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1 RESUMO DO RELATÓRIO DE PESQUISA DO PROJETO O CONHECIMENTO DE MATEMÁTICA DO PROFESSOR DA ESCOLA BÁSICA PRODUZIDO NA FORMAÇÃO INICIAL O CONHECIMENTO DE MATEMÁTICA DO PROFESSOR: A FORMAÇÃO INICIAL E O CONCEITO DE FUNÇÃO Vera Clotilde Garcia 1 RESUMO: Este artigo traz resultados de pesquisa sobre o conhecimento sobre função, necessário para o professor. Caracteriza função como eixo central de uma rede de conexões no interior da matemática; com muitas facetas e representações, em diferentes contextos e domínios. No entanto, para a escola e nos cursos de licenciatura o significado predominante é limitado: função real de uma variável associadas a equações e gráficos. Visando ampliar o conhecimento do professor, foi realizada investigação, na modalidade experimento didático, com alunos de um curso de licenciatura, que evidenciou evolução cognitiva, frente a atividades que introduziram novas informações e conexões funções complexas, transformações geométricas. PALAVRAS-CHAVES: conhecimento de matemática do professor; formação de professores de matemática; conceito de função. MATHEMATICS TEACHER KNOWLEDGE: THE ROLE OF TEACHER’S EDUCATION, CONSIDERING THE CONCEPT OF FUNCTION ABSTRACT: This paper brings out some results of a research focused on the mathematics knowledge about function necessary to teaching. It characterizes function as central axis within mathematical knowledge, among many connections; showing different facets, dominium and representations. At school and at pre-service curriculum, function has a limited signification: real function of one real variable always represented by equations or graphic. On this line, a didactic experiment was developed, to amplify the concept and to contribute for positive changes into teacher education. It was verified 1 Instituto de Matemática, Universidade Federal do rio Grande do Sul

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RESUMO DO RELATÓRIO DE PESQUISA DO PROJETO

O CONHECIMENTO DE MATEMÁTICA DO PROFESSOR DA

ESCOLA BÁSICA PRODUZIDO NA FORMAÇÃO INICIAL

O CONHECIMENTO DE MATEMÁTICA DO PROFESSOR:

A FORMAÇÃO INICIAL E O CONCEITO DE FUNÇÃO

Vera Clotilde Garcia1

RESUMO: Este artigo traz resultados de pesquisa sobre o conhecimento sobre função,

necessário para o professor. Caracteriza função como eixo central de uma rede de

conexões no interior da matemática; com muitas facetas e representações, em diferentes

contextos e domínios. No entanto, para a escola e nos cursos de licenciatura o

significado predominante é limitado: função real de uma variável associadas a equações

e gráficos. Visando ampliar o conhecimento do professor, foi realizada investigação,

na modalidade experimento didático, com alunos de um curso de licenciatura, que

evidenciou evolução cognitiva, frente a atividades que introduziram novas informações

e conexões – funções complexas, transformações geométricas.

PALAVRAS-CHAVES: conhecimento de matemática do professor; formação de

professores de matemática; conceito de função.

MATHEMATICS TEACHER KNOWLEDGE: THE ROLE OF TEACHER’S

EDUCATION, CONSIDERING THE CONCEPT OF FUNCTION

ABSTRACT: This paper brings out some results of a research focused on the

mathematics knowledge about function necessary to teaching. It characterizes function

as central axis within mathematical knowledge, among many connections; showing

different facets, dominium and representations. At school and at pre-service curriculum,

function has a limited signification: real function of one real variable always represented

by equations or graphic. On this line, a didactic experiment was developed, to amplify

the concept and to contribute for positive changes into teacher education. It was verified

1 Instituto de Matemática, Universidade Federal do rio Grande do Sul

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schemas changing and new constructions, in face of activities connecting complex

functions and geometric transformations.

KEY WORDS: concept of function; mathematics knowledge; mathematics teacher’s

education.

Introdução

Este artigo traz relato da primeira etapa de um projeto de pesquisa cujo foco é o

processo de formação inicial de professores e o conhecimento matemático ali

produzido.

Tratamos, aqui, da investigação restrita ao conceito de função, com as seguintes

questões norteadoras: 1) Quais são os conhecimentos a respeito de função necessários

para o professor ensinar? 2) Qual é o conhecimento desejável sobre função para o

professor ensinar, do ponto de vista da escola? 3) O que os futuros professores de

matemática estão aprendendo a respeito de ―função‖? Os conhecimentos de função

produzidos no Curso de Licenciatura são os conhecimentos necessários para o

professor ensinar? 4) Que intervenções podem ser feitas para contribuir positivamente

para a aprendizagem de funções, na licenciatura?

O texto desenvolve-se em quatro partes.

A primeira e a segunda consistem em estudo teórico com objetivo de elaborar

um referencial para a investigação; a terceira traz resultados de uma investigação

orientada para descrever os significados de função na escola e num curso de

licenciatura; a última relata um experimento didático, desenvolvido com estudantes da

licenciatura, planejado para ampliar o conhecimento a respeito de função.

