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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ
JULIANA PINHEIRO DA SILVA O CONTROLE ABSTRATO DE CONSTITUCIONALIDADE DOS ATOS
NORMATIVOS DE EFEITOS CONCRETOS SEGUNDO A JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
São José
2009
JULIANA PINHEIRO DA SILVA O CONTROLE ABSTRATO DE CONSTITUCIONALIDADE DOS ATOS
NORMATIVOS DE EFEITOS CONCRETOS SEGUNDO A JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Monografia apresentada à Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI, como requisito parcial a obtenção do grau em Bacharel em Direito.
Orientador: Prof. MSc. Luiz Magno Pinto Bastos Júnior
São José 2009
JULIANA PINHEIRO DA SILVA
O CONTROLE ABSTRATO DE CONSTITUCIONALIDADE DOS ATOS NORMATIVOS DE EFEITOS CONCRETOS SEGUNDO A JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Esta Monografia foi julgada adequada para a obtenção do título de bacharel e
aprovada pelo Curso de Direito, da Universidade do Vale do Itajaí, Centro de
Ciências Sociais e Jurídicas.
Área de Concentração: Direito Constitucional
São José, 16 de junho de 2009.
Prof. MSc. Luiz Magno Pinto Bastos Júnior UNIVALI – Campus de
Orientador
Bel. Daniel Lena Marchiori Neto Universidade Federal de Santa Catarina
Membro
Prof. MSc. Rodrigo Mioto dos Santos UNIVALI – Campus de São José
Membro
Aos meus avós, à minha mãe e àqueles
que me apoiaram nesta caminhada.
AGRADECIMENTOS
À minha mãe e toda minha família que, com muito carinho e sensibilidade,
me ajudaram e não mediram esforços para que eu chegasse até esta etapa de
minha vida.
Ao meu namorado, Livanos, pelo apoio, compreensão e incentivo nas horas
em que eu achava não ser possível chegar à conclusão desta monografia.
Ao professor e orientador Luiz Magno por sua paciência em todo o curso do
desenvolvimento deste trabalho.
Aos amigos e colegas que compreenderam os momentos em que estive
ausente, e ainda assim me incentivaram e apoiaram constantemente.
“A Constituição emerge do constitucionalismo. Mas que coisa é
o constitucionalismo? Neste lugar, devemos contentarmo-nos
com afirmar que é um produto perfeito do racionalismo jurídico,
social e político.”
Jorge Miranda
“Não há proposição mais evidente verdadeira do que esta –
todo ato de uma autoridade delegada, contrário aos termos da
delegação em virtude da qual concedeu essa autoridade, é
nulo. Conseqüentemente, nenhum ato legislativo, infringente da
Constituição, pode ser válido. Nega-lo importaria em afirmar
que o delegado é superior ao comitente; que o servo pode mais
que o senhor; que os representantes do povo têm mais
faculdades que o próprio povo; que homens que obram em
virtude de poderes conferidos, podem fazer não só o que os
poderes outorgados não autorizam como o que proíbem.”
Pedro Lessa
TERMO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE
Declaro, para todos os fins de direito, que assumo total responsabilidade
pelo aporte ideológico conferido ao presente trabalho, isentando a Universidade do
Vale do Itajaí, a coordenação do Curso de Direito, a Banca Examinadora e o
Orientador de toda e qualquer responsabilidade acerca do mesmo.
São José, 16 de junho de 2009.
Juliana Pinheiro da Silva
RESUMO
O objetivo do presente trabalho é analisar a evolução jurisprudencial do Supremo
Tribunal Federal no tocante à admissibilidade de exame das chamadas “leis de
efeitos concretos” ou “leis meramente formais” em sede de fiscalização abstrata de
constitucionalidade. Conquanto tais atos normativos não preencheriam os atributos
inerentes à idéia de lei (quais sejam: a generalidade, abstração, permanência e
inovação), há inúmeros instrumentos normativos de inegável relevância que se
encontram desprovidos de um ou mais destes atributos. Esta discussão teórica
ganha mais proeminência com a constatação de que o STF vinha excluindo, da sua
apreciação em sede de controle abstrato, a discussão sobre a sua
(in)constitucionalidade, posicionamento este que, até recentemente, era pacificado
por parte daquela Corte. Esta pesquisa pretende trazer à tona as objeções
doutrinárias sofridas por esta interpretação jurisprudencial e identificar as bases que
sedimentaram o caminho para a transformação jurisprudencial do enfrentamento
desta questão pelo STF. Ao final, chega-se ao ponto principal do presente estudo,
que é examinar a recente decisão em medida cautelar do Supremo Tribunal Federal,
na ADI-MC nº 4.048/DF, a qual aponta para uma mudança significativa de
posicionamento sobre a matéria. Destarte, o impacto decorrente desta decisão no
controle abstrato de constitucionalidade encontra-se do fato de que várias leis
primárias poderão ser objetos do referido controle, de acordo com o que profere o
relator em seu voto.
Palavra-chave : controle abstrato de constitucionalidade; ato normativo de efeitos
concretos; generalidade e abstração.
ABSTRACT
This monograph purpose is analyze the evolution of the Supremo Tribunal Federal
case-law regarding the admissibility to appreciate, through its abstract norm control
instruments, the validity of the statues known as “concrete effects rules” or “merely
formal statutes”. These statutes do not fulfill the requirements classically identified to
the idea of law, such as: generality, abstraction, permanency and innovation.
Although, so many statutes do not have at least one of these requirements. This
situation makes so hard to define which statute is provided of “concrete efects”. This
theoretical discussion gains more salience with the finding that the STF was
excluding, in the abstract norm control, the analysis about eventual
unconstitutionality of that kind of enactment. This position was peacefully recognized
until 2008. This research is supposed to demonstrate doctrinal objections affected by
this interpretation and indentify the bases contributed for the transformation that
occurred in STF. At the end, this study reaches the main point, which is examine the
recent decision, given as precaution measure, in the ADI-MC n. 4.084/DF, by the
STF. This precedent indicates a relevant changing in the position that has being
adopted. So, this decision impact, in the abstract norm control, is in the fact that
many primary statutes would be object of this kind of norm control.
Key-words: abstract norm control; concrete effects statutes; generality and
abstraction.
ROL DE ABREVIATURAS
art. – artigo
ADC – Ação declaratória de constitucionalidade
ADC-MC – Ação declaratória de constitucionalidade com pedido de medida cautelar
ADECON – Ação declaratória de constitucionalidade
ADI – Ação direta de inconstitucionalidade
ADI-MC – Ação direta de inconstitucionalidade com pedido de medida cautelar
ADPF – Ação de argüição de descumprimento de preceito fundamental
AgR. – Agravo regimental
AL - Alagoas
CF – Constituição Federal
CTN – Código Tributário Nacional
DF – Distrito Federal
EC – Emenda Constitucional
ed. – edição
MC – Medida cautelar
Min. – Ministro
MT – Mato Grosso
p. – página
PA – Pará
PE – Pernambuco
PI – Piauí
QO – Questão de ordem
SP – São Paulo
STF – Supremo Tribunal Federal
Rcl. – Reclamação
RE – Recurso Extraordinário
RJ – Rio de Janeiro
RS – Rio Grande do Sul
SE – Sergipe
TJSC – Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..........................................................................................................13
1 NOÇÕES GERAIS SOBRE O CONTROLE ABSTRATO DE
CONSTITUCIONALIDADE BRASILEIRO ..................... ...........................................15
1.1 FUNDAMENTOS DO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE ....................15
1.2 MODELOS DE CONTROLE JUDICIAL DAS LEIS..............................................18
1.2.1 O modelo americano de fiscalização........... .................................................18
1.2.2 O modelo austríaco de fiscalização........... ...................................................20
1.3 EVOLUÇÃO DO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE BRASILEIRO .....22
1.3.1 Controle difuso.............................. .................................................................22
1.3.2 Representação interventiva................... ........................................................24
1.3.3 Implantação do controle abstrato............. ....................................................25
1.3.3.1 Representação de inconstitucionalidade pelo Procurador-Geral da República.
..................................................................................................................................25
1.3.3.2 A ampliação e o fortalecimento do controle abstrato.....................................26
1.4 MODALIDADES DE AÇÕES DE CONTROLE ABSTRATO NO BRASIL............28
1.4.1 Ação direta de inconstitucionalidade - ADI... ...............................................28
1.4.1.1 Por ação ........................................................................................................28
1.4.1.2 Por omissão ..................................................................................................30
1.4.2 Ação declaratória de constitucionalidade – AD C ou ADECON ..................31
1.4.3 Ação por descumprimento de preceito fundament al - ADPF.....................34
1.5 CARACTERÍSTICAS DO CONTROLE ABSTRATO BRASILEIRO.....................37
1.5.1 Natureza objetiva do controle ................ .......................................................37
1.5.2 Legitimação ativa ............................ ...............................................................38
1.5.3 Objeto das ações............................. ...............................................................41
1.5.4 Efeitos da decisão: erga omnes e vinculante .. ............................................43
2 DEMARCAÇÃO DO CONTEÚDO E DO ALCANCE DAS CHAMADAS LEIS
MERAMENTE FORMAIS OU LEIS DE “EFEITOS CONCRETOS”... ......................47
2.1 “IDÉIA DE LEI” E FUNÇÃO LEGISLATIVA ..........................................................47
2.2 ELEMENTOS DA NORMATIVIDADE DO ATO LEGISLATIVO: GENERALIDADE,
ABSTRAÇÃO E INOVAÇÃO/PERMANÊNCIA ..........................................................51
2.3 ATO NORMATIVO PARA FINS DE CONTROLE JUDICIAL ................................54
2.3.1 Lei em sentido formal e em sentido material.. .............................................56
2.3.2 Ato normativo primário e ato normativo secund ário ..................................57
2.4 ATOS NORMATIVOS SUJEITOS À FISCALIZAÇÃO ABSTRATA PELA
JURISPRUDÊNCIA CONSOLIDADA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL ...........59
2.4.1 Atos legislativos primários dotados de normat ividade ..............................60
2.4.2 Atos normativos secundários “autônomos” ...... .........................................69
3 MUDANÇA JURISPRUDENCIAL DO SUPREMO TRIBUNAL FEDER AL ...........72
3.1 ATOS LEGISLATIVOS PRIMÁRIOS DESPOJADOS DE NORMATIVIDADE: LEIS
MERAMENTE FORMAIS OU DE EFEITOS CONCRETOS.......................................72
3.2 CRÍTICA DOUTRINÁRIA.....................................................................................76
3.2.1 Controle das leis de efeito concreto e das no rmas de estrutura ...............77
3.2.2 “Abstrato é o controle e não o objeto”....... ..................................................78
3.2.3 Argumento pragmático ......................... .........................................................79
3.3 EVOLUÇÃO JURISPRUDENCIAL DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL:
AMPLIAÇÃO DO CONTROLE DE LEIS DE EFEITOS CONCRETOS.......................80
3.3.1 O controle de leis com destinatários determin áveis...................................81
3.3.2 O controle de leis de efeitos concretos com “ contornos abstratos e
autônomos” – ADI nº 2.925/DF....................... ........................................................84
3.4 ANÁLISE DA ADI-MC Nº 4.048/DF DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL..........89
CONCLUSÃO .......................................... .................................................................94
13
INTRODUÇÃO
A questão principal do presente estudo gira em torno da admissibilidade,
pelo Supremo Tribunal Federal, de apreciação de “leis de efeitos concretos” ou “leis
meramente formais” via controle abstrato de constitucionalidade. Tal assunto
apresenta relevância, pois existe grande quantidade de leis primárias que ficam fora
do âmbito de atuação da fiscalização abstrata de constitucionalidade, uma vez que o
STF vinha entendendo que essas normas não eram dotadas dos elementos de
generalidade, abstração, inovação e permanência, que caracterizavam um ato
normativo. Desta maneira, a partir de uma mudança jurisprudencial, está-se diante
da possibilidade de ampliar o número de leis de “efeitos concretos” que podem ser
expurgadas do ordenamento jurídico através de ação direta de inconstitucionalidade.
Importante destacar que nesta pesquisa será utilizado, preponderantemente,
o método indutivo. Sua finalidade precípua consiste em fazer generalizações sobre a
delimitação jurisprudencial conferida à expressão “lei de efeitos concretos”, como
fator impeditivo de apreciação das normas no controle abstrato de
constitucionalidade. A ênfase, portanto, será na identificação de diretrizes
jurisprudenciais definidas pela Corte e uma análise sobre o grau de coerência das
decisões ulteriores ao aplicarem os critérios anteriormente definidos na identificação
das leis de efeitos concretos.
Assim, o objetivo deste estudo é analisar a evolução jurisprudencial do
Supremo Tribunal Federal no tocante à admissibilidade de exame das chamadas
“leis de efeitos concretos” ou “leis meramente formais” em sede de fiscalização
abstrata de constitucionalidade.
O primeiro capítulo dedica-se exclusivamente a tratar de questões que de
modo geral deram origem ao controle abstrato. Para isto, foram expostos os
fundamentos e características do modelo americano de constitucionalidade, bem
como do modelo austríaco e, foram tratados, também, o princípio da supremacia e a
rigidez constitucional, os quais justificam a existência do controle de
constitucionalidade como instrumento de salvaguarda da constituição.
A transformação da fiscalização de constitucionalidade no Brasil fez parte
deste capítulo, desde a Constituição de 1891 até as recentes alterações
14
constitucionais decorrentes da EC n. 45/04, bem como cada uma das ações que
compõem o processo objetivo constitucional.
Já o segundo capítulo teve o intuito de analisar os elementos formadores de
um ato normativo, quais sejam: a generalidade, abstração, inovação e permanência.
A fim de cumprir com o objetivo proposto, este tópico apresentou como surgiu a idéia
de lei e de Estado, destacando o primado da função legislativa, pois é a partir dela
que nascem as leis em sua acepção moderna.
Por fim, o terceiro capítulo cuida de expor os termos e condições que
fizeram com que o Supremo Tribunal Federal mudasse seu entendimento a respeito
da possibilidade de submeter as chamadas leis primárias de “efeitos concretos” ao
controle abstrato de constitucionalidade por via de ação direta.
A fim de cumprir tal objetivo serão abordadas as duas críticas doutrinárias
mais fortes sobre a não admissibilidade do STF em relação às lei mencionadas. Em
seguida, a evolução jurisprudencial da Suprema Corte será apresentada em três
fases, sendo a última a análise da ADI-MC n. 4.048/DF do STF, objeto principal de
pesquisa do presente trabalho, através da qual o STF mudou significativamente seu
posicionamento, passando a admitir o controle de “leis de efeitos concretos” através
de fiscalização abstrata de constitucionalidade.
15
1 NOÇÕES GERAIS SOBRE O CONTROLE ABSTRATO DE
CONSTITUCIONALIDADE BRASILEIRO
Este primeiro capítulo visa proporcionar ao leitor um panorama geral sobre a
sistemática do controle de constitucionalidade brasileiro.
Aqui serão expostos os fundamentos e a origem da fiscalização de
constitucionalidade. Como fundamentos, a supremacia e a rigidez constitucional
farão parte do presente estudo, bem como, no que diz respeito à origem, serão
demonstradas suas particularidades, características gerais e o modo de formação
dos dois principais modelos de fiscalização que fizeram o controle de
constitucionalidade brasileiro ser chamado de híbrido: o modelo americano e
austríaco.
Feito isto, caberá demonstrar a evolução brasileira no que diz respeito ao
controle de constitucionalidade, sendo apresentados, em tópicos, os marcos desde a
Constituição de 1891 até a atual sistemática constitucional.
Serão pontualmente abordadas as principais características das ações que
compõem o processo objetivo de controle de constitucionalidade, quais sejam:
hipóteses de cabimento, aspectos procedimentais, legitimação ativa e os efeitos das
decisões.
Ao final, as características inerentes ao controle abstrato/concentrado de
constitucionalidade brasileiro a fim de evidenciar os traços inerentes ao conceito de
processo objetivo.
1.1 FUNDAMENTOS DO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE
Antes de adentrar especificamente na origem do controle de
constitucionalidade, torna-se relevante destacar a existência de dois de seus
fundamentos: a supremacia e a rigidez constitucional.
Luís Roberto Barroso ensina que a supremacia diz respeito à posição
hierárquica mais elevada da Constituição, uma vez que é ela quem fundamenta a
16
validade de todas outras normas. Dessa forma, nenhuma lei ou ato normativo
poderá permanecer no ordenamento jurídico se estiver em confronto com a
Constituição. 1
Extrai-se de sua doutrina a seguinte lição:
O princípio da supremacia da Constituição é fundamento da própria existência do controle de constitucionalidade, uma de suas premissas lógicas. Não pode, portanto, ser afastado ou ponderado sem comprometer a ordem e unidade do sistema. 2
José Afonso da Silva, sobre a supremacia da Constituição, leciona:
Significa que a constituição se coloca no vértice do sistema jurídico do país, a que confere validade, e que todos os poderes estatais são legítimos na medida em que ela os reconheça e na proporção por ela distribuídos. É, enfim, a lei suprema do Estado, pois é nela que se encontram a própria estruturação deste e a organização de seus órgãos; é nela que se acham as normas fundamentais de Estado, e só nisso se notará sua superioridade em relação às demais normas jurídicas. 3
Já a rigidez constitucional exige que a norma constitucional, para que seja
um parâmetro de validade de outros atos normativos, tenha um método de
preparação distinto e mais complexo do que aquele capaz de gerar normas
infraconstitucionais. 4
Sobre rigidez constitucional, Luís Roberto Barroso instrui que “se as leis
infraconstitucionais fossem criadas da mesma maneira que as normas
constitucionais, em caso de contrariedade ocorreria a revogação do ato anterior e
não a inconstitucionalidade”5.
Assim, os dois fundamentos citados, a rigidez e a supremacia constitucional,
estão entrelaçados, pois a superioridade da Constituição (supremacia) é garantida
frente às outras normas do ordenamento jurídico por ser o processo legislativo para
resguardar a Lei Maior mais custoso e complexo (rigidez).
1 BARROSO, Luís Roberto. Controle de constitucionalidade no direito brasilei ro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 1. 2 BARROSO, Luís Roberto. Controle de constitucionalidade no direito brasilei ro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 187. 3 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 29. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 45. 4 BARROSO, Luís Roberto. Controle de constitucionalidade no direito brasilei ro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 2. 5 BARROSO, Luís Roberto. Controle de constitucionalidade no direito brasilei ro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 2.
17
Igualmente importantes são os conceitos correlatos da jurisdição
constitucional e tribunal constitucional, que representam instituições com as quais se
preserva a rigidez constitucional.
Sobre jurisdição constitucional, Luís Roberto Barroso assevera:
Jurisdição Constitucional designa a aplicação da Constituição por juízes e tribunais. Essa aplicação poderá ser direta, quando a norma constitucional discipline, ela própria, determinada situação da vida. Ou indireta, quando a Constituição sirva de referência para atribuição de sentido a uma norma infraconstitucional ou de parâmetro para sua validade. Neste último caso estar-se-á diante do controle de constitucionalidade, que é, portanto, uma das formas de exercício da jurisdição constitucional. 6
Portanto, a jurisdição constitucional pode ser considerada como um
processo por meio do qual será resolvida uma demanda constitucional.
Entende-se por tribunal constitucional aquele órgão que irá analisar e decidir,
em última instância, a respeito das questões que forem vistas em confronto com a
Constituição, zelando pela sua correta interpretação e aplicação.
Assim, a diferença entre ambos conceitos encontra-se no fato de a jurisdição
ser a atividade, o procedimento, o exercício desempenhado pelos diferentes órgãos
jurisdicionais que compõem o Poder Judiciário quando decidem lides de matriz
constitucional, enquanto que o tribunal constitucional constitui-se como órgão de
cúpula que define, em última instância, a interpretação válida sobre a Constituição.
No tocante ao controle de constitucionalidade das leis, de acordo com o
modelo de Hans Kelsen, o tribunal constitucional atuaria como um “legislador
negativo”, ou seja, tem a função de estancar, total ou parcialmente, a eficácia de
uma norma existente. Sua atuação, contudo, não poderia resultar na criação de uma
lei, nem na veiculação de elementos normativos inovadores no ordenamento jurídico
(atuação como “legislador positivo”), em razão da limitação intrínseca ao papel que
lhe é constitucionalmente reservado7.
Trecho da medida cautelar da ADI-MC n. 1.063/DF, de relatoria do Ministro
Celso de Mello, menciona que
[...] a ação direta de inconstitucionalidade não pode ser utilizada com
6 BARROSO, Luís Roberto. Controle de constitucionalidade no direito brasilei ro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 3. 7 BARROSO, Luís Roberto. Controle de constitucionalidade no direito brasilei ro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 135.
18
o objetivo de transformar o Supremo Tribunal Federal, indevidamente, em legislador positivo, eis que o poder de inovar o sistema normativo, em caráter inaugural, constitui função típica da instituição parlamentar 8.
Desta forma, apresentados os fundamentos e os conceitos a eles
intrínsecos, passa-se então, no próximo item, ao estudo dos modelos de fiscalização
que deram origem ao controle de constitucionalidade.
1.2 MODELOS DE CONTROLE JUDICIAL DAS LEIS
Após a apresentação de alguns fundamentos do controle de
constitucionalidade, convém destacar dois modelos de controle judicial que são
considerados pelos autores como as matrizes de onde decorreram as diferentes
experiências contemporâneas de controle de constitucionalidade: os modelos
americano e austríaco, a serem elucidados nos itens que seguem.
1.2.1 O modelo americano de fiscalização
A decisão proferida por John Marshall, em 1803, no caso Marbury v.
Madison, foi a decisão que implantou o controle de constitucionalidade das leis nos
Estados Unidos. Nela, Marshall argumentou sobre a supremacia constitucional, a
necessidade do judicial review (revisão judicial) e a competência do Judiciário. 9
Assim, ficou definido que o sistema de controle americano confere a
faculdade de controle ao juiz ordinário, sendo-lhe facultado a negativa de vigência às
normas incompatíveis com a Constituição. Sob o aspecto subjetivo, que diz respeito
aos órgãos aos quais pertence a atribuição de controle, tal mecanismo é
8 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI n. 1.063/DF. Relator Min. Celso de Mello. Julgamento em 18/05/1994. 9 MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de Constitucionalidade. in MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 955.
19
denominado “difuso”. 10
Sobre o modelo difuso, explica Mauro Cappelletti que “os órgãos judiciários
têm o poder e o dever de não aplicar as leis inconstitucionais aos casos concretos
submetidos a seu julgamento” 11.
O autor ainda identifica algumas conseqüências da aplicação do modelo
americano. Ensina ele que uma mesma lei, julgada constitucional, poderia ser
aplicada por determinado juiz, mas ao mesmo tempo outro magistrado poderia
deixar de aplicá-la por considerar que não está de acordo com a Constituição. Isto
causaria uma incerteza jurídica aos indivíduos da sociedade, bem como ao Estado,
uma vez que determinado órgão judiciário que vinha aplicando determinada lei, pode
em determinado momento vir a mudar sua opinião sobre sua constitucionalidade.
Sob o aspecto modal, ou seja, a maneira de argüição da
inconstitucionalidade perante os juízes competentes para decidi-las e como estes a
decidem, o controle difuso só permite essa declaração no curso de um processo, em
um caso concreto, e desde que a discussão acerca da inconstitucionalidade seja
relevante para a decisão em apreço. 12 Por esta razão, esse método de controle
produz efeitos somente entre as partes, sendo sua eficácia tida como inter partes.
