o conto espelho cristalino e a branca de neve na tradiÇÃo oral de irarÁ

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O CONTO “ESPELHO CRISTALINO” E A BRANCA DE NEVE NA TRADIÇÃO ORAL DE IRARÁ - BA CRISTIANE TAVARES SANTOS MELO 1 INTRODUÇÃO Este trabalho apresenta os resultados do subprojeto “Literatura Oral e Literatura Infantil: diálogos e recriações”, desenvolvido em um ano de pesquisa com o apoio do Programa de Iniciação Científica da UNEB (PICIN). Trata-se de uma pesquisa vinculada ao Núcleo de Estudos da oralidade (NEO), projeto que visa o registro e estudo da tradição oral da região de Alagoinhas – BA e cidades circunvizinhas. O objetivo geral deste estudo é examinar as narrativas orais coletadas no município de Irará – BA, na qual obtivemos 7 (sete) fitas cassetes, que registram entrevistas e depoimentos; aproximadamente sessenta minutos de gravação em vídeo e trinta e seis fotos. Todo material foi somado ao acervo do NEO, localizado no Campus II. Após o registro das narrativas, foi realizada a transcrição dos textos. O interesse pelo estudo do corpus se deu devido à diversidade dos textos coletados. Contudo, por conta de critérios metodológicos, fez-se o recorte do tema para o estudo do conto “Espelho Cristalino”, narrado por dona Altamira Miranda dos Reis. Trata-se de um conto de encantamento, constituído de uma recriação da história infantil Branca de neve e os sete Anões. Dessa maneira, resolveu-se analisar o entrelaçamento da tradição oral e a tradição infantil, tomando como base a relação entre o conto citado e outra versão oral dessa história publicada na obra Contos Populares da Bahia. Depois do recorte do objeto de estudo, partiu-se para a pesquisa bibliográfica, análise dos dados, estudo comparativo das versões e, por fim, a redação deste trabalho monográfico. O trabalho está dividido em três capítulos. O primeiro capítulo relata a experiência com o trabalho de pesquisa de campo realizado no município de Irará – BA, destacando as condições de trabalho, os narradores que participaram dele e o perfil dos textos coletados. O segundo capítulo faz um percurso sobre a função e atuação do conto popular em diferentes 1 Texto apresentada como resultado final do trabalho de pesquisa desenvolvido durante o ano de 2007, com o apoio do Programa de Iniciação Cientifica da UNEB (PICIN), sob a orientação da professora Drª Edil Silva Costa.

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Page 1: O CONTO ESPELHO CRISTALINO E A BRANCA DE NEVE NA TRADIÇÃO ORAL DE IRARÁ

O CONTO “ESPELHO CRISTALINO” E A BRANCA DE NEVE NA TRADIÇÃO ORAL DE IRARÁ - BA

CRISTIANE TAVARES SANTOS MELO 1

INTRODUÇÃO

Este trabalho apresenta os resultados do subprojeto “Literatura Oral e Literatura

Infantil: diálogos e recriações”, desenvolvido em um ano de pesquisa com o apoio do

Programa de Iniciação Científica da UNEB (PICIN). Trata-se de uma pesquisa vinculada ao

Núcleo de Estudos da oralidade (NEO), projeto que visa o registro e estudo da tradição oral da

região de Alagoinhas – BA e cidades circunvizinhas. O objetivo geral deste estudo é examinar

as narrativas orais coletadas no município de Irará – BA, na qual obtivemos 7 (sete) fitas

cassetes, que registram entrevistas e depoimentos; aproximadamente sessenta minutos de

gravação em vídeo e trinta e seis fotos. Todo material foi somado ao acervo do NEO,

localizado no Campus II.

Após o registro das narrativas, foi realizada a transcrição dos textos. O interesse pelo

estudo do corpus se deu devido à diversidade dos textos coletados. Contudo, por conta de

critérios metodológicos, fez-se o recorte do tema para o estudo do conto “Espelho Cristalino”,

narrado por dona Altamira Miranda dos Reis. Trata-se de um conto de encantamento,

constituído de uma recriação da história infantil Branca de neve e os sete Anões. Dessa

maneira, resolveu-se analisar o entrelaçamento da tradição oral e a tradição infantil, tomando

como base a relação entre o conto citado e outra versão oral dessa história publicada na obra

Contos Populares da Bahia. Depois do recorte do objeto de estudo, partiu-se para a pesquisa

bibliográfica, análise dos dados, estudo comparativo das versões e, por fim, a redação deste

trabalho monográfico.

O trabalho está dividido em três capítulos. O primeiro capítulo relata a experiência

com o trabalho de pesquisa de campo realizado no município de Irará – BA, destacando as

condições de trabalho, os narradores que participaram dele e o perfil dos textos coletados. O

segundo capítulo faz um percurso sobre a função e atuação do conto popular em diferentes

1 Texto apresentada como resultado final do trabalho de pesquisa desenvolvido durante o ano de 2007, com o apoio do Programa de Iniciação Cientifica da UNEB (PICIN), sob a orientação da professora Drª Edil Silva Costa.

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momentos e sociedades, analisando o seu lugar na sociedade atual, assim como alguns fatores

que contribuem para a manutenção de sua tradição.

O terceiro e último capítulo inicia-se com a discussão sobre o entrelaçamento da

tradição oral e a literatura infantil, trazendo fatos que tentam explicar como essa relação se

originou e se mantém até hoje. Em seguida, temos a ilustração desse entrelace através da

análise comparativa do conto Espelho Cristalino com outras versões desta história.

Finalmente, trataremos das considerações finais, onde esboço os resultados obtidos no

presente estudo.

1. AS NARRATIVAS POPULARES EM IRARÁ

Desde o ano de 1995, o Núcleo de Estudos da Oralidade (NEO) vem desenvolvendo

pesquisas na região de Alagoinhas-Ba e cidades circunvizinhas e conta hoje com um rico

acervo composto de textos como contos, causos, cantigas, romances, anedotas, depoimentos e

histórias de vida. Em 2006, quando pesquisava sobre o samba de roda em Irará – BA, foi feito

uma pesquisa de campo no município com o objetivo de investigar a tradição do samba de

roda no local. Na ocasião, foi recolhido um número significativo de narrativas orais. Diante da

riqueza coletada, surgiu interesse em dar continuidade ao estudo da tradição oral no ano de

2007, tendo como ponto de partida a análise dos textos registrados.

Mesmo diante dos entraves resultantes da falta de apoio financeiro para a pesquisa de

campo, das limitações de recursos para a realização da coleta de dados e da redução de tempo

para a concretização do trabalho, a equipe formada por mim, pela professora da UNEB Edil

Silva Costa e Nara da Silva e Silva, estudante do curso de graduação em Letras e bolsista de

iniciação cientifica da FAPESB, conseguiu realizar a pesquisa de campo, obtendo resultados

satisfatórios.