Este trabalho foi guiado pelas orientações do Relatório do Grupo de Pesquisa

sobre Formação de Professores que Ensinam Matemática (Paiva e Nacarato, 2006) com

relação às características de uma pesquisa neste tema: partir de uma pergunta bem

definida (que justifique a pesquisa); evidenciar rigor metodológico; articular as

informações obtidas com o referencial teórico; trazer resultados que apresentem

produção de conhecimento para/sobre a formação de professores; revelar o modo de

qualificar a mudança de estado quanto à formação de professores.

Quais são os conhecimentos de matemática necessários para o professor ensinar?

Uma grande quantidade de pesquisas empíricas e ensaios teóricos têm sido

desenvolvidos, partindo desta questão, confirmando a relevância do tema e justificando

a pesquisa. Encontramos diversos textos com o estado da arte da produção teórica dos

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últimos 20 anos (Ball, 1990; Selden & Selden, 1996; Ponte, 2000; Mewborn, 2001;

Bairral, 2003; Hill, Schilling e Ball, 2004; Palis, 2005; Fernandez, 2005), mostrando

que essa pergunta não tem uma resposta definitiva e que existem diferentes referenciais.

A literatura é vasta, mas a obra de Shulman (1986) é quase uma unanimidade.

Este autor define categorias do conhecimento básico, necessário para o professor

ensinar, incluindo conhecimento do conteúdo, que considera fundamental, pois, para

ensinar é necessário, antes de tudo, compreender. “O processo de ensino se inicia

necessariamente numa circunstância em que o professor compreende aquilo que o

aluno deve aprender e compreende como se deve ensinar”. (Shulman, 2005, p.9).

Fiorentini, Souza e Melo (1998) e Fiorentini (2004) complementam esta idéia,

salientando que, nos dias de hoje, espera-se que o professor seja investigador e crítico

em relação à prática e responsável, tanto pela produção de seus saberes, quanto pelo

desenvolvimento curricular da escola. Para corresponder a estes desafios, o professor

necessita de um conhecimento matemático amplo e profundo, que vá além das regras e

processos, para chegar à natureza e aos significados dos conceitos.

Diferentes autores produzem modelos teóricos. Ma (1999) relaciona o

conhecimento do professor com a noção de ―compreensão profunda da matemática

fundamental‖, a matemática composta por conceitos básicos para as aprendizagens

posteriores dos estudantes. Compreensão profunda refere-se à conexão entre diferentes

conceitos e a percepção de um, todo coerente e bem articulado. Para Ma e Kessel

(2002), o professor com compreensão profunda da matemática fundamental é capaz de

revelar e representar idéias e conexões entre as idéias matemáticas, traduzindo-as no

ensino ao dispor de múltiplas perspectivas para um mesmo tópico.

Veloso et al (2005), resumem os resultados de pesquisas e as tendências mais

atuais, da produção internacional:

―... o professor tem que ter conhecimentos relativos aos

conteúdos matemáticos e à natureza da matemática, de modo a

sentir-se à vontade quando a ensina, ser capaz de relacionar

idéias particulares ou procedimentos dentro da matemática...

Para isso o professor tem de ter uma compreensão profunda da

matemática, da sua natureza e da sua história, do papel da

matemática na sociedade e na formação do indivíduo...

...Conhecimento explícito matemático é mais do que enunciar

uma dada proposição ou procedimento, envolve sabermos as

razões e as relações, sermos capaz de explicar a outros por que

é assim, bem como relacionar idéias particulares ou

processos”. (VELOSO ET al, 2005, p.11)

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Estes aportes indicam características para o conhecimento do professor -

amplo, profundo e bem conectado.

Encontramos mais subsídios em Sfard (1991) e Dubinsky e McDonald (2001).

Os autores questionam a natureza do conhecimento matemático, que é conceitual,

buscando entender como os conceitos emergem. Existe um consenso no sentido de que

uma mesma idéia pode assumir diferentes significados - operacional/estrutural, ou

ação/processo/objeto – que caracterizam diferentes níveis de abstração e que a

compreensão do conceito consiste na habilidade em tratá-lo das diferentes maneiras, na

resolução dos problemas propostos. Marois e Tall (1996) diferenciam as expressões

―conhecimento profundo‖ e ―conhecimento amplo‖. O primeiro inclui os diferentes

níveis de abstração; o segundo inclui as diferentes facetas, diferentes formas de

representação do conceito, em diferentes contextos. Todos estes autores concordam que

a construção do conhecimento ocorre na direção da construção de objetos mais

abstratos, o que é um processo longo e difícil, mas indispensável para alguém poder

afirmar que sabe matemática.

Com relação à aprendizagem, Hiebert e Carpenter (1992) enfatizam a idéia de

conhecimento conceitual como uma numa rede bem conectada de idéias, na qual todas

as partes estão unidas com múltiplas ligações. Compreensão consiste em conectar estas

idéias e aprendizagem ocorre com a ampliação da compreensão, o que pode ser obtido

com a introdução de novas informações e de novas relações, estendendo os limites

conceituais.