Nessa modalidade de controle prevalece também o princípio do stare
decisis, natural ao common law, que significa dizer que os precedentes
pronunciados por órgãos de hierarquia superior devem ser seguidos pelos órgãos
judiciários que se encontram vinculados à sua jurisdição. 13
Luís Roberto Barroso explica o princípio:
Esta expressão designa o fato de que, a despeito de exceções e atenuações, os julgados de um tribunal superior vinculam todos os órgãos judiciais inferiores no âmbito da mesma jurisdição. Disso resulta que a decisão proferida pela Suprema Corte é obrigatória para todos os juízes e tribunais. E, portanto, a declaração de inconstitucionalidade em um caso concreto traz como conseqüência a não aplicação daquela lei a qualquer outra situação, porque todos os tribunais estarão subordinados à tese jurídica estabelecida. De modo que a decisão, não obstante referir-se a um litígio específico,
10 CAPPELLETTI, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado. 2. ed. Porto Alegre: Fabris, 1999. p. 67. 11 CAPPELLETTI, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado. 2. ed. Porto Alegre: Fabris, 1999. p. 77. 12 CAPPELLETTI, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado. 2. ed. Porto Alegre: Fabris, 1999. p. 103. 13 CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata da constitucionalidade no D ireito Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 63.
20
produz efeitos gerais, em face de todos (erga omnes). 14 Em relação ao elemento funcional que caracteriza os efeitos que a decisão
de inconstitucionalidade motiva em relação à lei submetida ao controle e ao caso
concreto, essa espécie de controle possui a concepção de que a lei que for contrária
à Constituição é inteiramente nula e ineficaz. 15
Por fim, constata-se que nesse sistema de controle de constitucionalidade a
decisão de inconstitucionalidade possui um caráter meramente declarativo,
conferindo à decisão o efeito ex tunc (retroativo), isto é, o juiz declara uma nulidade
pré-existente que macula de forma absoluta a norma, mas, a lei continua a produzir
efeitos e qualquer juízo, enquanto não sobrevir decisões dos tribunais superiores,
entendendo-a constitucional, pode aplicá-la nos casos concretos submetidos a sua
jurisdição. 16
1.2.2 O modelo austríaco de fiscalização
O modelo austríaco foi idealizado por Hans Kelsen e incorporado à
Constituição de 1920 daquele país, sendo aperfeiçoado no ano de 1929. Destaca-se
que este modelo diverge do americano, uma vez que o controle é “exercido por um
único órgão ou por um número limitado de órgãos criados para esse fim ou tendo
nesta atividade sua função principal”17, sendo por este motivo denominado
“concentrado”.
14 BARROSO, Luís Roberto. Controle de constitucionalidade no direito brasilei ro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 48. 15 No Brasil, conforme leciona Luís Roberto Barroso, “esse é o entendimento que prevalece ainda hoje, mas que já não é absoluto. Ao longo do tempo, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal fez alguns temperamentos à aplicação rígida da tese, e, já agora, a Lei nº 9.868, de 10 de novembro de 1999, ampliou a competência discricionária da Corte relativamente à pronúncia de nulidade e o conseqüente caráter retroativo da decisão. [...] Foi inevitável, assim, que em algumas hipóteses excepcionais se admitisse o temperamento da regra geral, suprimindo ou atenuando o caráter retroativo do pronunciamento de inconstitucionalidade, em nome de valores como boa-fé, justiça e segurança jurídica.” BARROSO, Luís Roberto. Controle de constitucionalidade no direito brasilei ro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 18 e 21. 16 BARROSO, Luís Roberto. Controle de constitucionalidade no direito brasilei ro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 106. 17 BARROSO, Luís Roberto. Controle de constitucionalidade no direito brasilei ro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 47.
21
Kelsen não concordava com a idéia de que uma lei contrária à Constituição
devesse ser nula ou ser considerada inexistente. Da obra de Clèmerson Merlin
Clève extrai-se um trecho do que Kelsen defendia:
[...] se a afirmação, corrente na jurisprudência tradicional, de que uma lei é inconstitucional há de ter um sentido jurídico possível, não pode ser tomada ao pé da letra. O seu significado apenas pode ser o de que a lei em questão, de acordo com a Constituição, pode ser revogada não só pelo processo usual, quer dizer, por uma outra lei, segundo o princípio lex posterior derogat priori, mas também através de um processo especial, previsto na Constituição. 18
Luís Roberto Barroso também se manifesta sobre o pensamento Kelsen:
Idealizador do controle concentrado em um tribunal constitucional considerava que a lei inconstitucional era válida até que uma decisão da corte viesse a pronunciar sua inconstitucionalidade. Antes disso, juízes e tribunais não poderiam deixar de aplicá-la. Após a decisão da corte constitucional, a lei seria retirada do mundo jurídico. 19
Quanto ao modo como as questões de constitucionalidade são combatidas
ante aqueles juízes que têm competência para decidir, esse modelo possui o caráter
de um controle que se exerce por “via de ação” ou “via principal”.
Além de o sistema austríaco concentrar a competência em um único órgão,
confiou a este uma ação especial mediante a qual a análise de uma lei
supostamente inconstitucional seria submetida à apreciação da Corte
completamente desvinculada dos casos concretos, bem como definiu que os
legitimados para a propositura da referida ação seriam somente aqueles órgão
políticos determinados na Constituição. 20
A partir da reforma constitucional de 1929, o direito austríaco acrescentou a
legitimação de dois órgãos judiciários que não podiam alegar a inconstitucionalidade
de uma lei em “via de ação” perante a Corte. A eles cabia suscitar um incidente de
inconstitucionalidade no curso do processamento de uma ação judicial, chamado de
“via de exceção”. 21
18 HANS, Kelsen. Teoria pura do direito. 4. ed. Coimbra: Armênio Amado, 1979. p. 367 apud CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata da constitucionalidade no Direito Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 67. 19 BARROSO, Luís Roberto. Controle de constitucionalidade no direito brasilei ro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 19. 20 BARROSO, Luís Roberto. Controle de constitucionalidade no direito brasilei ro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 50. 21 CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata da constitucionalidade no D ireito
22
Sob o aspecto funcional, o sistema austríaco declara a anulabilidade da
norma inconstitucional, conferindo ao controle um caráter constitutivo da invalidade e
ineficácia da norma que diverge da Constituição e projetando efeitos ex nunc ou pro
futuro. Isso significa que a decisão goza de efeitos prospectivos. 22
Assim, a decisão proferida através do sistema austríaco de controle de
constitucionalidade, em regra, não está associada à resolução de um caso concreto,
produzindo, desta forma, efeitos erga omnes, tornando a norma ineficaz para todos.
1.3 EVOLUÇÃO DO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE BRASILEIRO
Foi a partir da Constituição de 1988 que o sistema de controle de
constitucionalidade no Brasil passou por uma substancial reforma. Porém,
apresentar-se-á os pontos mais relevantes da evolução desse controle desde a
Constituição de 1891 até a atual.
No Brasil, hoje, e desde a promulgação da Emenda Constitucional nº 16/65,
de 1988, o controle é considerado híbrido, tendo suas origens tanto no sistema
norte-americano, que admite o chamado controle difuso, incidental ou concreto,
sendo possível que qualquer juiz ou tribunal reconheça a inconstitucionalidade de
uma norma no curso de uma demanda que envolva um caso concreto, como no
sistema austríaco, que comporta o controle concentrado, abstrato de normas.
1.3.1 Controle difuso
A Constituição Brasileira de 1891 sofreu grande influência do direito norte-
americano e acabou adotando o modelo difuso, sendo a fiscalização exercida de
Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 68-69. 22 Exceto quando a questão houvesse sido suscitada por uma Corte superior em um processo concreto (via de exceção). Hipótese na qual a Constituição reformada conferia, excepcionalmente, eficácia retroativa à pronúncia de inconstitucionalidade daquela Corte. BARROSO, Luís Roberto. Controle de constitucionalidade no direito brasilei ro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 16-19.
23
forma incidental pelo Judiciário. Do disposto no art. 59 desta Constituição23 era
possível extrair a competência das justiças da União e dos Estados para
pronunciarem-se acerca da invalidade das leis em face da Constituição. 24
O Brasil passou a seguir os passos dos Estados Unidos e adotou a
República, o presidencialismo, a federação, a judicial review e a estruturação judicial
com a Suprema Corte e a justiça federal. 25
Observa-se que mesmo com a reforma de 1926, grandes inovações não
foram notadas nesta Constituição, que foi a segunda no direito brasileiro. 26
A Constituição de 1934 manteve o controle difuso, mas também inseriu
significativas mudanças no sistema de controle de constitucionalidade. 27
A primeira mudança refere-se à necessidade de que a inconstitucionalidade
seja declarada com voto favorável da maioria absoluta dos membros dos tribunais.
Esta medida visava combater a insegurança jurídica, uma vez que esta exigência
poderia reduzir a existência de decisões conflitantes no interior do próprio tribunal. 28
A segunda se deu em razão das novas atribuições ao Senado Federal que
agora teria competência para “suspender a execução, no todo em parte, de qualquer
lei ou ato, deliberação ou regulamento declarados inconstitucionais pelo Poder
Judiciário” 29. Neste momento, torna-se importante destacar que o Senado Federal,
na sistemática da Constituição de 1934, exercia a função de “coordenação dos
poderes”, função esta desfigurada pelo golpe de Estado de Getúlio Vargas em
23 BRASIL. Constituição (1891). Art 59 - Ao Supremo Tribunal Federal compete: [...] § 1º - Das sentenças das Justiças dos Estados, em última instância, haverá recurso para o Supremo Tribunal Federal: a) quando se questionar sobre a validade, ou a aplicação de tratados e leis federais, e a decisão do Tribunal do Estado for contra ela; b) quando se contestar a validade de leis ou de atos dos Governos dos Estados em face da Constituição, ou das leis federais, e a decisão do Tribunal do Estado considerar válidos esses atos, ou essas leis impugnadas. [...] 24 BARROSO, Luís Roberto. Controle de constitucionalidade no direito brasilei ro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 62. 25 CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata da constitucionalidade no D ireito Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 82. 26 CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata da constitucionalidade no D ireito Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 84. 27 CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata da constitucionalidade no D ireito Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 84-85. 28 MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de Constitucionalidade. in MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 985. 29 BRASIL. Constituição (1934). Art 91 - Compete ao Senado Federal: [...] IV - suspender a execução, no todo ou em parte, de qualquer lei ou ato, deliberação ou regulamento, quando hajam sido declarados inconstitucionais pelo Poder Judiciário.
24
193730.
A terceira e mais significativa mudança ocorrida na Constituição de 1934 foi
a criação da chamada “representação interventiva”, a ser especificamente tratada no
próximo item.
1.3.2 Representação interventiva
Trata-se de uma modalidade nova de provocação da fiscalização de
constitucionalidade dos atos normativos instituído pela Constituição de 1934 e
mantidas nas constituições brasileiras subseqüentes.
A representação interventiva consistia em um caso próprio de controle por
via principal e concentrado, confiada ao Procurador-Geral da República. 31 Em razão
disso, também estabeleceu expressamente quais princípios deveriam ser
observados pelos Estados no exercício da competência legislativa (princípios
constitucionais sensíveis, presentes no art. 7º da CF).
Mantida no texto da Carta constitucional de 1946, a matéria foi disciplinada
pelas Leis n. 2.271, de 22 de julho de 1954 e n. 4.337, de 1º de junho de 1964. 32
O Procurador-Geral da República possuía a competência da representação
interventiva
[...] nos casos de violação dos princípios da forma republicana representativa, da independência e harmonia entre os Poderes, da temporariedade das funções eletivas, limitada a duração destas à
30 MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de Constitucionalidade. in MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 988. 31 Faz-se necessário ressaltar que a grande maioria dos doutrinadores não reconhece a representação interventiva como autêntico controle concentrado em razão da natureza política do processo de intervenção e da eficácia reduzida da decisão do STF. Necessário, portanto, fazer referência ao seguinte trecho onde Clèmerson Merlin Clève cita os dizeres de Gilmar Ferreira Mendes: Tratava-se, “[...] de fórmula peculiar de composição judicial dos conflitos federativos, que condicionava a eficácia da lei interventiva, de iniciativa do Senado (art. 41, §3º) à declaração de sua constitucionalidade pelo Supremo Tribunal (art. 12, § 2º)”. MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de constitucionalidade: aspectos jurídicos e políticos. Rio de Janeiro: Saraiva, 1990. p. 176 apud CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata da constitucionalidade no Direito Brasilei ro. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 85. 32 CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata da constitucionalidade no D ireito Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 87-88.
25
funções federais correspondentes, da proibição da reeleição de governadores e prefeitos para o período imediato, da autonomia municipal, da prestação de contas da Administração e das garantias do Poder Judiciário (art. 8º, parágrafo único, c/c o art. 7º, VII).33
É possível reconhecer neste instrumento, os prenúncios da instituição do
controle concentrado de constitucionalidade no Brasil, já que ao STF se reconhece a
função de controle por via de ação, bem como ao Procurador-Geral da República é
reconhecida a titularidade para a propositura desta ação judicial interventiva.
1.3.3 Implantação do controle abstrato
1.3.3.1 Representação de inconstitucionalidade pelo Procurador-Geral da República.
A Emenda Constitucional n. 16, de 1965, representa um marco na história
constitucional brasileira por ter sido ela quem trouxe ao país o modelo de
fiscalização abstrata de atos normativos federais e estaduais, alterando o art. 101, I,
alínea k, da Constituição de 1946, acrescentando novas competências ao Supremo
Tribunal Federal. 34
A espécie de representação instituída pela EC n. 16/65 apresenta
importantes distinções em relação à representação interventiva que vigorava
anteriormente, como se pode aferir da lição de Clèmerson Merlin Clève, para quem:
Consiste esta em mecanismo de solução de conflito entre União e uma coletividade política estadual. Por isso, apenas a violação dos princípios constitucionais sensíveis pode autorizar a sua propositura pelo Procurador-Geral da República. Cuida-se, ao contrário, o mecanismo instituído pela Emenda 16/65, de representação genérica, apta a garantir a observância de todos os dispositivos da Constituição. A representação interventiva implica uma fiscalização concreta da constitucionalidade, embora realizada em sede de ação direta; presta-se exatamente para a solução de um conflito federativo. Com a representação genérica, ao contrário, manifesta-se
33 MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de Constitucionalidade. in MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 989. 34 BARROSO, Luís Roberto. Controle de constitucionalidade no direito brasilei ro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 63.
26
modo de fiscalização abstrata da constitucionalidade, já porque em semelhante situação estará em jogo a compatibilidade, em abstrato (em tese), de um dispositivo normativo infraconstitucional contrastado com a Lei Fundamental da República. 35
Importante ressalvar que através da EC n. 16/65 foi previsto o controle de
constitucionalidade pelos Estados, sendo de competência dos Tribunais de Justiça
processar, julgar e declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato do Município em
confronto com a Constituição Estadual. A Constituição de 1967 não reiterou a
previsão de ação direta de inconstitucionalidade em âmbito estadual. 36
1.3.3.2 A ampliação e o fortalecimento do controle abstrato
A Constituição de 1988 aperfeiçoou o ordenamento jurídico em relação ao
controle de constitucionalidade aplicado no Brasil, ampliando as formas de proteção
judicial. 37
A primeira grande mudança diz respeito aos legitimados para a propositura
da ação, agora denominada ação direta de inconstitucionalidade. 38 Antes a
legitimidade para ingressar com a ADI estava exclusivamente nas mãos do
Procurador-Geral da República, a partir da Constituição de 1988, conforme
estabelece o art. 103 e incisos, os legitimados passaram a ser os seguintes:
Art. 103. Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade: I - o Presidente da República; II - a Mesa do Senado Federal; III - a Mesa da Câmara dos Deputados; IV - a Mesa de Assembléia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal; V - o Governador de Estado ou do Distrito Federal; VI - o Procurador-Geral da República;
35 CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata da constitucionalidade no D ireito Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 88-89. 36 BARROSO, Luís Roberto. Controle de constitucionalidade no direito brasilei ro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 64. 37 MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de Constitucionalidade. in MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 1000. 38 BARROSO, Luís Roberto. Controle de constitucionalidade no direito brasilei ro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 66.
27
VII - o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; VIII - partido político com representação no Congresso Nacional; IX - confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.
Através do § 2º do dispositivo supra, o controle abstrato passou a admitir
também a ação direta de inconstitucionalidade por omissão, cujos legitimados são os
mesmos do controle abstrato. 39
Outras alterações e inovações surgiram com a edição da Emenda
Constitucional n. 3, de 17 de março de 1993, que disciplinou nova ação para
fiscalização constitucional, a ação declaratória de constitucionalidade, ADC. 40
Esta ação tem por finalidade confirmar a constitucionalidade de uma lei
federal, tendo por objetivo garantir que a constitucionalidade da lei não seja
questionada por outras ações. Sua decisão em definitivo do mérito teria a eficácia
contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Executivo e Judiciário. 41
Inicialmente os legitimados para a ação declaratória de constitucionalidade
eram somente o Presidente da República, a Mesa da Câmara, a Mesa do Senado
Federal e o Procurador-Geral da República. Todavia, a partir da Emenda
Constitucional n. 45, de 2004, a restrição quanto aos legitimados caiu, determinando
que fossem os mesmos da ação direta de inconstitucionalidade. 42
Em 1999 houve outra significativa novidade. Onze anos depois de sua
previsão na Constituição de 1988, através do art. 102, § 1º, a argüição de
descumprimento de preceito constitucional foi regulamentada pela Lei n. 9.882, de 3
de dezembro de 1999. 43
Diante do exposto o que se percebe é que a Constituição Federal de 1988
veio aperfeiçoar a fiscalização de constitucionalidade, trazendo diversas
39 MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de Constitucionalidade. in MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 1002. 40 BARROSO, Luís Roberto. Controle de constitucionalidade no direito brasilei ro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 66. 41 CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata da constitucionalidade no D ireito Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 91. 42 MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de Constitucionalidade. in MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 1004-1005. 43 MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de Constitucionalidade. in MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 1008.
28
modificações, novidades e ações específicas, as quais serão melhor estudadas no
tópico seguinte.
1.4 MODALIDADES DE AÇÕES DE CONTROLE ABSTRATO NO BRASIL
1.4.1 Ação direta de inconstitucionalidade - ADI
1.4.1.1 Por ação
A nomenclatura “ação direta de inconstitucionalidade” foi introduzida no
ordenamento jurídico brasileiro através Constituição Federal de 1988. Tanto a
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal quanto a doutrina constitucional pátria,
inspiradas na doutrina alemã, a concebem como um processo objetivo, no qual
inexiste lide propriamente dita, prestando-se somente à defesa da Constituição. 44
Registram Gilmar Ferreira Mendes e Ives Gandra da Silva que
[...] no intuito de estender o controle de constitucionalidade, em tese, às leis federais, com vistas a formar, desde logo, precedentes que orientassem o julgamento dos processos congêneres, o constituinte acabou por consolidar, entre nós, um novo e peculiar modelo, aperfeiçoando, de forma marcadamente original, o sistema de controle de constitucionalidade no Direito brasileiro. 45
A competência para processar e julgar, originariamente, a ação direta de
inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual, é do Supremo
Tribunal Federal e deve seguir os ditames da Lei n. 9.868, de 10 de novembro de
1999, que surgiu no ordenamento jurídico para regulamentar o processo e
julgamento dessas ações, e também das ações declaratórias de constitucionalidade. 46
44 CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata da constitucionalidade no D ireito Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 140. 45 MENDES, Gilmar Ferreira; MARTINS, Ives Gandra da Silva. Controle Concentrado de Constitucionalidade. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 74. 46 MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de Constitucionalidade. in MENDES, Gilmar
29
Sobre esta espécie de ação, são os ensinamentos de Alexandre de Moraes:
O autor da ação pede ao STF que examine a lei ou ato normativo federal ou estadual, ou seja, não existe caso concreto a ser solucionado. Visa-se, pois, obter invalidação da lei, a fim de garantir-se a segurança das relações jurídicas, que não podem ser baseadas em normas inconstitucionais. 47
Em relação às leis ou atos normativos estaduais e municipais contrários à
Constituição Estadual, compete ao Tribunal de Justiça local processar e julgar,
originariamente a ação direta de inconstitucionalidade, competência esta garantida
pelo art. 125, § 2º, da própria Constituição Federal48, mas que deve estar prevista
nas Constituições Estaduais de cada unidade da Federação. 49
Relevante observar que, se “a lei ou ato normativo municipal, além de
contrariar dispositivos da Constituição Federal, contrariar, da mesma forma,
previsões expressas do texto da Constituição Estadual, mesmo que de repetição
obrigatória e de redação idêntica” 50, teremos a aplicação do dispositivo da
Constituição Federal supramencionado.
A argüição da inconstitucionalidade pode se dar tanto de maneira formal
como material. A alegação formal ocorre em três hipóteses. Há a chamada
inconstitucionalidade orgânica, que é aquela em que não é observada a regra de
competência para a edição da norma. Existe ofensa formal também quando o
processo legislativo próprio daquela norma a ser editada não foi observado e, ainda,
quando a autoridade ou órgão que dá início ao processo legislativo não possui
legitimidade, sendo chamada, então, de inconstitucionalidade formal por vício de
iniciativa. Já a inconstitucionalidade material é detectada quando existe uma
Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 1048. 47 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 19. ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 76. 48 BRASIL. Constituição (1988). Art. 125 - Os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos nesta Constituição. [...] § 2º - Cabe aos Estados a instituição de representação de inconstitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais em face da Constituição Estadual, vedada a atribuição da legitimação para agir a um único órgão. 49 BARROSO, Luís Roberto. Controle de constitucionalidade no direito brasilei ro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 136. 50 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Rcl. n. 386/SC. Relator Min. Octavio Gallotti. Julgamento em 13/10/1993.
30
incompatibilidade, um confronto, de conteúdo entre a lei e preceitos e princípios da
Constituição Federal. 51
1.4.1.2 Por omissão
Em 1988 o controle de constitucionalidade brasileiro ganhou novo significado
com a instituição da ação direta de inconstitucionalidade por omissão e o mandado
de injunção. A ADI por omissão visa obter a declaração de mora do legislador e o
mandado de injunção tem por objetivo suprir essa mora. A ADI por omissão se
diferencia, ainda, do mandado de injunção, pois só pode ser interposta pelas
autoridades do art. 103, I ao X, da Constituição Federal, ou seja, os mesmos
legitimados da ADI genérica ou por ação, enquanto para impetrar o mandado de
injunção é necessário que se demonstre além da legitimidade, o interesse
processual. 52
O pronunciamento em sede de ADI por omissão é meramente declaratório,
podendo ser total ou parcial e seu julgamento pode se dar somente pelo Supremo
Tribunal Federal ou pelos Tribunais de Justiça dos Estados, embora não haja
previsão expressa do mecanismo no plano estadual. 53
Sobre esta ação, Luís Roberto Barroso leciona:
A ação direta de inconstitucionalidade por omissão configura, como se depreende singelamente, modalidade de controle abstrato de constitucionalidade. Trata-se de processo objetivo de guarda do ordenamento constitucional, afetado pela alegada lacuna normativa ou pela existência de um ato normativo reputado insatisfatório ou insuficiente. 54
De forma geral, diz-se que a omissão constitucional pode ocorrer no âmbito
dos três Poderes, tanto para requerer uma providência normativa, político-
51 BARROSO, Luís Roberto. Controle de constitucionalidade no direito brasilei ro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 26-29. 52 BARROSO, Luís Roberto. Controle de constitucionalidade no direito brasilei ro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 112 e 222. 53 BARROSO, Luís Roberto. Controle de constitucionalidade no direito brasilei ro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 226. 54 BARROSO, Luís Roberto. Controle de constitucionalidade no direito brasilei ro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 220-221.
31
administrativa ou judicial. 55
Justifica Luís Roberto Barroso o razão de a ação de inconstitucionalidade
por omissão fazer referência somente às omissões normativas, vejamos:
Relativamente às omissões de natureza político-administrativa, existem remédios jurídicos variados, com destaque para o mandado de segurança e a ação civil pública. As omissões judiciais, por sua vez, deverão encontrar reparação no sistema de recursos instituídos pelo direito processual, sendo sanadas no âmbito interno do Judiciário. Por esta razão, o tratamento constitucional da inconstitucionalidade por omissão refere-se às omissões de cunho normativo. 56
Tal entendimento está previsto no § 2º do art. 103 da Constituição Federal:
[...] § 2º - Declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional, será dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias.
