o corpo e espacialidade: um estudo sobre o … · 2009-10-16 · 6824 pesquisa sobre a corporeidade...
TRANSCRIPT
O CORPO E ESPACIALIDADE: UM ESTUDO SOBRE O
COMPORTAMENTO ETOLÓGICO
CAMPOS, Flavia Karolina - UFMT [email protected]
GOMES, Cleomar Ferreira - UFMT
Eixo Temático: Cultura, Currículo e Saberes Agência Financiadora: CAPES (Bolsista)
Resumo Este trabalho é fruto de uma pesquisa que tem por objetivo verificar, no cotidiano de pessoas comuns, ocupando os espaços públicos cuiabanos, as marcas deixadas pelos diferentes tipos de comportamento em que a corporeidade apresenta e que está diretamente ligado ao ambiente em que os circunscreve. Utiliza-se de uma metodologia que privilegia a imagem de movimentos gestuais e de posturas dos sujeitos observados que fazem com que essas marcas nos mostram que há uma comunicação não verbal que fala o tempo todo. Seja no ato extravagante de vestir, na expressão de rostos pintados, furados escarificados, na “insatisfação” esférica do corpo, no desconforto auditivo devido a poluição sonora, na fadiga renitente de imagens visuais, no isolamento individual em meio a multidão de pessoas que superlotam os espaços... Essa corporeidade vai “gritando”, “se ajeitando no jeito que pode”, para ser fiel a uma expressão de Le Breton. A cibercultura nos obriga a ser e estar em um novo espaço e em um novo tempo que implica uma mudança conceptual da cultura. Para desenvolvimento deste trabalho utilizamo-nos de uma mini-pesquisa, nos moldes etnográficos, seguida de observações sistemáticas e assistemáticas, além de um roteiro de entrevistas, quando em campo foi possível utilizar uma câmera digital para registro de imagens. Apesar de algumas pessoas apresentarem diferenças visíveis quanto à situação financeira, no modo de ir e vir, no modo de ser, vestir, falar, ler, se divertirem e ocupar esses lugares, eles se assemelham em seu comportamento etológico nos espaços que ocupam. O trabalho pôde ver que somos todos parecidos nesses espaços para produzir uma acomodação necessária no trato de pertencer a um determinado grupo social ou a uma “tribo”, como prefere o sociólogo francês, Michel Maffesoli. Palavras-chave: Comportamento Humano. Etologia. Cultura.
Introdução
6823
O comportamento humano está diretamente ligado ao ambiente em que nos
circunscreve, isto é, a forma com que nos relacionamos com outras pessoas, nos vestimos,
divertimos, alimentamos, exercitamos, entre outras modalidades de se comportar, sofre uma
influência significativa das condições em que estamos incorporados. Etologia é a disciplina
que estuda o comportamento animal. Está ligada aos nomes de Konrad Lorenz e Niko
Tinbergen, sob a influência da teoria darwiniana, tendo como uma de suas preocupações
básicas a evolução do comportamento através do processo de seleção natural.
É relevante aqui para esse ensaio os estudos antropológicos de Edward Hall (1986)
que buscam o “princípios” para esquadrinhar as subestruturas biológicas de onde nascem
muitos aspectos do comportamento humano. Para esse autor “o homem é, primeiro, depois e
sempre, como os demais membros do reino animal, prisioneiro de seu organismo biológico”,
não havendo, portanto, um abismo entre homens e bichos.
Com Hall ficamos à vontade, então, de posse de um referencial teórico-metodológico
para lançar olhar para homens, mulheres, jovens e crianças em seus ajuntamentos em micros
espaços urbanos e percebê-los como animais em busca de um melhor assento, de uma posição
segura na lide de ir e vir, de freqüentar esses espaços para garantir a sua territorialidade. No
dizer de Hall (1986), a territorialidade pode ser entendida como “o comportamento mediante
o qual um ser vivo declara caracteristicamente suas pretensões a uma extensão de espaço, que
defende contra os membros de sua própria espécie”.
A etologia constitui-se, portanto, como uma disciplina da biologia que visa estudar o
comportamento, tanto intra-específico, ou seja, o comportamento de uma espécie no seu meio
ambiente, a partir da observação e análise das diversas facetas da vida dos indivíduos da
espécie (sobrevivência, reprodução, comportamento territorial...), quanto ao comportamento
interespecífico: a relação entre as espécies no meio ambiente comum.