A partir destes estudos, delineamos axiomas para este trabalho.

Axioma A: O conhecimento de matemática essencial para o professor ensinar vai além

da matemática escolar e é necessário para que ele possa criar oportunidades de interação,

discussão e investigação na sala de aula, assim como para tornar-se agente de mudanças

curriculares.

Axioma B: O conhecimento de matemática necessário para o professor é conceitual,

profundo, amplo e bem conectado. Inclui diferentes níveis de abstração, diferentes

significados e diferentes facetas do mesmo conceito.

Axioma C: A construção do conhecimento é gradual e inclui ciclos ascendentes de

níveis de abstração.

Axioma D: Cabe aos cursos de formação inicial proporcionar ao estudante

oportunidades de aprendizagem dos conceitos matemáticos fundamentais. Tais

oportunidades podem ser planejadas incluindo a introdução de novas informações e o

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estabelecimento de novas relações, para obter uma reconfiguração da rede de

conhecimento, na direção de níveis maiores de abstração.

Quais são os conhecimentos a respeito de função necessários para o professor

ensinar?

Hansson (2006) tratou desta questão e traz uma ampla e muito proveitosa

revisão de teorias e resultados de pesquisa a respeito do tema, destacando, o que já

vimos, que compreensão de um objeto matemático relaciona-se com conhecimento

conceitual bem desenvolvido.

Seguimos, examinando as origens, as estruturas e princípios da organização do

conceito de função, buscando a construção de um todo coerente.

O conceito tem origens nos fundamentos da matemática (Caraça, 1998):

contagem, medida, forma, conjunto, coleção, correspondência, classificação,

comparação, variação, interdependência, movimento, lei natural. Nessa perspectiva,

percebe-se a influência desta idéia na construção dos conjuntos numéricos e na

produção das primeiras leis da Física. No entanto, o termo ―função‖ tem sua gênese em

questões geométricas e gráficas, alvo inicial do Cálculo Diferencial e Integral, sendo

parte da estrutura desta área, o que justifica a importância dada às definições que

envolvem equações e relação entre variáveis numéricas. A evolução do conceito

serviu de base à formação de novos conceitos e possibilitou a formalização de noções

inicialmente intuitivas como contagem (cardinalidade de conjuntos), medidas (em

espaços métricos) e lei natural (modelos matemáticos) e teve como efeitos, também, a

evolução da Álgebra e da Geometria. Nas diferentes áreas da Matemática, função se

apresenta em diferentes facetas (Kleiner, 1989; Eves, 1995).

O conceito de função é primário (depende apenas das noções intuitivas de

relação, univocidade e conjunto), central, estruturante (participa e está nos fundamentos

de todas as áreas), e articulador (espécie de elo conectando a matemática internamente

e a matemática com as outras ciências). Faz parte da construção de estruturas e dá

origem a uma vasta rede de conceitos relacionados.

O conhecimento de função consiste na capacidade de entrelaçar todas as suas

facetas e representações, formando uma totalidade, e tecer uma rede de conexões no

interior da matemática; por outro lado, cada faceta que a função assume, nos diferentes

contextos, relacionando diferentes domínios, como por exemplo, função real de

variável real ou transformação geométrica de figuras planas, traz consigo uma coleção

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própria de representações, problemas e procedimentos de resolução. Compreensão

ampla inclui o entendimento e a possibilidade de operar em cada uma e em todas, nas

suas semelhanças e diferenças, e conhecimento profundo implica alcançar diferentes

níveis de abstração.

Qual é o conhecimento a respeito de função desejável para o professor ensinar na

escola? O que os futuros professores de matemática estão aprendendo a respeito de

“função” no Curso de Licenciatura em Matemática da UFRGS2?

Resumimos aqui, resultados de análise foucaultiana do discurso (Foucault, 1983,

1995), para descrever significados deste conceito que circulam na escola.

Consideramos documentos produzidos no Ministério da Educação, artigos diversos que

tratam do tema, e os trabalhos de Ardenghi (2008), com análise de 46 pesquisas, e de

Silva (2007), com livros didáticos atuais, ambos enfocando o conceito de função.

Da análise do discurso, emergiu uma coleção de enunciados complementares. A

escola está em crise; o ensino de Matemática deve contribuir para a melhoria da escola,

afastando-se dos conceitos abstrato para ser centrado nas aplicações; o ensino de

função na escola básica deve ficar restrito às funções reais de variável real e às suas

representações; basta saber que função é uma relação especial entre variáveis

numéricas. Esta definição, hoje, tem mais destaque do que aquela que se refere à relação

entre conjuntos quaisquer, que é considerada muito abstrata.

No caso do ensino de função, Zuffi e Pacca (2000) mostram a confusão dos

professores, divididos entre a definição tradicional - com conjuntos - e a tendência atual

– relação entre variáveis. Pode-se pensar que o professor sequer esteja ciente das

peculiaridades envolvidas no conceito de função.