Observa-se ainda, que nessa modalidade de ação direta o Supremo Tribunal
Federal tem entendido não ser admissível o cabimento de cautelar, pois a decisão
que, como já mencionado, possui caráter declaratório, apenas dá ciência ao órgão
inadimplente do dever constitucional de legislar. Luís Roberto Barroso leciona que o
fundamento principal para a não concessão de medida cautelar em sede de ADI por
omissão encontra-se no fato de o Supremo Tribunal Federal não admitir, “sequer em
sua decisão final da matéria, expedir provimento normativo com o objetivo de suprir
a inércia do órgão inadimplente” 57.
1.4.2 Ação declaratória de constitucionalidade – AD C ou ADECON
A ação declaratória de constitucionalidade tem como finalidade “afastar a
55 BARROSO, Luís Roberto. Controle de constitucionalidade no direito brasilei ro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 222-223. 56 BARROSO, Luís Roberto. Controle de constitucionalidade no direito brasilei ro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 223. 57 BARROSO, Luís Roberto. Controle de constitucionalidade no direito brasilei ro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 233.
32
incerteza jurídica e estabelecer uma orientação homogênea na matéria” 58. Ela visa
reconhecer e difundir a compatibilidade da norma infraconstitucional com a
Constituição. Seus legitimados, como já mencionado, são os mesmos da ação direta
de inconstitucionalidade. 59
A norma federal que for objeto de ação declaratória deverá,
obrigatoriamente, apresentar controvérsia relevante sobre sua constitucionalidade,
conforme preceitua o art. 14, da Lei nº 9.868/99 60.
Sobre o tema Luís Roberto Barroso ensina:
A exigência do dissenso se justifica, ainda, em razão da presunção de constitucionalidade que acompanha os atos emanados do Poder Público. Tal presunção tem a função instrumental de garantir a imperatividade e auto-executoriedade desses atos. Logo, somente diante da fundada ameaça á segurança jurídica e à isonomia, decorrente de decisões contraditórias, é que haverá interesse em agir e estará legitimada a intervenção do Supremo Tribunal Federal. 61
Esse dissenso, conforme denomina o autor supracitado, é demonstrado
quando há dúvida quanto à legitimidade da norma. Gilmar Ferreira Mendes bem
demonstra o que isto significa na seguinte passagem:
Assim, se a jurisdição ordinária, através de diferentes órgãos, passar a afirmar a inconstitucionalidade de determinada lei, poderão os órgãos legitimados, se estiverem convencidos de sua constitucionalidade, provocar o STF para que ponha termo à controvérsia instaurada. Da mesma forma, pronunciamentos contraditórios de órgãos jurisdicionais diversos sobre a legitimidade da norma poderão criar o estado de incerteza imprescindível para a instauração da ação declaratória de constitucionalidade. 62
A decisão, assim como na ação direta e na ação de argüição de
descumprimento de preceito fundamental, apresenta efeitos erga omnes e vinculante
58 BARROSO, Luís Roberto. Controle de constitucionalidade no direito brasilei ro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 203. 59 MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de Constitucionalidade. in MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional . São Paulo: Saraiva, 2007. p. 1126-1127. 60 BRASIL. Lei n. 9.868, de 10 de novembro de 1999. Art. 14. A petição inicial indicará: [...] III - a existência de controvérsia judicial relevante sobre a aplicação da disposição objeto da ação declaratória. 61 BARROSO, Luís Roberto. Controle de constitucionalidade no direito brasilei ro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 208. 62 MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de Constitucionalidade. in MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional . São Paulo: Saraiva, 2007. p. 1077.
33
frente aos órgãos do Poder Judiciário e a Administração Pública Federal, Estadual e
Municipal, conforme estabelece o art. 102 da Constituição Federal, em seu § 2º 63, e
o parágrafo único do art. 28 da Lei n. 9.868/99 64.
Com a introdução da ação declaratória de constitucionalidade pela EC n.
3/93, o STF discutiu vastamente a possibilidade de deferimento de medida cautelar
nesta espécie de ação, sendo entendido pela maioria ser possível a concessão. Em
1999, a Lei n. 9.868 cuidou do assunto através do caput do art. 21, através do qual
dispôs que há possibilidade de concessão da medida cautelar em ação declaratória
quando a maioria absoluta dos membros do Supremo Tribunal Federal assim decidir,
consistente na determinação de que os juízes e os Tribunais suspendam o
julgamento dos processos que envolvam a aplicação da lei ou do ato normativo
objeto da ação até seu julgamento definitivo65. 66
Contudo, de acordo com parágrafo único do dispositivo supracitado, o
julgamento de mérito da ação deverá ocorrer em até cento e oitenta dias, sob pena
de a medida perder sua eficácia. 67
63 BRASIL. Constituição (1988). Art. 102. [...] §2º As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal. 64 BRASIL. Lei n. 9.868, de 10 de novembro de 1999. Art. 28. Dentro do prazo de dez dias após o trânsito em julgado da decisão, o Supremo Tribunal Federal fará publicar em seção especial do Diário da Justiça e do Diário Oficial da União a parte dispositiva do acórdão. 65 BRASIL. Lei n. 9.868, de 10 de novembro de 1999. Art. 21. O Supremo Tribunal Federal, por decisão da maioria absoluta de seus membros, poderá deferir pedido de medida cautelar na ação declaratória de constitucionalidade, consistente na determinação de que os juízes e os Tribunais suspendam o julgamento dos processos que envolvam a aplicação da lei ou do ato normativo objeto da ação até seu julgamento definitivo. 66 BARROSO, Luís Roberto. Controle de constitucionalidade no direito brasilei ro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 210. 67 BRASIL. Lei n. 9.868, de 10 de novembro de 1999. Art. 21 [...] Parágrafo único. Concedida a medida cautelar, o Supremo Tribunal Federal fará publicar em seção especial do Diário Oficial da União a parte dispositiva da decisão, no prazo de dez dias, devendo o Tribunal proceder ao julgamento da ação no prazo de cento e oitenta dias, sob pena de perda de sua eficácia.
34
1.4.3 Ação por descumprimento de preceito fundament al - ADPF
Como já citado anteriormente, esta ação começou a fazer parte do
ordenamento jurídico brasileiro na Constituição de 1988 e foi regulamentada pela Lei
n. 9.882, de 3 de dezembro de 1999.
A doutrina a divide em duas subespécies: autônoma e incidental, o que, de
acordo com Lenio Luiz Streck, “abrange a ambivalência própria do sistema misto de
controle de constitucionalidade vigorante no Brasil” 68. A autônoma, que fica mais
próxima do modo de controle concentrado de constitucionalidade, segundo
doutrinadores 69, está prevista no caput do art. 1º da Lei n. 9.882/99, vejamos:
Art. 1o A argüição prevista no § 1o do art. 102 da Constituição Federal será proposta perante o Supremo Tribunal Federal, e terá por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público.
Para que seja utilizada é necessário que haja ameaça (o que deixa claro que
pode ser intentada preventivamente) ou a efetiva violação a preceito fundamental
além da presença do pressuposto geral de inexistência de qualquer outro meio
eficaz de sanar a lesão70, o qual é chamado de princípio da subsidiariedade,
preconizado no §1º do art. 4º da Lei n. 9.882/99, verbis:
Art. 4o A petição inicial será indeferida liminarmente, pelo relator, quando não for o caso de argüição de descumprimento de preceito fundamental, faltar algum dos requisitos prescritos nesta Lei ou for inepta. § 1o Não será admitida argüição de descumprimento de preceito fundamental quando houver qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade.
Isto significa dizer que quando for possível impetrar ação direta de
inconstitucionalidade por ação ou por omissão, ação declaratória, mandado de
68 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2002. p.644. 69 BARROSO, Luís Roberto. Controle de constitucionalidade no direito brasilei ro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 247. 70 BARROSO, Luís Roberto. Controle de constitucionalidade no direito brasilei ro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 248.
35
segurança, ação popular, reclamação ou recursos ordinários e extraordinários, será
negada admissibilidade à ADPF 71. 72
Lenio Luiz Streck, sobre o princípio da subsidiariedade da argüição de
descumprimento de preceito fundamental, discorre:
Assim, em face desse processo hermenêutico, torna-se razoável afirmar, a partir da redação da Lei regulamentadora, que a argüição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) é, efetivamente, um remédio supletivo para os casos em que não caiba ação direta de inconstitucionalidade (ADIn). Desse modo, em sede de jurisdição constitucional, poderão agora ser questionados atos normativos (regulamentos, resoluções, por exemplo) que, anteriormente, não eram suscetíveis – conforme a jurisprudência predominante do STF – de enquadramento na via da ação direta de inconstitucionalidade. 73
A identificação desta ação com a ação direta de inconstitucionalidade
encontra-se apenas na legitimação, pois, como mencionado anteriormente, é cabível
apenas contra normas que violem preceitos fundamentais, o que mostra um controle
mais fechado, específico. Destaca-se, ainda, que seu objeto abrange atos de
natureza normativa, administrativa e judicial do Poder Público. 74
Ponto bastante interessante a respeito desta ação é o problema que gira em
torno da identificação de quais dispositivos podem ser considerados “preceitos
fundamentais”. Neste item, de acordo com Luís Roberto Barroso, podem ser
incluídos os fundamentos e objetivos da República (art. 1º ao 4º da Constituição
Federal); os direitos fundamentais, que incluem os individuais, coletivos, políticos e
sociais (art. 5º e s.); as normas que se abrigam nas cláusulas pétreas ou delas
decorrem (art. 60, § 4º); e os princípios constitucionais chamados “sensíveis” (art.
34, VIII), que são aqueles que em razão de sua importância dão causa à intervenção
federal. 75
Ressalta-se, porém, que o Supremo Tribunal Federal ainda não definiu o
alcance da expressão “preceitos fundamentais”. 71 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF n. 3. Relator Min. Sydney Sanches. Julgamento em 18/05/2000; ADPF n. 13. Relator Min. Ilmar Galvão. Julgamento em 29/03/2001. 72 BARROSO, Luís Roberto. Controle de constitucionalidade no direito brasilei ro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 252-253. 73 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2002. p.642-643. 74 BARROSO, Luís Roberto. Controle de constitucionalidade no direito brasilei ro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 263. 75 BARROSO, Luís Roberto. Controle de constitucionalidade no direito brasilei ro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 250.
36
Gilmar Ferreira Mendes manifesta-se sobre a importância da inclusão dessa
ação no ordenamento jurídico brasileiro nos seguintes termos:
A ADPF vem completar o sistema de controle de constitucionalidade de perfil relativamente concentrado do Supremo Tribunal Federal, uma vez que as questões, até então excluídas de apreciação no âmbito do controle abstrato de normas, podem ser objeto de exame no âmbito do novo procedimento. 76
Por outro lado, a argüição incidental, que caracteriza o controle difuso de
constitucionalidade e é proposta no curso de uma demanda, decorre da combinação
das redações do art. 1º, parágrafo único, I e do art. 6º, § 1º, da Lei n. 9.882/9977. 78
Da leitura dos dispositivos transcritos em nota ao parágrafo anterior,
percebe-se que a argüição incidental requer o preenchimento de mais requisitos do
que a argüição autônoma, como por exemplo, a necessidade de que haja relevância
no fundamento da controvérsia constitucional e seu objeto seja uma lei ou ato
normativo, e não qualquer ato do Poder Público como ocorre na argüição autônoma. 79
A respeito da locução “atos normativos”, Luís Roberto Barroso ensina que
“compreende os atos estatais dotados dos atributos de generalidade, abstração e
obrigatoriedade, destinados a reger a vida social”. 80
76 MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de Constitucionalidade. in MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 1009. 77 BRASIL. Lei n. 9.882, de 3 de dezembro de 1999. Art. 1o A argüição prevista no § 1o do art. 102 da Constituição Federal será proposta perante o Supremo Tribunal Federal, e terá por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público. Parágrafo único. Caberá também argüição de descumprimento de preceito fundamental: I - quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição; [...] Art. 6o Apreciado o pedido de liminar, o relator solicitará as informações às autoridades responsáveis pela prática do ato questionado, no prazo de dez dias. § 1º Se entender necessário, poderá o relator ouvir as partes nos processos que ensejaram a argüição, requisitar informações adicionais, designar perito ou comissão de peritos para que emita parecer sobre a questão, ou ainda, fixar data para declarações, em audiência pública, de pessoas com experiência e autoridade na matéria. 78 BARROSO, Luís Roberto. Controle de constitucionalidade no direito brasilei ro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 247. 79 BARROSO, Luís Roberto. Controle de constitucionalidade no direito brasilei ro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 248. 80 BARROSO, Luís Roberto. Controle de constitucionalidade no direito brasilei ro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 264.
37
Porém, tramita no Supremo Tribunal Federal ação direta que questiona a
constitucionalidade de alguns dispositivos da Lei n. 9.882/99, da qual é relator o
Ministro Néri da Silveira. 81
Em 05 de dezembro de 2001, no julgamento da medida cautelar, foi
suspensa, com efeito ex nunc até o julgamento final da ação, a utilização da redação
do § 3º do art. 5º da Lei n. 9.882/99
[...] por estar relacionado com a argüição incidental em processos em concreto, e conferir interpretação conforme a Constituição ao inciso I do parágrafo único do art. 1º, excluindo de sua aplicação controvérsia constitucional concretamente já deduzida em processo judicial em curso. 82
O Ministro entendeu também que a possibilidade da ADPF atingir processos
em curso não poderia ser autorizada através de legislação ordinária, mas somente
por emenda constitucional.
Assim, apesar de hoje a referida ação direta de inconstitucionalidade ainda
estar pendente de decisão, a Suprema Corte vem admitindo e julgando várias
ADPF’s.
1.5 CARACTERÍSTICAS DO CONTROLE ABSTRATO BRASILEIRO
1.5.1 Natureza objetiva do controle
O processo que envolve a fiscalização abstrata de constitucionalidade é
chamado de “processo objetivo”, pois inexiste lide e não há o intuito de buscar um
direito subjetivo, que envolve situações particulares. A intenção dos legitimados
ativos é alcançar a tutela de um interesse genérico em prol de toda a sociedade e a
defesa da Constituição.
Clèmerson Merlin Clève, ao citar as palavras de Gilmar Ferreira Mendes
sobre o processo objetivo, elucida:
81 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI n. 2.231. Relator Min. Néri da Silveira. 82 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 1089.
38
Tem-se aqui, alertou Gilmar Ferreira Mendes, do “que a jurisprudências dos Tribunais Constitucionais costuma chamar de processo objetivo (objectives Verfahren), isto é, um processo sem sujeitos, destinado pura e simplesmente, à defesa da Constituição (Verfasungsrechtsbewahrungverfahren). Não se cogita, propriamente, da defesa de interesse do requerente (Rechtsschutzbedürfnis), que pressupõe a defesa de situações subjetivas. Nesse sentido, assentou o Bundesverfassungsgericht que, no controle abstrato de normas, cuida-se, fundamentalmente, de um processo unilateral, não-contraditório, isto é, de um processo sem partes, no qual existe um requerente, mas inexiste requerido. [...]”. 83
Decorrente da finalidade de defender a Constituição, o controle abstrato não
admite que haja desistência da ação já proposta, pois seu julgamento irá refletir em
interesses de toda coletividade. Também não são admitidas a argüição de suspeição
e a interposição de recurso por aqueles que se julguem prejudicados pela decisão
final da ação. Só em meados de 1993 é que a Suprema Corte passou a acolher
reclamação para contestar o descumprimento de decisão em sede de controle
concentrado de constitucionalidade. 84
1.5.2 Legitimação ativa
No quesito que diz respeito à legitimação ativa, a Constituição de 1988
também foi aquela que trouxe a maior transformação. Até sua edição a legitimidade
para a propositura de ações sob o controle abstrato e concentrado era privativa do
Procurador-Geral da República. Após, o monopólio foi extinto e o elenco de
legitimados ativos sofreu grande ampliação, estando presentes no art. 103 e seus
incisos, da Constituição Federal, cuja redação já foi colacionada em item anterior.
Com essa ampliação desse rol de legitimados ativos, conseqüentemente
houve um crescimento significativo do número de ações diretas de
inconstitucionalidades ajuizadas perante o Supremo Tribunal Federal.
83 MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de constitucionalidade: aspectos jurídicos e políticos. Rio de Janeiro: Saraiva, 1990. p. 251 apud CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata da constitucionalidade no Dir eito Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 145-146. 84 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Rcl. n. 399/PE. Relator Min. Sepúlveda Pertence. Julgamento em 07/10/1993.
39
Contudo, Luís Roberto Barroso destaca que existe uma distinção entre duas
categorias de legitimados: os universais e os especiais. Os primeiros são assim
denominados por terem o dever de defender a Constituição sob qualquer
circunstância e não precisarem demonstrar interesse. Nessa categoria estão
presentes o Presidente da República, a Mesa do Senado Federal, a Mesa da
Câmara dos Deputados, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e o
partido político com representação no Congresso Nacional. Já o segundo grupo é
chamado de especial, pois compreende órgãos e entidades em que a sua atuação é
restrita às questões que dizem respeito diretamente sobre seu campo jurídico.
Assim, precisam demonstrar relação de pertinência entre o ato e as funções
exercidas. São eles: o Governador de Estado, a Mesa da Assembléia Legislativa e a
confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional. 85
Torna-se relevante mencionar que para uma confederação sindical ou uma
entidade de classe de âmbito nacional, a jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal exige que haja uma relação de pertinência entre a atividade principal desses
legitimados e o conteúdo da norma que será objeto de ação direta de
inconstitucionalidade.
A pertinência temática sugere que exista uma relação lógica entre a questão
constitucional controvertida e a atividade desenvolvida pelo suscitante. Nesse
sentido, dispôs o STF:
[...] a legitimidade ativa da confederação sindical, entidade de classe de âmbito nacional, mesas das assembléias legislativas e governadores, para a ação direta de inconstitucionalidade, vincula-se ao objeto da ação, pelo que deve haver pertinência da norma impugnada com os objetivos do autor da ação. 86
Assim, a relação de pertinência pode ser tida como uma demonstração de
interesse de proteção específico, que funciona como uma restrição ao direito de
propositura da ação, que não se mostra compatível com a natureza do controle
abstrato de norma. 87
Gilmar Ferreira Mendes critica tal exigência, para ele:
85 BARROSO, Luís Roberto. Controle de constitucionalidade no direito brasilei ro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 141. 86 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI-MC-AgR n. 1.507. Relator Min. Carlos Velloso. Julgamento em 06/06/1997. 87 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 1054.
40
Cuida-se de equívoca restrição ao direito de propositura, que, sem se tratando de processo de natureza objetiva, dificilmente poderia ser formulada até mesmo pelo legislador ordinário. A relação de pertinência assemelha-se muito ao estabelecimento de uma condição de ação – análoga, talvez, ao interesse de agir –, que não decorre dos expressos termos da Constituição e parece ser estranha à natureza do sistema de fiscalização abstrata de normas. 88
Outros personagens podem atuar na ação direta de inconstitucionalidade
sem que sejam considerados partes ou legitimados ativos, mas que gozam de
relevante papel são o Advogado-Geral da União e o Procurador Geral da República.
Ao Advogado-Geral da União, a Constituição Federal89 (art. 103, § 3º) em
conjunto com a Lei n. 9.868/99 (art. 8º)90 conferiram-lhe a atribuição de defender o
ato ou norma impugnada91.
Já o Procurador-Geral da República, mesmo não tendo mais o monopólio
para propor ação direta, deverá ser previamente ouvido nas ações de
inconstitucionalidade e em todos os processos de competência do Supremo Tribunal
Federal, conforme estabelece § 1º do art. 103 da CF. Por ser ele o chefe do
Ministério Público da União, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbida da
defesa da ordem jurídica do regime democrático e dos interesses sociais e
individuais indisponíveis (art. 127, caput), sua atuação como fiscal da lei é de toda
importância numa demanda que objetiva, precipuamente, a guarda da Constituição
88 MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de Constitucionalidade. in MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 1054. 89 BRASIL. Constituição (1988). [...] § 3º - Quando o Supremo Tribunal Federal apreciar a inconstitucionalidade, em tese, de norma legal ou ato normativo, citará, previamente, o Advogado-Geral da União, que defenderá o ato ou texto impugnado. 90 BRASIL. Lei n. 9.868, de 10 de novembro de 1999. Art. 8o Decorrido o prazo das informações, serão ouvidos, sucessivamente, o Advogado-Geral da União e o Procurador-Geral da República, que deverão manifestar-se, cada qual, no prazo de quinze dias. 91 “Obviamente, não se está a exigir do Advogado-Geral da União – cidadão de notável saber jurídico e reputação ilibada – que vá defender a norma legal ou ato normativo impugnado a todo e qualquer preço, em qualquer caso e circunstância, mesmo que a inconstitucionalidade salte aos olhos com toda a evidência, sem margem para qualquer dúvida ou vacilação. [...] O § 3º do art. 103 da Carta Magna deve ser interpretado e compreendido de maneira que não aflija a lógica e a coerência. O múnus indisponível de promover a defesa da norma ou ato inquinado deve ser compatibilizado com o dever fundamental que tem qualquer órgão constitucional de respeitas a Lei Maior como um todo, reverenciando os seus princípios. Muito menos estará obrigado a ser o curador da norma contestada, se o autor da ação direta de inconstitucionalidade for o Presidente da República, quando o paradoxo chegaria ao extremo: o advogado arrazoando contra seu patrono.” VELOSO, Zeno. Controle Jurisdicional de Constitucionalidade . 3 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 92.
41
Federal. 92
Porém, a inovação está na admissão da figura do chamado amicus curiae,
que consiste na possibilidade de alguns órgãos ou entidades se pronunciarem sobre
a matéria objurgada, desde que a discussão seja relevante e haja representatividade
do postulante. 93 A admissão da manifestação escrita por parte do amicus curiae é
ato discricionário do relator do processo. 94
1.5.3 Objeto das ações
Por meio de uma ação direta de inconstitucionalidade podem ser
impugnados, no âmbito federal, perante o Supremo Tribunal Federal, leis ou atos
normativos federais ou estaduais que contrariam a Constituição Federal, conforme
determina o art. 102, I, a, do mesmo diploma legal. 95
A jurisprudência e a doutrina utilizam-se comumente da expressão “atos
normativos primários” para se referir aos atos que podem ser objeto de ação direta,
pois têm capacidade de ferir a Constituição, bem como seu fundamento no texto
constitucional. Esses atos normativos primários podem criar, modificar e revogar
relações jurídicas, obedecendo não somente aos princípios constitucionais que
norteiam a sua elaboração, mas também todas as regras constitucionais que
disciplinam sua criação.
A ação declaratória de constitucionalidade possui objeto diverso daquele da
ação direta de inconstitucionalidade, apesar das duas ações serem bastante
parecidas e aparentemente terem apenas finalidades opostas. A ação declaratória
somente pode ser proposta a leis ou atos normativos federais, sendo excluídas as
92 VELOSO, Zeno. Controle Jurisdicional de Constitucionalidade . 3 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 90. 93 BARROSO, Luís Roberto. Controle de constitucionalidade no direito brasilei ro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 149. 94 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF n. 33/PA. Relator Min. Gilmar Mendes. Julgamento em 07/12/2005; ADI-MC n. 2.223/DF. Relator Min. Maurício Corrêa. Julgamento em 28/11/2000. 95 BRASIL. Constituição (1988). Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: I - processar e julgar, originariamente: a) a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal [...]
42
normas estaduais.
O objetivo da ADPF é evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, de
acordo com o art. 1º, da Lei n. 9.882/9996. Em razão da redação do dispositivo, é
possível entender que a argüição pode ser preventiva ou repressiva, quando,
respectivamente, tiver a finalidade de evitar ou reparar a lesão.
Diferente da ação declaratória de constitucionalidade e da ação direta de
inconstitucionalidade, a argüição abrange todos os atos administrativos, normativos
e infraconstitucionais, desde lei complementar até atos decorrentes da
Administração Pública, podendo a lesão a preceito fundamental abarcar direito
federal, estadual ou municipal.