Cabe a essa disciplina a tarefa peculiar de ver em qualquer lugar as pessoas
desenvolverem uma maneira de ser, tão próxima daquilo que Marcel Mauss (2008, p. 401)
define como “técnica corporal”. Para esse autor “as maneiras como os homens, sociedade por
sociedade e de maneira tradicional, sabem servir-se de seus corpos” e ainda que sejam
transmitidas através da educação e que são atos tradicionais, diferenciando-se assim dos
animais provavelmente pela sua transmissão oral.
Este trabalho é um relato de investigação a partir dos dados coletados pelo grupo de
pesquisa sob a liderança do Professor Dr. Cleomar Ferreira Gomes (Grupo de Estudos e
6824
Pesquisa sobre a Corporeidade e a Ludicidade) com o intento de verificar o comportamento
de pessoas em locais públicos da cidade de Cuiabá, tais como: restaurantes, terminais de
ônibus, aeroporto, feiras de rua, igrejas, bares, shopping center, penitenciária, faculdades,
escolas, demais locais onde há uma grande circulação de pessoas.
Com a pesquisa feita foi possível notar os diferentes tipos de comportamento que essa
corporeidade apresenta: em agrupamentos, duplas ou individual essas pessoas estão sempre
em circulação vivendo e con/vivendo nesses espaços. A pesquisa se orientou por um roteiro
de observação que privilegiou suas posturas nos locais investigados: assentar, andar, agrupar-
se, comer, falar sobre que assuntos, sua vestimenta, seus adornos, suas expressões de rosto,
como se exercitam, sobre o que sonham, suas formas de acasalamento, como se namoram.
O olhar dos pesquisadores se direcionou para ver nesses micros-espaços-tempo,
através de uma linguagem corporal dos sujeitos, acrescida de informações com pequenas
entrevistas o que esses corpos tinham num comportamento etológico muito mais animal do
que cultural quis nos mostrar.
Temos tentado a partir de uma investigação antropológica observar como os corpos
têm se comportado nessa geografia que cada dia faz aquilo que a proxêmica de Edward Hall
cunhou de “apinhamento”, noutras palavras esta expressão diz de ajuntamentos cada vez mais
abarrotados nos espaços urbanos. As regras de convívio têm que sofrer alterações para fazer
as pessoas se adaptarem a esse ajuntamento que é cada vez mais freqüente nas sociedades
modernas. Se espremendo em barracos, se acotovelando em filas de terminais de transportes
coletivos se esbarrando em meneios nas festas, em bares, em shows, saracoteando em locais
públicos como nas praças, as pessoas nos dizem com uma linguagem não verbal, isto é,
puramente corporal, que é possível com/viver se as regras de convívio permitirem ser o que
elas podem ser. Como nos lembra Montagu (1988, p. 19) “as comunicações que transmitimos
por meio do toque constituem o mais poderoso meio de criar relacionamentos humanos, como
fundamento da experiência’.
Algumas pessoas segundo a observação e a fala dos sujeitos nos dizem de um corpo
extenuado “escravizado” pelas duras horas de trabalho que se complementa com horas de
escola que se apertam no ir e vir nos transportes coletivos. Algumas nos falam de pisoteios, de
engarrafamentos, desse estresse que as cidades grandes costumam produzir.
Há um corre-corre habitual que rotiniza a vida dessas pessoas. Elas estão sempre com
pressa e com a sensação de que perderam tempo. É comum, pelas falas dos sujeitos, um
6825
desagrado com o corpo. Quando perguntados sobre o que comem, por exemplo, há uma voz
corrente sobre uma má alimentação: comidas rápidas e engorduradas que acabam desenhando
as silhuetas que mostram “as banhas que saltam fora da roupa” como nos dizem alguns
entrevistados. Estas imagens fazem parte do acervo do grupo:
A busca do corpo perfeito nos ritos de um corpo insatisfeito nos faz apelar para
técnicas de relaxamento, a medicamentos para dormir, a dietas que envolvem o alimentar, o
emagrecer, o engordar, entre outros. Não paramos para pensar em nosso corpo, preocupamos
somente com a estética: o silicone, o botox, as plásticas, a lipoaspiração constituem assumem
essa função. Estamos sempre anexados a uma prótese, num mundo que celebra essas
mudanças, fazendo perder a forma corporal. Estamos mais obesos, infelizes, hipertensos e não
pensamos no corpo coletivo, mas no corpo individual. Assim cada “eu” vai se arrastando
como pode.