Como já tínhamos programado com antecedência a entrevista com o grupo de samba

de roda, antes de irmos ao encontro do grupo fomos também até a feira livre à procura de

narradores populares. Não foi difícil encontrar nosso primeiro narrador. Logo que chegamos

ao Centro de Abastecimento conhecemos um vendedor de cereais que nos informou que seu

pai, Nelson Sebastião (S. Vavá), 64 anos, aposentado, sabia contar umas histórias “bestas”.

Percebemos, de imediato, certa desvalorização do rapaz em relação ao saber de seu pai. Por

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outro lado, havia também curiosidade em saber o motivo do nosso interesse, já que, para ele,

tratavam-se apenas de algumas bobagens contadas pelo seu genitor.

A forma depreciativa com a qual o rapaz referiu-se aos contos é também um reflexo da

supervalorização do conhecimento da escrita na sociedade. Apesar de sabermos que a prática

de contar histórias ainda acontece, principalmente nas comunidades rurais, os contos

populares antes ocupavam um lugar de grande importância nas sociedades e os contadores de

histórias possuíam um lugar de prestígio na sua comunidade.

Andamos muito até chegar ao local. A casa do narrador ficava distante do centro da

cidade e o dia estava ensolarado, o que aumentava a ansiedade para chegarmos ao nosso

destino. Fomos recebidos com muita simpatia pelo S. Vavá, porém, como acontece muitas

vezes no início das entrevistas, o narrador disse não se lembrar mais de nenhuma história.

Dessa maneira, iniciamos uma conversa informal e o mesmo foi ficando mais a vontade com

a nossa presença e perante o gravador. Depois, iniciou a sessão de narrativas contando uma

história atrás da outra e apresentando uma excelente performance.

Observamos que o filho de S. Vavá acabava se envolvendo e interagindo durante a

apresentação do pai. Chegou até a sugerir que este contasse determinada história, o que

demonstra seu conhecimento dos textos que pouco momentos antes havia depreciado.

Por meio de informações de alguns moradores da cidade, chegamos a nossa segunda

narradora, D. Altamira Miranda dos Reis, 57 anos. A princípio, ela mostrou-se tímida,

afirmando também não lembrar mais das histórias que sabia. Começou narrando as advinhas,

o que favoreceu para a interação do grupo e, consequentemente, deixou-a mais a vontade.

A entrevista com D. Altamira foi realizada em dois momentos. Na oportunidade,

faziam-se presentes algumas de suas netas que mostravam conhecer as respostas das

adivinhas e todos os contos que ouvimos sua avó contar. De modo semelhante ao filho de seu

Vavá, as netas também conheciam as histórias. Esse fato nos mostra dois importantes

aspectos observados: de um lado, evidencia-se que a prática de contar história ainda é

presente na zona rural das cidades, contradizendo a idéia de que a televisão ou outros meios

de comunicação tenham contribuído para acabar totalmente com essa prática; de outro,

percebemos que há uma maior valorização por parte da criança e uma visível depreciação por

parte do jovem em relação aos contos populares. Talvez isso possa ser explicado pela

aproximação que há entre a literatura oral e a literatura infantil.

Não se pode negar que as reuniões que aconteciam para contar histórias tenham se

diluído com as transformações das sociedades modernas. Entretanto, são exemplos como esse

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que auxiliam na manutenção dessa tradição, que continua sendo transmitida para outras

gerações.

Como foi mencionada, a coleta dos textos foi feita em um momento anterior quando

pesquisávamos sobre a tradição do samba de roda. Após a entrevista com o grupo de Rei

Roubado, perguntamos se conheciam algum contador de história na região. Assim, ficamos

sabendo que S. Manoel, 61 anos, músico do grupo, sabia contar algumas histórias. Ele narrou

apenas dois contos, pois o grupo estava atrasado para um compromisso. Contudo, deixou

explícito a sua disposição caso pretendêssemos voltarmos outro dia.

Conseguimos manter contato com outros informantes, moradores do distrito de Bento

Simões: José Alves Maciel (Zezinho Vaqueiro), 64 anos, sua esposa D. Andrelina Rosenda S.

Santos (55 anos) e S. Manoel, vizinho do casal que apareceu durante a entrevista. Esse último

contato foi intermediado pela filha de S. Zezinho, que logo nos informou que seu pai

costumava contar essas histórias sempre que se encontrava sob o efeito de bebidas alcoólicas.

Partimos para o local e encontramos S. Zezinho nos esperando em um bar. Por causa do

barulho, sugerimos que fossemos para sua casa. Mesmo assim, o narrador comprou algumas

cervejas e levou para o local para consumir durante a entrevista.

De início, o narrador parecia acanhado, pois ficou a maior parte do tempo calado.

Sendo assim, sua esposa assumiu a narração e só depois do terceiro conto é que S. Zezinho

começou a narrar também. Em seguida, chegou S. Manoel, que contribui com algumas

narrativas. A empolgação dos três foi tamanha que um passou a interferir na narrativa do

outro, falando ao mesmo tempo. Infelizmente, a confusão de vozes resultou na inteligibilidade

dos textos no momento da transcrição, não permitindo que alguns deles fossem transcritos.

Passado o momento da coleta, partimos para a tarefa de transcrição dos textos, a

atividade mais trabalhosa da pesquisa. Foi uma oportunidade única, pois através dela

conseguimos conhecer mais a fundo o universo dos contos populares e da linguagem oral,

experiência importante para o estudioso da língua.

O fato de ter presenciado o ato de narração desses textos aumenta a vontade de tentar

preservar a vivacidade do texto oral. Mesmo utilizando alguns recursos gráficos para

transmitir alguns recursos que o narrador utiliza no momento de performance, o texto escrito

perde a expressão do corpo, os gestos, a fisionomia, o ritmo de voz, as expressões e o

sentimento, aspectos importantes que o autor/narrador emprega para dar vida ao seu texto.

Isso ratifica a afirmação de Zumthor (2000) quando diz que a vida do texto escrito está na

dinâmica que lhe é proporcionada pela voz.

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Outros trabalhos já foram realizados com base no corpus do NEO. Em um estudo

realizado em fase anterior, a estudante do curso de Letras e bolsista de I.C., Nara da Silva e

Silva, dedicou-se a formular uma proposta de classificação dos contos populares e organizar o

acervo. Diante das várias propostas de classificação sugeridas nas antologias consultadas, a

pesquisadora optou pela classificação sugerida por Luís Câmara Cascudo (1984), que se

baseia na classificação temática de Antti Aarne, o primeiro a sistematizar a classificação dos

contos a partir dos tipos e motivos, que foi posteriormente ampliado pelo norte-americano

Stith Tompson.

Em seu trabalho, Nara da Silva e Silva enfatiza a dificuldade enfrentada por ela ao

encontrar textos que não se encaixavam em nenhum tipo proposto por Cascudo, posto que

alguns contos apresentam elementos predominantes a uma categoria diferente do texto

analisado. Essas coincidências ocasionavam dúvidas quanto à classificação adequada dos

textos. Isso acontece porque apesar do conto ser constituído de motivos estruturados com

características determinadas, que possibilitam enquadrá-lo em uma ou outra categoria, ele

também sofre influências do contexto social do narrador, implicando em sua variação.