Neste ponto, merece destaque característica a respeito da argüição de
descumprimento de preceito fundamental, em relação aos atos municipais. Tal
modalidade veio trazer ao ordenamento jurídico brasileiro grande novidade, uma vez
que até a edição da Lei n. 9.882/99, leis municipais inconstitucionais só poderiam ser
argüidas por controle incidental (difuso), salvo por representação em âmbito
estadual. Agora, havendo ameaça ou violação de preceito fundamental a questão
poderá ser submetida à apreciação do Supremo Tribunal Federal.
Existe, porém, um outro objeto que é considerado uma exceção ao controle
abstrato de constitucionalidade, havendo significativa controvérsia acerca desse
entendimento, que são as chamadas leis e atos normativos de efeitos concretos.
Essas leis meramente formais, como também são denominadas, não possuem os
atributos de generalidades e abstração que uma norma deve ter, ou seja, são leis
com objetos determinados e destinatários certos. Tal questão será discutida com
maior detalhamento no terceiro capítulo.
96 BRASIL. Lei n. 9.882, de 3 de dezembro de 1999. Art. 1o A argüição prevista no § 1o do art. 102 da Constituição Federal será proposta perante o Supremo Tribunal Federal, e terá por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público.
43
1.5.4 Efeitos da decisão: erga omnes e vinculante
A decisão de inconstitucionalidade, como já dito, tem natureza declaratória,
entendimento este que é predominante no Brasil. Portanto, é decisão que não inova
na ordem jurídica. Assim, como explica Luís Roberto Barroso, o
[...] acórdão que julga procedente o pedido limita-se a constatar a existência de um vício e a conferir certeza jurídica a esse fato, proclamando a invalidade da norma. E a decisão que julga o pedido improcedente contém em si a afirmação judicial de que o autor da ação não foi capaz de elidir a presunção de constitucionalidade da norma, que permanecerá no sistema jurídico, válida e eficaz. 97
Os efeitos dessa declaração de inconstitucionalidade possuem eficácia
preclusiva e vinculativa. Na eficácia preclusiva, a matéria coberta pela autoridade da
coisa julgada não poderá ser objeto de novo pronunciamento judicial, já a eficácia
vinculativa, significa que a decisão terá efeito vinculante sobre os Órgãos Judiciais e
da Administração Pública, ficando esses, de certa forma, obrigados a não contrariar
tal decisão. 98
Como essa decisão (coisa julgada) não é vista como fator impeditivo para
que o órgão legislativo volte a editar nova norma com o mesmo conteúdo declarado
inconstitucional, a Emenda Constitucional n. 03, de 17 de março de 1993 99, que
modificou a redação do § 2º, do art. 102, da Constituição Federal, passou a conferir
“efeito vinculante” às decisões de mérito proferidas pela Suprema Corte em ações
declaratórias de constitucionalidade. Porém, tecnicamente, como já explicitado, o
Poder Legislativo não está vinculado às decisões proferidas pelo Supremo Tribunal
Federal.
Anos depois, a Emenda Constitucional n. 45/2004, que modificou novamente
a redação do § 2º do art. 102 da Constituição Federal 100, considerou o que a Lei n.
97 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 128 apud BARROSO, Luís Roberto. Controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 174. 98 BARROSO, Luís Roberto. Controle de constitucionalidade no direito brasilei ro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 173-174. 99 BRASIL. Constituição (1988). Art. 102. [...] § 2º As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações declaratórias de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal, produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e ao Poder Executivo. 100 BRASIL. Constituição (1988). Art. 102. [...] § 2º As decisões definitivas de mérito,
44
9.868/99 e a própria jurisprudência já vinham entendendo: a extensão o efeito
vinculante aos demais órgãos do Poder Judiciário, como dispunha a EC n. 03/93, e
também à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e
municipal, das decisões de mérito das ações declaratórias e, ainda, das ações
diretas de inconstitucionalidade.
O conceito de efeito vinculante, encontrado no glossário jurídico do Supremo
Tribunal Federal, é o seguinte:
Efeito vinculante é aquele pelo qual a decisão tomada pelo tribunal em determinado processo passa a valer para os demais que discutam questão idêntica. No STF, a decisão tomada em Ação Direta de Inconstitucionalidade, Ação Declaratória de Constitucionalidade ou na Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental possui efeito vinculante, ou seja, deve ser aplicada a todos os casos sobre o mesmo tema. [...] 101
Em relação ao alcance objetivo do efeito vinculante tem-se o que se
denomina “transcendência dos efeitos” 102 . 103 Isso significa que os demais órgãos
do Poder Judiciário e a administração pública federal, estadual e municipal, direta ou
indireta, deverão notar não somente o cumprimento da parte dispositiva, como
também dos embasamentos teóricos da decisão proferida. 104
A decisão proferida em ação direta de inconstitucionalidade produz também
efeito erga omnes, ou seja, essa decisão é oponível contra todos, ultrapassa as
partes litigantes, inclusive devendo ser respeitada pelo próprio Supremo Tribunal
Federal e os demais órgãos do Judiciário e do Poder Executivo. Além disso, decisão
é dotada do chamado efeito ex tunc (retroativos), razão pela qual a lei é retirada do
ordenamento jurídico como se nunca tivesse existido sendo considerada nula, ou
seja, destituída de eficácia jurídica.
proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal. 101 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Imprensa. Glossário Jurídico. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/glossario/verVerbete.asp?letra=E&id=461>. Acesso em: 19 de maio de 2009. 102 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Rcl. n. 1.987/DF. Relator Min. Maurício Corrêa. Julgamento em 01/10/2003. 103 BARROSO, Luís Roberto. Controle de constitucionalidade no direito brasilei ro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 184. 104 CHIMENTI, Ricardo Cunha et al. Curso de direito constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 423..
45
A declaração de inconstitucionalidade
[...] decreta a total nulidade dos atos emanados do Poder Público, desampara as situações constituídas sob sua égide e inibe – ante a sua inaptidão para produzir efeitos jurídicos válidos – a possibilidade de invocação de qualquer direito. 105
A suspensão da eficácia do ato normativo só acontece no momento em que
é publicada a decisão do Poder Judiciário no Diário de Oficial de Justiça causando,
então, os efeitos vinculantes, ex tunc e erga omnes.
Carlos Roberto de Alckmin Dutra, sobre o assunto, leciona que “a
declaração de inconstitucionalidade, com a suspensão da vigência da lei, torna,
portanto, sem efeito todos os atos realizados sob sua vigência” 106.
Todavia, a redação do artigo 27 da Lei n. 9.868/99 inova, permitindo que, por
maioria de dois terços de seus membros o Supremo Tribunal Federal e havendo a
presença de razões de segurança jurídica ou excepcional interesse social, sejam
restringidos os efeitos da declaração de inconstitucionalidade. 107
Com isso, o Tribunal poderá manipular os efeitos da declaração de
inconstitucionalidade, seja quanto a amplitude, seja quanto aos efeitos temporais, ex
tunc (retroativo) ou ex nunc (a partir do trânsito em julgado).
Além disto, outro efeito objetivo decorre da declaração de
inconstitucionalidade, o chamado “efeito repristinatório”. Para Luís Roberto Barroso
trata-se de
[...] sua repercussão sobre a legislação que havia sido afetada pela lei reconhecida como inválida. Uma nova lei ou ato normativo, quando entra em vigor, freqüentemente irá revogar normas que disciplinavam o mesmo assunto. De fato, a lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível. Sucede, porém, que, se a lei revogadora vier pondo o princípio da supremacia da Constituição que a situação jurídica volte ao status quo ante. Por essa razão, tanto a doutrina quanto a jurisprudência sempre sustentaram que a declaração de
105 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI n. 652/MA. Relator Min. Celso de Mello. Julgamento me 02/04/1993. 106 DUTRA, Carlos Roberto de Alckmin. Controle de constitucionalidade de Leis e Atos Normativos. São Paulo: Saraiva, 2005. 107 BRASIL. Lei n. 9.868, de 10 de novembro de 1999. Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.
46
inconstitucionalidade de uma lei restaura a vigência da legislação previamente existente por ela afetada. 108
Eis a manifestação da Suprema Corte a respeito do tema:
A declaração de inconstitucionalidade em tese encerra um juízo de exclusão, que, fundado numa competência de rejeição deferida ao STF, consiste em remover do ordenamento jurídico a manifestação estatal inválida e desconforme ao modelo plasmado na Carta Política, com todas as conseqüências daí decorrentes, inclusive a plena restauração de eficácia das leis e normas afetadas pelo ato declarado inconstitucional. 109
Caso a norma ressuscitada possua eficácia indesejada, caberá requerer
igualmente, já na inicial da ação direta, a inconstitucionalidade, evitando dessa
forma, que com a revogação de uma, advenha outra, também de caráter
inconstitucional.
108 BARROSO, Luís Roberto. Controle de constitucionalidade no direito brasilei ro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 178. 109 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI n. 652/MA. Relator Min. Celso de Mello. Julgamento me 02/04/1993.
47
2 DEMARCAÇÃO DO CONTEÚDO E DO ALCANCE DAS CHAMADAS
LEIS MERAMENTE FORMAIS OU LEIS DE “EFEITOS CONCRETO S”
Este capítulo tem o intuito de analisar os elementos constitutivos de um ato
normativo, a fim de subsidiar a distinção doutrinária em torno de leis em sentido
material e em sentido formal que possibilitaram a discussão sobre a fiscalização de
constitucionalidade de leis meramente formais ou de efeitos concretos
Será exposto também como surgiu a idéia de lei, quais os fundadores deste
pensamento e como se efetivou o nascimento de seu conceito. Em conseqüência,
será apresentada a maneira como se desenvolveu a imagem de um Estado, quais
suas funções primordiais, sendo o enfoque maior no primado de sua função
legislativa.
2.1 “IDÉIA DE LEI” E FUNÇÃO LEGISLATIVA
O homem é ser social e tende a se organizar em coletividades. Assim, para
solucionar conflitos em razão do convívio social tornou-se necessário o surgimento
de normas para que fosse possível a coexistência social.
Tais normas deveriam ser instituídas e impostas por um ente que tivesse
poder suficiente para vincular essas regras aos indivíduos, a fim de fazer predominar
o bem comum ante as vontades/necessidades individuais. Neste contexto se
desenvolve a idéia de que o Estado deveria ser este ente que, por excelência, seria
apto a assegurar a realização do bem comum. Por outro lado, o bem comum, desde
o iluminismo, está relacionado à observância de leis que deveriam regular situações
de maneira geral.
Sobre o conceito de Estado, Gisela Maria Bester assim o descreve:
[...] o Estado é o detentor do monopólio da força legítima para a manutenção da ordem vigente, isto é, do monopólio da Justiça (punição), da cobrança de tributos fiscais, de cunhar moeda etc. Verdadeiramente, um dos mais antigos preceitos da Filosofia Política diz que o Estado tem o monopólio do uso da força, isto é, apenas o poder público pode usar a violência (e mesmo assim, na medida
48
necessária) para garantir o cumprimento da lei e evitar que surja a guerra de todos contra todos. Logo, o Estado é a Instituição com poderes para organizar a sociedade em um dado território, coercitivamente, isto é, para disciplinar o convívio social humano por meio do Direito, por meio de normas jurídicas obrigatórias, acompanhadas de sanções. 110
Desta forma, pode-se concluir que a lei é a concretização da conduta do
Estado-legislativo111 e surgiu da necessidade de ter normas universais que
regulassem as relações entre os indivíduos. Porém, não é simples apresentar o
conceito de lei, uma vez que pode ser interpretada de diversas maneiras,
dependendo de como e por quem é vista, discutida e estudada.
Nuno Piçarra leciona que lei é basicamente uma “norma geral e abstrata,
imputável à vontade geral do povo soberano, a quem exclusivamente deve a sua
existência. A sua validade e essência deve-se à racionalidade que é, justamente, a
intenção da vontade legisladora”. 112
A fim de esmiuçar a consideração supramencionada diz-se que a lei é norma
geral e abstrata, pois não tem o intuito de regular a situação concreta de uma única
pessoa, mas sim à sociedade de forma geral, devendo ser abstrata em seu
conteúdo.
Como o povo soberano está faticamente impossibilitado de exercer a função
legislativa diretamente, foi desenvolvida a idéia de democracia representativa
através da qual o povo delega a representantes a função de legislar e de, por
conseguinte, exprimirem a vontade geral.
Neste contexto, a lei é concebida como expressão de um compromisso
político-social, que confere estabilidade às relações sociais, ideal este que atinge
sua máxima expressão na codificação. Portanto, a existência, validade e essência
das leis estão diretamente relacionadas à vontade geral do povo soberano. Esta
relação, expressão do ideal de racionalidade moderno, exprime-se pelo
reconhecimento de uma "intenção" da vontade legisladora.113
110 BESTER, Gisela Maria. Direito constitucional: fundamentos teóricos. São Paulo: Manole, 2005. p. 10-11. 111 SILVA, José Afonso da. Processo constitucional de formação das leis. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 21. 112 PIÇARRA, Nuno. A separação dos poderes como doutrina e princípio constitucional: um contributo para o estudo das suas origens e evolução. Lisboa: Coimbra Editora, 1989. p. 156-157. 113 PIÇARRA, Nuno. A separação dos poderes como doutrina e princípio constitucional: um contributo para o estudo das suas origens e evolução. Lisboa: Coimbra
49
Assim, a idéia de lei relacionada com a expressão da vontade geral vincula
os indivíduos, até mesmo os governantes, a abrir espaço para o desenvolvimento e
consolidação da concepção do Estado de Direito, que constitui a base para o
constitucionalismo contemporâneo.
Gisela Maria Bester apresenta o conceito de Estado de Direito como
[...] aquele que nasce como resultado dos processos revolucionários dos séculos XVII (revolução Gloriosa Inglesa, de 1688) e XVIII (Revolução de Independência Norte-Americana, de 1776, e Revolução Francesa, de 1789), sendo justamente a primeira versão ou a versão típica, clássica, do Estado Liberal de Direito e que deveria assumir, conforme Elias Díaz, as seguintes características gerais, ou exigências básicas e indispensáveis a todo autêntico Estado de Direito: a) o império da lei: lei como expressão da vontade geral; B) a divisão de poderes: legislativo, executivo e judiciário; c) a legalidade da administração: atuação segundo a lei e com suficiente controle judicial; d) os direitos e as liberdades fundamentais: não só a garantia jurídico-formal, mas também a efetiva realização material. 114
Segundo a máxima de separação de poderes, cristalizada na obra de
Montesquieu, o exercício das funções estatais passa a ser distribuído por órgãos
distintos (três poderes) em torno dos quais são circunscritas funções próprias bem
delimitadas. 115
Esta divisão de tarefas decorria da necessidade de racionalização do
exercício de poder e na tentativa de que fossem desenvolvidos mecanismos
institucionais de coordenação e controle entre estes órgãos estatais.
Como, num Estado livre, todo homem, que é considerado ter uma alma livre, deve ser governado por si mesmo, era preciso que o povo, em conjunto, tivesse o poder legislativo. Mas, como isso é impossível nos grandes Estados e é sujeito a muito inconvenientes nos pequenos, é preciso que o povo faça por seus representantes tudo aquilo que não pode fazer por si. 116
Em um Estado de Direito, onde há o Parlamento e o princípio da legalidade,
a única maneira de ver manifestado o poder soberano é o ato de edição de leis,
Editora, 1989. p. 157. 114 BESTER, Gisela Maria. Direito constitucional: fundamentos teóricos. São Paulo: Manole, 2005. p. 11-12. 115 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do processo Legislativo. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 44. 116 MONTESQUIEU. O espírito das leis. Parte 1, Livro II, Capítulo 6º. 1949. apud FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do processo Legislativo. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 45.
50
sendo a edição de tais leis reconhecidas como função predominantemente do Poder
Legislativo. 117
Como corolário desta idéia, o Estado que surge no séc. XVIII, encontra-se
fortemente centrado na idéia de supremacia da lei e, por conseguinte, reconhecendo
uma preponderância do Poder Legislativo.
Nuno Piçarra, sobre o Estado Legislativo de Direito, preleciona:
No Estado de Direito de legalidade ou Estado de legislação parlamentar, que se constituiu para realizar o sentido que o Iluminismo confere à lei, o princípio da separação dos poderes é exclusivamente chamado a garantir o primado da lei, o seu império ou soberania e, simultaneamente, o monismo do poder legislativo. 118
Desta forma, passa a existir o primado da função legislativa sobre as demais
funções estatais, uma vez que é por meio da legislação que o Estado constitui
normas jurídicas que regularão, de forma preventiva e hipotética, as situações e
relações que surgem entre os homens que convivem socialmente. 119
Elival da Silva Ramos busca a identificação dos elementos constitutivos da
idéia de lei na concepção de Jean-Jacques Rosseau. Para ele, a lei não é um
simples ato de deliberação coletiva (aspecto formal) 120, mas também um ato
veiculador de normas gerais e abstratas (aspecto material). 121
Sobre o aspecto material, diretamente ligado ao tema desta pesquisa,
discorre:
[...] a vontade geral apresenta sempre um conteúdo de justiça (“a vontade geral é sempre reta e tende sempre para a utilidade pública”), distinguindo-se, pois, da vontade de todos (que mira o interesse privado “e outra coisa não é senão a soma de vontades
117 PIÇARRA, Nuno. A separação dos poderes como doutrina e princípio constitucional: um contributo para o estudo das suas origens e evolução. Lisboa: Coimbra Editora, 1989. p. 159. 118 PIÇARRA, Nuno. A separação dos poderes como doutrina e princípio constitucional: um contributo para o estudo das suas origens e evolução. Lisboa: Coimbra Editora, 1989. p. 149. 119 SILVA, José Afonso da. Processo constitucional de formação das leis. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 39-40. 120 “A função legislativa concretiza-se através de um complexo de atos, que vai da iniciativa legislativa até à promulgação da lei. Essa série de atos coordenados desenvolve-se no tempo e tende à formação de um ato final; donde decorre a idéia de procedere, ou seja, dirigir-se para uma meta, e o nome processo, dado a esse conjunto de atos, postos em movimento, no exercício da função legislativa.” SILVA, José Afonso da. Processo constitucional de formação das leis. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 40. 121 RAMOS, Elival da Silva. A inconstitucionalidade das leis: vício e sanção. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 17.
51
particulares”) [...] Logo, para haver lei, há que se atender a condições de forma (deliberação do corpo de cidadãos, sem a intermediação de representantes) e a condição de fundo, essas últimas concernentes a dois aspectos: o da estrutura das normas legais (generalidade e abstração) e o aspecto suprapositivo (conteúdo racional de justiça). 122
Por outro lado, a respeito do aspecto formal, leciona o autor:
Para o ordenamento brasileiro, lei, em nível federal, é o ato elaborado, ordinariamente, pelo Congresso Nacional, com ou sem a participação do presidente da República, ou apenas pelo Presidente da República, extraordinariamente, mediante delegação legislativa ou mediante a edição de medida provisória com força de lei, de acordo com os procedimentos previstos na Constituição (arts. 59 a 69 e 165), tendo por objeto normas gerais e abstratas ou individuais e concretas. Trata-se como se vê, de conceito eminentemente formal, em que se destacam os órgãos competentes para legislar e o procedimento de elaboração legislativa, aludindo-se apenas, a um conteúdo normativo mínimo, que pode compreender normas gerais e abstratas, mas também normas individuais e concretas. 123
Por fim, cabe mencionar então, que a idéia de lei engloba os elementos que
trarão ao ato legislativo a normatividade necessária para que tenha capacidade de
regular situações não individuais. Tais elementos constitutivos serão melhor
explorados a partir deste ponto.
2.2 ELEMENTOS DA NORMATIVIDADE DO ATO LEGISLATIVO: GENERALIDADE,
ABSTRAÇÃO E INOVAÇÃO/PERMANÊNCIA
Conforme demonstrado no item anterior, o ato legislativo pode ser
conceituado tanto pela sua aparência material quanto formal e, assim, o ato passa a
evidenciar elementos inerentes a sua existência e normatividade.
Para que um ato seja considerado normativo faz-se necessário que
preencha, então, algumas condições. Porém, torna-se importante destacar que há
inúmeras denominações dadas aos elementos constitutivos do ato legislativo, como
por exemplo, generalidade, abstração, inovação, permanência, impessoalidade,
122 RAMOS, Elival da Silva. A inconstitucionalidade das leis: vício e sanção. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 17. 123 RAMOS, Elival da Silva. A inconstitucionalidade das leis: vício e sanção. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 19-20.
52
obrigatoriedade, autonomia, dentre outros.
O rol de elementos constitutivos dos atos normativos varia dentre os autores
pesquisados: Gilmar Ferreira Mendes utiliza os elementos da generalidade,
abstração e impessoalidade124; José Afonso da Silva faz uso dos termos,
generalidade, obrigatoriedade, permanência e originalidade125; outros, ainda,
mencionam somente a generalidade e abstração como noções de normatividade de
um ato legislativo.126
Neste estudo serão utilizadas as qualificações de generalidade, abstração,
bem como de inovação e permanência, por serem estes os elementos que
apresentam maior coerência com o significado e idéia de lei, nos termos antes
delineados.
Inicialmente, pode-se reconhecer certa unanimidade em referir-se à
generalidade e abstração como requisitos constitutivos da lei, entretanto, é difícil
identificar o que os diferencia porque tais conceitos geralmente são mencionados
como idéias indissociáveis decorrentes da idéia geral de lei, sem que haja uma
preocupação de delimitação conceitual específica.
Esta ausência de delimitação conceitual é recorrente, como se pode extrair,
exemplificativamente, da lição de Clèmerson Merlin Clève, na qual o autor reúne os
conceitos de generalidade e abstração, não fazendo distinção evidente entre eles:
[...] a generalidade da disposição constitui a condição essencial da lei e o principal elemento de sua definição. Partindo desse pressuposto, a função administrativa distingue-se da legislativa pelo fato de que a primeira consiste na adoção de disposições individuais apropriadas a casos concretos, enquanto a segunda consiste em formular regras gerais. [...] A lei é geral, porque as suas disposições são tomad as em abstrato, podendo ser aplicadas a todos os casos futuros capazes de ser abrangidos pelo seu enunciado. 127 [grifou-se]
Já Nuno Piçarra, quando versa sobre o conceito de lei, trata dos elementos
de generalidade e abstração da seguinte maneira:
124 MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de Constitucionalidade. in MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional . São Paulo: Saraiva, 2007. p. 1062. 125 SILVA, José Afonso da. Processo constitucional de formação das leis. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 25. 126 CLÈVE, Clèmerson Merlin. Atividade legislativa do poder executivo. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. p. 64; RAMOS, Elival da Silva. A inconstitucionalidade das leis: vício e sanção. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 20. 127 CLÈVE, Clèmerson Merlin. Atividade legislativa do poder executivo. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. p. 63-64.
53
O conceito de lei, ao serviço de cujo primado o princípio da separação dos poderes vai ser posto, apresenta, em síntese os seguintes traços: é essencialmente uma norma geral e abstracta, imputável à vontade geral do povo soberano, a quem exclusivamente deve a sua existência. 128
Por outro lado, José Afonso da Silva leciona que lei “é um preceito jurídico; é
dotada de generalidade, de obrigatoriedade e de permanência; e finalmente, para
extremar a lei do regulamento, do ponto de vista da função, destacam o caráter de
originalidade da lei”. E conclui levantando o seguinte conceito de lei: “A lei é a regra
primordial e fundamental que rege as relações sociais no interior do Estado de um
modo geral e permanente (ou perpértuo)”. 129 Desta forma, é perceptível que o
doutrinador apresenta requisitos para existência de uma lei, que outros não tratam.
Porém, alguns conceitos muitas vezes se confundem como é o caso de inovação,
aqui definido como objeto de estudo, e originalidade, mencionado pelo autor.
Em relação aos elementos de inovação e permanência, é possível expor que
o primeiro determina que a lei deve fazer nascer obrigações e deveres autônomos
novos, ou seja, é necessário que outra norma já não trate sobre o mesmo assunto,
enquanto o segundo elemento estabelece que a norma é editada para conservar-se,
persistir no ordenamento jurídico, e não para viger por tempo determinado, ou
regulando situações passadas. O motivo da existência da lei é regular situações
futuras.
