o corpo mitolÓgico na danÇa: quando o mito...

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i GABRIELA DI DONATO SALVADOR SANTINHO O CORPO MITOLÓGICO NA DANÇA: QUANDO O MITO ATRAVESSA O CORPO CAMPINAS 2014

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GABRIELA DI DONATO SALVADOR SANTINHO

O CORPO MITOLÓGICO NA DANÇA: QUANDO O MITO ATRAVESSA O CORPO

CAMPINAS 2014

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ARTES

GABRIELA DI DONATO SALVADOR SANTINHO

O CORPO MITOLÓGICO NA DANÇA: QUANDO O MITO ATRAVESSA O CORPO

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas para obtenção do título de Doutora em Artes da Cena.

Orientadora: MARÍLIA VIEIRA SOARES

Este exemplar corresponde à versão final de Tese defendida pela aluna Gabriela Di Donato Salvador Santinho, e orientada pela Profa. Dra. Marília Vieira Soares.

____________________________________

CAMPINAS 2014

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ABSTRACT

This text presents the mythological body as a possibility to work with sacred mythology in scenic dance. The proposal of the mythological body arises from the observation of the significant presence of mythology in the scenic dance themes throughout its history and practices used by the author as a way of choreographic creation. The mythological body is presented here as a type of scenic body facing the interpretation of mythology in the scene that can be reached from psychophysical studies that evoke mythological content present in the unconscious of the dancer , which in turn transform them into expressive movements. The basis of the theoretical concept of the mythological body is in theories of personal and collective unconscious, proposed by Analytical Jungian Psychology and understanding of mythology as a result of psychological and biological processes , resulting from authors such as Mircea Eliade and Joseph Campbel. The effective practice of mythological body was carried from dance laboratories sought possible ways for this body type is manifested in dance and resulted choreographic study entitled " Another Skin " , also presented as part of this research.

Keywords: Dance. Mythology . Mythological Body psychophysical techniques.

RESUMO

Este texto apresenta o corpo mitológico como uma possibilidade de trabalho com a mitologia sagrada na dança cênica. A proposta do corpo mitológico surge a partir da observação da significativa presença da mitologia nas temáticas da dança cênica ao longo de sua história e das práticas usadas pela autora como caminho de criação coreográfica. O corpo mitológico é aqui apresentado como um tipo de corpo cênico voltado para a interpretação da mitologia na cena que pode ser alcançado a partir de trabalhos psicofísicos que despertam os conteúdos mitológicos presentes no inconsciente do dançarino, que, por sua vez, os transformam em movimentos expressivos. A base do conceito teórico do corpo mitológico está nas teorias de inconsciente pessoal e coletivo, propostas pela Psicologia Analítica Junguiana e na compreensão da mitologia como resultado de processos psíquicos e biológicos, advindas de autores como Mircea Eliade e Joseph Campbel. A prática efetiva do corpo mitológico foi realizada a partir de laboratórios de dança que buscaram possíveis caminhos para que esse tipo de corpo se manifeste na dança e teve como resultado o estudo coreográfico intitulado “Outra Pele”, também apresentado como parte da presente pesquisa.

Palavras-Chave: Dança. .Mitologia. Corpo mitológico. Técnicas psicofísicas.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO: A CAIXA DE PANDORA .................................................................... 17

CAPÍTULO 1: AS DIVAGAÇÕES DOS DEUSES DO OLIMPO ACERCA DA MITOLOGIA NA DANÇA .............................................................................................. 27

1.1 - Carta de Apolo para Dionísio: a presença da mitologia, da Dança Primitiva ao Balé Clássico. ......................................................................................................................... 27

1.2 - A resposta de Dionísio para Apolo: a presença da mitologia, da Dança Moderna à Dança Contemporânea .................................................................................................. 57

CAPÍTULO 2: O ENCONTRO DOS DEUSES E A DISCUSSÃO SOBRE A MITOLOGIA NA DANÇA CONTEMPORÂNEA ................................................................................. 77

2.1 - A influência dos rituais e dos mitos sagrados na Dança Contemporânea.............. 77

CAPÍTULO 3: A DEUSA SARASVATI E SEUS COMENTÁRIOS SOBRE A MITOLOGIA COMO COMPONENTE DO INCONSCIENTE DO ARTISTA ................. 89,

3.1 – Mitologia e inconsciente ........................................................................................ 89

3.2 – O corpo mitológico na dança ................................................................................. 99

CAPÍTULO 4: A DEUSA KALI E A TEORIA DO CORPO MITOLOGICO NA PRÁTICA DA DANÇA ................................................................................................................. 105

4.1 – Kaligrafando um corpo mitológico ....................................................................... 105

4.2 – A proposta prática do corpo mitológico ............................................................... 113

4.3 – Considerações sobre o diário de trabalho dos laboratórios práticos da pesquisa com o corpo mitológico ................................................................................................ 132

4.3.1 - A fertilidade e o poder de criação representados pela serpente ....................... 145

4.3.2 - A víbora devoradora representada pela “serpente” (o arquétipo da “sombra”) . 150

4.3.3 - Os “uroboros” ou a “unidade” representada pela “serpente” ............................. 154

4.3.4 - “Outra Pele”: um estudo coreográfico a partir do corpo mitológico ................... 163

CAPÍTULO 5: CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................. 169

5.1 - Carta de Apolo para Dionísio: a decisão de Apolo quanto à condenação de Prometeu ...................................................................................................................... 169

5.2 - Fechando a Caixa de Pandora ............................................................................. 176

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA ................................................................................ 179

ANEXOS ..................................................................................................................... 183

Anexo 1: “Voo invisível” ................................................................................................ 183

Anexo 2: Vídeos e fotos de laboratórios do corpo mitológico. ...................................... 187

Anexo 3: “Outra Pele”- Material de divulgação com ficha técnica do estudo coreográfico. ................................................................................................................. 190

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Dedico este trabalho ao meu marido, Guilherme, que me incentivou a realizar e a concluir esta pesquisa, apoiando cada mínima fase dela, e provando-me que Eros –o deus do amor– sempre acerta em suas artimanhas.

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Agradecimentos

A lista de agradecimentos em uma pesquisa longa como a aqui apresentada é enorme, mas gostaria de citar cada um que colaborou, direta ou indiretamente, para que esta pesquisa pudesse se concretizar.

Primeiramente, agradeço ao Instituto de Artes da Unicamp e a todos os professores e funcionários da Pós-Graduação que me deram todo o suporte necessário para realização deste Doutorado.

Agradeço a atenção, a dedicação e a confiança de minha orientadora, Professora Dra. Marilia Vieira Soares, que me orienta e compartilha comigo tantas experiências por tantos anos nessa aventura que é a dança.

Também agradeço à Professora Dra. Elisabeth Zimmermann e ao Professor. Dr. Adilson Nascimento de Jesus, que colaboraram significativamente com este texto por meio de suas considerações em minha banca de qualificação.

À Universidade Estadual do Centro-Oeste do Paraná (UNICENTRO), que me acolheu e me apoiou no início deste Doutorado, em especial, aos professores e alunos do DEART, que sempre me incentivaram a trabalhar pela arte na educação.

À Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul e a todos meus colegas e alunos do curso de Artes Cênicas e Dança onde leciono, pelo apoio incondicional e pelas inúmeras inspirações poéticas e acadêmicas.

Aos olhares sensíveis e sempre atenciosos dos amigos artistas: Kamilla Mesquita, Tiago de Mello, Julio Giacomelli, Christiane Araújo, Ligia Marina e Adilson Nascimento, que se propuseram a embarcar comigo em minha viagem mitológica.

Ao Grupo “Circo do Mato”, de Campo Grande-MS, que possibilitou a apresentação do estudo coreográfico “Outra Pele” em seu espaço e ao grupo “Mercado Cênico” que apoiou a apresentação do mesmo emprestando o equipamento técnico de som e iluminação.

Agradeço à minha família, que soube entender cada momento desses meus últimos anos de estudo e dedicação ao trabalho que escolhi, em especial aos meus pais, que são meus maiores exemplos de perseverança.

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Agradeço, também, a Miriam Sampieri Santinho e a José Guilherme Santinho, meus sogros, pelo apoio especial e por não me deixarem desistir.

Agradeço, ainda, ao meu marido, Guilherme Sampieri Santinho, por ter tornado toda minha história e minha paixão pela dança uma realidade possível.

E claro que não posso deixar de agradecer, por fim, aos seres mitológicos que me acompanham em cada etapa de minha vida e que inspiram e dão poesia ao meu trabalho artístico.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1: Gabriela Salvador- Desenho de Diário de trabalho – desenho do sonho com a serpente voadora ..................................................................................................... 109 Figura 2: Gabriela Salvador- Desenho de Diário de trabalho, dia 05/05/2012 ....... 136 Figura 3: Gabriela Salvador- Desenho de Diário de trabalho, dia 21/08/2012 ....... 143 Figura 4: Gabriela Salvador- Desenho de Diário de Laboratório dia 03/10/2013.... 145 Figura 5: Gabriela Salvador- Desenho de Diário de Laboratório dia 26/03/2014.... 149 Figura 6: Autor desconhecido Uroboros- fonte internet: http://www.acting-man.com ..................................................................................................................................... 152 Figura 7: Gabriela Salvador- Desenho de Diário de trabalho- dia 23/02/2014 ....... 154 Figura 8: Gabriela Salvador- Desenho de Diário de trabalho – dia 10/03/2014...... 159 Figura 9: Material de divulgação “Voo Invisível” ........................................................ 182 Figura 10: Foto da Apresentação de "Voo Invisível " ................................................. 183 Figura 11: Fotos da Apresentação de "Voo Invisível" ................................................ 184 Figura 12: Fotos dos laboratórios práticos.................................................................. 185 Figura 13: Fotos dos laboratórios práticos.................................................................. 186 Figura 14: Fotos dos laboratórios práticos/ montagem do estudo coreográfico..... 187 Figura 15: Cartaz de divulgação do estudo coreográfico “Outra Pele”....................... 188 Figura 16: Programa de apresentação do estudo coreográfico “Outra Pele”............. 189

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INTRODUÇÃO: A CAIXA DE PANDORA

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A pesquisa em arte é atravessada por muitas áreas de estudo e, justamente por

isso, abre para o pesquisador infinitas possibilidades de olhares e pontos de vista sobre

um determinado tema. A presente pesquisa foi, como todas as outras existentes nesta

área, influenciada pela História da Arte, pela História da Dança, pela Psicologia, pelos

estudos do corpo, por todas as possibilidades existentes de composição coreográfica e,

mais especificamente, por minhas experiências como dançarina, pesquisadora e

docente da dança e pelas possibilidades expressivas advindas do meu corpo em

movimento.

Não é possível falar desta pesquisa sem falar de minha relação pessoal com a

mitologia e com meu corpo em movimento, mas creio que isso ficará claro tanto ao

longo deste texto, quanto no estudo coreográfico apresentado como parte deste

trabalho.

Porém, antes de nos debruçarmos sobre o tema da possibilidade do corpo

mitológico na dança e de como esse tipo específico de corpo cênico pode se

manifestar, peço licença para introduzir este texto contando uma história.

Segundo a mitologia grega (BULFINCH, 2006), nos primórdios da humanidade,

foi dada aos irmãos Titãs Prometeu e Epimeteu (uma raça de gigantes que antecedeu

os deuses) a incumbência de criar os animais que povoariam a Terra; ali, entre esses

animais, estava o homem.

Assim, os Titãs cumpriram sua obrigação de maneira extremamente perspicaz,

dando a cada um dos animais tudo o que lhes era necessário para a sobrevivência na

Terra. Porém, após atribuir todas as características aos animais, pouco sobrou de

especial para atribuir ao homem, que deveria ser o ser superior entre todos os outros.

Então, Epimeteu pediu a seu irmão Prometeu que resolvesse a situação e este último

foi até o céu e acendeu uma tocha no sol, trazendo, então, o fogo aos homens. Esse

fogo era a representação da “sabedoria”, visto que, com ele, o homem ganhou o poder

de construir armas, subjugar os outros animais e, até mesmo, criar a moeda para

facilitar e ampliar as possibilidades de comércio.

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Porém, o roubo do fogo do céu deixou os deuses irados e eles se reuniram no

Olimpo–morada celestial dos deuses gregos– e decidiram se vingar dos irmãos Titãs. A

primeira vingança dos deuses enviada a Prometeu e a Epimeteu foi realizada na forma

de uma mulher: Pandora

Até então, a mulher não existia e os deuses a construíram e a aperfeiçoaram

com características como a beleza, o poder de persuasão, a habilidade para a dança e

para a música. Depois de pronta, os deuses a enviaram como um presente para

Epimeteu, que a recebeu de bom grado, sem saber que o presente era, na verdade,

uma vingança. Epimeteu tinha em sua casa uma caixa na qual guardava certas

características malignas, que não usou enquanto construía o homem e outros animais;

mas, certo dia, Pandora, movida por extrema curiosidade (característica que os deuses

também colocaram nela), abriu a caixa e, com esse ato, liberou toda sorte de maldade

no mundo, como doenças físicas e mentais, a avareza, a inveja, a raiva, etc. Dizem que

a única coisa que Pandora deixou na caixa foi a esperança; por isso, somente a

esperança é o que ainda resta aos homens.

Existe ainda uma outra versão dessa história, a qual diz que Pandora foi

enviada como um presente de boas intenções dos deuses a Epitemeu e que, na caixa,

havia boas qualidades que, ao ser aberta, libertou todos os bens do mundo, com

exceção da esperança, que ficou na caixa segura e salva para ser liberada quando

fosse preciso.

Independente da versão apresentada, liberar todos os sentimentos, emoções,

erros e acertos no mundo é um fardo suficientemente grande para uma pessoa que,

respondendo a um instinto (a curiosidade), abre uma caixa que está repleta de

possibilidades. Em idêntica maneira, ao nos depararmos com uma curiosidade

instintiva, nós, os artistas-pesquisadores, abrimos a caixa de possibilidades que nos

apresenta um tema de pesquisa, sem sabermos o que podemos encontrar ali dentro.

A caixa contém presentes ou uma vingança dos deuses?

Essa resposta só nos é realmente dada após abrirmos a caixa e também após

muito trabalho, reflexão e experimentos. Porém, assim como Pandora, é inevitável que

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façamos a abertura da caixa, pois a possibilidade de descobrir o que tem ali dentro é

muito mais forte do que nossa racionalidade e, então, o artista-pesquisador comete

erros e acertos: ora abrindo uma caixa de presentes, ora abrindo uma caixa de

vingança.

Assim, apresentar minha pesquisa de Doutorado é uma tarefa desafiadora

considerando a Caixa de Pandora que pode ser a pesquisa acadêmica em arte, com

suas características empíricas e sensíveis, que acabam dificultando o processo lógico-

científico que toda pesquisa acadêmica exige.

Inicio minha explanação propriamente dita sobre a pesquisa aqui apresentada

com a segunda vingança enviada pelos deuses aos irmãos Titãs, Epimeteu e

Prometeu. Ao primeiro foi enviado Pandora e ao segundo restou a condenação de ficar

acorrentado no alto do Monte Cáucaso, durante toda a eternidade, enquanto teria seu

fígado comido, diariamente e lentamente, por uma ave1.

Claro que a condenação de Prometeu nos parece bem mais cruel do que

aquela enviada à Epimeteu, porém, em ambos os casos, a entrega do fogo da

sabedoria aos homens foi a grande causadora do padecimento dos irmãos Titãs,

responsáveis por tal ato.

Para que suas condenações sejam justificáveis, nós os seres humanos

teríamos que usar muito bem a sabedoria que eles nos deram e se sabemos usá-la ou

não é uma pergunta difícil de ser respondida. Tentamos usá-la para solucionar

problemas e para fazermos a manutenção do universo que nos foi ofertado, mas não

tenho certeza se conseguimos usá-la em sua plenitude.

A pesquisa em arte também exige essa sabedoria e para uma artista -

pesquisadora e docente como eu, as necessidades de sublimação, observação e

aplicação “teórico-prático-pedagógica” de uma pesquisa se confundem a ponto de

travar o processo de investigação e confundir sabedoria com teimosia - pois o artista

tem muita dificuldade em deixar suas paixões fora de suas considerações teóricas.

1 Existem várias versões quanto a espécie de ave que executou a condenação de Prometeu. Algumas

dessas versões dizem que foi um abutre e outas dizem que foi uma águia.

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Esse processo aconteceu inúmeras vezes ao longo desta pesquisa, porém,

quando entendi que a Caixa de Pandora era a natureza básica da pesquisa em artes e

aceitei essa natureza, as minhas dificuldades acabaram e pude seguir meu trabalho

com mais tranquilidade: entendi que dúvidas, erros e acertos constituiriam minha

pesquisa e aprendi a lidar com eles ao longo dos anos em que a realizei.

A primeira proposta de minha pesquisa era essencialmente teórica. Depois de

realizar um mestrado baseado em minha prática pessoal de composição cênica – onde

eu investiguei os estados alterados de consciência para a construção da cena tendo

como inspiração poética o mito da Deusa Kali2 - uma dúvida ainda ficou em minha

mente: porque os mitos influenciam tão fortemente meu corpo na hora da criação?

Buscando a resposta para essa indagação, encontrei algo que não é novidade

nas pesquisas sobre o tema: o mito não influencia somente o corpo dos dançarinos,

mas também o corpo de atores, músicos, poetas, artistas visuais e os corpos de toda a

humanidade, em todos os diversos momentos da vida cotidiana. Então, entendi que o

mito é um grande regente de nossas mentes e, consequentemente, de nossos corpos.

Encontrei nos estudos de Carl Gustav Jung3 uma possível proposta para

minhas indagações, pois Jung nos apresenta teorias sobre o inconsciente pessoal e

coletivo, onde considera que estes são camadas internas (ou mais profundas) de nossa

consciência onde encontramos (em constante transformação e movimento) imagens de

nossas experiências pessoais e coletivas. Dentre esses conteúdos do inconsciente

estariam os mitos que podem se materializar em nossa consciência de inúmeras

maneiras, e uma delas seria na forma de expressão artística.

A partir dessa primeira consideração sobre o mito e o inconsciente humano,

elaborei a primeira proposta de minha pesquisa: investigar a presença da mitologia

dentro das produções contemporâneas de dança, a partir dos pressupostos de

inconsciente pessoal e coletivo de Jung.

2 Deusa do hinduísmo indiano, uma das responsáveis pela criação, manutenção e destruição do

universo. 3 Carl Gustav Jung (1875-1961) foi um psiquiatra suíço, fundador da psicologia analítica ou “Junguiana”.

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Antes mesmo da escrita e da propositura do projeto junto ao Instituto de Artes

da Unicamp, iniciei minhas pesquisas teóricas e, ministrando a disciplina de História da

Dança em cursos de graduação em Artes Cênicas e em Dança na Universidade

Estadual do Centro-Oeste do Paraná (2011) e na Universidade Estadual do Mato

Grosso do Sul (desde 2012) pude observar a presença significativa do mito como

temática na História da Dança mundial e, sendo brasileira, criada dentro de uma família

religiosa e traçando meus caminhos pessoais dentro de pressupostos mitológicos, o

processo desta pesquisa passou pela investigação de minha trajetória pessoal e

artística e pela trajetória de outros diversos artistas, onde pude verificar a presença do

mito em processos criativos e em resultados coreográficos.

Então, comecei a me questionar sobre a possibilidade da existência de um

método que conduzisse os corpos dos artistas aos mitos, descobrindo que grande parte

dos dançarinos que trabalham com essa temática estabelece um tipo de preparação

corporal específica para esse trabalho. E então a segunda e definitiva hipótese da

pesquisa foi estabelecida: existem processos práticos que podem levar meu corpo (e o

corpo de outros dançarinos) a trabalhar com os mitos diretamente ou indiretamente?

Considerando que todas as teorias só são provadas quando testadas

experimentalmente, escrevi oficialmente o projeto de pesquisa determinando a proposta

de investigar na prática (em meu corpo) a possibilidade de estabelecer métodos que

possam trazer os mitos para a cena a partir de trabalhos com o inconsciente.

Só agora consigo perceber o quanto a Caixa de Pandora foi aberta de maneira

a proporcionar inúmeras possibilidades de olhar, afinal, o mito é universal, conversa

diretamente com as artes e pode nos conduzir a infinitas teorias que passam pela

Psicologia, pela História, por processos criativos e por resultados estéticos.

Após o meu ingresso oficial no Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena

a pesquisa ganhou novos caminhos e isso também me trouxe algum desconforto, pois

o tema da mitologia pode nos desviar facilmente do foco inicial, abrindo possibilidades

incríveis e igualmente fascinantes. Aqui entra, então, o trabalho da pesquisadora que

não pode perder-se nas paixões que a temática da pesquisa pode lhe proporcionar;

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pois, por mais fascinante que o tema seja, existia uma pergunta a ser respondida e,

para isso, iniciei o raciocínio indutivo e dedutivo (numa constante mescla onde usava

um e/ou outro) a partir da pesquisa teórica estabelecida inicialmente e defini o que eu

entendo por mito e por corpo na dança.

Esse trânsito entre os diferentes raciocínios (abdutivo, indutivo e dedutivo) é

comum na realização de pesquisas em todas as áreas, afinal, uma das características

mais fortes de toda pesquisa é a descoberta de novas propostas e novos pensamentos,

teóricos ou práticos, que acabam conduzindo o pesquisador a novas abduções e,

consequentemente, a novas induções e deduções.

Assim, para esclarecer alguns pontos que serão explanados a seguir, considero

importante ressaltar que as definições de mito e corpo aqui apresentadas só foram

possíveis graças a um estudo teórico aprofundado no que tange as relações entre o

mito e o corpo, os quais conduziram à construção deste corpo que trabalha o mito na

cena, corpo esse que eu chamo, nesta pesquisa, de corpo mitológico. Apresentarei,

portanto, ao longo desta tese, a definição desse tipo de corpo cênico advinda tanto de

minha pesquisa teórica e bibliográfica quanto de minha experiência de quase vinte anos

como dançarina e amante da mitologia.

Para clarear a hipótese da presença do corpo mitológico –e considerando

minha prática efetiva como dançarina e investigadora do mito na cena– esse trabalho

parte da análise de experiências práticas que contribuíram significativamente com o

trabalho do corpo mitológico na cena, considerando a pesquisa artística-científica

composta por aspectos teóricos e práticos e, em especial, pela experiência única e

individual de cada artista.

Porém, não podemos esquecer que a pesquisa acadêmica, independente da

área de conhecimento, deve ser estabelecida por metodologias e procedimentos

bastante específicos e claros –mesmo que diferenciados, graças às especificidades de

cada uma das áreas. Isso é importante não só para legitimá-la enquanto pesquisa

científica, mas também para nortear o pesquisador, que pode facilmente se perder no

conteúdo da Caixa de Pandora.

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A pesquisa foi, portanto, realizada por meio de pesquisas teóricas –acerca da

presença do mito na História da Dança e do mito no inconsciente humano, por meio dos

estudos de Carl Gustav Jung– e por meio de pesquisa prática em laboratórios de

dança que pudessem conduzir meu corpo a um possível corpo mitológico.

Considero de igual importância deixar clara a opção feita por mim pela escrita

deste texto. Esclareço que a narrativa mitológica não é obvia como a maioria das

narrativas e as histórias dos mitos são apresentadas com tempos, espaços e

experiências completamente diferenciados daqueles de nosso cotidiano e, por isso, são

consideradas fantásticas e irreais. O mito é uma forma de expressão humana não

objetiva, com significados complexos e subjetivos –conforme verificaremos ao longo do

texto.

Dessa forma, optei por escrever um texto “poético-científico”, unindo a lógica da

ciência –e apresentando embasamentos teóricos para os questionamentos que

envolvem a pesquisa acadêmica– à liberdade da criação artística –por meio de cartas e

diálogos entre deuses mitológicos. Assim, encontrei um caminho para uma escrita que

atendeu, sob meu ponto de vista, a pesquisa acadêmica em artes e o tema mitológico

em questão, com sua lógica não linear e suas nuances poéticas.

Portanto, finalizo a introdução a esta pesquisa dizendo que a Caixa de Pandora

está aberta e que convido os leitores a descobrir comigo seu conteúdo para que, assim,

a partir da possibilidade da compreensão sábia do estudo científico em arte, talvez

possamos justificar a condenação cruel que os deuses do Olimpo enviaram a Epimeteu

e a Prometeu, fazendo valer a pena o roubo do fogo da sabedoria executado por esses

irmãos Titãs.

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CAPÍTULO 1: AS DIVAGAÇÕES DOS DEUSES DO OLIMPO ACERCA DA

MITOLOGIA NA DANÇA

1.1 - Carta de Apolo para Dionísio: a presença da mitologia, da Dança Primitiva ao

Balé Clássico.

Caro Dionísio,

em vários momentos, daqui, sentado em meu trono, enquanto toco meus

instrumentos, e em meio a minhas divagações, sinto vontade de encontrar-lhe para

discutirmos muitas coisas, sobre muitos temas diferentes. Mas os diversos assuntos

que nos concernem nos tomam tanto tempo que mal conseguimos nos falar, não é?

Algumas coisas que me passam pela mente só você entenderia. Você, Dionísio,

que, como eu, é filho de Zeus, conseguiria entender minhas inquietações a respeito de

assuntos tão diversos, e penso que nós, deuses irmãos, temos muito mais em comum

do que gostamos de assumir. Gostaria de falar-lhe, por exemplo, sobre as discussões

entre os deuses; sobre algumas reuniões que fazemos no palácio de nosso pai no

Olimpo e que me deixam irado; sobre as nossas vaidades que, tantas vezes, ao longo

de nossa milenar história, mudam o rumo do universo e, principalmente, mudam o

destino dos humanos.

Como você sabe, desde que Prometeu criou os seres humanos a partir do barro

e entregou o fogo da sabedoria dos deuses a eles, esses humanos vêm nos colocando

em claros apuros e, na maioria das vezes, eu nem sei como agir e fogem-me as

soluções perante tanta loucura. Para mim, fica cada vez mais claro que Prometeu

deveria ter recebido um castigo ainda maior, por ter-lhes entregue o fogo, do que

apenas ter seu fígado comido lentamente pelos abutres; afinal, sempre considerei que

dar sabedoria aos seres humanos não foi, nem de longe, uma boa ideia. Foi como dar

pérolas aos porcos e a prova disso é o quanto trabalhamos para resolver seus erros

desde então!

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O que me levou a escrever-lhe hoje, caro Dionísio, é, justamente, um

comentário que você fez em um de nossos últimos encontros no Olimpo. Quando

discutíamos com Minerva sobre sua ajuda a Prometeu (pois foi ela quem facilitou o

roubo do fogo e, quanto a isso, já não nos restam dúvidas), você interveio, dizendo que

a sabedoria possui diversas facetas, e que, nos humanos, o dom da arte seria uma

dessas facetas. Ora, Ora, Dionísio! Então, vem você atribuir a arte à sabedoria dos

humanos?! E eu, que sempre a elenquei como um dom igual aos outros que demos aos

homens, completamente separado da sabedoria –como o dom de amar, o dom de

pensar, o dom de reproduzir– comecei a refletir e questionar-me sobre minha posição

contrária ao ato de Prometeu. Eu considerava que demos a eles um pouco de

sensibilidade para balancear o excesso de racionalidade. Entendia, em outras palavras,

que a arte seria fruto de nós dois, você e eu, Dionísio e Apolo, balanceando a

existência confusa dos humanos. Mas sua última colocação fez-me refletir muito e,

então, venho, nesta carta, expor-lhe o que penso a respeito da arte e creio que

compartilhar com você minhas reflexões possa clareá-las inclusive para mim, pois,

como você bem sabe, posso ser demasiadamente racional em muitos momentos e

aproveito dessa minha característica para tentar entender a sagacidade que você

atribui à arte.

Quero deixar claro que, mesmo depois de séculos e séculos de convivência

com os humanos, não consigo compreendê-los por completo e, às vezes, penso: onde

erramos para torná-los seres tão complexos que nem nós mesmos conseguimos

entender? Veja, por exemplo, os filósofos, os cientistas e os pesquisadores que alguns

deles se tornaram. É tanta explanação, tanta justificativa, tanta retórica, que me perco

completamente na maioria das teorias que eles elaboram. Mas, tentando fazer jus ao

meu papel divino, leio e releio tudo o que eles escrevem centenas de vezes para tentar

entendê-los e não cometer equívocos ao deliberar sentenças para seus destinos. Mas

acho que eles complicam tudo cada vez mais! Toda a natureza da sensibilidade que lhe

demos perde-se em tantas elucubrações, não acha?

Assim, para tentar esclarecer o que venho refletindo sobre a arte humana –e

também para ver se meu raciocínio alcançou a grandeza de sua colocação, Dionísio–

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eu usarei algumas das teorias criadas por nossa criação (que ironia!). Ou seja, vou

buscar, em alguns autores humanos que viveram e escreveram ao longo dos séculos, e

também em alguns de seus feitos artísticos, recursos que me auxiliem em minha

reflexão. Escolhi esse caminho para tentar me aproximar de seus pensamentos e,

também, para tentar entendê-los a partir deles mesmos. Além disso, resolvi embasar-

me no campo do saber artístico (como os humanos costumam chamar um dos ramos

de sua ciência) para achar soluções a algumas de minhas dúvidas e para poder refletir

sobre a sagacidade da arte.

Penso que eu –considerado pelos próprios humanos o deus da música e da

poesia, e quem busca atribuir ordem ao fazer artístico– juntamente com você –

considerado o deus das sensações e emoções carnais, o qual, além disso, graças às

questões históricas que considerarei adiante, é também o deus das artes da cena–

poderemos discutir e entender melhor a arte como uma possível faceta da sabedoria a

partir desses autores humanos. Claro que considero importante salientar que somos

deuses e que a lógica deles não passa nem perto da verdade que conhecemos e que,

justamente por isso, meu raciocínio não será tão linear como estamos habituados a

verificar no discurso científico humano. Apenas buscarei reforço em suas considerações

para poder fazer as minhas; afinal, sou um deus do Olimpo e, como tal, tenho total

liberdade para formular, reformular e embaralhar as teorias humanas.

Acrescento, também, que me alivia poder discutir a arte, pois a ela ainda resta

um respiro em relação aos excessos da errônea racionalidade humana. Apesar disso,

devo lembrar-lhe de que alguns desses “artistas-pesquisadores” que surgiram no último

século têm me decepcionado um pouco com tantas teorias em torno de algo que lhes

oferecemos com tamanha sensibilidade. Sim, eu compreendo a situação em que eles

se encontram ao entrar na academia e buscar legitimação de seu espaço enquanto

ciência; mas muitos deles tornam essa tarefa uma “faca de dois gumes” ao usar teorias

que não dialogam com o sensível, matando, assim, a beleza que a leveza da arte

poderia trazer à academia.

Justamente por isso, procurarei usar autores que dialoguem com o sensível

humano e com a relação delicada entre o homem e os fenômenos que o rodeiam. Em

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especial, vou usar autores que entendem a nossa presença no fazer artístico, ou seja,

autores que tratam da mitologia –nome que eles dão às nossas ações que eles não

conseguem explicar4– como campo dessa tal sabedoria artística que você defende.

Aqui, permito-me, mais uma vez, usar de minha vaidade; afinal, sou um deus e

uma de minhas mais fortes características é, justamente, minha vaidade. Claro que falar

da sabedoria e da arte sem passar por tudo o que nós, deuses, lhes oferecemos em

troca de respeito e devoção seria completamente descabido. Afinal, os humanos, a arte

e tudo mais o que existe só existe porque nós autorizamos sua existência! Nós criamos

tudo, não é, Dionísio? Se não quisermos mais nada disso, teremos o direito (e o

capricho) de acabar com tudo e recomeçar de outro jeito.

Aliás, você se lembra como a arte começou, segundo a mitologia grega5? Não

foi com o fogo de Prometeu, e, sim, com Zeus, nosso pai, que criou as deusas da arte

para que elas cantassem e dançassem a nossa vitória na batalha contra os Titãs. Nós,

então, resolvemos atribuir aos homens esse dom quando emprestamos a Prometeu um

pouco de nossas habilidades, isso para que ele pudesse criar os seres humanos. Sua

teoria seria de que a sabedoria conseguiu lapidar a arte, mas não criá-la. Ou me

engano? Vou entender sua colocação e sua defesa a Prometeu a partir dessa

afirmação, pois considero que você sabe bem disso.

Bem, tenho também que pedir desculpas a você pelo excesso de racionalidade

que este texto pode vir a conter, considerando que você não gosta muito de

racionalizar. Além de usar autores humanos que tratam a humanidade como ciência (e

não como existência pura), lembro-lhe de que sou o deus do logos. E você, que não

precisa verbalizar sobre assunto algum –que só sente em sua existência de prazer, e,

assim, entrega-se às fruições que a vida promove– pode vir a se cansar ao longo de

minhas reflexões. A mim, cabe-me a função de sempre dar aos homens uma certa

lógica, e a palavra esclarece muito aos deuses e aos mortais que ainda não

aprenderam a sentir como você, e que ainda não entenderam que minha lógica também

não é baseada na racionalidade, ou melhor, na forma como eles entendem essa

4 Explicarei com calma esse termo adiante.

5 E sabemos que a versão grega é só uma versão da história real!

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palavra; mas que essa minha racionalidade pode surgir de naturezas diferentes da

razão intelectual, como a razão corporal e a emocional, por exemplo. Por isso, peço-lhe

a gentileza de acompanhar minhas reflexões, que, certamente, irão me ajudar a tomar

uma posição definitiva no que concerne ao roubo do fogo dos deuses e na condenação

de Prometeu.

Inicio minhas considerações a partir da análise sobre a necessidade que o

humano tem do fazer artístico e de como ele lidou com essa necessidade ao longo de

sua existência. Se observarmos atentamente a História da arte dos humanos, podemos

entender que o fazer artístico vai além da necessidade de comunicação da maneira

como é atribuída pelos historiadores humanos, sendo este uma necessidade de

expressar suas sensações em relação ao mundo. Verificamos que, desde que

Prometeu criou o ser humano, o mesmo expressa sua existência e sua relação com os

fenômenos por meio da arte. Inclusive, podemos lembrar que, desde suas pinturas

rupestres eles mostram –em meio às imagens de caçadas e do cotidiano em que vivia o

Homem Primitivo6– o próprio princípio da arte, que é, sob meu ponto de vista, a nossa

influência sobre os homens.

Sim, Dionísio, parece mais uma vez pretensioso de minha parte fazer essa

afirmação, mas você há de concordar comigo que nós, os deuses do Olimpo ou de

qualquer outro lugar (dependendo da forma de nossa manifestação escolhida por cada

diferente civilização), fomos e somos a maior inspiração artística e, consequentemente,

a grande fonte de compreensão das sensações dos seres humanos. Portanto, gostaria

de analisar a presença da arte e sua possível atribuição à sabedoria a partir da seguinte

premissa: a arte só pode ser uma faceta da sabedoria se a observarmos como canal de

conexão com o sagrado.

Ora, Dionísio, eu lhe esclarecerei essa minha colocação. Você se lembra como

o homem primitivo se relacionava com os fenômenos nessa época? Claro que sim,

6 Vou chamar de homem primitivo aquele que viveu na época da Pré-História, usando esse termo não

como reflexo de uma possível ignorância ou falta de conhecimento dos mesmos, mas apenas para contextualizá-lo no tempo, pois sabemos que ignorância e falta de conhecimento são atribuições que estão muito além do conhecimento erudito ao qual o homem contemporâneo atribui essas palavras.

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ainda mais você, que é louvado desde que o homem se percebeu como um “ser de

sensação”.

Ao que consta a nós, deuses, você foi um dos responsáveis pela existência do

homem da maneira como o conhecemos, pois sabemos que, em sua criação, não

escaparia ao homem nenhum dos atributos doados pelos deuses e, com os atributos

doados por você, não foi diferente. Sabemos, ainda, que o ser humano oriental deu-se

conta de sua existência, Dionísio, desde o período que eles batizaram de Neolítico

(quarto milênio a.C.), mas ali eles ainda o chamavam de Shiva. Aliás, demorou muito

para que eles entendessem que você, Shiva7 e Baco eram o mesmo deus, mas sei que

você usou de suas artimanhas para confundi-los, pois também sabemos que você

corria pelas terras da África primitiva como Exu, o Orixá Yorubá que, por suas

características sensuais e carnais chegou a ser considerado pelos ocidentais como o

Orixá Satanás8. Você e suas artimanhas, Dionísio...

Porém, o homem ocidental parece ter se dado conta da sua existência apenas

no período da civilização minoica (entre os séculos XX e XV a.C.).

Permita-me fazer uma breve observação sobre as obtusidades humanas: eles

só conseguem enxergar o que lhes é “cientificamente comprovado”! Com essa nuvem

de fumaça em sua frente, não conseguem ver que o culto aos deuses, independente de

provas científicas, existe desde que os criamos. Afinal, eles sempre nos deveram

obediência e respeito, e isso nós fizemos questão de lhes ensinar assim que eles foram

criados. O que torna, portanto, sua relação conosco algo tão antigo quanto a existência

deles; aliás, o culto a todos nós é muito mais antigo do que eles podem provar

cientificamente.

Continuo minhas considerações dizendo que é “cientificamente comprovado”

que você aparece para eles nesse período primitivo e segue junto com o

desenvolvimento das civilizações. Sabemos que essa civilização minoica –que

7 As considerações sobre o sincretismo entre Shva e Dionísio podem ser encontradas em DANIÉLOU,

Alain. Shiva e Dionísio. Trad. Edison Darci Heldt. São Paulo: Ed. Martins e Fontes, 1989. 8 As considerações sobre o sincretismo entre Shiva e Exu podem ser constatadas em PRANDI.

Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

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antecede a civilização cretense e, consequentemente, a grega– foi fortemente

influenciada pela civilização asiática, em especial, pela civilização indiana, levando o

Shivaísmo (ou o Dionisismo) aos ocidentais.

Entre tantos rituais dedicados a você, lembro que a dança sempre esteve

presente, como uma forma de atingir sua força a partir do que eles entendiam possuir

de mais sagrado: seus corpos. O homem primitivo entendia que, sem seus corpos,

nada aconteceria, pois, neles e a partir deles o homem vivenciava cada instante de sua

existência; afinal, que outra maneira eles possuíam para se relacionar com o mundo?

Assim, em muito pouco tempo, eles descobriram que dançar seria a maneira mais

sincera de nos louvar.

Claro que esse foi um dom dado aos humanos pelas nossas conhecidas

colegas, as Três Graças, Eufrosina, Aglaé e Talia, juntamente com nossa irmã

Terpsícore, a deusa da dança e todos nossos colegas orientais (deuses e deusas da

dança) e os Orixás africanos. E você sabe que não existe maneira mais completa de

louvor a qualquer um dos deuses do que entregar o corpo ao sagrado do qual ele veio.

O corpo do ser humano é, sem sombra de dúvida, uma de nossos maiores feitos e,

nisso, Prometeu acertou em cheio! O homem primitivo sabia e percebia a grandeza de

seu corpo, pois, em sua relação com nossas criações no universo –a natureza– ele

conseguia entender o corpo como manifestação da vida, dos fenômenos, do sagrado e,

consequentemente, como nossa própria manifestação. Lembro-me de que pedimos a

Prometeu para construir o corpo do Homem à nossa imagem e semelhança, ou seja,

perfeito! E o homem primitivo percebia, acreditava e vivenciava essa premissa,

deleitando-nos com seu louvor maior que é entregar-nos seus corpos, sua maior

preciosidade, por meio da dança.

No que concerne a seu culto, Dionísio, o homem primitivo realizava esse louvor

de maneira muito profunda, entregando-se ao êxtase do transe e construindo em seu

corpo um verdadeiro canal de comunhão com o universo que lhe oferecemos. A

energia gerada por seu corpo a partir do movimento, seguia, conversava e chegava

direto a você! Quantas vezes, naquela época, eu o procurei e o encontrei junto aos

seus seguidores humanos que dançavam em transe e em comunhão com você. E

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então, Euterpe –a deusa da música– e eu juntávamo-nos a você assim que ouvíamos

um tambor ser tocado ou um canto ser entoado.

Vê como falta sabedoria aos humanos? Eles separam todos os rituais que

dedicam a nós, acreditando que as coisas sagradas são separadas umas das outras;

que em um ritual de dança eu não estaria presente; ou que, em qualquer outro ritual,

todos nós, deuses –seja da região ou da religião que for, com o nome que eles

quiserem nos dar– não possamos nos reunir, promovendo a verdadeira união com o

universo! Você entende, caro Dionísio, a minha dúvida quanto a Prometeu ter-lhes

conferido o fogo sagrado? Os humanos não combinam com tamanha preciosidade!

Bem, sigo buscando algo que me convença do contrário para que eu possa

sempre ser um deus justo. Não quero parecer radical ou irredutível. Por isso, sigo com

minhas reflexões e, neste ponto, esclareço-lhe que usarei a linguagem da dança como

exemplo em minhas considerações, justamente por entendê-la como um canal direto e

completo de comunicação conosco, os deuses, conforme já expliquei anteriormente.

Continuando minhas recordações, podemos dizer que desde que o humano se

deu conta de sua existência, você, Dionísio, e todos nós, deuses, já estávamos

presentes em seu cotidiano, no que, algum tempo mais tarde, eles deram o nome de

mitologia.

Convém, agora, pararmos um minuto para analisarmos a palavra “mitologia”.

Podemos iniciar essa análise verificando que, na era primitiva, esse termo não teria

nenhum cabimento; afinal, dar nome a algo que não se consegue explicar

racionalmente é coisa dos humanos da atualidade, porque tudo nos prova que, ao

longo dessa chamada “evolução humana”, o humano foi esquecendo-se de nossa

presença em seu cotidiano e dando-nos o caráter de ficção, de mentira e de imaginário

criativo de seus ancestrais.

