracterizada por Tracy (1994, p. 16),

aludindo-se a Nietzsche, como “o abismo da indeterminação”. Nessa situação, todo

conhecimento é local, destronando aquele outrora conhecimento universalmente válido da

realidade e gerando uma avaliação cultural particular à luz de exigências práticas. Um

contexto assim caracterizado ameaça a “segurança ôntica”, pois o sentido perdeu sua

estabilidade básica. Haight (2003, p. 383) acredita que, “na deriva da história, após o

holocausto, é difícil atribuir um sentido concreto à existência divina”. Com relação à

cristologia, não basta um simples retorno ao Jesus histórico. Apesar de sinalizar uma

consciência histórica, essa não é de um tipo radical. “A consciência histórica radical começa

[1º] quando se reconhece quão profundamente o significado de Jesus Cristo muda quando

reinterpretado em diferentes épocas e culturas, e [2º] porque tal mudança é necessária”. Jesus 568 E também “arbitrariamente”, afirma Haight (2003, p. 383).

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Cristo, compreende Haight (2003, p. 384), pode possibilitar e oportunizar a criação de um

novo significado, sob duas condições: um senso radical de historicidade e novas

interpretações de Jesus de Nazaré na pós-modernidade;

2º) a pós-modernidade envolve uma consciência social crítica: uma visão radicalmente

pessimista aponta a sociedade como impulsionada, no mínimo, pelos interesses de poder,

classe, gênero ou pela ganância. Esse aspecto, que não se pode negar,569 da pós-modernidade,

ampliado-se ao extremo, pode reduzir o sujeito humano, a pessoa, a uma função de forças

impessoais. As cristologias socialmente mediadas,570 reconhecendo a sociabilidade

fundamental da existência humana, tornam-se opções de reação contra qualquer

reducionismo. Elas percebem que as estruturas sociais,571 por serem em última instância

funções da liberdade e do interesse humanos, podem ser modificadas, possibilitando um

mediação com os valores transcendentais. As cristologias da libertação, segundo Haight

(2003, p. 384), não deixam de ser uma reafirmação da subjetividade e da liberdade humanas,

no entanto, enfatizam o “sujeito-com-os-outros”, a possibilidade de uma liberdade em

sociedade e da sociabilidade da existência humana. Socialmente conscientes, elas

“desenvolvem-se dentro de um contexto pós-moderno e interpretam Jesus Cristo como um

imperativo humano para o exercício da responsabilidade coletiva na criação de estruturas

sociais justas”;

3º) a pós-modernidade envolve uma consciência pluralista: essa é uma marca sui generis do

atual momento. Em nenhuma outra época isso se manifestou com tal intensidade. As pessoas

têm um agudo senso da diferença dos outros, do pluralismo das sociedades, das culturas e das

569 “Um dos marcos da modernidade foi a guinada para o sujeito, para a razão e para a crítica universal como o fundamento da verdade” (HAIGHT, 2003, p. 384). Na pós-modernidade, esse sujeito se reduz à função da história, de arranjos sociais, de forças psicológicas inconscientes, deixando de ser uma “câmara de compensação da verdade”. Cf. LAKELAND, Paul. Postmodernity: Christian identity in a fragmented age. Minneapolis: Fortress Press, 1997. p. 18-24. 570 Tema da sociologia do conhecimento. Segundo ela, a estrutura lingüística de todo pensamento implica mais profundamente a mediação social conhecimento. 571 Em todos os seus segmentos, das estruturas lingüísticas às instituições de escravidão.

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religiões, e mais ainda, senso da relatividade que isso implica. Não é mais possível postular a

centralidade da cultura ocidental ou a supremacia de sua perspectiva, o cristianismo como a

religião superior ou “Cristo como centro absoluto em relação ao qual todas as demais

mediações históricas são relativas” (HAIGHT, 2003, p. 385). Nesse mundo pluralista e

policêntrico em seus horizontes de interpretação,572 a consciência pluralista e relativista

rechaça os valores universais e a verdade compartilhada.573 Com isso, perde-se qualquer

identidade especial de grupo e fica descaracterizada qualquer narrativa totalizante que confira

lugar privilegiado na história a um povo.574 No lugar dos mitos ou metanarrativas graça o

pluralismo, no qual carece de sentido uma estrutura totalizante que queira englobar as demais

estruturas. Haight afirma uma cristologia que reside no cerne da teologia das religiões e do

pluralismo religioso e, por extensão, no âmago da pós-modernidade. O autor acredita não

haver na cristologia questão mais vital que essa e que exerça efeito mais profundo sobre a

consciência cristológica. No entanto, é nesse limiar, nessa fronteira, que “a pós-modernidade

oferece uma oportunidade para um novo e dramático sentido cristológico”. Como isso se

daria? Ora, expressa Haight, “a descoberta do pluralismo é precisamente a descoberta do

‘outro’, de outras pessoas que são diferentes e valiosas, embora excluídas ou suprimidas pelas

grandes narrativas”. Não se poderia, nesse novo contexto,

interpretar Jesus Cristo precisamente como narrativa de Deus tão aberta aos outros que não coopta sua identidade específica nem privilegia os cristãos em detrimento deles? Pode a cristologia representar um Jesus Cristo que não divida, mas aceite o outro como outro e, portanto, funcione como princípio de unidade que respeita as diferenças? Aqui a pós-modernidade parece propiciar a ocasião para um novo e mais acurado aprofundamento no significado de Jesus Cristo que genuinamente transcenda o passado;

572 Tracy aborda em pormenores essa temática em TRACY, David. On naming the present: God, hermeneutics, and church. Maryknoll: Orbis Books, 1994. p. 136-139. 573 Os jovens, afirma Haight (2003, p. 385), refletem bem essa consciência pluralista e relativista. “Eles são incapazes de definir quaisquer valores universais ou absolutos; tudo se reduz à opinião, toda opinião em princípio deve ser tolerada”. 574 Haight (2003, p. 385) afirma que “na cultura pós-moderna, é impensável que um grupo de pessoas seja um povo eleito”. O mesmo ocorre com uma religião que pretenda ocupar o centro ao qual todas as outras devem ser incorporadas.

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4º) a pós-modernidade envolve uma consciência cósmica: uma análise da ciência – sobretudo

da epistemologia da ciência –, as mudanças e desenvolvimentos que ela vem conhecendo,

seus paradigmas e conceitos fundamentais, além do conteúdo da visão de mundo que

atualmente apresenta, proporcionam uma compreensão da transição da modernidade para a

pós-modernidade.575 A astronomia e as ciências físicas vêm transformando a representação do

cosmo, e nele, da galáxia e do planeta em que vivem os seres humanos. É impossível, ou ao

menos bastante difícil, imaginar que o ser humano seja o centro das coisas. “O

antropocentrismo ingênuo está morto”, afirma Haight (2003, p. 386). A nova preocupação,

agora com o planeta, auxilia na internalização da consciência cósmica. Essa nova consciência

expandida – da espécie humana ao planeta como um todo –, adverte Haight, tem de tornar-se

operativa também no pensamento sobre as realidades últimas, “como Deus e a relação entre

ele e a existência humana”. A soteriologia deve ser colocada contra o pano de fundo da

criação de uma nova forma, não mais operando com uma linguagem que tacitamente presume

um universo aristotélico. A consciência pós-moderna relativiza a humanidade no interior do

universo, contudo, ao mesmo tempo, proporciona uma perspectiva genuinamente nova acerca

da unidade do gênero humano e da solidariedade humana. Mesmo com todas as diferenças de

religião e cultura, a humanidade compartilha o mesmo planeta, a mesma galáxia, nesse

cosmos tão ampliado, formando uma efetiva comunidade. Que cristologia se adequaria a essa

realidade? Certamente, afirma Haight (2003, p. 386),

uma cristologia que venha confirmar a importância de uma humanidade comum, de uma comunidade humana em um habitat comum, de um processo compartilhado de natureza do qual todos são parte, e ao mesmo tempo respeite as diferenças humanas neste mundo pós-moderno.

575 Um aprofundamento do delineamento da ascensão da pós-modernidade em termos científicos pode ser buscado em MILLER, James B. The emerging postmodern world. In: BURNHAM, Frederic B. (Ed.). Postmodern theology: Christian faith in a pluralistic world. San Francisco: Harper & Row, 1989. p. 1-19.

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É o que se verá a seguir, a tentativa de Haight (2003, p. 386), definida por ele como

“um ensaio construtivo e interpretativo”, no sentido de uma cristologia na pós-modernidade.

3.1.3 Uma cristologia construtiva em um contexto crescentemente pós-moderno

Haight (2003, p. 386) reflete teologicamente a partir de uma convicção: “a situação

pós-moderna da cristologia deve funcionar como chamariz para forjar novas concepções

acerca de Jesus Cristo que satisfaçam a índole de nossa época”. Sua cristologia, a tentativa de

uma nova visão, a partir do contexto pós-moderno, acerca de “áreas de problema ativamente

abordadas na cristologia”, antecipa o autor, “dificilmente satisfará o desafio lançado pela pós-

modernidade”. Essa tarefa premente só pode ser realizada por um esforço coletivo e de longo

prazo. No entanto, completa Haight, seu “ensaio construtivo e interpretativo pretende ser uma

voz nesse diálogo”.

A mais fundamental de todas as experiências cristãs pode ser referenciada ao termo

“‘salvação’” (HAIGHT, 2003, p. 387). A base de expansão do movimento cristão foi

propiciada, sob uma perspectiva histórica, pela experiência de Jesus como salvador. O

cristianismo, tanto seu surgimento quanto sua continuidade, é devido à experiência que as

pessoas fizeram e fazem de Jesus como portador da salvação de Deus. É por isso que Haight

(2003, p. 12) acredita que “a base da cristologia é a soteriologia” e “toda compreensão cristã

de Jesus Cristo tem sua fonte na experiência da salvação”.576 Nesse sentido, pode-se afirmar

que, em sua estrita atividade de definição do status de Jesus em face de Deus e dos seres

576 Nem todos os teólogos, afirma Haight (2003, p. 12), concordam com “essa estrutura fundamental da precedência da soteriologia com relação à cristologia”. Uma série de cristologias, contudo, “leva em conta os muitos aspectos dessa experiência cristã primordial” (HAIGHT, 2003, p. 387).

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humanos, “a cristologia depende da soteriologia” (HAIGHT, 2003, p. 387). Malgrado tal

centralidade e importância, inexiste uma definição oficial conciliar de salvação ou uma

concepção universalmente aceita, o que, segundo Haight, “não é uma situação

necessariamente má”: encoraja a pluralidade de conceitualizações.577

Em contrapartida, essa centralidade e importância é que tornam mais graves os

problemas que envolvem o conceito de salvação. A linguagem tradicional acerca da salvação

não soa “digna de crédito hoje em dia”. Expressões tradicionais acerca do modo como Jesus

salva “parecem mitos que já não falam às pessoas instruídas”, sendo, por vezes, até ofensivas.

As explicações teológicas tradicionais “não fazem melhor”, podendo até constituir-se em

obstáculo à fé.

Uma “exposição construtiva da salvação tal como mediada por Jesus Cristo” é a

tentativa de Haight (2003, p. 388, minha ênfase) no sentido de responder às prementes

questões:

dado o pluralismo de concepções, existe uma forma de, sistematicamente, estabelecer um centro de gravidade em torno da salvação mediada por Jesus que seja clara e definida, mas aberta e não exclusiva? Em face da confusão sobre a natureza da salvação, é possível formular as questões e as crises contemporâneas para as quais Jesus medeia uma resposta salvífica? Dada a falta de credibilidade da linguagem mitológica, quando lida por seu aspecto exterior, pode-se encontrar uma formulação simbólica dessa doutrina que seja inteligível e mais consentânea com a experiência humana concreta?

O termo “‘salvação’”, que “conota um significado mais genérico e neutro”, apesar de

ser também “uma metáfora historicamente condicionada, não sem suas próprias trajetórias

internas”, é tomado por Haight (2003, p. 388) de forma distinta de redenção e expiação. 578 A

intenção expressa de Haight é “interpretar” e “não presumir” o significado de salvação. A

577 O resultado disso, expressa Haight (2003, p. 387), “é que o significado da salvação permanece indefinível: todo cristão consciencioso sabe o que é a salvação até que lhe peçam que a explique”. 578 No entender de Haight (2003, p. 388), “a noção de redenção [...] está fortemente atrelada a uma teoria da salvação como resgate”, enquanto “a de expiação sugere vigorosamente a teoria da satisfação de cunho anselmiano ou a ênfase dos reformadores no sofrimento e na morte de Jesus”. O autor, contudo, expressa que “esses temas não devem ser descartados”.

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dimensão e o sentido de salvação podem ser tanto objetivos quanto subjetivos. Objetivamente,

salvação é entendida pelo autor como a obra de Jesus Cristo e que teve, e tem, o efeito de

salvação humana; subjetivamente, a apropriação desse efeito salvífico pelos seres humanos.

Sua “exposição construtiva” da salvação desenvolverá, afirma Haight, “a salvação subjetiva”.

3.1.3.1 Pontes de passagem para a pós-modernidade

“Antes de propor uma compreensão de como Jesus salva que possa parecer digna de

crédito a uma sensibilidade religiosa em uma cultura pós-moderna”, Haight (2003, p. 395)

volta-se para a teologia moderna: “como as experiências e as crenças acerca de Jesus como

salvador foram transformadas pelos teólogos modernos? O que se pode aprender da

soteriologia moderna”, naqueles seus aspectos que poderiam estabelecer um ponto de contato

com as exigências pós-modernas?579

(1ª ponte) A imaginação histórica constitui-se numa das “nítidas rupturas” (HAIGHT, 2003,

p. 396) entre a teoria da redenção clássica e a explicação moderna da obra salvífica de Jesus

Cristo: a mudança de um estilo mítico de linguagem (descritiva de um evento objetivo da

redenção) para a utilização de uma linguagem mais histórica. Muitos teólogos seguiram essa

significativa trilha aberta por Schleiermacher em sua soteriologia. Schleiermacher, segundo

Haight, ao escrever uma “‘vida’” de Jesus, tinha uma imaginação histórica, uma dimensão

579 Haight (2003, p. 395-396) afirma não pretender, nem caberia no espaço de sua obra, escrever um volume à parte sobre a cristologia moderna. Sua intenção é “maximizar o que se pode aprender da teologia moderna”, “algumas das valiosas percepções” de seus autores, no sentido de se estender uma “ponte entre a soteriologia clássica e as exigências da pós-modernidade”. Os aspectos privilegiados indicam onde a teologia cristã pode estar transpondo um limiar em direção à pós-modernidade.

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histórica da obra salvífica de Jesus. Para ele,580 a salvação consiste em ser consciente da

própria união com Deus; uma consciência que não se origina dos próprios recursos, mas

advém como graça exterior ao próprio eu. Em resumo, deriva da autodoação ou presença de

Deus a uma pessoa. Mas, a salvação cristã, pergunta Haight, não é causada por Jesus?

Schleiermacher, no entanto, “é cauteloso” ao delinear a causalidade histórica da salvação

cristã: Jesus. Em sua reflexão, a perfeita consciência jesuânica de Deus é transmitida aos

outros, que dela passam a participar, por Jesus, pelo seu contato histórico com eles, durante

sua vida, e, posteriormente, pela comunidade histórica que é a igreja.581 As pessoas são livres,

e é nessa liberdade que são afetadas e incorporadas à influência histórica da consciência de

Deus – Jesus e seu veículo posterior, a igreja. Dessa forma, pode-se dizer que “a salvação

cristã é uma influência histórica que apela à liberdade humana” (HAIGHT, 2003, p. 396).

Observa-se em Schleiermacher uma tensão entre uma dimensão histórico-empírica e

uma dimensão místico-religiosa, ou, nas palavras dele, entre o empírico e o mágico. 582 De um

lado, causas naturais e históricas da salvação (como a influência concreta da pessoa de Jesus

de Nazaré) e, de outro, a causa sobrenatural, Deus, que concede a salvação como graça.

Haight (2003, p. 397) retira desse aspecto da soteriologia schleiermacheriana “uma

série de direções iniciais para uma linguagem da salvação que será inteligível na cultura pós-

moderna”. Primeiro: rompe o simbolismo mitológico da tradição clássica; recupera o núcleo

dessa linguagem nos termos concretos da história (Jesus, os discípulos, a igreja, a conversão,

a vida cristã e a missão); a salvação não é privatista (mas desdobra-se na e através da

comunidade); segundo: a linguagem da salvação também apela à experiência religiosa

humana; a salvação neste mundo, pois isso é o que Schleiermacher está descrevendo, há de

poder ser descrita fenomenologicamente em alguma medida; terceiro: a linguagem da 580 Cf. SCHLEIERMACHER, Friedrich. The Christian faith. New York: Harper Torchbooks, 1963. O ponto específico delineado acima pode ser conferido à página 356. 581 A igreja, instituição histórica, é parte integrante da concepção schleiermacheriana da salvação. 582 Cf. SCHLEIERMACHER, Friedrich. The Christian faith. New York: Harper Torchbooks, 1963. p. 430-431.

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salvação preserva a tensão entre o histórico e o místico, a mediação e a resposta humanas, o

caráter gratuito, transcendente e divino da salvação.

(2ª ponte) A salvação como revelação, temática clássica, foi modernamente recuperada por

Karl Barth, no lado protestante, e Karl Rahner, no lado católico.583 Na base de suas reflexões

– Jesus que salva por revelar Deus –, a revelação é compreendida como um símbolo

complexo e profundo. A revelação não se resume a um frágil processo epistemológico:

revelação informação, transmissão de conhecimento ou explicação de alguma coisa. Inclui o

conhecimento, no entanto, vai além disso, chegando à experiência do encontro com Deus.

Nesse sentido, tanto em Barth quanto em Rahner, “revelação é salvação, e a salvação é

constituída pela revelação” (HAIGHT, 2003, p. 397). Jesus Cristo é Deus conosco, e isso é

salvação.584

(3ª ponte) Um dos mais graves problemas para a compreensão contemporânea do que Jesus

fez pela salvação humana é o clássico enfoque que os cristãos dão ao sofrimento e à morte

de Jesus. Haight vê como “mais problemática [...] ainda a avaliação positiva que fazem da

morte de Jesus na cruz”.585

Jon Sobrino586 mira essa questão ao recuperar a teologia paulina da cruz. Enfoca,

tentando desenredar, os muitos problemas e mal-entendidos que qualquer concepção literal da

linguagem sacrifical normalmente provoca. Sua questão central a esse respeito é: o que

poderia ter sido agradável a Deus no trágico acontecimento da dolorosa jornada de Jesus rumo

583 Outros teólogos protestantes e católicos também abordaram a questão. Os dois mencionados têm suas reflexões colocadas em pauta pelo que representam e pelo que influenciaram em seus respectivos lugares teológicos. 584 Em Barth, diz Haight (2003), Jesus revela Deus porque é o Filho e Verbo divino, porque é a presença de Deus à existência humana na história. Uma revelação assim já é reconciliação, um restabelecimento da união e da amizade. Jesus salva porque é o ser de Deus para os seres humanos, o livre retorno de Deus para permanecer com os seres humanos. Aquilo que é revelado, na reflexão de Barth, equipara-se ao próprio ser de Deus. Haight (2003, p. 398) afirma que “todas essas afirmações encontram analogias muito estreitas na teologia de Karl Rahner”. 585 Haight (2003, p. 398) se pergunta “como podem o sofrimento e a crucificação de Jesus ser outra coisa senão um mal?” 586 Cf. SOBRINO, Jon. Jesus, o libertador: a história de Jesus de Nazaré. Petrópolis: Vozes, 1994.

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à execução? Sob a ótica paulina, Sobrino afirma que a resposta não pode ser outra senão a de

que o próprio Jesus é que foi agradável a Deus, produzindo a salvação, e não sua dor e seu

sofrimento.587 A vida de Jesus como um todo, e não um de seus elementos, é que foi

agradável a Deus.

Continuando sua investigação, Sobrino quer saber: de que maneira, exatamente, a

fidelidade de Jesus comporta a salvação para os demais seres humanos? O autor reflete em

duas direções, abordando dois diferentes aspectos: No primeiro, a convicção de que Deus está

agindo em Jesus de Nazaré. Essa pressuposição abre um campo semântico, onde se pode

começar a entender a lógica pela qual a paixão e morte de Cristo são reveladoras do amor de

Deus. Nas palavras de Sobrino,588

O próprio Deus tomou a iniciativa de se fazer presente em Jesus, e a cruz de Jesus não é, então, só o agradável a Deus, mas aquilo em que Deus se expressa como agradável aos seres humanos. Não é causalidade eficiente, mas simbólica. A vida e a cruz de Jesus são aquilo em que o amor de Deus pelos seres humanos se expressa e torna-se tão real quanto possível.

De tão eivada da presença de Deus, toda a vida de Jesus pode ser considerada uma

parábola ou gesto de comunicação de Deus aos seres humanos, algo que “atinge sua máxima

intensidade simbólica quando a fidelidade de Jesus à causa de Deus, por meio da própria

morte, torna-se uma expressão do amor de Deus pelos seres humanos” (HAIGHT, 2003, p.

399-400).

O segundo aspecto tem a ver com o que o positivo enfrentamento da morte por Jesus

revela acerca da existência humana. A cruz explicita e intensifica a mensagem implícita de

Jesus sobre a natureza da existência humana, sobre o que realmente é importante e valioso em

relação ao ser humano.

587 Haight (2003) afirma que nesse ponto Sobrino, implicitamente, recorre à teologia rahneriana da morte. Em Rahner, a morte de Jesus é considerada um ato que recapitula e livremente dispõe a totalidade da própria vida. Cf. RAHNER, Karl. On the theology of Death. New York: Herder & Herder, 1961. p. 51-52. 588 Cf. SOBRINO, Jon. Jesus, o libertador: a história de Jesus de Nazaré. Petrópolis: Vozes, 1994. p. 230.

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(4ª ponte) O poder salvífico da ressurreição de Jesus e de seu ministério público pode

acabar negligenciado pela concentração da reflexão sobre a salvação no sofrimento e na

morte.

Jürgen Moltmann589 sustenta que a cruz, ou o sofrimento e a morte de Jesus, não pode

ser separada da ressurreição. O significado salvífico engloba a cruz e a ressurreição, aspectos

de um único evento, um histórico e o outro transcendente, denominado “evento crístico”. A

cruz de Jesus é a cruz do ressurrecto.

A esperança, afirma Haight (2003, p. 401), é também aspecto importante na

explicação do poder salvífico da ressurreição, pois, “a morte de Jesus, como morte para a

ressurreição, equivale a uma promessa de Deus de salvação no futuro que responde à

esperança humana”. O caráter salvífico da esperança na ressurreição pode ser descrito por

meio de uma projeção hipotética e fenomenológica acerca da transformação dos discípulos

antes e depois de terem tomado consciência de que Jesus havia ressuscitado.

(5ª ponte) A causalidade da ação salvífica de Jesus pode aprofundar mais a concepção do

modo como Jesus salva. Do leque de concepções acerca dessa temática, saltam duas questões

diferentes: “a relação de Jesus com a salvação de todos os seres humanos e a relação de Jesus

com a salvação dos cristãos” (HAIGHT, 2003, p. 403).

Com relação ao primeiro aspecto, a moderna cristologia divide-se entre aqueles que

defendem a idéia de que Jesus causou ou causa a salvação do conjunto da humanidade, e

aqueles outros que sustentam posição adversa. Um dos pontos que os diferenciam em suas

concepções está na medida em que esses teólogos internalizam uma matriz histórica para seu

pensamento.590

589 Cf. MOLTMANN, Jürgen. O caminho de Jesus Cristo: cristologia em dimensões messiânicas. Petrópolis: Vozes, 1993. p. 214. 590 Haight (2003, p. 403) acredita que “só por intermédio de uma elaboração teórica, especulativa ou metafísica pode-se tentar compreender como Jesus Cristo teve uma influência causal sobre a salvação daqueles que nunca entraram em contato com ele historicamente, ou viveram antes do aparecimento de Jesus”. É nessa linha que

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Acerca do segundo aspecto, o da relação de Jesus com a salvação dos cristãos, Haight

(2003, p. 403-404) relembra a distinção e a tensão estabelecidas por Schleiermacher entre o

empírico e o mágico. Ao mesmo tempo em que Jesus exerce uma influência empírica e

histórica sobre as pessoas, nenhuma causalidade empírica pode importar em salvação; só

Deus causa a salvação. Vale, então, dizer que a ação salvífica de Deus ocorre a partir de fora,

pois é transcendente, mas no interior de uma pessoa, pois é a presença de Deus como poder

salvífico restaurando a existência humana.

Pode-se, em vista disso, afirmar que

a causalidade de Jesus para a salvação humana está no gênero da causalidade simbólica ou sacramental”. [...] Jesus Cristo causa a salvação dos cristãos ao transformar a presença de Deus para a salvação em um encontro explicitamente consciente. Jesus não causa a amorosa presença de Deus para a existência humana, que está aí desde a alvorada da criação. Mas Jesus faz com que seja revelada, e assim formalmente aceita pela liberdade humana, e portanto conscientemente efetiva.

(6ª ponte) A relação entre salvação e criação é outro tópico que lança luz sobre a natureza da

salvação. Três diferentes posicionamentos acerca da temática podem ser vislumbrados como

ilustrações de três concepções diversas da salvação: Karl Barth, Karl Rahner e Edward

Schillebeeckx.