Os Tribunais igualmente referem-se aos conceitos conjuntamente sem
diferenciá-los. Exemplificativamente temos a situação em que o Ministro Maurício
Corrêa, relator da ADI-MC n. 2.057/AP, diz que o ato legislativo, deve ter o caráter de
generalidade, estando presente quando a lei tem destinatários indeterminados e
indetermináveis, ou seja, é direcionada a todos os indivíduos, sem qualquer
distinção. 130
Todavia, seria interessante estabelecer contornos mais precisos em relação
a estes elementos, tendo em vista o objeto da presente monografia.
128 PIÇARRA, Nuno. A separação dos poderes como doutrina e princípio constitucional: um contributo para o estudo das suas origens e evolução. Lisboa: Coimbra Editora, 1989. p. 156. 129 SILVA, José Afonso da. Processo constitucional de formação das leis. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 25. 130 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI-MC n. 2.057/AP. Relator Min. Maurício Corrêa. Julgamento em 09/12/1999.
54
Neste sentido, quem diferencia com maior clareza, dentre os autores
pesquisados, é Elival da Silva Ramos quando estabelece que normas gerais são
antagônicas a individuais e as abstratas fazem referência a um fato-tipo e não a um
fato concreto. 131
Vejamos suas palavras em relação à generalidade:
A “generalidade”, que é a característica principal do conceito rousseaniano de lei, deve ser tomada em duplo sentido: a lei é geral quanto à sua origem, porque é fruto da deliberação coletiva direta do corpo dos cidadãos, sem a presença nefasta das chamadas sociedades parciais; e a lei é geral quanto ao seu objeto, posto que não visa a um só indivíduo ou a uma única ação.132
Por fim, fazem-se duas ressalvas. A primeira em relação a normas que
mesmo não tendo os requisitos de generalidade e abstração, e não estando
previstas no rol de atos primários do art. 59 da Constituição Federal, estão sujeitas
ao controle concentrado de constitucionalidade, uma vez que possuem força de lei
posto que inovam no ordenamento jurídico. Acima delas somente existe a
Constituição Federal, que é a própria fundamentação de sua existência. Serve como
exemplo, um decreto autônomo que inova a ordem jurídica a partir do momento em
que impõe condutas novas aos cidadãos, condutas não previstas em lei antes de
sua edição. Outra observação se faz aos atos regulamentares que apesar de não
terem o caráter inovador, gozam igualmente de generalidade e abstração, sem,
contudo, serem suscetíveis de controle abstrato. Esta temática será melhor tratada a
partir dos próximos tópicos.
2.3 ATO NORMATIVO PARA FINS DE CONTROLE JUDICIAL
Considera-se ato normativo, para fins de controle abstrato de
constitucionalidade, aquele que detém os requisitos de generalidade, abstração,
inovação e permanência, conforme explicitado no item anterior.
Todavia, o que se percebe analisando os precedentes do STF é que as suas 131 RAMOS, Elival da Silva. A inconstitucionalidade das leis: vício e sanção. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 20. 132 RAMOS, Elival da Silva. A inconstitucionalidade das leis: vício e sanção. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 16.
55
decisões não reconhecem um único padrão de nomenclatura dos elementos que
compõem o ato normativo, fazendo com que o leitor se depare com diversas
terminologias, que em muitos casos, tornam confusos os entendimentos. E, como já
mencionado, podem também ser entendidas como sinônimos umas das outras.
O Ministro Eros Grau, ao proferir decisão de agravo regimental em recurso
extraordinário, ressaltou o elemento da “determinabilidade dos destinatários”, que
pode ser visto inserido no conceito de generalidade e abstração:
[...] as leis impugnadas são dotadas de generalidade e abstração. Seus destinatários são determináveis, e não determi nados , sendo possível a análise desse texto normativo pela via da ação direta. [...] 133 [grifou-se]
Já a Ministra Ellen Gracie, destacou que o ato deve ter feição “obrigatória”:
[...] o ato normativo impugnado, ao conferir eficácia erga omnes a um julgado singular, revela sua feição geral e obrigatória , sendo, portanto, dotado de generalidade, abstração e impessoalidade. [...] 134 [grifou-se]
E o Ministro Gilmar Mendes apresenta o elemento “autonomia”:
Generalidade, abstração e autonomia que tornam apto o ato normativo para figurar como objeto do controle de constitucionalidade. 135 [grifou-se]
Do exposto é possível notar que o STF não possui um rol expresso de
nomenclaturas que devem ser utilizadas quando se trata de elementos que
compõem o ato normativo para fins de controle jurisdicional. Observa-se, somente,
que para a norma ser apta ao controle abstrato e figurar como seu objeto, tem que
apresentar, ao menos, contornos que demonstrem a presença dos elementos de
generalidade e abstração.
Cabe ressaltar que o controle concentrado admite preponderantemente a
sindicância de atos normativos primários, ou seja, aqueles que decorrem
diretamente da Constituição, presentes em seu art. 59, sejam eles federais ou
estaduais, que sejam dotados dos requisitos já mencionados.
133 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE-AgR n. 543024/DF. Relator Min. Eros Grau. Julgamento em 19/08/2008. 134 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI-MC n. 3.929/DF. Relator Min. Ellen Gracie. Julgamento em 29/08/2007. 135 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI n. 3.691/MA. Relator Min. Gilmar Mendes. Julgamento em 29/08/2007.
56
Quando o STF refere-se às condições do ato normativo pretende identificar
parâmetros para definir, sobretudo, o que pode (ou não) ser objeto de manifestação
de constitucionalidade in abstracto. Para identificar os atos sindicáveis, impõe-se
fazer duas distinções conceituais úteis entre lei formal e material e ato primário e
secundário, as quais serão realizadas nos itens que seguem.
2.3.1 Lei em sentido formal e em sentido material
José Afonso da Silva, sobre o sentido formal da lei, leciona que tal conceito
“só existe, rigorosamente, nos regimes constitucionais da separação de funções do
Estado, pois seu conceito provém do fato de ser a função legislativa atribuída a
órgão distinto dos incumbidos das funções executivas e judiciárias” 136.
Elival da Silva Ramos sobre o sentido formal da lei menciona que
[...] se destacam os órgãos competentes para legislar e o procedimento de elaboração legislativa, aludindo-se, apenas, a um conteúdo normativo mínimo, que pode compreender normas gerais e abstratas, mas também normas individuais e concretas. 137
Assim, é tida como lei em sentido formal aquela que foi editada de acordo
com o procedimento legislativo previsto na Constituição Federal, não importando seu
conteúdo, sendo este irrelevante.
Tercio Sampaio Ferraz Jr. pontua algumas distinções entre lei em sentido
formal e material dizendo que a primeira é expressão que designa um modo de
produção de normas, é aquela caracterizada pela forma e, a segunda, designa seu
conteúdo, sendo caracterizada por sua natureza, ou seja, é o conjunto de normas
que prescrevem diretamente obrigações e direitos subjetivos. 138
Sobre lei em sentido material, José Afonso da Silva expõe que “consiste num
ato normativo de caráter geral, abstrato e obrigatório, tendo como finalidade o
ordenamento da vida coletiva, no sentido de trazer certeza, precisão e garantia às 136 SILVA, José Afonso da. Processo constitucional de formação das leis. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 27. 137 RAMOS, Elival da Silva. A inconstitucionalidade das leis: vício e sanção. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 20. 138 FERRAZ, Tercio Sampaio Jr. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2001. p. 231.
57
relações jurídicas” 139.
Este conceito de lei em sentido material considera relevante não só o
conteúdo da norma, mas a natureza dos dispositivos que a compõe, uma vez que
devem ser gerais, abstratos, impessoais e inovadores. A maneira, a forma, o órgão
pelo qual foi emanada não tem importância quando se fala em lei em sentido
material.
Os decretos regulamentares, por exemplo, são atos infralegais que não
inovam no ordenamento jurídico140, pois são considerados complementos de uma
das espécies normativas dispostas no art. 59, da CF. Porém, levando em conta a
natureza de seus dispositivos, são tidos como lei em sentido material, uma vez que
suas normas são dotadas de generalidade e abstração.
2.3.2 Ato normativo primário e ato normativo secund ário
Da decisão de medida cautelar da ADI n. 2.321/DF, de relatoria do Ministro
Celso de Mello, extrai-se o seguinte trecho em que é dado o conceito de ato
normativo para fins de controle concentrado:
[...] A noção de ato normativo, para efeito de controle concentrado de constitucionalidade, pressupõe, além da autonomia jurídica da deliberação estatal, a constatação de seu coeficiente de generalidade abstrata, bem assim de sua impessoalidade. Esses elementos - abstração, generalidade, autonomia e impessoalidade - qualificam-se como requisitos essenciais que conferem, ao ato estatal, a necessária aptidão para atuar, no plano do direito positivo, como
139 SILVA, José Afonso da. Processo constitucional de formação das leis. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 26. 140 Ato que não inova na ordem jurídica pode ser entendido como aquele que foi editado como complemento necessário de uma lei, sendo sua existência indispensável para regulamentar a norma. Como exemplo extrai-se trecho do julgamento da ADI nº 2.589/DF, vejamos: “Revela-se, pois, insuscetível de conhecimento a presente ação direta, eis que o decreto em questão – longe de haver sido utilizado como sucedâneo da lei em sentido formal, substituindo-a, impropriamente, em sua clássica função de veículo instaurador de uma nova ordem normativa (J. J. GOMES CANOTILHO, 'Direito Constitucional e Teoria da Constituição', p. 633, 1998, Almedina) – veio a ser editado precisamente em decorrência, e como um necessário complemento, da Lei n. 9.394/96, cuja existência tornou imprescindível a formulação do mencionado decreto, circunstância que nesta faz ressaltar a sua ausência de autonomia jurídica, o que lhe suprime o atributo de normatividade qualificada, essencial à instauração do processo de fiscalização abstrata de constitucionalidade.” BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI n. 2.589/DF. Relator Min. Carlos Velloso. Julgamento em 29/09/2003.
58
norma revestida de eficácia subordinante de comportamentos estatais ou de condutas individuais. [...] 141
O ato normativo primário pode ser conceituado como aquele que decorre
diretamente de disposição presente na redação da Constituição Federal. O Ministro
Ayres Britto, no julgamento da medida cautelar da ADC n. 12/DF, considerou
inseridas às espécies normativas numeradas no art. 59, da CF, ou seja, no conceito
de norma primária, as seguintes espécies: decreto — regulamento autônomo — (art.
84, VI, a da Constituição Federal); resolução do Conselho Nacional de Justiça (art.
103-B, II da Constituição Federal) e; regimentos internos dos tribunais (art. 96, I,
alínea a da Constituição Federal).
Em relação ao regimento dos tribunais destacou que possuem natureza
dúbia, pois têm natureza de atos primários quando dispõem sobre competência e
funcionamento dos órgãos jurisdicionais e administrativos, e de atos secundários
quando tratam sobre o dever de observância das normas de processo e das
garantias processuais das partes.
Assim, ato normativo secundário constitui aquele diretamente subordinado
aos atos primários, como aqueles estritamente submissos ou subordinados à fonte
primária do Direito, como por exemplo, a lei. 142
Luís Roberto Barroso sobre atos secundários preleciona:
Atos administrativos normativos – como decretos regulamentares, instruções normativas, resoluções, atos declaratórios – não podem validamente inovar na ordem jurídica, estando subordinados à lei. Desse modo, não se estabelece confronto direto entre eles e a Constituição. 143
A definição desses dois tipos normativos foi bem desenvolvida pelo Ministro
Ayres Britto, na decisão supramencionada. Vejamos fragmento de sua exposição:
[...] o Estado-legislador é detentor de duas caracterizadas vontades normativas: uma é primária, outra é derivada. A vontade primária é assim designada por se seguir imediatamente à vontade da própria Constituição, sem outra base de validade que não seja a Constituição mesma. [...] Já a segundo tipologia de vontade estatal-normativa, vontade tão-somente secundária, ela é assim chamada
141 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI-MC n. 2.321/DF. Relator Min. Celso de Mello. Julgamento em 25/10/2000. 142 BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional . São Paulo: Saraiva, 2007. p. 170. 143 BARROSO, Luís Roberto. Controle de constitucionalidade no direito brasilei ro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 158.
59
pelo fato de buscar o seu fundamento de validade em norma intercalar; ou seja, vontade que adota com esteio de validade um diploma jurídico já editado, este sim, este sim, com base na Constituição. [...] 144
Em relação ao ato normativo secundário, torna-se necessário fazer uma
ressalva. O controle abstrato de constitucionalidade não se presta à análise desses
atos, pois o confronto com a Carta Maior se dá de maneira reflexa, ou seja, não há
violação a preceitos constitucionais diretamente 145 e sim a normas infralegais.
O STF a respeito da matéria entende que a inconstitucionalidade reflexa é
verificada “quando o vício de ilegitimidade irrogado a um ato normativo é o
desrespeito à Lei Fundamental por haver violado norma infraconstitucional
interposta, a cuja observância estaria vinculada pela Constituição” 146. Neste caso
existe uma ilegalidade e não uma inconstitucionalidade da norma, para fins de
demonstração de ofensa direta à Constituição, própria do controle abstrato. 147
2.4 ATOS NORMATIVOS SUJEITOS À FISCALIZAÇÃO ABSTRATA PELA
JURISPRUDÊNCIA CONSOLIDADA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Como já dito, o STF é órgão competente para processar e julgar ação direta
de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual, bem como para
processar e julgar ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo
federal, conforme estabelece o art. 102, I, a, da CF.
Convém destacar que são impugnáveis por meio das duas ações
supramencionadas as espécies normativas elencadas no art. 59, da CF, in verbis:
Art. 59. O processo legislativo compreende a elaboração de: I - emendas à Constituição; II - leis complementares; III - leis ordinárias;
144 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADC-MC n. 12/DF. Relator Min. Carlos Britto. Julgamento em 16/02/2006. 145 CHIMENTI, Ricardo Cunha et al. Curso de direito constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 399. 146 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI n. 3.132/SE. Relator Min. Sepúlveda Pertence. Julgamento em 15/02/2006. 147 BARROSO, Luís Roberto. Controle de constitucionalidade no direito brasilei ro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 157-158.
60
IV - leis delegadas; V - medidas provisórias; VI - decretos legislativos; VII - resoluções.
No item que segue, cada um dos tipos normativos citados serão
esmiuçados, sendo apresentados seus desdobramentos e exemplos pertinentes às
suas peculiaridades específicas.
2.4.1 Atos legislativos primários dotados de normat ividade
Todas as espécies legislativas presentes no art. 59, da Constituição Federal,
e aquelas apresentadas no tópico 2.3.2, desde que gozem de normatividade, estão
sujeitas ao controle abstrato de constitucionalidade.
As emendas constitucionais, tanto formal quanto materialmente, submetem-
se à fiscalização concentrada148. Isto significa dizer que deve ser observado o
procedimento próprio de sua criação (art. 60, I, II, III e §§ 2º, 3º e 5º da Carta
Magna149) e o respeito às interdições constitucionais chamadas de cláusulas pétreas
(art. 60, § 4º, da Constituição Federal150) 151.
Sobre o tema, já se manifestou a Suprema Corte no sentido de que “não há
dúvida de que, em face do novo sistema constitucional, é o STF competente para,
em controle difuso ou concentrado, examinar a constitucionalidade, ou não, de
148 Porém, vem sendo admitido o controle concreto preventivo através de mandado de segurança impetrado por parlamentar, como por exemplo, o MS nº 22504/DF, de relatoria do Ministro Marco Aurélio, julgado em 08/05/1996. 149 BRASIL. Constituição (1988). Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: I - de um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal; II - do Presidente da República; III - de mais da metade das Assembléias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros. [...] § 2º - A proposta será discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros. § 3º - A emenda à Constituição será promulgada pelas Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, com o respectivo número de ordem. [...] § 5º - A matéria constante de proposta de emenda rejeitada ou havida por prejudicada não pode ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa. 150 BRASIL. Constituição (1988). [...] § 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I - a forma federativa de Estado; II - o voto direto, secreto, universal e periódico; III - a separação dos Poderes; IV - os direitos e garantias individuais. 151 BARROSO, Luís Roberto. Controle de constitucionalidade no direito brasilei ro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 150-151.
61
emenda constitucional” 152.
Da mesma maneira, leis complementares e leis ordinárias, desde que
estejam em vigência 153, são passíveis de controle abstrato. Destaca-se que e leis
complementares e leis ordinárias são espécies normativas distintas e inconfundíveis,
revelando-se indevida a invasão de competência temática de uma lei complementar
sobre o disposto em lei ordinária.
Alexandre de Moraes diferencia as duas espécies normativas:
São duas as diferenças entre lei complementar e lei ordinária. A primeira é material, uma vez que somente poderá ser objeto de lei complementar a matéria taxativamente prevista na Constituição Federal, enquanto todas as demais matérias deverão ser objeto de lei ordinária. Assim, a Constituição Federal reserva determinadas matérias cuja regulamentação, obrigatoriamente, será realizada por meio de lei complementar. A segunda é formal e diz respeito ao processo legislativo, na fase de votação. Enquanto o quorum para aprovação da lei ordinária é de maioria simples (art. 47), o quorum para aprovação da lei complementar é de maioria absoluta (art. 69) [...]. 154
Assim, uma lei ordinária que dispõe a respeito de matéria reservada à lei
complementar usurpa competência fixada na Constituição Federal, incidindo em
vício de inconstitucionalidade155.
Sobre as medidas provisórias diz-se que são atos originários do Chefe do
Executivo156. Não há dúvida de que estão sujeitas ao controle de constitucionalidade
tanto em relação a seus requisitos como quanto a seu conteúdo. 157 Cabe o controle
152 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI n. 829/DF. Relator Min. Moreira Alves. Julgamento em 14/04/1993. 153 Segundo a jurisprudência do STF tendo sido a norma revogada, o processo objetivo deve ser considerado prejudicado resultando na extinção do feito sem julgamento de mérito. 154 MORAES, Alexandre. Constituição do Brasil Interpretada. São Paulo: Atlas, 2002. p. 1170. 155 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI-MC n. 2.223/DF. Relator Min. Maurício Corrêa. Julgamento em 10/10/2002. 156 É possível conceituá-las como ato normativo com força de lei que pode ser editado pelo Presidente da República em caso de relevância e urgência, devendo ser submetida de imediato à deliberação do Congresso Nacional. São atos normativos de eficácia limitada, pois se perdem a eficácia, desde a edição, se não forem convertidas em lei no prazo de 60 dias, prorrogável por mais 60. Através do julgamento da ADI-QO n. 293, julgada em 06/05/1993, o Ministro Celso de Mello a conceituou como “A medida provisória constitui espécie normativa juridicamente instável. Esse ato estatal dispõe, em função das notas de transitoriedade e de precariedade que o qualificam, de eficácia temporal limitada, na medida em que, não convertido em lei, despoja-se, desde o momento de sua edição, da aptidão para inovar o ordenamento positivo.”. 157 BARROSO, Luís Roberto. Controle de constitucionalidade no direito brasilei ro. 2. ed.
62
político (abuso de legislar), excepcionalmente, para a análise de seus requisitos de
admissibilidade e, pertence ao STF a competência para julgá-las quanto a seu
conteúdo.
Vejamos o que Luís Roberto Barroso ensina sobre o tema:
No tocante aos requisitos de relevância e urgência, prevaleceu na jurisprudência so Supremo Tribunal Federal o entendimento de que o controle deve ser predominantemente político – e, ipsis facto, deve ser exercido pelo Presidente da República ao editar a medida e pelo Congresso Nacional ao apreciá-la 158 - e não judicial, salvo nas hipóteses de abuso de poder de legislar 159 ou da clara falta de razoabilidade da medida 160. 161
Importante frisar que o controle político encontra-se previsto no art. 62, § 8º,
da CF 162.
Na hipótese de sua conversão em lei, sem alteração pelo Poder Legislativo,
é permitido que o autor peça a extensão da ação à lei de conversão para que o STF
aprecie a inconstitucionalidade. A isto se dá o nome de aditamento da inicial 163. Mas,
caso a medida seja alterada materialmente em projeto de lei de conversão e haja a
sanção presidencial, haverá também novo material legislativo e o pedido de
São Paulo: Saraiva, 2007. p. 153. 158 Em princípio, a apreciação dos requisitos de relevância e urgência, por seu caráter político, fica por conta do Chefe do Poder Executivo e do Congresso Nacional. O STF somente tem reconhecido a possibilidade de controle judicial quando a ausência de tais requisitos possa ser evidenciada objetivamente, sem depender de uma avaliação discricionária. 159 Se a relevância ou a urgência evidenciarem-se improcedentes, o tribunal deverá decidir pela ilegitimidade da medida provisória. Terá ocorrido, em tal caso, excesso de poder de legislar. 160 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI-QO n. 1.753/DF. Relator Min. Sepúlveda Pertence. Julgamento em 17/09/1998. “Ação direta de inconstitucionalidade e reedição de medidas provisórias: evolução da jurisprudência: aditamento da petição inicial: pressuposto de identidade substancial das normas. A possibilidade do aditamento da ação direta de inconstitucionalidade de modo a que continue, contra a medida provisória reeditada, o processo instaurado contra a sua edição original, pressupõe necessariamente a identidade substancial de ambas: se a norma reeditada é, não apenas formal, mas também substancialmente distinta da originalmente impugnada, impõe-se a propositura de nova ação direta.” 161 BARROSO, Luís Roberto. Controle de constitucionalidade no direito brasilei ro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 153-154. 162 BRASIL. Constituição (1988). Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional. [...] § 8º As medidas provisórias terão sua votação iniciada na Câmara dos Deputados. 163 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI-QO n. 1.334/DF. Relator Min. Celso de Mello. Julgamento em 19/12/1995.
63
declaração de sua inconstitucionalidade deverá ser feito em nova ação direta 164.
Quanto à lei delegada, Clèmerson Merlin Clève leciona que pode incidir o
controle de constitucionalidade tanto sobre a lei delegante (resolução), quanto sobre
a lei delegada propriamente dita. Em relação à última, cabe ao STF conferir se os
limites fixados pela resolução não foram ultrapassados. E sobre a lei delegante,
verificar se preenche os requisitos exigidos pela Constituição em relação à forma e
às matérias suscetíveis de delegação. 165 Ressalta-se que tal espécie normativa,
atualmente, encontra-se em desuso. 166
Os Decretos Legislativos e as Resoluções veiculam atos privativos do
Congresso Nacional ou de cada uma de suas casas, tendo força de lei e, portanto,
sujeitando-se, formal e materialmente, ao controle de constitucionalidade.
Sobre o tema, Clèmerson Merlin Clève discorre que havendo veiculação por
parte dos decretos legislativos de
atos normativos, estão sujeitos à fiscalização abstrata da constitucionalidade. Portanto, as resoluções que veiculam os regimentos internos do Congresso Nacional (regimento comum), da Câmara dos Deputados e do Senado Federal (ou das Assembléias Legislativas estaduais) podem ser objeto de ação direta de inconstitucionalidade. O fato de constituírem atos interna corporis não é suficiente, neste caso, para torná-los imunes ao controle judicial. 167
O STF, através da ADI-MC n. 1.480/DF, de relatoria do Ministro Celso de
Mello, admitiu a fiscalização abstrata de decretos legislativos que sustaram atos
normativos do Poder Executivo, por exemplo, atos que incorporaram convenção
internacional ao direito positivo interno do Brasil.
A título exemplificativo, em relação às resoluções, cita-se que o Supremo
Tribunal Federal já considerou suscetível de controle abstrato Resolução da Câmara
164 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI-QO n. 258/DF. Relator Min. Aldir Passarinho. Julgamento em 26/04/1991. 165 CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata da constitucionalidade no D ireito Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. p. 200. 166 “Trata-se de espécie normativa marcada pelo desuso. A prática sistemática de delegações legislativas foi abandonada após 1962. Houve, porém, dois casos posteriores, ambos de 1992: a Lei Delegada nº 12, de 7 de agosto, que instituiu gratificação de atividade para os servidores militares federais das forças armadas; e a Lei Delegada nº 13, de 27 de agosto, que instituiu gratificações para servidores civis do Poder Executivo e reviu vantagens.” BARROSO, Luís Roberto. Controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 153. 167 CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata da constitucionalidade no D ireito Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. p. 206-207.