Permita-me iniciar as primeiras referências de autores humanos que justificam

essa minha afirmação. O que chamo aqui de mitologia pode ter várias definições e

vamos lançar um olhar cronológico para essas, a fim de entendê-las melhor. Por

exemplo, a definição de Conde D´Alviella (1995, p.24) é de que o mito seria a

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dramatização de fenômenos naturais, ou de eventos abstratos; para César (1988, p.37),

o mito é a expressão simbólica de valores, a qual acontece nas narrativas míticas (sua

forma primordial, seja ela oral ou escrita) e é representada na arte de várias maneiras,

na pintura, na dança, no teatro. Por fim, para Rocha (2012, p.23), o mito é uma forma

de as sociedades espalharem suas contradições e oferecerem a possibilidade de se

refletir sobre a existência, o cosmos e a situação de estar no mundo.

Em cada uma dessas definições (e ainda em muitas outras que podemos

encontrar nos estudos da mitologia), o mito aparece como símbolos9 que o homem usa

para manifestar algo que está além de sua compreensão intelectual para os

acontecimentos ligados ao universo, à natureza ou até mesmo às suas condutas.

Muitos autores defendem a mitologia como parte da existência humana, mas não como

essência dessa existência, assim como nós, os deuses, sabemos que somos.

Dentre tantas definições, considero importante destacar a de um mitólogo e

filósofo que viveu no século XX, Mircea Eliade, a qual parece-me ter chegado bem

perto da verdade, pois ele entendia o mito como uma realidade extremamente

complexa:

Em outros termos, o mito narra como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmos, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição. (...) o mito fala apenas do que realmente ocorreu, do que se manifestou plenamente. (...) Em suma, os mitos descrevem as diversas, e algumas vezes dramáticas, irrupções do sagrado (ou do “sobrenatural”) no Mundo. (ELIADE, 2004, p.11)

Você percebe, caro Dionísio, o quanto o autor aproximou-se da verdade? Pois

sim, o que o homem chama de mito é a narração de nossas histórias –ou de outros

seres que eles consideram “sobrenaturais”–, e, às vezes a descrição de quem somos e

de nossos feitos para tornar o universo como ele é. E, mais ainda, o mito fala do que 9 Caro Dionísio, esclareço que, quando eu usar a palavra “símbolos”, estarei referindo-me a uma

imagem (material, ilustrativa, emocional ou mental) que representa algo além de seu significado convencional. Uso aqui a palavra para designar a expressão coletiva de algo desconhecido, intuído, não sabido. (WURZBA, 2011, p.65-66). Esclareço também que esse termo é complexo e que, por isso, em outro momento me aprofundarei nele.

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realmente aconteceu, e não de uma mentira ou de uma invenção para tornar a

realidade mais bonita. E, como vimos, o homem primitivo entendia isso plenamente;

afinal, em seus rituais, ele tentava nos contactar de todas as maneiras possíveis para

que, de alguma forma, pudéssemos realmente chegar até ele! Não era ficção, era

realidade! Era a realidade em que ele acreditava e enxergava com tamanha grandeza!

Para esses humanos, o mito não contava mentiras, mas ajudava-os a entender

o universo e as relações estabelecidas com ele. Assim, considerando que seus corpos

eram seu canal mais forte (e talvez o único que eles tinham e ainda têm) de relação

com esse universo, as manifestações de suas danças sagradas eram uma maneira

muito profunda, e a mais simples, de chegarem até nós. Principalmente até você, não

é, Dionísio? Que é sensação e emoção personificada e que entende que é no êxtase

do movimento do corpo onde a existência se dá por completa. E sentindo assim foi que

os seres humanos primitivos seguiram, dançando em transe, em embriaguez e em um

estado de consciência completamente irracional, alterado, não linear: enfim, em um

estado corporal mitológico, com um corpo que se relacionava diretamente com seus

mitos.

Chegamos a um ponto extremamente importante para continuarmos minhas

reflexões. Quero deixar claro que eu considero o corpo humano como uma criação

sagrada, em todos os sentidos do que pode significar essa palavra. Afinal, se ele foi, e

ainda é, o único caminho para chegar até nós, os deuses, como ele haveria de ter outra

natureza, se não a sagrada? E, por isso, entendo que a dança primitiva acontecia de

maneira tão intensa a ponto de nos levar até os humanos e de nos embriagarmos em

seu êxtase!

Ah, corpo humano! Tudo acontece nele, com ele e a partir dele. Nós, os mitos

(vou acabar referindo-me a nós, deuses, aos seres sobrenaturais, e aos nossos feitos

como tal), concretizamo-nos nele, e, a partir dessa compreensão, podemos clarear um

pouco mais meus pensamentos usando a definição de mito que realmente me agrada e

que vai permear, profundamente, meus escritos: o mito, ou as histórias primordiais

sagradas, acontecem e manifestam-se nos corpos humanos e, por isso, confundem-se

com eles.

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Vou buscar, mais uma vez, a referência teórica de alguns autores humanos que

me ajudaram a chegar a essa conclusão, e inicio com Rubem Alves (1988), que

introduz o tema de maneira poética e, no meu ponto de vista, bastante lúcida:

Não, o mito não diz como as coisas se deram. O que ele faz é reconstruir a beleza trágica e comovente do destino humano de que todos participamos. E quando os nossos corpos estremecem ao ouvir o coro que canta, sentimos que navegamos juntos... O mito pequeno tece o meu corpo. Espelho em que contemplo a minha alma. O mito grande amarra os corpos solitários num destino comum. (ALVES, 1988, p.20)

Esse autor defende o mito como um caminho para o olhar sensível e sensorial

sobre os fenômenos, e é claro que nós, os deuses, sabemos que somos bem mais do

que isso. Porém, também somos isso, ou seja, somos uma maneira de aproximar o

humano da realidade sensível dos fenômenos que os rodeiam. Em meio a essas

considerações sobre o mito e o sensível, Alves nos fala que o mito amarra e tece os

corpos humanos, tornando-se parte intrínseca de sua composição – corpo formado por

todas as suas dimensões, que chamarei de corpo soma10. Assim, se o mito compõe o

corpo humano, a dança pode ser considerada uma maneira de ressignificar os mitos a

partir do movimento, sendo um caminho para reviver o sagrado mitológico e a nossa

existência real, de forma profunda.

Acompanhe meu raciocínio, caro irmão. Se o corpo é o canal sensível dos

humanos, quando eles dançam, seus corpos estão em movimento contínuo de

transformação, de dilatação e de integração com o universo. Dançar torna-se, portanto,

parte da transformação constante que o universo sofre, fazendo, assim, com que o ser

humano se transforme junto com o universo e, consequentemente, junto com o sagrado

mitológico que o compõe. Afinal, o sagrado mitológico também não é algo imutável,

mas, sim, parte da transformação constante que atribuímos como característica dos

fenômenos.

10

Espero que você tenha entendido meu irmão, que considero o corpo humano como sendo composto

por um conjunto de processos físicos, psicológicos, biológicos, emocionais, psicológicos, sociais, etc, e que o que chamo, a partir de agora, de corpo soma é exatamente a união desses processos.

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Acho importante pararmos um instante por aqui para que eu possa lhe definir o

que eu entendo como “sagrado”; afinal, são inúmeras as possibilidades de interpretação

dessa palavra. Esclareço a você, Dionísio, que sagrado é, para mim, o nome dado ao

que nos concerne, ou seja, o nome dado a nós, deuses, e todos os fenômenos do

universo que criamos.

Você poderá observar no dicionário dos humanos (criados para dar significados

ao que eles mesmos nomeiam) que a palavra “sagrado” é um adjetivo:

Consagrado ao culto: vasos sagrados. / Que recebeu a consagração, que cumpriu as cerimônias de sagração. / Relativo à religião ou ao culto. / Inviolável. / Venerável, respeitável: compromisso sagrado. // Fig. Fogo sagrado, sentimentos nobres e apaixonados: o fogo sagrado da liberdade. // Livros sagrados, o Antigo e o Novo Testamento. / &151; S.m. O que é sagrado: o sagrado e o profano. // Sagrado Coração, o Coração de Jesus, venerado pelos católicos. (Disponível em www.dicionariodoaurelio.com/)

Ora, meu caro irmão, pois esse dicionário nos apresenta palavras

desconectadas e lança ideias sem explicação, concorda? Algo que é “consagrado ao

culto” não é uma explicação da palavra “sagrado”, muito menos “sentimentos nobres,

apaixonados”. O que é isso, agora? Esse tal de dicionário deveria ter a função de

explicar, e não de complicar ainda mais as definições que já não são nada simples!

Sagrado é, sob o meu ponto de vista, apenas o que é venerável e respeitável,

como nós, deuses, e tudo o que criamos; portanto, quando uso essa palavra nesta

carta , refiro-me ao que diz respeito a nós, deuses, e não a todo esse resto de coisas

que os humanos batizam, sem nenhum critério, de “sagrado” e muito menos

restringindo a uma religião ou outra. Assim, sagrado aqui é tudo o que for relativo aos

deuses e aos nossos feitos; quero, também, deixar claro que considero o corpo humano

sagrado, pois ele é nossa criação.

Posto isso, podemos, então, concluir que os humanos da Pré-História nos

ofereceram a primeira definição de um corpo sagrado, quando usavam o mesmo para

nos louvar, para louvar nossas criações, ou seja, para louvar seus mitos. Eram corpos

potentes, no sentido de alcançar o que é realmente sagrado no que diz respeito aos

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mitos. Aliás, eu defendo, a partir de agora, a existência do corpo mitológico, que é o

corpo que alcança o sagrado mitológico no momento da dança.

Veja só, Dionísio, eu, que tanto critiquei os humanos e suas teorias, venho

formular uma! E perceba que ela também não é tão simples assim, pois falar de corpo

mitológico significa ver o corpo do humano que dança como uma manifestação e um

canal do sagrado que, concomitantemente, constrói e revela a relação entre o homem e

o mito.

Confesso-lhe que essa teoria não surgiu somente da leitura dos excertos de

Rubem Alves, pois li muitos outros autores e filósofos que tratam o tema do mito na arte

para tentar entender sua colocação na última reunião dos deuses no Olimpo e pretendo

usá-los ao longo dessa carta. Assim, a partir da leitura que fiz de alguns livros de outro

mitólogo, também do século XX, Joseph Campbell, pude compreender que não é

possível entendermos o mito separando-o do corpo:

A mitologia é uma função biológica [...] um produto da imaginação da soma. O que os nossos corpos dizem? E o que eles estão contando? A imaginação humana está enraizada nas energias do corpo. E os órgãos do corpo são os determinantes dessas energias e dos conflitos entre os sistemas de impulso dos órgãos e a harmonização desses conflitos. Esses são os assuntos que tratam os mitos. (CAMPBELL, 1980, apud KELEMAN, 2001, p.25)

Observe, Dionísio, que, para esse autor, o ser humano só pode entender um

mito a partir de seu corpo, que revive o mito a todo instante, inclusive no sentido

biológico. Keleman (2001), ao dialogar com as teorias de Campbell, afirma que cada

ser humano é um nômade, uma onda que dura por algum tempo e então assume uma

nova forma somática (KELEMAN, p.101), e que essa transformação perpétua é o

assunto de todos os mitos. Segundo esse ponto de vista, o corpo de cada humano é

único e, por isso, seria esse corpo único quem determinaria os mitos com os quais cada

um dos homens envolve-se e identifica-se e, indo ainda mais fundo, seriam seus corpos

os determinantes na construção das narrativas míticas, o que faria o mito surgir desses

corpos e representaria seus processos de desenvolvimento e de relação de trocas com

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o mundo. Dessa forma, segundo o autor, o mito seria uma história que brota de um

processo corporal para orientar suas vidas e indicar seus valores:

O mito é uma maneira de perceber os mundos interior e exterior. O corpo organiza a sensação que emerge do metabolismo tissular e isso é o que chamamos de consciência. Esse processo somático é a matriz para as histórias e imagens do mito. (CAMPBELL, 1980, apud KELEMAN, 2001, p.27)

Fazendo uma análise mais profunda sobre essas considerações, observamos

que o autor inicia um processo de inversão do que era identificado como mito até então,

considerando-o não como uma história que o homem usa para responder a questões

que estão acima de sua compreensão racional, mas, sim, a maneira como o corpo

humano entende o mundo, a partir de seu saber sensível, ou seja, de seu saber não

racional/inteligível, mas corporal, transformado em narrativa mítica.

Além disso, considero importante explicar-lhe que, ao longo de seu texto,

Keleman não usa a palavra “imaginação” como sendo algo criado pelo homem a partir

de sua criatividade racional, mas como sendo uma característica humana sensível, que

brota de sua relação com o mundo sutil, ao que podemos atribuir também às questões

sagradas, como, por exemplo, a existência de nós, os deuses.

Observe, Dionísio, como tudo parece fazer sentido agora. O mito torna-se o

resultado das necessidades que o corpo tem de organizar suas percepções e, portanto,

os mesmos falam do corpo e da natureza de experiência deste corpo. E, justamente,

por ser resultado de uma experiência somática como é o corpo, o mito acabaria por

ditar regras, condutas e valores captados, entendidos e adotados por outros corpos.

Dionísio, eu imagino que você deva estar exclamando: “Agora, sim! Agora eles

parecem ter entendido algo sobre nós e, finalmente, mostrado a sabedoria da arte por

meio de seus corpos dançando!” E eu concordo que, às vezes, eles chegam quase

perto da verdade sagrada, como fez o humano na Pré-História. Mas é só quase perto,

porque o que veremos a seguir mostra que o corpo mitológico foi, ao longo da História

humana ocidental, sendo esquecido, negligenciado, e quase totalmente abandonado –

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mesmo pelos dançarinos– o que torna sua defesa da sagacidade da arte ainda

bastante insatisfatória para mim.

Antes de continuar minhas colocações, considero importante deixar claro que

não quero traçar-lhe nenhum tipo de panorama histórico, por não ter o intuito de fazer-

lhe retrospectivas e, também, para não parecer-lhe redundante, pois você estava

presente em todos esses acontecimentos e existem inúmeros humanos historiadores

que já o fizeram, não me cabendo repeti-los. Pretendo, apenas, falar-lhe sobre alguns

momentos dessa história nos quais podemos verificar a sabedoria ou a falta dela

quando o ser humano lida com a arte, em especial, com a dança –lembrando-lhe,

sempre, que, no meu ponto de vista, se não há nossa presença (a presença do que os

humanos chamam de mito e de seres mitológicos), não há sabedora na arte!

Por isso, não vou detalhar todos os momentos que marcam a História do

homem no mundo e vou passar diretamente para a Idade Antiga (4000 a.C. – 476 d.C.)

quando conseguimos –você e eu, Dionísio– realizar um de nossos desejos mais fortes

e, em uma ação inspirada, mandamos os poetas gregos como nossos representantes

na Terra para dizer aos humanos como tudo realmente aconteceu. E, então, por meio

das chamadas Tragédias Gregas, conseguimos unir nossas forças e colocamos a

minha racionalidade e a sua sensibilidade em função da arte.

Chego a suspirar ao me recordar das Tragédias Gregas! Elas traduziram a

relação dos humanos com o universo de maneira singular. Os poetas mostraram nossa

influência sobre os humanos e contaram as histórias mais incríveis sobre nossos feitos,

mas, principalmente, e acima de tudo, tentaram mostrar-lhes que você e eu não somos

duais e contraditórios como eles pensam. Tentamos dar função à sabedoria que

Prometeu lhes deu, não acha? Não acha que a Tragédia Grega foi nosso encontro

mais fortuito? Nossa fala mais sintonizada? Corpo e mente, fala e ação se

complementando e mostrando que são uma coisa só, que são equilíbrio puro! A

Tragédia Grega não separava meu logos de suas sensações, mas mostrava que

complementávamos um ao outro a partir do coro –que era a representação de

compreensão do universo como um todo, sem separação, sem distinção, em puro

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êxtase da existência, ou seja, sua representação mais genuína– e da poesia falada,

racionalizada e estruturada, ou seja, de minha fala ao mundo dos mortais.

Se observarmos atentamente as colocações de Nietzsche (1844-1900) –um

desses filósofos a quem demos o dom de confundir os humanos–, verificamos que ele

traça nosso perfil e a relação dos gregos conosco sugerindo, a partir daí, a origem da

Tragédia Grega.

Você já o leu, Dionísio? Já leu Nietzsche? Faça isso quando tiver um tempo, e

perceba como é interessante o que ele descreve sobre nós dois, atribuindo-nos

características de dualidades complementares. Ele entendeu que eu só posso ser seu

complemento, Dionísio, provando, também, que as minhas características de

racionalidade, linearidade, minha forma e minha consciência não sobrevivem (e nem

teriam motivo para tal), sem a essência natural, sem a desmedida, sem a embriaguez

da insensatez que você oferece ao mundo:

A ambas as divindades artísticas destes, Apolo e Dionísio, está ligado o nosso reconhecimento de que existe no mundo grego uma enorme contradição, entre a arte e a de Dionísio; ambos os impulsos, tão diferentes, marcham um ao lado do outro, na maior parte das vezes em luta aberta e incitando-se mutuamente para novos partos, a fim de neles poder perpetuar a luta deste contraste, que a palavra comum “arte” somente na aparência consegue anular; até que eles, afinal, através do milagroso ato metafísico do desejo helênico, aparecem unidos, produzindo, por fim, nesta união, a obra de arte, tanto dionisíaca quanto apolínica, da Tragédia Ática. (NIETZSCHE, 1948, p.35)

Não lhe parece que o que esse filósofo fez foi entregar a verdade aos mortais e

eles, não sabendo usar a sabedoria que Prometeu lhes deu, não entenderam de uma

vez por todas quem somos e como realizamos nossos feitos? Eles continuaram sem

entender a dualidade complementar que os deuses apresentam. Afinal, mesmo as

outras mitologias são embasadas nesse conceito de que a dualidade é necessária para

a manutenção do universo e conosco não pode ser diferente. Na mitologia, sempre há

um polo que sustenta sua oposição, sempre existe um equilíbrio de forças, de ação e

de pensamento.

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Será, Dionísio, que eles nunca pararam para analisar as mitologias indígenas?

As mitologias indianas? As mitologias japonesas e africanas? Não é só no Ocidente

que encontramos as respostas para as inquietações humanas! Nós tentamos dividir e

espalhar as respostas pelo mundo para que todos os seres humanos tivessem acesso

a elas, mas eles insistem em olhar somente para suas próprias civilizações! Se

olhassem ao redor, veriam que nossas manifestações em outras culturas também só

existem enquanto complementos umas das outras.

Mas, mesmo sendo Nietzsche um grande filósofo, foi Colli (1996) quem propôs

um interessante complemento ao olhar de Nietzsche quando sugeriu que você e eu não

só nos completamos, não somos somente deuses duais em nossa essência, mas que

somos deuses que se confundem e que se fundem no que diz respeito à sabedoria, ao

conhecimento e à loucura da mania11:

Aqui, uma testemunha com o peso de Platão sugere-nos, pelo contrário, que Apolo e Dionísio possuem uma afinidade fundamental, justamente no terreno da “mania”, juntos eles esgotam a esfera da loucura e não faltam bases para formular a hipótese- atribuindo a palavra e o conhecimento a Apolo, e a imediatez da vida a Dionísio – de que a loucura poética é obra do primeiro, e a erótica, do segundo. (COLLI, 1996. p.16-17)

O autor sugere que, tanto eu, quanto você, Dionísio, carregamos a matriz da

loucura e do conhecimento, alargando o conceito desses dois substantivos e abarcando

também as dualidades e complementaridades que eles nos apresentam para a

compreensão dessas palavras; mostra que, assim, a partir dessa união entre loucura e

conhecimento, podemos proporcionar a sabedoria! O que seria isso, se não o transe

corporal promovendo o contato com o sagrado? Mais uma vez, a mania acontece no

corpo, ou seja, a sabedoria do contato direto com o sagrado (conosco e com o que

realizamos) acontece no corpo que dança.

11 Mania é o nome dado à aparente loucura causada por estados alterados de consciência, neste caso,

os movimentos, os sons e comportamento diferente do comum ou do cotidiano dos gregos seriam a referida mania. Lembrando que no dicionário mania aparece como estado de superexcitação do psiquismo, caracterizado por exaltação do temperamento e desencadeamento de impulsos instintivos e afetivos. / Fig. Mau costume, esquisitice. (disponível em http://www.dicionariodoaurelio.com)

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Incrível, não acha? A compreensão de que não existiria Tragédia Grega sem a

união – e também a fusão, no sentido de potenciação– de nós dois, deuses que

compomos e narramos, junto com os poetas, as histórias que falam da humanidade

para a humanidade. Falamos, nas Tragédias Gregas, “apolinicamente”, com a razão e

“dionisiacamente”, com os corpos, mostrando a todos os humanos que o corpo pode

carregar conhecimento e a razão pode ser também aperfeiçoada e desfrutada

sensivelmente.

Entendemos a Tragédia Grega como fala e ação, logos e corpus; mas o que

dizer, então, da ação, no que concerne à arte que estamos discutindo? Seria a ação da

dança novamente, Dionísio? Eu diria que sim; afinal, o teatro e a dança carregam a

mesma essência, ou seja, os corpos como canal expressivo e os coros das Tragédias,

derivados dos ditirambos12, eram também a essência do movimento corporal, unindo

vários corpos (o coro em si) em um só propósito, que era o de contar as nossas

histórias a partir do canto e da dança. Assim, a Tragédia Grega acontecia plenamente

nos corpos em ação:

Ao mesmo tempo, porém, devemos confessar que nunca se tornou visível aos poetas gregos, e muito menos aos filósofos gregos, a significação ditada do mito trágico; seus heróis falam mais superficialmente do que agem, o mito não encontra na palavra falada a sua objetivação adequada. (NIETZSCHE, 1948 p.153)

Nesse trecho de seu livro, Nietzsche está discorrendo sobre a música na

Tragédia Grega – a qual ele defende como sua originária, juntamente com nossos mitos

– e explicando-nos que somente a fala dos poemas trágicos não seria suficiente para

mostrar aos homens a grandeza do feito mitológico e, assim, atribuindo à musica o

triunfo da ação trágica. Porém, permita-me lançar um olhar diferentemente ampliado

para a afirmação do autor e procurar entender a ação dos heróis, citada por Nietzsche,

12

Só para lhe lembrar, Dionísio, os ditirambos eram parte intrínseca de seu culto sendo, em sua essência, um coral com odes realizadas na forma de cantos e danças em grupo e é considerado por muitos autores como sendo a origem da Tragédia Grega.

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como uma ação cênica, aqui entendida como a ação realizada pelo ator/dançarino em

cena.

Para explicar-lhe melhor o que penso sobre isso, acho importante falar-lhe com

mais calma do corpo do ator/dançarino na Tragédia Grega. Inicio dizendo que os

termos ator e dançarino, assim separados um do outro, não eram concebidos como os

concebemos hoje. Nas Tragédias Gregas, o ator e o dançarino eram uma única figura,

que não se sentiam interpretando ou dançando, e, sim, em sua inteireza a serviço dos

deuses. Eles disponibilizavam seus corpos para narrar as nossas ações, em uma

entrega total, parecida com um transe (a mania), em que o fato mítico era narrado

verdadeiramente pelos seus corpos. Entenda, Dionísio, a palavra “verdadeiramente”

como a mais verdadeira que eu posso usar para definir os artistas que interpretavam as

Tragédias; ou seja, eles não se consideravam interpretando ou dançando algo, e, sim,

revivenciando o momento mitológico. Dessa forma, a partir do mito revivido, seus

corpos estavam entregues ao momento sagrado e, naquele ato, não existia ator,

dançarino ou artista, e, sim, um corpo a serviço de nossa fala e de nossa ação, ou seja,

um corpo completamente conectado com o sagrado que representamos.

Acredito que, para um ator contemporâneo tentar chegar perto da grandeza de

uma interpretação de um ator da Tragédia Grega, é preciso muito trabalho, muito

esforço e muita dedicação, pois seu corpo atual não sente nossa presença como seus

ancestrais a sentiam. O que é uma pena, não concorda, Dionísio? Os artistas gregos da

época das Tragédias conseguiam unir em seus corpos minha fala e sua ação, em uma

sintonia incrível que tornou as Tragédias Gregas tão grandiosas como foram e como

são até a atualidade. O texto dos poetas nascia das ações dos mitos e, assim, nós

agíamos e eles escreviam nossas ações enquanto os corpos dos artistas incorporavam

esses dois componentes da Tragédia.

Assim, a partir desse olhar, podemos entender que o texto dos poeta –a fala

(minha manifestação legítima)– só alcança sua plenitude na ação e no movimento (sua

manifestação legítima, meu irmão Dionísio): o corpo do ator/ dançarino completa a

poesia trágica, dando-lhe não só forma, mas também consistência e verdade.

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Concluindo minha teoria sobre as Tragédias Gregas a partir das leituras que

pude realizar, arrisco dizer que o corpo mitológico apareceu firmemente na cena – e

pode realmente ser definido como parte do trabalho do ator/dançarino – a partir das

Tragédias Gregas (que considero o início da cena espetacular como conhecemos até a

atualidade). Caro irmão Dionísio, frente a essas considerações sobre o período da

Tragédia Grega, eu continuo a questionar-lhe sobre a arte e a sabedoria: como pode a

arte ser uma faceta da sabedoria se os homens não mantiveram a grandeza dessas

percepções e compreensões do mundo e de seus corpos, incluindo o corpo mitológico,

mas, ao contrário, perderam-na quando Sócrates13 a negou?

Imagino seu espanto com minha ultima consideração sobre Sócrates; porém,

ao contrário do que todos pensam, eu não apoiava absolutamente tudo o que Sócrates

dizia e pregava a seus ouvintes. Muitas vezes, quis levá-lo ao Oráculo de Delfos

novamente para enviar-lhe umas verdades sobre os absurdos que ele andou dizendo.

Mas, como você sabe, o destino dos homens às vezes nos escapa. Sim, é claro que, a

princípio, considerei Sócrates o mais sábio dos homens nascidos até então e até enviei-

lhe uma mensagem pelo Oráculo de Delfos dizendo-lhe isso. Porém, essa minha

afirmação subiu-lhe à cabeça e ele acabou atribuindo tudo o que fazia e dizia a mim ou

à minha influência, dizendo-se estar sempre a meu serviço. E, então, como faltou-lhe a

humildade da sabedoria, ele não compreendeu meu logos, entendendo-o apenas como

algo completamente racional, atribuído ao pensamento e às ideias, e não também ao

sensível, como deveria ser.

Quando Sócrates iniciou a divulgação de seus pensamentos, suas ideias

pareciam-me iluminadas e, realmente, seu discurso vinha, de maneira bastante sábia,

mostrar uma posição espiritualista na busca da verdade a partir da intuição humana.

Porém, ele acabou negando os mitos, entendendo os deuses apenas no sentido

espiritual, não atribuindo a nós a criação do mundo e desprovendo-nos de forma física.

Além disso, quando o Oráculo de Delfos disse-lhe “conhece-te a ti mesmo”,

pensei ter-lhe enviado uma mensagem clara, completa. Ora, Dionísio, conhecer-se a si

13

Sócrates é o filosofo grego que viveu no período clássico da Grécia Antiga, mais ou menos entre 469 a.C. e 399 a.C.

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mesmo significa entrar profundamente em tudo o que o compõe e, assim, desvendar os

mistérios da existência humana. Sócrates esqueceu-se da totalidade dessa existência

quando, com seu racionalismo, excluiu justamente o corpo dessa totalidade:

A ciência Socrática não se refere às coisas particulares da natureza, mas ao particularismo humano. Sócrates concorda com os sofistas: o que importa é o Homem. E a primeira coisa que ele vê no Homem não é o seu corpo, como o fizeram os físicos ou médicos, nem as suas ambições, como o fizeram os sofistas, mas as suas ideias. O Homem não vive como os animais, impulsionado pelas necessidades orgânicas, mas de outra maneira, guiado pelas ideias. Estas, pois, são a chave do problema humano, da ciência do particular que é preciso construir. (...) Essas ideias são ímas, freios, alavancas, rodas, engrenagens do espírito. Precisamos então conhecê-las, saber o que são, e aprender a utilizá-las. Eis a chave do método socrático, eis a descoberta maravilhosa, que, como acentua René Hubert, deu origem ao “racionalismo filosófico, à ciência positiva, às técnicas experimentais, à moral independente, e, além de tudo isso, à pedagogia consciencial e a todo o conteúdo do Humanismo europeu”. Eis, enfim, o conceito, essa abstração da coisa, essa realidade subjetiva, que constitui o mundo verdadeiro do Homem, sobreposto ao concreto, em que vive o animal. (PIRES, 1963 p.74-75)

Eis, sob o meu ponto de vista, um dos maiores legados de Sócrates: excluir o

corpo humano, os instintos desse corpo e o mito de tudo o que pode conduzi-lo à

sabedoria. Com isso, acredito que se iniciou um pensamento racionalista que segue de

Sócrates, passando por René Descartes (1596-1650) e chegando ao pensamento que

rege a maioria da sociedade contemporânea:

Começa, nesse momento, a difusão da perigosa loucura socrática, tão perigosa como a de Jesus, que destruiu o mundo antigo, minando pela base o poderio romano –como dizia Feuerbach e mais tarde Vitor Hugo– e até hoje continua tresloucar os homens. Também a loucura socrática não pôde ser detida por séculos. Contagiou Atenas, propagou-se pela Grécia, projetou-se depois em toda a era helenística, invadiu o mundo e continua a minar a sensatez das boas criaturas, nos mais tranquilos e sensatos recantos do planeta. (PIRES, 1963, p.71)

A difusão do pensamento socrático é considerada por alguns autores como

sendo o início da desmitificação, ou seja, quando o homem tira o mito do centro do

universo e encontra outras explicações, que não as mitológicas, para os fenômenos.

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Ah, Dionísio, e isso tem algum cabimento? Claro que não! Tirar-nos do centro

do universo! Isso sim é uma grande blasfêmia! Mas os humanos o fizeram, mesmo

quando tentaram manter nosso posto de divindade, conservando algumas de nossas

histórias e considerando-as reais, conforme nos explica Eliade (2004):

É verdade que, mesmo nas culturas arcaicas, houve mitos que foram despojados de significação religiosa, convertendo-se em lenda ou conto infantil; mas outros mitos continuaram em vigor. Em todo caso, não se tratou, como na Grécia dos pré-socráticos e na Índia Upanishads, de um fenômeno cultural de primeira ordem, cujas consequências se revelaram incalculáveis. Efetivamente, após esse processo de desmitificação, as mitologias Grega e Bramânica não puderam mais representar para as respectivas elites aquilo que haviam representado para os seus antepassados. (ELIADE, 2004, p.100)

A partir daí, as sociedades iniciaram um questionamento contínuo sobre nossos

feitos, Dionísio, atribuindo à ciência a existência do Mundo! Pode uma coisa assim?

Absurdo! Fico indignado com a falta de sabedoria humana! Claro que a tal “ciência”

responde coerentemente a algumas indagações que os humanos possuem sobre o

universo, mas não chega nem perto de nossos feitos. Ah, que blasfêmia!

Percebemos, por meio do legado de Sócrates e de outros filósofos que o

seguiram –como Platão (428 a.C.-347 a.C.) e Aristóteles (384 a.C.-344 a.C.)– que o

corpo mitológico na cena também ganhou o lugar de misticismo e de reflexo de

irracionalidade que os humanos podem, por vezes, lhe atribuir na atualidade. E é

simples constatarmos essa minha afirmação. Observe, por exemplo, como foram

tratadas as religiões que, mesmo depois de Sócrates, seguiram seus preceitos,

Dionísio, como, por exemplo, a religião dos Orixás, originada na África, e a religião do

Hinduísmo, originada na Índia. Vemos que todas elas aceitam o corpo ou seu

movimento como uma premissa para chegar até nós, os deuses, ou até aquilo que eles

consideram sagrado. Essas religiões, por aceitarem e considerarem o corpo humano

como sagrado, são desprezadas e sofrem imenso preconceito por parte daqueles que

seguem o pensamento racionalista e negam a sabedoria do corpo.

E isso não é novidade; você, mais do que eu, vivencia esses preconceitos

completamente descabidos que alguns humanos carregam; porém, o que não consigo

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realmente entender é porque os artistas cênicos ocidentais (que compunham e

realizavam espetáculos) permitiram-se ser podados dessa maneira desde então. Fato

é, amigo Dionísio, que esses artistas não souberam usar a sabedoria de que seus

ancestrais dispunham e deixaram que as sociedades e, em especial, as elites

intelectuais, influenciadas pela Igreja Católica até então, desmanchassem o elo tão

bonito e natural estabelecido pelo corpo entre arte, homens e deuses.

Para não lhe parecer que sou antiquado e nem que sou um deus que só

acredita no que nossos primeiros exemplares de humanos realizavam e acreditavam,

posso seguir minhas considerações, caminhando um pouco mais adiante na História

humana, e verificar a nossa presença na arte, no que chamo de nosso “pseudo-

retorno”, que aconteceu no período conhecido como Renascimento (fins do século XIV

e inicio do século XVII.).

Vamos deixar claro que, entre a Idade Antiga e o Renascimento, muita coisa

aconteceu, inclusive em relação ao pensamento mitológico. O homem continuou a nos

cultuar, porém, de maneira bastante superficial, buscando outras respostas para sua

existência e atribuindo a nós a manutenção de sua fé, e não a manutenção de todo o

universo. Perdemos terreno, Dionísio! O que foi uma fatalidade para nós e para eles!

Com isso, os humanos perderam parte de nossa proteção. Mas aqui entra o livre

arbítrio e, se não nos aceitam por opção, muito pouco podemos fazer!

Mas voltemos ao Renascimento. Lembro-me agora de um episódio no qual

alguns desses homens que se acham donos do mundo –os chamados reis–

propuseram levar a música e a dança praticada nos povos para os seus castelos, e, por

um segundo, achamos que iríamos realmente renascer. Você se lembra, Dionísio?

Ficamos eufóricos, achando que a dança e a música trariam a “mania” de volta

à sociedade dos humanos. Mas foi pura ilusão acreditar na dança e no corpo mitológico

dentro dos limites dos castelos! Sabemos apenas que a dança mitológica continuou nas

florestas, em cultos secretos a você, Dionísio, e a todos os outros deuses que eles

nomearam diferentemente, mas que, na essência, eram todos você, em suas diferentes

faces, feminina, natural, sensual, etc.

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Enquanto a dança mitológica seguia solta nos bosques, os castelos enrijeceram

tudo! Tudo virou um tédio, você não concorda? Nem me lembro de ter ido muitas vezes

aos castelos reais e fui apenas de curioso, algumas pouquíssimas vezes; mas nunca fui

por ter sido evocado ou chamado em uma dança ritual.

Mas comecemos essa análise do início desse período para entendermos como

tudo se desenrolou nessa época e para tentarmos fazer um paralelo com tudo o que

continuou se desenrolando. Você sabe por que deram o nome de “Renascimento” para

esse período da História humana? Dizem que foi a época marcada pela redescoberta e

a revalorização das referências culturais da Idade Antiga Clássica e da cultura greco-

romana. Ah, grande piada! Afinal, para redescobrir valores e referências de alguma

época, é preciso iniciar com a aceitação e a compreensão do pensamento dessa época

e, claro, isso não aconteceu, nem nunca vai acontecer, pois os seres humanos

caminham para a frente, sem nunca olhar para trás, o que é um péssimo hábito que

eles possuem! É impossível para os humanos voltar a pensar como os gregos

pensavam, infelizmente para nós, irmão Dionísio, porque seria a nossa grande vitória!

O que eles chamam erroneamente de Renascimento iniciou-se na Itália e foi

espalhando-se por toda a Europa, influenciando a sociedade europeia desse período de

maneira muito forte, ditando estéticas e temáticas artísticas; aliás, alguns autores

afirmam que a temática mitológica voltou com toda força nessa época.

Ora, não preciso nem continuar dizendo o que penso sobre isso, não é, caro

irmão? E por acaso você conseguiu ver alguma coerência entre forma e conteúdo na

dança de corte? No balé de corte? No balé barroco ou no início da dança clássica? Sei

que falei de períodos diferentes, que mostram um progresso no que diz respeito à

dança espetacular; porém, os autores que discutem todos esses períodos mostram-nos

uma dança muito diferente da mitológica, na qual o corpo mitológico nem aparece!

Como, então, eles teriam feito algo renascer? Analisemos essa minha interrogação com

calma.

Você se lembra de que as danças religiosas foram impedidas de se realizar nas

limitações das igrejas na Idade Média? Pois é, vieram as religiões ocidentais, que

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tinham a intenção de podar os instintos naturais humanos, e que fizeram notar que

essas danças seriam perigosas para seus dogmas e para as relações de poder que

elas estabeleciam; assim, foram afastadas da sociedade elitizada. Fomos todos nós,

deuses antigos, abolidos da fé desses humanos em mais um ato de barbárie contra

nós!

Bem, fato é que o ser humano não vive sem dançar, sem interpretar, sem tocar

ou cantar, pois nós os fizemos assim e eles não têm escapatória! Então, como

contornaram esse instinto tão natural, que é o de dançar, e o aboliram das cortes? A

resposta é tão simples quanto determinante na História da dança: tornando a dança, o

canto, a música, enfim, tornando a arte uma realização técnica e “civilizada”14; eles

aboliram os tambores, introduziram instrumentos de cordas; aboliram a dança de transe

e introduziram as danças metrificadas e ensaiadas; colocaram muitas e muitas roupas

cobrindo todo o corpo. Quanta estupidez! E foram, vagarosamente, tirando toda a

“mania” da arte, entendendo a dança como uma manifestação humana completamente

elitizada e racional, da qual só quem tinha aulas formais, com professores de dança,

poderia participar.

Sim, Dionísio, sei que estou generalizando um pouco; afinal, para que a dança

chegasse a ser ensinada formalmente, ela esteve anos na informalidade, mesmo na

corte. Porém, assim que ela ganhou a característica de ensino-aprendizado na

educação dos nobres europeus desde o século XIV, para o quê somente quem

passasse pelos ensinamentos formais dos mestres de dança poderia ser considerado

educado, tudo mudou, inclusive em relação a nossa presença nessa manifestação

artística. Lentamente, nós, deuses, passamos de verdade última ao posto de simples

alegoria! O Renascimento colocou, definitivamente, um ponto final na crença dos

humanos sobre nossa influência sobre eles. Até porque, nesse período, surgiram os

estudos científicos, que provavam teorias descabidas da criação do homem e da

origem do universo; tanto que os cientistas conseguiram desviar a atenção dos mortais

para o que parece ser mais real e mais possível do que nós; aconteceu, daí, a

14

Pois para os humanos dessa época toda manifestação de êxtase era reflexo de sociedade primitiva, e aqui uso a palavra primitiva da maneira pejorativa como os humanos ainda usam.

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desmistificação total da origem dos fenômenos e, agora, a partir dos estudos científicos

dessa época, o mundo passou a existir graças a uma explosão no universo! Acredita?

Nessa época eu lhe confesso que tive vontade de mandar-lhes uma bela de uma

explosão de verdade e acabar com tudo o que nós criamos para eles em um só

segundo! Daí, sim, eles veriam que tipo de explosão poderia destruir e recriar tudo!

Lembro-me que foi Zeus, nosso pai, quem me segurou para que eu não acabasse com

tudo em um só golpe! Renascimento? Renascimento de quê? De quem?

Bem, as questões que envolvem o Renascimento são inúmeras e poderíamos

discuti-las por horas a fio aqui, mas apenas destaco que, para a dança espetacular

ocidental, o Renascimento foi importante (nada é de todo ruim), pois trouxe as primeiras

manifestações de profissionalismo nessa área e institucionalizou a técnica como

caminho legítimo, o que foi péssimo para nós, deuses, que a dominavam totalmente até

então, mas ótimo para aqueles humanos que escolheram a dança como profissão,

como nos mostra Bourcier:

Também, pela primeira vez, surge o profissionalismo, com dançarinos profissionais e mestres de dança. É um fato importante: até então, a dança era relativamente livre; a partir deste momento, torna-se consciência das possibilidades de expressão estética do corpo humano e da utilidade das regras para explorá-lo. Além disso, o profissionalismo caminha, sem dúvida, no sentido de uma elevação do nível técnico. (BOURCIER, 2001, p.64)

Dionísio, eu já sei que você pensa que profissionalizar a dança tira um pouco

da expressão natural que ela apresenta, em especial no que tange às relações com o

sagrado, tirando-lhe a essência da “mania”, do transe e das possibilidades de canal de

comunicação conosco. Mas sei, também, que você concorda que muitos dos humanos

só sabem e só amam fazer dança e, então, acredito que devemos sempre apoiar suas

buscas nos caminhos que os conduzem a seus sustentos de maneira satisfatória e isso

eu sempre defendi em relação a todas as profissões!

Observe também que Bourcier defende que, a partir do Renascimento, os

dançarinos começaram a entender as possibilidades de expressão de seus corpos, e

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isso é excelente; afinal, esse conhecimento sensível é de grande valia para os homens

tentarem entender o quanto Sócrates estava enganado ao destituir o corpo da

totalidade humana. O que eu disse para ele no Oráculo de Delfos foi “Conhece-te a ti

mesmo”, e, então, dominarás o restante! Conhece tudo de ti mesmo, inclusive e

principalmente seu corpo, e, se o Renascimento proporcionou isso, não pode ser de

todo ruim!

Porém, se formos analisar o Renascimento a partir de nossa presença na

dança espetacular, posso lhe dizer em alto e bom tom que o Renascimento não fez

renascer –considerando o sentido literal da palavra– coisa nenhuma! Como podemos

aceitar danças nas quais somos simbolizados por homens fantasiados de deuses como

se fosse um carnaval? Cujos figurinos tinham excesso de vestimentas da moda de

então, que era de um mau gosto sem medidas? Em que os dançarinos mal tentavam

nos contactar de verdade? E como podemos estar presentes em danças que não

entendem nossa presença sagrada? Que cortam a naturalidade do corpo humano,

introduzindo técnicas de hierarquia social para o movimento?