As coisas não naturalizam por si só, mas é o olhar para/de nossa cultura que nos obriga
a ver este mundo, a representá-lo com as assinaturas de nossa existência, isto é, ao olhar do
Homo ludens-sapiens-faber-demens, que somos.
Lembrando Marcel Mauss (2008, p. 420) “em toda sociedade, todos sabem e devem
saber ou aprender aquilo que devem fazer em todas as condições. Naturalmente, a vida social
não é isenta de estupidez e de anormalidades.” Essa “estupidez” que fala Mauss pode ser
notada nas falas e na própria expressão de ser de cada sujeito investigado. Empurrões nas
filas, xingamentos no transito, abarrotamento nas festas, lugares que se supõem pontos de
divertimento corporal, acabam por produzir um aborrecimento naquele que lá esteve para se
distrair.
6826
O homem é um animal natural que se torna cultural. Essa é uma regra do
comportamento etológico humano, esse comportamento sofre influências de fatores externos
como, por exemplo, o clima quente-úmido da cidade de Cuiabá que obriga empurrar as
pessoas para fora da casa. Parece contraditório dizer, mas é justamente este comportamento
que produz uma socialização quase que compulsória com as pessoas desse local. Outros
fatores são afetos a qualquer sociedade: ambiente físico, luta pela sobrevivência, as condições
financeiras, a fluidez desses tempos pós-modernos, como nos diz Zygmunt Bauman (2007, p.
97), a flutuação dos valores morais, a fragilidade das relações interpessoais entre outros.
Toda sociedade possui características que são exteriorizadas principalmente através do
comportamento de seus integrantes. Verificar as diferenças comportamentais dos grupos e não
de um indivíduo isoladamente, foi para Mauss (2008, p. 404) uma constatação, uma
idiossincrasia social que cada ambiente produz.
Do Roteiro de Investigação
Para desenvolvimento deste trabalho utilizamo-nos de uma mini-pesquisa para checar
aquilo que Hall (1981) escreveu a mais de quarenta anos atrás. O autor dizia que as
populações mundiais estão se amontoando nas cidades e nesses amontoamentos as
necessidades de espaço das pessoas são concebidas “simplesmente em função dos limites de
seus corpos”. Daí que essa leitura de Hall inspirou a nós pesquisadores em que envolvemos os
alunos do segundo semestre do curso de Educação Física da Universidade Federal de Mato
Grosso. Em campo eles utilizaram de câmera digital para registrar através de imagens os
aglomerados de pessoas:
6827
Seguida de observações sistemáticas e assistemáticas, além de um roteiro de
entrevistas com aqueles sujeitos que se mostraram com boa vontade para lhes dar informações
a respeito das questões categorizadas, conforme quadro abaixo, fazemos um resumo do que se
pôde retirar de suas falas e das observações:
Sobre o que Falam
Família/ Esportes/ Religião/ Clima/ Escola/ Emprego/ Homens/ Mulheres/ Sexo/ Experiências vividas/ Festas/ Comidas/ Encontros/ Negócios/ Finais de Semana/ Políticas/ Desabafos/ Fofocas/ Brigas/ Congressos/ Palestras/ Seminários/ Esportes/ Novelas/ Cinema/ Cidade Natal/ Cidade onde trabalham/ Faculdade/ Futebol/ Internet/ MSN/ Orkut/ Formatura/ Relacionamentos anteriores/ Pretensões futuras/ Rock/ Cerveja/ Moda/ Gírias/ Músicas/ Shows/ Namorados/ Professores/ Filmes Pornô/ Lutas/ Beleza feminina/ Comportamento/ Processos/ Notícias do dia-a-dia/ Promoções de Shopping/ Meninas/ Jogos eletrônicos/ Abordagens sofridas por policiais/ Drogas/ Brigas/ Armas/ Filmes de Guerra/ Roupas/ Assuntos diversos.