Contudo, dificilmente a inserção ou a omissão de algum elemento atinge a estrutura do texto,

conservando seu motivo principal. Dessa forma, a classificação pode se realizada com êxito.

Nas propostas de classificação sugerida por diferentes autores, como Silvio Romero,

por exemplo, percebe-se a constante preocupação em delimitar a origem étnica dos contos.

Simonsen (1987), por outro lado, fala sobre a impertinência desses autores e suas respectivas

teorias, pois pensar assim é não considerar que existe um movimento transitório de elementos

entre os contos, representativos tanto do processo de cruzamento pelo qual passou o conto nas

suas várias procedências, como da influência do narrador e de seu contexto social no ato

narrativo.

Nessa pesquisa de campo, foi registrada uma diversidade de textos, compostos não

somente por contos, mas também por outras formas tradicionais. Temos alguns contos de

animais, de encantamento, faceciosos, religiosos, de exemplos, de assombração e um conto

pertencente ao ciclo da morte; depoimentos sobre lobisomem e caipora; histórias de vida;

piadas; adivinhas; trava-línguas; Cantiga de Reis; e Romances (Conde Alberto e Claralinda).

Todos esses textos vieram complementar o acervo já existente e servirão como base para

estudos posteriores.

Foi diante da diversidade coletada no corpus de Irará que despertei o interesse em dar

continuidade ao estudo da tradição, tendo como recorte a análise desses textos. Ao analisá-los,

um texto chamou-me atenção, trata-se do conto “Espelho Cristalino”, narrado por D.

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Altamira. É um conto de encantamento e uma recriação bem diferente da história infantil

Branca de Neve e os Sete Anões.

A partir daí, elegi esse texto como objeto de estudo, com o intuito de analisar como se

configura a adaptação da literatura infantil para a literatura oral e vice-versa. Segundo Costa

(1998, p.40) a referida história não aparece com frequência no corpus, pois é um texto não

tradicional e assim como o conto “Chapeuzinho Vermelho”, faz parte do repertório da

literatura infantil e podem ter sido assimilado ao repertório de alguns narradores por meio de

leitura ou de ouvirem contar.

O conto citado é um exemplo de como o poder de recriação do autor/narrador é

também uma forma de perpetuar a tradição. Cada vez que se conta uma história, vários

elementos influenciam na atualização do texto. No caso do conto “Espelho Cristalino”, supõe-

se que não somente o contexto da narradora tenha influenciado na recriação da história, como

também o contato com outras formas de apresentação da narrativa, seja na escrita e no

entrelaçamento com o oral ou mesmo nas adaptações feitas no cinema.

O contato com a literatura oral tem me proporcionado uma nova dimensão da

realidade. Nessa tradição veiculam-se informações sobre a identidade brasileira, nossa língua,

nossos valores sociais e as transformações da sociedade. Participar dessa pesquisa de campo e

ter assistido as sessões de contos narrados por esses poetas da voz, possibilitou-me presenciar

como essa tradição se mantém atuante e tem se adaptado às transformações que a sociedade

moderna nos trouxe.

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2. O CONTO POPULAR E A SOCIEDADE

O conto escrito tem sua origem na oralidade. Esta continua levando esse tipo de saber

a muitas gerações e por muito tempo constituiu-se em única fonte de transmissão dessa

tradição. O conto popular vem assumindo diferentes funções em diversos momentos da

história a depender do contexto ao qual estava inserido, seja como fonte de entretenimento ou

mesmo para transmitir imagens e sínteses da realidade.

Existem fortes pontos de interseção entre a tradição oral e a escrita, contudo a primeira

se diferencia da outra por carregar consigo outras especificidades como a oralidade e ter

demarcado o peso de sua função social no seio da comunidade, sobretudo nas comunidades

rurais, onde possui maior importância, já que sua atuação sempre foi mais ativa neste local.

Michele Simonsen (1987) mostra como desde a Antiguidade até a contemporaneidade

os traços populares dos contos foram conservados, trazendo elementos recorrentes em textos

produzidos em períodos e regiões diferentes. Na Idade Média, muitos contos foram

transformados em fábulas de inspiração clerical e função pedagógica, a fim de divulgar os

valores morais cristãos. Apesar da dificuldade de mostrar o sobrenatural em face do poder do

Cristianismo, os contos trazem a presença marcante do maravilhoso. Os romances de

Cavalaria também se inspiravam nos motivos populares e os contos de humor, de animais e

histórias em versos são constantes nesse período.

Devido às preocupações românticas com o desaparecimento da tradição e com o culto

ao popular, no século XIX, os contos passam a serem coletados e adaptados em coletâneas

escritas que, posteriormente, tornam-se também um meio de divulgação da tradição oral, uma

vez que o costume de contar histórias era constante na época.

A preocupação em registrar os contos transmitidos oralmente, era fruto de interesses

diversos. Por isso, as adaptações, por vezes, reformulavam os relatos, suprimindo informações

que pudessem chocar o público ou desvalorizar os contos. A intenção era tanto atender aos

pré-requisitos da literatura escrita, como as aspirações do público leitor ou, até mesmo, os

objetivos de pesquisas que utilizaram a fonte oral.

Muitas coletas foram realizadas desde o século XVII, em várias partes do mundo, mas

nem todas foram publicadas. Os trabalhos de maior destaque e divulgação são a coletas de

Charles Perrault e estudos dos irmãos Grimm. Esses últimos estudiosos apresentavam

propostas diversas quanto à pesquisa da literatura popular. Enquanto Perrault tinha

preocupações de cunho literário, pois adaptou as histórias com o intuito de criar uma literatura

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destinada às crianças; os irmãos alemães dedicaram-se aos estudos linguísticos e tinham como

proposta utilizar o registro oral no estudo da língua alemã.

Os irmãos Grimm são percussores da coleta científica dos contos populares, os

primeiros a tentarem sistematizar seu trabalho, anotando ao ouvirem os relatos para depois

analisar as várias versões e adaptá-las. Em seguida, surgem outros estudos, como o Catálogo

de Antti Aarne e Thompson, com a finalidade de sistematizar os contos, reunindo e

classificando os textos coletados em diversos países do mundo.

Posteriormente, as coletas passam a ser realizadas com o auxílio de recursos

audiovisuais como o gravador e o vídeo, dando ênfase a captação da performance do narrador

e do contexto social dos contos no momento da narrativa, em detrimento da preocupação

exclusiva com o texto em si. Assim, o conto passa a ser estudado dentro do seu contexto

sócio-cultural de realização. Começa-se então, a observar o seu papel dentro das sociedades.