Barth insistia591 em que a criação e a salvação eram dois atos radicalmente separáveis

e diferentes de Deus. Existe uma grande divisão na realidade que separa o antes e o depois de

Jesus Cristo: a própria realidade mudou.592

EmRahner, as ordens da criação e da salvação são realmente distintas, mas

inseparáveis. Através de uma ontologia moderna e transcendental, Rahner recupera a distinção

escolástica entre as ordens natural e sobrenatural. Apesar de representarem diferentes

reflete Karl Rahner. Já Schubert Ogden, “em certos aspectos é mais sensível à consciência histórica nesse ponto”. 591 Em seus primeiros volumes de Church dogmatics. 592 Barth tem uma visão análoga à visão cósmica de Agostinho: a salvação repara uma natureza de outra forma permanentemente danificada e degradada.

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dimensões do relacionamento único de Deus com os seres humanos, nunca podem ser

separadas. 593

Para Schillebeeckx, em contraste, não existe absolutamente nenhuma distinção efetiva

entre a atividade criadora e a atividade salvífica de Deus. A vida de Jesus é uma iniciativa

histórica de Deus na história, no entanto, a iniciativa salvífica é a obra de Deus criador.

Uma melhor perspectiva da temática pode ser obtida situando-a “em um marco

interpretativo mais abrangente” (HAIGHT, 2003, p. 405). É o que faz Elizabeth Johnson594 ao

desenvolver uma tipologia geral de três grandes matizes da reflexão teológica e da linguagem

soteriológica: mitológico (teologia pré-moderna, destituída de consciência histórica),

“narrativa histórica totalizante” 595 (em certa medida, é historicamente consciente e refere-se

aos eventos históricos; acredita poder abarcar o todo da história e da realidade em seu

escopo)596 e pós-moderno (consciência histórica mais radical da particularidade e da

contingência e um senso mais profundo do mal ininteligível que estigmatiza a história).597

Haight (2003, p. 405) parte da premissa de que “o discurso da salvação tem uma

estrutura narrativa”, o que permite a seguinte assertiva: “essas mudanças de contexto

correspondem a diferentes tipos de narrativa soteriológica”. Elas são diferenciadas entre si

pelo crescente grau de internalização de uma consciência da historicidade. A partir desse

593 Segundo Haight (2003, p. 404), esta ‘unidade e diferença’ percorre toda a teologia de Rahner. Haight (2003, p. 377), contudo, lembra que “a cristologia transcendental de Rahner é multifacetada demais para ser sumariamente caracterizada. É igualmente uma função de seu método e de múltiplas investigações de diferentes pontos de vista no decurso de uma longa carreira”. 594 Cf. JOHNSON, Elizabeth. Jesus and salvation. New York: Crossroad, 1992. 595 Assim denominado por Johnson. Cf. JOHNSON, Elizabeth. Jesus and salvation. New York: Crossroad, 1992. 596 Em sua tentativa de narrar uma meta-história, uma história de toda a realidade, esse modelo de pensamento compartilha o ideal iluminista de que a razão clássica é capaz de chegar a uma compreensão universal das coisas. Segundo Haight (2003, p. 405), “a interpretação totalizante que Rahner faz da história da salvação é um perfeito exemplo desse tipo que combina intenção histórica e universalista”. 597 Os males do século XX trazem a consciência da índole caótica, contingente e ameaçada da existência e da fragilidade do projeto humano. Nesse contexto intelectual, a história da salvação cristã torna-se uma narrativa histórica contingente, mas, mesmo assim, uma narrativa em que a presença e a ação de Deus são sentidas.

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contexto mais vasto, pode-se perceber que uma mudança mais decisiva de consciência está

ocorrendo.

Nesse contexto paradigmático pós-moderno, segundo Haight (2003, p. 406-407), o

conceito de salvação assume algumas novas características em sua relação com a criação:

Primeiramente, e antes de tudo, a salvação não será concebida independentemente dos

eventos concretos da história. Na base disso, encontra-se uma maior identidade entre as

doutrinas da salvação e da criação.

Segundo, o relacionamento entre criação e salvação assume novas dimensões de

significado em relação a uma outra variável, a liberdade humana. Transforma-se o ‘Deus cria

para salvar’ (Barth tardio e Rahner) em ‘Deus salva para criar’, incrementando a liberdade

humana e libertando-a para a criatividade. A salvação não é meramente passiva mas também

ativa.

Terceiro, a relação entre a ação salvífica geral e criadora de Deus e a história particular

da ação de Deus em Jesus é reequacionada na teologia cristã. A ação salvífica particular de

Deus em Jesus Cristo, mesmo que especial, efetiva, verdadeira e de relevância universal, não

esgota a ação salvífica e criadora de Deus. Em suma, “o evento de Jesus revela a salvação de

tudo ao revelar Deus, mas não é a causa da salvação de tudo”. 598

Quarto, “à proporção que nos tornamos conscientes da fragilidade do planeta Terra e

do dano que causamos a nosso lar no universo, a terra biofísica e até o cosmo entraram

novamente em nossa compreensão como um objeto de salvação” (HAIGHT, 2003, p. 407). O

antigo tema clássico de uma salvação cósmica retorna a partir de premissas pós-modernas:

“nosso mundo é um sistema contingente finito que nutrir ou destruir”.

598 Cf. JOHNSON, Elizabeth. Jesus and salvation. New York: Crossroad, 1992. p. 10.

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Haight (2003, p. 389-391), à luz desses esboços preliminares, explicita as premissas e

pressuposições fundamentais que balizam o arcabouço a partir do qual emerge sua sistemática

e construtiva teoria da salvação, “uma compreensão de como Jesus salva que possa parecer

digna de crédito a uma sensibilidade religiosa em uma cultura pós-moderna” (HAIGHT,

2003, p. 395). Nas palavras do autor (2003, p. 389), tais premissas são “princípios [...]

constitutivos da estrutura de uma soteriologia que se correlaciona com a cultura pós-

moderna”: 1ª) Jesus de Nazaré é a fonte histórica do cristianismo e o foco do ato de fé

cristão;599 2ª) a experiência da salvação em Jesus de Nazaré e por seu concurso é a base do

próprio cristianismo;600 3ª) uma abordagem historicista da salvação fundamenta-se numa

estrutura simbólica da soteriologia e da cristologia;601 4ª) a salvação cristã pode ser definida

simplesmente como o encontro com Deus em Jesus de Nazaré;602 5ª) o Jesus da história

desempenha importante papel na interpretação de como Jesus Cristo é salvador.603

A interpretação construtiva acerca da salvação, tentativa de Haight (2003, p. 408),

explicitada nos itens subseqüentes desta pesquisa, deve ser crível hoje: “uma noção de

salvação que se pretenda suficientemente integral, abrangente e relativamente adequada terá

de responder, no mínimo, às grandes exigências de nossa época de pós-modernidade”. Que

exigências são essas? Apesar de reconhecer a impossibilidade de ser “abrangente” diante da

599 Segundo Haight (2003, p. 389), uma consciência histórica geral junto à exigência contemporânea de um método apologético em teologia “obrigam a imaginação do teólogo a retornar ao Jesus da história: só uma reacionária e receosa fuga da cultura deslocará essa consciência histórica para um confessionalismo sectário que não entabulará um diálogo com outros testemunhos da experiência humana comum”. 600 Haight acredita que tal formulação ressalta “o caráter elementar e primordial do termo ‘salvação’”: efeito da capacidade de tornar pleno e positivo o que é negativo, corrosivo e pernicioso à existência humana, todas as formas de morte ou de aniquilamento. 601 “A linguagem do símbolo descreve o evento humano do encontro da salvação em Jesus Cristo” (HAIGHT, 2003, p. 389). 602 “Jesus torna Deus salvificamente presente” (HAIGHT, 2003, p. 390). 603 Haight (2003, p. 390) acrescenta que o essencial é não um conhecimento histórico detalhado e acurado a respeito de Jesus de Nazaré, mas, sim, que se satisfaça “a exigência de plausibilidade histórica na própria concepção da obra salvífica de Jesus Cristo”.

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questão religiosa, Haight (2003, p. 408-411) enumera “grandes áreas temáticas”, “seis

exigências específicas que uma concepção contemporânea da salvação deve contemplar”:

1ª exigência: salvação atual e concreta. A salvação deve ser alguma coisa que também pode

ser experienciada agora e não meramente uma promessa ou exclusivamente uma realidade

futura. Além disso, qualquer noção de salvação duradoura e profunda deve ser extraída da

experiência de uma mediação objetiva que é igualmente sólida e duradoura;

2ª exigência: salvação integral. Não pode incluir a chamada dimensão espiritual da vida de

uma pessoa e não afetar sua atividade neste mundo. “A salvação hoje não pode ser

interpretada como salvação do mundo”, a não ser “na medida em que este, embora de certa

forma não se confunda com o eu, também é parte integrante da individualidade”;

3ª exigência: a finalidade da salvação. A salvação no mundo deve abordar o nexo entre a ação

humana e o estado definitivo das coisas, o eschaton. “A questão específica da salvação

envolve uma concepção de história que lhe confere, e a minha liberdade nela, um sentido

último”;

4ª exigência: a abrangência da salvação. A salvação não deve ser interpretada apenas

individualmente, mas também socialmente. Não há salvação alguma fora do relacionamento

com os demais seres humanos;

5ª exigência: a salvação em outras religiões. A compreensão cristã de como a salvação

mediada por Jesus Cristo dirige-se aos “não-cristãos”, uma questão tão antiga quanto a

própria igreja cristã, com a internalização de uma nova consciência histórica e pluralista, está

a reclamar um novo entendimento do lugar da salvação cristã relativamente às demais

concepções religiosas da realidade definitiva;

6ª exigência: salvação e cosmovisão científica. “Precisamos de uma concepção de salvação

que seja sensível ao impacto negativo que o desenvolvimento humano está tendo sobre nosso

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sistema de proteção da vida, e que leve em consideração os dados científicos concernentes à

espécie humana dentro do quadro mais amplo da realidade do cosmo criado por Deus”.

É sob a luz desses fatores que se deve interpretar a experiência de salvação a partir da

tradição. É o que faz Haight.

3.1.3.2 Jesus como salvador

A teoria da salvação proposta por Haight (2003, p. 412, minha ênfase), tentando

satisfazer às exigências da cultura intelectual pós-moderna da atualidade, além de em linha de

continuidade com as tradições de que deriva, pode ser resumida na fórmula: “Jesus é

salvação por ser revelador de Deus, por ser símbolo de um encontro com Deus e modelo

de existência humana”.

Pode-se proceder a exposição explicativa, considerando-se os termos da fórmula.

Haight (2003, p. 412) o faz de forma concisa:604

Jesus de Nazaré é o revelador de Deus à imaginação cristã. É a sua vida concreta que

concentra a atenção e fixa a imaginação de sua própria abordagem, afinal, ele não é alguma

coisa estática, ou um símbolo abstrato e conceitual.

Jesus revela Deus.

Dizer que Jesus revela Deus significa que a compreensão cristã de Deus, na medida em que é especificamente cristã, remonta a Jesus como sua fonte, origem e fundamento. Isso não quer dizer que o cristão não disponha de outras fontes ou dados históricos para a reflexão sobre a realidade última. Quer dizer, contudo, que para os cristãos Jesus é o testemunho normativo central da realidade de Deus.

604 Haight expressa que neste momento “simplesmente condensa[...] muitos dos temas que foram desenvolvidos até essa altura do [seu] trabalho”.

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Há que se ressaltar ainda, afirma Haight (2003, p. 413-414), dois pontos importantes: a

revelação de Deus é um “encontro experiencial e existencial”, de forma que “a palavra

objetiva de Deus só pode ser encontrada no interior da subjetividade existencial”; o evento do

encontro revelador pode ser descrito em termos de causalidade sacramental ou simbólica.

Jesus é salvador porque o Deus que revela e torna presente no encontro humano é um

Deus salvífico. Jesus revela em seu ministério que Deus é amor, “que a verdadeira natureza de

Deus é o amor”. E por ser antes de mais nada amoroso, Deus é contrário a toda forma de

desumanização ou de desfiguração de suas criaturas, tornando-se solidário com o sofrimento

humano. Ele não é distante e impassível, mas próximo da existência humana, “e até mesmo

imanente e presente a essa existência”.605

O fato de Jesus ser um modelo significa que o sentido fundamental da existência

humana é incorporado ao modo como ele viveu pelo reino de Deus. Jesus não salva apenas

por ser revelação de Deus mas também por revelar a existência humana. Como portador de

valores humanos fundamentais, ele pode revelar “um padrão ou modo de existência possível

no mundo”.

“Deus salva em Jesus ao ressuscitá-lo da morte e ao incorporá-lo a uma vida eterna na

esfera de Deus e de seu amor” (HAIGHT, 2003, p. 416). A salvação envolvida nessa estrutura

pode ser entendida de duas maneiras: a) como arremate definitivo da existência (destino

final), o que caracteriza a salvação final, escatológica; b) como futuro absoluto, em função do

qual o mundo pessoal, em ambas as dimensões de tempo e de espaço, abre-se a uma miríade

de possibilidades e de sentido último.

Haight (2003, p. 416) conclui acerca dessa sua teoria da salvação:

O Jesus revelador de Deus é o Jesus símbolo de Deus, que torna Deus presente ao mundo, dialeticamente, e pode ser percebido pelo inquiridor

605 Andrés Torres Queiruga, como explanado no item anterior desta pesquisa, aborda proposição de um novo paradigma para teologia cristã: a total presença do Deus totalmente amor entre os homens. Aqui, há um nítido ponto de contato entre Torres Queiruga e Haight.

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religioso. Vale notar que, embora esta seja uma compreensão técnica de Jesus Cristo como salvador, também é claramente descritiva do processo pelo qual a cristologia surgiu inicialmente e da estrutura da fé cristã em qualquer época dada. Desde que a pós-modernidade não frustre nem reprima a própria questão religiosa e a abertura da esperança, pode apreender essa visão da salvação cristã, e a salvação cristã pode direcionar-se a essa cultura e transformá-la.

3.1.3.3 Libertação e salvação: a cristologia e a vida cristã

Haight (2003, p. 419) acredita que sua interpretação da obra salvífica de Jesus Cristo,

exposta na parte anterior deste espaço, embora resgate o núcleo da linguagem mitológica

tradicional e corresponda à experiência vivida dos cristãos, “claramente começa a responder

às exigências de inteligibilidade e de relevância em uma cultura pós-moderna”. Há que se dar

agora “um passo além”, avançando “em direção a um nível social de compreensão”

(HAIGHT, 2003, p. 420).

Uma das grandes questões atuais da religião em geral e do linguajar salvífico cristão

em particular é que eles se afiguram individualistas e até mesmo privatistas. Não há como

negar que alguns fatores da cultura secular contemporânea [é que] estimulam esse privatismo.

Na modernidade, as esferas da vida secular libertaram-se da hegemonia de qualquer religião

organizada,606 o que levou a uma crescente privatização da religião, de sua linguagem

teológica e da autocompreensão das pessoas religiosas.

Conseqüência disso é que “termina-se sempre com a salvação dos indivíduos”

(HAIGHT, 2003, p. 419), pois se a questão religiosa é concebida em termos individuais e

pessoais do sujeito auto-reflexivo, também a superestrutura religiosa se direciona ao

606 O que “pode ser considerado como um desenvolvimento positivo”, segundo Haight (2003, p. 410).

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privatismo, dele não escapando mesmo quando se trata de um individualismo coletivo ou de

grupo. Aos olhos do sujeito pós-moderno, no entanto, fica a imagem de que a religião deixa

de fazer qualquer diferença na história social e coletiva.607

As reflexões de Haight (2003, p. 420) acerca desse aspecto tentam responder ao

privatismo religioso e propor “uma interpretação da salvação cristã em que ela aparece como

uma realidade social que contempla, ao mesmo tempo, a pessoa individual”. Tal tentativa

implica uma antropologia cristã, a partir da qual se faz possível pensar numa existência

humana intrinsecamente social, ao mesmo tempo em que, idealmente, não se compromete o

valor da pessoa individual, ao contrário, ele é incrementado pelas relações sociais. Nesse

sentido, a salvação cristã pode libertar e satisfazer a realidade humana.

Haight (2003, p. 420) recorre às teologias da libertação608 surgidas no decurso do

século XX. O autor pressupõe operativamente que, “em muitos aspectos, as teologias da

libertação refletem a pós-modernidade nos problemas que enfrentam e nos princípios

temáticos de que lançam mão para responder a esses problemas”. 609

607 Haight (2003, p. 420) expressa que “uma coisa é certa: para alguém apaixonadamente interessado no projeto humano, a religião não oferece nenhuma plataforma por meio da qual essa paixão será correspondida. Uma indicação da relativa acurácia dessa crítica pós-moderna ao discurso das Igrejas é a tíbia recepção, por parte delas, das várias formas da teologia da libertação que repercutem a crítica e procuram enfrentar o problema”. 608 O movimento do evangelho social (reação à degradação social da vida que se verificou no rastro da industrialização), nos Estados Unidos, na passagem do século XIX ao XX; na década de 1960, na Europa, a teologia política (reação contra uma interpretação existencial individualista da existência humana e da salvação por ela oferecida); nas décadas de 1960 e 1970, a teologia da libertação latino-americana, escrita em nome dos pobres e para dar-lhes voz; na década de 1960, nos Estados Unidos, a teologia negra, surgida a partir do movimento dos direitos civis, animado por Martin Luther King; na década de 1960, a teologia feminista, originada a partir de uma situação cultural e social androcêntrica, em que as mulheres são subordinadas e tratadas de maneira desigual; numa estrutura semelhante, a teologia womanista, uma interpretação dos símbolos cristãos pelas mulheres negras; as hispânicas também desenvolveram uma teologia específica; mais recente, está em curso, lenta e gradualmente, um projeto mundial mais amplo de inculturação. “[...] à medida que as igrejas cristãs situadas em culturas não ocidentais desenvolvem sua própria identidade, exigem simultaneamente uma teologia, e particularmente uma cristologia, que reflitam a experiência, a linguagem, as tradições e os costumes de sua própria cultura” (HAIGHT, 2003, p. 425). Assim como as teologias da libertação representam formas de inculturação, também há dimensões de libertação no projeto de inculturação. 609 Haight (2003, p. 421) diz utilizar o termo ‘teologias da libertação’ em “sentido amplo e inclusivo”: todas elas lidam com indivíduos considerados não como pessoas isoladas, mas como parte de grupos definíveis ou como membros da sociedade. Elas, ao elaborarem um arcabouço social e entenderem a pessoa humana em termos de solidariedade e de dinâmica, inter-relações abertas com o outros, “retratam a mensagem cristã da salvação em sua pregnância com a existência social, em seu impacto sobre grupos, a sociedade em geral e a esfera política”.

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No entender de Haight (2003, p. 432-434), três são as questões soteriológicas mais

profundas suscitadas pela pós-modernidade,610 que instigam e estão a exigir respostas das

religiões e que podem ser respondidas, segundo o autor, utilizando-se os princípios temáticos

presentes nas teologias da libertação. Essas questões pós-modernas podem ser agrupadas nos

seguintes eixos:

1º) o substrato do sujeito humano: diz respeito ao fundamento para a manutenção do valor do

sujeito ou da pessoa humana. “Temos consciência, como nunca antes, do grau em que a

pessoa humana assume uma identidade individual através da mediação social da

comunidade”;

2º) o sentido da história humana: a pós-modernidade possui uma consciência histórica radical.

A nova questão do sentido da história baseia-se em uma conjunção de perspectivas relativas

que dizem respeito à amplitude do universo, à extensão da história humana e à quantidade dos

males que a flagelam;

3º) o propósito da liberdade humana: “o propósito da vida humana é posto em dúvida, na pós-

modernidade, pela gama de valores positivos e negativos em função dos quais as pessoas

comprometem a própria liberdade”. A radical consciência pluralista e histórica da pós-

modernidade sublima o proeminente lugar da liberdade na autocompreensão humana.

Os princípios temáticos das teologias da libertação, tentativas de respostas às questões

pós-modernas que as instigaram, são refletidos, em Haight (2003, p. 441-448), como

possibilidades de um discurso inteligível acerca da salvação num mundo que assim o exige. O

enfoque recai particularmente sobre o caráter social da salvação, tal como ressaltado pela

610 “Não se trata de questões novas”, afirma Haight (2003, p. 430), “mas de problemas perenes sob roupagem nova e pós-moderna”.

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teologia da libertação, e de que maneira a salvação pessoal e individual se relaciona com a

salvação social.611

O caráter social da salvação pressupõe, segundo Haight (2003, p. 441)

que ela deve compreender a totalidade da vida. A salvação é um conceito abrangente que abarca sistemicamente todas as dimensões da existência humana. Embora seja religiosa, não pode limitar-se a uma esfera estritamente espiritual que deixa a plenitude da vida para trás.

A contribuição da teologia da libertação é no sentido de mostrar a impossibilidade de

um conceito individualista da salvação, algo contraditório, no marco cristão, com um Deus

salvador, compassivo, reto, universalmente amoroso e justo. Sob a perspectiva antropológica,

a contradição relaciona-se à constituição social da existência humana. Uma solidariedade

social, assim compreendida, em um único gênero humano, “impede que qualquer um possa

sequer conceber ou esperar por uma salvação que abandone os outros” (HAIGHT, 2003, p.

442).612

É absolutamente central para a visão cristã essa profunda percepção da solidariedade

existente entre os seres humanos como criaturas de Deus, pois serve de contraponto ao

moderno conceito privatista da salvação. A crescente interação das pessoas em escala global e

a degradante experiência de tanta guerra, pobreza, deslocamentos humanos e opressão política

(aspectos da pós-modernidade) “estão começando a erodir essa moderna e arrogante

corrupção da fé cristã” (HAIGHT, 2003, p. 442).

A maneira pela qual a salvação pessoal e individual relaciona-se com a salvação

social pode ser percebida na fórmula de Gustavo Gutiérrez613 para a salvação: salvação é

611 Schillebeeckx (1994, p. 81) afirma que “o contexto hodierno, em que podemos falar de Deus de maneira significativa e produtivamente libertadora, é o contexto vital de opressão e libertação. Não é o único contexto possível, mas sem este contexto todos os outros contextos possíveis correm o risco de se tornarem concretamente facultativos e para muitos homens incredíveis”. 612 Não é concebível, afirma Haight (2003, p. 442), “que o Deus cristão ame e outro não, ou alguns e outros não [...]”. Torres Queiruga (2003), como se viu anteriormente nesta pesquisa, reflete nessa mesma linha. 613 Cf. GUTIÉRREZ, Gustavo. Teologia da libertação. São Paulo: Loyola, 2000.

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comunhão das pessoas com Deus e entre si mesmas. Essa caracterização social da salvação

engloba a pessoa humana como indivíduo único, incluindo a idéia de realização humana.614

Percebe-se a alusão a uma condição que pode ser realizada no âmbito da história, de maneira

parcial, ao mesmo tempo em que se encontra aberta à perfeita consumação escatológica.

Haight (2003, p. 444), tendo em mente essas considerações, afirma:

pensar o ser humano individual isolado de sua situação social, como uma antropologia existencial introspectiva tende a fazer, envolve uma densa abstração precisamente de sua individualidade. Em contrapartida, pensar os indivíduos no contexto de suas comunidades, vivendo em uma rede de relações e de interações que estruturam toda uma existência, é alcançar uma compreensão mais totalizante e adequada da própria individualidade da pessoa. Em suma, como a existência humana é social, uma salvação integral e compreensiva só pode ser social.

Concluindo essa vertente da salvação, Haight (2003, p. 446) procede a uma

caracterização, em suas palavras, “mais [...] realista”, pelo prisma da libertação, da salvação

mediada e revelada por Jesus Cristo: em sua pregação e em sua ação na história, Jesus revelou

o potencial de um poder salvífico que provém de Deus e é operativo neste mundo. Essa

salvação, contudo, permanece potencial até que seja apropriada pelos seguidores e, atualizada

pela liberdade humana, seja concretizada (pela ação) na história.

614 David Tracy propõe uma caracterização direta da salvação cristã, do ponto de vista da pessoa individual, mas que equilibra perfeitamente a responsabilidade pessoal com a constituição social da existência humana. As três dimensões da salvação seriam: 1ª) a salvação é uma libertação da pessoa humana da servidão para a liberdade; 2ª) a libertação é experienciada como dom e tarefa de Deus; 3ª) no ordenamento cristão, a salvação é revelada por Jesus Cristo. Cf. TRACY, David. The Christian understanding of salvation-liberation. Face to Face, Maryknoll, n. 14, p. 37-39, 1988. Tracy chega a defender a metáfora da libertação como a mais adequada e relevante para compreender a salvação nos dias de hoje: “se a salvação cristã for apropriadamente descrita em nossa época quer como libertação de toda servidão, quer como libertação para a autêntica existência, haverá então um bom motivo para sugerir que os teólogos da libertação, políticos e feministas estão certos ao reiterar que a ‘libertação total’ é uma metáfora e um conceito mais adequados para a salvação cristã em nossos dias. Jesus Cristo, Libertador, é um modelo apropriado para uma cristologia contemporânea”. Cf. TRACY, David. The Christian understanding of salvation-liberation. Face to Face, Maryknoll, n. 14, p. 40, 1988.

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3.1.3.4 Jesus e as religiões mundiais

Outra questão latente na pós-modernidade, e ainda mais saliente, é a do pluralismo

religioso. As tradicionais postulações cristãs acerca de Jesus Cristo são compatíveis com as

dimensões positivas do pluralismo religioso, ou mesmo, com seus aspectos ameaçadores?