Ora, ora, fico indignado quando me lembro disso! Se os humanos queriam

retomar a cultura da Idade Antiga, deveriam rever os caminhos que os gregos e os

romanos usavam para chegar até nós, com as danças ritualizadas, com as Tragédias,

com os ditirambos e até com suas técnicas, que eram rígidas, mas nos alcançavam!

Mas não se fantasiando e impondo regras absurdas à manifestação sagrada que é a

dança!

Eu me lembro, perfeitamente, de que, em uma de minhas bisbilhotadas em um

Balé de Corte15, pude ver o rei da França Carlos IX vestido de Netuno e seus cortesãos

representando o Paraíso e o Inferno (anjos e diabos). Em um determinado momento,

apareciam outros cortesãos fantasiados de Cupido e de Mercúrio, rodeados de Ninfas e

todos eles estavam dentro de um cenário pitoresco, com um maquinário engenhoso e

fantasias deslumbrantemente exageradas! Se não me engano, isso aconteceu em um

casamento real, na França, em 1572, e o casamento em questão era o de Henrique de

15

Balé de Corte era o estilo de dança que se dançava nas cortes da Itália e da França no século XV, sabe do que falo, não, Dionísio?

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Navarra e Margarida de Valois, e esse Balé de Corte aconteceu no palácio do Louvre.

Conseguiu se lembrar? Bourcier relata esse balé de corte em seu livro (2001, p.82). Na

verdade, Dionísio, eu duvido que você tenha perdido seu tempo com essas danças;

afinal, seu culto continuava a acontecer nas florestas e em outros lugares do mundo

fora da Europa e, com toda a certeza, o que acontecia nos palácios europeus não lhe

interessava. Porém, peço sua atenção para esse episódio que pude presenciar graças

a minha curiosidade. Você consegue imaginar tal cena? Chega quase a ser uma ofensa

direta a nós, deuses, não acha? Pense se Netuno descobre que fizeram isso com sua

imagem. Ele ficaria furioso e nem imagino o que ele poderia fazer com as águas dos

mares!

Observe atentamente o que quero dizer com incoerência entre forma e

conteúdo, pois eles representavam a mitologia –algo que sabemos ser sagrado e que

possui uma potencia infinita de conexões conosco– de maneira superficial e

carnavalesca, sem sequer saber do que estavam falando. E o corpo mitológico? Nada!

Nem um sinal do canal de conexão com o sagrado que o corpo mitológico poderia ter.

Eles poderiam ter feito essa encenação de tantas maneiras diferentes, mas nunca

superficialmente como fizeram! Era tudo uma grande diversão, como se fôssemos

historinha de Carochinha! Que absurdo!

Sorte sua que seus seguidores, Dionísio, preservaram seus cultos longe dos

castelos e das igrejas, porque, no que diz respeito à dança espetacular, considero que

a tendência do corpo mitológico foi de desaparecer! Aliás, siga comigo na História da

Dança e observe que a consequência direta do Balé de Corte foi a Dança Clássica, que

também usou incansavelmente a temática mitológica, mas que falhou em relação à

forma e ao conteúdo quando vestia homens e mulheres de ninfas ou de deuses e

heróis, usando roupas e máscaras da moda do momento, sem nenhuma conexão

conosco de fato, realizando passos técnicos, sublimes, leves, que nunca

representariam nossa força e poder! Nisso você concorda comigo, não, caro irmão?

Onde já se viu? Deuses magros, leves, doces? Somos fortes, grandes, irados! Temos

potência em nossos atos e não saímos por aí dando “fouettés”! Ora, ora, se querem

copiar nossos movimentos, que busquem em suas vísceras, não em suas pernas! E

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essa Dança Clássica, realizada por corpos esguios e leves, reinou absoluta no mundo

dos espetáculos de dança por mais de duzentos anos!

Volto a dizer, Dionísio, assim como disse em relação ao Renascimento, que

entendo, percebo e legitimo a Dança Clássica como uma importante linguagem de

dança, principalmente no que diz respeito ao profissionalismo e à técnica. Porém, onde

nós, deuses, estávamos nisso tudo? E, se não estávamos, não havia sabedoria! Pronto!

Sou claro e literal nesse ponto! Sem a nossa presença sincera, verdadeira, visceral e

marcante, não há sabedoria na arte! Somos o eixo do mundo e da dança também!

Bem, caro Dionísio, aqui eu devo confessar-lhe algo que pode soar-lhe muito

mal, mas que não posso esconder-lhe mais! Na época em que o Balé Romântico

ganhou terreno, e estamos falando de meados de 1830, quando você decidiu se retirar

da dança cênica praticada na Europa para ficar apenas com seus seguidores nas

florestas e em outros continentes como a África, a América e o Oriente –com toda

razão, afinal, o que você faria lá se não o cultuavam mais?–, eu também abandonei a

dança. Talvez por isso a dança clássica tenha reinado por tanto tempo.

Às vezes, sinto-me culpado por isso e, principalmente, por não ter tentado

convencê-lo a ficar mais próximo dos dançarinos cênicos dessa época, mas estava

insustentável continuar por lá. Era racionalismo puro, o tempo todo o saber intelectual

acima do saber sensível, fé completamente confusa; eles se perderam e não havia mais

o que fazer. Desde então, prefiro me dedicar somente à música, pois me relaciono

melhor com essa linguagem. Porém, deixo claro que também não vejo sagacidade na

música atual, pois são poucos os artistas que se lembram do poder sublime e sagrado

que ela tem, transformando-a em qualquer tipo de coisa, como fazem alguns humanos

que dizem fazer música mundo afora16.

Devo, então, parar minhas considerações por aqui com a triste sensação de

não ter encontrado a verdade em sua afirmação quanto à sagacidade da arte. Ainda

não consegui perceber artistas –em especial, dançarinos– que mantiveram o corpo

16

Aliás, não pretendo lhe dar exemplos para que você não fique tentado a ouvir certas coisas que chamam de música!

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mitológico como lugar central do acontecimento artístico e, por isso, entristeço-me ao

perceber que minhas reflexões possam ter sido em vão.

Peço-lhe, caro irmão Dionísio, que leia atentamente minhas palavras e que

relembre os acontecimentos aqui citados, reconsiderando sua posição frente à

condenação de Prometeu, percebendo que não pode existir arte sábia se não existe

nela nossa presença de maneira profunda e se o que eles chamam de mito sagrado é

abandonado, então também não há verdade alguma.

Despeço-me usando, mais uma vez, palavras humanas, que, muitas vezes,

quase interpretam o que pensamos ou sentimos e, portanto, chega muito perto de

nossa verdade. Uso as palavras de Morais (1988, p.80) que escreveu que “o mito não

nos coloca o problema da erudição, mas o da sabedoria e da abertura”, e espero,

sinceramente, que mais humanos percebam e sintam essa abertura em seus corpos e

em seus corações o quanto antes.

Com respeito.

Seu irmão, Apolo

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1.2 - A resposta de Dionísio para Apolo: a presença da mitologia, da Dança

Moderna à Dança Contemporânea

Apolo,

nem sei lhe dizer quantos séculos faz que eu não me sento para ler ou escrever

uma carta. Você sabe muito bem que eu não uso meu tempo com as racionalidades

dos deuses e nem com as racionalidades científicas humanas e muito menos tentando

entender a arte, que me é tão natural. Considero que tentar entender os caminhos da

arte é como tentar entender o mecanismo de andar ou falar ou comer. A arte é natural e

para mim não tem explicação! Ela simplesmente acontece.

Confesso-lhe que cheguei a pensar que não saberia mais nem escrever ou que,

se o soubesse ainda, sairiam de mim frases e palavras confusas, mas estou me

surpreendendo com essa façanha que pode ser a escrita e, por isso, resolvi aventurar-

me em uma resposta à sua carta, a qual me pareceu um tanto quanto

angustiada...Também esclareço que segui suas orientações e dediquei algum tempo às

leituras de autores humanos e foi uma experiência interessante perceber o quanto eles

racionalizam absolutamente tudo.

Bem, recebi suas palavras ao final do período do carnaval humano, após longos

dias e noites de festas e cultos em minha homenagem e, depois de tanto êxtase, a

primeira impressão que tive de sua carta é de que era uma tolice. Por Zeus, Apolo!

Quanta racionalidade em cima de algo que é puramente sensível!

Por fim, eu acabei guardando sua carta na gaveta e lá ela ficou por algum

tempo até que, em um momento de vinho e descanso, eu resolvi relê-la para tentar

entendê-la. A primeira coisa que veio à minha cabeça após a segunda leitura foi:

coitado de meu irmão, sua racionalidade vai matá-lo! E a segunda coisa foi: preciso

ajudá-lo! Aliás, sinto muito a sua falta e, depois de ler suas palavras, cheguei à

conclusão de que a humanidade está precisando de nossa união cada vez mais, pois

falta Apolo em alguns humanos, sobra Dionísio em outros e vice-versa.

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Então, eu estou aqui exercitando minha racionalidade e tentando lhe responder

aos questionamentos sobre a condenação de Prometeu e a sabedoria que a arte pode

representar para mim. Peço-lhe desculpas por não saber manter um raciocínio lógico

como o seu, meu irmão, pois sou, antes de tudo, natureza e vísceras e seu logos me

escapa na maioria das vezes que busco usá-lo. Mas prometo um esforço sincero para

tentar ser claro e objetivo como você foi.

Porém, peço-lhe um favor: antes de ler minhas palavras, levante-se desse trono

e busque um lugar onde seu corpo se sinta confortável e livre. Tire de suas costas o

peso da divindade, permita-se ser só corpo por alguns instantes e lembre-se de que os

humanos foram concebidos à nossa imagem e semelhança, como você mesmo

escreveu em sua carta, e que, portanto, estamos falando de corpos que são da mesma

natureza que o nosso corpo. Além disso, tente ler esta carta ouvindo uma de suas

músicas prediletas, e, se sentir vontade, pare a leitura e vá dançar. Acho que isso

facilitará a compreensão do que vou lhe escrever.

Inicio minhas considerações sobre sua carta concordando com parte do que

você apresenta em sua análise sobre a dança e a mitologia. Considero interessante

essa “tal mitologia” e o próprio nome já me parece uma alegoria e penso que o nome

em si já começa nos tirando toda a credibilidade. Porém, a definição que você

apresentou é bem clara e entendi o que os humanos pensam sobre nós e, mais do que

isso, entendi o que você considera sabedoria na arte.

Apolo, eu tenho que concordar que, se os humanos não usam todos os seus

dons e dotes para nos louvar, então não são sábios e, consequentemente, se não nos

alcançam com sua arte, a mesma não pode ser uma faceta da sabedoria. Claro que

não! Porém, devo lembrar-lhe de que o conceito de arte mudou muito desde que nosso

pai Zeus criou nossas irmãs –como você bem lembrou em sua carta– para que

comemorassem a vitória sobre os Titãs e essa mudança de conceitos é uma das

maravilhas humanas! Eles podem transformar as coisas que lhes damos no que eles

quiserem! Acho que isso vai além do livre arbítrio, é pura criatividade, outro dom que

demos com tanto carinho a eles e que, muitas vezes, eles não sabem usar! Mas você já

pensou que graça teria se os humanos fossem apenas brinquedos obedientes o tempo

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todo? Toda a emoção da existência deles acabaria e nós não os teríamos mais para

nos distrair. Eu gosto de emoção, gosto do novo, gosto do inusitado e, por isso, gosto

tanto de estar entre os humanos e vou adorar embarcar nessa discussão para mostrar-

lhe o quanto divina e, consequentemente, sábia pode ser a arte.

Já me adianto, dizendo-lhe que vamos discutir sobre a linguagem artística

primordial para mim, pois, do corpo em movimento é que surgem os rituais dedicados a

mim, e é exatamente aí que o teatro e a dança iniciam-se como manifestações

artísticas; mas, sobre isso, você entendeu muito bem.

Aliás, Apolo, você se colocou muito bem em suas análises sobre a dança

primitiva e a dança na Idade Antiga, e, em especial, tocou meu coração quando falou

das Tragédias Gregas e de nossa união tão fortuita. Senti saudades daquela época em

que ficávamos no topo do teatro grego lotado, revendo nossas aventuras. Por isso,

também tenho que concordar quando você diz que Sócrates iniciou a desmitificação e

nos jogou de escanteio, mas acrescento dizendo que não foi só ele, mas que toda a

ruptura que aconteceu até hoje entre nós e os humanos é o resultado de longos

processos de transformação de pensamento e que nós, deuses, somos culpados por

parte dessa desmitificação quando não tomamos atitudes drásticas para contornar a

situação. Afinal, temos todo o poder sobre os humanos e, se nunca transformamos

seus pensamentos em relação a nós quando a desmitificação se iniciou, também não

podemos, agora, reclamar de nada! Concorda?

Outra importante consideração que quero fazer a respeito de suas colocações é

sobre o Renascimento e suas ramificações e consequências artísticas, meu irmão.

Você analisou tudo sob o ponto de vista da dança elitizada, daquela que se tornou a

dança espetacular ocidental, e até citou que, fora dos castelos, a dança ritualística

continuava; porém, esqueceu-se, mais uma vez, de que todos os fenômenos humanos

são processos de miscigenação e contaminação das coisas entre si. Quero dizer com

isso que a dança elitizada e espetacular pode até ter tido um tempinho de

“esquecimento mitológico” (observe que também crio teorias e conceitos!), mas que, se

não fossem as danças praticadas nas florestas e nos rituais dessa época, tudo

continuaria igual à Dança de Corte e à Dança Clássica até a atualidade. Toda a dança,

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espetacular ou não, foi profundamente afetada pelas danças que continuaram

acontecendo fora do castelo e isso vou lhe provar ao longo de meu texto.

Vou explicar melhor o que penso. Você parou de acompanhar a dança no

período do surgimento da Dança Clássica (e, embora você pense que eu também fui

embora da Europa nessa época, você está enganado, pois onde quer que o corpo se

movimente, ou a cena instaure-se, sempre estarei presente!) e saiba que 200 anos se

passaram em um sopro; mas foi um dos sopros mais ricos e potentes que já presenciei.

Por isso, peço-lhe permissão para contar-lhe o que se passou com a dança depois que

você se ausentou e provar-lhe o quão sábia a arte pode ser. Também farei, assim como

você fez, um salto da Dança Clássica para o que os humanos batizaram de Dança

Moderna –período da História da Dança que se iniciou por volta de nas últimas décadas

do século XIX e se estendeu até meados de 1950–, porque acredito que esse foi um

momento essencial que, infelizmente, você perdeu e que poderia ter iniciado uma

grande mudança em relação às suas conclusões sobre a sagacidade da dança e a

condenação de Prometeu.

Antes de aprofundar-me nas questões relativas à mitologia na Dança Moderna,

gostaria de dizer-lhe que, em 1912, no período da dança chamado de Neoclássico, um

dançarino buscou na mitologia a temática para sua coreografia dando indícios do que

viria pela frente, com a Dança Moderna. Esse bailarino era um russo que se chamava

Vaslav Nijisnky (1980-1950) e a coreografia em questão foi apresentada em 1912 e se

chamava “L´aprés–midi d´un faune” 17 –e ela me levou de novo aos tempos áureos da

civilização helênica. Peço sua atenção para essa coreografia, bem como para a

coreografia criada pelo mesmo dançarino no ano seguinte, 1913, chamada “Le sacre du

printemps”18. Não vou me aprofundar nesse ponto que ressalto, mas gostaria que você

tentasse assisti-las na íntegra para verificar que, desde então, a dança já mostrava que

estava voltando-se às suas origens mitológicas e que o corpo mitológico, como você

muito bem chamou o corpo que alcança o sagrado mitológico no momento da dança,

estava pulsando novamente ali. Esse dançarino (que alguns humanos chamavam de

17

Trad. A tarde de um fauno. 18

Trad. A sagração da Primavera.

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“deus da dança”. Pasme com a blasfêmia! Ele era bom mesmo, mas daí a me

destronar...) tinha uma necessidade profunda de dançar o que ele sentia em relação às

coisas e, ao usar a mitologia como temática dessas coreografias, chegou bem perto de

nos alcançar, como faziam os homens primitivos e antigos, porém, por um outro viés, o

viés cênico, e ele também não usou deuses em suas coreografias, e, sim, outros seres

mitológicos. Mas será que os outros seres que criamos não são sagrados? Não seria o

próprio homem sagrado? Você já me deu a resposta quando disse que o corpo é

sagrado por ser canal de comunicação entre humanos e deuses e por ser nossa

criação.

Então, gostaria de acrescentar à nossa discussão um ponto de vista expandido

sobre o conceito de sagrado que você defende como uma experiência individual do ser

humano em relação a nós e a nossos feitos –que pode se tornar coletiva quando um

grupo de pessoas ou sociedade também a adota. Você aponta um caminho para isso

em sua carta, quando diz que o sagrado mitológico também não é imutável e que

considera como sagrado tudo aquilo que se refere a nós, deuses. Assim, prefiro definir

sagrado como experiências que conduzem os seres humanos a nós, os deuses.

A partir desse conceito expandido de sagrado, eu entendo que a experiência

corporal sagrada, a qual você usou para definir o mito, ganha maior dimensão com a

dança, pois ela estaria potencializando a experiência sagrada desse corpo.

Assim, partindo dessa premissa, podemos dizer que Nijinsky iniciou um

processo de busca do sagrado em seu trabalho na dança e apontou um possível corpo

mitológico na cena.

Observe que em “L´aprés–midi d´um faune”, Nijinsky inicia um pequeno

rompimento com a rigidez da mentalidade e da técnica da Dança Clássica, ao

representar um fauno (ser mitológico) que vê um grupo de ninfas dançando e começa a

dançar com um lenço que elas deixam cair ao irem embora. Para realizar sua dança,

ele buscou em seu corpo as sensações de ser um fauno, deixando-as tomar forma de

movimento, o que era novidade da dança espetacular até então. Ele criou movimentos

próprios do fauno –segundo sua interpretação– e, de tanto se entregar

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psicologicamente e emocionalmente à sua coreografia, ele até simulou um orgasmo

com o lenço da ninfa em uma de suas apresentações.

Para nós, deuses, esse orgasmo não foi nada de anormal, mas para os

humanos foi um grande escândalo, tamanha era a distância que eles estavam de seus

instintos naturais. Percebemos que esse bailarino, ainda, usou muito da técnica

clássica predominante na época –afinal, ele foi formado dentro dessa escola de dança–

; porém, podemos perceber um apontamento claro de que a dança estava tomando,

enfim, novos rumos.

Já em “Le sacre du printemps”, o dançarino recriou no palco a Sagração da

Primavera, um dos rituais dedicados a mim, Apolo! Nas primeiras apresentações, o

público vaiou e chegou a se retirar do teatro, porque a música e os movimentos o

incomodavam. Sabe o motivo desse incômodo, meu caro irmão? Porque era tudo muito

natural, porque a “mania” estava quase em cena, quase... Mas foi por um triz! A “mania”

chegou novamente pertinho da dança cênica com Nijinky e, claro, a mesma elite que a

aboliu não gostou nada de sua “quase volta à arte”.

A partir daí, alguma coisa de especial aconteceu com os artistas da dança e

garanto que você gostaria de ter visto as mudanças iniciadas desde então. Claro, que,

devo lembrar-lhe sempre, não foram insigths isolados e tampouco realizados por um

único artista ou estudioso da dança; e que, desde o final do século XIX, já existiam

aqueles artistas que buscavam novos cominhos para a cena, como foi o caso do

francês François Delsarte (1811-1871). Esse último chama minha atenção quando

sugere que o corpo deve trabalhar na cena de forma a integrar o gesto, a voz e a

emoção.

Não é engraçado, Apolo? Alguém precisa lançar uma cartilha para explicar a

coisa que deveria ser a mais natural do mundo? Não é estranho que esse estudioso

precisou explicar o que os homens primitivos já sabiam? Ou seja, que o corpo, a mente

e o espírito são a mesma coisa? Que são pontos de vista sobre um mesmo todo? Pois

bem, ele o fez e foi muito bom para os humanos, pois muitos artistas foram seus alunos

e puderam passar isso adiante e transformar a cena da época definitivamente.

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Antes de seguir com minhas observações, eu lhe peço, Apolo, que faça uma

pausa em sua leitura e vá até o topo de uma montanha onde o sol e o vento estejam

dividindo espaço. Agora, sentindo o vento e o calor do sol em seu corpo, movimente-se

aleatoriamente. Simples e incrível, não acha? Pois foi exatamente a proposta inicial de

uma bailarina considerada por muitos a grande criadora da Dança Moderna: Isadora

Duncan (1877-1927).

Posso arriscar a lhe dizer, Apolo, que a sensação que tenho ao lembrar-me

dessa dançarina e de seus movimentos são muito parecidas com aquelas que você

demonstrou em sua carta ao relembrar as Tragédias Gregas, pois essa dançarina

conseguiu chegar bem perto de nós, deuses, a partir de seus movimentos genuínos e

naturais. Uma de suas premissas era o movimento natural, espontâneo, seguindo os

instintos naturais humanos. Claro que ela frequentou muitas aulas de técnica clássica,

como faziam todas as meninas de sua época que queriam dançar, mas a diferença

entre ela e as outras dançarinas de seu tempo é que, além de muita coragem, ela tinha

uma relação profunda com seus instintos naturais e entendia o movimento dançado

como parte da natureza humana. Eu estava presente no dia em que ela entrou no

escritório do empresário de teatro Augustin Daly e anunciou: “Descobri a dança.

Descobri a arte que há 200 anos tem andado perdida!” (DUNCAN, 1987 apud

ANDERSON, p.89).

O que pensa sobre isso, Apolo? Pois ela fez justamente o que você queria que

os dançarinos fizessem! Redescobriu a dança genuína, a dança natural, enfim, a dança

mitológica no sentido de relação corpo e sagrado. Se eu bem entendi sua teoria sobre o

corpo mitológico, posso dizer-lhe que Isadora Duncan conseguiu atingi-lo:

A grande clivagem na história da dança ocorreu no ano de 1900. Logicamente, em Paris, há muito ancoradouro para artistas de vanguarda. Paradoxalmente, foi conseguida por uma jovem americana com escassa aprendizagem convencional. O seu nome é Isadora Duncan e a sua teoria da dança não se referia à dança clássica, mas antes, aos movimentos naturais do corpo, tendo a arte da Grécia antiga como fonte de inspiração. Vestida somente com uma túnica pouco tingida, Duncan proporcionava ao seu público danças de livre expressão que sublinhavam respostas emocionais à música sinfônica. (ANDERSON, 1987, p.89)

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Tenho duas observações a fazer neste momento, meu irmão Apolo. Primeiro,

quero agradecer-lhe por ter me proporcionado o conhecimento científico da arte. Eu

nunca sequer imaginei que existissem seres humanos que pudessem escrever sobre a

arte e, por meio de sua carta, tive esse conhecimento. Confesso-lhe que foi estranho ler

alguns textos escritos por eles, pelo mesmo motivo que lhe afirmei ao iniciar minha

carta: racionalizar a arte é estranho demais! Porém, estou me acostumando com a ideia

e até considerando escrever um livro e enviar para os humanos para desmentir e

quebrar a maioria das bobagens que dizem sobre mim! Não seria ótimo? Quem sabe eu

até envie um humano para representar-me e escrever esse livro? Por que não? Não

enviamos Jesus? Buda? E tantos outros para esclarecer as coisas? Porque não um

filho legítimo de Dionísio?

A segunda coisa que quero dizer-lhe é que, nos livros de História da Dança há

muito pouco sobre mim; normalmente, os autores só me citam nas danças primitivas e

da Idade Antiga e, por isso, eu pude entender algumas de suas dúvidas como

universais, Apolo. Você, os deuses e os humanos acham que minha influência sobre os

dançarinos acabou na Idade Antiga, o que não é verdade e vou mostrar-lhe isso.

Veja Isadora Duncan, observe seu trabalho e me diga se eu não estava lá Leia

o trecho que citei acima: “danças de livre expressão que sublinhavam respostas

emocionais à música”. O que é isso, senão minha manifestação pura e crua na dança?

Ela dançou o vento, a chuva, o mar e dançou mitos, Apolo! Sim, dançou inclusive uma

versão de “Ifigênia” (uma de nossas Tragédias Gregas) em 1908 e, com sua inovação,

transformou definitivamente a dança cênica, abrindo caminhos e portas para que outros

dançarinos se libertassem das regras da Dança Clássica e criassem outras

possibilidades de expressão a partir da dança.

Isadora escreveu um livro de suas memórias (acho interessante o quanto de

minha vaidade os artistas acabaram herdando!) e veja o trecho que selecionei para

mostrar o quanto sua dança era dionisíaca:

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Passei longos dias e longas noites no estúdio, tentando descobrir essa dança que poderia ser a expressão divina do espírito humano, através do movimento corporal. Era capaz de ficar imóvel durante horas, de mãos cruzadas no peito, cobrindo o plexo solar. Muitas vezes minha mãe assustava-se por me ver completamente imóvel, durante tanto tempo, como se estivesse em transe (...). Descobri que a fonte da expressão espiritual dimana do corpo, enchendo-o de uma luz vibrante – a força centrífuga que reflete a visão do espírito. (DUNCAN, apud ANDERSON, 1987, p.157)

Caro Apolo, peço que você releve a vaidade de Duncan quando diz que

descobriu a fonte de expressão espiritual no corpo –pois sabemos que ela não

descobriu nada, no máximo, redescobriu; afinal, você nos mostrou muito bem em sua

carta que o homem primitivo sempre soube disso e o homem moderno fez questão de

esquecê-lo–, mas considere com força a importância dessas colocações depois de 200

anos de dança clássica. Ela nos fala em “transe”, em “espírito”, em “expressão vibrante”

e não escutávamos a associação dessas palavras com a dança espetacular ocidental

desde que a Dança de Corte expulsou os meus rituais da sociedade elitizada, não é?

Pois bem, Isadora Duncan trouxe os significados dessas palavras e o movimento

dionisíaco de volta à elite da arte. Isadora Duncan redimensionou a mitologia genuína

como ingrediente principal da dança e, com isso, reavivou a possibilidade de um

trabalho com um corpo mitológico na cena.

Poderíamos citar inúmeros dançarinos que foram, de alguma forma,

influenciados por Duncan, como, por exemplo, Doris Humphey (1895-1958) e Ruth

Saint-Denis (1878-1968), cujo trabalho com a temática mitológica foi amplamente

divulgado. Embora a concepção estética de Ruth Saint-Denis não trabalhasse o corpo

mitológico como você o define, podemos dizer que essa dançarina buscava nos mitos a

verdade de sua dança, o que pode ser defendido como uma boa tentativa de levar

nossa presença para a cena, não acha?

Porém, Apolo, não vou me dedicar muito a lhe contar detalhes sobre esses

dançarinos influenciados por Isadora Duncan –mesmo considerando-os de extrema

importância para nosso resgate na dança–, pois pretendo contar-lhe especialmente

sobre outra dançarina da Dança Moderna que trouxe a mitologia à tona de diversas

maneiras; falo agora de Martha Graham (1908-1972).

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Permita-me elogiá-la por um instante e sei que você compreende meu

deslumbramento perante as maravilhas do corpo que dança: ah, Martha Graham

dançando! Apolo, como eu nunca havia pensado em criar alguém como ela? União

pura entre emoção e técnica. Martha Graham mostrou ao mundo dos mortais– e a mim

também– que pode existir técnica para gerar emoção no corpo que dança e no corpo

que assiste à dança. Em meu ponto de vista, esse foi seu maior legado: a união da

técnica e da emoção na dança cênica.

Essa dançarina foi profundamente inspirada nas Tragédias Gregas, porém, ela

as trouxe a seu tempo a partir da técnica que criou. Podemos verificar a tentativa de

resgatar o mito logo em sua primeira criação, “Primitive Mysteries” (1931), cujo tema era

a tradução de ritos católicos pelos índios (BOURCIER, 2001, p.275). A técnica de

Graham foi se firmando em torno de um trabalho concentrado no tronco do dançarino,

de onde ela dizia extrair as emoções humanas. Então, a partir de movimentos de

contração e relaxamento do corpo, Graham criou inúmeros trabalhos, cuja temática

eram a Tragédia Grega e os mitos: em 1944, criou Appalachian Spring , Herodiate,

Cave of the heart (“Medeia ou Amor-Loucura”); em 1947, ela cria Errand into the maze

(“Teseu e o minotauro ou O homem perdido no labirinto de seu inconsciente”) e Night

Journey (a partir do tema de Édipo Rei). Esses são somente alguns exemplos dentre

tantos trabalhos que Martha Graham criou baseados em mitologias e que seguiu

criando até o fim de sua vida artística.

Peço, agora, sua atenção para uma fala de Graham para que eu possa seguir

em sua defesa no que diz respeito ao trabalho com o corpo mitológico:

A origem da dança está no rito, esta aspiração de todos os tempos à imortalidade. No início, o rito nasceu do desejo de entrar em contato com os seres que poderiam conceder a imortalidade ao homem. Hoje, praticamos outra espécie de rito...pois procuramos uma imortalidade diferente: a grandeza que pode ser encontrada no homem” (GRAHAM apud BOURCIER, 2001, p.277)

Creio que tenhamos que esclarecer essa fala, pois a primeira análise que

fazemos dela e de toda a postura de Graham perante a mitologia pode parecer

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contrária à minha defesa de que ela reiniciou a recuperação do corpo mitológico de

forma peculiar.

Nos textos dedicados a Martha Graham, os autores a apresentam como uma

pessoa racional, que trabalhava pela cultura americana e que defendia a modernidade

no pensamento da sociedade e da arte. Claro que essas são características que a

marcaram, sem sombra de dúvida, pois Martha Graham simbolizava a modernidade

como nenhum outro artista da dança da época. Porém, é importante entendermos sua

técnica para entendermos seu pensamento. A dançarina priorizava em seus trabalhos o

movimento ligado à emoção e, para ela, a força do gesto acontecia em função da força

da emoção, não separando nunca a técnica das sensações e emoções corporais,

criando uma linguagem corporal original.

Além disso, Graham dedicava-se às pesquisas das danças que ela chamava de

“originais” e, segundo Bourcier (2001, p.279), ela voltou a descobrir gestos rituais –que

provavelmente reinventou, mostrando a riqueza de sua intuição, como, por exemplo, a

dança com os joelhos flexionados, típicas das culturas mediterrâneas antigas.

O que você pensa sobre isso, Apolo? Em minha compreensão, ela estava

buscando o corpo mitológico e traçando possíveis caminhos para a retomada da

conexão com o corpo sagrado de seus ancestrais. Em meu ponto de vista, Martha

Graham foi a primeira a sistematizar a possibilidade de uma técnica específica para

alcançar o corpo mitológico –que alcança o sagrado mitológico na cena– a partir das

sensações e emoções corporais dos dançarinos, não acha?

Ela descobriu no corpo possíveis caminhos para chegar até a emoção, mais

precisamente na contração e no relaxamento da musculatura corporal, e posso lhe

dizer que essa teoria está completamente ligada ao movimento de contração e

expansão que demos ao universo quando o criamos. Martha Graham deu ao corpo dos

dançarinos a possibilidade de retomar sua essência de ligação com o universo a partir

de uma técnica especifica de trabalho, e isso foi um grande passo para o corpo

mitológico, pois, a partir dali, os dançarinos puderam sistematizar trabalhos que os

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conduzem ao sagrado, ou seja, experiências que conduzem os humanos a nós ou a

nossos feitos.

Sigo lembrando-lhe, mais uma vez, que nenhum fenômeno é resultado de um

único artista, pois, como os humanos dizem, “uma andorinha só não faz verão”, e eu

digo que um dançarino também não transforma a dança e não posso passar pela

Dança Moderna sem apresentar-lhe outra dançarina, desta vez uma alemã, que trouxe

a temática do mito à cena dentro de um movimento artístico chamado de

Expressionismo Alemão19. Seu nome era Mary Wigman (1886-1973) e está aqui um

belo exemplar de sabedoria na dança, pois o corpo mitológico parece ter sido a base

dos trabalhos cênicos dessa dançarina.

Vou iniciar descrevendo-lhe uma coreografia criada por ela. Acompanhe

comigo, Apolo: uma mulher, sentada no centro de um palco, com roupas esfarrapadas,

cabelos desarranjados e uma máscara branca, ao som de uma espécie de percussão

ritmada, move-se de maneira grotesca, simulando ser uma feiticeira. Podemos dizer

que essa é a sua coreografia mais conhecida e que a projetou internacionalmente no

cenário da Dança Moderna. A coreografia em questão foi criada em 1913, intitulada

Hexentanz (“A dança da feiticeira”), a qual era realmente incrível e, se posso dar um

exemplo de alcance real do corpo mitológico na cena por um dançarino da Dança

Moderna, dou-lhe esse, Apolo.

Wigman colocou nessa coreografia toda a sua alma, atingiu com seu corpo

todas as bruxas e feiticeiras que permeiam o imaginário humano e trouxe para a cena

todos as característica de um corpo que é potente e que interpreta o mito na dança.

Você vai se maravilhar com isso, Apolo, assim como a maioria dos humanos ainda se

maravilham ao vê-la dançando a feiticeira –que, mesmo não se tratando de deuses,

assim como lhe disse em relação a Nijinski, pode ser visto como uma conexão com algo

extremamente sagrado, uma experiência com o corpo que vivencia nossos feitos e os

seres mitológicos sobrenaturais.

19

Descobri que esse foi um movimento artístico que ocorreu na Alemanha no inicio do século XX.

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Porém, cabe alertar-lhe que esse não foi o único trabalho mitológico dessa

dançarina, embora seja o mais conhecido. Mary Wigman viveu em um período sombrio

da História humana, o nazismo alemão (1933-1945) e, por isso, seu corpo –sendo,

como todos os corpos humanos, a união de processos sociais, físicos e psicológicos–

construiu uma dança extremamente marcada pela revolta, pela morte e pelo desespero

dessa época. Ela apresentou em suas coreografias, uma visão trágica da existência

humana, o que, naturalmente, passa pela vida e pela morte –e, consequentemente, por

nós, deuses e mitos, que temos o controle sobre esses dois aspectos da realidade

humana.

Confesso-lhe, Apolo, que, mesmo quando a temática não era exatamente

mitológica, eu estava presente em seus processos criativos e em suas apresentações e

agora que você me apresentou a teoria do corpo mitológico, posso entender o motivo

de minha presença constante no trabalho de Wigman, afinal, ela chegava a nós a partir

de seu corpo e não do tema que usava. Não é sábio? Vamos, diga, Apolo! Creio estar

quase lhe convencendo sobre a sagacidade da arte e fazendo você repensar a triste

condenação de Prometeu.

Mary Wigman traduzia suas sensações perante a vida a partir de um

movimento genuinamente expressivo, sem deixar o adestramento corporal impor-se à

dança. E por isso ela é conhecida por ser o “dionísio germânico”, conforme nos explica

Bourcier:

Formar dançarino é, portanto, torná-lo consciente dos impulsos obscuros que estão dentro deles. Nada de sistemas preestabelecidos, menos ainda adestramento corporal. É preciso se pôr à escuta de si mesmo, onde se pode ouvir a repercussão do eco do mundo. Então os vislumbres de conhecimento que começam a brotar exprimem-se por esboços de gestos que contribuem para a conscientização das pulsões internas. Ao mesmo tempo, conhecer suas forças criadoras e adquirir os meios corporais para exprimi-las. Wigman quer abandonar a dança à impulsão mais profunda, à urbis dionisíaca. (BOUIRCIER, 2001, p.299)

E não foi, mesmo, uma de minhas maiores seguidoras dentro da chamada

Dança Moderna? Afinal, se escutar-se a si mesmo e ouvir o eco do mundo não for

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entregar-se aos meus principais preceitos, então já nem eu mesmo sei o que seria.

Claro que ela não se dava conta totalmente de minha presença, mas eu lhe garanto,

Apolo, que muitas vezes eu soprei em seus ouvidos e ela sentiu meu sopro de

inspiração. Em alguns momentos, Wigman, que também trabalhava o tronco como

principal centro de emoção (como Martha Graham), quase encontrava o transe ao

ondular seu tronco e sua bacia e direcionar-se ao chão e, depois, ser projetada ao

espaço (Bourcier, 2001, p.299).

Portinari (1989) atribui à dança de Mary Wigman o caráter mitológico quando

diz que sua dança não contava uma história, mas concentrava em símbolo ou mito

aquilo que estava nascendo de seu corpo e eu tenho o prazer de transcrever-lhe aqui

uma das falas dessa dançarina que prova o quanto ela entendia sua dança a partir do

corpo mitológico, mesmo sem nomeá-la assim:

E agora, façamos silêncio, atentemos um pouco! Pois queremos penetrar no reino da criatividade, no espaço em que formas ocultas e as desejosas se circunscrevem, se entretecem e aguardam, no crepúsculo dos seus sonhos, pela luz que há de vir para lhes dar cor e contorno e para iluminar o que se tornou uma “imagem”. Alguém que fosse suficientemente impudente para penetrar aqui com o archote ardente da curiosidade, pouco mais encontraria que um claustro de imagens indistintas e flutuantes. Porque este espaço não é passível de abordagem direta. Não responde a questões concretas. Ainda não tem conhecimento de estrutura, tão pouco de nomes ou de números. Não se quer submeter a nada, não atende a ordens, É o espaço da aptidão criativa; e é um santuário. Façamos, pois, silêncio e escutemos o pulsar do nosso coração, o sussurro e o murmúrio do nosso próprio sangue. Esse som, quer tornar-se canção! Mas as suas asas estão ainda presas, carecem da força que as faça abrir e falar nos seus voos em direção ao alto. Assim, submerge de novo, no espaço da profundidade crepuscular, bebe as suas próprias forças e retorna, pesado, com sonhos de imagens, ao reino em que pode ser compreendido e ceder forma. (WIGMAN, 1930 apud ANDERSON, p.175)

Em minha opinião, Apolo, Mary Wigman acaba de descrever-nos o que ela

entende por corpo mitológico e eu faço minhas as palavras dela, pois o corpo mitológico

só pode acontecer na cena se existir, por parte do artista, um mergulho profundo em si

mesmo, revelando, na forma de dança, os murmúrios dos corações e do sangue, enfim,

o som e as histórias do corpo humano.

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Aqui retomo uma das considerações de sua carta, Apolo, quanto você me

apresentou o mitólogo Joseph Campbell e acrescentou à sua teoria de corpo mitológico

a característica de ser biológico e de fazer parte da natureza do corpo soma e, assim, o

mito emergindo do corpo e, ao mesmo tempo, tomando forma no corpo. Então, lendo o

que Keleman (2001) constata no trabalho de Campbell, encontrei algo que me fez

pensar em Mary Wigman dançando:

O senso mítico é organizado pelo que acontece dentro de nós. A habilidade para falar dessas experiências primárias, de criar histórias a seu respeito, dá voz a nossa realidade interna. Como seres humanos, dramatizarmos nossas experiências interiores como imagens somáticas. Damos permanência às nossas experiências quando as corporificamos. (KELEMAN, 2001, p.29)

Isso não lhe remete ao que acabo de contar sobre Wigman, meu irmão Apolo?

Pois considero que mergulhar dentro de si e, dali, trazer à tona a mitologia que habita o

corpo humano, como Wigman fazia, é, justamente, corporificar as experiências de

nossa realidade mitológica interna e essa dançarina fazia isso intuitivamente,

somaticamente e dionisicamente.

Ah, Apolo, falaria dias a fio sobre Mary Wigman, mas vou parar por aqui para

não dar a entender que ela, Isadora Duncan ou Martha Graham foram as únicas que

conseguiram tornar o roubo do fogo da sabedoria algo válido aos humanos no que se

refere à arte da dança.

Peço-lhe licença para uma pausa. Meus neurônios estão fundindo e ainda

tenho muito a dizer para justificar-me a favor de Prometeu e dos humanos –

principalmente no que diz respeito ao que vem acontecendo no que os humanos

chamam de Dança Contemporânea– mas preciso urgente de uma boa dose de vinho,

de uma bela orgia e de muita dança! Volto assim que me recompor de tanta

racionalidade.

(Pausa de alguns anos)

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Meu querido e amado irmão Apolo.

Certamente, você deve estar aguardando ansioso por minha resposta à sua

carta, pois já faz muitos anos que você a escreveu e eu ainda não lhe enviei a resposta.

Mas você me conhece muito bem e sabe que não me atento às regras de etiqueta dos

deuses e não considero os anos como os humanos o fazem, pois me perco muito no

tempo de Cronos. Mas continuo a refletir sobre suas considerações e garanto-lhe que

minha opinião sobre o roubo do fogo da sabedoria, realizado por Prometeu, foi sim uma

boa ideia, em especial quando consideramos a arte.

Continuarei minhas considerações após ter participado de uma linda cerimônia

dedicada a mim na Índia: a festa de Shiva e, após tanto deleite sinto em minhas

vísceras a natureza do corpo sagrado! E devo lembrar-lhe que considero sagrado tudo

o que se refere às experiências dos humanos que os conduzem, de alguma maneira,

até nós.

Como não sou muito bom na escrita (pois eu preferia mil vezes uma orgia ou

uma dança para lhe explicar tudo isso), continuarei do ponto onde parei antes da pausa

que fiz. Vou falar-lhe da Dança Contemporânea e de como o corpo mitológico pode

aparecer nela, reforçando minha fala anterior de que você não deveria ter parado de

observar a dança no período do surgimento da Dança Clássica, pois perdeu o melhor

da festa.