Simonsen (1987, p. 26) esquematiza as instituições de transmissão da literatura oral,

indicando “a reunião” como modelo geral de difusão. Nela, o recitante tem a palavra e o ato

de contar se faz em três parâmetros: quadro de reuniões (lugar, estação, hora), seleção de

participantes (sexo, idade, profissão) e repertório (relação entre os tipos de instituições e os

gêneros narrativos que nela se praticam). Esse modelo pode sofrer variação a depender da

comunidade, conforme a região ou em face da função dos eventos, sejam eles de cunho

educativo ou recreativo.

A autora observa ainda, que apesar do narrador possuir o poder e o prestígio da fala, já

que esta não é uma competência de todos, o auditório, que possui o conhecimento do texto,

sempre interrompe e corrigi o narrador caso este cometa algum engano na narrativa. Isso

ocorreu no exemplo citado no capítulo anterior, quando o filho de um dos narradores, mesmo

dizendo-se não gostar dos contos, interrompe o pai para sugerir determinada história ou

mesmo para contribuir com a narração.

Apesar de todo conto possuir uma estrutura fixa e motivos específicos, que nos

permite classificá-lo em uma categoria especial, o contexto cultural do narrador também

influencia na atualização do texto. Nesse caso, é possível encontrar textos que têm como base

elementos de uma sociedade, como o problema da riqueza, do dinheiro, da supremacia do

poder, do trabalho, nos possibilitando tecer uma análise crítica do homem e suas relações. Isto

mostra que o conto não é só produto da imaginação.

Darton, em O grande massacre dos gatos e outros episódios da cultura Francesa

(1986), ilustra muito bem a relação entre o conto popular e a sociedade ao apontar claramente

como as histórias contadas pelos camponeses refletiam a realidade da França no século

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XVIII/XIX. Os campesinos “adaptavam o cenário de seus relatos ao seu próprio meio” (1986,

p.30). Seus contos transmitiam a condição de vida a qual eram submetidos, as situações

comuns a sua época e os desejos da comunidade, através de vários elementos como a

personagem da madrasta, figura comum nas famílias da época, pois as mulheres morriam

cedo e os homens casavam-se imediatamente; o problema da desnutrição e a comida como

principal prazer da imaginação dos narradores; o contexto das aldeias e estradas abertas; e o

trabalho, tema comum, pois não podiam viver sem eles. Os heróis desses contos são

representados por personagens do cenário campestre. Geralmente são trabalhadores rurais,

alfaiates e carpinteiros, que se afastam da família e do lugar em que vivem em busca de

fortuna e melhores condições de vida.

Enquanto para alguns psicanalistas, esses textos possuem símbolos e motivos

inconscientes que são instrumentos para refletir sobre a realidade, expressar desejos,

oferecendo estratégias de sobrevivência para os camponeses. Para outros, a magia é uma

forma de passar a idéia de conformismo e fuga diante dos problemas reais.

Para Bettelheim (Apud, Zilberman, 1987), o maravilhoso, os príncipes, as princesas,

representam de modo figurado a realidade. Assim, o recurso fantástico oferece meios

concretos de tradução de certos mecanismos sociais e econômicos e da forma como se

organiza a sociedade. Zilberman (1987, p.92) afirma que o conto de fadas no período feudal

refletia o anseio da camada popular em relação aos opressores e tinha um valor

emancipatório. Somente depois que foram adaptados pelos irmãos Grimm é que passaram a

ter conotação pedagógica.

Apesar das histórias terem sido modificadas em face dos diferentes contextos por

quais passaram, a tradição oral, como vimos, também tem seu valor histórico e atua como

fonte de informações sobre a sociedade francesa daquela época. Conforme Cascudo (1984, p.

236), ela nos “revela informação histórica, etnológica, sociológica, jurídica, social [...] É um

documento vivo (...) Para nós é o primeiro leite individual”.

É evidente que o conto popular não deve ser tomado como única fonte de informação

sobre o passado, mesmo porque o próprio momento histórico, o narrador e o local da narração

são agentes de transformação do texto. Mas, certamente, pode nos fornecer muitas pistas para

compreender nossa história. Sobre isso, Josualdo nos fala que é graças a multifuncionalidade

das narrativas populares que,

“passamos a perceber os primeiros estágios das relações humanas e das lutas, nas quais os mais débeis se defendiam dos mais poderosos; entre ricos

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e pobres, maus e bons; de como a coletividade castigava os malvado e os homens sonhavam em livrar-se da ignorância, da tirania dos fatais; e de como foram estruturando seu instrumento de luta e de libertação” (S/d, p.114)

É interessante notar que apesar das constantes mudanças e adaptações que sofre o

texto, existem motivos fixos que ultrapassam o tempo e a história. Alguns desses elementos já

não fazem parte mais da nossa organização social, mostrando-nos o forte parentesco que

existe entre os contos. Dito isto, percebemos a importância de estudá-los relacionando-os com

o conjunto de relações que perpassam sobre ele. Nem sempre as adaptações dizem respeito à

realidade, podendo assumir significados diferentes, a depender dos motivos utilizados.

Algumas adaptações dizem respeito apenas à intersecção de motivos ou aos variados tipos de

conto. Propp (1997) afirma que os elementos de uma organização social desaparecida são

resquícios que possibilitam estudar a origem de muitos motivos do conto. Sendo que, alguns

desses motivos podem não estar ligados a nenhuma instituição.

No Brasil, as histórias populares foram trazidas e difundidas com velocidade. Ao

serem mescladas com a tradição oral indígena e africana surgiram outras variações dos textos.

Segundo Costa, existem elementos peculiares tanto na literatura oral portuguesa, quanto na

literatura oral brasileira que tornam o conto popular um texto universal, mostrando-nos que

ela só pode ser considerada nacional no que diz respeito a sua realização, já que

principalmente em nosso país ela não tem nacionalidade, é “virtual” (1998, p. 28).

Cascudo relata que a narração das histórias costumava acontecer durante a noite,

horário final das tarefas cotidianas e momento mais tranqüilo e sossegado para se conseguir a

atenção dos ouvintes. Contudo, mesmo diante das coletas e estudos sobre a diversidade das

manifestações orais, que nos mostram a sua vivacidade, hoje o conto oral é visto por alguns

como algo que ficou no passado. A supervalorização do código escrito colaborou para

instituir o juízo de que os narradores são representativos de indivíduos pertencentes à classe

subjugada socialmente.

A escola também contribui para a dispersão dessa imagem, pois a literatura oral só é

trabalhada em projetos pedagógicos, como a semana do folclore, por exemplo, quando se

costuma apresentar a cultura popular sem nenhum subsídio crítico, mas sim como coisas

exóticas, do passado e distantes da realidade do aluno.

O fato de ser transmitido pela oralidade e refletir também a voz de nossos

antepassados, não significa que seja destinado somente aos mais idosos. Trata-se de um meio

de produção de conhecimento que está na memória coletiva. É uma prática ativa e quando não

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a percebemos de maneira explícita, podemos encontrá-la diluída e representada em outras

linguagens, o que contesta a necessidade que muitos têm de “resgatá-la”.