Segundo Haight (2003, p. 455, minha ênfase), “uma adequada cristologia, atualmente, deve

incluir uma descrição do relacionamento de Jesus com outras mediações religiosas de

Deus”.615

O reconhecimento do pluralismo religioso e da nova pressão por ele exercido sobre a

cristologia encaixa-se sob medida na constelação de valores culturais da pós-modernidade.

Não que o tema da relação do cristianismo com outras religiões seja novo, “mas a

internalização das idéias e dos valores que estão pressionando a partir de várias direções vem

provocando o surgimento de uma situação ou contexto que é genuinamente novo, e reclama

uma compreensão atualizada de antigas verdades” (HAIGHT, 2003, p. 456).

Haight sugere que o olhar pós-moderno ao pluralismo religioso, a partir de uma

consciência histórica, pode-se dar em duas linhas diversas: negativa e positiva. Negativa,

porque privilegia em excesso as particularidades do tempo e do espaço históricos (cada

religião é individual e tem sua significação dentro do contexto de sua própria situação);

positiva, porque privilegia a possibilidade, num mundo de fronteiras menos aparentes, de uma

coexistência deliberada e interação ativa entre as religiões, umas com as outras em todo o

mundo.

615 Freqüentemente, esse tópico é abordado no final dos estudos cristológicos, como adendo ou corolário. Isso, expressa Haight (2003, p. 455), “levanta uma séria questão teológica de método”. O pluralismo religioso é não algo marginal, mas “uma característica da situação da vida cristã; torna-se, portanto, uma dimensão intrínseca da interpretação de Jesus como o Cristo”.

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Esses pólos diferentes de concepção e recepção do pluralismo religioso, negativo e

positivo, têm paralelo na teologia, a partir de duas reações cristológicas bem definidas e

opostas, apesar de representarem ambas uma aceitação e internalização de certos elementos da

pós-modernidade. Uma reação cristológica616 “ressalta a identidade particular, individual e

específica de cada religião e, portanto, as diferenças e a diversidade global que separa uma

religião de outra” (HAIGHT, 2003, p. 457). Nessa visão, as identidades específicas das

religiões encontram-se em fatores que são mais provavelmente incomensuráveis entre si, de

forma que elas seguirão cada qual o seu caminho, preservando a própria autocompreensão.

Esse elemento particular da consciência pós-moderna tende ao isolacionismo.617 Outra reação

cristológica618 “encara os temas da historicidade e da relatividade como ruptura de barreiras

entre povos, que costumavam ser consideradas intransponíveis”. Busca-se não a redução de

todas as religiões a uma única, mas os aspectos em comum entre elas. A tendência aqui é

buscar graus de autocompreensão comuns entre as religiões e, sobretudo, bases para uma

práxis compartilhada de resistência ao sofrimento humano.619

Explicitando sua posição perspectiva acerca da questão, Haight (2003, p. 458) afirma

que o viés de suas reflexões

propende na direção do pluralismo. Adota uma consciência global ao procurar resistir a uma tentação sectária; é impulsionado pela série de experiências de contraste do intolerável sofrimento das pessoas em nosso

616 Entre eles, Joseph A. DiNoia e John Cobb. Cobb é firme ao negar que as religiões mundiais tenham algum gênero comum. Em sua totalidade nada compartilham como religiões. Cf. COBB, John. Beyond pluralism. In: D’COSTA, Gavin (Ed.). Christian uniqueness reconsidered: the myth of a pluralistic Theology of Religions. Maryknoll: Orbis Books, 1990. Segundo Haight (2003, p. 457), “apesar da boa formulação, ele exagera. O próprio Cobb é igualmente firme em asseverar que pode haver diálogo inter-religioso em que os membros de diferentes religiões se comunicam. Mas só podem comunicar-se compartilhando algo em comum. Se a espécie humana é uma, e quanto a isso existe grande quantidade de evidências, haverá uma base ampla, formal e comum para a comunicação inter-religiosa”. 617 Haight (2003, p. 457) afirma que, “ironicamente, certos temas pós-modernos são utilizados para defender posições cristológicas pré-modernas contra transgressões modernas”. 618 Teólogos pluralistas como John Hick e Paul Knitter. 619 Haight (2003, p. 458) afirma que, “ironicamente, esse idealismo pós-moderno, que todos apoiariam se pensassem ser possível, exige compatibilização e mudança por parte dos cristãos, mormente no núcleo da cristologia, tornando-se, portanto, uma ameaça”.

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mundo; prefigura o momento em que pessoas de diferentes culturas e religiões terão de ser responsáveis pelos problemas humanos comuns a todos ou sofrer conseqüências desastrosas. Os seres humanos devem comunicar-se com seus semelhantes em bases outras que não apenas a econômica e a política.

As muitas visões diferentes da relação de Jesus com as demais religiões têm sido

articuladas através de tipologias.620 Haight, pretendendo apenas proporcionar uma moldura

para situar suas proposições, apresenta, com modificações, a tipologia de Schineller (1976).

Nela, os teólogos e suas reflexões acerca da relação de Jesus Cristo com a salvação humana

“vão da direita, ou de uma posição conservadora, a uma postura mais aberta” (HAIGHT,

2003, p. 459): o exclusivismo,621 o inclusivismo constitutivo, 622 uma posição normativa não-

constitutiva623 e o pluralismo. 624

Haight (2003, p. 464) considera que “as posições exclusivista625 e inclusivista

constitutiva626 já não parecem dignas de crédito”. Suas reflexões vão no sentido de que “os

620 Haight (2003, p. 459) tem consciência de que “essas tipologias podem ser contraproducentes na forma como esquematizam e simplificam excessivamente as visões teológicas”. Esta pesquisa apresentou em detalhes, ao longo de seu primeiro capítulo, as nuanças desses diferentes posicionamentos teológicos na Teologia das Religiões. 621 Sustenta que não existe salvação alguma fora de um explícito contato histórico com Jesus Cristo e da fé em sua pessoa. 622 Esse posicionamento é inclusivo e constitutivo, ou seja, defende ser a salvação acessível a todos os seres humanos, mas postula que Jesus Cristo é a causa dessa salvação. Esses teólogos mesclam argumentação histórica e metafísica. 623 “Deslocando-se mais para a esquerda” (HAIGHT, 2003, p. 460), essa postura funda-se menos em uma argumentação metafísica, sendo mais influenciada por uma compreensão histórica da realidade. Afirma que Jesus proporciona uma norma ou medida representativa da verdade religiosa e da salvação de Deus para toda a humanidade, embora não cause a ação de Deus em prol da salvação que se desenrola fora da esfera cristã. 624 “Deslocando-se ainda mais para a esquerda” (HAIGHT, 2003, p. 460), o pluralismo abarca formalmente a multiplicidade de religiões e a salvação mediada por elas, defendendo que outras mediações da salvação de Deus estão ou podem estar em pé de igualdade com Jesus Cristo. 625 Segundo Haight (2003, p. 465), “simplesmente não há fundamento algum [...] para o exclusivismo”. Dois argumentos são decisivos: 1º) essa posição é contrária ao testemunho apostólico primitivo e da própria pregação de Jesus acerca de um Deus propenso à salvação humana, e não apenas uma minoria; 2º) a experiência contemporânea refuta a idéia de que Deus não possa salvar de outra maneira, além de Jesus. 626 Essa visão inclusivista e constitutiva de que Jesus causa a salvação de todos os seres humanos não é minoritária entre os teólogos atuais. Mesmo assim, alguns “desenvolvimentos minaram essa posição [...]”: 1º) ao se considerar “o primeiro critério teológico, o testemunho do Novo Testamento” (HAIGHT, 2003, p. 465), percebe-se que “os mesmos textos que são apresentados com o intuito de respaldar o exclusivismo também fundamentam o inclusivismo”. Interpretados literalmente, pouco dizem à situação contemporânea. Segundo Haight (2003, p. 466), “um exame acurado indica que o testemunho neotestamentário segue uma direção totalmente contrária do inclusivismo”: “fartos indícios e a opinião comum dos exegetas indicam que Jesus não

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cristãos hoje podem relacionar-se com Jesus como normativo da verdade religiosa acerca de

Deus, do mundo e da existência humana, convictos, ao mesmo tempo de que também existem

outras mediações religiosas que são verdadeiras e, portanto, normativas”. Essa é a concepção

normativa, mas não constitutiva de Jesus Cristo. Na expressão de Haight (2003, p. 468),

da perspectiva interna da fé cristã e de acordo com os princípios da teologia cristã, e na medida em que Jesus Cristo é o meio central para a concepção que o cristianismo tem da realidade última, por definição é impossível que Cristo seja menos que normativo para uma apropriação cristã da realidade última.

A normatividade, argumenta Haight (2003, p. 467), está estreitamente ligada à noção

de verdade. A lógica intrínseca de toda verdade, aquela profundamente defendida em matérias

importantes e definitivas, inclui um dinamismo que tende à relevância universal, e o que se

torna relevante universalmente constitui-se como normatividade.627

A norma dos cristãos pode ser normativa aos demais, assim como as diversas normas

das demais religiões podem ser normativas aos cristãos. Há que se respeitar, contudo, o

princípio da não-contradição.628 Esse princípio, no caso do conhecimento religioso, terá

pregou a si mesmo, e sim o reino de Deus. A mensagem do próprio Jesus é teocêntrica [...]”. “Existe pouca evidência”, argumenta Haight (2003, p. 466), “de que Jesus tenha pregado a si próprio como o mediador constitutivo da salvação de Deus para todos os seres humanos”. Para os cristãos, sim, expressa Haight (2003, p. 466), “Jesus é causa da salvação cristã por ser o símbolo e o mediador da salvação de Deus na comunidade cristã”; 2º) teologicamente falando, a falta de evidências e os indícios testamentários em contrário “levam ao reconhecimento de que o nexo causal entre Jesus e a salvação de todos os demais é fruto de especulação. Só um processo argumentativo de cunho especulativo e metafísico tem condição de explicar como as ações históricas de Jesus podem ser a causa da salvação dos seres humanos que viveram e morreram antes de sua existência” (HAIGHT, 2003, p. 466). Haight (2003, p. 466) acrescenta a essas argumentações teológicas, a experiência comum atual: “a consciência histórica pressiona uma reflexão crítica que coloca em xeque a teologia a partir de cima, calcada inteiramente em influências de duvidoso fundamento lógico em afirmações de fé confessionais”. Em última análise, “a posição constitutiva foi minada por simples internalização da consciência histórica. As pessoas avaliam mais profundamente que só deus opera a salvação, e que a mediação universal de Jesus não é necessária”. 627 É o caso da ‘verdade para mim’ ou ‘para nós’: ela é possível enquanto distinta de outras (hábitos cotidianos, padrões culturais de avaliação); contudo, ela não é possível “quando o que está em jogo diz respeito àquelas questões que afetam o humano como tal”. Nesse caso, ela se desenvolve “em um nível que se estende para abarcar todos os seres humanos; revelam uma dimensão que é universalmente compreensiva” (HAIGHT, 2003, p. 467). Experimentar a relevância universal é marcante no humano: a capacidade reflexiva de captar o que transcende o eu e o próprio grupo, e se aplica à globalidade da espécie. 628 O princípio da não contradição estabelece que não se pode afirmar como verdadeira uma proposição particular e sua simples negação, ou seja, aquilo que a contradiz em idêntico sentido e a esse mesmo respeito.

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algumas nuanças próprias, dado que seu objeto é estritamente transcendente,629 havendo a

necessidade de “um esforço de acomodação” (HAIGHT, 2003, p. 469): “tentativa de

descobrir a dimensão de verdade que não é contraditória, mas complementar ao que é

revelado por meio da norma”.

Outros três princípios são arrolados na reflexão de Haight (2003, p. 470-471); “eles

condicionam mais a função da normatividade de Jesus Cristo para uma avaliação cristã da

realidade”.

1º) Ao sustentar a normatividade da experiência mediada por Jesus e, portanto, a pessoa de

Jesus Cristo, deve-se especificar, tanto quanto possível, o centro de gravidade do conteúdo

dessa experiência. O que Jesus medeia não pode ficar restrito aos cristãos, no entanto, é

possível estabelecer distinções entre o que se aproxima mais e mais do centro da fé. O

entendimento recíproco entre religiões não principia com os contrastes, mas na transmissão de

“convicções simples e profundamente defendidas sobre a configuração última da totalidade:

Deus, que é pessoal, que cria, que é amistoso, que ama as criaturas e estabelece um

relacionamento interativo com elas”.

2º) Deve evidenciar-se que a fidelidade das demais religiões defenderá como normativa a

experiência fundamental que lhes é mediada por aquilo que é considerado central e basilar

em sua forma religiosa de vida. Faz-se necessária uma distinção entre norma positiva e norma

negativa, quanto à sua função. A norma positiva exclui o que com ela não se coaduna, pois

afirma com exclusividade e, desse modo, implicitamente nega as alternativas; uma norma

negativa exclui o que a contradiz, ou seja, quando afirma, rechaça apenas aquelas alternativas

que a contradizem.630

629 Em matéria de fé religiosa, o objeto transcendente não está presente e disponível para comparação com proposições competitivas a seu respeito. Por isso, o princípio não impede que uma convicção ou crença aparentemente contraditória de uma outra religião não seja realmente contraditória da visão cristã e até verdadeira em alguma medida. 630 Jesus, por exemplo, funciona como norma positiva para a imaginação cristã ao subentender-se que Deus é exclusivamente o que Jesus revela ser e nada mais; como norma negativa, ao subentender-se que Deus não é

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3º) Dada a historicidade da situação humana, a noção de normatividade encontra seu

complemento em um conceito de verdade relacional. A idéia de verdade relacional significa

que a verdade cresce tanto em seu significado como em sua efetiva relevância e

normatividade ao ser aceita por outros (KNITTER, 1991). Se verdadeira, contém um

dinamismo intrínseco universal, potencialmente capaz, então, de ser experienciada ou

reconhecida por todos os seres humanos.

Resumindo sua reflexão aqui exposta, Haight (2003, p. 472) expressa que

de um ponto de vista teológico cristão Jesus é normativo para a imaginação cristã. Mas essa normatividade funciona dentro do contexto da historicidade. A consciência histórica, contudo, não nega nem solapa o princípio da não contradição. Qualquer emprego desse princípio, no entanto, deve ser sensível ao condicionamento histórico e ao caráter limitado de toda apreensão humana do mistério absoluto. A relatividade histórica obriga o cristão a definir mais exatamente o conteúdo do que é mediado por Jesus. Como norma, Jesus funciona fundamentalmente de maneira negativa; positivamente, Jesus abre a imaginação à presença de Deus ao mundo e leva a percepção cristã a reconhecer que o que é revelado nele pode ser enriquecido por outras verdades religiosas.

A partir daí, Haight (2003, p. 472, 479) propõe que:

1º) “A normatividade de Jesus não exclui uma avaliação positiva do pluralismo religioso, e os

cristão podem considerar outras religiões mundiais como verdadeiras, no sentido de que são

mediações da salvação de Deus”.

Deus é encontrado em diversos e diferentes caminhos: no cristianismo, a mediação

salvífica de Deus é uma pessoa, Jesus de Nazaré; nas demais religiões, entretanto, não precisa

ser uma pessoa: pode ser um evento, um livro, um ensinamento, uma práxis.631 Dizer o

diametralmente outro ou diferente, nem inferior ao núcleo de verdade existencialmente encontrado no que é mediado por Jesus. 631 Haight (2003, p. 474) vê numa parte específica da teologia rahneriana (a graça) a possibilidade de uma ponte entre o inclusivismo e o pluralismo: a graça (Deus como Espírito, com um conteúdo de autodoação em misericórdia e amor) é necessariamente mediada, e as religiões constituem meios culturais e históricos da transcendência, as religiões são de fato canais da graça salvífica de Deus. “Esse julgamento global e compreensivo [...] é compartilhado por inclusivistas constitutivos e por pluralistas”. Haight expressa, por outro lado, que “a visão rahneriana da validade das religiões mundiais não é incondicional. Também há elementos da argumentação de Rahner que não são endossados aqui [na reflexão de Haight]. Por exemplo, partirmos da

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contrário, ou seja, afirmar que essa mediação somente pode acontecer na medida nos

parâmetros cristãos, ou que outras religiões só são verdadeiras na medida em que

correspondam aos conceitos cristãos de Deus é fazer de Jesus uma norma positiva e recair no

inclusivismo.

Essa proposição, afirma Haight (2003, p. 479), “apóia-se na profunda experiência que

remonta à tradição judaica da imanência e da transcendência simultâneas de Deus”. “O

passo”, assevera o autor, “além do exclusivismo e do inclusivismo é grande”: ao mesmo

tempo em que desvincula a salvação de Deus apenas em Jesus de Nazaré, desloca a

imaginação cristã de um cristomonismo para um teocentrismo, em que Jesus medeia um

encontro revelador com um Deus criador632 que é imediata e imanentemente presente a todas

as criaturas.

2º) Sustentar que Jesus é normativo para a concepção cristã da realidade não inibe o diálogo.

O que não pode ocorrer é o que Knitter chamou analogicamente de diálogo entre um

gato cristão e outros ratos religiosos: entabular um diálogo com a convicção de que Jesus é

um mediador absoluto de Deus.633 A analogia esclarece que a lógica do diálogo exclui um

parceiro que nada tem de substancial para aprender. Quem nada tem a aprender não pode

participar de um diálogo que busca a verdade. Segundo Haight (2003, p. 480), esse “não é o

caso do cristão que sustenta ser Jesus uma norma negativa e um guia positivo para um

aprofundamento da verdade”.

Delineia-se, assim, acredita Haight (2003, p. 483), um novo contexto para a

cristologia. Positivamente falando, “pode-se e deve-se afirmar, a um só tempo, a

normatividade de Jesus, o caráter salvífico e verdadeiro das outras religiões, e portanto a

premissa de que a crença de que toda graça de Deus é gratia Christi parece ser uma especulação inconsistente e desnecessária, quando vista contra o pano de fundo da historicidade”. 632 Haight (2003, p. 479) acredita que “as pessoas que não conseguem reconhecer a verdade salvífica de outras religiões podem implicitamente estar operando com uma concepção de Deus distante da criação”. 633 Cf. KNITTER, Paul. Review symposium. Horizons, n. 13, p. 132-133, 1986.

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índole positiva do pluralismo religioso”. Haight (2003, p. 484-485), finalizando essa parte,

descreve essa posição fundamental de maneira mais completa em uma série de pontos:

1º) o contexto do pluralismo religioso e o imperativo do diálogo, que tanto a situação como a

própria fé cristã impõem, confirmam um ponto de partida histórico para a cristologia;

2º) na visão de Jesus, aqui apresentada, ele continua sendo o que tem sido desde os

primórdios da tradição cristã: aquele que medeia a salvação de Deus para a humanidade;

3º) Jesus é a causa da salvação entre aqueles que o encontram historicamente, quando, por sua

vez, medeia um encontro com Deus enquanto amoroso criador e amigo;

4º) a etapa fundamental ou ponto de transição para a posição pluralista é o colapso de um

nexo causal entre Jesus de Nazaré, que constitui a base da cristologia, e a salvação que, de

acordo com a fé cristã, processa-se fora da esfera cristã;

5º) porque Deus é salvificamente presente para outras religiões, outras representações de Deus

podem ser universalmente normativas e, portanto, também para os cristãos, ainda que Jesus

Cristo seja universalmente normativo;

6º) como corolário para a cristologia, a posição pluralista provê uma base para a seriedade

religiosa do diálogo inter-religioso.

Haight (2003, p. 486) confirma que “o pluralismo religioso não precisa ser ameaçador

nem para a cristologia nem para a consciência da fé cristã em geral. Pelo contrário, integra o

contexto atual para a reflexão sobre a realidade misteriosa de Jesus Cristo”.

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3.1.3.5 A divindade de Jesus Cristo

Os seres humanos entendem a realidade dentro do marco de sua linguagem, de sua situação na sociedade em que vivem, e do contexto de sua cultura. O princípio postulado por Tomás de Aquino, relativo à apropriação pessoal do conhecimento, pode ser reformulado em termos sociais: tudo o que é aprendido ou conhecido é avaliado segundo a forma histórico-social da comunidade que aprende634 (HAIGHT, 2003, p. 490).

Haight quer abordar a divindade de Jesus Cristo de maneira positiva e construtiva: em

termos que permaneçam fiéis ao testemunho do segundo Testamento e às doutrinas

conciliares clássicas, retratem melhor essa doutrina de uma maneira fidedigna e inteligível na

atual cultura intelectual pós-moderna e fortaleçam o discipulado.

A reflexão do autor acerca da temática especificada se dá a partir de um pressuposto já

identificado e detalhado anteriormente nesta pesquisa: o reconhecimento de que o pluralismo

marca a teologia e, conseqüentemente, a cristologia, neotestamentária e contemporânea.

Duas cristologias, no entender de Haight (2003, p. 494), “são viáveis hoje” em um

contexto pós-moderno. A cristologia do Logos e a cristologia do Espírito.

Na cristologia do Logos, por trás de sua narrativa geral, encontra-se a cristologia de

Karl Rahner. Esse teólogo e sua cristologia estão entre os “que mais conseguiram recuperar a

linguagem e a doutrina tradicionais e responder à moderna cultura ocidental” (HAIGHT,

2003, p. 495). Por ser moderna, entretanto, essa cristologia de Rahner “não se correlaciona

perfeitamente com um contexto pós-moderno em vários aspectos”. Há que se perceber os

pontos dessa não suscetibilidade neste contexto, para que se possa “abrir caminho para a

recuperação de uma cristologia do Logos”. Essa é a tentativa empreendida pela reflexão de

Haight.

634 Cognita sunt cognoscente secundum modum cognoscentis (Tomás de Aquino, Suma Teológica). Esse mesmo princípio é apropriado por Hick em seu Na interpretation of religion: human responses to the transcendent (1989).

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Haight (2003, p. 495-498) postula cinco áreas problemáticas635 em vista das novas

exigências:

1ª) a cristologia de Rahner é, em muitos aspectos, mas não certamente em todos, uma

cristologia de cima: “metodologicamente, Rahner aceita as principais doutrinas da Igreja com

base em sua autoridade eclesial. Aceita, por exemplo, Nicéia e Calcedônia como dados”;

2ª) a cristologia rahneriana do Logos suscita algumas questões concernentes à

“consubstancialidade de Jesus conosco”. Essa não é a intenção de Rahner; suas vigorosas

afirmações acerca da verdadeira humanidade de Jesus dão mostra disso. No entanto, malgrado

seu esforço, “as suspeitas manifestam-se em diversos pontos”: Jesus não é semelhante a nós,

pois Deus está presente nele como Logos e “em nós como Espírito”;636

3ª) uma outra questão levantada pela cristologia de Rahner diz respeito à sua visão de que

Deus só pode ter-se encarnado uma única vez.637 “Mas a visão de Rahner é típica”. Ele

argumenta menos em função de Jesus como revelador e mais em função da perspectiva,

segundo a qual, no evento Jesus, o pacto de Deus com a humanidade é fechado e selado de

maneira definitiva e irrevogável. Implica, irrevogavelmente, “‘uma vez apenas’”, porque a

pluralidade de encarnações pareceria significar que uma não foi suficiente. A consciência da

historicidade, entretanto, afirma Haight (2003, p. 497), “dificulta a manutenção desse ponto

de vista”;

4ª) a cristologia de Rahner é criticada por conter certa inconsistência temática. Não se trata

tanto de uma contradição ou de um paradoxo, mas, sim, de uma inconsistência entre a

linguagem da graça universal, como existencial sobrenatural, e a linguagem de Jesus de

Nazaré, um evento particular na história, como causa constituinte dessa graça;

635 A descrição sumária dessas questões, afirma Haight (2003, p. 495), não presume que essas críticas careçam de respostas. A tentativa de recuperação da cristologia do Logos no espírito de Karl Rahner vai, em parte, responder a elas. Além disso, Haight presume em seus escritos “uma familiaridade geral com a linguagem cristológica rahneriana”. 636 O modo de presença é qualitativamente diferente. 637 Questão levantada por Knitter (1991).

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5ª) Também tem sido alvo de exame crítico o argumento que Rahner formula para mostrar

como o evento de Jesus Cristo deve ser concebido como fator causador da salvação

universalmente acessível. Rahner explica que Jesus Cristo é constitutivo de toda salvação

humana por ser a encarnação do Logos ou Filho, e que toda graça salvífica provém do Pai e

do Filho.

“Não são fatais” essas críticas da cristologia de Rahner, afirma Haight (2003,p. 499),

mas “efetivamente requerem alguma reformulação de sua linguagem para fazer frente a novos

problemas”. Haight está consciente de que “Rahner não considera próprios” os termos de sua

reinterpretação, esboçada a seguir; ela, no entanto, “pretende resgatar Rahner”.

A cristologia do Logos vige no pensamento cristológico desde o século II, inspirada no

prólogo joanino. Sua crítica, no entanto, vem desde os tempos modernos, principalmente, e

mais enfaticamente, “por aqueles que desejam permanecer-lhe fiéis” (HAIGHT, 2003, p.