64
dos Deputados do Distrito Federal que instituiu plano de carreira168.
Os tratados e convenções internacionais, apesar de não figurarem
expressamente entre as espécies normativas do art. 59 da Constituição, são
admitidos no ordenamento jurídico brasileiro por atuação sucessiva do Poder
Legislativo (através de decreto legislativo) e do Poder Executivo (decreto de
execução). Por serem incorporados, em geral, com status de lei ordinária169 são
considerados sujeitos à supremacia da Constituição.
Gilmar Ferreira Mendes leciona a respeito do processo de promulgação
interna dos tratados e convenções internacionais, nos seguintes termos:
O Congresso Nacional aprova o tratado mediante a edição de decreto legislativo (CF, art, 49, I), ato que dispensa sanção ou promulgação por parte do Presidente da República. Tal como observado, o decreto legislativo contém a provação do Congresso Nacional ao tratado e simultaneamente a autorização para que o Presidente da República o ratifique em nome da República Federativa do Brasil. Esse ato não contém, todavia, uma ordem de execução do tratado no território nacional, uma vez que somente ao Presidente da República cabe decidir sobre sua ratificação. Com a promulgação do tratado por meio de decreto do Chefe do executivo, recebe aquele ato a ordem de execução passando, assim, a ser aplicado de forma geral e obrigatória.
Apesar da vigência dos tratados e convenções internacionais ser conferida
com a promulgação do decreto de execução, o questionamento acerca de sua (in)
constitucionalidade pode ser suscitado tanto em relação aos decretos legislativos de
aprovação e os decretos presidenciais de promulgação170. 171
Por fim, ressalta-se que por legislação estadual são compreendidas:
disposições das Constituições Estaduais; leis estaduais de qualquer espécie ou
168 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI-MC n. 806/DF. Relator Min. Carlos Velloso. Julgamento em 11/11/1993. 169 “Nos termos do art. 5º, § 3º, da CF, na versão da EC n. 45/2004 (reforma do Judiciário), “os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”. Independentemente de qualquer outra discussão sobre o tema, afigura-se inequívoco que o tratado de direitos humanos que vier a ser submetido a esse procedimento especial de aprovação configurará, para todos os efeitos, parâmetro de controle das normas infraconstitucionais”. VELOSO, Zeno. Controle Jurisdicional de Constitucionalidade . 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 379. 170 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI-MC n. 1.480/DF. Relator Min. Celso de Mello. Julgamento em 04/09/1997. 171 BARROSO, Luís Roberto. Controle de constitucionalidade no direito brasilei ro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 157.
65
natureza, independente de seu conteúdo; leis estaduais editadas para regulamentar
matéria de competência exclusiva da União; decretos autônomos; regimentos
internos dos Tribunais Estaduais e das Assembléias Legislativas; e, atos normativos
expedidos por pessoas jurídicas de direito público estadual. Essas leis estaduais são
igualmente passíveis de fiscalização abstrata perante o STF (exclusivamente através
de ADI) 172, não sendo possível a interposição de ação declaratória de
constitucionalidade, uma vez que seu objeto está circunscrito em leis e atos
normativos federais.
A partir deste ponto, torna-se oportuno mencionar que existem no
ordenamento jurídico brasileiro atos legislativos dotados de normatividade, mas que
a jurisprudência do STF não os reconhece como suscetíveis de exame em sede de
ação direta de inconstitucionalidade.
Atos editados por municípios, por exemplo, somente poderão ser
impugnáveis por meio de ação direta no plano estadual, perante Tribunal de Justiça
local, em face da Constituição Estadual, desde que esta, para tanto, contenha a
previsão autorizativa. Da mesma forma, os atos estaduais, quando contrariarem
dispositivo da Constituição local, poderão ser questionados perante o Tribunal de
Justiça.
Sobre a legislação municipal, ressalta-se a possibilidade de impetrar recurso
extraordinário perante o STF, caso haja contrariedade à disposição da Constituição
Estadual de reprodução da Constituição Federal. Segue entendimento a respeito do
assunto:
Reclamação com fundamento na preservação da competência do Supremo Tribunal Federal. Ação direta de inconstitucionalidade proposta perante Tribunal de Justiça na qual se impugna Lei municipal sob a alegação de ofensa a dispositivos constitucionais estaduais que reproduzem dispositivos constitucionais federais de observancia obrigatoria pelos Estados. Eficacia jurídica desses dispositivos constitucionais estaduais. Jurisdição constitucional dos Estados-membros. - Admissão da propositura da ação direta de inconstitucionalidade perante o Tribunal de Justiça local, com possibilidade de recurso extraordinário se a interp retação da norma constitucional estadual, que reproduz a norma constitucional federal de observancia obrigatoria p elos Estados, contrariar o sentido e o alcance desta. Reclamação conhecida,
172 MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de Constitucionalidade. in MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 1059.
66
mas julgada improcedente. 173 [grifou-se] Importante salientar que a partir do advento da Lei n. 9.882/99, tornou-se
possível o controle concentrado de lei municipal ante a Constituição Federal, através
da ação de argüição de descumprimento de preceito fundamental.
Luís Roberto Barroso, acerca do assunto, leciona:
[...] até a edição da Lei n. 9.882/99, o direito municipal somente comportava o controle incidental ou difuso de constitucionalidade, salvo hipótese de representação de inconstitucionalidade em âmbito estadual, por contraste com a Constituição do Estado-membro. Já agora, se a norma municipal envolver ameaça ou lesão a preceito fundamental ou houver controvérsia constitucional relevante quanto a sua aplicação, sujeitar-se-á ao controle abstrato e concentrado do Supremo Tribunal Federal, mediante ADPF. Também por aplicação da regra da subsidiariedade, será cabível, em tese, a argüição de descumprimento de preceito fundamental tendo por objeto o reconhecimento da constitucionalidade de lei ou ato normativo estadual ou municipal. É que, como assinalado, a ação declaratória de constitucionalidade somente poderá ter por objeto lei ou ato normativo federal, havendo espaço, portanto, para a arg6uição, sem que haja superposição. 174
Seguindo a linha jurisprudencial do STF, da mesma forma também não são
admitidos como possíveis de controle concentrado as chamadas normas “pré-
constitucionais”, ou seja, aquelas editadas antes da entrada em vigor da
Constituição de 1988 e que por esta razão apresentam incompatibilidade com a
normatividade fundada por ela. 175 Bem como quando o fundamento constitucional
invocado como parâmetro de controle houver sido substancialmente alterado por
Emenda Constitucional superveniente.
Desta forma, tem o Supremo Tribunal Federal consagrado a tese de
revogação tácita ou não recepção dessas normas, em oposição à tese da
inconstitucionalidade superveniente.
Por conseguinte, as normas anteriores à Carta de 1988, que apresentem
qualquer tipo de incompatibilidade material com esta, não serão apreciadas em sede
de ação direta, pois como não teriam sido recepcionadas pela nova ordem jurídica,
estariam, automaticamente, revogadas. A tese da revogação se deve ao princípio da
173 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Rcl n. 383/DF. Relator Min. Paulo Brossard. Julgamento em 18/08/1994. 174 BARROSO, Luís Roberto. Controle de constitucionalidade no direito brasilei ro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 264-265. 175 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI n. 3.189/AL. Relator Min. Celso de Mello. Julgamento em 13/12/2006.
67
lex posterior derrogat priori, ou seja, entre duas normas incompatíveis, prevalece a
norma posterior. 176
Convém ressaltar que se a lei anterior for materialmente compatível com a
Constituição Federal, ainda se com ela mostrar incompatibilidade formal, será
considerada plenamente válida. Como é a situação, por exemplo, do Código
Tributário Nacional (CTN) que na época de sua aprovação não obedeceu ao quorum
de lei complementar (maioria absoluta) exigível a partir da Constituição de 1988.
Assim, promulgada a nova Constituição, passou a ser lei formalmente
inconstitucional, pois não se apresentava em harmonia com o novo processo
legislativo. No caso do CTN, o STF decidiu que sendo a lei materialmente
constitucional, poderia ser recepcionada pelo novo ordenamento jurídico como se lei
complementar fosse.
Assim, para se falar em não-recepção ou revogação de lei anterior à nova
ordem jurídica constitucional, a norma deve ser apresentar incompatibilidade
material com a Constituição Federal.
Sobre o tema, Luís Roberto Barroso, leciona:
[...] ocorrendo incompatibilidade entre ato normativo infraconstitucional e a Constituição superveniente, fica ele revogado, não havendo sentido em buscar, por via de controle abstrato, paralisar a eficácia de norma que já não integra validamente o ordenamento. A eventual contrariedade entre a norma anterior e a Constituição posterior somente poderá ser reconhecida incidentalmente, em controle concreto de constitucionalidade. 177
A controvérsia entre a revogação e declaração de inconstitucionalidade
superveniente foi suscitada na ADI n. 2/DF, de relatoria do Ministro Paulo Brossard.
Na oportunidade, o Ministro Sepúlveda Pertence argumentou em favor da revisão da
jurisprudência há muito consolidada pelo STF, sustentando a aplicação do princípio
da supremacia da Constituição também à lei pré-constitucional, argumento este
rejeitado pela maioria. 178
Ives Gandra da Silva Martins e Gilmar Ferreira Mendes, sobre a mencionada 176 MARTINS, Ives Gandra da Silva; MENDES, Gilmar Ferreira. Controle concentrado de constitucionalidade: comentários à Lei n. 9.868, de 10-11-1999. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 185. 177 BARROSO, Luís Roberto. Controle de constitucionalidade no direito brasilei ro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 158-159. 178 MARTINS, Ives Gandra da Silva; MENDES, Gilmar Ferreira. Controle concentrado de constitucionalidade: comentários à Lei n. 9.868, de 10-11-1999. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 185-186.
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ação direta, lecionam:
Não se deve olvidar, outrossim, tal como enfatizado por Sepúlveda Pertence, que o debate sobre a inconstitucionalidade ou revogação do direito pré-constitucional em face do direito constitucional superveniente está imantado por uma opção político-constitucional e pragmática, que, diante da inequívoca razoabilidade das orientações, faz prevalecer uma das duas posições ou, ainda, permite desenvolver fórmulas de compromisso, com vista à preservação de competência da jurisdição ordinária para conhecer de questões nos sistemas de controle concentrado.179
Faz-se necessário destacar que através da Lei n. 9.882/99, que instaurou o
modo de processar e julgar a ADPF, ação que também pertence ao controle
abstrato, surgiu possibilidade de questionar perante o STF as normas de direito pré-
constitucional. 180
Os projetos de lei e as propostas de emendas constitucionais também não
estão sujeitas ao controle concentrado via ação direta. Isto porque o direito brasileiro
não admite o controle abstrato jurisdicional preventivo, ou seja, não é possível
fiscalizar ato normativo que ainda esteja em fase de formação ou tramitação.
Segue trecho de manifestação da Suprema Corte a respeito do tema:
[...] O direito constitucional positivo brasileiro, ao longo de sua evolução histórica, jamais autorizou - como a nova Constituição promulgada em 1988 também não o admite - o sistema de controle jurisdicional preventivo de constitucionalidade, em abstrato. Inexiste, desse modo, em nosso sistema jurídico, a possibilidade de fiscalização abstrata preventiva da legitimidade constitucional de meras proposições normativas pelo Supremo Tribunal Federal. Atos normativos "in fieri", ainda em fase de formação, com tramitação procedimental não concluída, não ensejam e nem dão margem ao
179 MARTINS, Ives Gandra da Silva; MENDES, Gilmar Ferreira. Controle concentrado de constitucionalidade: comentários à Lei n. 9.868, de 10-11-1999. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 187. 180 “A questão ganhou, porém, novos contornos com a aprovação da Lei nº 9.882/99, que disciplina a argüição de descumprimento de preceito fundamental e estabelece, expressamente, a possibilidade de exame da compatibilidade do direito pré-constitucional com norma da Constituição Federal. Assim, toda vez que se configurar controvérsia relevante sobre a legitimidade do direito federal, estadual ou municipal, anteriores à Constituição em face de preceito fundamental da Constituição, poderá qualquer dos legitimados para a proposição de ação direta de inconstitucionalidade propor argüição de descumprimento. Também essa solução vem colmatar uma lacuna importante no sistema constitucional brasileiro, permitindo que controvérsias relevantes afetas ao direito pré-constitucional sejam solvidas pelo STF com eficácia geral e efeito vinculante no âmbito de um processo objetivo”. MENDES, Gilmar Ferreira. Argüição de descumprimento de preceito fundamental: comentários à Lei n. 9.882, de 3.12.1999. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 67.
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controle concentrado ou em tese de constitucionalidade, que supõe - ressalvadas as situações configuradoras de omissão juridicamente relevante - a existência de espécies normativas definitivas, perfeitas e acabadas. [...] A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem refletido claramente essa posição em tema de controle normativo abstrato, exigindo, nos termos do que prescreve o próprio texto constitucional - e ressalvada a hipótese de inconstitucionalidade por omissão - que a ação direta tenha, e só possa ter, como objeto juridicamente idôneo, apenas leis e atos normativos, federais ou estaduais, já promulgados, editados e publicados.[...] 181
Frise-se que, nestes casos, há possibilidade de controle jurisdicional
preventivo, pela via mandamental, conforme Ricardo Cunha Chimenti leciona:
Excepcionalmente admite-se que parlamentar envolvido no processo legislativo (mas não qualquer cidadão) impetre mandado de segurança contra proposta de emenda à Constituição que extrapole os limites do Poder Derivado ou contra projeto de lei que viole as regras constitucionais do processo legislativo (STF, RDA, 183/158, e MS 24.041). 182
Feitas as considerações pertinentes aos atos legislativos primários dotados
de normatividade, convém enfatizar que há no ordenamento jurídico brasileiro atos
que, não obstante serem primários não são revestidos dos elementos da
generalidade e abstração. Tais atos, chamados de “atos de efeitos concretos” ou
“leis meramente formais”, constituirão objeto específico do próximo capítulo.
2.4.2 Atos normativos secundários “autônomos”
Como já mencionado, os atos normativos secundários não estão sujeitos ao
controle concentrado através de ação direta de inconstitucionalidade. São exemplos
desses atos: decretos regulamentares, resoluções de órgãos do Executivo e
portarias.
Isto ocorre, pois tais normas estão subordinadas à lei e não diretamente à
Constituição, como acontece com os atos normativos primários. Decorrente deste
entendimento, para fins de instauração de controle abstrato de constitucionalidade,
181 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI n. 466/DF. Relator Min. Celso de Mello. Julgamento em 03/04/1991. 182 CHIMENTI, Ricardo Cunha et al. Curso de direito constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 402.
70
não há que se falar em inconstitucionalidade e sim em ilegalidade, como já visto em
item anterior.
Porém, existem atos normativos secundários que se sujeitam ao controle
abstrato de constitucionalidade. Podem-se citar como exemplo os decretos
autônomos, prescritos no art. 84, VI, da Constituição Federal183, os regimentos
internos dos Tribunais, bem como os atos normativos por eles confeccionados.
Sobre o tema, Luís Roberto Barroso, leciona:
[...] os atos normativos que, ostentando embora o nome e a roupagem formal de ato secundário, na verdade pretendem inovar autonomamente na ordem jurídica atuando com força de lei. Neste caso, poderão ser objeto de controle abstrato, notadamente para aferir violação ao princípio da reserva legal. 184
José Afonso da Silva, ao tratar de atos com força lei, assim os denomina:
A “força da lei” de um ato consiste na sua idoneidade para introduzir no ordenamento jurídico normas que tenham a capacidade d criar direito novo e impor obrigações; inova, como a lei, o ordenamento jurídico. Assim, um ato com força de lei é ato que, não provindo do Poder Legislativo, discipline assunto de competência da lei, criando direito ou impondo obrigações. 185
Na mesma seara, Gilmar Ferreira Mendes:
Os atos normativos editados por pessoas jurídicas de direito público criadas pela União, bem como os regimentos dos Tribunais Superiores, podem ser objeto do controle abstrato de normas se configurado seu caráter autônomo e não meramente ancilar.186
Torna-se pertinente, neste momento, mencionar decisão do STF onde é
discutida a (in) constitucionalidade do Decreto n. 25.793/99, do Estado Rio de
Janeiro, que autoriza a LOTERJ a distribuir prêmios relativos ao sorteio de bingos.
183 BRASIL. Constituição (1988). Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: [...] VI - dispor, mediante decreto, sobre: a) organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos; b) extinção de funções ou cargos públicos, quando vagos. 184 BARROSO, Luís Roberto. Controle de constitucionalidade no direito brasilei ro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 155. 185 SILVA, Jose Afonso da. Processo constitucional de formação das leis. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 36-37. 186 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 1059.
71
Nesta hipótese foi aceito o diploma estadual como ato normativo e o mesmo foi
analisado em sede de ação direta. 187
Sobre a possibilidade de análise de resoluções de órgãos do Poder
Executivo em sede de controle abstrato, o STF também já teve oportunidade de se
manifestar pela procedência de ação que suscitasse tal questão. Vejamos:
[...] A Resolução n. 07/05 do CNJ reveste-se dos atributos da generalidade (os dispositivos dela constantes veiculam normas proibitivas de ações administrativas de logo padronizadas), impessoalidade (ausência de indicação nominal ou patronímica de quem quer que seja) e abstratividade (trata-se de um modelo normativo com âmbito temporal de vigência em aberto, pois claramente vocacionado para renovar de forma contínua o liame que prende suas hipóteses de incidência aos respectivos mandamentos). A Resolução nº 07/05 se dota, ainda, de caráter normativo primário, dado que arranca diretamente do § 4º do art. 103-B da Carta-cidadã e tem como finalidade debulhar os próprios conteúdos lógicos dos princípios constitucionais de centrada regência de toda a atividade administrativa do Estado, especialmente o da impessoalidade, o da eficiência, o da igualdade e o da moralidade. 188
Faz-se uma ressalva em relação ao tema: as resoluções de que trata o art.
59 da Constituição Federal dizem respeito a resoluções veiculadas pelo Congresso
Nacional, que são atos primários decorrentes do exercício de atribuições privativas
do Congresso Nacional e de suas respectivas casas. Por conseguinte, tais normas
em nada se assemelham com as resoluções de órgãos do Poder Executivo, que
podem ser ditas normas secundárias, uma vez que não foram editadas pelo
Legislativo.
Outro ato normativo secundário que o STF admitiu exame em ação direta de
inconstitucionalidade e, possui destaque dentre os registros da Suprema Corte, diz
respeito a parecer exarado pela Consultoria-Geral da República, que tratava da
questão do tabelamento dos juros em 12% previsto pelo atualmente revogado189 § 3º
art. 192, da Constituição Federal. 190
187 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI-AgR n. 2.950/RJ. Relator Min. Marco Aurélio. Julgamento em 06/10/2004. 188 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADC n. 12/DF. Relator Min. Carlos Britto. Julgamento em 16/02/2006. 189 Revogado pela Emenda Constitucional n. 40, de 29 de maio de 2003. 190 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI n. 4/DF. Relator Min. Sydney Sanches. Julgamento em 07/03/1991.
72
3 MUDANÇA JURISPRUDENCIAL DO SUPREMO TRIBUNAL
FEDERAL
Este capítulo tratará dos termos e condições que fez com que o Supremo
Tribunal Federal mudasse seu entendimento a respeito da possibilidade de submeter
as chamadas leis primárias de “efeitos concretos” ao controle abstrato de
constitucionalidade por via de ação direta.
Será apresentado entendimento a respeito das leis meramente formais,
abordadas as duas críticas doutrinárias mais fortes que são dos autores Gilmar
Ferreira Mendes e Clèmerson Merlim Clève, bem como as conseqüências práticas
de não exercer o controle abstrato sob essas leis.
Da jurisprudência do STF serão abordadas as três fases de sua evolução. A
primeira é vista quando se excluem do conceito de efeitos concretos as normas que
apresentam destinatários determináveis, gerando discussão em torno do termo
“determinabilidade dos destinatários”. Na segunda fase há exceção à regra de
impossibilidade de controle, determinada na ADI-MC n. 2.925/DF que admite o
controle quando tais normas contiverem “contornos abstratos e autônomos”.
E, por fim, será realizada a análise da ADI-MC n. 4.048/DF do STF, através
da qual, por maioria, a ação direta foi conhecida, mudando significativamente o
posicionamento do STF, que reafirmados os termos do voto do Relator passará a
admitir o controle de “leis de efeitos concretos” através de fiscalização abstrata de
constitucionalidade.
3.1 ATOS LEGISLATIVOS PRIMÁRIOS DESPOJADOS DE NORMATIVIDADE:
LEIS MERAMENTE FORMAIS OU DE EFEITOS CONCRETOS
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal vinha sistematicamente se
posicionando contra a possibilidade de propositura de ação direta de
inconstitucionalidade para impugnar leis de efeitos concretos, também chamadas de
73
leis meramente formais. 191
Mas o que é uma lei meramente formal ou de efeitos concretos?
A expressão “ato normativo de efeito concreto” é comumente referida
àqueles atos dotados de aparência legal, mas que são desprovidos dos requisitos de
generalidade e abstração. Zeno Veloso o conceitua como “leis no sentido apenas
formal, mas cujo conteúdo encerra preceito que tem objeto determinado e
destinatários certos (‘leis casuísticas’)” 192.
Assim, podem ter essas denominações aquelas normas que contenham
somente a forma de lei, mas seu conteúdo apresenta-se materialmente concreto.
Isto que dizer que os requisitos de generalidade e abstração, definidos no segundo
capítulo e importantes para identificar uma lei em sentido estrito e, ainda o requisito
de que tenha destinatários certos (impessoalidade), não se fazem presentes.
Luís Roberto Barroso leciona que
[...] por vezes, sob a roupagem formal de uma lei, são editadas medidas materialmente administrativas, com objeto determinado e destinatários certos. Esses atos de efeito concreto, despojados de coeficiente de normatividade ou de generalidade abstrata, não são passíveis de controle abstrato e concentrado de constitucionalidade. 193
Os atos meramente formais não cuidam de uma situação abstrata, logo, não
contêm em seu texto nenhuma normatividade ou generalidade por terem sido
editados para o fim de regular uma situação particular, individualizada.
Sobre a identificação se um ato normativo é ou não de efeito concreto,
Clèmerson Merlin Clève ensina que “se o ato normativo é genérico, não importa de
onde provenha então a doutrina vai identificá-lo como lei material. Se, ao contrário, o
ato legislativo contiver preceitos concretos, então a doutrina vai chamá-lo de lei
meramente formal”. 194
191 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI-MC n. 50/DF. Relator Min. Octavio Gallotti. Julgamento em 24/05/1989; ADI-MC n. 2.484/DF. Relator Min. Carlos Velloso. Julgamento em 19/12/2001; ADI-MC n. 3.652/RR. Relator Min. Sepúlveda Pertence. Julgamento em 19/12/2006. 192 VELOSO, Zeno. Controle Jurisdicional de Constitucionalidade . 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 109. 193 BARROSO, Luís Roberto. Controle de constitucionalidade no direito brasilei ro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 158. 194 CLÈVE, Clèmerson Merlin. Fiscalização abstrata da constitucionalidade no dir eito brasileiro. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. p. 189-190.