Concluímos que o significado desejável, para a noção de função, na escola,

limita-se à relação de dependência entre variáveis numéricas, e ao conjunto de

representações, problemas e procedimentos associados. Mas, mesmo se propondo a

trabalhar com esta única concepção, existem professores que não compreendem aquilo

que tentam ensinar. Cabe perguntar sobre o conhecimento de função que está sendo

produzido nos cursos de licenciatura.

2 Conceito 5 no ENADE-2005 e IDD +1,33.

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Fizemos análise do currículo de um curso de licenciatura3. O conjunto das

disciplinas totaliza 2.900 horas: 1380 horas de disciplinas de conteúdo de Matemática e

de Física; 1520 horas de disciplinas de Educação Matemática, Educação, práticas e

atividades complementares.

Investigamos as disciplinas que, de algum modo, tratam do tema função. O

corpus foi constituído por súmulas, planos de ensino, bibliografia e fala de professores.

Ao final, identificamos um conjunto de enunciados diferentes para o objeto ―função‖,

produzidos por grupos disciplinares, que definimos como grupo do Cálculo/Aplicações

(900 horas), grupo da Álgebra (60 horas) e grupo das Transformações (120 horas).

Nas disciplinas do primeiro grupo, define-se função como relação entre variáveis

ou entre conjuntos, focalizando as funções com domínio real,r epresentadas por

equações algébricas ou gráficos. Função também é vista como uma ferramenta analítica

para resolver problemas das mais diversas áreas, envolvendo números reais.

Existe apenas uma disciplina de Álgebra, que trata de função em termos de

produto cartesiano e pares ordenados. Entre os exemplos incluem domínios com

objetos não numéricos e funções sem representação matemática.

O grupo das Transformações inclui apenas duas disciplinas – Geometria I e

Álgebra Linear - que relacionam explicitamente função com transformações

geométricas, cujo domínio é o plano ou o espaço.

Analisando, porém, os planos de ensino, vemos que no grupo do Cálculo, função

é conceito central; na Álgebra é secundário; na Geometria a definição de

transformação geométrica não é formalizada – o conceito é trabalhado com softwares de

geometria dinâmica, associados a movimentos ou transformações observáveis, no plano;

e em Álgebra Linear, o estudo de transformações lineares tem base nas matrizes. Ou

seja, o discurso predominante no Curso é o de função como uma relação unívoca entre

conjuntos numéricos ou variáveis numéricas e o foco do ensino é a função que tem

representação algébrica ou gráfica e suas aplicações.

Destaca-se também a compartimentalização das disciplinas, crítica que consta

nos subsídios para as licenciaturas, da Sociedade Brasileira de Educação Matemática:

“uma boa seleção de conteúdos não basta; é importante que

estes sejam organizados de forma não compartimentada. Conteúdos

3 UFRGS http://euler.mat.ufrgs.br/~comgradmat/resolucoes/licmat_projeto.pdf

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apresentados de forma estanque, isolados dos demais, têm pouca

possibilidade de contribuir para uma formação consistente.” (SBEM,

2002, p.15).

Nesta linha, conclui-se que o conhecimento desenvolvido no Curso não é

amplo, nem profundo, nem bem conectado, nem contempla todas as facetas de função.

É preciso lembrar que estas práticas são produzidas pela repetição e dispersão

de discursos, e dependem de diferentes fontes de locução. Uma destas fontes é o corpo

de resultados de pesquisas, nacionais e internacionais, que tomam o conceito e o ensino

de função como objeto e enfatizam o ensino de cálculo. Recentemente, Carlson,

Oehrtman & Thompson (2007) propõem a concepção de ―função como processo‖, uma

transformação dinâmica de um conjunto de partida (input) num conjunto de chegada

(output). No entanto, o fazem com objetivo de melhorar a aprendizagem do Cálculo,

deixando de lado os outros contextos.

Outra fonte da produção do discurso do Curso, sobre função e ensino de função,

está na história, na gênese da matemática:

“Era comum desenhar-se a matemática com a forma de uma

árvore, em geral um carvalho. ... Das raízes erguia-se o robusto

tronco onde estava gravado “cálculo”. Sobre o tronco

finalmente a copa formada de numerosos galhos ... variáveis

complexas, variáveis reais, cálculo de variações, probabilidades

... a trilha que o estudante deveria seguir para internar-se no

seu estudo.” (Eves, 1995, p. 694)

Buscando o conhecimento dos alunos, encontramos os resultados da pesquisa de

Carneiro, Fantinel e Silva (2003), com estudantes formandos do Curso, atendendo

questões sobre funções. As autoras identificaram campos de significados produzidos a

respeito da noção de função restritos a conjuntos numéricos sem relações com

transformações geométricas.

Pode-se concluir que o conhecimento produzido no Curso não contribui para

formar um professor com conhecimento conceitual bem desenvolvido, porém, parece

que o conhecimento ali produzido, nas suas limitações, atende ao esperado pela escola.

O papel da formação na produção de conhecimento: propostas de mudança

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Se o conhecimento do professor deve ser amplo, profundo e bem conectado, no

caso de função, isto significa estar consciente das suas múltiplas facetas, indo além do

conhecimento operacional para abstrair o conceito, na sua centralidade e nas suas

múltiplas conexões.

