o conto de fadas com pitadas de neil gaiman

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O conto de fadas com pitadas de terror de Neil Gaiman Não é segredo que Neil Gaiman sabe fazer uma história grande em poucas páginas, e Os Lobos Dentro das Paredes é um exemplo bem curioso disso. Considerado infantil, o hq apresenta uma característica muito semelhante aos contos de fadas, sendo também admitido como uma fábula moderna. Dessa forma, tal como os contos de fadas, esta obra de Gaiman apresenta seus aspectos de terror. Antes de tudo seria bom fazer uma pequena explicação; o que significa o gênero terror? Antigamente o conceito de uma obra de cunho terrífico era bastante diferente do de hoje. Um filme, livro, ou qualquer outra coisa com tal gênero (que tivesse boa qualidade) significaria dizer que o filme trouxera ensinamentos por meio do medo, horror e suspense. Porém, hoje, a junção de “dar medo + ter alguma filosofia” cabe a cada um para considerar um filme bom ou não; não significa dizer que um livro ou filme não é de terror por não trazer filosofia alguma – mesmo com o medo, horror e suspense presente. Mas qual você preferiria assistir: um que tenha os dois ou só um? O ponto de toda a questão é que acredita-se que os contos de fadas são terror por trazer através do medo (de ver um exemplo errado e o que acontece a tal pessoa que desobedece), uma lição. Portanto os contos de fadas são uma das primeiras histórias em que o gênero aparece, mesmo que de forma sutil, em relação às versões atuais conhecidas pela maioria, ou de forma mais descarada, em relação às primeiras versões – aos contos originais. E o livro em questão restitui de forma simples e sutil o teor de contos de fadas-terror de antigamente. Como é um livro muito pequeno, não vou amenizar nos spoilers. Ninguém acredita em Lucy a princípio, ao dizer que ouvia ruídos dentro das paredes de casa. Todo mundo insistia em lhe responder: “Você sabe o que dizemSe os lobos saírem de dentro da parede está tudo acabado.” E isso a incomodava bastante, confiando sua revolta a seu porquinho de pelúcia. Só depois que de fato, lobos saíram das paredes e tomaram a casa, foi que obviamente acreditaram e passaram a morar no jardim da casa, como refúgio. Depois de lembrar que seu porquinho havia ficado para trás, na casa, e pensar que os lobos “poderiam fazer coisas terríveis a ele”, foi que Lucy resolveu voltar e resgatá-lo. “Então Lucy rastejou pelo jardim, mais silenciosa que qualquer camundongo. Ela deslizou pelos degraus, passou pela porta dos fundos e entrou na casa.” Para escapar de um lobo que sentira sua presença, ela teve de se esgueirar para dentro de uma parede, de onde os lobos vieram, e pensou que não era um lugar tão ruim para se ficar. Ela resolve então voltar ao jardim e chamar sua família para morar dentro das paredes; eles se assustam a princípio, mas aceitam depois. Todos entram e rastejam para dentro das paredes, e de lá presenciam os lobos numa festa, comendo geleia e passando as sobras pelas paredes, ouvindo música e dançando, jogando o videogame do irmão novo e batendo todos os recordes, subindo as escadas e descendo pelo corrimão, e tocando a segunda melhor tuba do pai. Todos da família reclamam e ficam furiosos. No mesmo momento todos saem gritando de dentro das paredes, e os lobos se assustam dizendo “Quando as pessoas saem de dentro das paredes está tudo acabado!” Eles, então, retomam a casa e tudo volta ao normalAté que Lucy outra vez ouve algo: um elefante tentando não respirar, e pede a opinião do porquinho se devia contar aos pais ou não. Ele finalmente responde: “Eu tenho certeza de que eles logo descobrirão”. Página 1 de 2 Literatortura | o maior blog literário do Brasil! 17/12/2013 http://literatortura.com/2013/11/o-conto-de-fadas-com-pitadas-de-terro-de-neil-gaiman/

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O conto de fadas com pitadas de

terror de Neil Gaiman

Não é segredo que Neil Gaiman sabe fazer

uma história grande em poucas páginas, e Os

Lobos Dentro das Paredes é um exemplo bem

curioso disso. Considerado infantil, o hq

apresenta uma característica muito

semelhante aos contos de fadas, sendo

também admitido como uma fábula

moderna. Dessa forma, tal como os contos de

fadas, esta obra de Gaiman apresenta seus

aspectos de terror.

 Antes de tudo seria bom fazer uma pequena

explicação; o que significa o gênero terror?

Antigamente o conceito de uma obra de cunho terrífico era bastante diferente do de hoje. Um filme,

livro, ou qualquer outra coisa com tal gênero (que tivesse boa qualidade) significaria dizer que o filme

trouxera ensinamentos por meio do medo, horror e suspense. Porém, hoje, a junção de “dar medo +

ter alguma filosofia” cabe a cada um para considerar um filme bom ou não; não significa dizer que um

livro ou filme não é de terror por não trazer filosofia alguma – mesmo com o medo, horror e suspense

presente. Mas qual você preferiria assistir: um que tenha os dois ou só um? O ponto de toda a questão

é que acredita-se que os contos de fadas são terror por trazer através do medo (de ver um exemplo

errado e o que acontece a tal pessoa que desobedece), uma lição. Portanto os contos de fadas são

uma das primeiras histórias em que o gênero aparece, mesmo que de forma sutil, em relação às

versões atuais conhecidas pela maioria, ou de forma mais descarada, em relação às primeiras versões

– aos contos originais.