499). Conscientes, Rahner entre eles, de que, originalmente, “ela está perdendo espaço hoje

em dia”, efetuam nela algumas modificações.638

Os pontos merecedores de reformulação em vista do atual contexto pós-moderno são

os seguintes:

1º) método e ponto de partida: não há nenhuma razão intrínseca pela qual a cristologia do

Logos não possa ser uma cristologia de baixo. Uma tarefa construtiva com uma consideração

do Jesus histórico e da pluralidade de interpretações a seu respeito que foram geradas nas

várias comunidades representadas na literatura neotestamentária;

2º) fidelidade às fontes neotestamentárias: geneticamente situada na cristologia joanina, a

cristologia do Logos inculturou-se na tradição patrística grega, nos grandes concílios

638 John Cobb transforma radicalmente a cristologia do Logos tradicional, ao retomar os temas filosóficos gregos veiculados pelo símbolo com o princípio transcendental da “transformação dinâmica” inspirado pela filosofia do processo. Cf. COBB, John. Christ in a pluralistic age. Philadelphia: Westminster, 1975. Também Jon Sobrino, teólogo da libertação, recorre ao símbolo do Logos ou do Filho na explicação que propõe da divindade de Jesus Cristo. Cf. SOBRINO, Jon. Jesus na América Latina. São Paulo: Vozes, 1985. Em Sobrino, a linguagem do Filho é mais comum que a do Logos.

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cristológicos e, mais recentemente, foi reapropriada por Rahner através de uma moderna

guinada para o sujeito e de certo antropocentrismo. É simbólico o termo bíblico ‘Verbo’; sob

uma formalidade particular, não indiscriminadamente, em última análise, refere-se a Deus. É,

portanto, “uma metáfora que, em última instância, alude a Deus” (HAIGHT, 2003, p. 501);

3º) metáfora fundamental: a “‘encarnação’”, extraída de “‘e o Verbo se fez carne’” (Jo 1, 14),

é “a metáfora fundamental para a compreensão de Jesus Cristo”.639 A viabilidade da

cristologia do Logos consiste não apenas na metáfora subjacente à linguagem simbólica, mas,

o que é mais importante, em seu caráter verdadeiramente simbólico.640 Assim, ela poderá

“afigurar-se digna de crédito” (HAIGHT, 2003, p. 504);

4º) concepção da salvação: uma recuperação do significado da salvação operada por Deus

através de Jesus, simbolizado em uma cristologia do Logos e da encarnação, gira em torno do

conceito de revelação e da autocomunicação de Deus. Jesus revela Deus e torna-o presente.

Jesus salva por revelar Deus e torná-lo presente e, concomitantemente, revela e realiza o

caráter fundamental da existência humana em sua relação com Deus. Importante nessa

argumentação é olhar Jesus como símbolo de Deus;641

5º) Jesus e as outras religiões: uma cristologia encarnacional do Logos não tem por que

solapar a legitimidade autônoma de outras mediações religiosas de Deus. O símbolo da

encarnação alenta a idéia de que Deus é próximo e acessível a todos os seres humanos;642

6º) a adoração de Jesus: a adoração é dirigida a Deus em Jesus, simbolicamente. Essencial

para a viabilidade da cristologia do Logos, na atual e crucial conjuntura, é enfatizar o caráter

simbólico de todo contato humano com Deus;643

639 Essa metáfora fundamental pode ser melhor compreendida segundo o padrão antioqueno de uma cristologia do Logos-anthropos (da inabitação divina) do que na linha da cristologia alexandrina da união enhipostática (união hipostática, a cristologia de duas naturezas e uma pessoa divina). 640 Não pode ser uma linguagem literal acerca de um objeto de conhecimento e de definição mundanos, afirma Haight (2003). 641 Como explanado na questão anterior, Jesus, como metáfora fundamental, “não fala simplesmente a respeito de Deus, mas é, em sua pessoa, o meio da efetiva autodoação de Deus” (HAIGHT, 2003, p. 505). 642 Essa questão já foi amplamente discutida anteriormente neste espaço.

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7º) fidelidade à tradição conciliar: a fidelidade de Rahner a Nicéia e Calcedônia (a encarnação

individual de Jesus: consubstancial ao Pai), expõe dois problemas na cristologia rahneriana,

observados anteriormente neste espaço: sua abordagem de cima e o arcabouço alexandrino de

seu pensamento, impossibilitando-o de fazer justiça à natureza de Jesus como ser humano,

como os homens. A partir de uma cristologia ‘de baixo’, os dois problemas podem ser

superados;

8º) inteligibilidade: na base da cristologia rahneriana do Logos encontra-se a concepção da

existência humana como realidade aberta à presença de Deus. Rahner esforça-se por mostrar

que todo o intento de Jesus Cristo, seu Deus, e a salvação que ele medeia são o

aperfeiçoamento do humano.644 “Será essa visão inteligível em um contexto pós-moderno que

suspeita de todas as metanarrativas por considerá-las, em última instância, totalizantes e

excludentes?”, pergunta Haight (2003, p. 509). “Acredito que sim”, responde o autor,

“quando compreendida exatamente nos termos pretendidos por Rahner,ou seja, como função

de uma fé-esperança inclusiva para a humanidade”.645

Essa foi a tentativa de Haight (2003, p. 510) no sentido de adaptar a cristologia de

Rahner a uma situação pós-moderna: “um método a partir de baixo e uma mudança para uma

cristologia da ‘inabitação’” (padrão antioqueno em substituição ao alexandrino). Haight

pretendeu mostrar que “a cristologia do Logos [...] pode ser ajustada de sorte a falar a uma

situação pós-moderna e, mais do qualquer outra, é o que a cristologia da libertação vem

fazendo”.

643 Já se falou dos níveis diferentes de símbolo: conceitual (Logos) e concreto (Jesus). 644 Uma manifestação contrária ao extrinsecismo: concepção da economia cristã, que propõe a inexistência de qualquer nexo intrínseco entre o evento de Jesus Cristo e a natureza interior e as aspirações da existência humana. 645 O equivalente do extrinsecismo, em algumas correntes da pós-modernidade, segundo Haight (2003, p. 509), é uma intratextualidade que tende a reduzir o poder do sujeito humano para transcender sua matriz sociocultural. Cf. detalhes dessa discussão em LINDBECK, George A. The nature of doctrine: religion and theology in a postliberal age. Philadelphia: Westminster Press, 1984. p. 113-124.

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Uma cristologia do Espírito, plenamente viável, “não em oposição a uma cristologia

do Logos ou Verbo, mas em contraste com ela”646 (HAIGHT, 2003, p. 510), “explica a

divindade de Jesus Cristo com base em Deus como Espírito, e não a partir do símbolo

Logos”.647 Suas características básicas são (HAIGHT, 2003, p. 512-532):

a) procede a partir ‘de baixo’;

b) é fiel às fontes neotestamentárias: a linguagem do Espírito desempenha destacado

papel “na Bíblia em geral e no Novo Testamento, ao caracterizar a pessoa de Jesus e

sua relação com Deus e conosco”;

c) é importante considerar a metáfora fundamental subjacente a uma cristologia. Ela,

freqüentemente, domina a imaginação e, desse modo, controla a compreensão. A

metáfora da delegação,648 no caso da cristologia do Espírito, é a que melhor expressa o

discernimento de como Deus está presente a Jesus e nele atuante. A delegação

presume a inabitação de Deus como Espírito na pessoa humana de Jesus. A presença e

a delegação de Deus não subjugam, mas, precisamente, ativam a liberdade humana;

d) com relação à maneira como Jesus salva na cristologia do Espírito, Haight (2003, p.

522-523) considera válido o axioma: “não há nada que não possa ser dito acerca de

Jesus, em uma cristologia do Espírito, que se quisesse dizer a seu respeito em uma

cristologia do Logos”;

e) com relação às demais religiões, na cristologia do Espírito, Jesus normativamente

oferece a elas uma salvação verdadeira, logo, com relevância universal;

646 O contraste mais fundamental refere-se à forma de encarar Jesus: a cristologia do Logos, especialmente a partir do Concílio de Nicéia, favorece a divindade de Jesus; a cristologia do Espírito compatibiliza mais facilmente a humanidade de Jesus. 647 Segundo Haight (2003), ela se diferencia de outras cristologias que se utilizam de ambos os símbolos, mas desigualmente, para expressar a divindade de Jesus. 648 Hick utiliza a metáfora da inspiração; Paul Tillich, a metáfora da posse; e Jürgen Moltmann, a da encarnação.

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f) acerca da prece e adoração a Jesus, vale a seguinte fórmula tensiva: “não se adora ou

não se reza a Jesus porque ele é um ser humano e uma criatura; pelo contrário, adora-

se e reza-se a Deus em Jesus e por seu intermédio” (HAIGHT, 2003, p. 524);

g) a cristologia do Espírito preserva a singularidade de Jesus, na medida mesma em que

ele é encarado como verdadeira manifestação daquilo a que Deus se assemelha e como

o padrão do que deve ser a existência humana;

h) pretendendo credibilidade e inteligibilidade, a cristologia do Espírito não se funda na

mera autoridade, mas recorre à experiência, a partir da “premissa de que existe uma

continuidade entre Jesus e nós” (HAIGHT, 2003, p. 532);

i) o axioma do segundo Testamento, ‘Jesus é um ser humano igual a nós em tudo, exceto

no pecado’ é tomado literalmente pela cristologia do Espírito.

3.1.3.6 A Trindade

Com a cristologia do Espírito, o objetivo de Haight (2003, p. 534) não é contestar a

cristologia do Logos. Sua tese, ao contrário, é que “uma cristologia do Logos também é uma

alternativa viável hoje em dia, desde que proposta de uma forma que tenha consciência do

caráter simbólico da linguagem do Logos e considere Jesus como um ser humano na história”.

No entanto, afirma Haight, “uma das principais resistências à cristologia do Espírito continua

sendo uma cristologia do Logos vinculada à teologia trinitária”. Há, então, que se examinarem

as relações recíprocas que vinculam a teologia e as doutrinas de Jesus Cristo e da Trindade.649

649 Haight (2003, p. 535-536) não pretende desenvolver uma teologia trinitária integral, mesmo porque “uma iniciativa dessa natureza não seria possível nem se faz necessária na conjuntura em que nos encontramos”. Seu objetivo, ao qual se limita, é abordar algumas questões que surgem espontaneamente da cristologia desenvolvida por ele.

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A tese de Haight (2003, p. 539) é: “a Trindade a partir de baixo”. Nela, a teologia

trinitária é absolutamente dependente da cristologia; a doutrina foi gerada no decorrer do

desenvolvimento da cristologia e, a exemplo do que ocorre com a cristologia, a única forma

de entender criticamente a doutrina da Trindade é traçar sua evolução histórica.

Segundo Haight (2003, p. 55), o núcleo na teologia trinitária compõe-se de três

subnúcleos ou dimensões, “que não correspondem a cada uma das chamadas pessoas de

Deus”:

1ª dimensão: a unicidade e unidade de Deus devem ser entendidas como “a existência de

apenas um único Deus, que não se divide internamente em uma pluralidade de divindades,

mas é um Deus íntegro” (HAIGHT, 2003, p. 550);

2ª dimensão: a realidade da salvação. “A doutrina da Trindade é o que é a fim de preservar ou

resguardar a experiência da salvação que se encontra em sua base” (HAIGHT, 2003, p. 550);

3ª dimensão: mais básica ainda, como “sua ação salvífica em Jesus e no Espírito é real, [...]

Deus, como tal, em sua natureza, é um Deus salvador” (HAIGHT, 2003, p. 555).

Como conclusão geral, Haight (2003, p. 560) afirma que “uma teologia que é escrita

para uma cultura intelectual pós-moderna não pode principiar pela doutrina da Trindade. Pelo

contrário, a teologia e a doutrina trinitárias remontam à difusão do testemunho judaico e

cristão da ação de Deus no mundo e recapitulam essa experiência nos símbolos que enfocam

os eventos da salvação”.

Como doutrina, a própria Trindade “é um símbolo que sintetiza a fé” (HAIGHT, 2003,

p. 561) em uma tríplice confissão de crença: Deus como criador, salvador histórico e força

interior da autêntica vida humana que conduz à salvação definitiva.

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3.2 A teologia e a pós-modernidade: possibilidades dialogais

Apresentadas as iniciais tentativas de respostas teológicas diretas às exigências pós-

modernas (nas proximidades: Hans Küng, Andrés Torres Queiruga e John Hick; em diálogo: a

reflexão de Roger Haight), há que se observar agora se essas proximidades e possibilidades

dialogais estão em sintonia com as exigências pós-modernas.

Podem-se antecipar as seguintes observações: Küng tem em mente uma questão

prática, uma ética mundial em favor da sobrevivência humana no planeta (um novo

macroparadigma); Torres Queiruga, a situação do labor teológico entre modernidade e pós-

modernidade (um novo paradigma); Hick, a não superioridade de uma religião sobre outra

(paradigma pluralista). Haight, por seu lado, perscruta a pós-modernidade, percebe suas

exigências e se propõe fazer uma teologia em diálogo com ela. Com isso em mente, passa

pelos pontos mais fundamentais da teologia e os interpreta à luz dos novos tempos.

É o que se perscrutará a seguir.

3.2.1 O cristianismo católico frente aos desafios de seu tempo

Não é pequena a distância, temporal e significativa, que se observa entre as

concepções católico-cristãs expressas nos enunciados oficiais que se seguem: a primeira, em

1442, e a segunda, em 1962.

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No século XV, em 1442, reunidos em Florença, sob o concílio cristão “geral”, os

padres conciliares declararam (DENZINGER, 1995, n. 1351):650

A Igreja crê firmemente, confessa e anuncia que "aqueles que estão fora da Igreja católica, não apenas os pagãos", mas também os judeus ou os hereges e os cismáticos, não poderão atingir a vida eterna, e irão para o fogo eterno, "preparado para o diabo e seus anjos" (Mt 25, 41), a não ser que, antes da morte, tenham-se unido (aggregati) a ela. Ela professa também que a unidade do corpo da Igreja é tão importante que, apenas para aqueles que permanecem nela, os sacramentos da Igreja serão úteis à salvação; somente para estes, os jejuns e as obras de piedade e os exercícios da milícia cristã obterão o prêmio eterno. Ninguém, não importa quanta esmola tenha dado ou mesmo se derramou seu sangue pelo nome de Cristo, pode ser salvo, se não estiver no seio e na unidade da Igreja católica.

Quase ao crepúsculo do século XX, em 1962, no concílio Vaticano II, outros padres,

logicamente, dada a distância temporal entre os dois eventos, mas oficialmente conciliares

como dantes, e pertencentes à mesma igreja católica romana, em “tom inteiramente diverso”

(SCHILLEBEECKX, 1994, p. 11), anunciaram:

Quem sem culpa não conhece o evangelho de Cristo e sua Igreja, mas busca a Deus com coração sincero, sob a influência da graça esforça-se por realizar sua vontade na prática, vontade conhecida no apelo da consciência, pode obter a vida eterna. 651

Acerca desses expoentes históricos contraditórios vividos pela instituição católica,

Schillebeeckx (1994, p. 11) afirma:

Séculos de tragédia humana estão entre essas duas afirmações oficiais da história da igreja, segundo a letra, pelo menos, diametralmente opostas – se bem que continue a haver teólogos ainda que sabem colocar, com certa acrobacia – assim chamada ‘hermenêutica’ 652 – as duas afirmações em harmonia mútua de maneira abstrata e a-histórica.

650 Esse é um dos decretos do concílio, naquele momento direcionado aos jacobitas ou coptas do Egito. Na verdade, é uma bula preparada por Eugênio IV (papa que comandou o concílio), tentando um resumo da fé cristã, que retoma as palavras de Fulgêncio de Ruspe em forma de símbolo de fé 651 Cf. Constituição dogmática Lumen Gentium, n. 16. 652 Esta pesquisa, ao final da primeira parte de seu primeiro capítulo, salientou algumas dessas tentativas de compreensão do axioma, não as tratando, no entanto, como acrobacias abstratas e a-históricas.

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Algo se passou nesse longo ínterim,653 além de tragédia humana, para que se desse tal

salto de qualidade nas afirmações eclesiásticas.654

Mais recentemente ainda, no alvorecer do século XXI, vislumbram-se sinais de

possibilidade – talvez necessidade 655 – de novo salto. Algumas reflexões teológicas, nesse

caso, não oficiais,656 estão, na perspectiva de compreensão desta pesquisa, surgindo, de forma

ainda acanhada, porém, decisiva. Elas são aqui consideradas como um salto qualitativo ainda

maior, apesar de estarem a uma distância cronológica significativamente menor com relação

ao segundo evento (Vaticano II – 1962), comparando-se com a distância desse para o primeiro

evento (Florença – 1442).

Não se poderia, pergunta Haight (2003, p. 385), na atual reflexão teológica, em vista

dos novos tempos que se apresentam,

interpretar Jesus Cristo precisamente como narrativa de Deus tão aberta aos outros que não coopta sua identidade específica nem privilegia os cristãos em detrimento deles? Pode a cristologia representar um Jesus Cristo que não divida, mas aceite o outro como outro e, portanto, funcione como princípio de unidade que respeita as diferenças? Aqui a pós-modernidade parece propiciar a ocasião para um novo e mais acurado aprofundamento no significado de Jesus Cristo que genuinamente transcenda o passado.

As passagens mencionadas, ou saltos cronológico-significativos, de Florença ao

Vaticano II (claramente perceptível), e desse à atual reflexão teológica pós-moderna (ainda

ensaiando-se), neste momento sumariamente representadas, visto que seus momentos

653 Os questionamentos modernos foram a pedra de toque desse salto de qualidade. Seus principais pontos estão explicitados mais à frente. 654 Há que se mencioar que, mesmo que com enorme cautela, documentos eclesiais já mencionavam, antes do Vaticano II, a possibilidade de salvação para aqueles que se encontrassem fora da igreja. O concílio de Trento (1547) já mencionava a possibilidade de um "batismo de desejo". 655 Torres Queiruga (2003, p. 18), mirando a passagem à modernidade, afirma que o próprio Vaticano II reconheceu: “os cristãos temos uma ‘parte não pequena’ de culpa em nada menos que o nascimento do ateísmo, precisamente por não se ter adequado a forma da fé à nova situação”. Novas adequações já não se estariam fazendo necessárias? 656 Esse é o início do caminho à nova passagem: as reflexões teológicas preliminares que acabam por desbravar lugares ainda não visitados, ganhando adesões, até que se introduzam nas discussões oficiais. Essa é a linha de compreensão aqui pressuposta, seguindo a trilha aberta por Kuhn (1976), acerca dos paradigmas e seus respectivos modelos ou padrões diferentes. Para se chegar a eles, percebe-se toda uma reflexão e debates anteriores. Segundo Torres Queiruga (2003, p. 19), esse é “o trabalho da teologia em conjunto”.

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anteriores e posteriores específicos já foram delineados acima, representam, grosso modo, na

teologia das religiões, sob a ótica desta pesquisa, igualmente duas passagens no que toca à

visão, mais ou menos positiva da pluralidade religiosa: do exclusivismo ao inclusivismo

(claramente perceptível) e deste ao pluralismo (ainda ensaiando-se).657

A compreensão dessas ‘passagens’, a tentativa de se perceber a que situações elas

responderam/respondem, além de observar se tais respostas foram/são factíveis, é o que se

pretende a seguir.658

3.2.1.1 Do “depósito da fé” ao “despertar” da modernidade: o desafio antropocêntrico

Foi tardia, na compreensão desta pesquisa, e não sem conseqüências, a passagem

católica à modernidade, não tendo ocorrido em linha com os fatos históricos. Historicamente

marcantes nessa passagem, foram a Reforma e o protestantismo,659 o Humanismo

Renascentista,660 as revoluções científicas,661 e o Iluminismo, o que propiciou o nascimento

657 É bom relembrar que, segundo Haight (2003, p. 464), “as posições exclusivista e inclusivista constitutiva já não parecem dignas de crédito”. Sua opção é por uma posição pluralista normativa. Cf. acima item específico referente ao autor. 658 É claramente perceptível a passagem do exclusivismo (Florença) ao inclusivismo (Vaticano II). Segundo Schillebeeckx (1994, p. 11), “apenas poucos católicos afirmarão ainda hoje esta sentença [pronunciada em Florença]”. A segunda ‘passagem’, que ora se ensaia, do inclusivismo (Vaticano II) ao pluralismo (Jesus Cristo é uma norma, porém, não é constitutivo na relação com as demais religiões); na verdade, tal ensaio iniciou-se já no encerramento dos trabalhos conciliares, quando os teólogos católicos, denominados posteriormente “inclusivistas abertos” (TEIXEIRA, 2002c), começaram a se debruçar sobre a questão da relação com as demais religiões, temática tornada oficial na igreja a partir do concílio. Todo esse trabalho reflexivo teológico está esmiuçado no capítulo II desta pesquisa e pode ser revisto. Esta pesquisa considera esses avanços reflexivos proporcionados pelos inclusivistas abertos, culminando na proposição de um pluralismo de princípio, de um lado, respostas aos novos ventos culturais que se aproximavam, e, de outro, o húmus preparatório do atual debate/ensaio acerca da teologia na pós-modernidade. 659 Deslocando a consciência individual, das instituições religiosas da igreja diretamente aos olhos de Deus. 660 Colocando o Homem no centro do universo. 661 Conferindo ao Homem a faculdade e as capacidades para inquirir, investigar e decifrar os mistérios da Natureza.

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do “indivíduo soberano”,662 uma ruptura importante com o passado; religiosamente, no que

tange ao catolicismo, fundamentais foram os acontecimentos que marcaram o entorno do

concílio Vaticano II.663 As conseqüências dessa tardia resposta verificam-se atualmente,

quando se acumulam os desafios ainda modernos e se apresentam os já pós-modernos.664

A antiga crença eclesial católica de ser a portadora da salvação eterna, “compreensível

de certa forma para o seu tempo”, e que “hoje nos sobressalta” (SCHILLEBEECKX, 1994, p.

11), esbarrou na moderna autonomia do sujeito, com sua afirmação positiva e otimista. Esta

pesquisa buscou em Schillebeeckx (1994, p. 17) o tom quase profético de Giovanni Pico della

Mirandola665 que, em 1492, parafraseando a narrativa da criação do livro do Gênesis,

escreveu, vislumbrando os tempos modernos, momento em que o homem, através da ciência e

de técnica, tomaria a própria sorte nas mãos:

Deus encontra agrado no homem como um ser que não tem nenhuma imagem claramente reconhecível. Ele o colocou no meio do mundo e lhe disse: Nós não te concedemos nenhuma moradia determinada, nenhum rosto próprio, qualquer dom especial, Adão (=homem), para que possas possuir qualquer moradia que queiras, qualquer rosto e todos os dons que gostarias ter segundo tua opinião e tua vontade. Os outros seres têm sua natureza determinadas pelas leis por nós prescritas, e eles se mantiveram por isso nos limites. Tu, porém, (homem), não estás peado por nenhum limite invencível, mas tu determinarás tua própria natureza segundo tua própria vontade livre, em cuja mão coloquei tua sorte. Não te fizemos nem como ser celeste nem como terrestre, nem como ser mortal nem como imortal; antes, como teu

662 Não poucas reflexões caminham no sentido de argumentar ser esse o motor que colocou todo o sistema social da modernidade em funcionamento. 663 Antes disso, alguns exemplos de recusa oficial da modernidade podem ser trazidos: Gregório XVI (1831-1846), na encíclica Mirari vos (1832), condena a liberdade de consciência, de imprensa e de pensamento; Pio IX (1846-1878), na encíclica Quanta cura, enumera os erros modernos: no Syllabus, ele condena todas as doutrinas anticatólicas, o panteísmo, o naturalismo, o racionalismo, o socialismo, o liberalismo e o comunismo. Quase ao final de seu pontificado, comanda o concílio vaticano I (1869-1870), que condena o pensamento moderno em todas as suas formas racionalistas, proclama a autenticidade da doutrina católica como fruto da revelação e da fé, define o primado de jurisdição e a infalibilidade do papa, quando o pontífice se expressa ex cathedra em matéria de fé e moral. Definindo esse papa, Souza (2003, p. 107) diz: “um homem de fé, mas míope na perspectiva da história e da política”. Enquanto Émile Poulat enxerga em Pio IX uma “atitude intransigente para com a modernidade”, Libânio (2003, p. 146) vê na condenação do “fideísmo, tradicionalismo e racionalismo”, levado a cabo pelo Vaticano I, uma defesa do “papel da razão”. Cf. tb. POULAT, Émile. Le catholicisme sous observation: du modernisme à aujourd’hui. Paris: Le Centurion, 1983. 664 O item seguinte desta pesquisa abordará especificamente a ‘passagem’ da modernidade à pós-modernidade religiosa. 665 Filósofo da cultura.

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próprio estatuário e compositor, inteiramente livre e para tua própria honra, darás a ti mesmo a forma com que gostarias de viver.

Percebe-se aí, claramente, a captação do pressuposto antropológico da modernidade: o

homem torna-se sujeito ativo de todo acontecer em um mundo cosmicamente constituído,

porém, cósmico-religiosamente desencantado. Quando Descartes se propôs a duvidar de tudo,

não estava satisfazendo um mero capricho, mas, sim, percebendo o fato de que todo um

mundo cultural tinha vindo abaixo e urgia sua reconstrução desde a base.

Quais são as coordenadas principais da modernidade, às quais Descartes sentiu-se

movido a dar respostas, construindo todo um arcabouço filosófico, e às quais o catolicismo

romano tanto demorou a responder, o que o jogou numa crise de credibilidade, juntamente

com a religião de maneira geral?666

Deu-se a virada antropocêntrica. Junto a ela, a crença de que o homem, desde então

sujeito de sua história, poderia concretizar um progresso linear sempre constante, no que seria

auxiliado pela técnica e pela ciência. A ciência e a tecnologia, os fogosos cavalos de batalha

da modernidade, libertadas do jugo explicativo da religião, poderiam, enfim, assumir a linha

de frente das mudanças: realização humana e a transformação do mundo. O cristianismo,

enquanto grande e, talvez, única narrativa, cede lugar às grandes narrativas modernas da

ordem e do progresso. Essa virada antropocêntrica traz conseqüências para a concepção de

sujeito/indivíduo.