Como se Vestem (calçam)
Uniformes escolares/ Uniformes de empresas/ Roupas básicas/ Blusas/ Roupas adequadas ao clima/ Calças/ Short/ Saias/ Vestidos/ Tênis/ Sandálias/ Sapatos/ Chinelos/ Sapatilhas/ Rasteiras/ Sapatos baixos/ Moule/ Sandálias rasteirinhas/ Salto alto/ Tênis/ Sapatos/ Vestidos longos/ Tamancos/ Calça jeans/ Calça social/ Camisa social/ Camisetas/ Chinelo/ Camiseta de manga/ Regata/ Terno/ Gravata/ Meias/ Botas/ Sempre bem confortáveis/ Bonés/ Chapéus/ Fivelas/ Scarpan/ Forma simples/ Calça lycra.
Como e o que se comem (como se alimentam)
Porções de batata frita/ Salaminho/ Espetinho/ Arroz/ Farofa/ Vinagrete/ Cerveja/ Suco/ Refrigerante/ Água/ Pizza/ Espaguete/ Lasanha/ Chopp/ Whisky/ Caipirinha/ Caipirosca/ Cachorro quente/ Sorvete/ Salgados/ Frituras/ Balas/ Chicletes/ Chocolates/ Picolé/ Merenda oferecida pela escola/ Bolos/ Fastfood/ A lá carte/ Pirulitos/ Bolachinhas “Pit stop”/ Café/ Banana frita/ Algodão doce/ Melzinho/ Sorvete/ Pipoca/ Bolo de arroz/ Saladas/ Porções de carne/ Feijão/ Pão/ Alimento Espiritual hóstia.
Como se namoram (copulam)
Trocam carícias/ Abraços/ Beijos/ Apertos/ mãos dadas sendo acariciadas às vezes/ recados mandados pelos amigos/ Abordam diretamente através de conversas amigáveis/ Trocam números de celulares/ Marcam um encontro/ Carinhos mais quentes/ Carinhos mais discretos/ Mãos dadas com um clima de romance/ Não namoram/ Ficam/ Em casa/ Na rua/ À distância/ com preservativo/ Sem extrapolar/ Dentro das celas/ No banco do shopping/ No cinema/ Saem com a garota para passear/ Pai e mãe não sabem/ Namoro sério/ Pai e mãe sabem/ Mantendo relação sexual
Como se adornam (enfeitam)
Bonés/ Brincos grandes e pequenos/ Correntes/ Colares/ Relógios/ Anéis/ Pulseiras/ Maquiagens/ Bolsas/ Óculos de sol/ Óculos de grau/ Prendedores de cabelo/ Anéis/ Gel/ Celulares/ Perfumes/ Gel/ Smartsphones/ Chapéus/ Tatuagens/ Cintos/ Chapinha/ Piercing/ Não possuem adornos/ Tintura no cabelo/ Cortes de cabelo/ Tornozeleiras.
Como se locomovem
A pé/ Correm/ Andam/ Transporte coletivo / Carro/ Moto/ Carona/ Táxi/ Moto-táxi/ Bicicleta.
Como se sentam
À vontade/ Cruzam as pernas/ Com os pés no banco ou no chão/ Crianças no colo/ inclinação do tronco para frente/ postura ereta/ Voltados para a TV/ braços apoiado na mesa/ não se preocupa com a postura.
Como se socializam (troca de
Cumprimentos Gírias/ Bom dia/ Beleza/ Sentam-se frente a frente/ Receptivos/ Educados/ Sorridentes/ Conversando/ Abraçando/ Conversas/ Cumprimentos rápidos/ Gesticulando para chamar a
6828
informações)
atenção/ Socializam em grupos/ Telefonemas/ Internet/ Festas/ Shows/ Escola/ Socializam entre pequenos grupos/ Socializam através dos estudos.
Sobre o que lêem
Alguns são analfabetos/ Não tem tempo para leitura/ Livros didáticos (Obrigação)/ Fofocas dos artistas na mídia/ Catálogos de produtos/ Jornais/ Produtos em promoção/ Literatura Brasileira e internacional/ Livros populares/ Notícias Internet/ Revistas/ Jornais periódicos/ A Gazeta/ Folha do Estado/ Caderno de Esportes/ Bíblia/ Receitas/ Livros infantis/ Romances/ Folhetos da missa/ Revistas de bordados/ Livros específicos para a formação acadêmica / Gibis/ Revistas de mulheres peladas/ Atualidades/ Cartilhas de eventos empresarial/ Congresso/ palestra/ Seminários/ Novelas/ Cardápio/ Não costumo ler/ Revista veja / Revista Caras / Livros da biblioteca/ Livro de alto ajuda/ relações humanas/ Livro preparatório para concurso.