Nessa perspectiva, para contribuir positivamente com a formação docente no

Curso de Licenciatura, implementamos um experimento didático desenvolvido com

estudantes do Curso de Licenciatura, cujo objetivo é conectar funções com

transformações geométricas. É preciso alertar que o relato, completo e detalhado, deste

experimento mereceria um artigo exclusivo, porém, o objetivo aqui é mostrar uma

seqüência de ações que fazem parte e completam um projeto de pesquisa, maior, a

respeito do conhecimento do professor.

Experimento didático

Adaptamos a proposta de Steffe e Thompson (2000), que definem experimento

de ensino como uma ferramenta conceitual de pesquisa que organiza investigações

direcionadas para compreender o progresso do aluno, para explorar e para explicar sua

atividade matemática, num certo período.

No planejamento, baseamo-nos em Hiebert e Carpenter (1992). Conhecimento

consiste numa rede de informações e conexões, e é limitado, se esta rede inclui poucas

informações, poucas idéias e poucas ou fracas conexões entre elas. Planejamos uma

seqüência de ensino para ampliar a compreensão de função, introduzindo novas

informações e construindo novas relações entre diferentes idéias, visando a

reorganização da rede.

Com esta fundamentação, o experimento foi planejado para: a) introduzir noções

sobre funções complexas; b) relacionar a função complexa y=ax+b com as

transformações geométricas euclidianas: c) conectar diferentes idéias relacionadas com

a mesma representação, y = ax+b; d) desenvolver uma concepção de função como uma

transformação, cujo domínio não é necessariamente numérico.

Para analisar as mudanças cognitivas que poderiam ocorrer, acompanhamos o

processo de aprendizagem perseguindo as espirais previstas na teoria APOS (action/

process/ object/ schema) desenvolvida por Dubinsky & McDonald (2001) e sugerida

numa investigação sobre funções, por Breidenbach, Hawks e Nichols (1992).

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Dubinsky & McDonald (2001) prevêem ciclos evolutivos no desenvolvimento

do conhecimento conceitual. Frente a um problema, envolvendo determinado conceito,

o sujeito primeiramente mobiliza um esquema prévio, aquilo que ele pode fazer, uma

coleção individual de ações, processos e objetos e outros esquemas e que vêm à tona

quando solicitados. Ação é a manipulação repetível, física ou mental, que transforma

objetos, percebidos individualmente, como números ou figuras geométricas, para obter

outros objetos; processo é a construção mental que decorre da repetição de uma mesma

ação e que permite pensar nas operações com objetos sem realmente realizá-las, é ação

interiorizada. A construção de um novo objeto ocorre a partir de um processo, quando o

estudante o percebe na sua totalidade e amplitude, lidando com algo sobre o qual se

pode agir, transformar, modificar, sem perder sua essência, é o processo encapsulado

num objeto. Finalmente, emerge um novo esquema, mais avançado, para resolver

problemas: aprendizagem implica evolução dos esquemas existentes.

Com esta base teórica, os objetivos da investigação foram: a) verificar as

mudanças que ocorrem nos esquemas prévios, relativos ao conceito de função,

especificamente considerando a função cuja expressão é y = ax+b; b) identificar

construções de novos esquemas, frente a atividades matemáticas que introduzem

novas informações e estabelecem novas conexões.

Delineamos também hipóteses que guiam as intenções gerais da pesquisa: a)

as questões propostas têm potencial para desafiar a imaginação e gerar atividades

matemáticas, mobilizando esquemas anteriores; b) as novas informações e conexões

podem modificar esquemas anteriores; c) o esquema final envolve a construção de

objetos matemáticos mais abstratos e demonstra a ampliação da rede de conhecimento a

respeito de função.

A investigação focalizou os esquemas já construídos e as novas construções

decorrentes das atividades.

O experimento foi constituído por cinco episódios e é importante, neste relato,

contemplar a todos, pois juntos, em seqüência, demonstram o ciclo de evolução

cognitiva descrito na teoria APOS. Um único episódio não representaria o ciclo.

Relato do experimento

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O experimento envolveu cinco alunos (3 meninas e 2 rapazes) do 5° semestre

do Curso de Licenciatura, voluntários. O episódio 1 transcorreu em um encontro de 4

horas/aula (uma tarde), os episódios 2 e 3 ocuparam 4 horas e os episódios 4 e 5 mais 4

horas. Foram três tardes, nas férias de verão de 2008. A sala era espaçosa, os alunos e a

professora sentavam-se juntos, em torno de uma mesa, na qual foi colocada uma câmera

digital, monitorada por outra pessoa. Os encontros foram parcialmente filmados e

gravados, o material produzido pelos alunos foi coletado e analisado, anotamos

observações particulares, reflexões sobre as intervenções e sobre as interações,

comentários e observações, o que caracteriza a pesquisa como qualitativa.