A primazia do sujeito na modernidade conheceu a configuração de dois tipos de

sujeitos: inicialmente o do Iluminismo e, posteriormente, o sociológico. 667

666 Segundo Torres Queiruga (2003, p. 18), o próprio Vaticano II reconhece: “os cristãos temos uma ‘parte não pequena’ de culpa em nada menos que o nascimento do ateísmo, precisamente por não se ter adequado a forma da fé à nova situação”. 667 Aqui está condensada a exposição da temática realizada ao final da primeira parte deste capítulo. Ali se apresentavam as mudanças de concepção pelas quais passou o conceito de sujeito. Aqui, atende ao objetivo específico de contextualizar sumariamente o indivíduo moderno e suas características.

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O sujeito do Iluminismo ancorava-se numa concepção bastante clara da pessoa

humana: um indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de

consciência e de ação. Seu núcleo interior, que emergia ao nascer, mesmo desenvolvendo-se,

permanecia essencialmente o mesmo ao longo da existência do indivíduo, de forma contínua

ou idêntica a ele. Como “o centro essencial do eu era a identidade de uma pessoa” (HALL,

2002, p. 11), e como esse centro permanecia, entende-se a menção à identidade fixa.

Essa concepção foi possibilitada pelo nascimento do “indivíduo soberano”, uma

ruptura importante com o passado, entre o Humanismo Renascentista do século XVI e o

Iluminismo do século XVIII. A individualidade, anteriormente, nos tempos pré-modernos, era

“vivida” e “conceptualizada” de forma diferente, apoiadas com estabilidade em tradições e

estruturas, acreditava-se divinamente estabelecidas, não sujeitas a mudanças fundamentais.

O sujeito individual moderno distingue-se, por um lado, por ser indivisível – unificado

no seu próprio interior – e, por outro, por ser singular, distintivo e único (WILLIAMS, 1976).

Alguns fatores foram decisivos para a emergência dessa nova concepção: a) a Reforma e o

protestantismo; b) o Humanismo Renascentista; c) as revoluções científicas; d) o Iluminismo.

Na filosofia, foi Descartes (1596-1650) quem formulou primariamente essa

concepção, num contexto de profunda dúvida, gerada pelo deslocamento de Deus do centro

do universo. O dualismo entre “mente” e “matéria”, que tanto tem mobilizado a filosofia

desde então, foi refocalizado por esse filósofo a partir da postulação de duas substâncias

distintas: a substância espacial (matéria) e a substância pensante (mente). As coisas, para

serem explicadas, devem ter seus elementos essenciais reduzidos à quantidade mínima,

praticamente àqueles que são irredutíveis. Isso se consegue no centro da “mente”, onde está o

sujeito individual que se caracteriza pela capacidade de raciocinar e pensar. É o

posteriormente denominado “sujeito cartesiano”, racional, pensante e consciente, simbolizado

pela palavra de ordem de Descartes: Cogito, ergo sum (penso, logo existo).

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John Locke (1632-1704) também contribuiu para a definição da identidade moderna.

Suas reflexões abordavam o indivíduo em termos de “mesmidade (sameness) de um ser

racional”, cuja identidade permanecia a mesma e era contínua com seu sujeito. A extensão da

identidade da pessoa está diretamente relacionada à possibilidade de sua consciência em ir

para trás, para qualquer ação ou pensamento passado (LOCKE, 1967). Esse “indivíduo

soberano”, dispositivo conceitual inscrito em cada um dos processos e práticas centrais que

fizeram o mundo moderno, pode ser chamado o “sujeito” da modernidade em dois sentidos:

como a origem ou “sujeito” da razão, do conhecimento e da prática e como aquele que sofria

as conseqüências dessas práticas, estando “sujeitado” a elas (FOUCAULT, 1986).

Esse processo de identificação moderno é exposto com clareza na reflexão de

Williams (1976, p. 135):

A emergência de noções de individualidade, no sentido moderno, pode ser relacionada ao colapso da ordem social, econômica e religiosa medieval. No movimento geral contra o feudalismo houve uma nova ênfase na existência pessoal do homem, acima e além de seu lugar e sua função numa rígida sociedade hierárquica. Houve uma ênfase similar, no Protestantismo, na relação direta e individual do homem com Deus, em oposição a esta relação mediada pela Igreja. Mas foi só ao final do século XVII e no século XVIII que um novo modo de análise [...] postulou o indivíduo como a entidade maior.

A transição para o sujeito sociológico, ou a redefinição do sujeito na modernidade,

está relacionada à crescente complexidade do mundo moderno. Seu núcleo interior,

diferentemente do sujeito do Iluminismo, não era autônomo e auto-suficiente, mas formado na

relação com outras pessoas importantes para ele. Pessoas que mediavam para ele os valores,

sentidos e símbolos de seu mundo. Denomina-se “interativa” essa concepção da identidade e

do sujeito. Permanece o núcleo interior (o “eu real”), mas ele é formado e modificado –

diferentemente do sujeito do Iluminismo, que permanecia essencialmente o mesmo ao longo

da existência do indivíduo – num diálogo contínuo com os mundos culturais “exteriores” e

suas respectivas identidades.

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Nessa nova identidade ocorre o preenchimento do espaço entre o “interior” e o

“exterior”, entre o mundo pessoal e o mundo público, numa costura do sujeito à estrutura. De

que forma isso se dá? As pessoas projetam a “si mesmas” nas identidades culturais, isso

concomitantemente à internalização dos significados e valores dessas identidades culturais

por essas mesmas pessoas, num processo de alinhavação dos sentimentos subjetivos aos

lugares objetivos ocupados no mundo social e cultural (HALL, 2002). A conseqüência é uma

dupla estabilização: dos sujeitos e dos mundos culturais que eles habitam. Ambos se tornam

mais unificados e predizíveis.

O pano de fundo sobre o qual foi redefinida a identidade do sujeito moderno foram as

mudanças percebidas pelas sociedades modernas que, ao se tornarem mais complexas,

adquiriam uma forma mais coletiva e social. As teorias clássicas liberais de governo, que se

baseavam em direitos e consentimentos individuais, viram-se frente às estruturas do estado-

nação e às grandes massas da democracia moderna. As leis clássicas da economia política, da

propriedade, do contrato e da troca defrontaram-se, após a industrialização, com as grandes

formações de classe do capitalismo moderno. O empreendedor individual deu lugar aos

conglomerados empresariais, e o cidadão individual viu-se enredado nas maquinarias

burocráticas e administrativas do estado moderno.

Se a evolução das estruturas econômicas da modernidade sustentou a passagem para

uma concepção mais social de seu sujeito, o que dizer dos fundamentos propriamente

conceptuais? Eles se articularam a partir de dois importantes eventos: a biologia darwiniana (o

sujeito humano foi “biologizado”) e o surgimento das novas ciências sociais.

O segundo evento, o surgimento das novas ciências sociais, que, a partir das

redefinições acontecidas na primeira metade do século XX, faz por assumir sua forma

disciplinar atual, tem grande importância para a formação desse modelo sociológico

interativo, com reciprocidade estável entre “interior” e “exterior”. As transformações que esse

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evento pôs em marcha foram, no entanto, desiguais, no que se refere à questão do sujeito

(Hall, 2002). Por um lado:

a) permanece o “indivíduo soberano” (com vontades, necessidades, desejos e interesses) como

a figura central dos discursos da economia moderna e da lei moderna;

b) a divisão das ciências sociais entre a psicologia (estudando o indivíduo e seus processos

mentais) e as demais disciplinas institucionalizou o dualismo típico do pensamento cartesiano;

Por outro lado, entretanto, a sociologia:

a) forneceu as bases para uma crítica do “individualismo racional”, próprio do sujeito

cartesiano;

b) localizou o indivíduo nos processos de grupo e nas normas coletivas. Estas, pelas suas

definições, prevaleciam sobre quaisquer contratos individuais;

c) explicou como os indivíduos são subjetivamente formados pela sua participação nas

relações sociais mais amplas (internalização);

d) explicou como os processos e as estruturas são sustentados pelos papéis que os indivíduos

neles desempenham (externalização);

e) fundamentou a teoria da socialização pela qual se descreve o sujeito moderno numa

interação com o mundo social, através dos processos de internalização e externalização.

A Modernidade ‘descobre’ a nova densidade do mundo como tarefa exaltadamente

humana. O choque inevitável com seus limites fez renascer a nostalgia de uma plenitude

distinta. Mas essa não termina por reconhecê-la no Deus da religião estabelecida (TORRES

QUEIRUGA, 2003).

A primeira oportunidade de diálogo com a nascente modernidade foi a Reforma

Protestante.668 Ela poderia ter sido o momento inicial de abertura católica aos tempos

668 Segundo Fraijó (1998a, minha tradução), “alguém disse que Lutero é o primeiro homem moderno. De pronto encarna algo bastante característico da modernidade: o descobrimento da própria subjetividade. Lutero considera

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modernos. Sem dúvida, muitos outros dados influenciadores convergiram na Contra-reforma

católica,669 no entanto, no que tange ao viés específico deste momento da presente pesquisa,

há que se afirmar que essa reação fez por lançar o catolicismo num lugar bastante aquém das

exigências modernas que, a partir dali, far-se-iam cada vez mais fortes.

Se, oficialmente, a igreja católica relutava em dar respostas ou dialogar com a

modernidade, para não falar em oposição aberta, algumas reflexões teológicas abriram espaço

no sentido de se preparar o caminho em direção a essa possibilidade. Como o espaço físico

desta pesquisa e seus objetivos não comportam um mergulho nessas reflexões, faz-se

necessário, ao menos, mencionar seus expoentes: do lado católico, Karl Rahner foi

fundamental, tendo a reflexão protestante exercido também influência preponderante:

Friedrich Schleiermacher, Karl Barth, Wolfhart Pannenberg, Bultmann, Schubert Ogden,

Jürgen Moltmann, Paul Tillich.

O concílio Vaticano II, segundo Latourelle (1988, p. 9), um acontecimento pioneiro e

de originalidade única, que provocou "a mais vasta operação de reforma" realizada no âmbito

da igreja católica romana, abre-se, finalmente, às provocações modernas, encetando um olhar

às suas culturas, religiosas ou não.670

O concílio Vaticano II mira, então, o sujeito moderno, “senhor de si”,671 pouco

receptivo às respostas prontas do alto, cônscio de suas próprias possibilidades e forças, e o faz

buscando discernir os “sinais dos tempos”: 672 almeja aproximar-se “primeiramente para

boa a grande conclusão da Idade Média sobre a existência de Deus. Aceita serenamente que Deus existe. Mas sua grande pergunta será: como eu posso alcançar um Deus misericordioso?”. 669 Não se pode esquecer que não muito tempo antes, em Florença, em 1442, oficializava o centralizador axioma exclusivista católico-romano Extra eclesiam nulla salus. 670 Sem discordar dessa avaliação de Latourelle, esta pesquisa não quer dar um tom simplista da avaliação das influências e aberturas desse concílio; por esse motivo, remete à releitura da segunda parte de seu primeiro capítulo, onde foram abordados em detalhes os avanços e recuos relacionados ao entorno do Vaticano II. 671 Neste momento, um sujeito “senhor de si” já desiludido com as promessas não levadas adiante pela modernidade. 672 Cf. Constituição Pastoral Gaudium et Spes, n. 4. Além de “sinais dos tempos”, em seu n. 11, a constituição fala em discernir “nos acontecimentos, nas exigências e nas aspirações de nossos tempos”, os “sinais verdadeiros da presença ou dos desígnios de Deus”.

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escutar, compreender e respeitar”, numa atitude de “estima e solidariedade”, reconhecendo os

esforços dos “homens de boa vontade” na busca sincera da “verdade espalhada pelo mundo”,

além da fronteiras da igreja, como “sementes do Verbo”.

Podem-se enunciar alguns pontos principais detectados pelo concílio como

necessidade eclesial frente aos “sinais dos tempos” modernos e as respostas a eles: 673

a) admitir (resposta) tudo o que há de bom no dinamismo social de hoje (sinal dos

tempos);674

b) apreciar (resposta) o que as outras Igrejas cristãs ou comunidades eclesiásticas

realizaram e realizam (sinal dos tempos); 675

c) tornar o mundo mais humano, abrindo-se ao diálogo “sincero e prudente” (resposta),

com “todos os homens, crentes e não-crentes” (sinal dos tempos); 676

d) dialogar numa atitude de escuta atenciosa e discernimento atento (resposta) de valores

(sinal dos tempos), à luz da fé, em lugar de uma atitude condenação apriorística e de

polêmica ofensiva diante do mundo moderno; 677

e) reconhecer (resposta) que a Igreja pode não somente oferecer ajuda, mas também

“receber preciosa e diversificada ajuda do mundo” (sinal dos tempos); 678

f) contar (resposta) com a colaboração de todos (sinal dos tempos). 679

673 Os detalhes dos debates conciliares podem ser revistos na segunda parte do primeiro capítulo acima. 674 Cf. Gaudium et Spes, n. 42. 675 Cf. Gaudium et Spes, n. 40. 676 Cf. Gaudium et Spes, n. 21. 677 Cf. Ecclesiam suam, n. 3. 678 Cf. Gaudium et Spes, n. 40. 679 Cf. Gaudium et Spes, n. 33.

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Dessas respostas, as mais fundamentais estão relacionadas à atitude de abertura às

demais religiões, acanhada ainda, ousada, no entanto, olhando-se os séculos anteriores de

exclusivismo.

A grande novidade trazida pelo Vaticano II, acerca da salvação individual daqueles

que pertencem às outras tradições religiosas, está na constituição pastoral Gaudium et spes (n.

22). Aquilo que os documentos eclesiais anteriores afirmavam, prudentemente, como

possibilidade é agora ensinado pelo concílio com uma segurança sem precedentes: todos

podem salvar-se pela ação do Espírito.680

Isso não vale apenas para os fiéis, mas para todos os homens de boa vontade, em cujos corações atua a graça, de maneira invisível (cf. LG, n. 16). Como Cristo morreu por todos (cf. Rm 8, 32), todos são chamados a participar da mesma vida divina. Deve-se, pois, admitir (tenere debemus) que o Espírito Santo oferece absolutamente a todos os seres humanos a possibilidade de se associarem ao mistério pascal, de maneira conhecida somente por Deus.

Com relação à questão acerca do significado que as tradições religiosas podem ter no

plano de Deus para a humanidade e a função salvífica que podem exercer na salvação de seus

membros, alguns documentos do concílio podem ser vislumbrados.

A Lumen Gentium traz algumas pistas, ainda um tanto quanto ambíguas, acerca da

possibilidade de salvação das pessoas, tanto daquelas que vivenciam situações religiosas

diferentes, como também daqueles que

sem culpa expressa, ainda não alcançaram o conhecimento de Deus e procuraram seguir o caminho do bem, não sem assistência da graça divina. [...] A Igreja interpreta como preparação evangélica tudo que neles há de bom e de verdadeiro, dom daquele que ilumina todas as pessoas a fim de que tenham vida.681

Os valores positivos são percebidos somente no âmbito das disposições de cada

pessoa, religiosas ou não, não se estendendo, tais valores, às tradições religiosas. Essas 680 Para Rahner (1994), não seria possível encontrar no século anterior teólogos católicos capazes de tamanha ousadia. 681 Cf. Lumen Gentium, n. 16-17.

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prerrogativas positivas, contudo, não constituem garantia de salvação, o que leva à

necessidade de se anunciar o Evangelho da salvação para todos em Jesus Cristo. Por isso, em

sua missão, a igreja

trabalha para descobrir tudo que há de bom na mente e no coração das pessoas, em seus ritos e em sua cultura. Não visa a destruir, mas procura tudo sanar, elevar e aperfeiçoar para a glória de Deus, confusão dos demônios e felicidade dos homens. 682

Os valores positivos devem ser cumpridos, acabados, rematados pela mensagem do

Evangelho, através da missão evangelizadora.683

Na Ad Gentes, aparece claramente um tênue limite entre disposições subjetivas e

valores objetivos.

A realização do desígnio universal de Deus de salvar toda a humanidade é fruto da bondade e da providência divinas. Do mais íntimo do ser humano brotam inúmeros movimentos, até mesmo religiosos, de busca de Deus, com que os seres humanos 'procuram alcançá-lo ou encontrá-lo, embora não esteja longe de ninguém' (cf. At 17, 27).684

A menção aos “inúmeros movimentos, até mesmo religiosos”, que brotam do ser

humano, abre certa perspectiva acerca de possíveis valores objetivos nas tradições

religiosas.685

Finalmente, mesmo necessitando de correções, a admissão de que há algo “de bom”

nas tradições religiosas.

682 Cf. Lumen Gentium, n. 17. 683 As bases da teologia do acabamento aparecem claramente nos fundamentos reflexivos da Lumen Gentium. Interessante notar, no entanto, a existência de um tênue limite entre disposições subjetivas e valores objetivos, entre valores positivos presentes nas pessoas e nas tradições religiosas. Mesmo enfatizando que as possíveis retas disposições "estão na mente e no coração das pessoas", podem estar também "em seus ritos e em sua cultura". 684 Cf. Ad Gentes, n. 3. 685 O esforço hermenêutico de busca de abertura positiva do concílio às religiões enquanto tal não pode desconsiderar, contudo, que as mencionadas iniciativas positivas detectadas em ambientes extracristãos, pessoais ou, possivelmente, nas religiões, "servem de pedagogia (paedagogia) e de preparação para o Evangelho, mas precisam ser iluminadas e corrigidas" (AG, n. 3, cf. LG, n. 16).

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Toda verdade e graça (quidquid veritatis et gratiae) já existentes entre os povos, fruto de uma secreta presença divina, a ação missionária liberta do contágio com o maligno, restitui a Cristo, seu autor [...]. Tudo, porém, que haja de bom no coração e no espírito dos seres humanos, na cultura e nos ritos dos povos, não há de perecer, mas, uma vez curado, será elevado e se tornará perfeito para a glória de Deus, confusão do demônio e felicidade de todos os seres humanos. 686

Daí, a possibilidade de se concluir a forma como deve acontecer a aproximação cristã

alhures.

Para que o testemunho de Cristo seja válido, os cristãos devem valorizar o que têm de próprio os diferentes grupos humanos e neles se integrar com amor, participar integralmente de sua vida social e cultural e relacionar-se com naturalidade uns com os outros, sob todos os aspectos da vida humana de todo dia. Familiarizem-se com suas tradições nacionais e religiosas. Com alegria e respeito, assinalem os traços culturais destes povos que de algum modo têm referência aos valores cristãos e podem ser considerados como que sementes latentes da palavra. [...] Cristo entendeu em profundidade o coração humano. Convivendo humanamente com homens e mulheres, iluminava-os com a luz divina. Assim também o discípulo de Cristo, compenetrado de seu Espírito, deve procurar conhecer as pessoas com quem convive. Num diálogo sincero e paciente, levá-las a perceber o maravilhoso dom de Deus oferecido a todos e aprofundá-lo à luz do Evangelho, para sua libertação e para que venham a reconhecer o senhorio de Deus salvador. 687

Foi, no entanto, a declaração Nostra Aetate, em todo o concílio, a que expressou de

forma mais positiva a perspectiva de abertura, podendo ser considerada como um "divisor de

águas" no modo de abordagem cristã da questão das outras religiões (KNITTER, 1991, p.

124). Com muito mais vigor e clareza que nos textos anteriores, é apontada a presença de

valores autênticos nas próprias tradições religiosas e não apenas nos fiéis que delas

participam.

A Igreja católica não rejeita o que é verdadeiro e santo em todas as religiões. Considera suas práticas, maneiras de viver, preceitos e doutrinas como reflexo, não raramente autêntico, da verdade (radium illius Veritatis) que

686 Cf. Ad Gentes, n. 9. 687 Cf. Ad Gentes, n. 11.

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ilumina todos os seres humanos, ainda que se distanciem do que ela crê e ensina.688

Do anúncio de Cristo a todos, então, detalhe importante, todos irão beneficiar-se.

Diferentemente da tônica percebida até então, todos, cristãos e seguidores das demais

religiões devem orientar-se para a plenitude da religião, Cristo.

[A Igreja católica] anuncia, porém, a Cristo, e se sente incessantemente obrigada a fazê-lo, como 'caminho, verdade e vida' (Jo 14, 16), em quem todos somos chamados a encontrar a plenitude da religião e em quem Deus reconciliou consigo todas as coisas (cf. 2Cor 5, 18-19). 689

De forma que, nesta caminhada comum ao mesmo destino, Jesus Cristo, a plenitude da

religião, deve haver uma mútua colaboração e respeito.

Por isso, a Igreja católica exorta seus filhos ao diálogo e à colaboração com os seguidores das outras religiões, para que dêem o testemunho da fé e da vida cristã, reconhecendo, servindo e promovendo os bens espirituais e morais assim como os valores socioculturais presentes nelas. 690

O cristianismo abre-se, então, oficialmente, na sua vertente eclesial católica, à

modernidade, passando de um exclusivismo, que excluía todos aqueles que não fossem

cristãos/católicos, a um inclusivismo, que a todos inclui. Abandona-se um olhar verticalizado,

de cima, por um olhar mais horizontal, tornando possível captar-se quem/o que está ao lado.

Não se pode dizer que o intento tenha sido realizado, mesmo porque esse foi o início de um

processo, aliás, desde o seu início com diversos retrocessos,691 que se verificaram também

posteriormente;692 as reflexões prosseguiram após o encerramento do concílio, chegando a

688 Nostra Aetate, n. 2. 689 Nostra Aetate, n. 2. 690 Nostra Aetate, n. 2. 691 Conferir as evoluções e involuções durante o próprio concílio no capítulo I acima, em sua parte 2. 692 Esta pesquisa já mencionou recentes crispações identitárias no magistério católico oficial, quando, praticamente, retornou-se ao antigo extra Ecclesiam nulla salus. O exemplo sugerido foi a declaração da Congregação para a Doutrina da Fé, sob título “Dominus Iesus: sobre a unicidade e universalidade salvífica de Jesus Cristo e da Igreja”. No entanto, os avanços na área reflexiva teológica foram infinitamente maiores, tanto que esta pesquisa dedicou seu segundo capítulo para a explicitação dessa caminhada na teologia católica. As

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lugares teológicos bastante além daqueles abertos pelo Vaticano II,693 num trabalho reflexivo

exemplar dos teólogos que, na trilha aberta, adentraram corajosamente.

Esses avanços posteriores ao concílio, no entanto, colocam esta pesquisa já em seu

item seguinte, quando já se fazem ouvir os clamores da pós-modernidade e de seus sujeitos

diversos, com suas identidades diversas. Os avanços reflexivos teológicos são, neste espaço

de pesquisa, considerados como respostas preliminares aos ruídos pós-modernos.694 Os

desafios da pós-modernidade e a possível adequação das respostas a eles direcionadas é o que

se pretende delinear a seguir.

3.2.1.2 Da modernidade à pós-modernidade: o desafio policêntrico

Se tardiamente ocorreu a transição do cristianismo católico à modernidade, muito

rapidamente ele sente as cutucadas da pós-modernidade. Suas respostas a esse novo desafio,

no que toca ao magistério oficial, com certeza, demorarão um pouco mais. No entanto, as

reflexões teológicas já se fazem ouvir, mostrando que já captaram os novos tempos que se

apresentam. Esta pesquisa arrolou quatro teólogos que, no entendimento deste pesquisador,

conseguiram, em formas e tons diferentes, responder inicialmente aos desafios trazidos pela

pós-modernidade: Hans Küng, Andrés Torres Queiruga e John Hick (como aproximações à

pós-modernidade), de um lado, e Roger Haight (o primeiro ensaio de uma teologia católico-

cristã na pós-modernidade), de outro.

respostas à pós-modernidade, que começam a surgir, fruto deste terceiro capítulo, também dão mostra do quanto se caminha nessa reflexão. 693 Esses avanços reflexivos teológicos foram explanados no capítulo II da presente pesquisa. 694 O capítulo segundo (A DIVERSIDADE RELIGIOSA E O PLURALISMO DE PRINCÍPIO) desta pesquisa pode ser visto como uma ponte entre o concílio Vaticano II, momento de abertura do “depósito da fé” (capítulo primeiro), e a discussão teológica na pós-modernidade (capítulo terceiro).

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A sensibilidade desses autores aos questionamentos apresentados pela nova realidade

cultural foi, em outro momento anterior desta pesquisa,695 detectada através da sinalização de

seus momentos fortes reflexivos. Esta pesquisa sinalizou também as principais características

deste novo momento cultural e sua incidência na conformação de uma nova maneira de ser

sujeito nesse novo contexto, além de suas exigências.696 Cabe aqui uma breve e sumária

retomada dessas novas características culturais, que trazem no seu bojo uma nova

configuração de identidades e de sujeitos.

Para Lyotard, 697 ao surgimento de uma sociedade pós-industrial estava relacionada a

chegada da pós-modernidade. Sociedade na qual a principal força econômica de produção

desvia-se dos Estados nacionais para o conhecimento. Nesse contexto, a sociedade não podia

mais ser concebida como um todo orgânico e integrado (Durkheim) nem como um campo de

conflito dualista ou jogo de forças contraditórias (Marx), mas como uma rede de

comunicações lingüísticas. A própria linguagem, o que para ele caracterizava todo o vínculo

social, era composta de uma multiplicidade de jogos diferentes, sem regras ou cujas regras

não se podem medir, e inter-relações agonísticas.