A própria escrita, do mesmo modo, assumiu um papel muito importante na divulgação

dos contos populares. As compilações feitas pelos autores mencionados contribuíram para que

outras classes também tivessem acesso a esse tipo de saber, uma vez que depois este acabava

voltando para a oralidade, pois a arte de contar histórias era muito mais frequente na época.

No próximo e ultimo capítulo, veremos como os campos poéticos da oralidade, os da

escrita e do visual estão sempre se cruzando, reafirmando a forte presença do oral na

produção dessas linguagens e vice-versa.

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3. O ORAL, O ESCRITO E O INDIVIDUAL NAS NARRATIVAS POPULARES.

Em toda a história sempre se observou a conservação dos traços populares na literatura

escrita. O encontro entre o universo da literatura popular e a literatura escrita está

representado claramente nas versões escritas que Charles Perrault e os irmãos Grimm deram

às histórias recolhidas da tradição oral. Essas histórias constituem a base da criação da

literatura infantil, por isso que o conto de fadas é sempre confundido com este gênero.

Entretanto, muito antes de receberem o estatuto de literatura infantil, os contos de

fadas não tinham como público alvo somente as crianças. Conforme Zilberman (1987, p.45)

os contos eram narrados por e para adultos das camadas mais pobres. Somente com o advento

da escola, na Idade Moderna, é que o gênero passa a ser utilizado com a finalidade didática de

transmitir valores burgueses e a representar a infância. A autora critica a intenção pragmática

da literatura infantil, afirmando que a partir do momento em que se destina apenas a esse fim,

torna-se um instrumento de dominação da criança. A delimitação do seu papel social faz com

que a mesma perca o seu estatuto de arte literária.

No Brasil, as primeiras adaptações literárias infantis foram realizadas pelo europeu

Carl Jansen, no século XIX. Sua produção tinha a mesma preocupação que norteava o início

dessa produção no Ocidente: produzir textos que estivessem condizentes com a obrigação de

formação dos jovens. Somente com Monteiro Lobato é que temos as primeiras produções

literárias infantis que tinham como fonte a tradição folclórica nacional, posto que Carl Jansen

utilizou em seu trabalho somente os contos de fadas europeus, sobretudo os de origem Ibérica.

Além da origem histórica do livro infantil estar na adaptação da literatura oral, outro

motivo que aproxima ambos é o fato de que, muitas vezes, tanto a criança quanto o narrador

popular encontram-se na mesma situação de inferioridade na sociedade, pois se opõem à

superioridade social do adulto e da linguagem escrita.

Embora exista a suspeita de que Perrault tenha tido o primeiro contato com essas

histórias através das amas-de-leite, não se sabe realmente como isso aconteceu. Seus contos

mesclam os motivos tradicionais e outros de sua própria criação, o que impossibilita delimitar

precisamente as fronteiras entre o oral e o escrito em seus textos. As histórias publicadas por

ele, como Gato de botas, Cinderela, Pequeno Príncipe e Chapeuzinho Vermelho, mesmo

tendo sido adaptadas para atender o gosto de determinado público de leitores, acabaram

retornando para a oralidade através do hábito de ler histórias em voz alta para crianças, nas

aldeias e outras reuniões.

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Josualdo afirma que apesar da obra de Perrault ter como base a origem popular, o

maravilhoso não ocupa lugar central nos seus textos. Seus contos são constituídos também de

informações de seu tempo e de sua experiência recolhida, são “fragmentos e documentos

dessa história poética que todos possuem, mas não foi escrita” (s/d, p. 129).

Darnton (1986, p.24) afirma que provavelmente muitos franceses tenham tomado

conhecimento desses textos através dos livros de Perrault e de outros autores, e não

diretamente da tradição oral. Para o autor, mesmo os irmãos Grimm, que impulsionados pelo

ideário nacionalista do romantismo, montaram coletâneas de histórias populares contribuindo

para sua divulgação, tiveram acesso primeiramente aos contos da tradição literária francesa,

pois as publicações impressas foram a principal fonte de acesso que seus pais utilizaram para

tomar conhecimento dos contos que costumavam narrar para os seus filhos.

Mesmo não tendo certeza quanto à veracidade da afirmação de Darnton sobre a forma

como os Grimm tiveram o primeiro contato com os contos populares, podemos perceber

claramente o movimento circular que sempre houve e se conservou entre a tradição oral e a

tradição literária escrita, principalmente com a literatura infantil.

Em Matrizes Impressas da Oralidade (1995, p.50), Jerusa Pires Ferreira, ao buscar os

textos difundidos pelas editoras populares brasileiras e nas coletâneas infantis, reafirma a

permanente relação intertextual entre os textos orais e escritos, mostrando como o impresso

pode vir a transformar-se em oralidade através do processo de criação por qual passa o texto

ao ser adaptado pelos seus narradores/autores.

3.1 ESPELHO CRISTALINO E A BRANCA DE NEVE DE IRARÁ

Embora não possamos descrever com exatidão o trajeto do impresso para o oral e vice-

versa, é possível supor que o conto que aqui se deseja analisar, seja realmente uma recriação

da história Branca de neve e os sete anões, pois a literatura infantil é também um importante

instrumento de divulgação da tradição oral popular e se torna “matrizes acessíveis aos

narradores populares”, ao funcionar como forma de apoio à oralidade (Costa, 1998, p.30).

Entre as várias versões da história da Branca de neve e os sete anões, a mais

conhecida foi coletada pelos irmãos Grimm, publicada por volta dos anos de 1912 a 1822,

juntamente com as outras histórias na obra Conto de fadas para crianças e adultos. Muitas

outras versões foram adaptadas em filmes, livros e TV. No cinema, a mais conhecida é

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14

criação dos Estudos Disney, lançada em 1937 e premiada com o Oscar Especial da Academia

de Artes e Ciências Cinematográficas.

A versão coletada em nossa pesquisa contém elementos fixos que nos remetem à

referida história. Entretanto, apresenta alguns elementos que dão uma nova recriação ao

conto, diferenciando-se do texto comum à tradição escrita.

O conto se enquadra na estrutura geral dos contos de encantamento proposta por

Wladimir Propp em Morfologia do conto maravilhoso (Propp, 1984). Segundo Propp, apesar

de ser difícil prever uma análise exata do conto, posto que eles se modificam com a influência

de fatores externos, o conto de encantamento possui em sua estrutura a presença de 31

funções que são as ações dos personagens. Cinco delas são consideradas funções básicas desta

categoria: a partida do herói, as tarefas difíceis, a ajuda do elemento mágico, o

reconhecimento e o final feliz.

Apesar de o conto “Espelho cristalino” condizer com a essa estrutura geral, ela não

está tão clara como nos contos russos que Propp analisa em seu trabalho. Isto porque, como

veremos adiante, trata-se de um texto diferente das versões mais populares e que

provavelmente sofreu adaptações provenientes de influências externas.

Vale ressaltar que o objetivo geral desse estudo não é enquadrar o conto em uma

estrutura fixa, mas sim mostrar que, apesar de ter uma estrutura não muito variável, as

diferenças contidas nele atestam a potencialidade de recriação dos contos populares.