74
Diz-se, então, que as leis meramente formais apresentam aparência de ato
normativo, mas com objeto e destinatários especificados, sendo entendidas por
muitos autores como atos puramente administrativos. 195
Da casuística do STF196 podem ser colhidas as seguintes situações nas
quais não foi reconhecida a admissibilidade de atos primários por intermédio do
controle abstrato:
• Dispositivos de leis orçamentárias e lei de diretri zes orçamentárias:
a) ADI-MC n. 2.484/DF que questionava a Lei n. 10.266/2001, por se tratar de lei de
diretrizes orçamentárias, que tem objeto determinado e destinatários certos, sendo
assim sem generalidade abstrata e considerada lei de efeitos concretos. Desta
forma, não fica a norma sujeita à fiscalização jurisdicional no controle concentrado e
a ação não é conhecida 197; b) ADI-MC n. 2.100/RS que não conheceu a
impugnação da Lei n. 11.324/99, do Estado do Rio Grande do Sul, que define as
diretrizes orçamentárias, a qual estabeleceu vinculação de receita a um percentual
de 2,5 da despesa total na função agricultura, excetuando as despesas com pessoal
e inativo 198;
• Dispositivos que tratam de situações inerentes a se rvidores
públicos: a) ADI-MC n. 769/MA que questionou o Decreto Legislativo n. 170/92 e a
Resolução Administrativa n. 186/92, da Assembléia Legislativa do Estado do
Maranhão, que tratam da remuneração dos deputados estaduais, dispondo sobre a
revogação da vinculação do reajuste dos vencimentos a data e ao percentual do
reajustamento dos salários dos servidores do estado 199; b) ADI-MC-QO n. 1.937/PI
que não conheceu impugnação de Decreto Legislativo editado pela Assembléia
Legislativa do Estado do Piauí que impunha reintegração de servidores, que teriam
aderido ao Programa de Incentivo ao Desligamento Voluntário do Servidor Público
Estadual (Lei Estadual n. 4.865/96) 200;
195 CLÈVE, Clèmerson Merlin. Fiscalização abstrata da constitucionalidade no dir eito brasileiro. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. p. 191. 196 Estes exemplos foram colhidos de Uadi Lammêgo Bulos, Gilmar Ferreira Mendes e de pesquisa feita diretamente no site de jurisprudências do STF. 197 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI-MC n. 2.484/DF. Relator Min. Carlos Velloso. Julgamento em 19/12/2001. 198 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI-MC n. 2.100/RS. Relator Min. Carlos Velloso. Julgamento em 19/12/2001. 199 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI-MC n. 769/MA. Relator Min. Celso de Mello. Julgamento em 22/04/1993. 200 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI-MC-QO n. 1.937/PI. Relator Min. Sepúlveda
75
• Dispositivos que tratam sobre o funcionamento de em presas
públicas: a) ADI n. 1.827/SP que questionava Resolução da Agência Nacional de
Energia Elétrica (ANEEL), submetida à apreciação de ação direta por alegação de
contrariedade ao art. 175, da Constituição Federal ao efetuar a delegação de
concessão ou permissão de serviços públicos, sem obedecer ao princípio da
licitação a que está sujeita a Administração Pública. Tal norma refere-se,
especificamente, a uma empresa, não sendo caracterizada disposição de caráter
geral, abstrato e imperativo e, portanto, não apresentando condições de ser objeto
de ação direta de inconstitucionalidade 201; b) ADI n. 3.573/DF que não conheceu
impugnação do Decreto Legislativo n. 788/2005, do Congresso Nacional, que
conferiu autorização ao Poder Executivo para implementar o aproveitamento
hidroelétrico Belo Monte no trecho do Rio Xingu, localizado no Estado do Pará 202;
• Atos que consagram doações de bens públicos a entid ades
privadas: a) ADI n. 643/SP que não conheceu a impugnação da Lei n. 7.210/91, do
Estado de São Paulo que realizou doação de bens inservíveis e/ou excedentes a
entidade de direito privado203.
Os exemplos citados são normas desprovidas de generalidade e abstração
por conterem destinatários certos e individualizados. Nestes termos, o caso de uma
lei ordinária que autoriza a criação de uma sociedade de economia mista ou de uma
empresa pública também se encontra em flagrante ofensa à Constituição, porém,
não pode ser apreciada por intermédio de uma ação direta de inconstitucionalidade 204.
Vale ressaltar que a importância do controle abstrato de constitucionalidade
encontra-se no fato de este ser “um processo que visa, sobretudo, a defesa da
Constituição e da legalidade democrática através da eliminação de atos normativos
contrários à Constituição” 205. Portanto, com a promulgação de uma lei de efeitos
Pertende. Julgamento em 20/06/2007. 201 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI n. 1.827/SP. Relator Min. Néri da Silveira. Julgamento em 13/05/1998. 202 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI n. 3.573/DF. Relator Min. Carlos Britto. Julgamento em 01/12/2005. 203 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI n. 643/SP. Relator Min. Celso de Mello. Julgamento em 19/12/2001. 204 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI-MC n. 1.789/DF. Relator Min. Néri da Silveira. Julgamento em 16/04/1998. 205 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 793.
76
concretos, esta ofensa à Constituição, mesmo perpetrada por atuação conjunta dos
Poderes Executivo e Legislativo, só poderia ser submetida a controle jurisdicional
por meio do controle incidental ou difuso.
Assim, vê-se que não há consenso em torno da identificação das hipóteses
que podem ser subsumidas ao conceito de leis de efeitos concretos, razão que faz
com que o posicionamento do STF cause signficativas objeções entre os
doutrinadores, sendo suas críticas objeto do item que segue.
3.2 CRÍTICA DOUTRINÁRIA
Ao não admitir a análise das leis meramente formais via ação direta de
inconstitucionalidade o STF provoca discussões entre doutrinadores, dividindo
opiniões acerca da matéria.
A imensa maioria dos autores pesquisados limita-se a descrever/mencionar
que são excluídas do controle abstrato tais normas tendo em vista a jurisprudência
do STF, sem fazer uma análise crítica sobre esta postura. 206 Porém, dois
doutrinadores se destacam ao lecionar sobre a admissibilidade de julgamento de
atos de efeitos concretos ou leis meramente formais através do controle abstrato de
constitucionalidade via ação direta. São eles: Clèmerson Merlin Clève e Gilmar
Ferreira Mendes.
Entendem tais autores que a jurisprudência do STF merece análise
minuciosa no que diz respeito às leis formais com efeitos concretos, pois acaba
deixando de fora da fiscalização abstrata um grande número de leis, aduzindo, para
além deste argumento pragmático, fundamentação teórica decorrente, como segue.
206 LENZA, Pedro. Direito Constitucional esquematizado . São Paulo: Método, 2006. p. 123; MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 22. ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 723; MEDINA, Paulo Roberto de Gouvêa. Direito Processual Constitucional. 3. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 77; DUTRA, Carlos Roberto de Alckmin. O controle estadual de constitucionalidade de leis e atos normativos. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 114.
77
3.2.1 Controle das leis de efeito concreto e das no rmas de estrutura
O debate em torno da legitimidade da recusa por parte do STF de analisar a
(in) constitucionalidade destas espécies de atos normativos, em sede abstrata, e a
discussão em torno do alcance desta restrição são objeto de divergência doutrinária,
como já dito.
Clèmerson Merlin Clève defende ser incoerente o posicionamento que exige
a demonstração de pressupostos de abstração e generalidade a todas as espécies
de atos normativos, quando, pela sua natureza, estes requisitos só poderiam ser
exigíveis de normas de conduta, não aplicáveis às normas de estrutura.
Da leitura de sua obra nota-se que normas de estrutura podem ser
entendidas como aquelas que não geram violações a interesses subjetivos e, por
outro lado, produzem importante impacto. Como é o caso de leis que tratam de
assuntos relacionados diretamente à organização e composição do Estado. Por
outro lado, normas de condutas são aquelas que impõem obrigações, faculdades ou
vedações aos indivíduos em geral, ou seja, são aquelas que tratam de determinado
assunto de maneira genérica, em favor (ou não) da sociedade como um todo.
Ao citar as palavras de Rodrigo Lopes Lourenço, Clève complementa seu
raciocínio:
“[...] Assim, quando o Direito impõe comportamentos a um número indeterminado de pessoas, abarcando os mais variados procedimentos, verificam-se os requisitos de generalidade e abstração, os quais, somados ao de imperatividade, permitem reconhecer que se trata de um ato normativo. Por outro lado, quando o Direito fixa a competência dos vários órgãos do Estado, inclusive regulando-lhes a criação, tais atos jurídicos, nada obstante serem, aparentemente, individuais e concretos, trazem tamanhas conseqüências ao ordenamento jurídico, pela sucessão de efeitos que produzem [...]”, que não podem deixar de ser considerados leis, para o efeito de controle abstrato. 207
Outrossim, Clève reconhece que a própria jurisprudência do STF não
mantém coerência interna, reforçando a necessidade de revisão do seu
posicionamento no que diz respeito à análise das leis formais com efeitos concretos.
207 LOURENÇO, Rodrigo Lopes. Controle de constitucionalidade à luz da jurisprudência do STF. Rio de Janeiro, Forense, 1998. p. 65. apud CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata da constitucionalidade no Dir eito Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 193.
78
Esta incoerência evidencia-se quando o STF não admite apreciação de dispositivo
de lei orçamentária, que fixa determinada dotação e, em contrapartida, admite lei
que cria Município, muito embora, esta última seja considerada típica lei de efeito
concreto. Assim, em razão desta discrepância no entendimento do STF, reclama o
autor que a crítica doutrinária é absolutamente pertinente. 208
3.2.2 “Abstrato é o controle e não o objeto”
Defende Gilmar Ferreira Mendes que não há razão lógica ou jurídica que
justifique a resistência do STF em admitir o controle de leis formais no controle
abstrato, pois abstrato (sem relação com um caso concreto), deveria ser o processo
destinado a verificar a (in) constitucionalidade, e não o ato legislativo oferecido ao
exame do controle de constitucionalidade. 209
O autor leciona que os atos editados sob forma de lei decorrem ou da
vontade do legislador ou do desejo do constituinte, que exige que alguns atos,
mesmo considerados de efeito concreto, sejam assim editados, como é o caso da lei
orçamentária. 210
Por essa razão, ensina Mendes, que
[...] se a Constituição submete a lei ao processo de controle abstrato, até por ser este o meio próprio de inovação na ordem jurídica e o instrumento adequado de concretização da ordem constitucional, não parece admissível que o intérprete debilite esta garantia da Constituição, isentando um número elevado de atos aprovados sob a forma de lei do controle abstrato de normas e, muito provavelmente, de qualquer forma de controle. É que muitos desses atos, por não envolverem situações subjetivas, dificilmente poderão ser submetidos a um controle de legitimidade no âmbito da jurisdição ordinária. 211
208 CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata da constitucionalidade no D ireito Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 193-195. 209 MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de Constitucionalidade. in MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 1062. 210 MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de Constitucionalidade. in MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 1061. 211 MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de Constitucionalidade. in MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito
79
Discorre ainda, citando José Joaquim Gomes Canotilho, que os estudos em
teoria do direito figuram ser possível a formulação de lei de efeito concreto – lei
casuística – de forma genérica e abstrata e também, admitem a apresentação de lei
de efeito concreto que abrange um complexo mais ou menos amplo de situações. 212
Esta possibilidade torna difícil (e inócua) a diferenciação que pretende estabelecer o
STF em relação à subtração de sua jurisdição concentrada à apreciação de leis de
efeitos concretos.
Por todas as razões, argumentos e considerações expostos, Gilmar Ferreira
Mendes considera que a jurisprudência do STF não andou bem ao excluir do
controle abstrato de normas as leis de efeito concreto. 213
3.2.3 Argumento pragmático
Ao enunciarem os argumentos anteriormente apresentados, tais autores
freqüentemente transitaram de argumentos teóricos para argumentos pragmáticos a
fim de justificar seus posicionamentos. Ambos coincidem ao afirmar que o
posicionamento consolidado do STF acaba por excluir, na prática, o próprio controle
jurisdicional dos atos de efeitos concretos.
Neste momento, revela-se importante expor entendimento de Gilmar Ferreira
Mendes. O autor faz referência à insegurança jurídica que a jurisprudência
desenvolvida pelo STF sobre esses atos causa, pois coloca a salvo do controle
concentrado/abstrato de constitucionalidade um sem-número de leis. 214
Por outro lado, Clèmerson Merlin Clève ressalta que a jurisprudência do STF
merece reparos no tocante às leis de efeitos concretos, pois afirma que dispositivo
Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 1061-1062. 212 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 5. ed. Coimbra: Almedina, 1992. p. 625-626. apud MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 1062. 213 MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de Constitucionalidade. in MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 1062. 214 MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de Constitucionalidade. in MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 1061.
80
de lei orçamentária configura ato de efeito concreto, e ao mesmo tempo admite o
controle de leis estaduais que criam Município, muito embora também sejam leis de
efeitos concretos. Assim, o autor completa termina mencionando que
[...] No pertinente à criação de Municípios, a orientação jurisprudencial não causaria maiores prejuízos à ordem jurídica, eis que se afigura viável o manejo de outras vias processuais para a tutela de eventual interesse subjetivo ou, mesmo, para a defesa da ordem constitucional objetiva. Entretanto, em relação às disposições integrantes de lei orçamentária, a impossibilidade de controle em sede de processo objetivo praticamente esgota a viabilidade de contraste de suas disposições. 215
De acordo com o entendimento majoritário do STF, não obstante a
gravidade da ofensa à ordem constitucional, a questão em torno das leis de efeitos
concretos somente poderia ser suscitada através de ação popular, ação civil pública,
ou ainda, mandado de segurança. Esta restrição, acrescida das regras relativas à
legitimidade processual, próprias do direito objetivo, muito freqüentemente podem
consolidar-se sem o efetivo controle jurisdicional.
3.3 EVOLUÇÃO JURISPRUDENCIAL DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL:
AMPLIAÇÃO DO CONTROLE DE LEIS DE EFEITOS CONCRETOS
A partir das discussões doutrinárias acerca da matéria, é possível detectar,
por parte do STF, um processo de paulatina revisão do seu posicionamento de não
admitir o controle de leis meramente formais.
Inicialmente não era admitido o exame de qualquer lei que fosse
considerada de efeito concreto. Porém, após análises e controvérsias sobre o tema,
o STF fez surgir um elemento que ampliou a quantidade de atos que podem ser
submetidos à sua apreciação via ação direta, o elemento que a classificava como
“norma com destinatários determináveis”.
Em seguida, através do julgamento da ADI n. 2.925/DF, novamente o STF
reviu seu posicionamento e julgou em sede de ação direta lei tipicamente de efeito
concreto, ou seja, lei orçamentária, entendendo que tal norma tinha o que ele 215 CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata da constitucionalidade no D ireito Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 193.
81
chamava de “contornos abstratos e autônomos”. Assim, nesta ocasião, o debate
acabou por alargar ainda mais as chances de admissibilidade de leis de efeitos
concretos em sede de fiscalização abstrata.
Estes movimentos anteciparam o pronunciamento do Supremo Tribunal
Federal na ADI-MC n. 4.048/DF que será objeto de item próprio (3.4).
3.3.1 O controle de leis com destinatários determin áveis
Com base em pesquisa jurisprudencial no site do STF, contata-se que o
primeiro acórdão que tratou sobre a determinabilidade dos destinatários diz respeito
ao julgamento da ADI-MC n. 2.137/RJ, de relatoria do Ministro Sepúlveda Pertence,
na data de 12/05/2000. Sendo assim, tal acórdão pode ser tido como um marco na
evolução do STF sobre o assunto.
A partir deste entendimento, o STF, então, apesar de continuar adotando o
posicionamento de que não há possibilidade de controle abstrato via ação direta das
leis de efeitos concretos, enxugou o número de leis que ficavam à salvo deste
controle, ou seja, expandiu de maneira significativa o número de normas que
poderiam ser submetidas ao exame, excluindo do conceito geral de norma de efeito
concreto, aquelas que tratam de destinatários determináveis.
O critério antes utilizado para identificar leis meramente formais era o da
impessoalidade, mas, para que seja desconsiderado faz-se necessária a
identificação exata dos destinatários do ato normativo, havendo, portanto, a
individualização de pessoas e, sendo definido um número de destinatários. Porém,
este critério já não se apresenta muito preciso, pois tais dispositivos servem para
regular situações jurídicas já consolidadas e, portanto, sem a necessária
permanência, característica dos atos normativos em geral.
A fim de ilustrar esta questão são apresentadas, a título exemplificativo,
algumas situações admitidas pelo STF em razão da chamada “determinabilidade
dos destinatários”:
1) No julgamento da ADI supramencionada o Relator analisou lei estadual
que declarava canceladas todas as multas aplicadas pelos órgãos responsáveis em
todas as rodovias no âmbito do Estado do Rio de Janeiro, às vans, topics, towners,
82
kombis e similares, de transporte de passageiros, aplicadas em determinado período
de tempo. Tal lei foi admitida em sede de ação direta de inconstitucionalidade, pois o
Relator resolveu que
[...] o cancelamento indiscriminado de todas as multas relacionadas a determinados tipo de veículos, em certo período de tempo, é ato normativo geral, susceptível de controle abstrato de sua constitucionalidade: a determinabilidade dos destinatários da norma não se confunde com a sua individualização, que, esta sim, poderia convertê-lo em ato de efeitos concretos, embora plúrimos. 216
2) Há também a apreciação do § 2º do art. 37 da Lei Estadual n. 7.478/2001,
do Estado de Mato Grosso, que “dispõe sobre as diretrizes para elaboração da lei
orçamentária de 2002 e dá outras providências”, através da ADI-MC n. 2.535/MT,
também de relatoria do Ministro Sepúlveda Pertence. Neste caso é questionada a
inconstitucionalidade do dispositivo, pois ele determina a revisão dos precatórios por
comissão constituída de representantes de todos os Poderes, e mais o Ministério
Público. Autoriza a modificação da decisão fixadora do valor a ser pago, bem como
admite nova apuração do cálculo e admite a apuração do valor real, passível de
alteração do julgado.
Assim, o Relator acabou por decidir que
O procedimento de levantamento e apuração do valor real, que nela se ordena, não substantiva conduta única, mas sim conduta a ser desenvolvida em relação a cada um dos precatórios que alude. A determinabilidade, em tese, desses precatórios, a partir dos limites temporais fixados, não subtrai da norma que a todos submete à comissão instituída e ao procedimento de revisão nele previsto a nota de generalidade. 217
3) Já a ADI n. 820/RS, de relatoria do Ministro Eros Grau, questionou a
inconstitucionalidade do § 2º, do art. 202, da Constituição do Estado do Rio Grande
do Sul, bem como de todos os artigos da Lei Estadual n. 9.723/92. Foi alegado que
o dispositivo constitucional ao determinar a aplicação de parte dos recursos
destinados à educação na “manutenção e conservação das escolas públicas
estaduais”, vinculou a receita de impostos a uma despesa específica, o que é
contrário ao art. 167, IV, da CF. Já a Lei Estadual, de origem parlamentar, suprimiu o
216 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI n. 2.137/RJ. Relator Min. Sepúlveda Pertence. Julgamento em 23/03/2000. 217 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI n. 2.535/MT. Relator Min. Sepúlveda Pertence. Julgamento em 19/12/2001.
83
trecho “da regulação das leis de diretrizes orçamentárias e do orçamento anual
recursos que nelas deveriam ser destinados, ofendendo o art. 165, caput e §§ 2º e
8º, da CF, de aplicação obrigatória pelos Estados-membros”.
A alegação é de que a iniciativa para lei orçamentária é privativa do Poder
Executivo, conforme estabelece o art. 165, caput, da CF, e por esta razão há
também violação do princípio constitucional da harmonia entre os Poderes. O
Advogado-Geral da União, na ocasião de sua manifestação sustentou a extinção da
ação, sem o julgamento de mérito, em relação somente à Lei Estadual, por entender
que a mesma é lei de efeito concreto, insuscetível de controle concentrado.
Neste caso, o Relator verificou
[...] a possibilidade de análise do texto normativo impugnado pela via da ação direta, vez que a lei-estadual consubstancia lei-norma; possui generalidade e abstração, suficientes para o seu conhecimento; seus destinatários são determináveis, e não determinados. 218
Dos julgados expostos percebe-se que com o requisito de “determinabilidade
dos destinatários” a Suprema Corte teve o intuito de abranger um número maior de
leis tidas como de efeitos concretos, mas que podem ser apreciadas por ele.
Porém, a conceituação deste elemento apresenta certa dificuldade de
entendimento e abrangência, pois quando se diz que a norma possui destinatários
certos, não se deve entender que seja direcionada a um indivíduo especificamente.
Isto pode ocorrer. Mas o fato de os destinatários da lei serem determináveis não
significa, necessariamente, que se operou individualização suficiente para que se
tenha uma norma de efeitos concretos.219
Então, se uma lei é direcionada a um grupo definido de pessoas ou a certa
categoria, estará sujeita ao controle concentrado de constitucionalidade visto que
não criam situações para atingir individualmente algumas pessoas, mas sim,
condições que se aplicam a diversos indivíduos de maneira geral, podendo ser
considerado ato normativo, conforme o art. 102, I, a, da Constituição Federal
pretende dar sentido.
218 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI n. 820/RS. Relator Min. Eros Grau. Julgamento em 15/03/2007. 219 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI n. 820/RS. Relator Min. Eros Grau. Julgamento em 06/10/2004.
84
Há uma diferença sutil quando se diz que a norma possui destinatários
determinados e quando se fala que os destinatários são determináveis. Em relação
ao primeiro, pode-se notar que existe individualização dos indivíduos, sendo
possível identificar cada um deles. Já quando se fala em determináveis o que existe
é a identificação de um grupo de pode ser atingido ou não pela norma que passou a
ter vigência. Não existe um rol de pessoas que serão certamente tocadas pela
norma, não há a identidade desses indivíduos, mas sim uma noção da abrangência
desta lei.
Estas dubiedades tornam difícil a identificação da linha de separação,
suscitando inclusive, interpretações flagrantemente incompatíveis com o critério
focado pelo STF como é o caso de alguns julgados do Tribunal de Justiça do Estado
de Santa Catarina220.
3.3.2 O controle de leis de efeitos concretos com “ contornos abstratos e
autônomos” – ADI n. 2.925/DF
Em 2003 foi levantada discussão, no STF, sobre a possibilidade de analisar
por meio de ação direta de inconstitucionalidade lei orçamentária, que em
entendimento até então pacificado, não se mostrava objeto idôneo ao controle
220 Como se pode ver, exemplificativamente, de julgamento daquela Corte, cuja ementa encontra-se a seguir transcrita: “AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - LEI 1.415/03, DO MUNICÍPIO DE SOMBRIO - AUMENTO NOS VENCIMENTOS DOS SERVIDORES PÚBLICOS - EXCEÇÃO FEITA AO CARGO DE ADM INISTRADOR - LEI FORMAL DE CONTEÚDO ADMINISTRATIVO - AUSÊNCIA DOS RE QUISITOS DE ABSTRAÇÃO E GENERALIDADE - UTILIZAÇÃO INADEQUADA DA VIA DO CONTROLE CONCENTRADO - IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO - CONSELHO REGIONAL DE ADMINISTRAÇÃO DE SANTA CATARINA - CRA/SC - AUTARQUIA FEDERAL - PESSOA JURÍDICA QUE NÃO DETÉM LEGITIMIDADE PARA AJUIZAMENTO DE ADI - EXTINÇÃO DO FEITO, SEM JULGAMENTO DO MÉRITO. A via do controle concentrado de constitucionalidade admite apenas a análise da norma, em abstrato. Lei que regula situações específicas de pessoas ou coletividades d eterminadas ou determináveis não possui o caráter de abstração e generalidade ne la exigidos, devendo ser examinada por via diversa, que não a da ação direta de inconstitucionalidade. O rol do artigo 85 da Constituição do Estado de Santa Catarina é taxativo. Portanto, inadmissível enquadrar-se os Conselhos, pessoas jurídicas de direito público, compreendidas no gênero "autarquias", na previsão legal das "entidades de classe de âmbito estadual".” [grifou-se] BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina. ADI n. 2002.003886-5. Relator Des. Souza Varella. Julgamento em 03/09/2003.
85
abstrato, pois não apresenta os elementos de generalidade e abstração, necessário
ao exame de atos normativos nessa espécie de controle de constitucionalidade,
sendo, então, considerado ato de efeito concreto.