Como se divertem
Briguinhas/ Brincadeira do “AI”/ Rodas/ Conversando/ Gastando no shopping/ Planet park/ Cinema/ Lan houses/ Músicas ao vivo em barzinhos/ Bebendo/ Jogar truco/ Festas/ Baladas/ Fofocas/ Disputas/ Queda de braço/ Piadas/ Jogando baralho/ Lanchonete/ Computador/ Sair com os amigos/ Família/ Futebol/ Teatro/ Churrasco/ Viagens/ Reuniões em casa/ Namorando/ Louvando/ Fatos do dia-a-dia/ Bafões.
Se e como se Exercitam
Correndo para não perder o ônibus/ Carregando peso/ Compras/ Crianças/ Espreguiçando/ Sedentários/ Academia/ Caminhada/ Não exerce nenhuma atividade física/ Futebol/ Corridas trilha UFMT/ Levantamento de “copo/talheres/ Caminhadas em parque e ruas/ Aulas de Educação Física/ Abdominal/ Musculação/ Dançando/ Trabalhando em pé o dia todo/ Esticando os braços/ Alongamento.
Considerações Finais
Com o trabalho feito foi possível chegar a algumas constatações que pudessem
descrever o comportamento humano nos locais que serviram de observação. As pessoas de
um modo em geral se comportam, assumindo movimentos com gestos estereotipados muito
específicos de cada situação que acabam orientando as suas atitudes tão próximo daquilo que
pontuou Montagu (1988, p. 19): “em razão de nossa progressiva sofisticação e falta de
envolvimento recíproco passamos a utilizar exageradamente a comunicação verbal, chegando
inclusive a excluir de nossa experiência o universo da comunicação não verbal, para o nosso
acentuado empobrecimento”.
Para esse autor há na “ocidentalização do corpo” (grifo nosso), uma inexistência de
toque. Essa falta de pele a que ele se refere pode ser visto em nossos dias dentro de apertados
elevadores em condomínios das grandes cidades, em filas de bancos, em casas de show e em
terminais de ônibus. Abarrotados de pessoas esses lugares ditam uma corporeidade e afinam
uma “técnica corporal” para ser caro a Mauss, que elimina qualquer possibilidade de toque,
qualquer experiência de pele.
6829
O espaço cibernético afasta o indivíduo do tempo e do espaço, o corpo se apaga
restando assim apenas a comunicação, mas sem o corpo, sem o rosto, a mente se libera do
corpo, de seus limites e dá força aos pensamentos. A única forma de toque de pele são as
mãos que podem tocar o teclado e a única imagem é a tela do computador, o corpo é
transportado do mundo físico para um mundo metafísico, um mundo simbólico, onde
deficientes e doentes se movem, magros e obesos se transformam, negros e brancos se
misturam em suas cores, crianças e adultos se confundem, os mais velhos se tornam jovens,
tornando um momento de igualdade, pondo o corpo entre parênteses, e se entrega a essa vida
virtual, com emoções, paixões, medos que reproduzem os valores da sua existência. Mas o
mundo fictício é um mundo sem “carne”, nos dá proteção e nos tira do mundo real: talvez
esteja aí o clichê de viver “o mito do indivíduo perfeito”.
Os dados da pesquisa puderam registrar com sua coleta de informações, a partir das
imagens e conversas com transeuntes, que apesar de algumas pessoas apresentarem diferenças
visíveis quanto à situação financeira, no modo de ir e vir, no modo de ser, vestir, falar, ler, se
divertirem e ocupar esses lugares, eles se assemelham em quase tudo. Há um “corpo social”
tangível no modo de eles se comportarem em público. Eles se parecem em seus assuntos
cotidianos: futebol, mulheres, sexo, dinheiro são os temas que monopolizam a conversa para
os “machos”; moda, namorado, shopping center, filhos, são a predileção das “fêmeas”,
conforme assinala o quadro (retro).