Os sujeitos da pesquisa já haviam concluído, com sucesso, as disciplinas de

Cálculo, Fundamentos, Física e Geometria. Tinham noções sobre números complexos,

mas não tinham conhecimento sobre funções complexas, tiveram contato com

transformações geométricas euclidianas, utilizando o software Cabri Geometre, e não

conheciam (ou não lembravam) a interpretação geométrica, no plano, das

transformações lineares.

Antes do início dos episódios, perguntamos: O que você entende sobre função?

Como você define função? Dê exemplos de função. Toda função tem expressão

algébrica? As respostas foram aquelas esperadas: função é relação entre variáveis ou

correspondência entre conjuntos. Os exemplos foram de função real com uma variável

apresentados por equações ou gráficos. Após alguma discussão, houve um acordo sobre

a existência de funções que não têm representação algébrica, pois muitos gráficos

encontrados nos jornais e revistas não podem ser modelados, porém, parecia-lhes que

sempre deveria haver alguma forma de representação.

Podem-se interpretar tais informações, recorrendo aos aportes de Breidenbach,

Hawks e Nichols (1992) que investigaram as concepções do aluno sobre função,

concluindo que, em geral, função é vista como ação. Neste caso, mesmo conhecendo as

definições clássicas, os sujeitos estão limitados a pensar sobre fórmulas, envolvendo

letras que podem ser manipuladas ou substituídas por números, ou ficam restritos aos

gráficos vistos como fotografias.

Pedimos também que ligassem entre si, palavras dadas em cartões (figura 1)

Colando os cartões, criaram uma rede que mostra a ausência de conexões entre alguns

objetos, o que nos levou a considerar as diretrizes de Hiebert e Carpenter (1992), no

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sentido que o conhecimento limitado mostra poucas conexões e que pode-se ampliá-lo

introduzindo novas informações e construindo novas relações.

Figura 1

Análise das atividades

O primeiro elemento extraído das nossas análises diz respeito ao interesse que a

matemática, como exercício intelectual, independente das suas aplicações, pode causar

no aluno, futuro professor. Ver conteúdos de outras formas, estabelecer conexões entre

diferentes domínios – geometria, álgebra, cálculo, conjuntos numéricos – e conhecer

novos conceitos – funções complexas - desafiam a imaginação matemática e geram

atividades matemáticas. Nas falas gravadas, muitas vezes apareceram colocações neste

sentido: “Eu nunca ouvi falar nisto?” “Porque não aprendemos isto?” “Eu nunca

tinha percebido que dava para ver assim (rotações no plano como função)!‖

O segundo elemento diz respeito à análise do raciocínio dos alunos.

Percebemos que desafios propostos em novos contextos e em ambiente interativo

permitem o desenvolvimento de novos esquemas. Essas situações ocorreram quando os

alunos estabeleceram conexão entre função e transformações geométricas, com auxílio

de uma nova informação: função complexa. Neste momento os esquemas anteriormente

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construídos para tratar com funções e com transformações mostraram-se insuficientes

para atenderem os questionamentos e novas construções ocorreram.

No episódio 1, introduzimos uma nova informação, ao propor questões de

aplicação da função complexa y = ax+b, sobre um quadrado do plano. A resolução da

questão (a) mostrou a concepção de função como ação e mostrou um esquema prévio

para responder problemas, nos domínios numéricos e no sistema cartesiano de eixos:

fazer cálculos; dado um complexo de entrada, obter um complexo de saída; representar

números complexos como pares ordenados, no plano. A questão (b) favoreceu uma

nova relação: produto complexo e rotação. Inicialmente, não trouxe problemas, pois os

alunos estavam mobilizando apenas o esquema do cálculo algébrico com representação

geométrica. A questão foi resolvida , como mostra a figura 2.

Figura 2

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Breidenbach, Hawks e Nichols (1992) sugerem que, na concepção de função

como ação encontramos uma atividade de transformação de objetos, ― feita passo a

passo, e os passos estão somente relacionados com a fórmula e não com qualquer outra

relação existente na mente do sujeito‖ (p.251). Foi o que ocorreu, inicialmente, os

alunos observaram apenas os números, não dando importância à figura, até que a

rotação chamou atenção. Estabeleceram pela primeira vez conexão entre a função e uma

transformação geométrica. Neste momento, passaram a estabelecer conexão com outros

esquemas anteriores criados para resolver problemas de Geometria com utilização de

softwares dinâmicos: rotação é um movimento visível no plano.

― Mas, é uma rotação!‖ ― E teve um movimento. Pode ser uma translação?”

“Daria para ver melhor, num software.”. “Mas não no Cabri. Talvez, no

Geogebra, usando pares ordenados.”

Iniciaram ali reflexão sobre as mudanças operadas nas figuras. Voltaram atrás.

Propuseram novos exemplos. Recordaram a Fórmula de Moivre para multiplicação de

complexos, associando o produto com rotação. Ficou claro o início da construção de

outro modo de agir para resolução de problemas que envolvem a função y=ax+b: não

mais fazer cálculos, mas, sim, produzir diferentes imagens para a figura, dada a função,

identificar transformações geométricas e relacioná-las com os parâmetros ―a‖ e ―b‖.