Não sei ao certo, Apolo, quando a dança que chamam de Contemporânea

realmente começou. Com certeza, vários artistas foram realizando suas experiências

corporais –a partir das possibilidades abertas pelos dançarinos da Dança Moderna– até

chegarem nela. Mas posso lhe garantir que, em meados de 1950, muitos artistas

americanos sentiam a Dança Moderna com excesso de dramaticidade, muito pesada e

melodramática e, com o fim da II Guerra Mundial, esses dramas já não faziam tanto

sentido nem para os artistas, nem para o público que estava sendo introduzido a uma

nova realidade mundial. É claro que as guerras mudam não só o rumo histórico, mas, e

principalmente, a mentalidade e, consequentemente, o comportamento da sociedade

humana; assim, em novos tempos, é fácil entender que o corpo dos artistas também

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pedia novos caminhos de expressão. Alguns dizem que foi com um dançarino chamado

Merce Cunningham (1919-2009) que a dança começou a mudar; outros dizem que foi

com experimentos mais livres, como os de uma dançarina chamada Trisha Brown.

Porém, eu lhe digo que foi com todos eles juntos e com muitos outros, pois, em meu

ponto de vista, a dança espetacular ocidental iniciou o processo de transformação

definitiva quando inúmeros pensadores, dançarinos, filósofos, psicólogos e cientistas

apresentaram novas teorias sobre o mundo, sobre o corpo, sobre a mente e sobre a

arte.

Veja isso, Apolo, a dança e a arte se transformaram quando as pesquisas que

tanto criticamos se aprofundou. Não é interessante? Ainda bem que somos deuses

flexíveis e que podemos mudar nossa opinião sobre as coisas; afinal, se a arte pode

ganhar liberdade a partir de estudos científicos, então a ciência não é tão dura quanto

imaginávamos. Pense sobre isso.

Bem, quero lhe contar que, depois da II Guerra Mundial (que acabou em 1945),

não fazia mais sentido aos homens acreditar e vivenciar os antigos preceitos e

paradigmas mundiais. O ser humano entendeu sua condição frágil, mas

transformadora, no mundo e questionou sua existência e sua função nele; sem contar

que a guerra investiu (como toda guerra) em pesquisas científicas, o que trouxe à luz

teorias que inovaram o pensamento sobre a realidade dos fenômenos humanos.

Assim, Apolo, eu diria que a Dança Contemporânea iniciou-se com as

transformações de pensamento que o ser humano explorou após a II Guerra Mundial

em suas inúmeras descobertas.

Mas é claro que nós podemos dizer que Merce Cunningham foi um dos

primeiros a mostrá-la ao mundo. Porém, caro Apolo, não posso dizer-lhe que

Cunningham trabalhava a dança com a sabedoria que entendemos, pois ele não

passava nem perto dos mitos e nem do corpo mitológico. Aliás, ele negava totalmente a

dramaticidade da dança, usando e incentivando o que chamou de “movimento pelo

movimento”, ou seja, a manipulação do movimento sem compromisso com o enredo ou

com a dramaticidade e, assim, tirou de sua dança toda e qualquer característica que

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poderia nos aproximar dela. A dança, para Cunningham, voltou a ser pura técnica e

virtuose.

Quero lhe deixar claro, Apolo, que esse dançarino trouxe inúmeras inovações

para a dança espetacular –tanto trouxe que a dança nunca mais foi a mesma. Ele

introduziu o movimento aleatório, a improvisação, uma nova maneira de relacionar o

movimento com a música (e a não-relação), o uso de espaços alternativos para

apresentação (fora dos palcos italianos) e uma série de características novas à dança

cênica feita até então e os dançarinos atuais devem a ele a liberdade criativa que eles

possuem, como nos mostra Silva (2005):

Considerado o guru da dança pós-moderna, Cunningham propôs uma série de conceitos que vinham questionar a ideologia da dança moderna substituindo a narrativa única pela estrutura fragmentada ou episódica; o uso do palco convencional italiano pelas mais inusitadas opções cênicas (topo de arranha-céus, estacionamentos, galerias de arte, praças, ringue de boxe); o processo criativo linear e pessoal pelo uso intensivo da experimentação e improvisação; dentre algumas outras modificações de peso. (SILVA, 2006, p.105)

Além de Cunningham, podemos citar muitos outros dançarinos e coreógrafos

como importantes referências do início da chamada Dança Contemporânea, como, por

exemplo, Trisha Brown , Yvonne Rainer, Steve Paxton, Twayla Tharp, Meredith Monk,

entre tantos outros que ainda hoje trabalham pela dança. Sugiro que você faça uma

busca em nossos arquivos e assista aos trabalhos desses artistas, pois não vou

descrevê-los aqui porque, mesmo com tantas inovações realizadas por cada um deles,

esses dançarinos não trabalharam a dança como você e eu gostaríamos, Apolo, e você

deve estar se perguntando: então, por que citá-los? E respondo-lhe: por que sem as

inovações que eles propuseram para a dança, os artistas que vieram a trabalhar a

dança como acreditamos –ou seja, com a sabedoria mitológica– não teriam chegado

lá.

Apolo, eu repito quantas vezes for preciso para você quebrar seu exagerado

raciocínio lógico que é preciso entender as manifestações artísticas como uma

consequência de situações e contextos históricos, sociais e culturais. Assim, nenhuma

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ruptura ou transformação acontece sem que um conjunto de fatores e de pessoas

proporcionem as condições para que elas aconteçam. Portanto, o que esses

dançarinos fizeram foi oferecer ao mundo um olhar diferenciado para a cena, para o

espetáculo, e consequentemente, para os corpos que dançavam. Eles proporcionaram

a possibilidade de que os artistas que estivessem interessados em trabalhar temáticas

variadas, corpos variados, técnicas variadas, explorassem sua arte sem restrições.

Assim, eles abriram também as portas para as pesquisas do trabalho com o corpo

mitológico na cena.

A dança na atualidade (e como não sei quando você vai receber essa carta

especifico que a escrevo em 2014, pois não sei o que os humanos podem aprontar até

que eu envie a carta para você), inscreve-se no universo artístico de maneira bastante

variada. Os humanos mantiveram a manifestação da Dança Clássica, mantiveram a

Dança Moderna e podemos dizer que usam e abusam das possibilidades que a Dança

Contemporânea proporciona. Você ficará maravilhado ao ver e apreciar a quantidade

de trabalhos em dança que os humanos produzem! Vale a pena voltar-se novamente

para essa linguagem artística, Apolo! Faça isso!

O que posso lhe dizer da Dança Contemporânea e de seus dançarinos é que a

liberdade de possibilidades estabelecida a partir dos experimentos que essa linguagem

permite transformou –e ainda transforma– muita coisa no universo da dança, porém, no

que concerne ao corpo mitológico, terei que explicar-lhe os afetos que os dançarinos

sofreram a partir de algo que há tempos quero retomar: a dança dedicada a mim.

Sim, Apolo, o corpo mitológico está, como já concordamos, diretamente

relacionado aos deuses, aos seres sobrenaturais e aos nossos feitos sagrados e,

especificamente, a mim. E já lhe adianto que não considero isso uma vaidade, e, sim,

uma verdade! Ora, quem iniciou tudo isso, se não eu?

Portanto, preciso fazer-lhe um convite antes de continuar minhas explicações:

querido irmão Apolo, esses escritos me cansam, não são para mim! Minha natureza

pede outras sensações! Por isso, peço que venha comigo participar de alguns rituais

dedicados a nós, para quebrarmos a monotonia dessas teorias todas. Convido-o a

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passar um tempo comigo e proponho-me a mostrar-lhe, pessoalmente, alguns trabalhos

de alguns artistas para você entender como o corpo mitológico se manifesta na cena da

Dança Contemporânea. Garanto-lhe que você vai se convencer de que Prometeu

roubou o fogo sem nem imaginar a seriedade do que estava fazendo, mas que acertou

em cheio! Garanto-lhe que seu corpo vai vivenciar tudo o que falo e que você vai ver e

sentir a sabedoria dos corpos em movimento. Venha! Espero você na Bahia (Brasil),

onde gosto de passar grandes temporadas.

Seu irmão, Dionísio.

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CAPÍTULO 2: O ENCONTRO DOS DEUSES E A DISCUSSÃO SOBRE A MITOLOGIA

NA DANÇA CONTEMPORÂNEA

2.1 - A influência dos rituais e dos mitos sagrados na Dança Contemporânea

(Salvador, Bahia, 2014 Apolo aceita o convite de Dionísio e o encontra. Passam muito tempo juntos, indo a rituais, orgias, carnavais e festas e só então, depois de alguns meses, sentam-se à beira mar, na companhia de Iemanjá –Orixá africana das águas do mar–- e retomam a discussão sobre a sabedoria da arte e a condenação de Prometeu)

Iemanjá: Quanta honra recebê-los aqui, meus amigos! Em especial você,

Apolo, que nunca vem por estas terras! Diferente de Dionísio, que está quase sempre

na Bahia!

Apolo: A honra é minha, prezada Rainha Iemanjá. Poder tirar umas férias por

aqui está me fazendo muito bem e devo isso a Dionísio. Meu irmão, foi tão bom aceitar

seu convite, há muito tempo não me divertia assim. Como já conversamos inúmeras

vezes, os humanos ficam fazendo suas trapalhadas e nós, deuses, cada vez mais,

temos que correr pra manter o universo em harmonia. Estou cansado disso, realmente,

precisava de férias.

Dionísio: Quando você diz isso, confesso que não entendo, pois eu não fico

correndo atrás das burradas dos humanos, prefiro ver as alegrias e as sensações que

eles promovem, vivem e experimentam. Recentemente encontrei-me com Kali –a deusa

indiana– e ela me disse que estava farta dos homens e que pensava seriamente em

destruir tudo mais uma vez para reconstruir de outro jeito. Tentei convencê-la de que

ela precisava de férias, mas aquela lá não consegue se desligar nenhum minuto dos

afazeres que lhe foram atribuídos. Vocês dois deveriam se divertir mais, não concorda

comigo, Iemanjá?

Iemanjá: Claro! Os humanos nos consomem, mas devemos sempre lembrar

que somos seres superiores a eles e que antes de tudo devemos nos sentir bem! Você

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está muito contaminado pelas novas religiões, Apolo! Lembre-se, não devemos nada

aos humanos, quem nos deve são eles!

Apolo: Pode ser que vocês tenham razão, mas muitos dos humanos confiam

em nós, não podemos decepcioná-los.

Dionísio: Decepcioná-los? Você esteve comigo nos últimos meses em muitos

rituais dedicados a nós e às nossas inúmeras manifestações e, por acaso, você viu

algum devoto decepcionado conosco? Para mim, trabalho é diversão!

Apolo: Meu irmão, você está se esquecendo de algo fundamental em nosso

Panteão: cada um de nós, deuses, tem uma função específica para mantermos o

universo funcionando. A sua função é a diversão, a sensação, a emoção; a minha

função é a ordem, a beleza e a racionalidade. Não confunda as coisas. Observe Kali,

coitada. Ela cria, mantém, destrói e reconstrói o universo, o que é muita coisa para uma

deusa só! Não pode tirar férias. Eu ainda consigo uma folga aqui, outra ali. Mas ela não.

Você não pode esquecer que equilibramos os fenômenos e, para termos esse

equilíbrio, não podemos simplesmente sair todos de férias. Aliás, podemos visitar Kali

um dia desses, não acha?

Dionísio: Sim, vamos marcar um encontro com ela. Mas não vou discutir com

você, pois temos algumas diferenças fundamentais, Apolo, e, justamente por isso, nos

completamos. Veja o caso de Prometeu, por exemplo: você me escreveu uma carta

cheia de teorias, cheia de argumentos e pesquisas. Eu bem que tentei responder da

mesma forma, mas chega um momento que meu corpo pede movimento, pede emoção,

não quer mais elucubrações! Ainda bem que você concordou em vir passar essa

temporada comigo, pois eu não queria parecer grosseiro ao deixar de responder sua

carta –que me parecia sinceramente angustiada. Com sua vinda, sinto que posso

responder da maneira que minha natureza permite: a partir da experiência. Apolo, qual

o nome daquele filósofo que fala de nossa relação com as Tragédias Gregas, mesmo?

Apolo: Friedrich Wilhelm Nietzsche

Dionísio: Pois sim, ele mesmo. A nossa união e a união com todo o universo

que criamos se manifestou nesses dias, Apolo! É união com a natureza, com os

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fenômenos, é a nossa união, ora! Seu filósofo fala bonito, escreve bonito, mas o quanto

ele tentou viver no próprio corpo isso? Saberia nos dizer?

Apolo: Não sei, não sei. Os filósofos costumam pensar muito com a cabeça.

Isso também é considerado pós-socrático e o pior é que atribuem meu logos a esse tipo

de racional, um racional que é só a mente.

Dionísio: Pois é, e como você pode mostrar que também é sensação? Unindo-

se a mim! E tirando férias, claro.

Iemanjá: Vocês gregos e suas teorias! Não é à toa que a filosofia nasceu na

Grécia! Vou deixá-los com suas discussões e vou receber oferendas que fazem a mim

em uma praia aqui perto. Sinto os humanos me chamando e flores são sempre bem-

vindas! Voltem sempre, caros amigos, mas tentem pensar menos da próxima vez e

quem sabe um banho em meus mares ajude vocês a quebrar um pouco dessa

racionalidade. Dionísio, faça com que Apolo apareça mais por aqui e divirta-se mais

conosco. Adeus, amigos.

Dionísio: Boa idéia, Iemanjá. Vamos tomar um banho de mar, Apolo?

Apolo: Ah, não! Agora chega de sensações e me ajude a entender minhas

dúvidas, por favor! Nem sei há quanto tempo estamos em festas, rituais e orgias! Muito

bem, Dionísio, cá estou. Vim para deixar de lado minha angústia quanto a Prometeu e o

roubo da sabedoria e, em especial, para tentar entender o quanto a tal da Dança

Contemporânea pode ser um exemplo de sagacidade da arte e, até agora, não entendi

nada. Foi excelente ter ido com você aos rituais, pois percebi o quanto continuamos

cultuados e amados por todos os humanos que se permitem sentir, e vi que não são

poucos, o que me deixou muito feliz. Porém, você não me mostrou nenhuma novidade.

Inclusive, em minha carta eu deixei bem claro que vi, senti e entendi o corpo mitológico

nos rituais dedicados a você, mas eles não são arte, caro irmão, são rituais e, sendo

assim, não contam como exemplo para a defesa da sagacidade da arte e nem do corpo

mitológico que é o corpo que alcança o sagrado mitológico na cena. Tudo isso que você

me mostrou é Dança Contemporânea?

Dionísio: (Risos) Apolo, meu irmão querido, claro que não!

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Apolo: Do que ri, Dionísio? Você me envia uma carta dizendo que vai me

mostrar a Dança Contemporânea, me traz aqui e me leva a rituais e quando chego à

conclusão de que rebatizaram os rituais antigos com o nome de Dança Contemporânea

você ri? Ora, não subestime minha inteligência!

Dionísio: Não se ofenda, meu irmão. Deixe-me explicar porque estou rindo. O

fato é que essa sua pergunta, “Isso é Dança Contemporânea?”, é uma pergunta

frequente entre os humanos que vão assistir aos espetáculos desse gênero de dança.

Os espectadores humanos ainda estão muito confusos em relação a essa linguagem da

dança e, quase sempre, muitos saem dos espetáculos sem entender se o que viram é

dança, se é teatro, ou o que é. E se fazem sempre essa pergunta: “Isso é dança

contemporânea?”. Foi por isso que eu ri, pois percebi que essa pergunta é tão

frequente que até nós, deuses, a fazemos!

Apolo: Mas eu vi algum espetáculo de Dança Contemporânea entre todos os

lugares que você me levou?

Dionísio: Não, porém, conforme escrevi na resposta à sua carta, a Dança

Contemporânea abriu inúmeras possibilidades estéticas e, com isso, a temática, os

espaços, os figurinos e as músicas usados para dançar se multiplicaram e alguns

espetáculos parecem até rituais, pois acontecem ao ar livre ou fora dos palcos italianos

ou ao som de músicas ritualísticas. Porém, não é na estética dos espetáculos que

quero me ater para explicar-lhe o corpo mitológico nessa dança –embora essa

liberdade de expressão seja primordial para a compreensão do que vou descrever–, e,

sim, no corpo que dança a Dança Contemporânea, e foi para isso que eu levei você a

tantos rituais e festas antes de voltarmos a nossa discussão.

Portanto, Apolo, peço sua atenção e sua disposição para falarmos de dois

pontos importantes no que concerne ao corpo mitológico na Dança Contemporânea.

São eles os rituais dedicados aos deuses e o inconsciente humano.

Apolo: Estou pronto, e já lhe adianto que vasculhei em nossos arquivos e

assisti a todos os dançarinos e coreógrafos que você citou em sua carta –Nijinsky,

Isadora Duncan, Martha Graham, Mary Wigman, Merce Cunningham, Trisha Brown,

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Steve Paxton. Concordo com você que eu não deveria ter desistido da dança, pois os

dançarinos modernos realmente apontaram caminhos possíveis de nos conectar.

Porém, esses chamados precursores da Dança Contemporânea deixaram a desejar,

hein?! Onde já se viu? Praticamente negaram nossa influência sobre a arte! Blasfêmia

pura! Então, Dionísio, se você for me levar para ver coisas assim –sem evocação de

sagrado, sem mito– então é melhor nem me levar. Ficamos mais uns dias pelas orgias

e pronto: caso de Prometeu encerrado.

Dionísio: Mas quanta teimosia, Apolo! Pois eu acabo de lhe dizer que vamos

nos embasar, daqui para a frente, em dois pontos que nos ligam diretamente ao ser

humano: o ritual e o inconsciente. Acalme-se e procure ser mais generoso. Em sua

carta, você dizia não querer parecer um deus arrogante e está sendo.

Fico feliz que tenha visto o que perdeu da História da dança e agora preciso de

sua atenção para iniciar a defesa de Prometeu. Então, relaxe e venha dar um gole de

vinho antes de continuarmos, pois é importante termos a mente e o corpo abertos para

o que vou lhe mostrar.

(Depois de beberem vinho e de ouvirem música, Dionísio e Apolo seguem viagem para um terreiro de candomblé20, ali na Bahia mesmo, e Dionísio continua sua explicação).

Dionísio: Peço que acompanhe atentamente o que vou lhe dizer, Apolo. Serei

cuidadoso para não divagar em minha fala, pois sei que você gosta das coisas claras e

precisas; então, perdoe-me se, por acaso, eu me perder em minhas sensações, pois

logo o ritual desse terreiro de Candomblé vai se iniciar e, então, preciso comparecer à

gira21.

Inicio a defesa do corpo mitológico na Dança Contemporânea explicando-lhe

como ela foi afetada pelos ritos e, consequentemente, pelos mitos. Permita-me, Apolo,

dar-lhe um breve panorama de como os rituais, os símbolos e os mitos viajam mundo

20

Terreiro de candomblé é o templo onde são realizados os cultos da religião de matriz africana conhecida como candomblé.

21 Gira é o nome dado ao ritual em que os praticantes do candomblé dançam em roda para evocar e

receber os seres sagrados.

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afora e acabam por atingir o ser humano em suas mais diferentes atividades, sejam

elas sociais, políticas, educacionais, culturais, morais, emocionais, psicológicas ou

artísticas.

Para isso, usarei alguns dados que descobri em minhas inúmeras viagens pelo

planeta dos humanos ao longo dos séculos e inicio contando-lhe que existem várias

versões para a ocorrência da migração dos ritos, símbolos e mitos pelo mundo. As mais

diversas ciências humanas já buscaram respostas para esse fenômeno, mas a

Antropologia e a Psicologia foram as que mais chegaram perto da verdade que nós,

deuses, sabemos existir –e, às vezes, dá uma vontade muito forte de aparecer para os

humanos que chegam perto de nossa verdade e dizer-lhes: “É isso! Continuem que

vocês estão quase chegando lá!”. Mas parte deles morreria de susto com nossa

aparição e outra parte se sentiria um deus por termos dado a eles a honra de nossa

aparição (como aconteceu com Sócrates e a mensagem que você enviou no Oráculo

de Delfos). Então, para evitar mais problemas, prefiro não aparecer para eles.

Bem, como você sabe, não sou exatamente um apreciador das teorias, mas irei

usá-las com a mesma intenção que você as usou, ou seja, vou tentar esclarecer a

relação dos humanos com os mitos sagrados a partir de como eles os entendem. Afinal,

não é assim que eles se relacionam com os fenômenos: a partir do que eles entendem

sobre esses fenômenos? Então, vamos tentar entendê-los a partir deles mesmos.

Vou contar-lhe que, em meados de 1880, estive em uma festa promovida pela

corte belga e, deleitando-me com os vinhos dessa festa (que você bem sabe que eram

incríveis), ouvi uma conversa entre dois convidados, e, naquele momento, não me

preocupei com o assunto em questão. Porém, assim que li sua carta, as palavras

daqueles senhores me retornaram à mente e fui investigá-las. Descobri que um dos

senhores em questão era o Conde Goblet D´Alviella (1846-1925), um professor de

História das Religiões, apaixonado pelos símbolos da humanidade –e você o citou

quando me apresentou uma das definições de mitologia. O que ele conversava com o

outro convidado era sobre a migração dos símbolos humanos pelo mundo. Conde

D´Alviella (1995) defendia que os símbolos humanos –ou seja, as imagens

representativas das diferentes culturas, como uma cruz, uma imagem de um santo ou

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de um deus representativo– teriam sido transportados pelos homens de um lugar para

outro (cidades, países ou continentes) e apropriados pelas novas culturas de maneira

igual ou um pouco diferente daquela cultura de origem. O Conde tinha duas hipóteses

para essa apropriação acontecer:

Entretanto, não é incomum descobrir as mesmas figuras simbólicas entre as raças mais afastadas. Essas coincidências dificilmente podem ser explicadas pelo acaso, como as combinações do caleidoscópio. Exceto no caso de símbolos encontrados entre povos que pertencem à mesma raça, e que por isso podem ter levado de sua terra natal certos elementos de seu respectivo simbolismo, há somente duas soluções possíveis: ou essas imagens análogas foram concebidas independentemente, em virtude de uma lei da mente humana, ou passaram de um país para outro por um processo de apropriação. (D´ALVIELLA, 1995, p.27)

E eu considero que as duas hipóteses lançadas por ele estavam corretas, ou

seja, os símbolos migram tanto quando são transportados de um lugar físico para o

outro como também são concebidos pelas leis da mente humana.

A primeira hipótese não é difícil de entender, concorda comigo, Apolo? Um

viajante pode muito bem carregar consigo algum elemento de sua cultura (um bem

material ou imaterial, como uma imagem, uma crença ou um mito) e deixar (também de

maneira material um imaterial, como através de uma história contada, por exemplo)

esse elemento no lugar que visita. Assim, as pessoas daquele lugar apropriam-se

desse elemento e atribuem a ele as características locais. Isso acontece com

frequência e o Conde D´Alviella recorda que os antigos soldados e marinheiros também

tiveram importante papel na exportação de símbolos ao carregarem consigo seus

deuses e suas crenças, e nós viajamos por aí das mais diferentes maneiras. Você

mesmo comentou isso em sua carta quando disse que somos representados em várias

culturas com nomes diferentes. Nós sabemos que temos uma única essência, mas

temos milhares de nomes dependendo da região e da religião que nos cultua como, por

exemplo, Apolo, Dionísio, Exu, Ogum, Shiva, etc. Cada uma das culturas nos atribuiu

uma característica diferente para que fôssemos assimilados –e muitas vezes aceitos–

pela sociedade em questão. Pois lhe digo que, com os símbolos, os ritos, as comidas,

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as vestimentas, a língua, enfim, com todos os fenômenos acontece assim. E quer saber

de uma coisa, Apolo? O Conde D´Alviella acreditava que a arte seria a maior

exportadora de símbolos:

Por outro lado, a facilidade com que os símbolos são apropriados é indiscutível. Representados nas produções corriqueiras da indústria, temas favoritos dos artistas, passam, incessantemente de um país para outro, em artigos comerciais e objetos de ornamentos, como testemunham os espécimes do simbolismo hindu, chinês e japonês e sua arte pictórica que penetrou entre nós através de vasos, tecidos e todas as curiosidades do Extremo Oriente. Os centros de cultura artística foram sempre focos de exportação de símbolos. (D´ALVIELLA, 1995, p.30)

Apolo, peço-lhe que perdoe o Conde por dizer que os artistas tinham como

tema favorito aqueles reproduzidos na indústria e lembro-lhe que ele se refere aos

artistas de sua época que, muitas vezes, trabalhavam para as indústrias de decoração,

com obras encomendadas. Porém, independente dessa observação, que diz respeito à

época em que o Conde viveu, ele nos descreve algo importante para nossa discussão

quando diz que a arte é grande difusora e exportadora de símbolos –e ela acaba por

fazer o mesmo com os mitos. Lembra-se de quando lhe escrevi na carta que a Dança

Moderna difundiu as nossas histórias para homens que não nos conheciam? Os poetas

gregos também fizeram isso nas Tragédias e nas outras linguagens artísticas –como

as artes visuais e a música–; isso acontece com frequência na arte. O que só prova

que Conde D´Alviella tinha razão. Pena eu não ter me interessado em sua conversa na

festa no palácio belga; mas você me conhece, Apolo, eu não perco tempo com

conversas quando tenho uma boa festa para aproveitar.

Agora, devo dizer-lhe que os rituais passaram pelo mesmo processo descrito

pelo Conde, mas isso você sabe, pois os humanos também continuaram a realizar

rituais em nossa homenagem durante todos os períodos históricos, em várias regiões

do mundo. Nos rituais que envolvem o meu culto, sempre existiu dança, e você também

falou sobre isso em sua carta, mas o que você não citou em sua carta, que é de muita

relevância para a compreensão do corpo mitológico na Dança Contemporânea, é que,

se os rituais que continham dança e se as danças chamadas de pagãs (batizadas

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assim a partir da Idade Média) não acabaram, mais cedo ou mais tarde, elas afetariam

a sociedade elitizada novamente, pelos mesmos caminhos que o Conde D´Alviella

descreveu para os símbolos. Ou seja, pessoas que vivenciavam esses rituais levavam,

para ambientes onde eles não eram praticados, algumas características e

embasamentos religiosos, filosóficos e até corporais dos mesmos.

Então, sendo realizadas nas periferias dos reinos –e, depois, nas periferias das

grandes cidades– essas danças pagãs foram sendo conhecidas e resgatadas pelos

estudiosos, pelos antropólogos e pelos artistas e, quando os pioneiros da Dança

Contemporânea foram sendo contaminados pelas possibilidades infindáveis de temas e

de movimentos para seus trabalhos, a dança pagã (ritualística, folclórica, tradicional, ou

ainda popular, como foram se renomeando e se caracterizando ao longo dos anos)

passou a ser uma grande fonte de inspiração.

Vou mostrar-lhe um exemplo que ilustra de maneira direta essa minha última

afirmação. Estamos num terreiro de Candomblé e isso não é à toa. Trouxe você até

aqui para observarmos, atentamente, a movimentação desses fiéis que dançam para

seus Orixás; antes de continuar, esclareço que não pretendo me aprofundar na história

dessa religião e nem entrar no âmbito de seus dogmas; porém, devo ressaltar que é

uma religião advinda das religiões africanas e que, como você já nos lembrou, possui

vários deuses –que eles chamam de Orixás– que não são nada além de nós, deuses

cultuados em todas as religiões, porém, com outros nomes. Aqui, considero importante

ressaltar uma diferença entre o Candomblé e outras religiões da atualidade: os Orixás

possuem a essência que nós possuíamos nos primórdios da humanidade, ou seja, eles

são considerados a natureza manifestada na forma de deuses e essa característica é

importante para que possamos entender o que lhe explicarei agora.

Observe, Apolo, o ritual que presenciamos aqui: inseridos circularmente no

espaço, os fiéis cantam e dançam para nós e, no centro do círculo, encontra-se um

filho de santo, ou um iniciado22, que incorpora um Orixá. A dança em círculo é a

22

Ser um “Iniciado” na religião do candomblé é ser o devoto que é preparado para receber a permissão de ser um “filho de santo” e, assim, poder participar e realizar os rituais dos Orixás em que são iniciados.

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primeira característica desse ritual que perpetuou ao longo dos séculos e não é

somente nessa religião que encontramos essa formação espacial –sabemos que as

tribos indígenas das Américas também mantêm essa formação espacial em seus

rituais. No Candomblé, os devotos seguem cantando e dançando para evocar-nos e o

ápice do ritual é o momento da incorporação, no qual o Orixá evocado usa o corpo do

filho de santo como canal de manifestação física. Observe o texto que encontrei sobre

essas danças ao procurar as tais referências teóricas que você tanto gosta, caro irmão:

No Candomblé, toda a performance do filho de santo é construída de elementos da história mítica da divindade incorporada que, por um processo de composição, faz convergirem as ações da história da divindade na construção da sua corporeidade. Trata-se de uma forma dinâmica, poeticamente artificial e diferente das corporeidades humanas cotidianas. A artificialidade é formada pela plasticidade do corpo do iniciado em ação que, da maneira como interpreto, torna-se o cerne da tecedura dramatúrgica do ritual de incorporação. (NAVARRO, 2009, p.47)

Eu poderia, tranquilamente, atribuir essa descrição a uma das danças que os

homens chamam historicamente de “primitivas”, não acha? Ora, Apolo, uma dança cujo

elemento central é a história mítica da divindade, a partir de corporeidades artificiais

que são diferentes daquelas cotidianas, realizada em círculo, não é uma dança

primitiva? E como você me explica elas terem perdurado até a atualidade? Claro que

foram levadas por viajantes pelos diferentes continentes, que foram sendo passadas de

geração em geração e que também foram ganhando características de cada uma das

regiões onde foram acolhidas.

Pois bem, continuaremos nossa análise observando que esses rituais carregam

consigo uma determinada dramaturgia, pois narram corporalmente os mitos dos Orixás:

É na festa que os orixás vêm à terra no corpo de suas filhas, com a finalidade de dançar, de brincar no xirê, termo que em iorubá significa exatamente isto: brincar, dançar, divertir-se. É através dos gestos, sutis ou vigorosos, dos ritmos efervescentes ou cadenciados, das cantigas que “falam” das ações e dos atributos dos orixás que o mito é revivido, que o orixá é vivido, como a soma das cores, brilhos, ritmos, cheiros, movimentos, gostos. A vida dos orixás é o principal tema e a vinda dos orixás é o principal motivo da festa. Os deuses incorporam seus eleitos e dançam majestosamente: usam roupas brilhantes,

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ricas, coroas e cetros, espadas e espelhos; são os personagens principais do drama religioso. (AMARAL: 2002,48)

Exatamente o que estamos vendo aqui nesse terreiro de Candomblé, não é,

Apolo? Perceba como os devotos dessa religião entendem que é com o corpo que nós,

os deuses, conseguimos entendê-los melhor e que não pode existir melhor maneira de

nos representar do que cantando e dançando em grupo. Nossa vida é seu tema, nossa

vinda é o motivo de estarem aqui, é união deles conosco, a certeza de que somos

natureza e universo.

Agora lhe digo, Apolo, que cada Orixá do Candomblé tem sua própria dança e

um gestual que os caracterizam, e os ritmos –as danças e os gestuais que ocorrem

nesses rituais– já foram fonte de inspiração de inúmeros dançarinos contemporâneos

brasileiros que encontraram em um terreiro a fonte para os estudos de seus

movimentos, transpondo-os para a cena. Terreiros como esse em que estamos já

inspirou espetáculos como é o caso de "Herança Sagrada – A Corte de Oxalá"23, de

“Siré Obá, A Festa do Rei”24, “Bailarinas de Terreiro”25, entre tantos outros e que

mostram o quanto os dançarinos contemporâneos ainda se inspiram nos mitos e nos

rituais para criar seus trabalhos, e exemplos como esse do Candomblé podem ser

estendidos para muitas outras danças ritualísticas que ganharam a cena

contemporânea, como, por exemplo as danças indianas, as danças japonesas,

balinesas, etc.

Apolo: Dionísio, eu percebo que você está exemplificando grupos que

trabalham os mitos como inspiração poética, da mesma forma que a dança clássica

trabalhou, pois ao corpo mitológico atribuo a característica de encontrar um caminho

para o sagrado a partir do movimento e não simplesmente se inspirar em nossas

histórias ou gestos.

23

Balé folclórico da Bahia, direção de Walson Botelho, 2012. 24

Núcleo Afro-brasileiro do Teatro (Nata), direção de Fernanda Julia, 2012. 25

Espetáculo de Dança com Gracia Navarro e Rosana Baptistella, direção de Graziela Rodrigues, 1987-1990.

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Dionísio: Aí é que você se engana, Apolo. Muitos dos exemplos que citei

trabalham o corpo mitológico da maneira como o entendemos, porém, sem atribuir-lhe

esse nome. Esses exemplos são de espetáculos concebidos na atualidade, nos quais o

dançarino e o ator (e falo do ator porque a linha que separa a dança e o teatro na

contemporaneidade é muito tênue) buscam um corpo que se conecta diretamente com

suas inspirações que, nesse caso, seriam os Orixás.

Apolo: Ainda não compreendo completamente, mas sinto que está ficando

mais claro para mim.

Dionísio: Certo, Apolo, vamos clarear mais esse ponto, porém, uma vez,

teremos que parar nossa conversa, pois cada poro de meu corpo está entrando em

conexão com os corpos desses devotos que estão nesse terreiro e sinto o tambor nos

chamando. Agora eu não quero estar em outro lugar, se não aqui.

Apolo: Atenção, Dionísio, você está se perdendo em suas sensações e eu

acabo também me perdendo em sua linha de raciocínio e já não sei mais do que

falávamos.

Dionísio: Pois me desculpe, não consigo ser racional como você é. A gira está

começando, o tambor toca e os devotos dançam me chamando. Vamos fazer uma

pausa, vamos sentir nossa existência integralmente, vamos dançar com eles e através

dos corpos dos filhos de santo, venha, Apolo. A sensação às vezes pode nos explicar

mais coisas do que as palavras! Venha!

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CAPÍTULO 3: A DEUSA SARASVATI E SEUS COMENTÁRIOS SOBRE A

MITOLOGIA COMO COMPONENTE DO INCONSCIENTE DO ARTISTA

3.1 – Mitologia e inconsciente

(Dionísio e Apolo entregam-se à gira juntamente com os outros deuses –na Bahia chamados de Orixás. Os dois acabam se conectando com os devotos humanos que os chamam em todos os cantos do planeta Terra e assim seguem, de um ritual ao outro: Candomblé, Umbanda, Xamanismo, Hinduísmo, Thelemismo, Rastafarianismo, etc. Onde possa ter dança e canto para atingir os deuses, eles lá estão. Então, passa-se um tempo cronológico longo, mas, para o mito, o tempo é diferenciado e ilógico perante o entendimento dos humanos e os deuses irmãos retomam a conversa enquanto descansam nas terras sagradas da deusa Sarasvati, a deusa indiana da arte).

Apolo: Foi uma ótima ideia virmos descansar nestas terras, meu irmão

Dionísio. Adoro conversar com Sarasvati e creio que ela irá nos ajudar muito em nossas

divagações sobre a sabedoria da arte. O que pensa sobre a discussão que eu e meu

irmão estamos empenhados e que lhe explicamos, prezada Sarasvati?

Sarasvati: Primeiramente, gostaria de dizer-lhes que é muito engraçado vê-los

em suas respectivas manifestações gregas! Vocês e suas peripécias, caros amigos!

Aqui na Índia vocês nunca apareceram como Apolo e Dionísio, que novidade é essa

agora?

Dionísio: Cara Sarasvati, está mais do que na hora de acabarmos com essa

separação ridícula de territórios sagrados, pelo menos entre nós, deuses, não acha?

Você sabe quem somos e conhece nossa essência. Tanto faz nosso nome!

Sarasvati: Você tem sempre uma boa resposta para nos dar, Shiva! Quero

dizer, Dionísio. Você me confunde. Tanto faz! Bem, deixe-me responder à pergunta de

Apolo. Eu tenho um ponto de vista bastante peculiar sobre essa discussão e o que

posso dizer-lhes, caros colegas, é que os humanos são assim, seres complexos que

criamos e que possuem sabedoria e estupidez. Exatamente do jeito que os construímos

e do jeito que gostamos de mantê-los.

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Apolo: Muito boa a sua colocação, Sarasvati! E creio que aqui podemos

retomar um comentário que Dionísio havia apontado e não concluiu. Você havia dito,

Dionísio, quando ainda estávamos na Bahia, que falaria sobre a presença da mitologia

na arte a partir de dois pontos de vista defendidos também por Conde D´Alviella; o

primeiro seria que os símbolos humanos são transportados de diferentes maneiras

mundo afora, inclusive pela arte, e entendemos que, com os rituais, acontece o mesmo,

porém, aguardo sua explicação sobre a segunda hipótese do Conde –quando ele diz

que a migração dos símbolos também está relacionada com as leis da mente humana.

Eu adianto a vocês dois que concordo com o Conde; afinal, a mente humana é

complexa o suficiente para isso e para muito mais coisas que não sonha nossa vã

filosofia. Como diz Sarasvati, o homem pode ser sábio e estúpido e essa capacidade de

se tornar extremos é implícita à mente humana. Dionísio, por acaso seria dessa

complexidade de que nos fala o Conde?

Dionísio: Sim, creio que deve ser sobre essa complexidade sobre a qual ele

nos fala. Porém, a complexidade humana nunca foi meu forte. Sou o deus da

simplicidade e das coisas naturais. Viemos até aqui justamente para que os deuses da

Índia nos esclareçam esse ponto, considerando que eles são especialistas na mente

humana e trabalham essa complexidade a partir da meditação e de seus dogmas

religiosos.

Sarasvati: Pois bem, meus amigos. Não conheço o Conde de quem vocês

falam e não sei ao certo se posso ajudá-los, pois aqui no Oriente as questões mentais

não são separadas das questões corporais, como a maioria de vocês faz no Ocidente.

Posso tentar ajudá-los, mas, para ficar mais claro para vocês, não vou usar somente

exemplos da filosofia oriental, mas vou também embasar meus argumentos em uma

teoria desenvolvida por um ocidental que buscou a compreensão do comportamento da

mente humana em muitos lugares, inclusive na mitologia e nos preceitos do Oriente.

Dionísio: Que bom, Sarasvati! Eu sabia que, quando se tratasse dos assuntos

mais complexos sobre o funcionamento da mente do ser humano, você me ajudaria.

Pode explicar-nos, por favor, pois, por enquanto, eu ainda estou disponível para essas

teorias humanas; só não sei até quando eu estarei!

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Sarasvati: Fiquem à vontade para interromper-me quando se cansarem e,

então, iremos descansar, porque lhes explicarei um assunto um tanto quanto complexo:

o funcionamento da mente humana, em especial, do chamado inconsciente humano.

Apolo: Esse é um tema que também me fascina e me pego sempre pensando

em como conseguimos tornar os seres humanos tão complexos. Essa questão de fazê-

los à nossa imagem e semelhança não deu muito certo, pois somos tão mais simples

do que eles, não acha, Sarasvati? Apenas realizamos as tarefas que nos foram

atribuídas. Não ficamos pensando em como elas se dão em nossa mente ou em nosso

corpo. Somos assim, vivemos assim e pronto. Sem muitas complicações.

Sarasvati: Sim, é também verdade que temos nossas intrigas, nossas disputas,

mas elas são óbvias, pois temos que nos defender uns aos outros e cuidar de nossos

reinados –e também porque nossa existência é eterna e nos cansaríamos de tanta

monotonia se não “apimentássemos” nossas vidas. Mas os humanos são complexos

demais considerando o pouco tempo que passam na vida e, para piorar, eles pensam,

estudam e escrevem sobre sua complexidade. Ficam dando voltas em seus próprios

umbigos para acharem as respostas que estão em nós, nos deuses e sempre e

somente em nós! Eles precisam muito amadurecer!

Mas vou explicar-lhes o que eles mesmos acabaram descobrindo sobre suas

próprias mentes (que consideram incrivelmente superior às outras mentes! Ah,

humanos...). A história do estudo da mente humana é enorme e me lembro de me

interessar por ela bem cedo, ainda no período pré-histórico, quando alguns deles

descobriam suas emoções e não sabiam lidar com elas. Devo lembrar-lhes que aqui no

Oriente a mente humana é foco constante de discussão e trabalho, mas para nós –para

nossa filosofia e para nossos dogmas religiosos– cada ser humano é responsável por

suas próprias mentes, cabendo a nós, deuses, apenas a proteção para que eles façam

essas descobertas em segurança física e emocional. Entendemos que cada ser

humano tem o poder de controlar suas mentes a partir do conhecimento das mesmas e,

para isso, trabalhamos o corpo e a mente de maneira integrada nas práticas milenares

de yoga, de dança e de artes marciais. Sabemos que o corpo e a mente não são

entidades separadas, e, sim, complementares, e que uma depende da outra para o

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bom funcionamento individual e, consequentemente, coletivo, ou seja, da sociedade e,

em última instância, da humanidade. Isso se parece com o que vocês me explicaram

sobre a complementaridade entre o logos de Apolo e o êxtase de Dionísio –corpo e

mente unidos.

Porém, no que diz respeito aos ocidentais, podemos dizer que os fenômenos

mentais ficaram mais claros para eles a partir das descobertas de alguns psiquiatras

que, buscando respostas para as patologias da mente, acabaram desvendando-a.

Aqui gostaria de deixar-lhes claro que não considero que a mente humana

tenha sido completamente desvendada –e nem os próprios humanos consideram isso;

se assim fosse, certamente já estariam todos iluminados!26 Mas esses estudiosos

deram importantes passos em direção ao funcionamento da mente e aos processos

que relacionam o mito e os símbolos com o comportamento humano.