Nessa disseminação dos jogos de linguagem, é o próprio sujeito social698 que parece dissolver-se. O vínculo social é da ordem da linguagem, mas ele não é de uma única fibra. É uma textura onde se cruzam pelo menos duas espécies – na realidade, um número indeterminado de jogos de linguagem que obedecem a regras diferentes (LYOTARD, 1998, p. 73).

695 Itens 2 (PROXIMIDADES TEOLÓGICAS À PÓS-MODERNIDADE) e 3.1 (Roger Haight: uma reflexão teológica cristã em diálogo com a pós-modernidade) deste terceiro capítulo. 696 Cf. item 1 (A PERSPECTIVA CULTURAL PÓS-MODERNA: UMA NOVA CONFIGURAÇÃO DE IDENTIDADES) deste capítulo. 697 A “A condição pós-moderna” (1998) de Lyotard foi, por dois motivos básicos e fundamentais, um marco no desenvolvimento da temática: a) por ter sido a primeira a tratar a pós-modernidade como uma mudança geral na condição humana; b) por ter possibilitado à pós-modernidade a aquisição do status da “cidadania” intelectual. Acrescente-se a isso o fato de que continua, até hoje, a obra mais citada sobre o assunto. Dada essa importância, esta pesquisa, neste momento específico, se restringiu a ele ao tecer as principais características da pós-modernidade. Ampla discussão acerca do tema pode ser revisto acima no início deste capítulo. 698 Sujeito social que complementara o sujeito do Iluminismo, como se viu anteriormente, e que cederá lugar ao sujeito pós-moderno.

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Com isso, a própria ciência passa a ser um jogo de linguagem dentre outros, sem o

privilégio imperial dos tempos modernos. Privilégio advindo, outrora, de duas grandiosas

narrativas, os grandes mitos justificadores da modernidade: com base na Revolução Francesa,

a que colocava a humanidade como agente heróico de sua própria libertação através do

avanço do conhecimento, e descendente do idealismo alemão, a que via o espírito como

progressiva revelação da verdade.

O que define a condição pós-moderna, em Lyotard (1998), é justamente a perda da

credibilidade dessas metanarrativas, ou a incredulidade diante delas. As metanarrativas, as

científicas inclusive, ao perderam sua credibilidade, não desapareceram, continuam tendo

importância, mas como pequenas narrativas, miniaturas e competitivas. A condição pós-

moderna, avessa aos consensos, é a tendência para o contrato temporário em todas as áreas da

existência humana, com laços mais econômicos, flexíveis e criativos que os da modernidade.

Lyotard anuncia o eclipse de todas as narrativas grandiosas: inicialmente, referindo-se

ao socialismo clássico, ampliando, posteriormente, a lista com a redenção cristã, o progresso

iluminista, o espírito hegeliano, a unidade romântica, o racismo nazista e o equilíbrio

keynesiano.699

As mudanças engendradas pela pós-modernidade trouxeram, também, redefinições e

recomposições nas ciências sociais, com conseqüências para o sujeito moderno e sua

identidade.

O novo sujeito, pós-moderno, ancorado nessas mudanças, engendrado ao longo da

segunda metade do século XX e, somente ao final desse, caracterizado como tal, é percebido

699 Lyotard viu-se frente a um problema de difícil solução. Ao anunciar o eclipse de todas essas narrativas grandiosas, não se referiu inicialmente ao capitalismo. Questionado, posteriormente, acerca disso, tenta uma solução um tanto quanto engenhosa demais para a questão. É Fredric Jameson, em análise primorosa e perspicaz, que percebe as possibilidades pós-modernas a partir do próprio desenvolvimento do capitalismo. Cf. as nuanças desse debate na primeira parte acima deste capítulo.

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como “a figura de um indivíduo isolado,700 exilado ou alienado, colocado contra o pano de

fundo da multidão ou da metrópole anônima e impessoal” (HALL, 2002, p. 32). Esse sujeito

pós-moderno já não tem uma identidade fixa,701 essencial ou permanente, mas uma identidade

que se mostra como uma “celebração móvel” 702 (HALL, 1987), formada e transformada

continuamente, definida historicamente e não mais biologicamente. As identificações desse

sujeito703 deslocam-se continuamente, conseqüência da presença, nele, de identidades

contraditórias, diferentes em diferentes momentos, que o empurram em diferentes direções. 704

Essas identidades não são mais unificadas ao redor de um “eu” coerente e, se ainda é

perceptível uma sensação identitária que parece unificar a pessoa do nascimento à morte,

deve-se à necessidade humana de construção de uma cômoda estória sobre ela mesma ou uma

confortadora “narrativa do eu” (HALL, 1990). No lugar de uma identidade unificada,

completa, segura e coerente, uma fantasia nos novos tempos, as pessoas são confrontadas por

uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis,705 posto que os

700 Bauman (2001, p. 43) afirma que ninguém deve enganar-se: “agora, como antes – tanto no estágio leve e fluido da modernidade quanto no sólido e pesado –, a individualização é uma fatalidade, não uma escolha. Na terra da liberdade individual de escolher, a opção de escapar à individualização e de se recusar a participar do jogo da individualização está decididamente fora da jogada”. 701 “O eixo da estratégia de vida pós-moderna não é fazer a identidade deter-se – mas evitar que se fixe”. A “adequação” (“a capacidade de se mover rapidamente onde a ação se acha e estar pronto a assimilar experiências quando elas chegam”) do indivíduo pós-moderno passa por uma nova “estratégia de vida racional”, qual seja, “a determinação de viver um dia de cada vez”, o que significa “cortar o presente nas duas extremidades, separar o presente da história”, num “presente contínuo”. Isso porque “o mundo construído de objetos duráveis foi substituído pelo de produtos disponíveis projetados para imediata obsolescência” (BAUMAN, 1998, p. 112-113, ênfase do autor). 702 Bauman (2001) simboliza a modernidade e pós-modernidade com as imagens do hardware (modernidade pesada) e software (modernidade leve ou pós-modernidade), respectivamente. 703 No parecer de Bauman (1998, p. 32), “a imagem do mundo diariamente gerada pelas preocupações da vida atual é destituída da genuína ou suposta solidez e continuidade que costumavam ser a marca registrada das ‘estruturas’ modernas”. 704 Bauman (1998, p. 32) descreve com clareza tal situação: “Os projetos de vida individuais não encontram nenhum terreno estável em que acomodem uma âncora, e os esforços de constituição da identidade individual não podem retificar as conseqüências do ‘desencaixe’, deter o eu flutuante e à deriva”. Bauman usa a expressão “desencaixe”, afirmando a impossibilidade da tentativa, principalmente de Giddens (2002), de um possível “reencaixe” dos “eus desencaixados”. 705 Segundo Bauman (1998, p. 23), “no mundo pós-moderno de estilos e padrões de vida livremente concorrentes, há ainda um severo teste de pureza que se requer seja transposto por todo aquele que solicite ser ali admitido: tem de mostrar-se capaz de ser seduzido pela infinita possibilidade e constante renovação promovida

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sistemas de significação e representação também se multiplicam,706 podendo identificar-se

com cada uma delas, ao menos temporariamente.707

Bauman (1998, p. 32) explicita com clareza o sentimento que agora perpassa esse

indivíduo:

O sentimento dominante, agora, é a sensação de um novo tipo de incerteza, não limitada à própria sorte e aos dons de uma pessoa, mas igualmente a respeito da futura configuração do mundo, a maneira correta de viver nele e os critérios pelos quais julgar os acertos e os erros da maneira de viver. O que também é novo em torno da interpretação pós-moderna da incerteza (em si mesma, não exatamente uma recém-chegada num mundo do passado moderno) é que ela já não é vista como um mero inconveniente temporário, que com o esforço devido possa ser abrandado ou inteiramente transposto. O mundo pós-moderno está se preparando para a vida sob uma condição de incerteza que é permanente e irredutível.

A partir dessas identidades fragmentadas, o sujeito, na modernidade tardia, 708 conhece

não simplesmente uma desagregação mas um deslocamento, oriundo de uma série de rupturas

nos discursos do conhecimento moderno. Hall (2002) esboça cinco grandes avanços na teoria

social e nas ciências humanas no Ocidente que teriam possibilitado o descentramento final do

sujeito cartesiano:

a) A redescoberta de Marx, na última década de sessenta, a partir da releitura de sua

afirmação de que “os homens fazem a história, mas apenas sob as condições que lhe são

pelo mercado consumidor, de se regozijar com a sorte de vestir e despir identidades, de passar a vida na caça interminável de cada vez mais intensas sensações e cada vez mais inebriante experiência”. 706 Bauman (1998, p. 36) fala que “a imagem de si mesmo se parte numa coleção de instantâneos, e cada pessoa deve evocar, transportar e exprimir seu próprio significado, mais freqüentemente do que abstrair os instantâneos do outro”. Uma identidade sob essas condições, Bauman a denomina “identidade de palimpsesto [...], uma série de ‘novos começos’, que se experimentam com formas instantaneamente agrupadas mas facilmente demolidas, pintadas umas sobre as outras”. Isso – “viver sob condições de esmagadora e auto-eternizante incerteza” – distingue-se, e muito, da moderna idéia de construção da “identidade, gradual e pacientemente, como se constrói uma casa – mediante a adição de tetos, soalhos, aposentos, ou de corredores”, identidade essa “vivida num mundo voltado para a constituição da ordem”. 707 Temporariamente, como numa “fita de vídeo, sempre pronta a ser apagada a fim de receber novas imagens” (BAUMAN, 1998, p. 37). 708 Expressão utilizada por Hall (2002) e outros autores, para se referir aos acontecimentos da segunda metade do século XX, que consolidaram o questionamento dos fundamentos da Modernidade. Em alguns autores, o termo é tomado em substituição a pós-modernidade, no sentido de que o que hoje se verifica não é um novo paradigma, pós-moderno, mas um repensar das coordenadas da modernidade. Não é o caso de Hall (2002), confesso simpatizante da existência de uma cultura pós-moderna, sendo modernidade tardia apenas um momento de passagem para uma realidade outra.

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dadas”: os indivíduos não poderiam ser os autores ou os agentes da história, pois sua ação se

dava com base e sob condições históricas criadas por outros, partindo de recursos materiais e

de cultura que lhes foram fornecidos por gerações anteriores.709

b) A descoberta do inconsciente por Freud: a afirmação de que nossas identidades, nossa

sexualidade e a estrutura de nossos desejos estão fundamentadas em processos psíquicos e

simbólicos do inconsciente, com outra lógica que não a da Razão, arrasa o “penso, logo

existo” cartesiano, que preconizava um sujeito cognoscente e racional provido de uma

identidade fixa e unificada.

c) O trabalho de Ferdinand de Saussure (1857-1913): nós não somos, em nenhum sentido, os

“autores” das afirmações que fazemos ou dos significados que expressamos na língua. Não é

suficiente se posicionar no interior das regras da língua e dos sistemas de significado de nossa

cultura para, com a utilização da língua, produzir significados. Isso porque ela é um sistema

social, preexistente a nós, e não um sistema individual. Falar não significa apenas a expressão

de pensamentos mais interiores e originais mas a ativação de uma imensa gama de

significados que já estão embutidos em nossa língua e em nossos sistemas culturais. O

significado das palavras não é fixo, equivalendo cada palavra a um objeto ou evento

específico do mundo, mas surge nas relações de similaridade e diferença que as palavras têm

com outras palavras no interior do código da língua.

d) O trabalho de Michel Foucault: produziu uma espécie de ‘genealogia do sujeito moderno’.

Nela, destaca-se o “poder disciplinar”, que se produz ao longo do século XIX e atinge seu

ápice no início do XX. A preocupação primeira de tal poder seriam a regulação, a vigilância e

o governo da espécie humana ou de populações inteiras e, em segundo plano, do próprio

indivíduo e de seu corpo. Ele estaria sediado naquelas instituições, filhas do século XIX, sob

as quais estaria a responsabilidade pelo policiamento e pela disciplina: oficinas, quartéis,

709 Foi Louis Althusser (1918-1989), estruturalista marxista, quem melhor simbolizou essa reinterpretação marxista.

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escolas, prisões, hospitais, clínicas etc. O objetivo básico desse poder seria produzir um ser

humano que possa ser tratado como um corpo dócil. Isso se conseguiria pelo estrito controle e

disciplina da vida, das atividades, do trabalho, das infelicidades, dos prazeres, da saúde física

e moral, das práticas sexuais e da vida familiar do indivíduo. Na base dessa possibilidade,

disciplinar estariam o poder dos regimes administrativos, o conhecimento especializado dos

profissionais e o conhecimento fornecido pelas “disciplinas” das Ciências Sociais.

e) O impacto do feminismo, como movimento social e como crítica teórica: teve uma relação

mais direta com o descentramento conceitual do sujeito cartesiano e sociológico.

Basicamente, porque: 1) com o slogan “o pessoal é político”, questionou a clássica distinção

entre o “dentro” e o “fora”, o “privado” e o “público”; 2) abriu a arena da contestação política

a novos grupos e bandeiras sociais (família, sexualidade, trabalho doméstico, divisão

doméstica do trabalho, cuidado com as crianças etc.); 3) enfatizou e politizou a subjetividade,

a identidade e o processo de identificação (homens/mulheres, mães/pais, filhos/filhas etc.); 4)

a partir da contestação da posição social das mulheres, expandiu-se para incluir a formação

das identidades sexuais e de gênero; 5) questionou a noção de que homens e mulheres eram

partes integrantes de uma mesma identidade, a “Humanidade”, trazendo para o seu lugar a

questão da diferença sexual.

A expressão de Bauman (1998, p. 155, ênfase do autor) clareia as características que

permeiam a identidade pós-moderna, fruto, em grande parte, dos descentramentos paulatinos

do sujeito moderno descritos acima.

O aspecto novo, caracteristicamente pós-moderno e possivelmente inaudito, da diversidade dos nossos dias é a fraca, lenta e ineficiente institucionalização das diferenças e sua resultante intangibilidade, maleabilidade e curto período de vida. Se desde a época do ‘desencaixe’ e ao longo da era moderna, dos ‘projetos de vida’, o ‘problema da identidade’ era a questão de como construir a própria identidade, como construí-la coerentemente e como dotá-la de uma forma universalmente reconhecível – atualmente, o problema da identidade resulta principalmente da dificuldade de se manter fiel a qualquer identidade por muito tempo, da virtual impossibilidade de achar uma forma de expressão da identidade que tenha

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boa proba-bilidade de reconhecimento vitalício, e a resultante necessidade de não adotar nenhuma identidade com excessiva firmeza, a fim de poder abandoná-la de uma hora por outra, se for preciso.

Foram privilegiadas neste espaço as características que se apresentam como pós-

modernas e suas conseqüências na redefinição do sujeito e de sua identidade nesse novo

contexto. Passou-se ao largo de uma possível tentativa de definição da pós-modernidade,

tarefa que, se realizada, até facilitaria a concretização do item seguinte desta pesquisa:

perscrutar o quanto os teólogos, aqui arrolados, conseguem responder satisfatoriamente aos

desafios pós-modernos. No entanto, por dois motivos básicos, as definições não foram

contempladas: 1º) nesse recente campo de investigação, os debates são ainda incipientes, não

existindo ainda definições satisfatórias710 – se é que elas possam ser possíveis em se tratando

de pós-modernidade, dadas suas características fluidas; 2º) quando se reflete acerca de

identidade (s), contextualizada (s) neste denominado mundo pós-moderno, não cabem

definições, pois, entre outros motivos, “definições são inatas; identidades são constituídas. As

definições informam a uma pessoa o que ela é, as identidades atraem-na pelo que ela ainda

não é, mas ainda pode tornar-se” (BAUMAN, 1998, p. 94, ênfase do autor).

Perscrutar o quanto os teólogos, aqui arrolados, conseguem responder

satisfatoriamente aos desafios pós-modernos é o que se pretende a seguir. Observar se as

reflexões teológicas, expostas em detalhes acima, realmente se aproximam, no primeiro caso

(Küng, Torres Queiruga e Hick), e se realmente dialogam, no segundo caso (Haight), com as

novas exigências pós-modernas e seus novos integrantes identitários.

Na ausência de definições, esta pesquisa, de forma pouco pós-moderna, escolheu,

dentre as características acima, algumas básicas da pós-modernidade, consideradas por esta

710 A primeira tendência foi a de, modernamente, utilizar a palavra “definitivas”, no lugar de “satisfatórias”, por sua vez menos assertiva, mas também distante das exigências pós-modernas. Ao longo desta pesquisa, outros casos, como esse, com certeza, fizeram-se presentes, alguns conscientizados por este pesquisador, outros não. O próprio contexto atual de “in-definições” ajuda a reforçar esta certa sensação de inadequação.

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pesquisa como seus pilares, que poderiam servir de contraponto (para não dizer critérios, o

que soaria menos pós-moderno ainda) às reflexões dos autores em pauta.

1ª) A condição pós-moderna como a perda da credibilidade das metanarrativas711 ou a

incredulidade diante delas (Lyotard, 1998).

2ª) As identidades são fragmentadas, percebendo-se uma multiplicidade desconcertante e

cambiante de identidades possíveis: o sujeito pós-moderno já não tem uma identidade fixa,

essencial ou permanente, mas uma identidade que se mostra como uma “celebração móvel”,

formada e transformada continuamente, definida historicamente e não mais biologicamente

(HALL, 1987).

3ª) A inteligibilidade das proposições:712 não é mais possível dizer que “é assim” porque “é

assim”, pois os sistemas de significação e representação se multiplicam. Como os sujeitos

podem identificar-se com cada um deles, ao menos temporariamente, há que se tornar crível o

próprio sistema de significação.

Outras características e/ou elementos poderiam ser tomados, dada a variedade de

possibilidades contempladas pela pós-modernidade; essas, no entanto, são as aqui

privilegiadas.

711 Libânio (2003, p. 166) afirma que “a pós-modernidade questionou radicalmente a grande narrativa, seja do Iluminismo, seja da revelação, seja da ciência. Cabe, porém, valorizar as narrativas menores como meio didático-pedagógico de transmissão da fé”. 712 Na afirmação de Libânio (2003, p. 145), “faz-se teologia para encontrar uma inteligência mais lúcida do próprio crer”.

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3.2.2 Desafio religioso pós-moderno: a inteligibilidade num mundo fragmentado

A tarefa de perscrutar o quanto os teólogos, aqui arrolados, conseguem responder

satisfatoriamente aos desafios pós-modernos seguirá a estrutura adotada quando da exposição

de suas reflexões.

• PROXIMIDADES TEOLÓGICAS À PÓS-MODERNIDADE

� Hans Küng: exigências pós-modernas

� Andrés Torres Queiruga: proposição de um novo paradigma

� John Hick: a metáfora do Deus encarnado

• ROGER HAIGHT: UMA REFLEXÃO TEOLÓGICA CRISTÃ EM DIÁLOGO COM

A PÓS-MODERNIDADE

� Jesus, símbolo concreto de Deus: o caráter simbólico da linguagem teológica

� Pluralidade na teologia cristã: a consciência de um novo ambiente cultural

� Uma cristologia construtiva em um contexto crescentemente pós-moderno

o Pontes de passagem para a pós-modernidade

o Jesus como salvador

o Libertação e salvação: a cristologia e a vida cristã

o Jesus e as religiões mundiais

o A divindade de Jesus Cristo

o A Trindade

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Essa estrutura e o desenvolvimento escrito de suas partes, expostos anteriormente, de

maneira geral, dão o tom da tese que aqui se quer afirmar: Küng, Torres Queiruga e Hick

aproximam-se teologicamente da pós-modernidade, enquanto Haight entra em franco diálogo

com ela. O Pano de fundo que perpassa as reflexões desses autores, independentemente da

posição ocupada com relação à pós-modernidade, é a inteligibilidade, ou seja, a teologia, hoje,

deve fazer-se de modo a ser compreendida pelo sujeito pós-moderno. As ferramentas

utilizadas individualmente é que farão a diferença, não pequena, é verdade, em alguns casos,

entre as diferentes reflexões.

Começando pelas proximidades à pós-modernidade, pode-se afirmar que a ordem em

que os autores foram apresentados não é aleatória.

• PROXIMIDADES TEOLÓGICAS À PÓS-MODERNIDADE

� Hans Küng: exigências pós-modernas

� Andrés Torres Queiruga: proposição de um novo paradigma

� John Hick: a metáfora do Deus encarnado

A cronologia exerceu certa influência. Tivesse ela sido o fator determinante, teria

ficado assim a divisão: Hans Küng (texto original de 1990), John Hick (texto original de

1993) e Torres Queiruga (texto original de 2000). Pelo que se vê, houve uma inversão

cronológica com relação aos dois últimos autores. Isso se deu porque esta pesquisa considera

maior a proximidade de Hick às exigências pós-modernas. Algo, à primeira vista, paradoxal,

pois esse autor, diferentemente dos dois primeiros, em nenhum momento de sua obra, aqui

referida, faz menção à pós-modernidade. Somente dois anos depois, em 1995, respondendo às

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críticas à sua teoria pluralista, é que Hick menciona o fato pós-moderno, negando que sua

reflexão esteja inserida nesse contexto.713

O fato de Hick não ser um autor católico e estar presente neste importante momento

desta pesquisa que se pretendeu inserida na teologia católica, merece uma consideração. E ela

vem da simples constatação de que as reflexões do autor influenciaram e continuam

influenciando a atual reflexão teológica, que não se faz possível passar ao largo de suas

proposições.

Küng e Torres Queiruga não entram explicitamente na querela, autodenominando-se

ou não de pós-modernos, mas se diferenciam acerca de como concebem o atual momento

cultural: para Küng, um novo paradigma, enquanto para Torres Queiruga, um novo estágio da

modernidade.

No campo da cultura, Torres Queiruga trata a Modernidade como um novo paradigma,

porém não faz o mesmo com a pós-modernidade que, para ele, constitui-se em desafios

enormes, mas não de superação da Modernidade. Ele fala (2003, p. 121-122) em “primeira

etapa” e “segunda etapa” da Modernidade e em “primeira modernidade” (podendo-se inferir

que o correspondente à “segunda etapa” seria a segunda modernidade, que se vive hoje e que

alguns denominam, não sem conseqüências, pós-modernidade).

Comparando-se com Küng, Torres Queiruga (2003, p. 23) define sua posição: “H.

Küng prestou muita atenção ao conceito de paradigma e estrutura sobre ele sua visão do

cristianismo (parece dar por pressuposto que a ‘pós-modernidade’ representa um paradigma

novo, algo que eu não assumo aqui)”. Atesta isso o próprio título de seu livro, aqui analisado,

“Fim do cristianismo pré-moderno”. Não se trata do “Fim do cristianismo moderno”.

713 Cf. HICK, John. A Christian Theology of Religions: the rainbow of faiths. Louisville: John Knox Press, 1995. [Encontra-se no prelo a tradução deste texto, sob a tradução do prof. Luís Henrique Dreher (UFJF)]. Hick, nesse texto (1995, p. 38), reafirma sua hipótese pluralista e afirma não ser “muito favorável ao uso do termo ‘pós-moderno’ por significar tantas coisas diferentes para pessoas diferentes”; continuando, diz que “tão grande é sua [do termo pós-moderno] abrangência de significados que eu mesmo fui criticado por um escritor evangelical por ser um pós-modernista – o que talvez seja ainda pior do que ser atacado pelos pós-modernistas!”.

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Küng (2001, p. 15) reconhece que o termo ‘pós-modernidade’ envolve problemas,

ainda não solucionados, devendo ser melhor determinado. Mesmo assim, apesar de expressar

mais a indecisão que a determinação, essa nova época mundial, pós-moderna, à falta de um

nome próprio, ao final do século XX, torna-se cada vez mais consciente. Em seu modo de ver,

“pós-modernidade não é nem uma palavra mágica que tudo abarca nem um termo-chave

polêmico que tudo expressa. Trata-se antes de um termo heurístico inevitável, mas que pode

ser mal entendido”. Explicando a relação de pós-moderno com heurístico, Küng (1989, p. 16,

minha tradução) afirma que é no sentido de “busca”, termo “característico de uma época que

– apesar de todas as reações tanto das direitas quanto das esquerdas – está abrindo caminho há

décadas, se bem que é agora que se manifesta na consciência geral das massas”.

Explicada a estrutura textual e os posicionamentos iniciais dos autores, resta explicitar

seus pontos reflexivos básicos a partir das exigências básicas da pós-modernidade, motivo

pelos quais eles foram colocados próximos ao contexto pós-moderno.714

Küng propõe sua tese central, a partir da qual surgem todos os desdobramentos de sua

reflexão: “não haverá sobrevivência sem uma ética mundial. Não haverá paz no mundo sem

paz entre as religiões. E sem paz entre as religiões não haverá diálogo entre as religiões”.

1ª) Posição frente às metanarrativas

O ponto nevrálgico a ser aqui ressaltado é a proposição de Küng em favor de uma

ética mundial, válida para todos, o que o aproxima de um discurso metanarrativo, fazendo-o

esbarrar nas características pós-modernas. O autor pretende não uma “religião unitária” (uma

fé religiosa única) ou uma “ideologia única”, mas uma “ética básica para toda a humanidade”

que possa garantir a sua “sobrevivência”. Tal pretensão pressupõe, necessariamente, uma

714 Esta pesquisa, neste momento, deliberadamente, não coloca a fonte das citações feitas. Isso porque o que se quer aqui privilegiar é o texto em si e também porque tais fontes foram já amplamente explicitadas anteriormente. O que não se menciona agora, na verdade, são as páginas, mais especificamente, pois os autores estão especificados, assim como suas obras aqui analisadas.