Confirmou-se aqui a teoria de Hiebert e Carpenter (1992), a rede de conhecimentos

amplia-se, formando novas conexões, quando uma nova informação é introduzida: no

caso a função complexa y = ax+b.

No episódio 2, questão 1, a idéia foi reforçar a conexão entre a função complexa

y = ax+b e transformações geométricas, com o traçado de imagens de figuras

geométricas planas, no plano complexo, e com a aplicação de funções representadas

por y = ax + b, sem fazer cálculos sobre os vértices.

Neste momento, ficou claro que, a última ação - comparação de transformações com os

parâmetros - muitas vezes repetida, evoluiu para a construção de um processo (segunda

parte do ciclo da teoria APOS): a função complexa, y = ax+b transforma figuras

geométricas e basta analisar os parâmetros para decidir sobre os efeitos desta

transformação. A ação foi interiorizada neste processo. Na figura 3, observam-se erros

nas medidas das figuras transformadas, mas aparentemente os alunos estavam

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produzindo uma nova concepção de função, coincidindo com os aportes de

Breidenbach, Hawks e Nichols (1992): num processo ―somente é necessário que a

transformação seja imaginada, na mente do sujeito, como uma possibilidade‖(p.251).Na

questão 2, os alunos mostraram que, a partir da aplicação do processo – dada y= ax +b,

encontrar a transformação geométrica da figura - obtiveram outro, revertendo-o – dada

uma transformação de figuras, encontrar a equação - e também compondo

transformações, o que fica mais claro no episódio 3, figura 4.

Figura 3

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Figura 44

No episódio 3, identificamos um novo objeto matemático (terceira parte do

ciclo da APOS): a função complexa y=ax+b é uma transformação geométrica do plano.

Esta construção corresponde a um nível mais alto de abstração e ocorreu quando o

estudante percebeu a amplitude do que estava fazendo, lidando com a função como

algo sobre o qual se pode agir, transformar, modificar, compor, sem perder sua essência

de transformação geométrica.

A construção da função y = ax+b como um novo objeto, uma transformação,

fica mais clara no episódio 4. Neste episódio, a generalização foi alcançada, com a

construção de um quadro, relacionando valores dos parâmetros com as correspondentes

transformações geométricas, no domínio complexo. Para Dubinsky & McDonald

(2001) com a construção de um objeto, delineia-se um novo esquema na mente do

indivíduo.

O episódio 5 indica a presença deste novo esquema de comportamento, quando

surgem questões que envolvem uma função cuja representação é y=ax+b,

independente do domínio. Os alunos traçaram gráficos, repetindo inicialmente o

esquema para trato das funções reais, mas passaram a analisar a relação entre os

4 Há erro, nos últimos desenhos. As duas diagonais medem 4 e o aluno marcou a diagonal horizontal com

medida 2, porque fez desenhos sem escala. Para nós importa a aplicação de transformações geométricas.

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intervalos domínio e imagem, como segmentos da reta, indicando a transformação

obtida como efeito da função. Igualmente, transportaram o novo esquema para três

dimensões, num exemplo limitado à expansão e translação (Figura 5).

Figura 5

Percebe-se assim o objeto – a função dada pela expressão y = ax+b, num

domínio geométrico, é uma transformação – e um novo esquema (a última etapa da

evolução prevista na APOS), que veio à tona quando apareceu um problema que

envolvia novas relações, em outro contexto.

Finalmente, os alunos revisaram e completaram o quadro de conexões feito no

primeiro encontro. Tomaram os cartões, colaram numa folha, com outra configuração,

mostrando que, como sugere a teoria do conhecimento em rede de Hiebert e Carpenter

(1992), houve ampliação e reorganização, na rede de conhecimentos, e que função

assume seu papel de centralidade (Figura 6).

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Figura 6

Nossas hipóteses foram validadas, no experimento. A discussão do tema

mostrou-se interessante e gerou atividades matemáticas, que deixaram emergir

esquemas anteriores e que favoreceram mudanças. A proposta trouxe um novo contexto

para ação – geometria e números complexos - que exigiu a construção de novos

esquemas. Ao final, a matemática desenvolvida ampliou a rede de conhecimentos

anteriores.

Considerações finais

A vasta literatura a respeito do tema – conhecimento do professor – e a

centralidade do conceito de função, na Matemática evidenciam a relevância e justificam

a pesquisa. Partimos de questões bem definidas, sobre os conhecimentos a respeito de

função necessários para o professor ensinar, aqueles exigidos na escola e aqueles

produzidos no Curso de Licenciatura; e sobre possíveis intervenções feitas para

contribuir para a aprendizagem de funções, na licenciatura.

Para responder as questões iniciais, desenvolvemos análise foucaultiana do

discurso (Foucault, 1986, 1993), deixando emergir o conhecimento sobre função

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produzido na escola e na formação dos professores. Para buscar ampliação deste

conhecimento, implementamos uma investigação do tipo experimento didático (Steffe e

Thompson, 2000). Também definimos referenciais teóricos, elaborando axiomas de

partida e criando categorias para análise de dados empíricos.