Dentre todos os humanos que tentaram entender suas mentes, eu vou explicar-

lhes, em especial, as descobertas e teorias do psiquiatra suíço chamado Carl Gustav

Jung (1875-1961), e esclareço que ele não foi o único que estudou a mente humana,

mas é com o qual mais identifico a resposta à questão de vocês quanto à colocação do

Conde D´Alviella e a mente humana ser responsável pela migração dos símbolos –e

dos mitos– mundo afora.

Falar sobre o inconsciente é sempre delicado devido à complexidade dos

conceitos que o abrangem, mas o que Jung defende é que o inconsciente é uma

dimensão da psique humana – que resumidamente é a fonte de todas as atividades

humanas27 - que se divide em algumas dimensões, entre elas, a consciência e o

inconsciente e, este último ainda se dividiria em inconsciente pessoal e inconsciente

coletivo e cada uma dessas dimensões da psique teriam seus conteúdos específicos.

26

Iluminação é um conceito de algumas religiões orientais como o hinduísmo e o budismo que acreditam que a partir do conhecimento e controle de suas mentes é possível se libertar do ciclo de renascimentos no mundo mundano.

27 A definição de psique não é tão objetiva quanto às outras definições apontadas pelos estudiosos da

mente humana. Podemos dizer que a dificuldade em defini-la está relacionada às experiências empíricas que compõe cada ser humano. Grinberg (2003,p.66-67) nos lembra que a psique é um processo evolutivo, repleto de energias e que é gerada a partir da tensão criativa entre suas polaridades. O autor ainda ressalta que qualquer conhecimento e investigação acerca da psique deve estar enraizado obrigatoriamente nas experiências pessoais.

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Vou explicar melhor: o que ele chama de consciência seria a dimensão da

psique humana que mantém contato direto entre mundo exterior e interior– a

percepção, a atenção, o raciocínio, a memória. Seria a dimensão consciente quem

organizaria o Eu do ser humano e com o qual eles realizam suas atividades cotidianas

diárias. Jung ainda considera que a consciência é o centro que coordena as relações

diretas do homem com o ambiente em que vive, mas que ela não é a natureza

essencial do homem, pois se forma a partir do inconsciente.

O inconsciente, por sua vez, seria uma dimensão mais profunda da psique.

“Tudo aquilo que não está relacionado ao ego como centro do campo da consciência”

(Grinberg, 2003, p.80). O que Jung (1979, p.4) nomeou de inconsciente pessoal é

aquele que contém os conteúdos de natureza pessoal adquiridos durante a existência

do indivíduo, e o inconsciente coletivo seria aquele cujos conteúdos seriam de natureza

coletiva, herdados universalmente pela História humana e não pela história individual.

Ele ainda destaca algo muito importante para que vocês entendam o que estou

tentando explicar aqui: esses conteúdos da consciência, do inconsciente pessoal e do

inconsciente coletivo não são fixos, móveis ou estáticos, mas se transformam a todo

momento, a cada nova experiência do indivíduo, e, assim, a psique constrói-se em uma

conversa contínua entre consciência, inconsciente individual e inconsciente coletivo.

Porém, Jung lembra que o conhecimento acerca da psique deve sempre estar

embasado nas experiências pessoais, de cada indivíduo.

Apolo: Claro, entendo! Nós, os deuses, seríamos um conteúdo do inconsciente

coletivo, visto que muitos humanos nunca tiveram contato conosco, mas possuem de

alguma forma, um experiência com nossas representações. Estou correto, Sarasvati?

Sarasvati: Sim, Apolo, corretíssimo, mas creio que Dionísio não entendeu tão

claramente quanto você, pois está com um olhar profundo de interrogação.

Dionísio: Pois é, explique melhor o que Apolo quis dizer com isso.

Sarasvati: Vamos com calma, pois eu havia avisado que seria complexo. Bem,

para explicar a conclusão de Apolo, eu preciso me aprofundar em outra definição que

nos é dada por Jung, a definição de arquétipos. Segundo ele o inconsciente coletivo

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teria conteúdos diferentes daqueles adquiridos na vida de um indivíduo (inconsciente

pessoal), o que seriam conteúdos completamente coletivos. Esses conteúdos foram

chamados por ele de Imagens Primordiais ou Arquétipos, que seriam núcleos instintivos

passados de forma psicobiológica de geração a geração, trazendo padrões de

comportamento herdados desde o surgimento da humanidade e mesmo antes dela. Os

arquétipos seriam tendências, possibilidades de representação de um motivo ou tema

universal, conforme Jung nos explica:

O arquétipo é uma tendência a formar essas mesmas representações de um motivo –representações que podem ter inúmeras variações de detalhes– sem perder a sua configuração original. Existem, por exemplo, muitas representações do motivo irmãos inimigos, mas o motivo em si conserva-se o mesmo. (...) o arquétipo é, na realidade, uma tendência instintiva, tão marcada como o impulso das aves para fazer seu ninho e das formigas para se organizarem em colônias. (JUNG, 2008, p.83)

O que Apolo disse é que nós, deuses, fazemos parte desse conteúdo

arquetípico da mente humana, pois, para a Psicologia Analítica ou Psicologia

Junguiana28, mesmo que um determinado povo não nos cultue, ou sequer nos conheça,

nós estaríamos presentes na dimensão do inconsciente coletivo, na forma dessas

tendências que lhes são instintivas.

Apolo: Para esclarecer melhor, Dionísio, usarei o exemplo que você mesmo

me deu quando falou da Dança Moderna e mostrou o trabalho de Martha Graham como

um exemplo de retomada da mitologia. Ora, Graham viveu no século XX e não tinha em

sua história pessoal (inconsciente pessoal) relação direta com os mitos que dançava,

que eram, geralmente, mitos gregos da Idade Antiga da História humana. Sua mente (e

de certa forma, seu corpo) buscaram imagens e experiências mitológicas vindas de

algum lugar mais profundo do que de sua consciência para poder dar forma cênica ao

mito. Certamente ela encontrou essas imagens no inconsciente coletivo, em experiência

que seu corpo herdou (psicobiologicamente) de seus antepassados humanos.

28

Psicologia Analítica ou Psicologia Junguiana é o nome dado ao ramo de conhecimento e prática da psicologia fundado por Carl Gustav Jung.

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Sarasvati: Sim, bom exemplo, e é justamente ali, no inconsciente coletivo, que

os mitos se organizam. E, por isso, acredito que o Conde D´Alviella se referia a essa

migração dos símbolos (e dos mitos enquanto elementos simbólicos), através das leis

da mente humana: a migração promovida psicobiologicamente pelo inconsciente

coletivo.

Dionísio: Ah, entendo, mas não posso concordar! O que vocês me dizem é que

Jung nos transforma em parte de algo que nem mesmo os humanos se dão conta de

que existe? Algo inconsciente? Ora, Sarasvati, isso já é muito insulto!

Sarasvati: Dionísio, não se aborreça com isso! O próprio Jung defende o

inconsciente coletivo como a base da psique e como o suporte para os processos de

equilíbrio e realização da totalidade psíquica. Para ele, sem os conteúdos do

inconsciente coletivo, os humanos não conseguem desenvolver suas potencialidades

inatas. Claro que não somos somente imagens das profundezas mentais! Como

manifestações arquetípicas que somos, nós regemos até mesmo os comportamentos

dos humanos e Jung tem clareza disso. E mais, para ele, os conteúdos da psique

nunca ficam parados, imóveis, inativos, mas estão em constante movimento –circulando

entre consciência, inconsciente pessoal e inconsciente coletivo– sempre de acordo com

fatores sociais, históricos e culturais em que o indivíduo está inserido, o que nos faz

emergir e submergir constantemente do inconsciente humano:

A psique não é só cérebro. É, antes de tudo, um processo em evolução contínua, repleto de energia. Esta é gerada a partir da própria tensão criativa entre polaridades, que irá resultar na produção de sonhos, imagens, fantasias, enfim, nos símbolos da psique. Em meio a toda essa agitação, surgem nossos símbolos, que funcionam como verdadeiros transformadores da energia, utilizada para a diferenciação e o crescimento da psique. (GRINBERG, 2003, p.66)

Observem que, nesse processo de construção e reconstrução contínua da

psique, os mitos transformam a energia psíquica e colaboram com os processos de

amadurecimento dos seres humanos. Não somos tratados como alegorias para Jung,

mas como parte de importantes processos que ocorrem na mente humana. Grinberg

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(2003, p.65) acrescenta que os humanos vivem apenas no mundo das imagens e não

se trata de essas imagens serem ou não verdadeiras, mas, sim, da importância que

elas possuem para o indivíduo e para a sociedade, do ponto de vista psicológico.

Podemos verificar nas considerações de Grinberg que os símbolos também são

importantes conteúdos psíquicos, responsáveis pelo desenvolvimento da psique e pelas

relações que os humanos estabelecem com o mundo em que vivem. Jung (2008)

contribui com essa colocação ao nos explicar o que são os símbolos e sua importância

para o desenvolvimento da psique humana:

Quando um psicanalista se interessa por símbolos, ocupa-se, em primeiro lugar, dos símbolos naturais, distinto dos símbolos culturais. Os primeiros são derivados dos conteúdos inconscientes da psique e, portanto, representam um número imenso de variações das imagens arquetípicas essenciais. Em alguns casos pode-se chegar às suas origens arcaicas – isto é, a idéias e imagens que vamos encontrar nos mais antigos registros e nas mais antigas sociedades. (JUNG, 2008, p.117)

Claro que, para um psicanalista, os símbolos podem ajudar a desvendar a

mente de um paciente, como Jung fez durante todo seu trabalho clínico, porém, neste

momento, cabe-nos apenas a compreensão de que os símbolos são as manifestações

imagéticas – ou representações- dos conteúdos da psique, incluindo os arquétipos, e é

assim que devemos entendê-los no contexto de nossa discussão

Além disso, Dionísio, o inconsciente está em atividade o tempo todo, sempre

reorganizando e ressignificando seus conteúdos, fazendo, assim, com que a

comunicação com a consciência aconteça de inúmeras formas, seja por sonhos, por

fantasias, por inspirações ou por símbolos mitológicos.

Joseph Campbell (2001, p.44) concorda com Jung e com Grinberg quando nos

apresenta quatro funções da mitologia: a primeira seria a reconciliação da consciência

com as precondições da própria existência, redimensionando a consciência humana; a

segunda seria formular e transmitir uma imagem cosmológica que é paralela à ciência

na qual todas as coisas deveriam ser reconhecidas como partes de um único e grande

quadro sagrado; a terceira seria validar e manter alguma ordem social específica,

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criando um código moral como uma construção além da crítica ou emenda humana; e,

por último, a quarta função da mitologia seria psicológica, ou seja, moldar os indivíduos

conforme os objetivos e ideais dos diversos grupos sociais. Em todas as quatro

funções, somos essenciais para a existência humana, Dionísio. Porém, não vou me ater

a elas, pois a nós interessa a mitologia na arte e não a psicologia da arte. Estamos

falando de Jung e de suas teorias, porque o ato criativo do artista –no caso de nossa

discussão, do dançarino– está intrinsicamente ligado às imagens do inconsciente e não

pretendo fazer aprofundamentos psicológicos, apenas pontes que possam nos ajudar a

compreensão da manifestação e do trabalho com o que vocês chamam de corpo

mitológico, o corpo que alcança o sagrado mitológico no momento da dança cênica.

Portanto, amigo Dionísio, acalme-se e deixe-me terminar, pois, além das

definições de Jung quanto à natureza da psique, podemos encontrar importantes

considerações que ele e seus seguidores fazem a respeito dos processos criativos de

uma obra de arte, e creio que essas considerações possam ajudá-los a esclarecer

importantes pontos sobre o corpo mitológico que vocês defendem como sendo o corpo

que alcança o sagrado mitológico no momento da dança e que também consideram um

canal de conexão com o sagrado, além de, consequentemente, um exemplo da faceta

de sabedoria que a arte possa vir a ser.

Apolo: Prossiga, cara amiga, e não dê ouvidos a meu irmão e à sua falta de

paciência com as teorias!

Sarasvati: Prosseguirei, então. Considerando o inconsciente uma dimensão da

psique humana e, consequentemente, como premissa para a mente plenamente

saudável e equilibrada, a Psicologia Analítica lança um olhar para a obra de arte a partir

de dois pontos de vista. O primeiro seria a partir da obra de arte que é realizada pelo

seu autor de maneira a subordinar a obra à sua vontade estética específica, ou seja, o

artista conduziria o processo criativo dando-lhe o resultado estético que ele considera

mais interessante naquele momento:

Existem obras em prosa e verso que nascem totalmente da intenção e determinação do autor, visando a este ou àquele resultado específico. Neste

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caso, o autor submete seu material a ser trabalhado a um tratamento com propósito definido, tirando ou adicionando, enfatizando um efeito e atenuando outro, dando um toque colorido aqui, outro acolá, considerando, cuidadosamente os possíveis efeitos e observando constantemente as leis do belo e do estilo. Neste trabalho o autor aplica seu julgamento mais criterioso e escolhe com inteira liberdade a expressão desejada. Seu material é para ele apenas material, subordinado ao seu propósito artístico: é isso que ele quer produzir e nada além disso. (JUNG, 2007, p.61)

Esse tipo de processo criativo é bastante comum e não menos valioso, pois

sabemos que toda obra de arte é resultado, de uma maneira ou de outra, das

impressões que o artista tem do mundo em que vive e que, por isso, passam por sua

psique. Porém, o que percebi na discussão sobre a sabedoria da arte é que vocês

estão falando de um tipo específico de artista que não é exatamente esse primeiro

apresentado por Jung, mas o segundo:

Essas obras praticamente se impõem aos autores, sua mão é de certo modo assumida, sua pena escreve coisas que sua própria mente vê com espanto. A obra traz em si a sua própria forma; tudo aquilo que ele gostaria de acrescentar será recusado; tudo aquilo que ele não gostaria de aceitar, lhe será imposto. Enquanto seu consciente está perplexo e vazio diante do fenômeno, ele é inundado por uma torrente de pensamentos e imagens que jamais pensou em criar e que sua vontade tem que reconhecer que nisso tudo é sempre o seu “si-mesmo” que fala, que é a sua natureza mais íntima que se revela por si mesma anunciando abertamente aquilo que ele nunca teria coragem de falar. Ele apenas pode obedecer e seguir esse impulso aparentemente estranho; sente que sua obra é maior que ele e exerce um domínio tal que nada lhe pode impor. Ele não se identifica com a realização criadora; ele tem consciência de estar submetido à sua obra ou, pelo menos, ao lado, como uma segunda pessoa que tivesse entrado na esfera de seu querer estranho. (JUNG, 2007, p.61)

Observem que esse artista é aquele atravessado de maneira direta e clara pelo

inconsciente e, por isso, ele parece ter perdido o controle da obra. Esse artista só

continua o seu trabalho se estiver disposto a se entregar aos mistérios da mente; se

estiver disposto a não controlar o resultado de sua obra. Para esse tipo de artista, deve

haver a clareza de que toda a inspiração que venha do inconsciente pode mudar os

rumos do processo criativo a todo e qualquer momento da criação e, indo ainda mais

além, podemos dizer que esse tipo de artista deve ter a certeza de que, por mais

incontrolável e por mais estranhas que possam ser as imagens que lhe arrebatem

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durante um processo criativo, todas elas são parte de sua psique, como Jung nos fala

quando se refere ao “si-mesmo” que se revela abertamente. E eu acrescentaria ainda,

caros amigos, que esse tipo de artista é o que vocês chamam de artista sábio, é o tipo

de artista que busca o corpo mitológico em seu trabalho cênico.

3.2 – O corpo mitológico na dança

Dionísio: Cara Sarasvati, suas explicações foram claras e eu entendi o que

Jung defende e acredito que todo artista trabalha com uma conversa entre as três

dimensões da psique (consciência, inconsciente pessoal e inconsciente coletivo),

fazendo com que seus conteúdos transitem entre eles e, por fim, materializando tudo

em suas obras. Porém, Apolo e eu já definimos que a sabedoria que defendemos está

diretamente ligada ao sagrado (experiências que conduzem os humanos aos mitos) e,

portanto, nem sempre o conteúdo que o artista trabalha é sagrado ou mitológico –

mesmo vindo das camadas mais profundas de sua psique. Logo, nem todo artista que

trabalha dessa forma é sábio, pois se nós, deuses, não estivermos presentes, não tem

sagacidade na arte, não é, Apolo?

Apolo: Já não tenho certeza dessa afirmação, Dionísio. O que Sarasvati nos

apresentou e tudo o que discutimos até aqui, quando falamos de ritual, de símbolo e do

corpo em movimento, está me mostrando outro ponto de vista do que seria sagrado e,

consequentemente, de sabedoria da arte. Já não considero que o sagrado deva ter

relação direta conosco, pois penso que relações indiretas também possam ser tão

sagradas quanto àquelas diretas.

Sarasvati: Isso mesmo, Apolo! Enfim, vocês chegaram onde eu queria. A

definição de sagrado é essencial para a compreensão do corpo mitológico e da

sagacidade que vocês falam que a arte pode representar. Creio que agora nosso amigo

Prometeu deve estar respirando aliviado!

Considero que esse tipo de artista trabalha com sabedoria (dentro da definição

de vocês que considera a relação com o sagrado sábia), pois vemos que o sagrado

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pode ir além da definição inicial de coisas relativas aos deuses e à religiosidade.

Acompanhem meu raciocínio: se nós, deuses, criamos o universo, criamos os corpos

humanos, criamos a natureza e criamos as capacidades humanas de refletir, pensar,

criar (e até de destruir), podemos considerar todos os fenômenos do mundo como

sagrados, afinal, nós construímos e temos o poder sobre tudo. Porém, sabemos que

muitos humanos não compreendem isso, nem mesmo inconscientemente, o que nos

faz tomar cuidado ao afirmar que toda e qualquer arte realizada por eles é sagrada (e

sábia), atribuindo isso a um tipo específico de artista.

O que quero dizer é que não devemos falar de sagrado religioso ou ligado aos

deuses (o que acaba esbarrando em religiosidade), mas da experiência de sagrado que

as mentes e os corpos humanos podem ter. A experiência do sagrado abrange todas as

relações que os humanos conseguem estabelecer com sua própria natureza humana,

com sua condição de ser natural, de parte do universo que criamos para eles, e isso

independe de perceberem ou aceitarem nossa existência como gostaríamos que eles

fizessem.

Para esclarecer melhor minhas colocações quanto ao que seria sagrado,

gostaria de retomar um mitólogo humano que Apolo usou em sua carta, Mircea Eliade

(1992), que nos apresenta uma interessante discussão sobre o que vem a ser sagrado.

Para ele, poderíamos dizer que sagrado é tudo quilo que não é profano, mas isso nos

daria uma nova discussão do que seria profano. Então, para clarear essa oposição

entre sagrado e profano, Eliade nos apresenta um conceito criado e discutido por ele: a

Hierofania.

Dionísio: Pronto! Vamos nós para mais uma invenção teórica maluca dos

humanos! Eles não se cansam, não é?

Sarasvati: Pois é, eles não se cansam, mesmo, mas com isso acabam

ajudando na compreensão dos fenômenos e, neste momento, nos ajudam também.

Dionísio: Prossiga, mas aviso a vocês que estou me cansando...

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Sarasvati: Serei breve, mesmo porque esse conceito nos abriria uma nova

discussão e quero ater-me ao que devemos entender aqui por sagrado. Bem, nas

palavras de Eliade, Hierofania seria:

Uma consciência fundamentada da existência do sagrado, quando se manifesta através dos objetos habituais de nosso cosmos como algo completamente oposto ao mundo profano. Corresponde apenas ao sagrado que nos é mostrado. (...) A manifestação de algo de ordem diferente –de uma realidade que não pertence ao nosso mundo– em objetos que fazem parte integrante de nosso mundo “natural” e “profano”. (ELIADE, 1992, p.17)

Dionísio: Desisto! Não consigo acompanhar o raciocínio de vocês!

Sarasvati: Acalme-se, Dionísio. Vou explicar. Em outras palavras, Hierofania é

a consciência que torna todos os fenômenos comuns do cotidiano humano –como uma

árvore, uma pedra, um objeto– em algo sagrado. É o caso do que acontece com um

religioso que vê em um rosário –que é um simples colar de contas– um objeto de

devoção sagrada e, por isso, não deixa que ninguém o toque ou guarde-o em um local

especial, usando-o para refugiar-se em momentos de tristeza, desespero ou alegria. O

objeto em si é profano, é mundano e comum, mas o religioso atribui a ele o conceito de

sagrado e, a partir dessa atribuição, sua relação com esse objeto transforma-se e ele

passa a ter uma experiência sagrada quando o toca ou o vê, por exemplo. O mesmo

acontece quando um devoto entra em algum lugar que sua doutrina religiosa reconhece

como “um lugar sagrado”, como um templo, por exemplo. Sabemos que, em um

primeiro momento, todo templo é uma construção, como outra qualquer, mas quando o

devoto se relaciona com esse lugar a partir de sua fé, esse lugar se torna um “lugar

sagrado”.

Apolo: Sim, veja, Dionísio, isso é uma experiência sagrada, como você me

escreveu em sua carta. A partir desse conceito, nenhum fenômeno é intrinsicamente

sagrado, mas torna-se sagrado, dependendo da relação que o indivíduo estabelece

com ele.

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Dionísio: Exato, Apolo! Como eu lhe disse em minha carta, sagrado é uma

experiência individual que conduz os humanos a nós, deuses e seres sobrenaturais

mitológicos e que pode ser coletiva se mais de um indivíduo ou uma sociedade a

adotar.

Sarasvati: Sim, mas atentem a algo muito importante que já disse e repito: o

sagrado para os humanos independe de eles perceberem ou aceitarem nossa

existência como gostaríamos que fizessem. Devemos entender que o humano pode se

relacionar conosco por várias vias e nem sempre elas são óbvias como vocês desejam,

caros amigos. Creio que, se partirmos do pressuposto de que criamos todos os

fenômenos do universo, então, de qualquer maneira, eles se relacionam conosco

sempre que se relacionam com algo de maneira sagrada, e isso já deve nos bastar.

Complemento meu pensamento dizendo que, da mesma forma, os artistas que

trabalham com o corpo mitológico e que buscam um contato com o sagrado na cena

não precisam, necessariamente, estar falando diretamente de nós (deuses e nossos

feitos), mas podem se relacionar com seu tema a partir da Hierofania. Vocês mesmos

nos deram exemplos de dançarinos que estabeleceram propostas claras de busca do

corpo mitológico sem falar de deuses ou de nossos feitos (Nijinsky e Mary Wigman, por

exemplo) Eles também estão buscando a experiência sagrada e, consequentemente,

eles estão indo de encontro com o que somos e criamos.

Dionísio: Sim, agora fica mais claro. Até porque eu entendo melhor quando

você fala dessa experiência sagrada e sei que muitos humanos não percebem e nem

racionalizam essa experiência.

Apolo: Mas isso tornaria a dança uma faceta da sabedoria? A sabedoria não é

racional? Não é consciente?

Dionísio: Ora, Apolo, você mesmo diz o tempo todo que a racionalidade pode

se apresentar de outras formas que não a intelectual. Será que, depois de todas essas

explicações que Sarasvati nos deu sobre a complexidade da mente humana, não fica

claro que o artista que trabalha com essa disposição de deixar seu inconsciente agir

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sobre sua obra tem consciência total disso? Eu diria que não. Eu substituiria a palavra

racionalidade por disponibilidade!

O artista que quer trabalhar com o corpo mitológico, ou seja, com o corpo que

alcança o sagrado mitológico na cena, não deve ter controle sobre esse corpo, e, sim,

disponibilidade para deixar que ele responda a seus instintos naturais e às imagens do

inconsciente. Daí, fatalmente eles se deparam com os mitos, pois estamos todos

presentes no inconsciente, e disso o humano não escapa.

Assim, se um artista entende que existe uma possibilidade real de se conectar

com o sagrado mitológico a partir de seu corpo, então ele nos apresenta uma

possibilidade de sabedoria na forma de lidar com a arte.

Apolo: Sim, concordo com você, Dionísio. Aliás, concordo com vocês dois,

Dionísio e Sarasvati. Então, depois de nossas discussões e da clareza na definição de

sagrado, de mito e de nossa compreensão da relação de ambos com o corpo humano,

como vocês acham que devemos definir o corpo mitológico?

Dionísio: Eu concluo que o corpo mitológico é aquele alcançado quando os

conteúdos mitológicos presentes no inconsciente dos artistas se materializam em seus

corpos.

Sarasvati: Sim, isso mesmo! O corpo mitológico é um tipo de corpo cênico,

voltado para a interpretação da mitologia na cena. É um corpo usado e trabalhado por

um tipo de artista que aceita e entende o mito e o corpo como parte do sagrado

representado por esse mito.

Apolo: E eu acrescento que o artista pode não se dar conta de que trabalha

com o que nós batizamos de corpo mitológico –como foi o caso dos exemplos que

Dionísio me deu em sua carta– mas que muitos fazem isso em seus processos

criativos ao buscar a dimensão do sagrado em seus trabalhos cênicos.

Dionísio: Sim, concordo com vocês, meus caros amigos. E não é incrível o

quanto a ciência e esses pesquisadores podem nos ajudar a entender os humanos?

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Sarasvati: Sim, e existem muitos artistas que trabalham com as teorias de

Jung, de Eliade, de Campbell e de tantos outros teóricos para embasar seus processos

criativos, e na Dança Contemporânea é fácil encontrarmos esse tipo de artista; afinal,

como Dionísio nos explicou, essa linguagem nasceu e cresceu junto com muitas teorias

acerca do homem e do universo, o que colaborou significativamente com seu

desenvolvimento.

Apolo: Oh, sim, e eu havia me esquecido de que toda essa discussão era para

que Dionísio me provasse que existem artistas que trabalham com o corpo mitológico

na Dança Contemporânea. Pois bem, estou aguardando! Quando vamos ver isso tudo

na prática?

Sarasvati: É isso que pretendo mostrar-lhes agora. Vamos encontrar nossa

amiga deusa Kali, pois ela tem algo interessante para mostrar a vocês.

Dionísio: Sim, vamos! E tenho certeza de que Kali vai nos mostrar algo

interessante, ela está sempre atenta a tudo o que os humanos fazem. Aproveitamos

para fazer-lhe a visita que estamos lhe devendo para tentar tirá-la da rotina pesada que

ela assumiu. Porém, vocês me desculpem, mas antes de ir eu preciso dançar para

esvaziar a cabeça de tanta teoria e conceitos que vocês me apresentaram. Quem me

acompanha?

Sarasvati: Farei melhor do que apenas acompanhar você, caro Dionísio. Vou

levar vocês dois a uma autêntica festa indiana: o festival Durga Puja, uma festa que

dura seis dias e é realizado em homenagem a Kali (em sua manifestação de deusa

Durga29), comemorando sua vitória sobre o demônio Mahishasura.

Dionísio: Agora, sim, vocês verão o que é que realmente me importa no mundo

dos humanos. Obrigada, Sarasvati. Acho que se continuarmos sem pausa vou desistir

dessa discussão e acabarei concordando com a punição de Prometeu.

29

A deusa Kali, bem como a maioria dos deuses existentes em todas as religiões do mundo, também

possui diferentes nomes e manifestações simbólicas, dependendo da região onde é cultuada.

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CAPÍTULO 4: A DEUSA KALI E A TEORIA DO CORPO MITOLOGICO NA PRÁTICA DA DANÇA

4.1 – Kaligrafando um corpo mitológico

(Os deuses Apolo, Dionísio e Sarasvati seguem para as terras de Kali –a deusa negra

da destruição e da reconstrução do universo– e passam seis dias em sua festa. Mas,

mesmo depois da festa, eles esperam um longo tempo para se encontrarem com ela,

pois ela é a Grande-Mãe, a protetora e a devoradora de almas e está sempre

trabalhando pela manutenção do universo. Quando Kali, enfim, encontra-os, eles já a

aguardavam ansiosos)

Dionísio: Kali, deusa da vida e da morte! Resolvemos visitar-lhe para tentar

fazer você descansar um pouco ao nosso lado e compartilhar conosco teorias sobre a

arte humana. Como você está, cara amiga?

Kali: Que surpresa boa, amigos! Sarasvati e Apolo, vocês também encontraram

tempo para mim? Sinto-me extremamente lisonjeada e espero poder passar algum

tempo com vocês, pois ando cansada e atribulada com as questões do universo que

me concernem.

Apolo: Humanos! Sempre eles nos consumindo, não é?

Kali: Não somente eles, Apolo, também eles. Mas não posso reclamar deles,

pois vocês viram a festa linda que realizaram em minha homenagem este ano, não é?

Me diverti muito! Mas digam o que tanto discutem sobre a arte dos humanos?

Sarasvati: Querida amiga, sua festa estava, como sempre, lindíssima e

pretendo nunca faltar a ela. Porém, no que tange a nossa discussão, eu creio que

Apolo possa esclarecer melhor o que discutimos, pois Dionísio e eu estamos há muito

tempo tentando entender a mente dos humanos e já nem sei ao certo como explicar

tudo o que conversamos. Esclareço, apenas, que a discussão é sobre o roubo do fogo

por Prometeu e a arte como sendo uma faceta da sabedoria. Os dois amigos aqui

presentes estão tentando decidir se votam pela continuidade ou pela suspensão da

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pena de Prometeu. Dionísio acredita que a arte é uma faceta positiva da sagacidade

enquanto Apolo não vê sabedoria na arte sem que ela esteja ligada a nós, deuses, e ao

sagrado mitológico.

Kali: Ainda essa discussão? Sinceramente, achei que vocês já tivessem

superado isso caros amigos!

Apolo: Como assim? Ainda não conversamos com você sobre essa questão.

Kali: E nem precisam, esquecem que sou a deusa que controla o tempo e que

acompanha absolutamente tudo o que acontece no mundo? Por isso, sei de todas as

discussões que envolvem deuses e humanos! E digo para vocês: Dionísio tem razão

quando diz que existe um tipo de trabalho cênico que pode ser chamado de sábio, pois

existem dançarinos e atores que entendem que o corpo que demos a eles é sagrado e

é o maior canal de comunicação conosco; então, eles buscam possibilidades de

trabalhar em cena essa conexão. Tenho algo a mostrar-lhes e peço que todos deem as

mãos em um círculo, pois vou transportá-los para o ano de 2007, quando tudo o que

quero mostra-lhes começou.

(Os quatro deuses dão-se as mãos e Kali, manipulando o tempo, transporta-os para

Campinas, estado de São Paulo, no Brasil. Em uma sala do Instituto de Artes da

Universidade Estadual de Campinas, onde uma dançarina prepara-se para trabalhar.

Os três deuses observam-na atentamente, ouvindo as explicações de Kali).

Kali: Vou explicar-lhes o que fazemos aqui. Há alguns anos, mais ou menos em

2007, eu estava resolvendo alguns problemas com um devoto aqui no Brasil, quando

senti uma grande força chamando-me para esta sala. Vim imediatamente e, quando

cheguei, encontrei essa dançarina em um estado completamente diferenciado de

consciência, e seu corpo e sua mente buscavam uma conexão clara comigo e com

outras tantas deusas que chegavam aos poucos nesta sala, vindas dos mais diferentes

lugares do mundo. As outras deusas e eu tentamos entender o que acontecia e

pensamos tratar-se de um ritual em nossa homenagem; porém, entendemos que não

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era isso, e que a dançarina estava usando uma técnica psicofísica30 de trabalho para

buscar em seu inconsciente as imagens do arquétipo da Deusa-Mãe que a

atravessavam.

Apolo: Ah, ela deveria estar buscando o que Jung chama de arquétipos. Nós

acabamos de discutir sobre isso com Sarasvati, a qual nos apresentou Jung e sua

teoria.

Kali: Sim, exatamente isso. Para iniciar seu trabalho criativo, ela fez uma

espécie de ritual a partir da Técnica Energética (T.E.), que foi sistematizado por sua

professora de dança e orientadora –Dra. Marília Vieira Soares–, por meio do qual ela se

preparava para que seu corpo traduzisse, em forma de movimentos, as imagens que

seu inconsciente carregava sobre o arquétipo da Deusa-Mãe. Por isso, tantas

representações de deusas estavam aqui comigo.

Descobri, depois, que essa dançarina sempre teve uma forte ligação com os

deuses mitológicos, desde sua infância, quando iniciou, aos cinco anos de idade, aulas

de yoga (pois sua avó era professora de yoga e a iniciou nessa técnica logo cedo) e

nunca abandonou seu interesse pela mitologia sagrada, o que a levou a pesquisar

caminhos para traduzir o que entendia sobre os deuses na forma de movimento

expressivo, visto que essa é sua profissão. Encontrou a TE e iniciou estudos sobre os

estados alterados de consciência para a composição coreográfica. E aqui estamos nós,

observando seu trabalho prático de pesquisa corporal que se iniciou, efetivamente, em

2007 –ano a que eu trouxe vocês– e que se finalizou com a defesa de uma dissertação

de Mestrado e a apresentação da coreografia Kaligrafia, na qual ela usou meus

aspectos duais de vida e morte, beleza e feiúra, compaixão e fúria, para exemplificar,

em seu corpo, as dualidades do arquétipo da Deusa-Mãe.

Dionísio: Realmente, é outro bom exemplo de trabalho com o inconsciente e

com o corpo mitológico sobre como um corpo alcança o sagrado na cena. Deu vontade

de dançar! Mas observe, Apolo, nós estamos falando de novo de pesquisa acadêmica!

30

As “técnicas psicofísicas” no contexto aqui apresentado são técnicas de trabalho corporal que entendem o corpo como uma unidade integrada e trabalham as dimensões físicas, emocionais e psicológicas do corpo humano a partir de exercícios específicos.

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Apolo: Sim, percebi que estamos dentro de uma Universidade e que teremos

que rever nossos conceitos sobre as colocações dos artistas-pesquisadores!

Sarasvati: Calma, meus amigos! A Universidade tem sempre coisas boas a nos

oferecer, apenas considero um problema quando os artistas não usam suas práticas

coerentemente com suas teorias, caso contrário, os resultados são sempre bons!

Kali: Sim, vocês têm razão, vejo muitas pesquisas interessantes e coerentes

acontecendo na Universidade. Mas vamos continuar. Vamos voltar para o tempo atual e

acompanhar a pesquisa de Doutorado da dançarina em questão.

(Os quatro seguem agora para 2014, a uma sala de dança na cidade de Campo

Grande, no estado do Mato Grosso do Sul, Brasil)

Kali: Bem, meus amigos, o caso é que se passaram alguns anos depois da

pesquisa da Kaligrafia e a dançarina-pesquisadora se inquietou cada vez mais com a

presença da mitologia na dança cênica. Após seu Mestrado, ela continuou a observar

trabalhos de dança que tinham a temática do mito. Encontrou essa temática nos

diferentes gêneros de dança e percebeu que ela era recorrente em seus próprios

trabalhos artísticos. Então, com muita curiosidade, ela iniciou uma pesquisa de

espetáculos contemporâneos que trabalhavam a partir dessa temática e percebeu que

existia um tipo de artista que se permitia o uso de estados alterados de consciência

para a construção da cena.

Dionísio: Prezada Kali, eu acho a expressão “estados alterados de

consciência” muito parecida com o estado de embriaguez que os humanos atribuem a

mim. Seria isso?

Kali: Não, Dionísio. Na verdade, é um estado de inconsciência que não é

alterado por nenhum elemento de fora do corpo (como bebidas ou alucinógenos, por

exemplo), e é defendido por ela como um estado de consciência diferente do estado

cotidiano de consciência dos humanos, diferente do estado de vigília. É o que vocês

entenderam por contato com o inconsciente, em que o artista, no caso dela, a

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dançarina, permite-se, a partir de técnicas psicofísicas de trabalho corporal, entrar em

contato com camadas mais profundas da psique e, então, usar as imagens que surgem

a partir desse contato com o inconsciente em suas composições. Ela descreve esse

estado alterado de consciência da seguinte maneira, em sua dissertação de Mestrado:

Considero importante ressaltar que quando me refiro aos estados alterados de consciência, não o faço em relação a estados “inconscientes”, ou a “estados de inconsciência”. Trata-se de um estado, em que acionamos, com mais facilidade, as imagens guardadas em nosso inconsciente e podemos usá-las de forma consciente na criação cênica. Na realidade, esses estados existem naturalmente, em alguns processos criativos artísticos. Muitos artistas se sentem “em transe” quando criam, quando relatam não ter noção exata de onde surgiram algumas imagens inspiradoras e declaram que o estado de criação não é como o estado comum de seu dia a dia. (SALVADOR, 2009, p 34)

Então, a partir de pesquisas e observação de trabalhos com a dança, ela

verificou que não era a única artista a usar esse tipo de método (com estados alterados

de consciência) e percebeu que, quando se trata de imagens do inconsciente, é muito

frequente o surgimento de imagens associadas aos mitos. Portanto, ela decidiu

investigar, em seu Doutorado, a maneira como a mitologia afeta ou atravessa o corpo

do dançarino. Justamente pelos motivos explicados anteriormente por Dionísio, quando

ele apresentou para Apolo a dança na atualidade como sendo um grande caleidoscópio

que permite o trabalho com inúmeras temáticas e estéticas.

Apolo: Então, podemos dizer que ela é um exemplo de artista que busca uma

maneira de trabalhar seu corpo em relação ao sagrado e que busca o corpo mitológico

de que vocês tanto falam?

Dionísio: Sim, e, como Kali nos disse, ela sabe que não é a única a fazer isso,

Apolo, o que prova minha teoria de que o corpo mitológico persiste até a atualidade,

nas diferentes manifestações de dança.

Apolo: Eu gostaria de ver isso na prática para me convencer; afinal, estamos

nos embasando em teorias infinitas. São filósofos, psiquiatras, mitólogos, teóricos da

arte, estudiosos da dança que colocam inúmeras teorias que, no meu ponto de vista, só

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fazem sentido se funcionarem na prática da dança. Seria possível verificarmos isso na

prática?

Kali: Claro, Apolo, agora estamos aqui, para acompanharmos os ensaios de

uma nova composição, nos quais essa dançarina baseia-se em arquétipo mitológico

que lhe fora revelado em um sonho.

Sarasvati: Mais uma vez, chegamos às teorias de Jung: o sonho também é

usado por vários artistas, na atualidade, como fonte de inspiração poética.

Kali: Sim, não falamos de uma exclusividade dessa artista! Isso é importante

para que vocês não pensem que essa artista está descobrindo algo totalmente novo.

Na arte, as inspirações e os processos criativos funcionam em continuidade, como

Dionísio já explicou anteriormente em suas colocações, ao dizer que a História da

dança é um processo contínuo de transformações e influências sociais, econômicas e

políticas. Essa artista está compilando, em seu trabalho de pesquisa teórico-prática,

uma das muitas possibilidades de trabalhar o corpo mitológico na dança, a partir das

experiências e observações realizadas por ela ao longo de sua vida profissional.

Agora vou contar-lhes o sonho dessa dançarina para que vocês entendam a

inspiração de seu trabalho prático de composição:

Ela sonhou que estava em um estúdio musical, onde ocorria a gravação da

música de um amigo. Em cima da bancada, ao lado da mesa de som, havia uma

pequena agenda, cujo marcador de páginas era uma minúscula cobra. Ela observava a

cobra com muito medo, pois, de alguma forma, sabia que sua picada seria letal, mas

também acreditava que essa cobra não sairia dali. Então, de repente, a cobra deslizou

para fora da agenda, criou asas e iniciou um voo que parecia com o de um beija-flor.

Ela e uma amiga, que também estava presente, saíram correndo e perceberam que a

cobra voava, perseguindo-as. Foi uma perseguição dramática, pois elas tinham certeza

de que, se a cobra as alcançasse, elas morreriam. Depois de fugir muito dentro de um

prédio com corredores lotados de pessoas, ela e sua amiga avistaram um banheiro,

onde entraram para se trancar. Sua amiga escondeu-se a tempo dentro de um gabinete

de privada. Porém, ela não conseguiu fazer o mesmo e, então, a cobra, que estava a

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menos de um metro de distância dela, transformou-se, subitamente, em uma esfera

cilíndrica dourada e vazada que, enfim, atingiu o pescoço da dançarina. Nesse exato

momento, ela percebeu que tudo ao seu redor estava branco e que a morte era

iminente. Porém, sua visão foi sendo retomada aos poucos e ela viu, à sua frente, um

homem com panos coloridos que envolviam o seu corpo e que parecia um deus antigo,

que sorriu para ela. Nesse momento, ela acordou.

Figura 1: Diário de trabalho – desenho do sonho com a serpente voadora

Dionísio: Ora, ela sonhou com um deus-serpente? Alguns dizem que eu posso

aparecer na forma de uma cobra, mas não fui eu quem apareceu pra ela nesse sonho,

isso eu lhes garanto!

Apolo: Seria Nehebkau, aquele que é o deus-serpente que guardava a entrada

do mundo subterrâneo, segundo os egípcios? Ou seria Áton, o deus também egípcio

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que adora se disfarçar como serpente mundo afora? Nossa, podem ser tantos deuses...

E poderia ser Python, mas eu a matei há milênios31.

Dionísio: Huitzilopochtli e Quetzalcóatl, deuses astecas, empunham serpentes

como armas e transformam-se nelas em alguns momentos de guerra.

Sarasvati: E podem ser também os Nagas, reconhecidos pelos budistas e

pelos hindus como seres que podem aparecer como serpentes, simbolizando

esperança ou medo, dependendo da situação.

Kali: Pois é, e podem também ser todos esses deuses juntos! E daí é que entra

o trabalho artístico, que consiste em continuar explorando essas imagens e descobrir

no corpo em movimento (a partir de laboratórios práticos que serão explicados a seguir)

do que elas tratam para, então, dar forma estética às mesmas.

Apolo: E esse trabalho cênico, para ser genuíno, deve passar pelo corpo

mitológico, certo? Considerando que o corpo mitológico é o corpo que alcança o

sagrado mitológico no momento da dança.