A primeira alteração quanto à teoria de Propp está na caracterização do herói. O autor

tematiza com mais frequência as características do herói-buscador, ou seja, aquele que se

afasta do seu ambiente natural em busca de melhorias para ele (que geralmente é pobre) ou

em benefício de sua comunidade. No conto analisado, temos a presença do herói-vítima,

pouco citado pelo autor.

A primeira função, a partida do herói, acontece de maneira inconsciente por parte da

heroína, que é carregada por um empregado foi contratado por sua mãe para levá-la para o

meio da mata para ser devorada pela onça.

As tarefas difíceis são apresentadas no decorrer da história e solucionadas com o

auxílio dos ajudantes (mágicos). Nesse caso, os objetos mágicos não são seres sobrenaturais,

mas sim o empregado, que não tem coragem de matá-la: “Eu num vou matar”, ele diz; a onça,

que também fica com pena e não tem coragem de comê-la; e o coveiro que a rouba do

cemitério, não deixando que a enterrem.

Page 15: O CONTO ESPELHO CRISTALINO E A BRANCA DE NEVE NA TRADIÇÃO ORAL DE IRARÁ

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O reconhecimento da menina como heroína acontece depois que ela morre e

transforma-se em santa. Esse fato modifica o final feliz convencional, última função de conto.

De acordo com Meletinski (1984, p.101) este tipo de conto infringe as normas de dependência

do conto proposta por Propp. Não há a resposta final esperada, ou seja, a reparação do dano

ocasionado pela perseguição e inveja da mãe.

Verificamos também a presença de outros elementos importantes, que ligam as

funções, como por exemplo, a “informação”, elemento que possibilita que um personagem

tome conhecimento sobre outro. No conto, isso acontece por meio do “espelho”, motivo que

possibilita que a mãe recebe as notícias da filha.

Como em todas as versões conhecidas, a história é norteada pelo conflito familiar,

com a diferença de que a intriga ocorre entre mãe e filha e não entre heroína e madrasta, como

de costume. A narradora parece ter consciência de que se trata da história da Branca de neve,

pois a apresenta assim: “Essa daí era Branca de neve... era... Meu Espelho cristalino. Via falar

Meu Espelho cristalino?”. Ela confunde os nomes das personagens, em seguida esclarece

dizendo ser Branca de Neve, a mãe e Branca Subiras Neves, a filha:

Sangue Subiras Neves era uma moça. Ela era bonita, aí nome dela era Sangue Subiras Neves, chamava de Branca de Neve, a moça. Aí foi indo (...) quando ela ficou grávida teve uma menina, a coisa mais linda do mundo! Mais linda do que ela ainda. Aí ela botou o nome de Sangue Subiras Neves.

A heroína do conto passa a ter nome e sobrenome. Neve, que antes era parte do nome

da personagem porque ela era “branca como neve”, perde essa conotação e funciona aí como

um mero sobrenome. Segundo Costa (1998, p.28), a preocupação em nomear os personagens

faz com que os narradores inventem um nome na hora da narração. Esse nome é quase

sempre comum ao seu contexto.

O primeiro nome da heroína, “Sangue”, também nos causa estranheza. Esse elemento

pode ser influência ou assimilação de outras versões desse conto. Em algumas versões que

Bettelheim traz em sua obra A Psicanálise dos contos de fadas, os contos sempre iniciam

com o pedido da mãe ou pai para que sua filha nasça “(...) branca como a neve e com as faces

vermelhas como sangue (Bettelheim, 1980, p. 239). Talvez esteja aí explicação para o

emprego do estranho nome.

O caçador, personagem que recebe a incumbência de matar a menina, muito presente

nas versões escritas, é substituído pelo empregado, elemento que se aproxima de nossa

conjuntura atual. Os sete anões são substituídos por doze ladrões, variação que ocorre

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16

também em algumas versões do cinema. Os ladrões tentam protegê-la dos perigos que a

rodeiam, aconselhando-a para não sair de casa e nem abrir a porta para ninguém. Contudo, a

menina cai em tentação e atende a feiticeira.

Nesse momento, temos outra surpresa, pois a feiticeira utiliza um sapatinho e não

uma maçã para envenená-la. A presença do motivo do sapatinho parece ser uma interferência

da história da Cinderela, reafirmando a mobilidade inerente aos motivos. Depois que a

menina morre, os ladrões a levam em um caixão de ouro para o cemitério. Assim como

procede em outras versões com os anões, os ladrões não têm coragem de enterrá-la. No lugar

do príncipe aparece o coveiro do cemitério que a leva para sua casa e tenta escondê-la da

família.

Como foi aludido, a conclusão do conto se afasta do final feliz consagrado pertinente

aos contos de fadas. A heroína vira santa e a mãe, que se arrepende da maldade, morre no

final. A alteração do final do conto enfatiza a atuação da narradora na recriação desse texto.

Conforme a entrevista que a narradora nos concedeu, a mesma afirma pertencer à religião

Católica. Com base nessa afirmação, fica mais fácil notar que sua visão de mundo está

condicionada pela moral religiosa. A santificação da menina e a punição da mãe com a morte

expressam o destino daqueles que fazem o bem, em contraposição àqueles que praticam o

mal.

A preocupação com a moral é apresentada claramente nas observações e advertências

que Dona Altamira faz no transcorrer de sua narrativa:

Que até no princípio do homem, já vem num é? Do princípio do mundo já a usura até dos pais (...) agora como é que uma pessoa faz um castigo desse com a filha, né? Só porque a filha era mais bonita que a mãe! Tá vendo? Tá vendo? (...) No final da história a mãe é que morreu.

Desse modo, percebemos nitidamente que a visão de mundo da narradora contribuiu

muito para a atualização deste texto. Ao mesmo tempo, nota-se a interferência do conto de

exemplo, fato muito comum às histórias infantis, quando possuem uma intenção pedagógica.

Encontramos outra versão do conto “Branca de neve e os sete anões” na obra Contos

Populares da Bahia, narrada por D. Benildes Cardoso Santana, moradora da cidade de

Jacobina – BA, recolhido por Doralice Xavier Alcoforado e Maria Del Rosário Suárez. Essa

versão também contém elementos particulares que a diferencia tanto da versão analisada

anteriormente, como da versão mais conhecida e, igualmente, não apresenta claramente a

estrutura geral definida por Propp.

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A história apresenta a situação inicial conhecida, na qual apresenta os personagens e o

conflito entre a Branca de Neve e a madrasta. Em seguida, relata a partida da heroína, que

acontece voluntariamente, por conta dos maus tratos da inimiga. No decorrer da história, um

diálogo entre a menina e os Sete Anões corresponde ao romance tradicional Donzela

Guerreira. Percebemos aí, uma fusão entre os gêneros populares, fato recorrente aos gêneros

literários:

- Filho, chama, chamei, Saiu à quinta passear Dão João de como moça Primeira de imaginar!