No Restaurante, o corpo mostra que a cultura molda um êthos nas pessoas desde o
modo de se vestir até a maneira de se comportar diante de uma determinada situação, que é
normalmente influenciado pelo ambiente que se ocupa, pela classe social ou pela “tribo”, para
lembrar um termo usado pelo sociólogo Michel Mafessoli. Em tempos passados, quando as
pessoas eram diferenciadas pelas classes sociais que pertenciam, o que podia ser visto em
suas vestimentas e tons de pele, hoje nas grandes cidades essa diferenciação se faz no êthos de
cada tribo. Assim temos a tribo dos fanqueiros, dos country, dos esportes radicais, dos
notívagos. Cada grupo, a partir de hábitos intra-específicos, vai compondo aquilo que a
sociologia compreensiva chama de “tecido social”.
Para Montagu (1988, p. 19) “a linguagem dos sentidos, na qual podemos ser todos
socializados é capaz de ampliar a nossa valorização do outro ou do mundo em que vivemos, e
de aprofundar nossa compreensão em relação a eles”. Daí que somos todos parecidos nesses
6830
espaços para produzir uma acomodação necessária no trato de pertencer a um determinado
grupo social...
As pessoas que utilizam os terminais de ônibus geralmente possuem a vida muito
corrida e seus usuários em sua maioria pertencem às classes desfavorecidas, que pelas
imagens estão sempre em situação de descontentamento. Esses locais estão sempre
“apinhados” e seus ônibus carregam passageiros que parecem transbordar seus ocupantes.
Existe um apego à territorialidade, no uso que o “animal” faz do espaço. Há padrões
de espaçamento e distância que a maioria emprega entre uns e outros. Em determinados
horários do dia, acontece muito engarrafamento.
Quanto aos locais de festas, o estudo pôde mostrar que indivíduos de vários estilos
(tribos) procuram os bares como forma de divertimento. Há nesses ambientes um
entrosamento entre amigos que faz “quebrar” aquela vida rotineira, aliviando o estresse do
cotidiano, num lugar agradável e bem receptível. As repostas dalguns entrevistados
corroboram aquilo que os tempos atuais têm cunhado de Qualidade de Vida. Essa vida só
pode ser vivida se completada com essa vazão do tempo do labor, e nunca é demais repetir o
poeta Schiller: “o homem só se completa quando se diverte”.
Duas universidades fizeram parte dos loci estudados e algumas diferenças são
gritantes, embora não sendo esse o interesse da pesquisa, não podemos nos furtar de fazê-lo,
no tratamento antropológico do dado. Uma leitura sociológica já fez essa observação de que a
sociedade brasileira há muito tempo tem como opção o aluno das classes abastadas é que deve
freqüentar o ensino superior de qualidade, estudando nas universidades públicas. Sobram para
alunos das classes trabalhadoras as universidades particulares com vocação de ensino apenas
6831
sem investimentos em pesquisas, o que acaba prejudicando a sua formação. Dados do último
censo, do Ministério da Educação, confirmam essas discrepâncias.
Outras diferenças entre o comportamento desses alunos observados estão no sentido
de que os alunos da universidade pública (UFMT) ficam mais à vontade no seu modo de ser e
de estar no campus. Há uma aura de contentamento e um despojamento no modo de vestir e
de falar dos mais variados assuntos. Mesmo nos cursos noturnos, quando cobram um
“padrão” mais elitizado em se vestir, essa diferença parece apontar para um corpo mais solto,
menos tenso que os alunos da universidade particular (UNIC). Nesta universidade as salas de
aula são abarrotadas, o que faz aumentar a distância de interlocução entre professores e
alunos. Os bares pertos dessa universidade, às vezes parecem ter mais alunos contentes que
cabulam a aula para se divertirem. Os assuntos ali tratados passam ao largo das disciplinas
escolares...
Outro lugar bem pós-moderno, elegido pela pesquisa foi o shopping center. Durante a
pesquisa foi possível observar que o shopping não é um local apenas de pessoas de classe
social elevada, mas também de pessoas de todas as classes sociais. Diferenciando-se muito
nos gostos e costumes das pessoas esse local faz conviver todas as tribos. Os shoppings
centers são, nem medo de errar, as nossas praças atuais. Lá esse ajuntamento reserva o direito
seguro de ir e vir, de perambular, de consumo também, mas nem tanto. As pessoas que a ele
freqüentam se dedicam muito mais a uma “conversação”, termo caro a Maturana (2004), do
que apenas ao consumismo. A fala de um entrevistado pode conferir essa análise:
“― O shopping é um local onde todos podem freqüentar, e a diferença só se vê no bolso de cada um na hora de ir às compras, porque no geral elas se vestem, calçam, comem e se divertem de forma igual, o diferencial está nas marcas das grifes e na qualidade da comida que comem” (Entrevistado/M. – 30anos).