Dionísio: Exato. Viu só, Apolo, como a dança pode ser uma faceta da

sabedoria? Mesmo que essa dançarina não saiba o quanto tem de verdade no que ela

busca, está tentando entender seu corpo como um canal de trânsito entre o mundano e

o sagrado! Pronto, discussão encerrada: Prometeu libertado! Vamos beber?

Apolo: Nada disso, Dionísio. Quero ver como ela faz isso para ver se realmente

ela usa o corpo mitológico. Podemos ver, não é, Kali?

Kali: Claro, Apolo. Vamos acompanhar seu trabalho, mas acho que você

deveria ver o trabalho de outros artistas da Dança Contemporânea que fazem o

mesmo. São muitos que buscam esse caminho em seus trabalhos criativos, mesmo

sem usar o nome de corpo mitológico para esse tipo de corpo cênico.

31

De acordo com uma versão da mitologia grega, a esposa ciumenta de Zeus, a deusa Hera, enviou Python para ferir Leto (filha de Titãs), que estaria grávida de Zeus. Porém, Zeus ajudou Leto a escapar e, logo após, ela teria dado à luz Apolo e Artemis. Quando Apolo ainda era bebê, ele vingou a mãe, matando Python com suas flechas. Em outra versão, Apolo matou Python porque ela o impediria de fundar o Oráculo de Delfos.

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Apolo: O ato de batizar esse tipo de corpo cênico como corpo mitológico foi

minha invenção, Kali! Eu tive vontade de fazer como os humanos fazem e criei uma

teoria.

Kali: Eu percebi, Apolo, e você fez exatamente como os humanos: acabou

criando uma teoria em cima de algo que já existe, porém com outro nome. É o que eles

fazem: recriam teorias com outros nomes, ou não lhes dão nome algum.

Apolo: Mas é divertido passar o tempo assim, não acha?

Dionísio: Sim, pode ser, mas prefiro uma boa festa para passar meu tempo. E

vamos seguir com isso, antes que eu vá embora e arrependa-me de ter chamado você

para passar alguns dias comigo, Apolo.

Apolo: Lembre-se, meu irmão, estamos discutindo a condenação de Prometeu

e devemos isso a ele. Se sua condenação foi um erro, precisamos votar a favor da

revisão de seu julgamento.

Dionísio: Sim, só por isso ainda estou aqui com vocês. Só para esclarecer a

situação de Prometeu. Veremos, então, se essa dançarina acaba com tantas teorias e

coloca um pouco de sensação em nossa discussão! Vamos ver logo sua prática!

4.2 – A proposta prática do corpo mitológico

(Os quatro deuses acompanharam todo o processo de trabalho da dançarina. Ela

realizou laboratórios periódicos, nos quais buscou encontrar um corpo cênico que

traduza o mito a partir das imagens do inconsciente. Todos os laboratórios foram

anotados pela artista em um diário de trabalho, em que ela descreveu e desenhou as

sensações e os movimentos que surgiram em sua prática. Porém, a metodologia para a

criação de um roteiro de trabalho sistematizado com o corpo mitológico não é tão

simples e a artista passou quase três anos construindo a sistematização da prática

desse tipo de corpo cênico.)

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Apolo: Caro Dionísio, prezadas Kali e Sarasvati, observamos que, durante

todos esses anos, a dançarina propôs-se a realizar um trabalho profundo de união entre

corpo físico e inconsciente, e isso me põe a pensar, mais uma vez, na dificuldade que

os humanos têm em entender que essa união não precisa ser encontrada, ela já existe

naturalmente; nós lhes entregamos seus corpos e suas mentes como uma única

entidade e eles insistem em separá-los, e alguns deles passam a vida toda com essa

imensa dificuldade em juntá-los novamente.

Dionísio: Sim, Apolo, mas já conversamos sobre isso e, historicamente, essa

separação dificultou muita coisa para eles!

Kali: Mas isso é tão divertido, amigos! Se eles fossem perfeitos, seriam deuses,

não humanos! Não esqueçam que uma das delícias em termos criado sua espécie

consiste, justamente, em podermos mandar e desmandar e divertirmo-nos com seres

inferiores a nós!

Dionísio: Isso, sim...

Kali: Mas voltemos ao que nos interessa: o trabalho da dançarina. Estamos

aqui há muito tempo acompanhando seus laboratórios na busca de uma possível

metodologia de trabalho para alcançar o corpo mitológico e observamos que, nesses

anos todos, ela experimentou algumas maneiras diferentes de realizar sua prática para

sistematizar o trabalho com esse tipo de corpo cênico. Vamos, então, relembrar com

calma o processo todo que ela percorreu até aqui, a fim de o compreendermos melhor.

Peço que vocês me ajudem, caso eu me esqueça de algum detalhe importante.

Observamos que, após o sonho com o deus-cobra, a artista se propôs a deixar

com que as imagens relacionadas às mitologias que envolvem a serpente aflorassem

em seu corpo na forma de movimento expressivo em laboratórios práticos de pesquisa

de movimento. Para iniciar seu trabalho, ela optou pela Técnica Energética (T.E.) como

técnica psicofísica de trabalho –a mesma técnica que usou em sua pesquisa de

Mestrado.

No início do trabalho prático, ela não tinha certeza se o uso dessa técnica a

conduziria para imagens óbvias, pois ela tem bastante familiaridade com a T.E. e

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gostaria de tentar se entregar, o máximo possível, às imagens advindas genuinamente

do inconsciente; porém, teve receio de conduzir o trabalho racionalmente –pois, afinal,

depois de um certo tempo de trabalho com uma técnica específica, corre-se o risco de

racionalizá-la.

Por outro lado, ela constatou a potência e a verdade dessa técnica quando

decidiu investigá-la ainda mais a fundo e entregar-se totalmente a ela, cumprindo,

minuciosamente, cada passo da técnica, tanto que, em seus primeiros laboratórios, ela

trabalhou intensamente de acordo com as premissas da T.E.

Apolo: Certo, Kali. Vamos, então, deixar claro quais são essas premissas da

T.E. para que eu possa entender exatamente o que aconteceu ali. Porém, antes disso,

gostaria de fazer-lhes uma pergunta, a fim de verificar se eu entendi ao certo o que

aconteceu ao longo desses anos em que ela trabalhou o corpo mitológico. Verifiquei

que seu trabalho com a T.E. mudou significativamente desde o inicio de sua pesquisa

de Mestrado até aqui, estou correto? Tenho a impressão de que, de alguma forma, ela

parece ter introduzido novos exercícios práticos e novos caminhos de compreensão

para essa técnica, motivo pelo qual eu não vejo mais a T.E. pura, como aquela que

pudemos observar em sua pesquisa com o arquétipo da Deusa-Mãe, em seu Mestrado.

Kali: Claro, Apolo! E isso é perfeitamente esperado em uma pesquisa profunda

como esta. Acompanhe meu raciocínio: a dançarina trabalhou inúmeros anos com a

T.E. pura, sempre conduzida por sua orientadora, a Professora Dra. Marília Vieira

Soares. Porém, como já comentei com vocês, após sua pesquisa de Mestrado, ela se

interessou ainda mais pelo tema da mitologia, o que a levou a acompanhar o trabalho

de outros artistas que tinham o mito como inspiração poética. Ao acompanhar esses

trabalhos, ela pôde verificar e testar outros caminhos –diferentes da T.E.– para

alcançar o corpo mitológico e, com isso, ela sistematizou em sua pesquisa um novo

processo de trabalho prático com os estados alterados de consciência que a conduzem

ao inconsciente e ao mito.

Atentem, meus amigos, que, na arte, esse processo de adaptação e

ressignificação de diferentes técnicas de trabalho é muito comum, pois os artistas

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experimentam diferentes técnicas em diferentes contextos e vão adaptando e

readaptando seus trabalhos pessoais constantemente.

A dançarina encontrou um caminho de trabalho com o corpo mitológico a partir

de um processo que fazia sentido para ela, tanto no que diz respeito a sua pesquisa

teórica, quanto à sua experiência e ao seu trabalho prático. Mas percebam que ela

preservou a premissa central da T.E., a qual consiste em uma grande entrega física,

psicológica e emocional do dançarino (ou do ator, pois essa técnica pode ser utilizada

em todas as artes da cena, incluindo performance, circo e teatro), desde que este

esteja disposto a não controlar as imagens que o inconsciente pode vir a revelar e que

o corpo pode transformar em movimento expressivo.

Se não me engano, a T.E. é um tipo de trabalho utilizado por aqueles artistas

que Jung nos apresentou ao dizer que existem certos artistas que se entregam ao

inconsciente e deixam-se conduzir por ele.

Sarasvati: Sua consideração está correta, Kali. A T.E. é um tipo de técnica de

trabalho que ativa o corpo a fim de produzir energia física e ativar o inconsciente de

maneira que este forneça imagens ao artista que, por sua vez, as transforma em

movimento expressivo. Vejam o que a professora Marília Vieira Soares (2000) fala

sobre essa técnica:

Do ponto de vista da T.E., o corpo é o ponto neutro, ou centro energético, no qual se processam as informações adquiridas nas experiências vividas pelo indivíduo, que fornecem material para o diálogo com o mundo. (...) A T.E. dirige-se não só ao mundo exterior e à relação do indivíduo com os espaços externos, mas também à aquisição dos espaços internos, a boa utilização da energia vital e consequente boa disposição para o diálogo total predispondo a memória corporal a serviço da criatividade.(SOARES, 2000, p.17)

A autora não fala diretamente de inconsciente ou de suas relações com o corpo

físico, mas em todo o seu texto apresenta a crença na premissa das relações diretas

entre as dimensões físicas e mentais do corpo, e toda a T.E. baseia-se nesse conceito.

Podemos dizer que a memória corporal, à qual Soares se refere, é parte do conteúdo

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da psique, que se distribui nas dimensões da consciência e do inconsciente e que pode

ser usado na criação artística.

A T.E.possui um roteiro de trabalho de preparação corporal que consiste,

basicamente, em exercícios de consciência corporal, trabalho com as articulações –

buscando deixá-las livres de tensões– energização corporal e improvisação de

movimentos a partir dos estados alterados de consciência provocados por essa

preparação corporal.

Dionísio: E devemos lembrar que o que Soares e a dançarina que analisamos

aqui chamam de estados alterados de consciência não é um estado totalmente

inconsciente, mas um abandono do estado cotidiano de vigília em favor de um estado

no qual a razão não controla as imagens e as movimentações corporais, deixando que

o inconsciente comande essas ações.

Apolo: E o artista mantém sempre a razão um pouco ativa nesse momento do

trabalho, não é? O suficiente para que as imagens enviadas e os movimentos que

surgem não saiam de controle; afinal, isso é um trabalho profissional, que exige prática

e controle do corpo.

Sarasvati: Sim, isso é muito importante, caso contrário, não consideramos isso

um trabalho de criação cênica profissional. O artista que se dispõe a trabalhar com

estados alterados de consciência precisa ter controle da técnica que utiliza para tal e

precisa, principalmente, ter consciência da importância de saber parar e retomar a

prática no momento certo, pois a mente dos humanos tem muito mais força do que

muitos deles imaginam e nem sempre eles conseguem compreendê-la ou controlá-la.

Além disso, alguns conteúdos que afloram do inconsciente para o corpo podem ser

demasiadamente assustadores para esses seres humanos tão frágeis.

Kali: Pois é, os humanos tentam entender suas próprias mentes, mas ela é tão

complexa, que tenho a impressão de que nunca conseguirão.

Mas esse é outro assunto que teremos que deixar para outro momento. Agora,

vamos nos concentrar no trabalho aqui analisado, e peço que vocês observem um

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trecho da dissertação de Mestrado dessa dançarina, no que tange aos estados

alterados de consciência dentro da T.E.:

Essa técnica tem como base o uso da energia corporal a fim de provocar os chamados estados alterados de consciência, o que permite, assim, que os conteúdos mais remotos de nossa psique aflorem como movimentação corporal (...). O ponto principal que pretendo abordar é o uso dessa técnica como ponte entre o corpo (movimentação dançada) e o inconsciente. A T.E. é um dos possíveis caminhos para o acesso às imagens do inconsciente e acredito que os estados alterados de consciência induzidos por ela sejam os grandes responsáveis por tal acesso. (SALVADOR, 2009, p.34)

Atingir esses estados alterados de consciência a partir de técnicas psicofísicas

de trabalho exige preparação corporal; afinal, para que o corpo esteja em conversa

direta com o inconsciente, é muito importante que haja um rebaixamento do nível

cotidiano de vigília da consciência e que a dimensão física do corpo esteja preparada

para se movimentar a partir das imagens que surgirem. Pudemos observar que é

preciso que todas as articulações corporais estejam livres e debloqueadas, que a

musculatura não esteja enrijecida e que o corpo tenha possibilidades diversas para

responder aos estímulos das imagens liberadas pelo inconsciente. Assim, essa

dançarina trabalha cerca de trinta minutos preparando o corpo para o trabalho

psicofísico propriamente dito.

Ela realiza alongamentos, torções e relaxamentos musculares, que possibilitam

o estado corporal físico desejado e, só então, inicia o ritual do corpo mitológico. Faço

essa consideração porque considero duas importantes premissas para o trabalho com

estados alterados de consciência: o primeiro é, sem dúvida, a pré-disposição em

enfrentar os conteúdos do inconsciente, e o segundo é estar bem preparado

fisicamente para realizar esse enfrentamento; afinal, quando se entra em trabalho a

partir de estados alterados de consciência, o próprio tempo cronológico, com o qual os

humanos estão habituados, transforma-se em um tempo diferenciado do cotidiano e,

muitas vezes, perde-se a noção do tempo em que se trabalha, fazendo com que um

laboratório de experimentos práticos possa durar horas.

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Apolo: E vimos isso aqui, não é? Houve dias em que a dançarina ficou três

horas em trabalho físico constante e ela diz nem ter percebido esse tempo passar, a

não ser pela dor corporal que sentiu no dia seguinte!

Dionísio: Esse tempo que passa sem que os humanos percebam e que, ao

mesmo tempo, traz o mito para aquele determinado momento, é o tempo que os

humanos chamam de tempo mitológico, que, tal qual o espaço sagrado, é também um

tempo não-homogêneo e não-contínuo, opondo-se ao tempo cotidiano, que tem

começo, meio e fim claramente definidos. Esse tipo de tempo, mitológico, também é

defendido por Mircea Eliade (1999), quando o autor nos explica que, para que os

humanos possam vivenciar esse tempo sagrado, é preciso que se coloquem

disponíveis para que esse tipo de tempo se manifeste, como, por exemplo, em um

ritual:

Entre essas duas espécies de Tempo, existe, é claro, uma solução de continuidade, mas por meio dos ritos o homem religioso pode passar, sem perigo, da duração temporal ordinária para o Tempo sagrado. Surpreende-nos em primeiro lugar uma diferença essencial entre essas duas qualidades de tempo: o tempo sagrado é, por sua própria natureza reversível, no sentido em que é, propriamente falando, um Tempo mítico primordial tornado presente. (ELIADE, 1992, p.63)

Para o autor, o tempo sagrado (que aqui chamamos de tempo mitológico)

inscreve-se no corpo e no cotidiano humano na medida em que o homem busca

resgatar o acontecimento mitológico dentro de um determinado espaço de tempo

cotidiano, o que acontece em festas religiosas ou um culto, por exemplo. Naquele

momento do resgate, o tempo pode ser considerado “suspenso”, não por seguir a

obviedade do tempo de um relógio, mas por ultrapassar a noção de tempo cronológico

e, consequentemente, fazer com que o homem transcenda sua própria noção de

tempo, como acontece com a dançarina quando ela perde a noção desse em seus

laboratórios práticos.

Eu acredito que o estado alterado de consciência possa conduzir o artista até

esse tempo mitológico, o que colabora significativamente para que as imagens

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mitológicas surjam com mais facilidade em sua prática, e o que também pode fazer o

artista se perder no tempo cronológico comum: às vezes, ficando horas em laboratório

prático e não obtendo resultado algum, e, outras vezes, ficando apenas alguns minutos

e descobrindo movimentos expressivos significativos para seu trabalho.

Kali: E por isso é tão importante estar bem preparado física e

psicologicamente.

Apolo: Sim, e também considero importante destacar que a T.E pura tem um

ritual de preparação bastante particular e sistematizado para atingir o estado alterado

de consciência –que conduz o artista cênico ao tempo-espaço sagrado–, e esse ritual

consiste em potencializar o corpo para o trabalho psicofísico a partir de exercícios

focados em regiões específicas do corpo32.

Porém, como você mesma nos disse, Kali, nós observamos que a dançarina

não realiza esse ritual exatamente como propõe a T.E. Ela criou, a partir de muitas

pesquisas, um outro ritual que cumpre a mesma função do ritual estabelecido na T.E.,

isto é, preparar o corpo para os estados alterados de consciência, disponibilizando-o

inteiramente para o trabalho com o mito.

Já verificamos, em nossas viagens pelo mundo, e também através da História

da dança, que existem inúmeras formas de alcançar esse estado alterado de

consciência, e a dançarina em questão encontrou um caminho que funcionou para ela,

para seu corpo e para sua história com a dança, partindo da T.E.

Dionísio: Certo, e então, chegamos à conclusão de que a primeira premissa

para a realização do trabalho proposto por essa artista pressupõe entrega total do

dançarino (incluindo todas as dimensões de seu corpo). Eu diria que a segunda é a

preparação do local onde a prática irá ocorrer.

32

A T.E. parte da ativação das seguintes regiões corporais para o trabalho cênico expressivo: pés, joelhos, região do quadril, região do umbigo, região do peito, região do pescoço e região da cabeça. Porém, como não usamos essa premissa da T.E. para o encontro do corpo mitológico aqui proposto, não vamos explicar o trabalho com cada uma dessas regiões, deixando como sugestão de leitura a tese de Doutorado de Marilia Vieira Soares, presente nas referências bibliográficas do presente texto.

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Observamos que a dançarina introduz essa prática de preparação do espaço

em seu ritual e escolhe um local tranquilo, onde ela não venha a ser incomodada;

afinal, é importante não deixar que nada atrapalhe o trabalho depois que se entra em

estado alterado de consciência. Assim, depois de estar totalmente disponível e

encontrar um bom local para trabalhar, ela inicia a preparação efetiva desse local.

Vocês perceberam isso, não é? Viram que ela estabelece uma relação diferenciada

com o espaço onde dança?

Sarasvati: Sim, Apolo. Percebemos que ela introduz essa ação em seu ritual,

e, aqui, vamos retomar uma conversa que tivemos ainda na Índia. Você se lembra de

quando falamos de Hierofania, aquele conceito usado pelo mitólogo Mircea Elaide

(1992)? Recapitulando o conceito para refrescar a memória de vocês, Hierofania é a

consciência que transforma todos os fenômenos comuns do cotidiano humano em algo

sagrado –demos o exemplo do templo ou da árvore, que é um objeto mundano comum,

mas que os seguidores de determinadas crenças religiosas podem ver como

representações ou manifestações diretas do sagrado.

Pois bem, ela usa esse conceito quando inicia sua relação com o espaço físico

onde irá dançar partindo do princípio de que, para receber os conteúdos sagrados do

inconsciente em seu corpo, é preciso um local apropriado, um local sagrado.

Apolo: Sagaz ela, não? Claro que ela não ousaria nos convidar para um

espaço sujo, mal arrumado ou sem nenhum tipo de preparação! Ela entende que, para

que esses conteúdos de seu inconsciente (no caso, nós, ou os seres sobrenaturais: os

mitos) possam se manifestar em seu corpo, é preciso muita preparação, inclusive do

espaço onde essa manifestação irá ocorrer.

Dionísio: Ora, todos os povos e todas as culturas realizam essa preparação do

espaço quando o consideram, por algum motivo, sagrado –em especial, quando

realizam rituais religiosos ou de iniciação em seus templos, em cerimônias de

casamento, de nascimento, de batismo e até em suas casas, quando recebem visitas,

como sinal de respeito a elas.

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Sarasvati: E também eles sempre estabelecem os limites físicos desse local,

deixando claro qual é o começo e qual é o fim desse espaço físico sagrado. Quando

lemos os textos de Mircea Eliade (1992), nos quais ele trata da Hierofania, verificamos

alguns pontos importantes dessa relação do humano com o espaço sagrado e

verificamos que um dos aspectos principais dessa sacralização do espaço é que ele se

torna um ponto de referência para o sagrado manifestar-se ou um “centro” de revelação

do sagrado:

Vemos, portanto, em que medida a descoberta – ou seja, a revelação – do espaço sagrado tem um valor existencial para o homem religioso; porque nada pode começar, nada pode se fazer sem uma orientação prévia – e toda orientação implica em um ponto fixo. É por essa razão que o homem religioso sempre se esforçou por estabelecer-se no “Centro do Mundo”. Para viver o mundo é preciso fundá-lo. (ELIADE, 1992, p.26)

Esse autor mostra-nos o quanto é importante estabelecer os limites físicos do

local sagrado e nós, deuses, percebemos, em nossa experiência com os humanos,

que, para que esse lugar sagrado aconteça, é preciso fundá-lo, é preciso estabelecer

onde esse local encontra-se fisicamente; e é isto o que o autor considera fundar o

mundo: estabelecê-lo como objeto de existência real, palpável e com limites físicos

claros.

O homem religioso faz isso ao construir templos, ao criar altares, ao instituir a

um país ou a uma terra a característica de sagrada e, para os artistas, o espaço de

trabalho é considerado, normalmente, um local sagrado, por ser o local onde sua arte

acontece. Para aqueles artistas que buscam o corpo mitológico, a preparação do local

de trabalho estabelece os limites físicos desse local e colabora com a evocação do

estado alterado de consciência, na medida em que transforma o local da prática de

trabalho em um lugar sagrado e não cotidiano. Assim, podemos dizer que sua relação

com o espaço no qual se realiza o trabalho artístico se torna sagrada também porque

esse espaço físico passa de uma sala comum para um lugar sagrado.

Para tanto, a dançarina que estamos observando limpa o local, às vezes o

aromatiza com fragrâncias ou incensos, outras vezes coloca flores e sempre,

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sistematicamente, movimenta-se dentro desse espaço, estabelecendo os limites físicos

onde os movimentos expressivos irão ocorrer. Dessa forma, ela toma consciência dos

limites do espaço onde irá dançar, dos limites de seu corpo nesse espaço, e estabelece

a fronteira sagrada: ali, dentro daqueles limites estabelecidos pelo seu corpo em

movimento, é o local exato em que o corpo mitológico irá se manifestar.

Todas essas ações têm a função de tornar esse ambiente, que é uma sala de

dança comum, em um espaço sagrado e, portanto, promovendo a Hierofania.

Apolo: Em minhas pesquisas, li que esse ritual de preparação de local é algo

comum nos processos criativos de dança e teatro. Mesmo os artistas que não

trabalham com o corpo mitológico realizam rituais para preparar o espaço onde irão

criar.

Sarasvati: Caro Apolo, a Hierofania é muito comum entre os humanos, e

mesmo quando eles não nomeiam o local como um local sagrado, mas estabelecem

uma relação especial com esse local, ela ocorre. E farei uma observação aqui entre

nós: eu percebo que essa é mais uma prova de que eles procuram sacralizar tudo com

o que se relacionam, independente de terem uma relação profunda com o sagrado.

Mircea Eliade concorda comigo:

É preciso acrescentar que uma existência profana jamais se encontra em estado puro. Seja qual for o grau de dessacralização do mundo a que tenha chegado, o homem que optou por uma vida profana não consegue abolir completamente o comportamento religioso. (...) veremos que até a existência mais dessacralizada conserva ainda traços de uma valorização religiosa do mundo. (ELIADE, 1992, p.27)

Dionísio: Eis mais uma prova da injustiça cometida com a condenação de

Prometeu! Afinal, se eles sacralizam tudo, de uma forma ou de outra, é porque sabem

usar a sabedoria!

Apolo: Ora, Dionísio, não precipite as nossas conclusões! No que concerne a

Prometeu, eu ainda não cheguei a conclusão nenhuma. Deixe-me continuar

entendendo o que a dançarina faz em seu trabalho para, então, poder decidir se é

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possível existir sagacidade na arte e deliberar minha opinião em relação à condenação

de Prometeu.

Caros amigos deuses, eu preciso sistematizar, em minha mente, o processo

escolhido pela dançarina para clarear meus pensamentos. Vamos lá! Já vimos que a

artista prepara seu corpo e sua mente (entendendo ambos como uma unidade),

disponibilizando-os ao trabalho com o inconsciente mitológico e que também prepara o

local onde vai trabalhar, de modo a tornar sua relação com ele uma relação sagrada.

Até aqui, está claro. Então, podemos verificar que, a partir daí, ela inicia uma prática

corporal que consiste em liberar as articulações de possíveis tensões e em

alongamentos da musculatura.

Nessa prática, verificamos que ela retoma alguns importantes conceitos da

dança que são universais de certa forma, pois todos os humanos que dançam ou que

estudam a dança reconhecem que liberar as articulações e alongar a musculatura antes

de um trabalho de criação em dança é essencial para o bom desempenho físico. Então,

sem diferenciar esse trabalho daqueles de outros dançarinos, ela realiza exercícios que

se iniciam no chão, com alongamento, torções, trocas de apoios, trabalho com peso e

aquecimento de musculatura.

Kali: Devo corrigir-lhe quanto a sua colocação, Apolo. A dançarina não realiza

essa prática com as articulações e a musculatura apenas para seu bom desempenho

físico. É claro que este último está diretamente relacionado com essas práticas e, por

isso, são práticas consideradas universais na dança. Porém, ela entende que todo o

seu corpo –constituído pelos processos físicos, biológicos, mentais, emocionais,

sociais, etc.– integra-se quando as tensões físicas liberam-se. As técnicas psicofísicas

buscam a integração corporal total e apresentam como um de seus principais

fundamentos a liberação de seu corpo físico para a consequente liberação de outras

dimensões corporais, sejam elas mentais ou emocionais.

Assim, posso lhe garantir que, embora o desempenho físico dependa

diretamente da liberação das articulações e do alongamento da musculatura, não é

somente com esse objetivo que a dançarina realiza essa etapa de seu ritual de

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preparação, pois, a partir dessas ações, podemos dizer que as imagens do

inconsciente transitam mais facilmente entre as dimensões corporais físicas e mentais.

Observamos isso nos dias de laboratório prático em que ela não se preparou

suficientemente bem fisicamente e, por isso, não obteve bons resultados com o corpo

mitológico.

Apolo: Sim, faz todo sentido! E complemento sua fala, Kali, observando que,

imediatamente após os exercícios que citei, ela inicia um processo de improvisação que

me parece ser o início do estado alterado de consciência, e creio que esse processo só

é possível graças ao ritual e aos exercícios físicos que ela realiza, provando que não é

apenas pelo desempenho físico que ela escolheu tais ações.

Kali: Esse ponto deve ficar claro para vocês, meus caros amigos deuses: se ela

entende o corpo como uma grande “soma” em constante processo, como já explicamos

anteriormente, ativá-lo fisicamente reflete, diretamente, nas potencialidades emocionais,

sensíveis e psicológicas, garantindo um corpo disponível para o trabalho com os

conteúdos mitológicos que possam surgir em processo de criação.

Apolo: Sim, creio que entendemos a importância da preparação corporal para o

trabalho com o corpo mitológico e, agora, nós podemos continuar falando do processo

de improvisação que ela inicia nesse ponto do trabalho.

Dionísio: Adoro os momentos de improvisação. Vocês não acham os

momentos mais potentes dessa prática? Os momentos em que ela nos atinge

diretamente da maneira mais forte que pode? Isso não lhes parece o transe que vemos

em meus rituais ou ainda “mania” que vimos existir nas Tragédias Gregas?

Kali: E é exatamente isso, Dionísio! A improvisação é o momento mais potente

do trabalho com o corpo mitológico, e podemos dizer que de muitos outros trabalhos

cênicos. De tão potente que esse momento pode ser, existem muitos estudos sobre os

exercícios de improvisação realizados pelos artistas cênicos. Esses estudos investigam

a improvisação a partir de vários pontos de vista, e não pretendo esmiuçar as diversas

possibilidades de trabalho que a prática da improvisação pode proporcionar. Porém,

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não podemos deixar de falar da importância desse momento no que diz respeito ao

trabalho com o corpo mitológico.

Vou explicar-lhes como a dançarina entende a improvisação dentro de seu

trabalho com a Dança Contemporânea, pois ela estuda esse tema há algum tempo e já

publicou alguns textos a esse respeito. Acompanhem comigo as suas considerações:

Etimologicamente, a palavra “Improviso” deriva do latim IN PROMPTU, “em estado de atenção, pronto para agir”, que vem de IN, “em”, mais PROMPTUS, “prontidão” que, por sua vez, origina-se de PROMERE, “fazer surgir”. Esse estado de prontidão do artista, no momento de surgimento da sua obra, caracteriza a ação do improviso na criação artística. (OLIVEIRA; SALVADOR, 2013, p.10)

A dançarina considera que a improvisação é, portanto, um importante processo

da criação artística propriamente dita, por meio do qual “faz-se surgir a obra”, ou, no

caso da dança, faz-se surgir o movimento expressivo.

Assim, partindo de tudo o que já conversamos sobre o corpo na dança e

entendendo que improvisar é estar pronto para agir, podemos alargar nossa

compreensão sobre a improvisação, dizendo que improvisar é abrir possibilidades de

exploração e experimentação; afinal, a improvisação sempre trabalha com o corpo

soma, abrangendo seus diferentes conteúdos como a memória, a emoção e as

sensações. Observem o que Lazzaratto (2011) nos fala sobre o ato de improvisar:

Improvisar é alcançar a liberdade. Não uma liberdade utópica, romântica, mas sim instaurar-se em um plano poético onde a impossibilidade não existe. A sensação da possibilidade leva o ator a conectar-se com prazeres até então não revelados, abrindo potencialidades de significação e compreensão que não advém necessariamente da racionalidade. Improvisar faz o corpo pensar. Abole a divisão corpo/mente. Razão e sensibilidade juntas processando os mais variados estímulos e respondendo a eles de maneira criativa; pois nesse estado (corpo pensando), não há certo nem errado, não há juízo de valor, muito menos maniqueísmos e dicotomias (...). (LAZZARATTO, 2011, p.29)

Para esse autor, improvisar é um ato que desperta saberes corporais que

excedem a racionalidade tradicional e entram no campo do corpo soma e,

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consequentemente, da sensibilidade. O momento da improvisação abre o corpo para

novas e inusitadas experiências que quebram a racionalidade e proporcionam novas

saídas corporais sendo, portanto, um momento de criatividade em potencial.

Apolo: Podemos dizer que improvisar é um ato criativo?

Kali: Claro, Apolo! Talvez o momento de criatividade mais potente e genuíno

que um humano possa alcançar. Acompanhem meu raciocínio: já pudemos constatar

nas considerações de Dionísio sobre a História da Dança Contemporânea que

diferentes artistas lançaram mão da improvisação em seus processos ou em seus

resultados estéticos. Porém, devemos entender que essa não é uma exclusividade de

artistas, e que a improvisação também é usada em outras áreas de conhecimento,

tendo em comum com a arte sua função específica de instigar a criatividade.

Para entendermos melhor essa minha afirmação, nós podemos recorrer a

exemplos da vida cotidiana dos humanos como, por exemplo, quando eles precisam

resolver algum problema e a solução não aparece claramente para eles. Nessas

situações, é de costume que eles recorram à improvisação, tentando novas opções e

experimentando possíveis saídas para determinados problemas, até encontrarem uma

solução que lhes agrade. Assim também ocorre na rotina de profissionais das diferentes

áreas, que buscam soluções para diferentes situações.

Para clarear ainda mais essa comparação, quero lembrar-lhes, meus colegas,

de que “improvisar”, neste contexto artístico, não significa “realizar alguma coisa de

qualquer jeito”, como costumamos usar o termo em nosso linguajar cotidiano: no

contexto artístico, improvisar é entendido como “abrir possibilidades de exploração e

experimentação”, como Lazzaratto (2011) já nos esclareceu.

Na arte, essas possibilidades podem ser despertadas pela improvisação a partir

de algumas técnicas específicas –como, por exemplo, a TE. Podemos dizer que

improvisar é matéria viva, e que o ato da improvisação só é apreendido se o

improvisador entende que esse é um ato de entrega total ao momento exato da ação,

no “aqui-agora”. É, portanto, uma disposição a enfrentar riscos e a trabalhar a partir

desses riscos. Improvisar é sempre um tiro no escuro, em que tudo pode acontecer e,

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sendo assim, o improvisador deve entregar-se à improvisação, sabendo que ela pode

transformá-lo e que esse ato será diferente a cada novo momento dessa prática.

Observamos que um novo movimento aparece a cada novo dia de laboratório

de improvisação, bem como uma nova sensação ou uma nova imagem; afinal, o ato e

improvisar não pressupõe partituras de trabalho, mas liberdade para o novo.

Apolo: Permitam-me recorrer, novamente, aos estudiosos humanos para

acrescentar uma consideração a respeito da “novidade” como característica de cada

novo ato de improvisação. Gouvea (2012), em seus escritos sobre a improvisação em

dança, nos mostra como essas novas possibilidades ocorrem nessa prática:

O mundo do criador não é comum, nem corriqueiro. Nele não existem certezas, garantias ou finalidades claras; não há uma verdade única, nem um propósito dado, ao contrário, o criador enamora-se do risco e flerta com a loucura, deixando-se fisgar pelo incompreensível e desconhecido da criação. Ele se abre ao caos necessário à invenção do novo, deixa-se levar em rodopios até um máximo de instabilidade, dobrando-se e desdobrando-se para dentro e para o mundo. Sua destreza em tornar visível o que poucos conseguiriam ver é a manifestação de um poder genuíno–não de um talento, e único: o poder de atravessar o caos infinito, mesmo que por um brevíssimo instante, e dele voltar transformado. (GOUVEA, 2012, p.11)

O que a autora nos diz é que não é possível criar sem se entregar ao novo, pois

é do “caos” que nasce a novidade e o inusitado, e, quanto a isso, todas as técnicas de

improvisação estão de acordo: improvisar é abrir-se ao acaso, e não é fácil entregar-se

ao desconhecido. Para que essa entrega possa realmente acontecer, é preciso chegar

a um estado físico, emocional e psicológico que permita a improvisação; é preciso,

portanto, chegar a um estado poético de abertura ao inusitado:

O improvisador, para tornar sua dança um verdadeiro acontecimento de arte, enfrenta as forças caóticas que emergem de um sem fundo infinito. Este enfrentamento é já o desejo de criar o caos para si, a intuição que o incita a avançar em direção à desestabilização, à retirada de tudo aquilo que já existe e que lhe fornece uma base solidamente constituída. É preciso “perder a cabeça” para criar o novo, ou ainda, para fazer nascer a singularidade do gesto de dança, sua forma única e indefinível. O improvisador abre mão provisoriamente daquilo que o enraíza neste mundo, deixando se afetar pelas intensidades que

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circulam e que o atravessam e o tocam no momento da criação. Perder a cabeça é mergulhar num plano da experiência que é corporal em sua potência máxima, e, neste sentido, o mergulho afeta a estabilidade da consciência comum, abrindo-a às experiências singulares e paradoxais mobilizadas por um corpomente transformado, expandido, distorcido pelas forças caóticas da dança em estado nascente. Não há causalidade na criação, na invenção do novo, portanto, não é possível entender este fenômeno partindo-se dos conceitos e parâmetros que organizam o mundo objetivamente percebido. Para criar o novo é preciso abrir mão do poder da razão para explicar, julgar e organizar a experiência. (GOUVEA, 2012, p.12)

Não é possível entregar-se ao inusitado –premissa da improvisação– sendo

demasiadamente racional. Assim, o improvisador deve estar pré-disposto a invadir

algumas regiões “desconhecidas” de sua psique para conseguir resultados em sua

proposta, mergulhando no plano máximo de sua potência corporal, como nos sugere

Gouvea.

Sarasvati: Sim, e como nos sugerem também os artistas que usam a teoria de

Jung em seus processos criativos, conforme expliquei a vocês anteriormente, pois

essas “regiões desconhecidas” do inconsciente são o inconsciente pessoal e coletivo

que Jung nos apresenta.

Apolo: As coisas começam a ficar claras para mim! Claro, se o inconsciente é

parte do corpo e o corpo em movimento no momento da improvisação passa pelo que

Gouveia chama de um “mergulho que afeta a estabilidade da consciência comum”,

então chegamos à conclusão de que a improvisação trabalha também com os

conteúdos inconscientes do corpo humano e que, por isso, é tão importante para o

corpo mitológico –considerando que o mesmo é o corpo cênico que alcança o sagrado

mitológico no momento da dança e que nós, mitos, estamos intensamente presentes

nesta dimensão corporal que é ativada no momento da improvisação: o inconsciente do

artista.

Sarasvati: E lembrando que Jung (1979) nos esclarece que o inconsciente

possui um material psíquico que está em processo de renovação e ressignificação a

todo instante –caso contrário, teríamos um material psíquico estático, o que não é o

caso, pois preenchemos nossa consciência a cada nova experiência de vida–,

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concluímos que o inconsciente também está sempre em movimento, inclusive se

relacionando com as camadas mais externas da consciência:

Temos razões também para supor que o inconsciente jamais se acha em repouso, estando sempre empenhado em agrupar e reagrupar as chamadas fantasias inconscientes. Só em casos patológicos tal atividade pode tornar-se relativamente autônoma; de um modo normal ela é coordenada com a consciência, numa relação compensatória. (JUNG, 1979, p.118)

E podemos aprofundar ainda mais as considerações de Jung sobre a atividade

constante entre inconsciente e consciência, estendendo os resultados dessa troca para

o corpo em estado de improvisação, pois o corpo na dança contemporânea é entendido

como um organismo em processo, que se reelabora e se ressignifica a cada instante de

novas experiências, não sendo, portanto, algo estático e pronto, mas um organismo

dinâmico em todas as suas dimensões. Ora, se o corpo está em um contínuo e

dinâmico processo, no momento em que ele se movimenta em estado de improvisação,

certamente, aciona o inconsciente, que também está em constante movimentação,

despertando memórias, sensações e imagens que acabam emergindo do inconsciente

em forma de movimento expressivo.

Apolo: E, a partir dessa compreensão, esclarecemos o motivo pelo qual alguns

autores dizem que no momento da improvisação –que é o momento em que o

improvisador deve estar entregue e aberto aos riscos– tudo pode acontecer; pois,

nesse ato, infinitas possibilidades físicas, emocionais e mentais podem ser

despertadas, todas elas ligadas ao que os artistas sentem, pensam, entendem ou

apreendem sobre o mundo, seja de maneira consciente, seja inconsciente.

Sarasvati: Sim, caros, vejo que tudo está ficando mais claro para vocês. Vejo

até a possibilidade de uma reconsideração da condenação de Prometeu. Mas antes de

decidirmos sobre Prometeu, vejam o que encontrei em um texto de outra estudiosa

junguiana a respeito desse momento de abertura de corpo e de consciência no que diz

respeito ao momento da improvisação:

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A improvisação livre é um misto de catarse e moldagem, mas principalmente, um meio de lidar com as emoções e outras áreas irracionais. O indivíduo é tratado como um todo e não como um ser preponderantemente racional. Na improvisação, podemos movimentar-nos livremente, sem ponderar coisa alguma, dando clara expressão aos impulsos vitais que, continuamente e de forma dinâmica, emergem do âmago de nosso ser. (ZIMMERMANN, 2011, p.195)

Conforme a autora sugere, na improvisação, os movimentos surgem das áreas

que chamamos de irracionais (inconscientes), conduzindo o artista ao risco, ao caos e

às infinitas possibilidades que a ação de improvisar pode promover, e devemos lembrar

que esse material irracional ou do inconsciente é também individual, o que pode tornar

cada obra de arte única e singular.

Se o artista usa seu corpo soma no momento da improvisação, ele tem como

material bruto de trabalho a si próprio e, dessa forma, a improvisação torna-se uma

grande aliada na pesquisa e na elaboração de sua arte. Podemos, então, dizer que o

ato da improvisação é um momento de profunda criação; afinal, podemos definir criação

da mesma forma como definimos improvisação: ambas consistem em entregar-se ao

risco, abrindo possibilidades de expressão.

Concluímos, portanto, que o momento de improvisação que faz parte do

trabalho da artista que observamos aqui –o trabalho com o corpo mitológico– é um

processo que permite que os conteúdos mitológicos emerjam do inconsciente e

transformem-se em movimentos expressivos; enquanto a dançarina está em

improvisação, seu corpo torna-se o canal de trânsito entre o sagrado e o mundano, e,

aí, nesse momento, nós, os mitos, podemos atuar em seu corpo, transformando-o em

corpo mitológico.

Dionísio: Por isso, eu digo que esse processo é muito parecido com aquele

que os humanos passam quando estão em transe, nos rituais dedicados a mim!

Apolo: E faz sentido, não faz? Afinal, como acabamos de ver, o movimento de

improvisação libera energias psíquicas e pode transportar o artista para um tempo-

espaço diferenciado daquele do cotidiano humano, facilitando nossa influência sobre

seus movimentos, da mesma forma que acontece nos rituais dedicados a nós, seres

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sagrados! Caros colegas, eu começo a entender o que me mostraram aqui e vejo a

possibilidade de repensar a condenação de Prometeu. Afinal, isto é pura sabedoria em

arte: tentar se aproximar de nós dessa forma, buscando o sagrado a partir do corpo em

movimento expressivo! Adoro me ver refletido na arte!

Dionísio: Pois eu não lhe disse, Apolo?! A Dança Contemporânea trouxe-nos

de volta ao trabalho artístico! Esses humanos não são tão loucos a ponto de nos

abandonar por completo em seus feitos, em sua arte e, muito menos, a ponto de tirar o

sagrado da dança!