Os anões respondem:

Ô que rosa bonita Para uma dama entonar! Ô que cravo bonito Para um cidadão se entonar!

Um outro aspecto que chama a atenção nessa variante é que a madrasta toma a

menina várias vezes como morta, mas não consegue matá-la em nenhuma de suas tentativas.

A vilã fica sabendo que Branca de Neve está sempre um ano após a tentativa de homicídio:

“Depois de um ano, a mulher foi ao espelho e disse (...) depois de um ano, a mulher foi no

espelho e perguntou (...)”

A madrasta utiliza a “maçã”, motivo reentrante dessa história, empregado para

envenenar a heroína. Depois utiliza um “espartilho” como arma para matá-la. A menina

compra a peça de vestuário, e ao colocar “na cintura cai e morre”. Na última tentativa de

assassinato cometido pela madrasta, a mesma pede que a menina suba na janela. Esta, ao

obedecer a mulher, cai da janela, parecendo novamente estar morta.

Temos outro fato que subverte a ordem das funções básicas estabelecidas por Propp,

que aumenta distância dessa variante da história tradicional. Trata-se do fato da personagem

da Branca de Neve possuir certa autonomia, que a diferencia das heroínas das demais

versões, pois no conto não há a insinuação de que ela tenha recebido qualquer ajuda para ter

conseguido sobreviver das tentativas de homicídio que sofre.

A ultima função do conto, o final feliz, é preservada nessa versão. A inimiga recebe a

punição morrendo por causa de uma queda de cima de um sobrado, na qual quebra o

pescoço, justamente no dia do casamento de Branca de Neve.

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Nas duas versões aqui citadas, as adaptações nelas contidas reafirmam o potencial de

criação e a atuação do narrador frente ao texto. O processo de criação que envolve cada

performance é constituído de uma combinação harmoniosa de elementos fixos da memória

coletiva, do contexto e da realidade individual de cada narrador. É justamente o toque

individual que vai dar diferenciar uma versão das outras.

Esse jogo de trocas harmonioso entre o novo e o antigo é também muito presente na

literatura escrita. Eliot (1989, p.40) ao tratar da preocupação do poeta em respeitar a tradição,

diz que essa visitação ao passado é essencial para o Poeta tradicional2 consciente. As

novidades acrescidas em sua produção apenas ferem levemente a ordem estabelecida pela

tradição, não atingindo a sua totalidade. O passado deve ser modificado, ao mesmo tempo em

que presente deve ser orientado pelo passado.

O entrelaçamento da literatura oral e escrita acompanha outras produções literárias que

recorrem à estrutura consagrada dos contos de fadas tradicionais adaptado-as em outros

gêneros. No conto “Espelho Cristalino” temos um exemplo da vivacidade da literatura oral e

de como a literatura infantil e os outros recursos midiáticos como a indústria do livro, a TV e

o cinema têm sido úteis para a revitalização da tradição oral. Pensar diferente significa deixar

de “ver o oral apenas na infância da literatura e a escrita como o desembocar e diluição da

tradição oral” (Santos, 1995, p.37). Percebemos que, embora existam peculiaridades inerentes

a cada tipo de linguagem, não se deve pensá-las separadamente, como se o uso de um tipo

excluísse os outros. Na realidade, a comunicação se processa através da conjunção de vários

tipos. Na cultura popular, isso fica mais evidente como se tem procurado mostrar.

2 Segundo Eliot, o termo tradicional refere-se aos poetas que não tomam o passado como um modelo a seguir, mas sim como uma consciência, pois a tradição não é herdada, é conquistada, exigindo do poeta que carregue consigo um sentimento histórico.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao analisar o conto popular a partir do entrelaçamento entre a literatura oral e

literatura infantil, foi possível perceber o caminho trilhado pelos contos literário desde a

antiguidade até os nossos dias e como esse gênero literário vem adaptando-se ao contexto e às

mudanças históricas e sociais por qual vem passando as sociedades, a fim de exercer sua

função comunicativa.

Ao adaptarem-se a uma nova realidade social, as narrativas orais sempre preservam

motivos centrais. Isto significa dizer que, mesmo quando a variação de um conto se distancia

bastante de sua versão mais conhecida, existem elementos que se mantêm, possibilitando-nos

o reconhecimento do tipo do conto narrado.

No conto popular, o tradicional e as atualizações feitas pelo narrador convivem juntos.

No momento da performance, o narrador revela informações tanto da memória coletiva, fonte

da criatividade popular e de armazenamento da tradição, quanto de sua realidade individual.

No contos analisados, por exemplo, temos um expressivo exemplo do jogo dialógico entre o

passado e o presente; entre a memória coletiva e a subjetividade do narrador. Movimento

circular que ocorre sempre nas narrativas populares. O conto encontra-se imbricado por uma

vontade reveladora dos valores de sua época e pela exteriorização dos sentimentos do

narrador.

Nesta análise, compreendemos que em meio aos “entrelaces da tradição” (Costa,

1998) há a intenção de uma subjetividade querendo se mostrar no decorrer da narrativa. É

possível ouvir a “voz” da narradora, quanto deixa claro em seu discurso a sua visão de mundo

sobre a conduta moral do homem.

A inserção do conto “Espelho Cristalino” no acervo do NEO revela também o

movimento realimentador da tradição oral e a literatura infantil. Esta é a única versão

encontrada no nosso acervo, posto que é uma história não muito comum de aparecer no

repertório dos narradores populares e, como afirmamos está mais presente no repertório da

literatura infantil.. Embora não tenhamos informações se a narradora chegou a ter acesso a

versão escrita desse conto, o fato é que ele se tornou popularizado principalmente através das

versões escritas. As adaptações contidas na narrativa analisada contribuem para que o oral e o

escrito sempre coexistam.

Como vimos, o conto pode também se apresentar como uma extensão da realidade.

Por isso, fica difícil sabermos quais as fontes que tiveram maior influência nas adaptações

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desse texto. O que fica claro é que as versões orais da história da Branca de Neve e os sete

anões têm forte ligação com a literatura infantil. Isso prova que as duas formas de expressão

literárias – a oral e a escrita – estão sempre dialogando e realimentando-se, pondo em

questionamento a idéia equivocada de que o contato com a indústria do livro, a TV e o

cinema, possa ser uma ameaça para a memória oral.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ANEXOS

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UNEB – NÚCLEO DE ESTUDOS DA ORALIDADE – CAMPUS II

NEO 57.6 ESPELHO CRISTALINO NEO XXVIII/A

Narrado por Altamira Miranda dos Reis, 57 anos, natural de Irará – BA. Fazenda Barrado, Irará – BA, 29.10.05. Nara, Cristiane, Edil.