Muito foram os dados, conforme o quadro pôde mostrar e muitas são as análises que
outros olhares com outras lentes podem fazer, mas para esse fórum nos damos por satisfeito.
A fala de outro entrevistado pode conferir os objetivos da pesquisa:
“― Estamos tão acostumados com o que vemos que não percebemos a gravidade do que estamos olhando, participar desta pesquisa, foi algo extremamente importante para o meu desenvolvimento pessoal, analisar as pessoas sobre um ponto de vista diferente do qual estamos acostumados não é fácil, infelizmente somos unilaterais, temos dificuldade em ver o outro lado (...) o dia-a-dia nos consomem que nem damos conta de pensar no que estamos vivendo...”. (Entrevistada/F – 25anos)
6832
Outros aspectos sobre os materiais analisados como se vestem, se alimentam, se
comportam, se namoram, se deslocam... neste meio, servem de diapasão não apenas como
detalhes, mas podem nos servir para perceber que nosso corpo é regido por regras sociais que
são obrigadas a cumprir. No entanto, os aspectos emocionais que pudemos analisar olhando
para essas pessoas é algo realmente relevante. Fazer um relato da história particular de cada
participante é entendê-lo como pertencente a um todo tecido social. Os sofrimentos vividos
por cada um se mostram em sua corporeidade. Há uma comunicação não verbal que fala o
tempo todo. Seja no ato de vestir, na expressão dura do rosto, na insatisfação durante os
transportes coletivos, no desconforto da poluição sonora, no isolamento individual em meio a
multidão de pessoas que superlotam os espaços públicos, essa corporeidade vai gritando, se
ajeitando no jeito que pode.
É verdade que muitos não se importam com o que acontece em seu entorno, mas basta
ver e escutar uma mãe chorando ao ouvir o barulho da sela batendo para perceber que existem
pessoas que sonham com a reabilitação de seus entes queridos ou parentes que por algum
motivo ingressaram na vida do crime, da transgressão dessas regras sociais.
Com base na teoria de Marcel Mauss (1974, p. 320), o comportamento humano não se
faz somente por uma consciência individual, se não também pela mentalidade coletiva. O
homem tende a agir de forma similar ao seu grupo seja qual ele for, para ser aceito. Ser aceito
por algum grupo traz ao indivíduo um bem-estar, de maneira que o exterior reflete no interior.
Cada ambiente forma uma idiossincrasia social, com as técnicas corporais. E através destas
técnicas corporais pode-se identificar de qual ambiente o indivíduo pertence. Os fatores
econômicos, culturais, sociais entre outros têm um papel decisivo no comportamento de ser
de cada grupo. Antes de serem culturais, os homens como os animais são mais naturais do que
possam imaginar.
REFERÊNCIAS
BAUMAN, Zygmunt. Vida líquida. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 2007.
HALL, Edward T. Proxémique In WINKIN, Yves. La nouvelle communication. Paris: Seuil, 1981.
6833
HALL, Edward T. La dimensión oculta. México: Siglo Veintiuno, 1986.
HUXLEY, Julien (ed.) Le comportement rituel chez l’homme et l’animal. Paris: Gallimard, 1971.
LE BRETON, David. Adeus ao corpo: antropologia e sociedade. Campinas Papirus, 2003.
LE BRETON, David. A sociologia do corpo. Petrópolis: Editora Vozes, 2007.
LE BRETON, David. As paixões ordinárias: antropologia das emoções. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2009.
LORENZ, Konrad. A agressão: uma história natural do mal. Lisboa: Moraes, 1974.
LORENZ, Konrad. A demolição do homem — Crítica à falsa religião do progresso. São Paulo: Brasiliense, 1986.
MATURANA, H.; VERDEN-ZÖLLER, G. Amar e brincar: fundamentos esquecidos do humano. São Paulo: Palas Athena, 2004.
MAFFESOLI, Michel. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de massa. Rio de Janeiro: Forense-universitária, 2006.
MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2008.
MONTAGU, Ashley. Tocar o significado humano da pele. São Paulo: Summus, 1988.