 E o livro em questão restitui de forma simples e sutil o teor de contos de fadas-terror de antigamente.

Como é um livro muito pequeno, não vou amenizar nos spoilers. Ninguém acredita em Lucy a princípio,

ao dizer que ouvia ruídos dentro das paredes de casa. Todo mundo insistia em lhe responder: “Você

sabe o que dizem… Se os lobos saírem de dentro da parede está tudo acabado.” E isso a incomodava

bastante, confiando sua revolta a seu porquinho de pelúcia. Só depois que de fato, lobos saíram das

paredes e tomaram a casa, foi que obviamente acreditaram e passaram a morar no jardim da casa,

como refúgio. Depois de lembrar que seu porquinho havia ficado para trás, na casa, e pensar que os

lobos “poderiam fazer coisas terríveis a ele”, foi que Lucy resolveu voltar e resgatá-lo.

“Então Lucy rastejou pelo jardim, mais silenciosa que qualquer camundongo. Ela deslizou

pelos degraus, passou pela porta dos fundos e entrou na casa.” Para escapar de um lobo

que sentira sua presença, ela teve de se esgueirar para dentro de uma parede, de onde os

lobos vieram, e pensou que não era um lugar tão ruim para se ficar. Ela resolve então voltar

ao jardim e chamar sua família para morar dentro das paredes; eles se assustam a princípio,

mas aceitam depois. Todos entram e rastejam para dentro das paredes, e de lá presenciam

os lobos numa festa, comendo geleia e passando as sobras pelas paredes, ouvindo música e

dançando, jogando o videogame do irmão novo e batendo todos os recordes, subindo as

escadas e descendo pelo corrimão, e tocando a segunda melhor tuba do pai. Todos da

família reclamam e ficam furiosos. No mesmo momento todos saem gritando de dentro das

paredes, e os lobos se assustam dizendo “Quando as pessoas saem de dentro das paredes

está tudo acabado!”

Eles, então, retomam a casa e tudo volta ao normal… Até que Lucy outra vez ouve algo: um elefante

tentando não respirar, e pede a opinião do porquinho se devia contar aos pais ou não. Ele finalmente

responde: “Eu tenho certeza de que eles logo descobrirão”.

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Também como um conto de fada, o livro possibilita muitas interpretações. Se analisarmos de acordo

com a sociedade em geral, podemos enxergar a história como uma constante tomada do poder:

estamos sob o controle de poderes e rapidamente nos acostumamos com o sistema, às vezes nos

revoltamos e conseguimos o que é nosso de volta. Além disso, pode ser questionado como um

acréscimo por quê os lobos fizeram isso. Onde eles moravam antes? E para onde foram? Há uma

possibilidade de terem ido para o jardim e, se não tivesse a menção de que elefantes estariam pela

casa, a história se repetiria. Há também o modo sentimental e introspectivo de ver toda a trama da

mesma forma: as coisas se mostram sob nosso poder, perdemos e, às vezes retomamos (o caso da

família), às vezes não conseguimos de volta (o caso dos lobos); no entanto uma questão mais

introspectiva é que, tudo que ocorre na casa, seria na verdade uma analogia aos problemas da vida de

cada pessoa.

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*A saída dos lobos: o conhecimento de um novo problema;

*a rendição ao se mudar para o jardim: o sentimento de incapacidade diante do problema;

 *a volta e retomada da casa: conseguir encarar os problemas e vencê-los… Mas, sabendo que

poderão haver outros e estar sempre preparado, dando atenção aos avisos à sua volta (à Lucy).

 Os pais e o irmão da garota também são interessantes e acrescentam à “analogia da introspecção”

que, apesar de terem ciência do que acontece quando lobos saem das paredes (“está tudo acabado”,

ou seja, a aparição de um grande problema) eles preferem acreditar que isso nunca iria acontecer,

porque acham que são uma exceção. E é exatamente isso, muitas vezes nos achamos uma exceção –

os problemas grandes nunca vão nos atingir – então ficamos, de certa forma, alienados e relaxados.

 Apesar de ser uma história curta e de leitura dinâmica que pôde ser resumida aqui em poucas linhas,

vale a pena dar uma conferida nos desenhos de Dave McKean, cubista-expressionista, que são

sensacionais, com até mesmo algumas mensagens ocultas não difíceis de identificar, sem falar, claro,

na história em si.

Revisado por Carlos Cavalcanti

Sobre o autor

Italo Machado 19 anos, estudante de Cinema, interesse profundo pelo fictício e o

clássico; desde o terror psicológico ao romantismo, do realismo cronológico à

aventuras épicas de fantasia. Amante de tudo aquilo que pode mostrar filosofia da

maneira mais improvável – por isso passa boa parte do tempo escrevendo roteiros e

contos alegóricos mergulhados em surrealismo.

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