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série de critérios que seriam comuns a todos os segmentos, religiosos ou não, da sociedade

mundial. Ciente dessa dificuldade, e consciente da característica multifacetada do atual

contexto cultural, Küng persegue os necessários “princípios fundamentais” – “padrões”,

“valores, objetivos, ideais e visões comuns” – e os encontra resumidos no humano: “a pessoa

humana deve vir a ser mais do que é, ou seja, a pessoa humana deve ser mais humana”.

Küng acredita que “o humano”, como critério ecumênico fundamental, pode convidar

todos os segmentos – políticos, econômicos, científicos e religiosos715 – da sociedade a

olharem mais para aquilo que os une do que para o que os separa. No caso das religiões, isso

poderia levá-las ao diálogo e à paz, algo fundamental no caminho à ética mundial, etapa

necessária à sobrevivência da humanidade.

Na vertente religiosa específica, seguido do critério religioso geral716 e do

específico717, esse passa a ser o critério ético geral, válido “para todas as religiões”, no sentido

de uma “distinção entre a verdadeira (boa) e a falsa (ruim) religião”: por essa medida humana,

uma religião é boa se não oprime e destrói o humanismo, mas o protege e fomenta.

Por fim, Küng mostra-se bastante otimista ao vislumbrar

a passagem de uma ciência sem ética para uma ciência eticamente responsável, a passagem de uma tecnocracia que domina as pessoas, para uma tecnologia que serve à humanidade das pessoas, a passagem de uma indústria, que destrói o meio ambiente para uma indústria, que promove os verdadeiros interesses e necessidades das pessoas em harmonia com a natureza, a passagem de uma democracia formalmente de direito para uma democracia vivida, na qual liberdade e justiça estão reconciliadas.

Na base desse otimismo, encontra-se a crença de que os valores não estão em

decadência, mas, sim, necessitando de transformação. Para que haja essa transformação, há

que se mirar a união de todos no sentido de uma ética mundial.

715 Mesmo aqueles que se declaram “sem religião”. 716 A medida da fidelidade de cada religião à sua origem ou ao seu cânone. 717 A medida do reconhecimento do espírito de Cristo, no caso do cristianismo, sendo que esse critério deve ser adaptado a cada religião específica.

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2ª) Posição frente às identidades fragmentadas

É transparente nas reflexões de Küng a percepção de um mundo de várias culturas e

religiões, o que o aproxima bastante das coordenadas pós-modernas. Sua consciência da

característica multifacetada do atual contexto cultural transparece na negação de uma “fé

religiosa única” ou uma “ideologia única”. As instituições religiosas, desde a modernidade,

perderam aquela enorme plausibilidade de que gozavam anteriormente. Permanece, porém, a

religião, bastante viva psíquica e socialmente, caracterizada, por isso, segundo Küng, como

fundamentalmente pós-moderna.

Permanecem diferentes os valores das diferentes culturas e religiões, Küng insiste

nisso, pois o que as une é o aspecto especificamente humano, algo que perpassa todas elas.

Excetuando-se esse critério geral, não fica enfraquecida, na reflexão de Küng, a pluralidade

percebida no contexto pós-moderno.

Por fim, Küng, é bom salientar, tenta um meio termo acerca dos temas mais

problemáticos relacionados à fragmentação do sujeito pós-moderno: nega, propondo

substituições, qualquer forma de indiferentismo (porém, mais indiferença frente às

ortodoxias), relativismo (porém, mais relatividade frentes aos absolutismos humanos) e

sincretismo (porém, mais vontade para a síntese).

3ª) Posição frente à necessidade de inteligibilidade

O arcabouço teórico de Küng faz-se compreensível, sendo essa, inclusive, sua

preocupação explícita (fazer-se compreensível aos ouvintes), o que o aproxima da pós-

modernidade. Segundo o autor, toda “a riqueza metafórica” da religião pode servir como

“expressão da superação de limites ou como esperança de redenção”. A menção à

possibilidade metafórica da religião deve-se ao fato de que as pessoas acreditam cada vez

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menos em soluções morais e/ou religiosas derivadas de forma fixa “do céu, do taoísmo [...,]

da Bíblia, de algum livro sagrado”, ou de uma autoridade, por mais alta que seja.

Sua proposta é que as religiões, nessa sociedade altamente tecnologizada, com uma

realidade diversificada, mutável, complexa e, por vezes, pouco transparente, empreguem

métodos científicos para o mais objetivamente possível analisar a realidade. Como não se

pode mais contar com um “imperativo categórico”, principalmente após Nietzsche, Küng

aconselha falar da realidade última, não racionalmente, algo impossível, mas na forma de uma

fé sensata, independentemente de como é denominada, entendida e interpretada nas diferentes

religiões.

Torres Queiruga propõe sua tese central a partir da qual surgem todos os

desdobramentos de sua reflexão: faz-se necessária uma inversão no modo de conceber e

vivenciar a relação de Deus com o homem, qual seja, “levar a sério a absoluta primazia de

Deus que nos criou e continua nos criando por amor; única e exclusivamente por amor”. Não

é verdade que “‘Deus esteja no céu e tu na terra’”. Deus está sempre aqui “entre nós: no

homem e na mulher, na terra e na história”.

1ª) Posição frente às metanarrativas

O ponto a ser aqui ressaltado refere-se à metanarrativa de Deus, presente em Torres

Queiruga. Apesar de negar o Deus “totalmente outro”, típico de Barth, ao trazê-lo para o atual

contexto multifacetado, o faz de uma maneira igual para todos os diferentes sujeitos desse

contexto. Sua pós-modernidade “religiosa” – no caminho aberto pelas insatisfações humanas

com a modernidade – difratando-se em múltiplas formas, busca “uma vivência de fraternidade

que abrace todo o real e leve a uma experiência atual do absoluto”.

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O Deus que “nos criou” e continua “nos criando”, única e exclusivamente “por amor”,

é o que também “nos salva”, antes que “nos preocupemos” com essa salvação.

Na verdade, o autor propõe uma inversão “no modo de conceber e vivenciar a relação

de Deus com o homem”: Deus está sempre aqui. Somente essa inversão possibilita sua tese

central. Se a visão de um “Deus amor”, que a todos abarca, esbarra nas exigências da pós-

modernidade, as reflexões de Torres Queiruga acerca dessa sua proposta de inversão teológica

constituem seus grandes pontos de abertura às questões pós-modernas, explicitadas a seguir.

2ª) Posição frente às identidades fragmentadas

Essa inversão se faz necessária no sentido de se responder aos desafios da religião

“perante o terceiro milênio”, urgindo mesmo uma mudança de paradigma. Como Torres

Queiruga situa suas reflexões no que ele chama de “dialética entre modernidade e pós-

modernidade” (seu “marco geral”), menciona os desafios de ambos os lados que estariam a

exigir uma inversão no modo de se olhar a relação Deus/homem (imanência/transcendência).

Os desafios da modernidade estão relacionados, basicamente, à colocação do homem

como centro de sua própria existência. É o desafio antropocêntrico. No arcabouço teórico de

Torres Queiruga, enquanto a teologia católica continuar concebendo Deus como “totalmente

outro”, os modernos desafios antropocêntricos continuarão sem resposta. Na verdade, o autor

afirma que as respostas à modernidade já vêm sendo elaboradas, visto que houve maior tempo

para tal tarefa. O modo de conceber Deus anteriormente era tolerável porque não destoava das

formas culturais daquele momento, no entanto, com a modernidade, um mundo cultural vinha

abaixo, de par com a exigência de novas respostas religiosas (adequar a forma da fé à nova

situação), o que não ocorreu prontamente, jogando o cristianismo em uma grande crise. Se, na

modernidade, a tensão foi-se tornando insuportável, às portas do século XXI, o desajuste

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(inadequação entre “intenção – a elaboração teológica – e realização – o contexto cultural”)

pode ser mortal.

Para Torres Queiruga, os desafios pós-modernos (ainda “em plena ebulição”) que se

apresentam são de tal monta (uma “riquíssima polifonia”) que se faz necessária uma “guinada

completa” (colocar de “ponta-cabeça” muitos e decisivos conceitos teológicos) na teologia

cristã atual. Um novo paradigma da revelação, um Deus que “já está sempre dentro”, pode,

segundo o autor, respeitar a justa autonomia e subjetividade do sujeito, visto que Deus já

estaria ali sustentando, promovendo e iluminando. Um Deus assim concebido não necessitaria

de rompimentos, de “forma milagrosa ou intervencionista”.

Não é mais possível falar em uma “fuga culturae”. O cristianismo deve buscar “viver

à altura de seu tempo”.

3ª) Posição frente à necessidade de inteligibilidade

Para que não ocorra novamente uma “fuga culturae”, a principal preocupação

teológica deve ser a tentativa de que a “fé se torne intelectualmente significativa e possa ser

vivida e praticada culturalmente”. Um cristianismo que pretenda ser crível nos novos tempos

não pode se encerrar em uma simples “reação apologética”. Deve, isto sim, tomar o caminho

da “criatividade histórica”. Torres Queiruga acredita que “ter fé hoje é, no final das contas,

ser, em alguma medida, ‘cristão pós-moderno’”.

Hick propõe sua tese central a partir da qual surgem todos os desdobramentos de sua

reflexão: olhar a encarnação como uma metáfora específica ao cristianismo.

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1ª) Posição frente às metanarrativas

A realidade última e suas diversas possíveis manifestações históricas dão o tom

fundamental ao arcabouço teórico/filosófico/teológico de Hick. O autor resgata a idéia de um

Deus (ou como quer que o chamem, por isso sua denominação de Realidade última)

“totalmente outro” (Barth). É tão “totalmente outro” essa realidade em Hick, que acaba por

cumprir duas funções: de um lado, torna-se inacessível a qualquer possibilidade de

conceituação (e apropriação) – “transcende todos os nossos conceitos”, inclusive os

“religiosos” (HICK, 1995, p. 50) – e, de outro, possibilita suas considerações acerca da

teologia das religiões, no sentido da validade irrestrita de todas as religiões. Aquela que

desejar se arvorar em superior às demais deve prová-lo historicamente, sem o expediente de

uma justificação ‘do alto’, impossível, dada sua inacessibilidade. 718

O questionamento, que a pós-modernidade poderia fazer ao autor, está relacionado a

uma crítica que o próprio Hick dirige ao inclusivismo. Esse, segundo o autor, inclui todos, à

revelia, em algum momento, à realidade cristã. Essa unificação não estaria acontecendo

também em sua realidade última, visto que ela é única, por ser a última (senão, seria uma

“pluralidade de penúltimos”, diz Hick (1995, p. 69))? Resvalaria, tal concepção, em uma

metanarrativa?719

2ª) Posição frente às identidades fragmentadas

Hick afirma ter partido de constatações históricas para formular sua tese, ou melhor,

na sua denominação, “alternativa”. Percebe-se, aí, sua grande proximidade às exigências pós-

718 Hick (1995, p. 76-77) menciona, no entanto, “critérios éticos em sentido amplo”. O autor vislumbra uma maneira pela qual poderia ser acionado o “nosso ‘detetor de asneiras espirituais’”; “pelos seus frutos” poderia-se dizer se as tradições estariam ou não promovendo a transformação salvífica. Esse “certamente é um critério mole e não duro, no sentido de que não se aplica a nada que possa ser medido com precisão”. 719 Respondendo à questão sobre se não estaria sendo, com sua proposição de uma “realidade última”, “no fim das contas, de algum modo inclusivista!”, Hick (1995, p. 81) responde: “E por que não? Mas é óbvio que assumir uma visão inclusivista numa área não significa que também se deva ter uma visão inclusivista em outra. Cada caso tem de ser considerado com base em seus próprios méritos”.

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modernas. O momento histórico atual é, segundo o autor, o “ponto móvel de flexão” no qual

encontra-se atualmente o mundo teológico cristão: entre uma estrutura de crença de muitos

séculos e a “nova estrutura ainda em formação”. Nessa nova estrutura, o cristianismo

conscientiza-se de ser uma resposta válida, entre outras existentes, à realidade última. Essa

consciência está surgindo devido a uma maior sensibilidade na percepção da imensa

variedade de culturas e religiões na humanidade. A globalização desempenhou papel

importante nesse processo.

Nessa época cristã pós-tradicional, pode-se vivenciar um cristianismo não tradicional

como um caminho espiritual autêntico entre outros.

3ª) Posição frente à necessidade de inteligibilidade

Os argumentos utilizados por Hick, para fundamentar sua tese, ou “alternativa”, são,

também, pontos de grande proximidade às exigências pós-modernas. No caso, aqui, de

inteligibilidade. Sua proposição de compreensão da encarnação de Deus em Jesus Cristo

como uma metáfora torna-se, aos olhos desta pesquisa, perfeitamente compreensível no

mundo atual, avesso a quaisquer explicações mirabolantes ou desconectadas do cotidiano.

A idéia de encarnação divina, afirma Hick, em sua forma cristã-padrão, na qual se

insiste tanto na humanidade genuína como na divindade genuína, “nunca recebeu um sentido

literal satisfatório; por outro lado, porém, conclui-se que proporcionou um excelente sentido

metafórico”. Seus argumentos, além de compreensíveis, são, muitos deles, alvos de debate já

há bastante tempo no cristianismo:

a) Jesus não ensinou aquilo que se tornaria a compreensão cristã a seu respeito;

b) o dogma das duas naturezas de Jesus (humana e divina) demonstrou sua incapacidade de

ser explicado de maneira satisfatória;

c) historicamente, o dogma foi utilizado para justificar grandes males humanos;

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d) a idéia de encarnação divina é melhor compreendida como idéia metafórica, e não literal;

f) a metáfora não impede que se considere Jesus como nosso Senhor, como aquele que tornou

Deus real para nós e cuja vida e ensinamentos nos desafiam a viver na presença de Deus;

g) considerado assim, como uma resposta entre outras, o cristianismo pode dar sua

contribuição à comunidade mundial de forma melhor que se auto-enxergando como o lócus da

revelação final e portador da única salvação possível.

Finalmente, em diálogo com a pós-modernidade, abordou-se a reflexão teológica de

Haight. A escolha desse autor não foi aleatória, assim como também não o foi a colocação de

suas reflexões neste lugar específico da pesquisa, como estando em diálogo com a pós-

modernidade, qualificação não atribuída aos três autores anteriores (suas reflexões foram

qualificadas como próximas à pós-modernidade). A própria estrutura definida abaixo atesta

essa intenção dialogal do autor, sendo essa reforçada mais ainda ao se adentrar nas

proposições que se desenvolvem ao longo de cada um desses itens.

• ROGER HAIGHT: UMA REFLEXÃO TEOLÓGICA CRISTÃ EM DIÁLOGO COM

A PÓS-MODERNIDADE

� Jesus, símbolo concreto de Deus: o caráter simbólico da linguagem teológica

� Pluralidade na teologia cristã: a consciência de um novo ambiente cultural

� Uma cristologia construtiva em um contexto crescentemente pós-moderno

o Pontes de passagem para a pós-modernidade

o Jesus como salvador

o Libertação e salvação: a cristologia e a vida cristã

o Jesus e as religiões mundiais

o A divindade de Jesus Cristo

o A Trindade

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Como a reflexão de Haight já está detalhadamente explicitada neste capítulo terceiro

acima (3.1 Roger Haight: uma reflexão teológica cristã em diálogo com a pós-

modernidade), o que se pretende, neste momento, é apenas realçar os pontos principais ali

detalhados que, possivelmente, estejam ligados às principais exigências pós-modernas. Esta

pesquisa enxergou essa ligação e quer, aqui, apresentá-la, no sentido de uma teologia cristã

católica, nesse caso, especificamente, a partir desse autor, que está se movendo em direção ao

atual contexto cultural, ensaiando formas de diálogo frutífero com ela. Este momento foi

possível, e as partes anteriores destes escritos quiseram mostrar isso, porque a teologia, além

de acompanhar as mudanças culturais, contexto no qual está inserida irremediavelmente,

contou também com a adesão católica oficial, mesmo que tardia, à modernidade (passagem

abordada no primeiro capítulo). Com essa janela aberta, a reflexão teológica abriu caminho e

avançou em direção cada vez mais decisiva aos anseios plurais (avanço abordado no segundo

capítulo) do novo contexto que se insinuava (contexto explicitado na primeira parte deste

terceiro capítulo). Nas proximidades desta nova realidade cultural/religiosa, continuaram

abrindo caminho os três autores arrolados anteriormente neste terceiro capítulo (Küng, Torres

Queiruga e Hick). 720

O método aqui seguido será o mesmo utilizado quando da abordagem dos autores

anteriores (aqueles qualificados como próximos à pós-modernidade), qual seja, realçar os

pontos expoentes das reflexões de Haight a partir das três coordenadas principais da pós-

modernidade eleitas por esta pesquisa.

Haight propõe sua tese central a partir da qual surgem todos os desdobramentos de sua

reflexão: para os cristãos, Jesus é o símbolo concreto de Deus. Jesus: expressa um “arcabouço

de pensamento em que a figura histórica, Jesus de Nazaré, desempenha sempre o papel de

fonte e de referente último em afirmações acerca de Jesus Cristo”; símbolo de Deus: mesmo

720 Küng, Torres Queiruga e Hick, abordados anteriormente, podem ser vistos como caminhos preparatórios, daí sua alocação em item denominado PROXIMIDADES TEOLÓGICAS À PÓS-MODERNIDADE.

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que “esse símbolo seja um sacramento e nunca meramente um símbolo”, “‘símbolo’ é a

categoria interdisciplinar mais ampla e mais reconhecida”, o que permite maior

inteligibilidade, algo premente no novo e atual contexto cultural.

1ª) Posição frente às metanarrativas

Nesse mundo pluralista e policêntrico em seus horizontes de interpretação, a

consciência pluralista e relativista rechaça os valores universais e a verdade compartilhada.

Com isso, perde-se qualquer identidade especial de grupo e fica descaracterizada qualquer

narrativa totalizante que confira lugar privilegiado na história a um povo.721 Haight tem

consciência que, se quer dialogar com a pós-modernidade, em sua teologia, deve estar atento à

pós-moderna rejeição das metanarrativas. Nesse contexto, afirma o autor, no lugar dos mitos

ou metanarrativas, graça o pluralismo, no qual carece de sentido uma estrutura totalizante que

queira englobar as demais estruturas.

Para que sua cristologia não caia nesse erro, Haight a situa no cerne da teologia das

religiões e do pluralismo religioso e, por extensão, no âmago da pós-modernidade. Esse

contexto possibilita um “novo e dramático sentido cristológico”: se “a descoberta do

pluralismo é precisamente a descoberta do ‘outro’, de outras pessoas que são diferentes e

valiosas, embora excluídas ou suprimidas pelas grandes narrativas”, não se poderia, nesse

novo contexto, pergunta Haight,

interpretar Jesus Cristo precisamente como narrativa de Deus tão aberta aos outros que não coopta sua identidade específica nem privilegia os cristãos em detrimento deles? Pode a cristologia representar um Jesus Cristo que não divida, mas aceite o outro como outro e, portanto, funcione como princípio de unidade que respeita as diferenças? Aqui a pós-modernidade parece propiciar a ocasião para um novo e mais acurado aprofundamento no significado de Jesus Cristo que genuinamente transcenda o passado.

721 O autor se refere à idéia de um povo eleito.

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Além disso, ao fundamentar sua cristologia a partir da soteriologia, opta pelo método

“freqüentemente caracterizado como ‘a partir de baixo’”, cujo olhar perspectivo é o “ponto de

partida” e não o “ponto final” (o que configuraria uma cristologia alta).

Aos tradicionais lugares por onde circula a reflexão teológica: a fé, a revelação e a

Escritura, Haight acrescenta um quarto lugar: “concernente ao caráter simbólico da linguagem

teológica”. Isso coloca o autor num lugar distinto no universo do discurso teológico.

Haight (2003, p. 234) distingue dois tipos de símbolos: “concretos” (coisas, lugares,

eventos ou pessoas que medeiam a presença e a consciência de uma outra realidade) e

“conceituais” (um conceito, uma palavra, uma metáfora, uma parábola, um poema, um

evangelho ou relato).722 No caso de Jesus, um símbolo concreto, está-se falando “da real

presença de Deus a ele e, através dele, ao mundo, da qual é mediador”.

2ª) Posição frente às identidades fragmentadas

Haight, em toda a sua reflexão, na obra aqui referida, passa a impressão de navegar

tranqüilamente nas águas da pluralidade cultural e religiosa características da pós-

modernidade: “foi no espírito [...] de diálogo com a cultura pós-moderna que este livro [seu

livro aqui analisado] foi escrito”, diz ele.

O autor tem uma compreensão clara de que “o período compreendido entre o final do

século XX e o começo do século XXI é cada vez mais denominado pós-moderno”. Nele,

percebe-se “uma consciência do pluralismo em todos os níveis de reflexão acerca da

humanidade: sua natureza, sua história, seu propósito, seu Deus”. De maneira geral, pode-se

722 Encontra-se aqui a diferença fundamental entre as reflexões de Hick e Haight acerca de Jesus: um símbolo concreto segundo Haight, enquanto para Hick, um símbolo conceitual (metáfora). O símbolo conceitual revela uma outra coisa e torna-se presente à imaginação e à mente. São noções, idéias, ditos ou textos que medeiam uma consciência mais profunda de um nível de realidade que vai além de seu sentido manifesto. Se quiserem ser reveladores de Deus, “os símbolos conceituais devem ser mais do que signos convencionais” (HAIGHT, 2003, p. 235). Eles têm que possuir alguma conexão interior com o que é revelado, de forma que, assim, esse revelado presentifica-se à mente. Daí, a crítica de Haight (2003, p. 379) a Hick: “Hick está tão preocupado em transcender as afirmações particulares para acomodar todas as religiões que a encarnação e a presença de Deus, como Espírito em Jesus, são reduzidas a um débil sentido metafórico”.

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falar que essa “consciência histórica e pluralista da pós-modernidade minou as pretensões

totalizantes dos sistemas de pensamento”.

Sobre essa base repousa toda a sua construção teológico-reflexiva: a consciência do

pluralismo em todos os níveis. Dessa forma, há que se reformularem as bases sobre as quais

são apresentadas as coordenadas teológico-cristológicas no contexto atual.

A teologia não pode simplesmente ser afirmada como um discurso acerca de Deus.

Essa conceituação esconde diversas diferenças. “Atualmente a teologia pode ser caracterizada

como pluralista”, “não se pode duvidar d[...][esse seu] caráter [...]”. Haight sugere: “a

consciência envolvida n[...] [essas] diversas tendências cristológicas pode ser chamada de

pós-moderna”, pois “os movimentos e os problemas que estão impulsionando a cristologia

refletem uma temática cultural”. Além disso, essa pluralidade indica também que “a

cristologia está começando a transpor as fronteiras da cristologia moderna”. Haight enxerga a

reflexão da pós-modernidade na cristologia, como “desafios e oportunidades”, e não como um

entrave ao desenvolvimento teológico. Tudo depende de como se encara a pós-modernidade e

também o fazer teológico.

3ª) Posição frente à necessidade de inteligibilidade

Acerca da pós-moderna exigência de inteligibilidade, Haight parte do pressuposto de

que não se pode “falar aos outros, se a linguagem religiosa que utilizamos lhes é inteiramente

estranha”. Além disso, continua o autor, “tal como ocorreu com o processo de helenização, o

esforço por dialogar com a cultura intelectual contemporânea também haverá de afetar a

linguagem por meio da qual compreendemos nossa fé”.

Com relação à sua tese central: Jesus, símbolo concreto de Deus, qual é a credibilidade

dessa afirmação? Nas palavras de Haight: “sabemos que Jesus é um símbolo concreto de Deus

porque as pessoas encontraram e ainda encontram Deus nele”.

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As antigas fórmulas (Nicéia e Calcedônia), afirma Haight, da maneira como foram

expressas em um dado momento histórico, não dão conta da problemática como ela

atualmente se apresenta; “faz-se necessária uma nova linguagem”: a interpretativa, utilizada

pelo autor na proposição de sua tese central.