Kali: Ora, colegas, deixem a vaidade de lado um minuto e vejam o que tenho

aqui comigo: o diário de trabalho da dançarina! Enquanto vocês ficam se vangloriando

por ainda estarem presentes na arte, eu fui até lá e peguei seu diário! Venham comigo,

vou parar o tempo cronológico por alguns minutos para que ela não se dê conta do

sumiço deste enquanto o lemos e concluímos nossas considerações. Sugiro que nós

leiamos alguns trechos do início de sua pesquisa para verificarmos como se deu o

trabalho de improvisação naquele momento e quais imagens e sensações surgiram em

seu corpo.

4.3 – Considerações sobre o diário de trabalho dos laboratórios práticos da

pesquisa com o corpo mitológico

Diário de Trabalho

Dia 10/09/2011

Hoje, eu trabalhei o quadril a partir da T.E. e os resultados foram muito parecidos com

aqueles que venho obtendo desde 2007, quando uso essa região de meu corpo. Fico

pensando se eu estou forçando um resultado corporal ou se os movimentos do quadril

trazem realmente à tona movimentos de animais, feras e bestas, como veio fortemente

hoje.

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Eu estava tentando retomar o estudo com os mitos de pássaros, mas os pássaros

deram lugar para um ser estranho, cruel, parecia rastejar em um limbo e tinha uma

energia visceral muito forte, querendo parir o mundo todo e depois comer a cria.

Cruel.

Foi difícil trabalhar com essas imagens, hoje.

15/10/2011

Os pássaros voam infinitamente neste espaço, hoje. Sinto asas brotando de meus

braços (sem lógica nenhuma, mas é de meus braços que as aves brotam, não das

costas), e me movimento voando pela sala e cantando.

Às vezes, sinto um animal mais feroz querer tomar o lugar do pássaro, mas não posso

me perder agora... Está fluindo tão bem com as imagens dos pássaros (...)

Dia 25/10/2011

Há meses essas bestas insistem em aparecer em meu corpo. Hoje, surgiu um enorme

leão macho, com uma cabeleira gigante e um corpo robusto. Meu corpo ficou pesado,

me senti com uns 200 quilos, mas era de pura força.

Um salto apareceu como movimentação constante. Parecia um salto do leão atacando

a presa. Pés traseiros impulsionando. Havia carnes de animais mortos há muito tempo

em minha frente. Mas não as comi.... Será que a vegetariana que sou está bloqueando

essa ação do inconsciente?

O leão foi se transformando em um homem muito forte. Me senti como um daqueles

homens de estátuas gregas. E meu corpo estava quente, meu coração batia forte em

meu umbigo, o que impulsionou mais e mais saltos, que foram cessando até parar com

um grito que também saiu de meu umbigo.

Hoje fiz um laboratório de 2h40... Talvez o maior, até hoje.

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Dia 07/11/2011

Será que o que senti em meu corpo hoje é mito? Tudo o que vier em minha mente é

mitológico ou eu estou forçando?

Uma mulher cantando na beira de um rio, a lua enorme redonda e cheia na minha

frente. O rio levantando ondas gigantes que me atingem e me afogam. Eu morro. Só

isso. Depois fiquei forçando a volta do estado alterado de consciência, mas não

consegui nada.

Preciso de uma pausa, talvez eu precise de férias.

Dia 12/11/2012

Pássaros voltam. Voei infinitamente buscando algo lá no alto. O que seria? A sensação

era boa, como se as asas fossem crescendo em minhas costas.

Fênix, certamente... Pois eu me destruí de propósito e fui juntando os pedaços de mim

e voltei maior e mais forte. Minhas asas coloridas ocuparam todo o espaço do céu.

Isso não acabaria nunca se eu não tivesse forçado para acabar.

Meus pés ficaram doendo, minhas pernas e braços também. Acho que devo ter

colocado uma força muscular muito grande para realizar alguns movimentos, mas não

percebi enquanto os realizava. Acho que terei dores amanhã. Mas parei por este ano.

Nem sei se os pássaros ainda querem voltar em mim. Então, vou dar um tempo para

eles.

Apolo: Pelo que estamos lendo em seu diário de trabalho, a dançarina não

trabalhou logo no início com a temática do deus-serpente.

Kali: Não, Apolo. Ela estava realizando um trabalho com a mitologia de

pássaros e passou quase um ano estudando-os em seu corpo e até chegou a

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apresentar um estudo coreográfico chamado “Voo invisível”, em 201133. Porém, já

comentamos que esse tipo de artista –o que permite que as imagens do inconsciente

comandem seu trabalho– está sempre sujeito a essas mudanças ao longo de seus

processos criativos, e com ela não foi diferente.

A pesquisa corporal com a mitologia de pássaros pode ser considerada como o

início do trabalho com o corpo mitológico, no qual, de maneira geral, irão aparecer

muitas imagens que estão latentes no inconsciente. São imagens que estão alojadas

nos limites entre o inconsciente e a consciência e que, por isso, irão aflorar no corpo em

movimento mais rapidamente, e creio que as imagens dos pássaros mitológicos

surgiram para a dançarina antes da imagem da serpente por estarem latentes em seu

corpo e naquele momento.

A partir do trabalho com estados alterados de consciência e com a T.E., as

imagens dos pássaros apareceram no corpo da dançarina, que as transformou em

movimento expressivo, no estudo coreográfico “Voo Invisível”, que teve a participação

de algumas alunas do curso de Arte-Educação da Universidade, onde lecionava na

época (a Universidade Estadual do Centro-Oeste do Paraná –UNICENTRO).

Depois da conclusão desse estudo coreográfico, os laboratórios continuaram e

foram se transformando. Como vimos em seu diário, nos laboratórios, surgiram alguns

animais ferozes e cruéis, algumas bestas, um leão e animais rastejantes que ela ainda

não havia identificado, como uma cobra. Então, ela percebeu o quanto os conteúdos

que surgiam em sua movimentação estavam se modificando. Os pássaros leves e

carregados de histórias de liberdade e transformação espiritual davam espaço a feras

selvagens que matavam, comiam suas vítimas e destruíam o mundo todo. Até o

momento em que ela teve o sonho com o deus-serpente e decidiu dar outro rumo para

o trabalho prático, deixando que as imagens de pássaros fossem sumindo aos poucos

e encontrando as serpentes em seu corpo e em sua movimentação.

33

As fotos e os comentários sobre esse estudo coreográfico estão no Anexo 1.

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Dionísio: A mente dos humanos é tão complexa que brinca com eles e eles

nem percebem. Imaginem só que ela foi de um pássaro leve e sutil para uma víbora

fatal.

Sarasvati: Dionísio e Apolo, é importante que vocês não se esqueçam de que a

dançarina trabalha com as imagens do inconsciente, e já vimos que o inconsciente não

é estático, e que, consequentemente, as imagens com as quais ela trabalhou também

não são. Além disso, os símbolos (ou imagens míticas ou arquetípicas) que surgem em

laboratórios práticos desse tipo não são sempre óbvios ou descrevem o que nossa

consciência primária e racional quer entender com clareza.

Creio que este trecho do estudioso junguiano Erich Neumann (2003) possa

esclarecer esse importante ponto:

A forma de representação peculiar ao inconsciente não é a mesma da mente consciente. É uma forma que não tenta nem é capaz de apreender e definir os seus objetos numa série de explanações discursivas ou de reduzi-los à clareza mediante análise lógica. O modo de ação do inconsciente é distinto. Os símbolos se reúnem em torno da coisa a ser explicada, compreendida e interpretada. O ato da conscientização consiste no agrupamento de símbolos a redor do objeto, todos eles circunscrevendo e descrevendo, a partir de vários lados, o desconhecido. Cada símbolo revela outro lado essencial do objeto a ser percebido, aponta para outra faceta do seu significado. Somente o cânone de tais símbolos congregados em torno do centro em questão, o grupo simbólico coerente, pode levar a uma compreensão daquilo para que os símbolos apontam e que tentam exprimir. (NEUMANN, 2003, p.26)

Percebam que o autor nos diz que não devemos entender nem tentar colocar

lógica nas ações do inconsciente, pois ele se manifesta por uma via não racional, e, por

isso, acaba conduzindo os humanos a caminhos não óbvios. Para entendermos o

trabalho da dançarina com o inconsciente, precisamos entender que os símbolos que

apareceram em seu trabalho (as imagens míticas ou arquetípicas) podem apontar para

diferentes conteúdos do inconsciente e tornar esses conteúdos imagens conscientes

consiste em não entendê-las separadamente umas das outras, mas agrupá-las e,

então, talvez, tentar dar possíveis significados a elas.

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Assim, podemos dizer que a transição das imagens de pássaros mitológicos

para a serpente faz sentido dentro do processo de trabalho que ela se propôs a fazer,

considerando o agrupamento e as inúmeras facetas que cada símbolo que surgiu em

laboratório pode representar.

Esse ponto que trata da interpretação das imagens do inconsciente é

profundamente abordado pela Psicologia Junguiana, mas estamos analisando o

trabalho da dançarina a partir de seu processo criativo e não pelo ponto de vista

psicológico, por isso, não vou me aprofundar nas considerações de interpretação das

imagens usadas pela artista advindas do inconsciente, deixando claro, apenas, que o

inconsciente é dinâmico e, consequentemente, o trabalho do artista da dança deve

seguir essa mesma dinâmica.

Leiam agora o trecho de seu diário que ilustra bem esse momento de transição

de pássaros para cobras:

Dia 05/05/2012

Hoje, eu senti algo estranho. Uma transformação visceral. Eu era um pássaro que

voava num céu azul, sobre uma floresta e, ao olhar para baixo, senti um forte desejo de

me jogar no chão. Subitamente, estava lá, largada no chão, me roçando na terra, me

sujando toda. Minhas asas estavam repletas de lama e eu não precisava mais voar.

Meu corpo foi perdendo o calor, e um frio tomou conta de minha pele. As asas estavam

lá, mas eu não era mais pássaro, mas um “sei-lá-o-quê” rastejante, com asas,

enlameado. E o mais estanho é que fiquei assim por muito tempo, sentindo aquela

energia ruim (porque eu não era, nem de longe, um ser do bem).

Depois de ter ficado no chão me arrastando naquela lama, minhas asas se libertaram

novamente, e saí saltando pelo espaço, como se eu pudesse fazer absolutamente tudo.

Um ser estranho, alado, cruel e poderoso, dominou minha movimentação. Tentei fugir

dele, mas depois achei melhor deixá-lo lá, me dominando.

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Corpo tremendo de frio, mas uma satisfação intensa em poder voar quando eu

quisesse, se eu quisesse e do jeito que eu quisesse.

Forcei para acabar com aquela movimentação até acabar com essa experiência que foi

intensamente física e poderosa. Assustei-me, porque o pássaro que vinha antes em

meu corpo era mais leve, era um ser naturalmente belo e puro... Esse de hoje era

sobrenatural, feio... Não sei se estou preparada para ele.

Figura 2: Diário de trabalho, dia 05/05/2012

Apolo (Falando com o diário): Claro que você não estava preparada para esse

ser, minha querida, simplesmente porque vocês, humanos, nunca estão totalmente

preparados para as ações mitológicas! Somos fortes demais para vocês!

Sarasvati (Risos): De certa forma, você tem razão, Apolo. Nem sempre os

humanos querem ou gostam das imagens do inconsciente, mas o trabalho desse tipo

de artista consiste, exatamente, em não fugir e nem controlar essas imagens que o

inconsciente apresenta ao corpo durante o processo criativo. Podemos dizer que a

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dançarina foi corajosa em enfrentar esse momento e não foi fácil para ela, pois vimos

que ela passou algum tempo relutando em assumir o trabalho a partir de uma energia e

de sensações que ela considerava tão ruins.

Kali: Sim, caros amigos! Como já dissemos, o trabalho com o corpo mitológico

exige entrega total do artista, e essa entrega não é nada simples, pois acaba

esbarrando em sua educação, em sua cultura e até em seus valores morais, religiosos.

Mas a improvisação via estados alterados de consciência pode trazer absolutamente

todo tipo de sensação e de imagens para o corpo, e lidar com isso pode ser doloroso e

desgastante. Observem o que ela escreve neste outro dia de laboratório prático:

05/06/2012

Hoje, chorei muito enquanto me movimentava. A serpente está surgindo e não sei se

gosto dela. Ela é muito cruel, traiçoeira e fatal. Será alguma espécie de energia maligna

que eu fico reprimindo dentro de mim e que está aflorando através de minha dança?

Seria o inconsciente pessoal dizendo algo ou ela vem do inconsciente coletivo mesmo?

E isso faz diferença agora? O que importa é que ela vem me dominando, matando tudo

à sua volta. Fica no chão, largada, esperando a hora de dar o bote fatal e acabar com

tudo. Quando me transformo em homem, tenho um pênis enorme e uso esse pênis

como arma, ejaculando veneno no mundo.

Não gosto dela, pelo menos não hoje. Mas ela insiste em voltar. Hoje, parei e retomei o

laboratório duas vezes, e ela voltou da mesma forma nas duas vezes. Então, me vem

um choro que sai direto de um nó na garganta, e sei que tenho um medo enorme de ter

que lidar com isso. Mas isso aqui não é terapia. Termino de chorar aqui mesmo, na sala

de ensaio e vou embora sem levar isso comigo.

Sarasvati: Aqui, eu creio que devemos nos ater nesse último comentário da

dançarina, pois ele é importantíssimo para a compreensão do corpo mitológico; afinal,

este não é um trabalho terapêutico, embora possa se confundir com ele: é um trabalho

artístico! O que quero dizer é para vocês ficarem atentos, pois sabemos que trabalhos

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com o inconsciente podem ser profundamente terapêuticos no sentido de trazer à tona

repressões, sentimentos e sensações diversas; afinal, já concluímos juntos que o corpo

é um grande processo de todas as dimensões que o compõe. Porém, aqui devemos

voltar a falar sobre a maturidade do artista ao trabalhar com esses conteúdos

mitológicos e saber deixá-los no laboratório, isto é, não levar essas sensações consigo

o tempo todo, para não atrapalhar nem seu trabalho artístico, nem sua vida cotidiana.

Como Kali nos disse, esse processo pode ser desgastante, mas não podemos

nos esquecer de que falamos de um tipo específico de artista que busca trazer o

sagrado mitológico para a cena e que, para tal, deve ter maturidade para lidar com esse

sagrado e com tudo o que ele pode trazer.

Apolo: Talvez por isso não sejam todos os artistas que realizem este tipo

trabalho.

Dionísio: Sim, e também porque nem todos os artistas se identificam com esse

processo ou com a estética resultante dele –o que faz parte do livre arbítrio e de algo

que nunca poderemos questionar: o gosto pessoal.

Kali: Bem, meus colegas, o fato é que a dançarina passou por um processo

profundo de transformação corporal, que mostrou a ela movimentos não esperados e

não racionalizados.

Apolo: Sim, podemos perceber esse ponto em seu diário, mas eu ainda não

identifiquei qual é o deus-serpente que a conduziu em seus laboratórios.

Kali: E nem vai identificar nenhum deus, Apolo! Porque não se trata de um

único deus, mas de um arquétipo, ou de um símbolo mitológico, representado pela

serpente.

Apolo: Os arquétipos que definimos quando falamos do trabalho de Jung,

certo?

Kali: Sim, Apolo, mas creio que Sarasvati pode nos esclarecer melhor esse

ponto não é?

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Sarasvati: Claro, vou tentar esclarecer o que aconteceu nos laboratórios da

dançarina em relação ao surgimento da imagem da serpente. Vocês se lembram de

que os arquétipos são tendências ou possibilidades de representação de um motivo ou

tema universal, certo? Pois é, amigos, eis que, no trabalho da dançarina, surge mais um

arquétipo: o arquétipo da serpente. Ela entendeu que não era apenas um deus que

estava conduzindo seu corpo nos laboratórios, mas um tema universal, que circula na

psique humana a partir de diferentes representações, no caso aqui citado, a “serpente”,

sobre a qual, aliás, eu gostaria de esclarecer um ponto importante, antes de

continuarmos.

No que concerne à Psicologia Junguiana, os arquétipos primordiais34 do

inconsciente –os temas universais arquetípicos– podem se decompor em outros

arquétipos ou ainda em “símbolos arquetípicos” –isso ocorre em vários momentos do

desenvolvimento da consciência humana por diversos motivos, normalmente

relacionados ao desenvolvimento da psique de cada indivíduo. Os símbolos

arquetípicos são imagens que trazem o conteúdo do arquétipo à tona para a

consciência, tornando-os mais acessíveis para a consciência racional, ou dando forma

a eles:

Ocorre uma fragmentação no sentido de que, para a consciência, o arquétipo primordial se decompõe num amplo grupo de arquétipos e símbolos inter-relacionados. Ou melhor, esse grupo pode ser concebido como a periferia que envolve um centro desconhecido e intangível. (NEUMANN, 2003, p.232)

Neumann ainda nos esclarece;

A fragmentação dos arquétipos não deve, de modo algum, ser concebida como um processo analítico consciente. A atividade da consciência só tem um efeito direcionador devido à variedade de atitudes possíveis que pode adotar. O surgimento de um grupo de arquétipos, cindido de um arquétipo mais volumoso,

34

Para diferenciar as imagens coletivas provenientes dos arquétipos das imagens coletivas dos arquétipos de caráter pessoal, Jung denominou primordial toda imagem que tem paralelos mitológicos de caráter coletivo arcaico. Segundo ele, arcaico tem o sentido de relíquia e representa todos aqueles traços que possuem qualidades do modo de pensar inconsciente. (GRINBERG, 2003, p.135)

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assim como do grupo correspondente de símbolos, é a expressão do processo espontâneo que mantém intacta a atividade do inconsciente. (NEUMANN, 2003, p.234)

Percebam que os arquétipos são muito mais dinâmicos do que imaginamos,

podendo desdobrar-se em novos arquétipos, tão potentes para a mente humana quanto

aqueles chamados de primordiais. A serpente é considerada por alguns estudiosos

junguianos como uma das possibilidades de desdobramento dos arquétipos primordiais,

sendo, em alguns momentos, um novo arquétipo, e, em outros, um símbolo arquetípico

–o que depende da dimensão e da complexidade da imagem sugerida pelo

inconsciente. A imagem da serpente e suas características (ou seus aspectos), ainda,

podem ser associadas a outros arquétipos ou a outros símbolos arquetípicos,

dependendo de sua manifestação, o que nos leva a constatar o tamanho da dinâmica

do inconsciente e de seus conteúdos.

Sendo a “serpente” um tema, ou uma imagem recorrente no inconsciente

humano, e considerando os diversos aspectos que vamos observar no trabalho da

dançarina, vamos considerá-la aqui como um símbolo arquetípico, por associar-se a

inúmeros aspectos de diferentes arquétipos, conforme veremos ao longo de nossa

análise.

Dionísio: Cara Sarasvati, eu não sei se suas colocações me esclarecem ou me

confundem. Creio que devemos nos encontrar em um outro momento só para

entendermos essas teorias e conceitos que envolvem a mente humana. O que acham?

Já podemos marcar um novo encontro?

Apolo: Concordo com você, meu irmão, um novo encontro para discutir os

processos mentais da mente humana seria muito esclarecedor. Porém, vamos nos ater

apenas à colocação de Sarasvati quando ela nos alerta sobre a dinâmica do

inconsciente –o que penso ser importante para entendermos o processo criativo que a

artista escolheu para seu trabalho–, e quanto a considerarmos a “serpente” como um

símbolo arquetípico, ou seja, uma representação que a consciência dá para os

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conteúdos do inconsciente, tendo em vista ser um desdobramento, ou uma derivação

de outros arquétipos primordiais35.

Dionísio: Certo Apolo, eu vou tentar me concentrar nessas considerações de

Sarasvati, até porque não vamos fazer uma profunda análise psicológica das imagens

com as quais a dançarina trabalhou, mas tentar entendê-las dentro do contexto da

criação artística. Eu estou correto, Sarasvati?

Sarasvati: Sim, Dionísio, exatamente isso. Postas essas considerações sobre

arquétipos e símbolos arquetípicos, vamos falar sobre a “serpente”.

Dionísio: Ah, sobre a “serpente” eu posso falar tranquilamente, pois vejo de

perto a relação dos humanos com esse animal, tanto no que diz respeito aos seus

aspectos biológicos, quanto no que diz respeito aos seus aspectos mitológicos ou

sagrados.

Apolo: Eu também posso falar sobre esse animal. Além de ter matado Python

no passado, os humanos também me consideram um dos deuses da Medicina36 e

acabaram me representando com a imagem de um homem que segura um cajado com

uma serpente enrolada. Para os gregos, e também para romanos, a “serpente” estava

associada a mim por eu ter matado Python, e eles também a consideravam um símbolo

da cura, porque esse animal abandona sua pele velha e troca-a por uma nova, em um

processo de renovação, da mesma forma que os médicos removem a doença dos

corpos, tornando possível o “renascimento” (no sentido de recuperação) dos doentes.

Dionísio: Mas a representação da “serpente” também possui outras

atribuições. Verificamos que ela é considerada pelos humanos um dos principais

símbolos da natureza primordial, isto é, a fonte essencial da vida, sendo a

representação do eixo da vida. Ela também pode ser o símbolo do pecado para alguns

religiosos, pois encontramos a serpente no mito da criação do homem, a qual oferece a

35

Os aspectos da serpente que foram trabalhados nesta pesquisa serão esclarecidos mais adiante. 36

Algumas versões da mitologia grega apresentam Esculápio como o deus da medicina; porém, verificamos em diversas literaturas de mitologia grega que o deus Esculápio é considerado uma das manifestações do deus Apolo.

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maçã do pecado a Eva, quem, ao aceitar a fruta, assume colocar todos os seus

descendentes humanos em uma vida de pecado37.

A “serpente”, ainda, aparece como representação de fertilidade para os

egípcios, como símbolo de paixão cega para os europeus, como vida e morte para os

orientais e como a união das energias masculinas e femininas em várias culturas –

porque algumas espécies de serpentes podem ser hermafroditas. No simbolismo

alquímico, bem como na mitologia egípcia, ela ganha um destaque especial por meio

da imagem conhecida como “uroboro”, de uma serpente mordendo a própria cauda,

indicando um movimento circular e contínuo, que representa o ciclo da vida. E ainda

podemos falar das víboras, que são serpentes mundialmente conhecidas por sua

característica de dominar os mistérios da morte e conduzir o homem ao lado sombrio do

mundo a partir de seu veneno.

Kali: Porque esses animais são rastejantes, muitas vezes venenosos e

classificados biologicamente como animais de sangue frio, os humanos temem sua

presença e também os associam a deuses poderosos, que têm o poder de controlar a

vida e a morte. Eu mesma tenho representações associadas à “serpente”, por eu ser

considerada a deusa que controla certos aspectos sombrios do ser humano38.

Dionísio: Amigos, sabemos que são infinitas as possibilidades de

representações e simbologias associadas à “serpente”! Ficaríamos horas a fio falando

disso. Não seria melhor verificarmos quais os aspectos e os arquétipos que se

manifestaram nos laboratórios da artista?

Sarasvati: Concordo com Dionísio, e quando lemos as anotações de seu diário

de trabalho, verificamos que surgiram diferentes aspectos da serpente em seu trabalho.

Podemos observar que o primeiro aspecto do símbolo da serpente que surgiu em forma

de movimento para ela foi aquele associado à fertilidade da serpente, ou à capacidade

de criação que ela pode representar. Vamos verificar ainda mais dois de seus aspectos

37

Essa passagem mitológica é universalmente conhecida e difundida, sendo encontrada, inclusive, no Antigo Testamento (Gênesis 3).

38 A deusa Kali é uma das representações mais completas do divino, da força do feminino e das

aproximações entre os paradoxos de feio e belo, positivo e negativo, bem e mal, o que faz com que seus aspectos sombrios sejam tão importantes quanto todos os seus outros aspectos.

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que se manifestaram em forma de movimento em seus laboratórios e que ela

selecionou para aprofundar-se: o aspecto da víbora devoradora (o arquétipo da

sombra) e o aspecto e o da união ou da unidade –representado pelos uroboros. Vamos

agora ver em seu diário como o primeiro aspecto –a fertilidade ou o poder de criação–

se manifestou em seu corpo.

4.3.1 - A fertilidade e o poder de criação representados pela serpente

21/08/2012

(...) Depois de rastejar por muito tempo, meu corpo pediu para sair do chão. No exato

momento em que eu me levantei, pude me sentir parindo. Mas não pari somente

cobras. O mundo todo saía de mim. Pessoas, árvores, casas, objetos, outros animais.

Passei muito tempo ali, sentindo as dores do parto, contraindo meu abdômen e

empurrando meu corpo para baixo para facilitar o nascimento das coisas. Quando me

dei conta, já estava no chão de novo, rastejando em um lugar molhado e frio, pronta

para parir de novo, e de novo, e de novo...

Figura 3: Diário de Trabalho, dia 21/08/2012

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22/08/2012

Hoje, ao iniciar a movimentação, senti um grande pênis nascendo entre minhas pernas.

Ele cresceu imensamente e queria penetrar no mundo para dar vida às coisas. Não era

energia sexual, era energia de criação (...)

18/10/2012

Mais uma vez, o grande pênis surgiu entre minhas pernas. Interessante que nunca me

sinto sexualmente excitada, mas pronta para alguma guerra, como se meu pênis fosse

uma arma que vai eliminar algumas coisas e dar vida a outras. Esse pênis fica ereto e

enrijece toda a musculatura do meu corpo, que fica quase imóvel, sentindo essa força

vital em mim. Quando me movimento depois que isso acontece, é sempre em explosão.

Movimentos desordenados, que me dão a sensação de espalhar esperma pelo mundo

e recriar tudo, do meu jeito.

02/10/2013

(...) Giro, giro, giro e meu pênis se transformou na cobra. Isso nunca havia acontecido.

Nossa, meu pênis é a cobra!!! Sedutora e fatal. Fiquei um tempo entendendo isso.

Precisei parar a prática e retomar minha respiração. O que está aparecendo para meu

corpo agora? Uma cobra que se transforma em pênis e um pênis que se transforma em

cobra. O que é isso? Ai, que mania de racionalizar! Seja lá o que for, que venha!!!

03/10/2013

Meu Deus, que pênis é esse, que fica insistindo em crescer em mim? E agora está se

transformando em cobra, a cobra que escorrega do meio de minhas pernas, nasce e

depois morre ali... em meu pênis ereto, grande, forte e cheio de vida.

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25/11/2013

Hoje, essa cobra maluca quis ser mulher e começou a se insinuar, fêmea fatal, víbora

sensual e maligna. Mas é claro que não demorou muito para nascer um pênis nela e ela

ficou hermafrodita por um tempo... Uma mulher com um pênis enorme! Afinal, é isso o

que acontece comigo nos laboratórios, não é? Passou muito tempo enquanto fiquei

nesse estado (Será? Pelo menos tive a sensação de ficar assim muito tempo!). O pênis

crescia e me jogava pra cima; eu ficava em pé, realizando movimentos de copulação

com o espaço. O pênis penetrava em tudo e criava o universo. Daí, eu descia para o

chão e rastejava, fêmea e sensual.

05/02/2014

Cobra macho ou fêmea? Seja lá o que for esse ser, ele pode parir o mundo... Cria tudo,

recria tudo, mata tudo... E, depois, com sua ejaculação, recria tudo. Estou um pouco

confusa, porque já não sei mais se esse bicho é macho ou fêmea. O macho parece ter

sumido... Agora, existe apenas um animal que domina o mundo, rastejando. Esse

animal tem ventre aberto... Às vezes, tem pênis (...)

Figura 4: Diário de Laboratório dia 03/10/2013

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Apolo: Podemos ver o quanto esse aspecto ficou forte para a dançarina, pois

existem mais inúmeras anotações em seu diário sobre sua serpente estar fecundando,

criando o mundo ou parindo alguma coisa.

Sarasvati: Esse aspecto do símbolo da serpente esta associado aos mitos da

criação do mundo e ao arquétipo da “Grande-Mãe” –que é um arquétipo muito forte,

que transita no inconsciente humano, pois está associado aos poderes de gestação,

criação e destruição do universo.

A dançarina trabalhou profundamente o arquétipo da “Grande-Mãe” em sua

pesquisa de Mestrado –como já vimos–, mas a “serpente” também pode trazer consigo

as características desse arquétipo, em especial, quando suas imagens estão

associadas aos órgãos reprodutores humanos; pois a serpente aparece em várias

culturas com um aspecto devorador, como, por exemplo, as serpentes que se

encontram na cabeça da medusa, na mitologia grega:

Entre os símbolos do abismo devorador, devemos incluir o ventre e seu aspecto assustador, as cabeças numinosas das Górgonas e de Medusa, a mulher de barba e falo e a aranha comedora do macho. O ventre aberto é o símbolo devorador da mãe, especialmente quando relacionado com símbolos fálicos. (NEUMANN, 2003, p.77)

Esses aspectos do arquétipo da “Grande-Mãe” são muito complexos e preciso

lembrar-lhes de que não vamos analisar as imagens da serpente que surgiram para a

dançarina com nossa mentalidade lógica, mas podemos apontar alguns significados

que essas imagens podem trazer, nunca dando um sentido definitivo para elas, para

não esgotarmos a característica dinâmica dos conteúdos do inconsciente.

Verificamos que a característica de fertilidade e de criação do universo surgiu

em sua movimentação com muita força, mas quero que nos concentremos no que diz

respeito aos movimentos que a dançarina descobriu em laboratório de criação, para

não entrarmos em representações psicológicas, o que não é o foco de nossa

discussão, mas, sim, a manifestação desses aspectos mitológicos no corpo que dança.

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Então, observamos que a dançarina realizou, em seus laboratórios, movimentos

que partiam do ventre ou da região do quadril e que, mesmo quando se tratava do

pênis (e não de ventre ou de vagina, como seria mais comum no caso dessas

características), este surgia como intenção de fecundar o mundo. Observamos muitos

movimentos que sugerem copulação ou ejaculação e esses movimentos foram

realizados em diferentes etapas da pesquisa. Percebam que, em quase todos os

laboratórios práticos que ela realizou, aparecem as palavras “vagina”, “falo”, “pênis” ou

“útero”, mostrando o quanto a característica de criação foi forte em sua pesquisa

corporal.

Dionísio: Muitas culturas antigas tinham o pênis (falo) como representação

simbólicas da criação do mundo ou mesmo do poder dos deuses ou de reis, não é? Eu

mesmo já fui representado com meu pênis ereto pelas civilizações gregas que me

cultuavam na Idade Antiga.

Sarasvati: E outros inúmeros deuses também já tiveram suas imagens

representadas dessa forma, o que nos mostra, mais uma vez, que não se trata da

representação literal do falo, mas da simbologia desse falo no que diz respeito à

fertilização e à criação do mundo. A artista que estamos observando nos mostra isso

em seu trabalho quando diz que sentia seu pênis se transformar em cobra e vice-versa.

A movimentação referente ao pênis ejaculando e fecundando o mundo e depois

transformando-se em cobra surgiu em muitos dos laboratórios práticos e a dançarina

demorou para entender esse aspecto em sua pesquisa; porém, com o tempo e com a

repetição da movimentação, alguns aspectos vão se clareando e ela entende que deve

deixar apenas que a movimentação faça sentido para seu corpo, sem precisar

racionalizar o tempo todo.

Apolo: Incrível o poder do corpo humano em movimento! Eu estou feliz com a

explanação do diário da dançarina, pois percebemos que seu trabalho faz com que ela

transite entre o racional e o irracional o tempo todo, como deve ser um trabalho artístico

via inconsciente. Vamos seguir, verificando os outros aspectos da serpente que ela

pode observar em seus laboratórios?

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Kali: Vamos, sim, pois não temos a intenção, aqui, de discorrer profundamente

sobre esses aspectos da “serpente”, para não racionalizarmos demasiadamente seu

trabalho artístico-sensível. Vamos ao próximo aspecto da serpente que surgiu em seus

laboratórios práticos com o corpo mitológico.

4.3.2 - A víbora devoradora representada pela “serpente” (o arquétipo da

“sombra”)

13/03/2013

Acabar com tudo e com todos! É isso. Hoje, meu corpo não queria mais estar quieto,

rastejando no solo, mas sair dali e matar todos, ter o mundo só pra ele. Por um instante

tive, novamente, medo dessa energia, mas não me segurei.

Meu corpo contorceu, saiu muita baba de minha boca, e essa baba era venenosa.

Então, depois de muito me contorcer e sentir minha musculatura enrijecer, repousei

meu corpo novamente no chão, olhando tudo ali de baixo e pensando em como seria

fácil acabar com tudo em apenas um bote.

28/05/2013

(...)enquanto eu rodopiava, senti que eu podia causar medo. Um medo real. Talvez, se

alguém me visse ali, naquele momento, saísse correndo. Eu quis sair correndo de mim

mesma. Como eu poderia me permitir sentir, ver e me movimentar daquele jeito? Tudo

negro, tudo sujo, tudo no limbo. Uma vontade ruim de destruir as pessoas.

Não quis continuar.

Hoje, parei e chorei muito. Essa não sou eu... Ou sou?

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28/08/2013

Enquanto eu andava pelo espaço, logo no começo do laboratório, pude sentir que o que

dominava meu corpo não era “bom”, mas “mau”. A baba que saía da boca, um tempo

atrás, voltou a sair, e minha musculatura voltou a enrijecer; então, me lancei no chão

em um movimento de bote, de ataque. A energia que percorreu meu corpo poderia

matar algo (pelo menos me pareceu isso) e surgiu, pela primeira vez, o som da

serpente (ahhhhhhh.....).

Ali, naquele momento, senti que eu era uma víbora.

26/03/2014

(...) Não sou uma mãe boazinha. Eu sinto que estou parindo, mas que posso matar

meus filhos, o mundo, ou sei lá o quê... vou parir a qualquer momento... comi meus

filhos, como um animal faria! Estava bom... me deu força para ficar em pé novamente,

rodopiar, saltar e construir um novo espaço para dançar (...)

Figura 5: Diário de Laboratório dia 26/03/2014

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Dionísio: Adoro ver como os humanos podem descobrir ou aceitar seu lado

sombrio...

Kali: Caros amigos, do lado sombrio das coisas vocês sabem que posso falar

muito bem, pois sou a deusa que detém o poder da dualidade do bem e do mau, do feio

e do belo, do sublime e do sombrio. Nós, deuses, sabemos muito bem que todos os

seres humanos possuem essa dualidade, mas não assumem isso nunca! A dançarina

deixou com que esse lado sombrio aflorasse em seu corpo e teve medo, porque todos

os humanos têm medo de seu lado escuro. Esse aspecto da serpente é representado

pela víbora: a maldade encarnada.

Sarasvati: Amigos, para que vocês entendam bem esse lado escuro humano

de que Kali fala, eu terei que voltar às teorias Junguianas para lhes explicar esse

importante aspecto que a mitologia da serpente pode apresentar. Jung chama esse

lado escuro da psique humana de “sombra”; para ele, a “sombra” é um dos arquétipos

mais poderosos do inconsciente, pois traz à tona conteúdos negligenciados, ou

rejeitados pela consciência.

Quando o inconsciente de início se manifesta de forma ou negativa ou positiva, depois de algum tempo surge a necessidade de readaptar de uma melhor forma a atitude consciente aos fatores inconscientes –aceitando o que parece ser uma “crítica” do inconsciente. Por meio dos sonhos passamos a conhecer aspectos de nossa personalidade que, por várias razões, havíamos preferido não olhar muito de perto. É o que Jung chamou de “realização da sombra” (...) A sombra não é o todo da personalidade inconsciente: representa qualidades e atributos desconhecidos ou pouco conhecidos do ego –aspectos que pertencem, sobretudo,à esfera pessoal e que poderiam também ser conscientes. Sob certos ângulos, a sombra pode também consistir de fatores coletivos que brotam de uma fonte situada fora da vida pessoal do indivíduo. (FRANZ, 2008, p.222)

Observem que a “sombra” é rejeitada pela consciência comum, pelos padrões

sociais e, na maioria das vezes, rejeitada por quase todos os seres humanos. Como

acabamos de ver, são aspectos da personalidade do indivíduo que são bloqueados

pela consciência e que se alojam no inconsciente, pois são partes da psique e não têm

como ser eliminadas dela.

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Kali: E acrescento em suas considerações, Sarasvati, que, na maioria das

vezes, a “sombra” se personifica nos sonhos ou nas imagens mitológicas como seres

maldosos e cruéis, da mesma forma que surgiu como a víbora devoradora para a

dançarina:

De modo geral, a Sombra desenvolve-se com qualidades que se opõem às da Persona, com a qual mantém uma relação compensatória. Por isso, nos sonhos esse arquétipo costuma aparecer personificado em figuras dotadas de atributos negativos ou características sinistras, opostas àquelas socialmente aceitas. A Sombra também pode surgir na forma de um animal, um monstro ou uma força destrutiva. (GRINBERG, 2003, p.145)

Observamos a manifestação ativa da “sombra” na forma de sensações e

movimentos de víbora no trabalho da dançarina. Ela não aceitou esse aspecto da

serpente logo de início, pois não é simples aceitar a “sombra” se manifestando, mas

deixou-se conduzir por ele e, dessa forma, pode transformá-lo, também, em movimento

expressivo.

A víbora devoradora é um aspecto muito comum da “serpente”, pois este animal

é muito venenoso na maioria de suas espécies, e seu veneno costuma ser fatal.

Portanto, creio ser esperado que a dançarina tenha encontrado esse aspecto em sua

movimentação, pois, desde seu sonho com o deus-serpente, vimos que a cobra que

criava asas e a perseguia já trazia consigo esse aspecto fatal, e os humanos associam

esse animal à morte e à crueldade com muita frequência.

Sarasvati: Meus colegas deuses, se eu fosse explicar todos os detalhes que

envolvem a realização da “sombra” na mente humana, não teríamos tempo para

continuar a observação do trabalho artístico da dançarina. Considero importante que

vocês entendam a manifestação desse aspecto, mas deixaremos para outro momento a

discussão do arquétipo da “sombra”. O que nos importa é que o aspecto da serpente

conduziu seu corpo a um determinado estado físico e emocional, e ela usou esse

estado a favor do corpo cênico, ou do corpo mitológico, transformando-o em movimento

expressivo.

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Vamos agora ao terceiro aspecto encontrado nos laboratórios práticos que a

dançarina realizou.

4.3.3 - Os “uroboros” ou a “unidade” representada pela “serpente”

Figura 6: Uroboros - Disponível em http://www.acting-man.com

07/08/2012

Rastejando no chão, eu iniciei um movimento como se estivesse querendo pegar meus

pés. Minhas mãos seguem em direção aos pés como se eu fosse um cachorro

mordendo o próprio rabo. Isso é tão divertido (...) Mas ao mesmo tempo que é divertido

me dá uma sensação boa. Parece a sensação que temos quando giramos sem parar e

não queremos mais parar. Me sinto conectada com algo infinitamente maior do que eu.

Tento continuar a movimentação, agora em pé, com as mãos indo de encontro uma da

outra, mas no chão faz mais sentido. Paro. Retomo o giro e a força é a mesma. A

palavra hoje é diversão!

08/08/2012

(...) Depois de me jogar no chão e rolar sobre mim mesma algumas vezes, a serpente

chega já querendo morder seu próprio rabo. O movimento de ontem voltou tão forte!

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Realizei essa “caça ao rabo” por muito tempo e até passei mal de tanto girar... Mas faz

tanto sentido. Qual será?

09/08/2012

(...) Agora eu já estou racionalizando o movimento de morder minha cauda, pois já li

sobre isso e já sei que são os uroboros se manifestando; mas adoro esse momento,

como se daquele círculo que meu corpo forma nascessem outros círculos e eles me

impulsionassem para cima, me deixando de pé e me fazendo girar mais e mais.

Continua sendo um movimento muito prazeroso. (...)

10/12/2012

(...) o movimento de giro me levou rapidamente à sensação de ser uma cobra que

girava em torno de si mesma no chão, em pé, até no ar... Girando, girando, girando...

Me senti um grande peão luminoso, dourado... Nossa! Em meu sonho, a cobra se

transformava em uma esfera dourada!!! Que legal! Só percebi isso agora... ADOREI! A

sensação é incrível, meu corpo junta tudo o que está em sua volta e gira.

15/05/2013

(...) Não tem nada melhor do que quando giro em torno de minha cauda. Faz sentido

para meu corpo. Enquanto rastejo, parece que sempre quero encontrar esse

movimento. Hoje, tive que parar forçadamente de realizá-lo, senão eu continuaria ali o

laboratório todo.

Enquanto eu giro, sinto que estou gerando vida em mim; é uma energia pura, que sai e

que retorna no momento em que minhas mãos alcançam meus pés. Vida, vida, vida.

(...)

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23/02/2014

Uroboros, uroboros, uroboros, uroboros, uroboros, uroboros, uroboros...

Hoje, foi isso. Será que já estou racionalizando demais? Melhor parar.

Figura 7: Diário de Trabalho- dia 23/02/2014

Kali: Caros amigos, vocês percebem como a consciência e o inconsciente da

artista estão em diálogo constante no trabalho com o corpo mitológico? Os “uroboros”

aparecem em seu corpo, e ela percebe isso com sua consciência imediatamente, e,

então, ela se deixa levar, novamente, pelo que o inconsciente carrega sobre os

“uroboros” em uma conversa constante entre consciência e inconsciente.

Sarasvati: Mas isso é muito normal de acontecer quando o artista se deixa

conduzir pelas imagens inconscientes, Kali!

Kali: Claro, concordo com você, Sarasvati. Mas vemos, neste momento de seu

trabalho prático, que os movimentos relacionados aos “uroboros” não foram totalmente

inconscientes e não lhe trouxeram dúvidas como nos movimentos que revelaram os

aspectos cruéis da serpente (que vimos no início da leitura do diário), que ela associou

rapidamente às representações tradicionais da serpente comendo sua cauda.