Pode-se afirmar que o julgamento da ADI n. 2.925/DF, de relatoria da
Ministra Ellen Gracie, mas cujo relator para o acórdão foi o Ministro Marco Aurélio,
foi um precedente que criou uma exceção à regra geral de admissibilidade das leis
de efeitos concretos. Nos termos deste posicionamento o STF poderia analisar leis
de efeitos concretos desde que tais dispositivos gozassem de “contornos abstratos e
autônomos”.
O dispositivo questionado foi o art. 4º, I, a, b, c e d, da Lei n. 10.640, de 14
de janeiro de 2003, lei orçamentária anual (LOA) da União, que estima e fixa as
despesas da União para o exercício de 2003. Vejamos sua redação:
Art. 4o Fica o Poder Executivo autorizado a abrir créditos suplementares, observados os limites e condições estabelecidos neste artigo e desde que demonstrada, em anexo específico do decreto de abertura, a compatibilidade das alterações promovidas na programação orçamentária com a meta de resultado primário estabelecida no Anexo de Metas Fiscais da Lei de Diretrizes Orçamentárias 2003, para suplementação de dotações consignadas: I - a cada subtítulo, até o limite de dez por cento do respectivo valor, mediante a utilização de recursos provenientes de: a) anulação parcial de dotações, limitada a dez por cento do valor do subtítulo objeto da anulação, ressalvado o disposto no § 2o deste artigo; b) reserva de contingência, inclusive de fundos e de órgãos e entidades das Administrações direta e indireta, observado o disposto no parágrafo único do art. 8º da Lei de Responsabilidade Fiscal, e no § 6o deste artigo; c) excesso de arrecadação de receitas diretamente arrecadadas, desde que para alocação nos mesmos subtítulos em que os recursos dessas fontes foram originalmente programados, observado o disposto no parágrafo único do art. 8º da Lei de Responsabilidade Fiscal; e d) até dez por cento do excesso de arrecadação;
A alegação de inconstitucionalidade sustentada encontra-se no fato de a
previsão de suplementação de créditos, contidos nos dispositivos impugnados da
LOA, não poderia atingir destinação de recursos da contribuição de intervenção no
domínio econômico, CIDE, instituída pela Lei n. 10.336/2001, por haver afronta ao
art. 177, § 4º, II, da Constituição Federal221.
221 BRASIL. Constituição (1988). Art. 177. Constituem monopólio da União: [...] § 4º A lei que instituir contribuição de intervenção no domínio econômico relativa às atividades de
86
A Ministra Ellen Gracie ao manifestar seu voto declarou que a jurisprudência
do STF tem reconhecido a ausência de abstração, generalidade e impessoalidade
nas regras de natureza orçamentária, pois considera ato formalmente legal, de efeito
concreto, portador de normas individuais de autorização, sendo, portanto,
insuscetível de controle abstrato de constitucionalidade, por estar ligado a uma
situação de caráter individual e específica. Menciona ainda que o ato em análise na
ação direta é ato específico de autorização emanado do Poder Legislativo,
conferindo ao Poder Executivo limitações, condições e restrições à oportunidade de
abertura de créditos suplementares, valendo-se de dotações previamente fixadas na
LOA destinadas a este exato propósito (reserva de contingência).
Desta forma, segundo entendimento da Ministra, são atos que embora
tenham forma de lei, caracterizam-se como normas individuais de autorização que
tornam viável a alteração do orçamento da despesa no curso do exercício.
Em seguida, o Ministro Marco Aurélio proferiu seu voto e abriu a polêmica
discussão. Discorre o Ministro que na hipótese em questão não se discute receita ou
destinação de receita.
Ressalta que, no caso,
[...] não é isso o que ocorre. Argumenta-se que se acabou por lançar mão, muito embora de forma limitada, de recursos que a própria Carta Federal revela como destinação específica. Busca-se, justamente, a guarda da Constituição pelo Supremo Tribunal Federal, no que a lei orçamentária estaria a conflitar, de modo frontal, com o texto nela contido, mais precisamente com o disposto no artigo 177, § 4º. Se entendermos caber a generalização, afastando por completo a possibilidade do controle concentrado, desde que o ato impugnado seja lei orçamentária, terminaremos por colocar a lei orçamentária acima da Carta da República. Por isso, a meu ver, há que se distinguir caso a caso. 222
Já o Ministro Gilmar Mendes proferiu seu voto, mencionando que o
dispositivo da lei orçamentária em análise não guarda qualquer relação com as
normas típicas de caráter orçamentário, sendo dotado de generalidade e abstração,
importação ou comercialização de petróleo e seus derivados, gás natural e seus derivados e álcool combustível deverá atender aos seguintes requisitos: [...] II - os recursos arrecadados serão destinados: a) ao pagamento de subsídios a preços ou transporte de álcool combustível, gás natural e seus derivados e derivados de petróleo; b) ao financiamento de projetos ambientais relacionados com a indústria do petróleo e do gás; c) ao financiamento de programas de infra-estrutura de transportes. 222 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI n. 2.925/DF. Relatora Min. Ellen Gracie. Relator para acórdão Min Marco Aurélio. Julgamento em 19/12/2003. p. 123.
87
apesar de ser norma temporária.
Vale aqui destacar os dizeres do Ministro Carlos Ayres Britto em debate na
ADI n. 2.925/DF, vejamos:
[...] a lei orçamentária é para a Administração Pública, logo abaixo da Constituição, a lei mais importante, até porque o descumprimento dela implica crime de responsabilidade. Está no art. 85, inciso VI. Imunizar a lei orçamentária contra o controle abstrato, acho um pouco temerário, também, ou seja, vamos blindar a lei orçamentária contra o controle objetivo de constitucionalidade. 223
E em outro trecho completa:
O artigo impugnado não estima receita nem fixa despesa, não abre crédito e [todavia] confere uma competência sub conditionis, acho que têm esses caracteres, sim, da lei em sentido material, ou seja, lei genérica, impessoal e abstrata. 224
O Ministro Marco Aurélio cita também que “seria tornar a nossa Carta da
República flexível, passível de modificações por uma lei orçamentária”.
Em voto, o Ministro Cezar Peluso faz uso de um exemplo bastante
pertinente sobre norma típica, de caráter geral e abstrato. Traz a tona uma norma
constitucional, que, no regime anterior, dava competência ao STF e, portanto, a
destinatário específico, para editar preceitos regimentais com força de lei. Tal norma
era geral e abstrata. Diz ele, que no caso a norma é de competência, ou seja, dá a
certo sujeito o poder de caráter geral para praticar vários atos, os quais, sim, serão
concretos, parecendo, em certo sentido, aproximar-se da diferenciação proposta por
Clève.
A respeito da presença do elemento abstração, o Ministro Carlos Ayres Brito
mais uma vez se manifesta:
A abstratividade, diz a teoria toda do Direito, implica uma renovação, não digo perene, porque, aqui, está limitada por um ano, mas uma renovação duradoura, entre a hipótese de incidência da norma e a sua conseq6uência. [...] durante um ano inteiro o Presidente da República fica autorizado a aplicar e reaplicar a lei a seu talante, claro que observados aqueles limites e condições. Acho que a abstratividade está presente, também. 225
223 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI n. 2.925/DF. Relatora Min. Ellen Gracie. Relator para acórdão Min Marco Aurélio. Julgamento em 19/12/2003. p. 127. 224 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI n. 2.925/DF. Relatora Min. Ellen Gracie. Relator para acórdão Min Marco Aurélio. Julgamento em 19/12/2003. p. 130. 225 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI n. 2.925/DF. Relatora Min. Ellen Gracie. Relator para acórdão Min Marco Aurélio. Julgamento em 19/12/2003. p. 133.
88
Se por um lado, estavam os ministros apreciando a admissibilidade da ação,
por outro lado, freqüentemente utilizavam referências à gravidade da ofensa material
ao texto constitucional. Como se pôde evidenciar dos trechos transcritos.
Desta forma, por todos os argumentos expostos, o STF, por maioria,
conheceu da ação, acolhendo a preliminar de cabimento de ação direta de
inconstitucionalidade contra lei orçamentária, sob o argumento de que os
dispositivos impugnados eram dotados de suficiente abstração e generalidade,
sendo vencido o voto da relatora, Ministra Ellen Gracie.
O acórdão assim ficou ementado:
PROCESSO OBJETIVO - AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - LEI ORÇAMENTÁRIA. Mostra-se adequado o controle concentrado de constitucionalid ade quando a lei orçamentária revela contornos abstrato s e autônomos, em abandono ao campo da eficácia concret a. LEI ORÇAMENTÁRIA - CONTRIBUIÇÃO DE INTERVENÇÃO NO DOMÍNIO ECONÔMICO - IMPORTAÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO DE PETRÓLEO E DERIVADOS, GÁS NATURAL E DERIVADOS E ÁLCOOL COMBUSTÍVEL - CIDE - DESTINAÇÃO - ARTIGO 177, § 4º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. É inconstitucional interpretação da Lei Orçamentária nº 10.640, de 14 de janeiro de 2003, que implique abertura de crédito suplementar em rubrica estranha à destinação do que arrecadado a partir do disposto no § 4º do artigo 177 da Constituição Federal, ante a natureza exaustiva das alíneas "a", "b" e "c" do inciso II do citado parágrafo. 226 [grifou-se]
É bem verdade, como se pôde observar, que a hipótese só foi admitida por
reconhecerem os ministros tratar-se de uma flagrante inconstitucionalidade em
sentido material. Mesmo assim, em análise a este caso específico, o STF continuou
frisando que não analisa leis de efeitos concretos em sede de ação direta
inconstitucionalidade, porém, fez uma ressalva ao mencionar que o controle é
apropriado para o exame de leis que tenham o que ele denomina de “contornos
abstratos e autônomos”.
226 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI n. 2.925/DF. Relatora Min. Ellen Gracie. Relator para o acórdão Min. Marco Aurélio. Julgamento em 19/12/2003.
89
3.4 ANÁLISE DA ADI-MC N. 4.048/DF DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Torna-se importante salientar que, em 14 de maio de 2008, surgiu novo
paradigma instaurado através do julgamento da medida cautelar da ADI n. 4.048/DF,
de relatoria do Ministro Gilmar Ferreira Mendes, que reportou uma mudança
significativa do posicionamento em relação aos atos chamados de efeitos concretos.
O julgamento da ADI supramencionada admitiu possibilidade de apreciação
in abstracto da lei orçamentária, até então considerada lei de efeito concreto.
A ação foi ajuizada com o intuito de analisar a (in) constitucionalidade da
Medida Provisória n. 405, de 18 de dezembro de 2007, que “abre crédito
extraordinário, em favor da Justiça Eleitoral e de diversos órgãos do Poder
Executivo, no valor global de R$ 5.455.677.660,00, para os fins que especifica”.
Vejamos a redação da norma objurgada:
Art. 1º Fica aberto crédito extraordinário, em favor da Justiça Eleitoral e de diversos órgãos do Poder Executivo, no valor global de R$ 5.455.677.660,00 (cinco bilhões, quatrocentos e cinqüenta e cinco milhões, seiscentos e setenta e sete mil, seiscentos e sessenta reais), para atender à programação constante dos Anexos I e III desta Medida Provisória. Art. 2º Os recursos necessários à abertura do crédito de que trata o art. 1o decorrem de: I - superávit financeiro apurado no Balanço Patrimonial da União do exercício de 2006, no valor de R$ 3.995.542.240,00 (três bilhões, novecentos e noventa e cinco milhões, quinhentos e quarenta e dois mil, duzentos e quarenta reais); II - excesso de arrecadação no valor de R$ 670.252.213,00 (seiscentos e setenta milhões, duzentos e cinqüenta e dois mil, duzentos e treze reais); III - anulação parcial de dotações orçamentárias, no valor de R$ 370.837.862,00 (trezentos e setenta milhões, oitocentos e trinta e sete mil, oitocentos e sessenta e dois reais), conforme indicado no Anexo II desta Medida Provisória; IV - ingresso de operação de crédito relativa ao lançamento de Títulos da Dívida Agrária, no valor de R$ 417.115.345,00 (quatrocentos e dezessete milhões, cento e quinze mil, trezentos e quarenta e cinco reais); e V - repasse da União sob a forma de participação no capital de empresas estatais, no valor de R$ 1.930.000,00 (um milhão, novecentos e trinta mil reais). Art. 3º Esta Medida Provisória entra em vigor na data de sua publicação.
Logo após, em 18 de abril de 2008, tal medida provisória foi promulgada e
90
convertida na Lei n. 11.658, cuja redação em nada sofreu alteração 227.
A argumentação do requerente é que a MP n. 405/2007, agora Lei n.
11.658/2008, viola o art. 62, § 1º, I, d, c/c o art. 167, § 3º, ambos da Constituição
Federal. Em suas considerações menciona que este último artigo preceitua que
créditos extraordinários podem ser abertos apenas para suprir despesas urgentes e
imprevisíveis e que, portanto, por essas características, podem se tratadas através
de medida provisória, uma vez que constituem matéria própria a esta espécie
normativa, conforme determina a Constituição federal em seu art. 62, § 1º, I, d.
A respeito do entendimento, até então pacificado, sobre o não cabimento de
ação direta contra normas de caráter orçamentário, o Ministro Gilmar Ferreira
Mendes declara que “a jurisprudência do STF não andou bem ao considerar as leis
de efeito concreto como inidôneas para o controle abstrato de normas” e, ainda que
a questão suscitada tem “inegável relevância jurídica e política”, devendo, por esta
razão se analisada a fundo.
Faz ainda uma ressalva em relação ao reconhecimento do STF do caráter
normativo de disposições de lei orçamentária anual da União, em 19/12/2003, na
ADI n. 2.925/DF, analisada em item anterior. Na espécie, por maioria, acolheu-se a
preliminar de cabimento de ação direta de inconstitucionalidade contra lei
orçamentária, sob o argumento de que os dispositivos impugnados eram dotados de
suficiente abstração e generalidade. 228
Acredita o relator que essa nova direção que segue a jurisprudência da
Suprema Corte é mais apropriada, pois admite o controle de legitimidade do âmbito
da legislação ordinária, defendendo a efetiva concretização da ordem constitucional.
Sobre a questão de fundo, o partido requerente defende a tese de que
determinados créditos, por serem despidos de qualidade de extraordinário, conforme
o parâmetro fixado na própria Constituição (art. 167, § 3º), não podem ser abertos
por meio de medida provisória. O dispositivo constitucional citado ao prescreve a
observância do art. 62 e impõe que a medida provisória seja o veículo legislativo
adequado para abertura de crédito extraordinário.
227 Convém ressaltar neste ponto que o Partido da Social Democracia Brasileira – PSDB –, requerente nesta ação, em 22 de abril de 2008, data em que a lei foi publicada, apresentou pedido de aditamento à inicial em razão da conversão em lei da medida provisória até então objeto da mencionada ação direta. 228 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI-MC n. 4.048/DF. Relator Min. Gilmar Mendes. Julgamento em 14/05/2008. p. 65-66.
91
Vejamos a redação dos dispositivos:
Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional. § 1º - É vedada a edição de medidas provisórias sobre matéria: I - relativa a: [...] d) planos plurianuais, diretrizes orçamentárias, orçamento e créditos adicionais e suplementares, ressalvado o previsto no art. 167, § 3º; Art. 167. São vedados: [...] § 3º - A abertura de crédito extraordinário somente será admitida para atender a despesas imprevisíveis e urgentes, como as decorrentes de guerra, comoção interna ou calamidade pública, observado o disposto no art. 62.
Assim, além dos requisitos de relevância e urgência, a Constituição também
exige que abertura de crédito extraordinário seja realizada a fim de atender
despesas imprevisíveis e urgentes. Por despesas imprevisíveis e urgentes a
Constituição estabelece que são aquelas decorrentes de guerra, comoção interna ou
calamidade pública, e são conceitos que estão associados aos temas do Estado de
Defesa e do Estado de Sítio.
Desta forma, após análise da exposição de motivos que levou a edição da
MP n. 405/2007, o Ministro Gilmar Mendes constatou que os créditos abertos não
são qualificados como imprevisíveis e urgentes, uma vez que se destinam a prover
despesas correntes. Além do mais, destaca que desde o início de 2007 o Presidente
da República vem editando grande quantidade de medidas provisórias destinadas à
abertura de créditos suplementares ou especiais, mascarados de créditos
extraordinários.
Por fim, menciona que “é papel desta Corte assegurar a força normativa da
Constituição e estabelecer limites aos eventuais excessos legislativos dos demais
Poderes” e, com tais considerações acata o pedido de concessão de medida
cautelar pleiteada pelo PSDB, para suspender vigência da norma questionada.
Uma vez mais, a insurgência no mérito contribuiu definitivamente para o
pronunciamento favorável da maioria pela admissibilidade do controle das leis
primárias de efeitos concretos.
Levada à apreciação do Plenário, a ADI-MC n. 4.048/DF foi admitida com o
voto da maioria, por seis votos contra cinco divergentes. Apresentaram-se favoráveis
92
ao reconhecimento de admissibilidade da ação, bem como à concessão da medida
cautelar, seguindo o entendimento proferido pelo Ministro Gilmar Ferreira Mendes
em seu voto, os seguintes Ministros: Carlos Britto, Carmen Lúcia, Marco Aurélio,
Eros Grau e Celso de Mello.
Em contrapartida, os Ministros Cezar Peluso, Ricardo Lewandowski,
Joaquim Barbosa, Ellen Gracie e Menezes Direito votaram contrários à manifestação
do relator.
Em seu voto o Ministro Cezar Peluso manifestou-se dizendo que se trata de
ato complexo que pede a participação do Legislativo e esta se manifesta a título
formal de lei. Porém, e simplesmente autorização para a prática de ato que pede a
colaboração do Legislativo.
Já o Ministro Ricardo Lewandowski, em relação à cautelar vislumbrou não
estar presente o requisito essencial para sua concessão que é o periculum in mora,
pois se trata de um ato de efeitos concretos imediatos e que já se encontram
exauridos no tempo.
O Ministro Joaquim Barbosa concordou com o que foi exposto pelo Ministro
Ricardo Lewandowski e acrescentou que o Brasil é uma República deliberativa, e
neste caso o mérito das decisões cruciais tomadas cabe ao Congresso Nacional.
Afirma que já tendo sido aprovada a medida provisória pelo Congresso Nacional,
não vê como o STF pode substituir a casa legislativa em sede de cautelar para
rejeitar medida provisória já aprovada por ela.
A Ministra Ellen Gracie proferiu seu voto mencionando que a situação
apresentada na ADI-MC n. 4.048/DF é totalmente diferente daquela que foi vista
quando da apreciação da ADI n. 2.925/DF, da qual foi relatora originária, sendo a
ementa transcrita no voto do Ministro Gilmar Mendes e da lavra do Ministro Marco
Aurélio, redator do acórdão publicado. Em síntese, a Ministra declara ser favorável
ao posicionamento até então adotado pelo STF de que não é possível exercer o
controle concentrado de constitucionalidade em face de atos que tenham roupagem
de lei, mas que possuem nítido efeito concreto, por serem desprovidos de abstração
e generalidade. Dessa forma, seu voto é pelo não conhecimento da ação e,
ultrapassada esta questão, uma vez que a mesma já foi conhecida por voto da
maioria, a Ministra decidiu, também, pelo indeferimento da cautelar.
Por fim, o Ministro Menezes Direito, acompanhou divergência inaugurada
pelo voto do Ministro Ricardo Lewandowski, e seguida pelos Ministros Cezar Peluso
93
e Ellen Gracie, manifestando-se pelo não conhecimento da ação e indeferimento da
medida cautelar.
Então, depois do argumento de admissibilidade, o Ministro Gilmar Mendes,
ao entrar no mérito, discutiu a legitimidade da edição de Medida Provisória e a
flagrante ofensa material à Constituição Federal.
Desta forma, foi a partir deste julgamento de medida cautelar, que o STF
passou então a admitir que é possível que ele controle através da fiscalização
abstrata de constitucionalidade, via ação direta, as chamadas leis de efeitos
concretos que decorram de atos primários.
Convém ressaltar dois pontos: primeiro que se trata ainda de decisão em
medida cautelar e, portanto ainda deverá ser confirmada quando do julgamento do
mérito; segundo que os ministros quando votaram favoráveis à admissibilidade da
ação e à concessão da medida cautelar acabaram por julgar indistintamente a forma
e o elemento material, razão pela qual não há como saber se os ministros realmente
concordam com o teor da tese do Relator de que todas as espécies legislativas são
objeto de controle.
Destarte, tal questionamento ainda é objeto de muita discussão e
divergência, razão pela qual não é aceitável dizer com absoluta precisão que o STF
modificou de maneira sólida seu posicionamento, uma vez que a questão ainda
figura-se aberta no STF.
94
CONCLUSÃO
Os atos de efeitos concretos ou leis meramente formais são assim
denominados, pois se considera que os mesmos não apresentam os elementos
constitutivos de um ato normativo, os quais, como defendidos neste trabalho seriam:
generalidade, abstração, inovação e permanência.
As leis são consideradas atos primários por serem decorrentes diretamente
da Constituição Federal e, para que sejam submetidas ao exame via controle
abstrato de constitucionalidade, devem apresentar ofensa formal ou material à
Constituição. Há ofensa formal quando o processo legislativo previsto não foi
cumprido como deveria, ou quando foi editada por autoridade diversa daquela de
possui competência. Já a afronta material pode ser vista quando a norma colide
diretamente com preceitos estabelecidos na Constituição.
As leis de efeitos concretos muitas vezes também são primárias, mas o que
alegava expressamente o Supremo Tribunal Federal era que apesar de
apresentarem forma de lei, seus conteúdos não continham os elementos que
compõem um ato normativo, razão que as excluía da apreciação por controle
abstrato de constitucionalidade.
Apesar de a imensa maioria dos autores não se ocuparem de uma análise
mais detida sobre a questão, este posicionamento encontrou significativa resistência
doutrinária, como se pode observar com a crítica formulada por Clèmerson Merlin
Clève e Gilmar Ferreira Mendes. Tais autores lecionam que a jurisprudência do STF
merece ser revista, pois ao subtrair da fiscalização abstrata tais atos normativos,
acabam por eliminar o controle judicial sobre eles, já que dificilmente poderiam ser
impugnadas através de outros remédios judiciais.
A evolução jurisprudencial do STF acerca da matéria parece ter contribuído
significativamente para a constatação de que estas leis em inúmeros casos
apresentavam flagrante ofensa à Constituição Federal.
Esta evolução se deu, inicialmente, a partir da abrangência do conceito
“efeitos concretos” com o surgimento de um novo elemento, qual seja a chamada
“determinabilidade dos destinatários”. A partir daí, o STF acolheu o entendimento de
95
que aquelas normas que tinham não destinatários determinados, mas sim
determináveis, poderiam ser objeto de controle abstrato via ação direta.
Em seguida, com o julgamento da ADI n. 2.925/DF, o STF novamente viu-se
diante de uma norma que apresentava afronta à Constituição Federal e decidiu que
o dispositivo, mesmo sendo considerado de efeito concreto, apresentava “contornos
abstratos e autônomos”, razão que o fez permitir a apreciação pela via judicial eleita.
Até então, o STF vinha se posicionando contra o ajuizamento de ação direta
de inconstitucionalidade para expurgar do ordenamento jurídico leis de efeitos
concretos.
Porém, o surgimento do julgamento da medida cautelar da ADI-MC n.
4.048/DF, de relatoria de um dos doutrinadores que defende a tese de que o STF
deve controlar, também, as leis de efeitos concretos, o Ministro Gilmar Mendes,
mudou de maneira expressiva o entendimento da Suprema Corte.
Em seu voto o relator menciona a possibilidade de controle abstrato de atos
primários de efeitos concretos, entretanto, não há como afirmar que os ministros que
votaram pela admissibilidade concordam com este entendimento, pois quando
julgaram acabaram por não fazer distinção entre a forma e o elemento material.
Deste modo, por a questão ainda encontrar-se aberta no STF, o tema será
ainda objeto de muita discussão, pois não há como dizer com precisão que o STF
modificou posicionamento.
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