Uma cristologia na pós-modernidade, na verdade “um ensaio construtivo e

interpretativo”, no sentido da inteligibilidade, é o que propõe Haight. Seus temas básicos:

a) Jesus como salvador: “Jesus é salvação por ser revelador de Deus, por ser símbolo de um

encontro com Deus e modelo de existência humana”.

b) Libertação e salvação: a cristologia e a vida cristã. Haight acredita que a formulação

anterior acerca de Jesus como salvador “claramente começa a responder às exigências de

inteligibilidade e de relevância em uma cultura pós-moderna”. Há que se dar agora “um passo

além”, avançando “em direção a um nível social de compreensão” (o caráter social da

salvação). Nesse sentido, a teologia da libertação muito pode auxiliar.

c) Jesus e as religiões mundiais: “uma adequada cristologia, atualmente, deve incluir uma

descrição do relacionamento de Jesus com outras mediações religiosas de Deus”. Haight

considera que “as posições exclusivista e inclusivista constitutiva já não parecem dignas de

crédito”. Suas reflexões vão no sentido de que “os cristãos hoje podem relacionar-se com

Jesus como normativo da verdade religiosa acerca de Deus, do mundo e da existência

humana, convictos, ao mesmo tempo de que também existem outras mediações religiosas que

são verdadeiras e, portanto, normativas”. Essa é a concepção normativa, mas não constitutiva

de Jesus Cristo.

d) A divindade de Jesus Cristo: uma cristologia do Espírito, plenamente viável no contexto

pós-moderno, “não em oposição a uma cristologia do Logos ou Verbo, mas em contraste com

ela”, “explica a divindade de Jesus Cristo com base em Deus como Espírito, e não a partir do

símbolo Logos”. Suas características básicas são:

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� procede a partir ‘de baixo’;

� é fiel às fontes neotestamentárias;

� é importante considerar a metáfora fundamental subjacente a uma cristologia;

� com relação à maneira como Jesus salva na cristologia do Espírito, é válido o axioma:

“não há nada que não possa ser dito acerca de Jesus, em uma cristologia do Espírito,

que se quisesse dizer a seu respeito em uma cristologia do Logos”;

� com relação às demais religiões, na cristologia do Espírito, Jesus normativamente

oferece a elas uma salvação verdadeira, logo, com relevância universal;

� acerca da prece e adoração a Jesus, vale a seguinte fórmula tensiva: “não se adora ou

não se reza a Jesus porque ele é um ser humano e uma criatura; pelo contrário, adora-

se e reza-se a Deus em Jesus e por seu intermédio”;

� a cristologia do Espírito preserva a singularidade de Jesus, na medida mesma em que

ele é encarado como verdadeira manifestação daquilo a que Deus se assemelha e

como o padrão do que deve ser a existência humana;

� pretendendo credibilidade e inteligibilidade, a cristologia do Espírito não se funda na

mera autoridade, mas recorre à experiência, a partir da “premissa de que existe uma

continuidade entre Jesus e nós”;

� o axioma do segundo Testamento ‘Jesus é um ser humano igual a nós em tudo, exceto

no pecado’, é tomado literalmente pela cristologia do Espírito.

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3.2.3 Pós-modernidade religiosa: um caminho para o diálogo inter-religioso?

Respirando certo ar de considerações finais, este capítulo da presente pesquisa se

encerra por onde começou:

A religião cristã prefere os grandes relatos da modernidade ao titubeante relativismo dos pós-modernos. No entanto, não parece que as religiões possam evitar o relativismo. O seu compromisso com o pensamento e com a busca da verdade as introduz de cheio na aventura relativista. A não ser, obviamente, que se declarem possuidoras da verdade. E é o que algumas têm feito, com intensidade diferente, sobretudo as monoteístas (FRAIJÓ, 1997b, p. 167).

Séculos de exclusividade, exclusão e exclusivismo podem dificultar

sobremaneira uma convivência ao menos pacífica com o relativismo,723 ou relatividade, para

utilizar um termo mais palatável. Sobre essa questão semântica, há que se lembrar o alerta de

Küng (2001, p. 135): 724 “não um relativismo, para o qual não existe um absoluto, mas sim,

mais sensibilidade para a relatividade em relação a todos os absolutismos humanos, os quais

bloqueiam uma coexistência produtiva das diferentes religiões”. 725

Haight, por sua vez, expressa, 726 contudo, que, como uma cultura, “a pós-

modernidade pode ser caracterizada sem valoração, nem boa nem má, e sim como um

dado”.727 Sua análise não privilegia a pós-modernidade vista a partir de seus extremos de

completo relativismo ou de negação da verdade transcendente ou universalmente relevante,

pois, em suas palavras, “a cristologia per se não aborda essas posições. Estou mais interessado

723 Não sem razão, segundo Fraijó (1997b), é o cristianismo que detém o primeiro lugar na cruzada contra o relativismo. 724 Já explanado em detalhes anteriormente neste espaço (capítulo III, item 2.1). 725 Na verdade, pode-se compreender o relativismo, nesse caso, como aquilo que é específico a cada religião e, por isso mesmo, relativo a cada uma delas especificamente. 726 Já explanado em detalhes anteriormente neste espaço (capítulo III, item 3.1). 727 Como se viu na primeira parte deste capítulo, esse foi o caminho seguido por Fredric Jameson. O grande mérito de suas reflexões foi ter propiciado uma abordagem coerente da pós-modernidade.

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na forma como a pós-modernidade como cultura existe no interior da Igreja, na medida em

que os cristãos vivem em uma sociedade secular e compartilham sentimentos e idéias pós-

modernos”.

Nesse sentido, esta pesquisa afirma a grande disponibilidade e abertura ao diálogo

com as demais religiões das reflexões teológicas consideradas aqui como próximas (Küng,

Torres Queiruga e Hick) e em diálogo (Haight) com a pós-modernidade. Essas reflexões

põem em evidência, aqui, apenas comparativamente, algo que Ortega y Gasset728 disse acerca

da doutrina relativista: “a verdade, pois, não existe: não existem mais que verdades relativas à

condição de cada sujeito”. Paralelamente, pode ser dito neste contexto pós-moderno, no qual

esta discussão tenta situar-se, que “não existe ‘a religião’. A religião somente se dá ‘nas

religiões’. Com outras palavras: não existe a religião, mas as religiões”.

Foi essa percepção, característica na condição pós-moderna em que se vive, que

despertou nos autores abordados e em suas respectivas reflexões teológicas os

posicionamentos aqui detalhados. Houve a sensibilidade no sentido de se captarem as

necessidades religiosas neste multifacetado contexto cultural/religioso.

Esta pesquisa acredita não ser possível abrir-se ao diálogo inter-religioso a partir dos

grandes relatos da modernidade ou com categorias ou termos fortes como fé,729 decisão,

adesão, convicção, segurança.730 O multiculturalismo atual, o que no mundo religioso

desdobra-se em diversidade de religiões e religiosidades, aproxima-se mais do relativismo, ou

da maior relativização, dos pós-modernos e sua titubeante incerteza.731

728 Cf. ORTEGA Y GASSET, J. Obras completas. n. 3. Madri: Alianza, 1983. p. 157. 729 Falando acerca da fé na pós-modernidade, Vattimo (2004, p. 16) afirma: “uma semelhante concepção da fé pós-moderna, obviamente, não tem nada a ver com a aceitação de dogmas rigidamente definidos ou de disciplinas impostas por uma autoridade”. 730 Libânio (2003, p. 165), afirma que “a beleza e a força significativa dos sinais tocam muito mais profundamente a geração pós-moderna. Uma teologia fundamental para tal momento cultural requer agilidade mental em que a alusão, a insinuação, o jogo simbólico, a beleza das reflexões superem uma racionalidade lógica cada vez mais inacessível”. 731 Esta pesquisa indaga: qual a possibilidade, a partir da afirmação que se segue, de um autêntico e sincero diálogo inter-religioso, principalmente no atual contexto pós-moderno? “Essa afirmação é fundamental para a fé

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Como lembra Fraijó (1997b), relativismo pode opor-se a absoluto, mas de forma

alguma opõe-se a verdadeiro. A pós-modernidade pode ter problemas com o absoluto, mas

admite diversas verdades.732 Isso porque algo pode ser “relativamente verdadeiro”, porém,

não “relativamente absoluto”.

Schillebeeckx (1994, p. 254), distante desses debates envolvendo distâncias,

proximidades e diálogos com a pós-modernidade, afirma: “[...] podemos e devemos dizer que

há mais verdade [religiosa] no conjunto de todas as religiões que em uma só isoladamente”.733

cristã. Jesus Cristo não é apenas mais alguém na história que nos revela ‘algo’ de Deus na limitação e imperfeição próprias da condição humana. Por ser Filho de Deus, pode ser mediador único e universal. Aqui está o específico da soteriologia cristã. Deus mesmo é o mediador! Portanto, em Jesus Cristo, revela-se uma realidade de Deus que é interna ao próprio Deus, daí ele poder ser revelação de Deus. Não podemos romper o vínculo entre Cristo e Deus, entre cristologia e teologia, sob o risco de destruir a fé cristã”. 732 Segundo Vattimo (2004, p. 13), “em termos seculares e filosóficos, isto [contingência e historicidade do nosso existir] significa que mesmo, e sobretudo, com base na experiência do pluralismo pós-moderno, podemos somente pensar o ser como um evento, enquanto a verdade não mais pode ser o reflexo de uma estrutura eterna do real e sim uma mensagem histórica que devemos ouvir e à qual somos chamados a dar uma resposta. Uma tal concepção de verdade não é válida apenas para a teologia e a religião, mas, igualmente, de forma mais ou menos explícita, para grande parte das ciências de hoje, pelo menos para aquelas ciências que tomaram consciência da historicidade dos seus paradigmas”. 733 Geffré (1998a, p. 67) diz algo parecido, se não a mesma coisa: “há mais verdade de ordem religiosa no concerto polifônico das religiões do mundo que no Cristianismo, considerado em sua exclusividade”.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A assertiva de Vattimo (2004, p. 122-123) acerca de um possível posicionamento do

cristianismo frente aos novos desafios que se lhe apresentam pode dar o tom das

considerações finais desta pesquisa.

É como se a alternativa diante da qual se encontra hoje o cristianismo (e estou, certamente, consciente de que esse é um termo genérico: com ele me refiro à igreja católica? Às igrejas cristãs? Ao pensamento dos crentes? De tudo um pouco) fosse: ou carregar sobre suas costas o destino da modernidade (e da sua crise, da passagem ao pós-moderno) ou, ao contrário, reivindicar a própria diversidade com relação a ela. Entretanto, se escolhesse este segundo caminho – e existem sinais de que uma tal tentação exista – renunciaria a ser um mundo e uma civilização, para voltar a ser o que era em origem, isto é, uma seita dentre tantas e um objetivo fator de desagregação social entre tantos outros.

O que nessas páginas se quis mostrar foi a inviabilidade dessa segunda alternativa. A

não ser que queira flertar com o perigoso risco do fundamentalismo, o cristianismo, como

religião na história, deve-se abrir ao diálogo com o contexto cultural no qual está inserido.

Como bem lembrou Torres Queiruga (2003), o desajuste reflexivo teológico, ou seja, a

inadequação entre o que se escreve teologicamente e o contexto cultural onde estão situados

esses escritos, era tolerável há alguns séculos, pois não se verificava um destoar dessas formas

reflexivas na cultura ambiental. Na modernidade, contudo, a tensão provocada por esse

desajuste foi-se tornando insuportável. No alvorecer do século XXI, pode ser mortal!

No parecer de Hick (1995, p. 12),

teologia é um organismo que cresce e se desenvolve, de modo que um quadro teológico de referências apropriado aos dias atuais e futuros bem pode divergir daquele que era apropriado há mil anos atrás – ou de fato, visto

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que o ritmo da mudança cultural tem aumentado, daquele que era apropriado há cem anos ou até mesmo há uma geração atrás.

Esta pesquisa, em sua primeira parte, abordou a ‘tardia’ passagem católico-cristã da

antigüidade à modernidade. O adágio exclusivista vigorou oficialmente na igreja católica e,

praticamente, em sua reflexão teológica até o concílio Vaticano II. Daí, o aumento da tensão à

qual se referiu Torres Queiruga, pois, pode-se dizer, desde a contra-reforma até o último

concílio, o catolicismo e sua reflexão teológica seguiram rechaçando as exigências modernas.

A pesquisa tentou captar o deslocamento do olhar eclesial católico de si mesmo para o

outro religioso, cujo marco fundamental foi o Concílio Vaticano II e seu entorno reflexivo, o

que acabou por deixar quase totalmente para trás a visão exclusivista, simbolizada pelo

axioma Extra ecclesiam nulla salus. Uma pergunta, implicitamente, fez-se presente, dando a

tônica deste texto, quando da exposição dos resultados dos debates conciliares: o magistério

católico, ao abandonar, a partir do Vaticano II, o exclusivismo eclesial, buscando desde então

o inclusivismo cristão, o fez tendo por fundamento a teologia do "acabamento" ou da

"presença de Cristo nas religiões"? Essa questão, como se viu, mobilizou as reflexões

teológicas desde então, também com recuos e avanços, posições extremadas e tentativas de

síntese, envolvendo posicionamentos magisteriais oficiais e de teólogos.

Abriram-se, então, caminhos para um novo consenso, ou quase consenso, inclusivista,

de se lançar o olhar às demais religiões, mesmo que, inicialmente, ainda de modo bastante

preconceituoso. Esses caminhos foram, aqui, olhados não como lineares e sempre à frente,

mas com recuos e avanços, idas e vindas.

Na reflexão teológica específica da teologia das religiões, os teólogos inclusivistas,

cada vez mais abertos à pluralidade religiosa, travaram franco diálogo com a posição

pluralista (Hick à frente). Os pluralistas, ao advogarem um passo além do inclusivismo,

propondo um novo paradigma a partir do qual seja possível olhar as religiões como planetas

girando em torno do sol (Deus ou a Realidade última), posicionam-se no sentido de que

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nenhuma religião pode, historicamente, pretender superioridade sobre as demais, como

pretendeu o cristianismo durante séculos; a quem ousar tal pretensão atualmente, cabe-lhe o

ônus da prova. Segundo os pluralistas, a história do cristianismo não depõe muito a seu favor.

Em sua segunda parte, esta pesquisa procurou captar os avanços e retrocessos das

reflexões teológicas posteriores ao Vaticano II. Que leitura faziam do concílio essas diferentes

reflexões? A partir do caminho aberto pelo inclusivismo conciliar, os teólogos inclusivistas,

posteriormente denominados “inclusivistas abertos”, abrindo-se às exigências modernas

relacionadas à pluralidade religiosa do mundo, avançaram paulatinamente em suas reflexões,

culminando na proposição de um pluralismo de princípio (de iure), segundo o qual o

pluralismo religioso existente de fato no mundo é algo desejado por Deus, faz parte de seus

planos para a humanidade, ou seja, Deus é um Deus plural.

De um lado, esses teólogos perceberam a diversidade na própria história do

cristianismo, desde suas origens judaicas; de outro, acolheram sensivelmente as novas

possibilidades de conhecimento de outras realidades religiosas, proporcionadas por uma maior

aproximação cognitiva entre os diferentes povos, processo que se dá pela recente e crescente

globalização.

Essas reflexões, desenvolvidas após o concílio, ao mesmo tempo em que respondiam

aos desafios antropocêntricos modernos, já percebiam, sob o processo de globalização em

marcha, os novos ventos culturais aproximando-se, os da pós-modernidade. Nesta pesquisa,

os avanços observados nas reflexões dos teólogos inclusivistas abertos foram considerados

como sensíveis respostas às provocações pluralistas734 e preliminares percepções das

exigências pós-modernas.

734 Hick (1995, p. 23) afirma que a pluralidade religiosa defendida pelos inclusivistas abertos é uma pluralidade que “está próxima” do tipo de pluralismo que ele defende. “Estou sugerindo, de fato, que o inclusivismo religioso é uma concepção vaga que, quando colocada sob a pressão de aclarar-se, move-se na direção do pluralismo”.

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Na terceira parte desta pesquisa, após minuciosa delimitação das coordenadas da

pós-modernidade, esboçou-se o ensaio de uma segunda passagem, desta feita no nível

reflexivo teológico, da modernidade (assumida no Vaticano II) às iniciais tentativas de

respostas teológicas diretas às exigências pós-modernas. Como proximidades ao novo

contexto, a partir de obras específicas, foram abordadas as reflexões de Hans Küng, Andrés

Torres Queiruga e John Hick; enquanto em diálogo com essa nova realidade, a reflexão de

Roger Haight.

A pesquisa apontou sensível abertura dos quatro autores arrolados às exigências pós-

modernas, em tons e graus diferentes. Enquanto nos três primeiros essa abertura fez-se ainda

de forma bastante atrelada aos pilares da modernidade, em Haight, ela mostrou-se mais afeita

ao contexto pós-moderno. Contribuiu bastante para essa diferença a proposta inicial de cada

um dos autores.

Küng, tendo em mente uma questão prática, uma ética mundial em favor da

sobrevivência humana no planeta, vislumbra a configuração de um novo macroparadigma.

Foram encontradas referências explícitas suas à pós-modernidade, sendo sua preocupação

fundamental dar respostas às exigências pós-modernas. Dos autores aqui arrolados, Küng foi

o primeiro a ter colocado em evidência a questão pós-moderna, considerada por ele como um

novo paradigma. O momento de suas reflexões, 1990, bastante próximo aos então recentes

acontecimentos envolvendo a queda do muro de Berlim, pode explicar o tom um tanto

“apaixonado” de seus escritos.

Esta pesquisa concluiu que, na busca por critérios que possam mobilizar todos os

segmentos da sociedade mundial em favor da sobrevivência do planeta (sua proposição (2001,

p. 126-127) : “o verdadeiramente humano como critério universal”), o autor esbarra num

momento cultural que carece de critérios universais ou os rejeita abertamente.

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Torres Queiruga parte do pressuposto de que a situação atual do labor teológico

encontra-se no que ele chama de “marco geral”, momento de “mudança radical” caracterizado

pela “dialética entre a modernidade e a pós-modernidade”, propondo para este momento um

novo paradigma teológico (2003, p. 16): “levar a sério a absoluta primazia de Deus que nos

criou e continua nos criando por amor; única e exclusivamente por amor”. Não é verdade,

afirma o autor, que “‘Deus esteja no céu e tu na terra’”. Deus está sempre aqui “entre nós: no

homem e na mulher, na terra e na história”. Somente um novo paradigma na teologia cristã,

uma “guinada completa”, colocar de “ponta-cabeça o sentido de muitos e decisivos [de seus]

conceitos teológicos”, pode possibilitar respostas inteligíveis aos desafios dos novos tempos

modernos e pós-modernos.

A pesquisa encontrou menção explícita de Torres Queiruga à pós-modernidade,

considerada por ele não como um novo paradigma cultural, mas um momento no qual a

modernidade se questiona e é questionada em suas promessas não cumpridas, o que a coloca

em posição de redefinições. Isso, no entanto, não ofusca a percepção do autor no que se

relaciona às exigências destes novos tempos, dêem-lhes o nome que lhe derem. Atestam isso

os outros possíveis títulos sugeridos pelo autor para esta sua obra, aqui objeto de análise: “A

religião perante o terceiro milênio”, “Desafios para a teologia no século vinte e um” ou “A

mudança rumo a um novo paradigma”.

No entanto, na visão desta pesquisa, as reflexões de Torres Queiruga, apesar de

trazerem o Deus “totalmente outro” para o atual contexto multifacetado, fazem-no de uma

maneira igual para todos os diferentes sujeitos desse contexto. Sua visão de um “Deus amor”,

que a todos abarca, esbarra nas exigências pós-modernas.

Hick propõe um novo paradigma teológico: o pluralista, única forma, segundo o autor,

de se ultrapassar tanto o exclusivismo quanto o inclusivismo. Para isso, os cristãos devem

olhar a encarnação como uma metáfora específica ao cristianismo, pois, vista à maneira

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antiga, a encarnação continuaria denunciando uma religião necessariamente superior a todas

as demais, já que fundada pelo próprio Filho de Deus, enviado para salvar toda a humanidade.

Seria catastrófica ao diálogo inter-religioso, segundo o autor, a continuidade de tal concepção

acerca do cristianismo.

O ponto de partida de Hick, lugar onde se situam suas reflexões, é o atual mundo

teológico cristão que se encontra num “ponto móvel de flexão”: entre a estrutura de crença

cristã de muitos séculos e a nova estrutura, ainda em formação, 735 de um cristianismo

consciente de si mesmo enquanto uma resposta válida, entre outras existentes, à realidade

transcendente infinita denominada Deus.

Uma das grandes preocupações de Hick, expostas na sua obra aqui, anteriormente,

analisada, é a de tornar inteligíveis os enunciados religiosos à nova situação cultural que se

apresenta. Esta pesquisa, no entanto, não encontrou menção explícita do autor à pós-

modernidade. Inferiu-se, aqui, a partir do âmago de suas reflexões, sua proximidade com as

possibilidades pós-modernas.

Por outro lado, o questionamento que a pós-modernidade poderia fazer ao autor está

relacionado a uma crítica que o próprio Hick dirige aos inclusivismo. Esse, segundo o autor, à

revelia, inclui todos, em algum momento, à realidade cristã. Essa unificação não estaria

acontecendo também em sua realidade última, visto ser ela única, por ser a última (senão,

seria uma “pluralidade de penúltimos”, diz Hick (1995, p. 69))? Resvalaria, tal concepção, em

uma metanarrativa? Esta pesquisa respondeu afirmativamente tal questionamento.

735 Também bastante importante no arcabouço estrutural reflexivo de Hick (2000, p. 18), e que serve como o motor de arranque de suas conclusões teológicas, é a sua crença de que “a teologia é uma criação humana” e, por isso, “não se pode supor, razoavelmente, que doutrinas teológicas sejam imutáveis. Na verdade, o corpo doutrinal tem estado em desenvolvimento, às vezes mais lenta e outras vezes mais rapidamente, por toda a história cristã”. Um exemplo importante, e também relevante para os seus argumentos, é, segundo Hick, o adágio extra ecclesiam nulla salus que “por mais de mil anos subsistiu como um dogma cristão firme”, sendo que “bem poucos católicos, porém, sonhariam em afirmar isso hoje, e a maioria dos que são indagados a respeito do assunto o consideram apenas embaraçoso”.

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Como se viu, por seu lado, Haight perscruta a pós-modernidade, percebe suas

exigências e propõe-se fazer uma teologia em diálogo com ela. Com isso em mente, passa

pelos pontos mais fundamentais da teologia e os interpreta à luz dos novos tempos. Sua tese

central, a partir da qual surgem todos os desdobramentos de sua reflexão, pode ser expressa na

afirmação: para os cristãos, Jesus é o símbolo concreto de Deus. Fundamental nas

argumentações do autor é o seu proposto quarto lugar para se fazer teologia, o referente ao

caráter simbólico da linguagem teológica, além dos lugares tradicionais (fé, revelação e

Escritura).

De maneira geral, Haight acredita que a “consciência histórica e pluralista da pós-

modernidade minou as pretensões totalizantes dos sistemas de pensamento” (HAIGHT, 2003,

p. 13). Por isso, ele considera que “as posições exclusivista e inclusivista constitutiva já não

parecem dignas de crédito”. Suas reflexões vão no sentido de que “os cristãos hoje podem

relacionar-se com Jesus como normativo da verdade religiosa acerca de Deus, do mundo e da

existência humana, convictos, ao mesmo tempo de que também existem outras mediações

religiosas que são verdadeiras e, portanto, normativas”. Essa é a concepção normativa, mas

não constitutiva de Jesus Cristo.

Esta pesquisa enxergou a ligação entre a reflexão de Haight e as exigências pós-

modernas e aqui a apresentou, no sentido de uma teologia cristã católica, nesse caso,

especificamente a partir desse autor, que está se movendo em direção ao atual contexto

cultural, ensaiando formas de diálogo frutífero com ela.

Para chegar a essa perspectiva, a de uma segunda passagem que a teologia,

acompanhando as mudanças culturais, contexto no qual se insere irremediavelmente, estaria

ensaiando, esta pesquisa considerou como fundamental uma primeira passagem, mesmo que

tardia, a da igreja católica oficial à modernidade, através do Concílio Vaticano II.

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As proximidades e encontros teológicos com a pós-modernidade, aqui expostos,

trazem conseqüências para a própria teologia. Como lembrou Torres Queiruga (2003, p. 27),

referindo-se a Bultmann: “não se pode usar a luz elétrica e o aparelho de rádio ou empregar na

enfermidade os modernos meios clínicos e medicinais e, ao mesmo tempo, crer no mundo de

espíritos e milagres do Novo Testamento”. Analogamente, não é possível abrir-se

sensivelmente a um novo contexto cultural, nesse caso, a abertura da teologia à pós-

modernidade, e sair ileso, como se começou.

Há que se ter claro, no entanto, a incipiência das reflexões relacionadas à pós-

modernidade e, mais ainda, do contato da teologia católica com esse contexto. Por isso, os

resultados dessas reflexões e desse contato são ainda nascituros. Um dos importantes pontos

que se quis enfatizar neste espaço, e que ajuda no entendimento desse caráter ainda nascituro

da reflexão teológica católico-cristã acerca da pós-modernidade, é o pequeno espaço

cronológico que separa a modernidade católica do possível início de uma pós-modernidade

reflexiva teológica. Em comparação com o tempo vivido em bases exclusivistas, anterior ao

Vaticano II, torna-se ainda mais gritante a insignificância do espaço cronológico posterior.

Essa insignificância temporal, contudo, não aponta, necessariamente, para uma

longevidade inclusivista moderna, na forma delineada pelo último concílio católico. As

próprias reflexões desenvolvidas pelos teólogos inclusivistas abertos nas últimas décadas

atestam tal afirmação. Junto a isso, tentando respostas iniciais às exigências culturais pós-

modernas, a teologia ensaia um labor teológico em consonância com esses novos tempos que

se apresentam.

A modéstia, contudo, aqui, mais que em qualquer outro lugar, faz-se necessária;

mesmo porque essa é também uma das importantes características do momento que ora se

vive e se reflete. Não caberiam grandes conclusões no apagar das luzes deste espaço de

pesquisa. Foram adiantadas algumas considerações finais (“finais” querendo se ater ao espaço

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escrito especificamente), pois, daí a pouco, as luzes se acendem novamente e novas pesquisas

surgirão, ulteriores estudos, com novos dados, novas caminhadas e novas considerações finais

(escritas). As conclusões, ao menos as fortes, decididas e prontas, parecem ter ficado na

modernidade. Considerações são mais afeitas aos ventos pós-modernos.

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