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Sarasvati: Isso mesmo! Vocês percebem que ela racionalizou imediatamente a

movimentação que iniciou em seu corpo a partir da imagem com os “uroboros”? A

racionalização não a fez desistir da movimentação, mas a impulsionou para um

aprofundamento da ação; ou seja, ela deixou que aquele momento que lhe apareceu

claramente para sua consciência fosse potencializado pelo próprio movimento. Assim,

ela potencializou em seu corpo as imagens inconscientes relacionadas aos “uroboros”,

descobrindo aspectos da “serpente” que ela ainda não conhecia racionalmente e

transformando-os em novos movimentos.

Dionísio: Eis mais um bom exemplo da disponibilidade corporal total que

pressupõe o trabalho com o corpo mitológico, não acham, meus amigos? O artista que

escolhe esse tipo de trabalho deve estar aberto e saber conduzir as imagens da

maneira que lhe faça sentido para poder continuar trabalhando e criando.

Apolo: Sim, ele deve saber usar o inconsciente a seu favor. A dançarina

observou a imagem do “uroboro” com o lado racional de sua mente, que está sempre

ativo em seu corpo –mesmo estando em estado alterado de consciência, conforme já

vimos anteriormente– e, então, ela deixou que seu corpo respondesse a essa imagem

durante o processo de improvisação, ativando sua movimentação a partir dessa

imagem racional. Afinal, se ela usasse somente a dimensão inconsciente de seu corpo,

não estaria realizando um trabalho artístico em sua totalidade, pois já consideramos,

inúmeras vezes, a importância de trabalhar todas as dimensões corporais para que o

trabalho seja considerado sábio, não é verdade, meus caros colegas?

Kali: Sim, Apolo, você tem razão, a sagacidade da dança consiste em saber

usar todo o seu corpo para o sagrado, inclusive a dimensão consciente de sua mente.

Apolo: Mas vamos voltar aos “uroboros”, pois esse aspecto representado em

alguns mitos da “serpente” é imensamente rico em significados, e nada me espanta que

o inconsciente envie essas imagens tão especiais para o corpo em movimento da

dançarina.

Não sei o quanto vocês conhecem sobre esse símbolo, caros amigos deuses,

mas, para os humanos, trata-se de um símbolo extremamente forte, que atua

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profundamente em seu inconsciente; tanto que muitos estudiosos de diferentes áreas –

como, por exemplo, a Antropologia e a Psicologia– já se debruçaram muito sobre suas

possíveis interpretações.

Para esclarecer-lhes a importância desse símbolo para os humanos, vou

recorrer, mais uma vez, a Neumann (2003), que usou a Psicologia de Jung para o

estudo dos “uroboros”. Dentre muitas de suas considerações, observamos que esse

símbolo representa o “redondo”, ou “a esfera”, o que pode ser interpretado como o

infinito ou o eterno, representado por uma imagem sem começo nem fim:

O redondo é o ovo, o Ovo do Mundo filosofal, o núcleo do princípio e a semente de onde, como ensina em toda parte da humanidade, surge o mundo. É também o estado perfeito em que os opostos estão unidos –o princípio perfeito, pois os opostos ainda não se separaram e o mundo ainda não começou; é o final perfeito, uma vez que, nele, os opostos tornaram a juntar-se numa síntese e o mundo se encontra, uma vez mais, em repouso. (NEUMANN. 2003, p.27)

Observem, caros deuses, o que não tem princípio nem fim determinados, na

verdade, é o que podemos entender por perfeito; isso porque a noção de oposição

(como princípio e fim, neste contexto) pressupõe o uno, em que os opostos estão

intimamente conectados, dentro, aliás, de um princípio de complementaridade dialética.

Assim, representar algo que não tem princípio nem fim determinados é representar algo

próximo do que se pode entender por perfeito.

Dionísio: Os “uroboros” são um símbolo egípcio antigo que está associado à

serpente porque algumas espécies desse animal são hermafroditas e têm o poder de

gerar outras serpentes a partir de si. São os opostos unidos em um só corpo, criando o

mundo num infinito contínuo.

Kali: E a dançarina percebe essa característica em seu corpo quando se sente

gerando vida no momento em que gira, tentando juntar seus pés com suas mãos, como

vimos em seu diário. Mas chegar a essas conclusões a respeito da representação dos

“uroboros” não é tão simples quanto chegar às outras características presentes no

símbolo da “serpente” que surgiram em sua pesquisa de movimento.

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Apolo: Não, não é não! Isso porque eu descobri em minhas leituras que a

representação da “unidade”, ou da união dos opostos que dá potência à vida, é

baseada em uma interpretação muito complexa, pois esses conteúdos são

extremamente delicados e tratam de temas relacionados à perfeição, à unidade e ao

sagrado –elementos tão pouco entendidos racionalmente pelas mentes humanas:

O pensamento simbólico retratado nessas imagens do redondo busca captar conteúdos que mesmo a nossa consciência atual só consegue entender como paradoxos, justamente por não poder captá-los. Se dermos o nome de “tudo” ou de “nada” ao princípio, e se falarmos, nesse sentido, de totalidade, unidade, não diferenciação e ausência de opostos, todos esses “conceitos”, se os encararmos mais de perto e tentarmos “concebê-los” em vez de apenas continuar pensando neles, serão, como vamos descobrir, imagens derivadas e abstraídas desses símbolos básicos. As imagens e símbolos têm sobre as formulações filosóficas paradoxais de unidade infinita e de totalidade não imaginada a vantagem de a sua unidade poder ser vista e percebida como tal num relance. (NEUMANN, 2003, p.29)

O autor nos mostra que esses temas –perfeição, unidade e sagrado- estão

sempre ligados às representações dos “círculos” ou “redondos”, que, por sua vez, são

representados simbolicamente pelos “uroboros” e pela serpente mordendo a própria

cauda.

Dionísio: E eu acrescento a sua consideração, prezado Apolo, de que todas as

questões mitológicas estão associadas ao que os “uroboros” representam, que é

também a origem da vida, do espírito e da alma, concordam?

Sarasvati: Sim, concordo plenamente com você, Dionísio, pois, além de

percebermos isso na relação dos humanos com seus mitos, verificamos que os

mitólogos e psicólogos afirmam que todos os mitos são desdobramentos das questões

primordiais que rodeiam a mente do ser humano, que são exatamente essas que você

acaba de nos apontar.

Kali: Meus amigos, entendemos, então, o aspecto dos “uroboros” como um

aspecto muito forte e importante no inconsciente humano, e, agora, proponho que

continuemos a observar as anotações do diário para vermos as últimas considerações

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da artista quanto às outras características da serpente que se manifestaram

expressivamente em seu corpo –pois, mesmo que ela não tenha se debruçado

profundamente em todos os aspectos do símbolo da serpente, ela sentiu e vivenciou

em seu corpo muitos outros além dos três que destacamos aqui.

Faremos, portanto, como ela fez, e vamos apenas verificar esses aspectos,

sem nos aprofundarmos neles, pois tentaremos observar suas manifestações na forma

de movimento expressivo em seu estudo coreográfico.

Dia 26/02/2013

Demorou para meu corpo encontrar a serpente, hoje, mas, quando ela surgiu, ela era

ENORME. Começou com uma postura de torção em pé, meus braços eram uma

extensão de minha cabeça de serpente e o giro voltou, mas muito lentamente, como se

enquanto eu girasse a serpente surgisse maior e mais forte em mim. Me tornei

infinitamente a energia-serpente, girando. Então, algumas imagens perdidas

dominaram meu corpo, e tive que retomar a movimentação do giro e dos braços como

continuidade da cabeça para retomar a sensação... E funcionou!

Funcionou tanto que eu era um deus. Um deus-serpente gigante, absurdamente sábio.

Eu sabia tudo sobre tudo. Olhava os humanos à minha volta com compaixão, pois eles

não têm a sabedoria de entender a realidade das coisas. Que pretensão a minha! Ali,

naquele momento, eu sabia de tudo, e as dimensões enormes de meu corpo

abraçavam o mundo. Meu pênis voltou grande e ereto, minhas ancas soltas.

Serpente tem ancas ou pênis? Acho que nenhum deles, mas sou um ser humano-

serpente e tenho os dois!

Não sei se sou homem, deus ou serpente; só sei que sei das coisas do mundo e,

quanto mais giro, mais claro fica o mundo para mim!

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Dia 05/03/2014

(...) hoje, ao retomar o giro, cheguei muito rápido à energia sábia da serpente; ela (ou

ele) sabe mesmo das coisas! Eu era venenoso e maligno, dominava o mundo, olhava

tudo de baixo, lá do chão, mas comandava tudo dali. O chão não era “abaixo” de nada,

mas “acima de tudo”. Quando fiquei em pé, me tornei uma criatura que não era mais a

cobra, mas que tinha a essência maligna dela e que destruía tudo! Destruí meu mundo.

Os movimentos se tornaram frenéticos e desordenados. Quase desmaiei. Parei.

Dia 08/03/2014

Sinto falta da música, de sons que me levem até a serpente. Escuto dentro de mim uma

percussão e também os guizos de uma cascavel. Quando eu escuto os guizos eu quero

destruir tudo e quando fico em silêncio quero criar tudo.

A serpente está clara para meu corpo. Sei onde ela em meu corpo e como ela se

movimenta de dentro pra fora.

Sinto que se eu parar por aqui já tenho material corporal suficiente para provar que o

mito está em meu corpo, que o meu corpo manifesta o mito e que o corpo mitológico é

uma possibilidade real de trabalho.

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Figura 8: Diário de trabalho – dia 10/03/2014

Kali: O que vocês acham sobre isso tudo o que estamos lendo e sobre o que

vimos aqui, meus amigos?

Apolo: Por mim, só falta ver como ela finalizou seu trabalho. Estou quase

convencido de que existe a possibilidade real de um corpo mitológico na cena da dança

–um corpo que alcança o sagrado mitológico no momento da cena.

Dionísio: Fantástico, creio que Prometeu está quase ganhando mais um aliado!

Sarasvati: É uma pena que nós, deuses orientais, não possamos estar com

vocês no Olimpo, pois tenho certeza de que, se estivéssemos, Prometeu nem teria sido

condenado, pois consideramos a sabedoria algo tão importante para os humanos

quanto seus corpos!

Kali: Concordo com você, Sarasvati, mas como poderíamos esperar que o

homem não segmentasse seu pensamento e seu mundo se nós, deuses, os

segmentamos? Dividimo-nos em nossas regiões orientais e ocidentais, em deuses

primitivos e modernos, mesmo sabendo que a nossa essência é uma só!

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Dionísio: Vamos resolver isso, também, pois sem a nossa vinda até o Oriente,

a compreensão do corpo mitológico seria bem mais difícil! Vou levar essa sua

importante colocação para o Olimpo e farei o mesmo quando vier ao oriente,

manifestado na forma de Shiva, para conversar com o panteão oriental. Quem sabe

consigamos acabar com essa divisão absurda e ajudar os humanos a acabar com a

segmentação do mundo, do universo e de todos os fenômenos!

Apolo: Apoiado! E agora, Kali? O que faremos? Terminamos por aqui?

Kali: Ainda não, sugiro que terminemos de ler o diário para entendermos mais

alguns pontos importantes de seu trabalho e, então, passemos ao estudo coreográfico

elaborado por ela como resultado prático de sua pesquisa com o corpo mitológico

4.3.4 - “Outra Pele”: um estudo coreográfico a partir do corpo mitológico

(Os deuses leram todo o diário e, em alguns momentos, a deusa Kali voltou o tempo,

conduzindo-os ao momento do laboratório referente à anotação do diário para

esclarecer um ou outro ponto do processo da dançarina. Pararam um pouco,

descansaram, tomaram vinho e ocuparam-se com algumas pendências de seus

afazeres celestiais. Quando voltaram a falar sobre o corpo mitológico, a pesquisa da

dançarina estava em sua fase final, e um estudo coreográfico havia sido criado a partir

de seus laboratórios práticos)

Dionísio: Caros amigos deuses, passou muito tempo cronológico dos humanos

e agora vamos ver o resultado desse trabalho tão longo e minucioso dessa artista.

Apolo: Já era tempo! Preciso acabar com essas férias e voltar ao Olimpo. Além

disso, a próxima reunião com os deuses está chegando e quero colocar minha opinião

sobre a condenação de Prometeu por ter roubado o fogo da sabedoria e ofertado aos

humanos. Creio já ter uma opinião formada a esse respeito.

Sarasvati: Que boa noticia, Apolo.

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Apolo: Sim, mas, antes de dar meu veredito final, eu quero ver o resultado do

trabalho da artista para ter certeza de minha decisão.

Dionísio: Ótimo! Eu desejo, com urgência, voltar à minha vida de sempre.

Vamos terminar logo com isso, pois considero o momento da apresentação do trabalho

final o mais empolgante!

Kali: Caros colegas, podemos observar que o desenvolvimento da “serpente”

no corpo da dançarina mostra o quanto é preciso ter tempo e paciência com o trabalho

com o corpo mitológico, o que parece que vocês não têm! Não é possível trabalhar com

as primeiras sensações ou imagens que emergem do corpo, pois já vimos que o

inconsciente não é estático, mas movimenta-se o tempo todo e o artista deve entender

esse processo e deixar que seu corpo lhe mostre os caminhos de criação.

Porém, existe um momento no trabalho artístico em que é preciso parar de

deixar-se levar pelas imagens do inconsciente e decidir com quais conteúdos

mitológicos o artista quer trabalhar. É nisso que consiste o trabalho artístico nesse

momento: de escolhas.

O artista deve escolher a movimentação e os conteúdos que mais lhe fazem

sentido. Pensem comigo: se a artista deixar-se conduzir pelo inconsciente

interminavelmente, ela vai estar sempre abrindo novos caminhos para novas imagens

em seu trabalho, pois o corpo em constante processo de construção e ressignificação,

vai sempre lhe oferecer novos conteúdos. Então, é o momento de entrar a ação

racional, e a artista deve perceber quais são os movimentos e as sensações que mais

fazem sentido para ela, incluindo aqueles que aparecem com mais frequência em seus

laboratórios, selecioná-los e usá-los para a criação coreográfica propriamente dita.

Apolo: Ah, bom! Passei esse tempo todo me perguntando se isso teria um

produto final ou se ficaríamos só nos laboratórios! Agora me tranquilizo em saber que

existe um resultado artístico; afinal, a arte também consiste em resultados artísticos e

em produtos artísticos, correto? Ou isso também mudou na contemporaneidade e eu

não entendi?

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Kali: Claro que você está certo, Apolo. A arte é um produto artístico elaborado

por artistas, mesmo se esses decidem apresentar seus processos ou trabalhos ainda

inacabados.39 O que presenciamos aqui foi uma das infinitas possibilidades de

processos criativos para se chegar ao produto artístico final. Mas devemos deixar claro

que o corpo mitológico não descarta o resultado artístico; ao contrário, ele é um corpo

cênico que atinge o sagrado mitológico no momento da cena, seja esse momento

cênico o processo de criação, seja a cena como resultado artístico.

Apolo: Certo, então ela analisa este material todo e seleciona momentos que

lhe interessam para usá-los na criação coreográfica?

Kali: Exato! Aqui se inicia um processo de composição coreográfica como

conhecemos tradicionalmente –com escolhas de movimentação, organização espacial,

opções estéticas, criação de cenários, de figurinos e composição musical– a diferença

está no material bruto usado para compor, o qual não é um material racionalizado, mas

advindo da improvisação via estados alterados de consciência e, portanto, não

conduzido racionalmente pela artista.

Vimos que ela filmou todos os seus laboratórios, anotou suas impressões em

seu diário e agora ela retoma esses conteúdos, junta-os às suas sensações e

impressões corporais mais latentes e organiza tudo isso em um processo de

composição coreográfica.

Suas escolhas principais, nesse caso, foram aquelas que fizerem sentido para

ela: os aspectos da “serpente” que dizem respeito à criação do universo, à víbora que

ela representa (a “sombra”) e os “uroboros”. A partir dessas escolhas, ela observa seus

registros, seleciona os movimentos e usa os mesmos em seu trabalho final.

Apolo: Estou curioso! Vamos ver logo esse trabalho coreográfico!

39

A apresentação de processos ou de trabalhos artísticos ainda inacabados (work in process ou work in progress) é uma ocorrência comum na arte contemporânea e é uma opção feita pelo artista ou grupo que deseja compartilhar com o público seus trabalhos inacabados, por vários motivos, entre eles, por considerar a opinião do espectador para terminar sua obra. Alguns artistas contemporâneos, ainda, consideram seus trabalhos sempre em estado de processo, acreditando que o mesmo se recria a cada nova apresentação.

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Kali: Vamos, sim, Apolo, mas peço a atenção de vocês para um último detalhe

antes de assistirmos à coreografia resultante desse processo. Vocês irão observar que

só podemos dizer que o corpo mitológico está presente no trabalho da artista se ela o

usa, ativando-o no momento de apresentação do trabalho final.

Apolo: Como assim?

Sarasvati: Isso é muito importante, Apolo! O corpo mitológico é definido como o

corpo que alcança o sagrado mitológico na cena, correto? Então ele deve estar

presente no momento da apresentação do trabalho final. O que Kali quer dizer é que a

artista resgata o ritual de preparação do corpo mitológico antes de entrar em cena e,

mesmo não trabalhando mais com a improvisação –afinal, agora ela tem um trabalho

coreografado–, ela procura colocar-se em estado alterado de consciência para que as

sensações relativas aos movimentos escolhidos para o trabalho artístico final estejam

presentes em seu corpo tão fortemente quanto quando surgiram nos laboratórios

práticos realizados durante sua pesquisa.

Kali: Embora as movimentações sejam selecionadas previamente, e, agora, ela

já tenha um roteiro de movimentação que compõe seu trabalho final, ela acredita ter

que estar em contato com o sagrado ainda nesse momento, pois ainda estará

trabalhando com os conteúdos sagrados, mesmo se já transformados em movimentos

da coreografia final. Os espectadores de seu trabalho não verão todo o processo que

compõe o trabalho com o corpo mitológico, mas sabemos que ela chega ao local de

apresentação com bastante tempo de antecedência, prepara todo o local e depois faz o

ritual de preparação do corpo mitológico, conforme já vimos.

No momento da apresentação, vocês observarão que ela inicia sua

movimentação instaurando o espaço sagrado, conforme a vimos fazer em seu ritual de

trabalho. Só depois de instaurar esse espaço sagrado é que ela inicia a apresentação,

mas, ainda assim, inicia com movimentos que possam conduzi-la ao estado alterado de

consciência e que possam conduzir seu corpo em direção ao símbolo da “serpente”.

Apolo: Entendo. Seria como se ela precisasse ativar a movimentação da

serpente em seu corpo?

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Kali: Exato! Ela precisa ativar as regiões corporais que despertam a “serpente”

e a movimentação relativa a ela. Ela precisa tornar seu corpo o local de trânsito entre o

sagrado mitológico e o mundo concreto em que está. Só assim, ela acredita trazer a

verdade sagrada e mitológica para a cena.

Dionísio: E ela tem razão, não acham? Nós só estaríamos presentes se

existisse essa potência corporal que nos chama para a cena, e de nada adianta usá-la

em laboratórios de criação e não a usar em produtos artísticos acabados e nas

apresentações dos mesmos.

Apolo: É claro, não havia pensado nisso.

Kali: O corpo mitológico consiste, portanto, em um corpo cênico potente, que

usa toda a sua energia corporal em função do mito na cena.

Dionísio: Obrigado por nos esclarecer mais esse ponto tão importante, Kali.

Podemos ver o trabalho agora?

Kali: Claro, meus amigos, nada mais justo do que vocês serem os primeiros

espectadores desse trabalho. Apresento-lhes o estudo coreográfico intitulado Outra

Pele.

(Os deuses assistem ao estudo coreográfico criado como resultado prático da pesquisa

da dançarina, e, após a apresentação, um grande silêncio domina o local. Os deuses e

a dançarina permanecem imóveis. A dançarina está chorando de emoção –tamanha foi

a força que tomou seu corpo–, e os deuses estão a observando e sentindo a energia de

seu corpo penetrar no espaço e atingi-los. Ela sabe que eles estão ali, junto com tantos

outros seres sobrenaturais mitológicos que também estão presentes e, então, com seu

corpo todo latente, agradece a presença de todos esses seres que colaboraram

infinitamente com sua pesquisa. Entreolhando-se com gratidão e ainda em silêncio,

todos os deuses resolvem voltar para seus respectivos reinos. Apolo, Dionísio, Kali e

Sarasvati fazem o mesmo).

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CAPÍTULO 5: CONSIDERAÇÕES FINAIS

5.1 - Carta de Apolo para Dionísio: a decisão de Apolo quanto à condenação de Prometeu

Caro irmão Dionísio:

aqui estou eu, escrevendo-lhe novamente, depois de tudo o que

passamos juntos em sua tentativa de me mostrar a dança e a sabedoria da arte. Quero

lhe dizer que as experiências que você e nossas amigas Kali e Sarasvati me

proporcionaram mudaram muito o que eu pensava sobre a arte e sobre os humanos,

provando o quanto você tinha razão em dizer que eu deveria parar de racionalizar tanto

e buscar vivenciar e sentir mais. Como já lhe disse, cada um de nós, deuses, tem uma

função neste imenso universo e a mim ainda cabe a manutenção da racionalidade;

porém, deixar a razão corporal aflorar é um importante fator na construção da lógica, e

estar com vocês durante as férias ajudou-me, significativamente, a retomar meus

afazeres celestiais com mais sensibilidade e clareza.

Voltei para meu trabalho repensando tudo o que vimos e conversamos sobre a

presença da sabedoria na arte e o roubo do fogo realizado por Prometeu e também

creio poder afirmar que nós, deuses, somos muito impulsivos e que, na maioria das

vezes, deliberamos sentenças muito cruéis, o que me fará ponderar mais em minhas

decisões no que concerne aos humanos. Então, estou lhe escrevendo mais esta carta,

para lhe informar minha decisão em relação à condenação de Prometeu, pois, em

breve, acontecerá a reunião no Olimpo, na qual teremos que votar por manter ou

suspender definitivamente sua condenação por ele ter roubado o fogo da sabedoria dos

deuses e por tê-lo entregado aos humanos.

Antes de dar-lhe meu parecer final, gostaria de concordar com você, Dionísio,

quando me disse que, ao abandonar a dança no período da Dança Clássica, eu perdi

uma importante parte da História que proporcionou aos dançarinos a liberdade de

expressão e o resgate do trabalho com o corpo sagrado. Vimos que muitos deles, ainda

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na Dança Moderna, puderam vivenciar corpos livres e com potência no que concerne

aos mitos, como na dança de Nijinsjy, de Martha Graham, de Mary Wigman e de tantos

outros dançarinos anônimos que tornaram possível a dança como ela se apresenta na

contemporaneidade.

Eu vi na Dança Contemporânea a possibilidade do resgate do sagrado que

parecia ter se perdido em outros períodos da História, mas ainda me questiono se

realmente não havia sagacidade nos períodos em que ela parecia ter nos abandonado,

pois, como concluímos juntamente com Kali e Sarasvati, a sabedoria consiste em que

os humanos considerem seus corpos como nossa criação, e isso não necessita que

sejamos temas diretos de seus trabalhos artísticos. Então, penso se, mesmo quando

os humanos não usam os mitos como temas, eles não estariam sendo sábios e

tentando nos alcançar; afinal, se entendem que seus corpos são sagrados por natureza

e usam os mesmos para se expressar, então, só isso já poderia ser considerado um ato

sagrado e sábio.

Mas também devo dizer-lhe que a complexidade das ações e das mentes

humanas continua me assustando. Ainda não entendo como pudemos construí-los

assim! Porém, não me cabe entender essa complexidade, mas deliberar seus destinos

da melhor forma possível, considerando-a.

Posso lhe dizer que uma das maiores descobertas que tive nessa minha

viagem com vocês foi a compreensão de que alguns dos humanos entendem seus

corpos como um organismo em constante processo de transformação, constituído por

suas experiências físicas, biológicas, mentais, emocionais, sensíveis, religiosas e

políticas – que chamamos de corpo soma.. Eu já havia lhe dito, em minha primeira

carta, que não acreditava que eles entendiam seus corpos dessa forma, mas vocês me

mostraram que muitos deles não só entendem essa premissa, como também trabalham

artisticamente a partir dela, e isso muda muito meu olhar para alguns trabalhos

artísticos.

Ainda dentro da complexidade humana, pudemos ver como eles se relacionam

com os rituais e com os mitos, transportando-os mundo afora a partir da migração

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natural –conforme discutimos segundo as considerações do Conde D´Aviella– e

carregando os mesmos em suas mentes, através dos processos que envolvem a

consciência e o inconsciente.

Aliás, caro irmão, o psiquiatra Carl Gustav Jung me ajudou imensamente com

seus estudos sobre a mente humana e suas relações com os processos criativos dos

artistas ao nos apresentar a teoria do inconsciente pessoal e coletivo e nos mostrar que

nós, os mitos, somos parte dos conteúdos que transitam e movimentam-se,

continuamente, na psique humana. Essa compreensão me ajudou a perceber como

uma imagem arquetípica pode emergir no corpo soma e transformar-se, por meio do

trabalho artístico, em movimento expressivo.

O acompanhamento que pudemos fazer do trabalho do corpo mitológico com a

dançarina mostrou-me alguns importantes pontos, e quero dividi-los aqui com você,

meu querido irmão.

Primeiramente, percebi que o corpo em movimento pode revelar aos humanos

aspectos de seu inconsciente que eles não conhecem e que esse trabalho não é nada

fácil para eles, pois vimos que o risco de entregar-se ao caos do desconhecido pode

levá-los tanto à sabedoria, quanto à loucura.

Se considerarmos o corpo como sagrado, sua movimentação sempre carregará

algo igualmente sagrado e a dança pode ser considerada, portanto, o sagrado em

movimento! Mas quando um artista estabelece um processo criativo para ativar e

manter esse sagrado na cena é algo que me agrada imensamente, pois além de

mostrar que ele entende a sagacidade de seu corpo, mostra que ele reconhece nossa

importância em todos os seus processos vitais; e é claro que adoro ser reconhecido por

minha superioridade!

Também me agrada ver que a dançarina observada por nós estabelece um

espaço sagrado para iniciar seu trabalho e, assim, reconhece a necessidade de

preparar o local que irá receber os seres sagrados. Aquilo que Sarasvati nos

apresentou como Hierofania é um processo interessante que ocorre na complexidade

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da mente humana, não acha? Os seres humanos imputam o sagrado a um determinado

espaço ou objeto e, só assim, conseguem iniciar um processo de conexão conosco.

Ah, humanos! Estamos o tempo todo em todos os lugares, mesmo se eles não

percebem nossa presença! Mas eles insistem em nos encontrar apenas em seus

templos, em objetos ritualísticos ou nos espaços que eles estabelecem como sendo

sagrados! Eles têm muito o que aprender, não acha? Mas isso não diminui o valor de

suas tentativas em nos encontrar e contatar-nos e, por isso, eu também aprecio quando

a dançarina decide que ali, naquele espaço e naquele tempo estabelecido por ela, é

que nos manifestaremos.

Da mesma forma, eu entendo quando ela prepara seu corpo para receber os

conteúdos mitológicos, pois, a partir dessa preparação, ela abre as portas para o

trabalho com todas as dimensões corporais, permitindo a integração das mesmas no

processo de improvisação que vem a seguir –com isso, ela respeita e ativa seu corpo

que é soma e disponibiliza-o para o trabalho com o corpo mitológico propriamente dito.

E, então, posso dizer, Dionísio, que, no momento da improvisação, nós –

deuses, seres sobrenaturais e todos os mitos– podemos nos manifestar efetivamente

em seu corpo, e esse é um momento absolutamente potente de ação criativa.

Além disso, eu considero importante o fato de ela ativar o corpo mitológico tanto

na criação, quanto no momento da cena em si, pois isso me mostra a compreensão da

necessidade de um estado de consciência plenamente conectado a nós em ambos os

momentos do trabalho artístico, o que configura um trabalho complexo, que exige ainda

mais a disponibilidade e a entrega total da dançarina.

A “serpente” que ela deixou se manifestar em seu corpo surgiu de suas

entranhas, de um profundo e longo trabalho com o que ela chama de “estados

alterados de consciência” e de uma abertura completa às imagens mitológicas que

circulam em seu corpo. Gostaria de lhe dizer, meu irmão, que entendi que o que vimos

em seu processo criativo foi uma movimentação não racionalizada que foi,

posteriormente, trabalhada para se tornar o trabalho artístico final.

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Também quero lhe contar que, depois de acompanhar o trabalho daquela

dançarina, aventurei-me sozinho mundo afora em busca de outros trabalhos artísticos

que consideram o corpo mitológico ou o corpo sagrado na cena e surpreendi-me ao ver

que são inúmeros os artistas que trabalham técnicas parecidas ou princípios teóricos e

práticos parecidos. O que vimos foi uma possibilidade de abordagem desse corpo –não

é nem de longe a única possibilidade–, o que me deixou ainda mais animado e feliz ao

ver que existem muitos humanos que usam a arte de maneira sábia!

Meu prezado irmão Dionísio, posso lhe dizer que considero os seres humanos

muito complexos e confusos. No meu ponto de vista, eles complicam absolutamente

tudo em que colocam as mãos e são capazes de estragar quase tudo o que lhes

demos. Em muitas ocasiões, eles se mostram egoístas e mesquinhos e esquecem que

sua existência depende absolutamente de nós. Eles esquecem que podemos acabar

com tudo em um único ato de ira e negligenciam suas obrigações conosco. Porém,

todos eles sabem que existimos e carregam-nos sempre consigo de alguma forma,

mesmo se nas camadas mais profundas de suas mentes.

Se eles não acreditassem em nossa existência, não sacralizariam o mundo

como fazem a partir da Hierofania, não se sentiriam tomados por algo maior do que eles

em pelo menos um momento de suas vidas e não tentariam encontrar caminhos em

seus corpos que os conduzissem a nós. Creio que, se não sabem lidar com o sagrado,

é porque ainda têm muito a aprender e também porque essa é a natureza dos

humanos: não saber lidar com nada maior do que eles!

Não posso deixar de dizer, meu caro irmão, que ler os estudos científicos dos

humanos a respeito dos mitos, da mente e da arte acrescentou-me muito sobre eles.

Entendi que a racionalidade exagerada de alguns deles não pode ser de todo ruim, pois

esclarece –tanto a nós quanto a eles– importantes questões relacionadas às suas

existências. Porém, também não posso deixar de falar que muitos desses estudiosos

precisam passar uma grande temporada com você e visitar suas festas e rituais para se

permitirem sentir mais e racionalizar menos. Alguns deles precisam entender que a via

da razão não é a única via de conhecimento que lhes demos e que eles estão

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atrofiando suas capacidades de compreensão do mundo quando não permitem que a

razão corporal atue.

Mas, por fim, não posso afirmar que eles não sabem usar a sabedoria que

Prometeu lhes deu, porque ainda podemos ver que eles conseguiram manter o mundo

que lhes demos há tantos e tantos anos, que conseguiram descobrir coisas importantes

por meio de sua ciência e de sua racionalidade e que também conseguiram transformar

a arte em um caminho tão potente e maravilhoso de expressão pessoal e coletiva.

Kali, Sarasvati e você me fizeram mudar de opinião, e fico feliz em dizer que

votarei a favor da libertação de Prometeu e que vou usar os argumentos que lhe acabei

de apresentar para defendê-lo. Porém, prezado irmão, devo adiantar-lhe que minha

opinião não deve mudar o destino de Prometeu, pois todos os outros deuses ainda o

condenam por não entenderem a arte e a dança como você me fez ver e entender.

Assim, creio que Prometeu deve ficar acorrentado e padecendo em sua pena

ainda por muito tempo, mas talvez esse seja seu destino: ajudar aos humanos que

conhecem sua história a pensar sobre o que fazem com a sabedoria que ele lhes

ofereceu.

Eu realmente espero que os dançarinos e todos os outros artistas possam

entender, experienciar e concretizar seus corpos mitológicos em seus trabalhos

artísticos, reconhecendo a importância dos mitos em suas existências humanas e

usando mais a sabedoria em seus trabalhos –mas também não temos controle algum

sobre isso, pois o destino de cada humano é traçado por nós e completado, também,

por cada um, por meio do livre arbítrio.

Termino minha carta agradecendo a você por tantos momentos especiais que

passamos juntos nessa última temporada e pedindo que façamos mais isso, pois a vida

de um deus pode ser uma eternidade solitária quando não compartilhamos nossas

opiniões e experiências divinas. Além disso, Dionísio, juntos nós sempre realizamos

grandes feitos para os humanos (artísticos ou não) e também porque dar boas risadas

ao seu lado, embriagado por um bom vinho e embalado por uma boa dança, é sempre

um prazer fantástico!

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Nós nos encontraremos na próxima reunião no Olimpo, quando a sorte de

Prometeu será lançada!

Com carinho,

Seu irmão, Apolo.

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5.2 - Fechando a Caixa de Pandora

Ao final deste trabalho, já não sei mais dizer se fui eu ou se foram os mitos que

compõem meu corpo que realizaram e escreveram esta pesquisa. Posso garantir,

apenas, que a Caixa de Pandora continua aberta, e que acredito continuar investigando

os mitos em meu corpo durante toda a minha vida, tamanha a potência e a importância

que esse tema tem para meu corpo dançando.

A prática com o corpo mitológico e todas as etapas que envolveram essa

pesquisa trouxeram-me experiências sensíveis e racionais que modificaram

profundamente meu modo de ver um trabalho artístico, em especial, meu modo de

realizar meu trabalho artístico pessoal.

A “serpente” que se revelou em mim se revelará ainda muitas vezes e, dela,

surgirão outros novos e velhos conhecidos mitos. Portanto, sei que, do interior desta

Caixa de Pandora que pode ser a pesquisa acadêmica, muitas coisas ainda sairão e

sei, igualmente, que a pesquisa tem a tendência de deixar que infinitas teorias,

hipóteses e conceitos continuem sempre surgindo; por isso, eu não considero a opção

de fechar essa caixa.

Claro que pude concluir importantes pontos acerca do corpo mitológico; em

especial, pude observar e realizar a possibilidade de um caminho direto e objetivo para

o trabalho com o mito na cena, respondendo à hipótese levantada no início desta

pesquisa –e pude constatar a importância do diálogo entre a teoria e a prática para que

tal hipótese fosse esclarecida. Porém, fechar uma caixa tão repleta de possibilidades

seria como interditar o fluxo dos conteúdos de meu corpo em suas diversas dimensões.

Sinto ter realizado um trabalho muito dinâmico e consigo observar em meu

corpo e em outros corpos de tantos outros dançarinos a dança de deuses, de deusas,

de ninfas, de heróis, de demônios, de anjos e de infinitos outros seres mitológicos que

participam da composição de nossos corpos humanos. Consigo sentir quando esses

mitos dançam em meu corpo e, por mais subjetivo e empírico que isso possa parecer,

eu acredito profundamente em cada uma das etapas desse trabalho.

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Posso resumir esta pesquisa em três grandes etapas. A primeira etapa

consistiu em uma pesquisa teórica, que buscou esclarecimento a respeito do mito e do

sagrado e de como esses conceitos se manifestaram na dança ao longo da história. A

segunda etapa foi composta pelo estudo do mito no inconsciente da humanidade

segundo as teorias de Jung bem como dos possíveis caminhos de manifestação do

inconsciente mitológico em trabalhos artísticos. Finalmente, a terceira etapa trouxe para

meu corpo o cruzamento dos conceitos de mito e sagrado a partir da técnica psicofísica

que propôs o estado alterado de consciência para o encontro do corpo mitológico.

Considero importante destacar, ainda, que a preparação de todas as dimensões

de meu corpo antes de iniciar um laboratório é essencial para colocar-me à disposição

das imagens mitológicas, assim como a preparação do espaço onde vou dançar.

Verifiquei, nos inúmeros laboratórios práticos (foram realizados cerca de 120

laboratórios práticos ao longo da pesquisa), que minha fisicalidade influencia

diretamente nos resultados do corpo mitológico que pretendia alcançar e, por isso,

preparar a dimensão física do corpo é tão importante quanto preparar o emocional e o

psicológico antes da realização deste tipo de trabalho.

Ainda a respeito da preparação física, verifiquei que existem muitos caminhos

para que ela aconteça e que cada artista deve encontrar e aprofundar-se naquela que

mais lhe agrade e que sinta que lhe prepara suficientemente para um trabalho longo

(em duração de tempo) e profundo, como pode ser o trabalho com a dança.

Observei que não podemos controlar as imagens que o inconsciente libera a

partir do movimento corporal. Cair na tentativa de controle é podar completamente o

corpo mitológico e, portanto, este trabalho exige muita coragem para enfrentar as

sombras e os demônios que podem surgir do e no corpo. Resumo esse ponto dizendo

que é preciso maturidade corporal e emocional, o que se adquire com o tempo de

trabalho com o inconsciente e também com o corpo em movimento expressivo.

Gostaria de deixar claro que os estudos sobre o inconsciente, a consciência ou

sobre qualquer outra dimensão da psique humana não foram aprofundados neste

trabalho porque não pretendi abordar os aspectos psicológicos e complexos desses

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estudos, focando a pesquisa nas imagens e nas sensações que o inconsciente pode vir

a liberar a partir do trabalho com os estados alterados de consciência em função de um

corpo cênico. Porém, sei que os estudos da mente humana podem contribuir

significativamente com o trabalho artístico por ambos terem a mesma natureza: o

homem e seu complexo universo interior.

Tenho certeza absoluta de que, se eu continuar o trabalho com a “serpente”, ela

se transformará em inúmeros outros mitos –como foi o caso da deusa Kali, que surgiu

em meu Mestrado e que se transformou em pássaros e dos pássaros que se

transformaram em serpente– e esse processo faz tanto sentido para mim que já estou

com o corpo preparado para ver o que poderá acontecer daqui para frente a partir da

“serpente”.

Concluo, portanto, estas páginas com a certeza de que a mitologia continuará a

me fascinar, de que a dança continuará a me mostrar caminhos para o mito e tanto meu

corpo quanto os outros corpos que eu observar como artista, pesquisadora e docente

sempre me trarão inúmeras Caixas de Pandora para serem abertas. Além disso,

entendo que por ser a pesquisa em arte tão dinâmica, o trabalho do pesquisador é

deixar a curiosidade abrir as diferentes Caixas de Pandora que lhes são propostas, e,

então, maravilharem-se com seu conteúdo.

Que venham outras e novas maravilhas!

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ANEXOS

Anexo 1: “Voo invisível”

“Voo invisível”, realizado junto aos alunos do curso de Arte-Educação do

Departamento de Artes (DEART) da Universidade Estadual do Centro-Oeste do Paraná

(UNICENTRO), foi o resultado dos estudos das relações entre mito e corpo, feitos no

início da presente pesquisa.

Conforme explicado ao longo deste texto, as imagens mitológicas foram se

transformando durante a pesquisa com o corpo mitológico e, antes de surgir o símbolo

da serpente (escolhido para o estudo coreográfico final desta pesquisa), trabalhei com

alguns mitos de pássaros e o estudo coreográfico intitulado “Voo invisível” foi um

primeiro resultado estético desta pesquisa.

Considero importante destacar que esse trabalho foi realizado junto a alguns

alunos do DEART que se propuseram a participar de minha pesquisa e que tiveram

colaboração significativa para a compreensão de alguns importantes pontos

relacionados ao corpo mitológico na cena.

Agradeço às minhas queridas ex-alunas e amigas Carolina Ramos, Bruna

Bortolanza, Thayane Granero, Sadina Alves, Suelen Soares, Luciana Santos, Larissa

Franklin. Muito obrigada por me ajudarem a encontrar tantos pássaros em meu corpo!

Obrigada ao amigo e músico Clayton Silva, grande parceiro, que entendeu os

pássaros e seus sentidos dentro de cada um que participou da composição deste

trabalho –compondo a trilha e linda canção final.

Deixo um agradecimento especial a todos os professores colegas do DEART:

Erica Gomes, Clovis Cunha, Daiane Stoeberl, Eglecy Lippmann, Marcia Cristina

Cebulski, Nara Maria Gorsk, Danielle Souza e Margie Rauen. Aprendi muito com cada

um de vocês e tenho certeza que vocês são parte de mim em diversas dimensões de

meu corpo!

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Figura 9: Material de divulgação “Voo Invisível”

(Designer gráfico: Julio Giacomelli

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Fotos “Voo Invisível”

Apresentação dia 21 de novembro de 2011

Primeiros estudos do corpo mitológico

Mostra de Artes da UNICENTRO

Figura 10: Foto da Apresentação de "Voo Invisível "

Foto: Andressa Kloster

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Figura 11: Fotos da Apresentação de "Voo Invisível "

Foto: Andressa Kloster

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Anexo 2: Vídeos e fotos de laboratórios do corpo mitológico.

Vídeo de laboratórios práticos: Em anexo encontram-se os vídeos dos laboratórios

práticos realizados ao longo desta pesquisa. Foram selecionados apenas alguns

trechos, considerados relevantes para a discussão aqui apresentada que encontram-se

no DVD de número 01.

Fotos dos laboratórios práticos.

Figura 12: Fotos dos laboratórios práticos

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Figura 13: Fotos dos laboratórios práticos Fotos Guilherme S. Santinho

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Figura 14: Fotos dos laboratórios práticos/montagem do estudo coreográfico

Fotos Guilherme S. Santinho

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Anexo 3: “Outra Pele”- Material de divulgação com ficha técnica do estudo

coreográfico.

Figura 15: Cartaz de divulgação do estudo coreográfico “Outra Pele”

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Figura 16: Programa de apresentação do estudo coreográfico “Outra Pele”