As análises de discurso e os resultados do experimento sugerem novos

conhecimentos sobre e para a formação de professores. Por outro lado, a proposta de

ensino, contida no experimento, procura mostrar modos de qualificar a mudança de

estado quanto à formação de professores.

Concluímos que professor necessita deter um conhecimento de matemática profundo,

amplo e bem conectado e que, nesta ótica, há um descompasso entre o conhecimento

desejável sobre função e aquele que é produzido na escola e no curso de formação. Este

conhecimento é limitado, o professor não consegue perceber a generalidade e a força do

conceito de função. Nessa perspectiva, o experimento didático teve como principal objetivo

a ampliação do conhecimento do conceito de função, fundamentando-se em duas propostas

teóricas.

Uma delas, a teoria do conhecimento em rede (Hiebert e Carpenter , 1992) que prevê

ampliação do conhecimento quando ocorre a disponibilização de novas informações e são

estabelecidas novas conexões. Com esta fundamentação, o experimento foi planejado para

introduzir noções sobre funções complexas e relacioná-las com as transformações

geométricas euclidianas, chegando a uma concepção de função como uma

transformação, cujo domínio não é necessariamente numérico.

A teoria APOS (Dubinsky & McDonald, 2001), dos ciclos cognitivos, sugere

que ampliar o conhecimento a respeito de um conceito consiste na evolução de

esquemas (um conjunto pessoal de ações, processos e objetos) mobilizados para

enfrentar problemas que o envolvem. Com este objetivo, planejamos cinco episódios

que dizem respeito à função expressa pela equação y = ax+b, desenhados num ciclo

crescente de abstração. Percebemos que, no esquema primário, a própria função é vista

como uma ação. Para atender questões sobre funções, os alunos agem manipulando

fórmulas, números ou gráficos. Neste esquema, a função representada pela equação

y=ax+b é uma fórmula que transforma números em números, com cálculos feitos passo

a passo.

Com a seqüência de atividades, os estudantes construíram um esquema

posterior, em que função é vista como processo, uma transformação de objetos em

outros, não necessariamente numéricos, uma transformação que existe na mente do

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sujeito e que não exige cálculos. Neste novo esquema, foi construído um novo objeto. A

função representada pela equação y=ax+b é uma transformação de figuras geométricas

(que podem ser segmentos da reta, figuras planas ou espaciais). É possível olhar para a

equação, analisar os parâmetros e visualizar mentalmente a transformação que ocorre,

sem fazer cálculos.

Dados empíricos demonstram a construção de uma nova concepção de função,

ampliando o conhecimento do futuro professor.

Preparamos este artigo apoiados em recomendações da área de Educação

Matemática, no sentido da necessidade de investigar o currículo de formação de

professores e propor melhorias. Assumimos, com esta investigação, as

responsabilidades que são hoje atribuídas a todos nós professores, como destacadas por

Fiorentini, Souza e Melo (1998):

―espera-se dele uma atitude investigadora e crítica em relação à

prática pedagógica e aos saberes historicamente produzidos;...

passa a ser responsável pela produção de seus saberes e pelo

desenvolvimento curricular‖ (FIORENTINI, SOUZA E MELO,

p.332).

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ANEXO

Episódio 1

Considere que o domínio da função y = ax + b agora é o conjunto dos números

complexos:

a) Localize os pontos 0, 1, 1+i, i, no plano complexo, una-os. Você

obtém um quadrado Q. Calcule a imagem do quadrado, pela função

complexa

y = 3x + 2. Descreva.

b) As constantes a e b podem ser números complexos. Procure a

imagem do quadrado pela função y = (1 + i) x + (2 + i) dos números

complexos

Descreva-a.

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Episódio 2

1) O triângulo eqüilátero de lado 1 é transformado pela função

y = (√3 + 1i) x + (1 – 2i). Mostre a imagem, sem calcular ponto a ponto.

2) Crie valores para os lados dos retângulos e invente uma função complexa que

transforma a figura A na figura B?

Episódio 3

1) Dê exemplos de três funções complexas que correspondam, cada uma a:

rotação; expansão; translação. Qual o resultado da composição das três.

Aplique-a sobre Q.

Episódio 4

2) Analise os parâmetros da equação complexa y = ax + b. Quais são as

condições para que a equação represente uma:

a) rotação?

b) translação?

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c) homotetia, ampliação ou contração?

d) Relembrando o que você sabe sobre números complexos, é

possível construir equações para a simetria com relação à origem e para a

reflexão com relação ao eixo dos XX?

Episódio 5

1) Considere a função real expressa pela equação y = ax + b.

Mostre, geometricamente e descreva a transformação que ocorre no

segmento representado pelo intervalo real (1,10) sob ação da função y =

10x + 1.

2) Invente uma função cujo domínio é o espaço R3 e que corresponda a

uma ampliação e a uma translação. Sob efeito desta função, que

transformação ocorre num cubo de lado 1, cuja base é o conjunto de

pontos [0,1] x [0,1].

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