PESQ.: Essa daí era a qual? INF.: Essa daí era de branca... Era... meu espelho cristalino. Via falar meu espelho

cristalino? Branca de neve e Sangue Subiras Neves. Sangue Subiras Neves,era uma moça, ela era bonita aí o nome dela era Sangue Subiras Neve, Branca de Neve, chamava de Branca de Neve, a moça. Aí foi indo, foi indo... Ela apareceu grávida e ela sempre gostava de ir no Espelho, se reparava toda e falava assim:

- Meu Espelho Cristalino no mundo terás uma moça mais linda que eu? O Espelho falava que não. Aí vez em quando ela ia no Espelho, em vez em quando ela

se arrumava e ia no Espelho, o Espelho dizendo que não. - Tem uma moça mais linda que eu? O Espelho Cristalino dizia: - Não! Aí foi indo, foi indo, ela apareceu grávida, quando ela apareceu grávida teve uma

menina, a coisa mais linda do mundo, mais linda do que ela ainda, aí ela botou o nome da menina: Sangue Subiras Neve. Aí quando ela botou o nome da menina Sangue Subiras Neves, que ela foi no espelho e perguntou:

-Meu Espelho Cristalino, no mundo terás uma moça mais linda do que eu? Ele falou: tem! Aí ela perguntou: - Quem é? Ele respondeu: Sangue Subiras Neves- que era filha dela. Aí o que foi que ela fez: ela chegou com inveja, né? Da filha... [que até no principio do

homem já vem, num é? Do principio do mundo já vem a usura também até dos pais] Ao ela chegou falou que ia mandar matar a menina, que era pra quando ela ir no Espelho, o Espelho falar num falar com ela que tinha a filha dela era mais bonita. Aí ela contratou como um empregado dela, mandou carregar essa menina pra longe, pra um mato que era pra onça comer a menina.

Isso mesmo ele fez: Pegou a menina colocou atrás duma oca da onça e colocou a menina. Aí diz que a onça vinha olhava prum canto, olhava pro outro e via aquela menina tão linda, que não bolia nem com a menina. Aí ela falou assim:

- Venha cá empregado, sabe o que é que ta bom de fazer é você chegar lá matar esta menina e tirar a língua dela e trazer pra eu saber se você matou essa menina mesmo.

Aí esse mesmo ele fez, saiu. Aí quando ele chegou lá o coração dele falou: Eu num vou matar. Aí que foi que ele fez: ele pegou uma cachorrinha, chegou lá e tirou a lingüinha da cachorra e trouxe pra dá a mãe dela e disse que era da menina, pra num matar a menina. Aí num foi nada não... Aí ela foi pro espelho e ela doida no espelho:

- Meu Espelho Cristalino, no mundo terás uma moça mais linda do que eu? Ele: - Tem.

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Ela disse: - Esse home não matou essa menina! Danou... Porque viu a língua era a prova né? E ainda ela viu a língua e num viu... E o

Espelho só dizendo que tinha [...] Aí o que foi que ela fez, ela chegou e falou: - Espia o que é que eu vou faço...

Aí chegou convidou uma velha que disse que era muito feiticeira, a velha era gente ruim e mandou a velha percurar saber onde essa menina andava, aí a velha saiu andando, vai num canto, vai no outro, vai num canto vai no outro, mas num tinha encrontado a menina ainda. Aí vai passando uns ladrão, quando os ladrão vai passando que viu a menina atrás da oca da onça, carregou a menina, carregou a menina, chegou dentro da casa dele colocou a menina, escondeu e falou com ela que num botasse a cara pra fora de jeito nenhum, pra num sair que ele ia trabalhar e dava de tudo à menina dentro de casa, trancada, mas que ela num saísse que era tão bonita que uma pessoa ia roubar a menina. Aí quando mesmo ela fez, ficou, ficou coitadinha, ficou dende casa... Quando é um certo dia, chegou a infeliz da feiticeira, quando chegou na porta com um sapatinho pequenininho chamando a menina pra menina botar o pezinho pela janela pra ver se o sapatinho dava no pé da menina. Aí a menina chegou ficou com medo, ficou com medo, só lembrando que os irmão num queria que ela saísse, era doze ladrão que criava essa menina. Aí ela chegou ficou, ficou, quando foi no outro dia no mesmo horário, chegou a velha de novo castigando a menina:

- Venha minha filha, venha num vou lhe bolir não. Abra aqui a janelinha, abra aqui minha filha, deixe eu ver se esse sapatinho dá em seu pé..

Aí ela veio, quando ela veio que botou o pezinho na janela, a velha matou a menina. Aí puxou ela pra fora, quando ela puxou, deixou a menina morta.

Aí pronto: Quando os ladrão chegou que viu aquilo... mas foi um chororó e foi aquele cramor:

- O que é que foi que a gente faz, o que é que a gente faz? Aí pegou a menina fez um caixão muito bonito de ouro, levou a menina pro sumitério,

quando chegou lá num enterrou a menina, colocou ela em cima de uma carneira e deixou lá... Aí num foi nada... Aí quando pensou que não chegou o cavador de cova, chego o

zelador do sumitério e viu aquele caixão muito bonito lá, ficaro chorando, se acabando que disse que nunca viu uma coisa linda daquela. Carregou o caixão, do cemitério e colocou o caixão na casa da mãe dele [e vai...a história é cumprida viu?] Botou dentro da casa da mãe dele, trancou esse caixão e disse que não queria que a irmã entrasse pra varrer de jeito nenhum, no quarto pra dele pra varrer, pra num ver esse caixão dentro de casa. Aí as irmã falou assim:

- Ô fulano por que é que você tem... Esse caixão, eu... por que é que você num quer que eu varra de jeito nenhum esse quarto? Coisa que a gente é acostumado a entrar pra barrer quarto.

Ele disse: Não, não, num quero não que tem um segredo aqui, num quero que ninguém veja. Aí ela foi indo, foi indo depois ele esqueceu a chave. Quando ele esqueceu a chave do

quarto ela pegou a chave destrancou pra varrer o quarto. Quando ela vai ver o caixão de novo dentro do quarto. Aí pronto, ficaro esse povo tudo se acabando: Onde foi que ele achou, onde foi que ele num achou...

Aí a menina chegou virou uma santa. A menina virou uma santa... e mãe doida lá no Espelho só perguntando. Ói o Espelho só deixou de falar com ela, que ela era mais bonita que a menina depois que a menina morreu mesmo. Mas depois que a menina virou santa que ela foi no Espelho e perguntou:

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- Meu Espelho Cristalino, no mundo terás uma moça mais bonita do que eu? Ele falou: - Tem. - Quem é? - Sangue Subiras Neves. Foi que ela virou santa. Aí a mãe se apaixonou, quando a mãe viu mesmo que num deu

mais jeito mesmo que ela virou santa e ela chegou se desmalhou. Aí morreu, a mãe morreu. No final da história a mãe que morreu. [Agora como é que a pessoa faz um castigo desse com a filha né? Só porque a filha era mais bonita do que a mãe? Tá vendo? Ta vendo?

PESQ.: É própria mãe, num é? INF.: É a própria mãe. Essa daí vó contava a gente chegava a chorar. PESQ.; Sua vó? INF.: É minha vó contava a gente.