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Faculdade de São Bento Curso de Filosofia Guilherme Frassetto da Cunha Lima Freire O conceito de “Continuum Experimentalna filosofia de John Dewey Apresentação de Trabalho de Conclusão de Curso sob orientação do Professor Dr. Ivo Assad Ibri Novembro 2017

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Faculdade de São Bento

Curso de Filosofia

Guilherme Frassetto da Cunha Lima Freire

O conceito de “Continuum Experimental” na filosofia de

John Dewey

Apresentação de Trabalho de Conclusão de Curso sob orientação do Professor

Dr. Ivo Assad Ibri

Novembro

2017

SUMÁRIO

1 Introdução........................................................................................................3

2 Uma Concepção Naturalista de Experiência e Continuidade.....................8

3 Critérios de Experiência e o Continuum Experimental na Educação.......27

4 Conclusão......................................................................................................51

5 Bibliografia.................................................................................................... 60

5.1 Das obras de John Dewey...........................................................................60

5.2 Das obras dos comentadores......................................................................60

5.3 Das demais obras........................................................................................62

3

O CONCEITO DE CONTINUUM EXPERIMENTAL NA FILOSOFIA DE JOHN

DEWEY

Projeto de Pesquisa para Mestrado.

Introdução

A filosofia de John Dewey foi sem dúvida uma das mais influentes do sé-

culo XX. Suas ideias foram base para profundas reformas educacionais em paí-

ses tão diversos como Brasil (especialmente por meio de Anísio Teixeira)1,Tur-

quia2, Estados Unidos3, China4 e em diversos outros países do mundo. Pensa-

dores como Richard Rorty5, Noam Chomsky6, Bertrand Russell7 e Paulo Freire8

foram diretamente influenciados pela obra deweyana.

Que a filosofia da educação de Dewey seja muito influente é um fato in-

contestável, no entanto, sua grande repercussão só aumenta a necessidade de

entendimento, seja a opinião do leitor negativa ou positiva acerca das conclusões

e considerações. Mesmo que um determinado indivíduo rejeite o projeto educa-

cional da nova escola de John Dewey, este continuaria precisando entender esta

1BORTOLOTI, Karen Fernanda da Silva. Anísio Teixeira: Pioneiro do Pragmatismo no Brasil. Congresso Internacional de Filosofia e Educação, 2010. Disponível em: <https://deweypragmatismo.files.word-press.com/2014/04/anisio-teixeira_pioneiro-do-pragmatismo-no-brasil.pdf> Acesso em: 20 ago. 2017

2ATA, Bahri.The Influence of an American Educator (John Dewey) on the Turkish educational system. Disponível em: <file:///C:/Users/guilh/Downloads/3127%20(3).pdf> Acesso em: 20 ago. 2017 3EDMONDSON III, Henry. John Dewey & The Decline Of American Education. 1ª ed. Greenville: Intercol-legiate Studies Institute, 2016. p. 16 4ZU, Zhixin. A Critical Evaluation of John Dewey's Influence on Chinese Education. American Journal of Education v. 103, n. 3, 1995, p. 302-325 5RORTY, Richard. Something to Steer by. London Review of Books, v. 18, v. 12, 1996. p. 7-8 6CHOMSKY, Noam. Noam Chomsky on Democracy and Education. Nova Iorque: RoutledgeFalmer, 2003. p. 67 7 RUSSELL, Bertrand. A History of Western Philosophy. Nova Iorque: Simon & Schuster, 1985. p. 823 8 MURARU, Darcisio Natal. Democracia, liberdade e educação: Paulo Freire leitor de J. Dewey. Cognitio-Estudos. São Paulo: n. 2, 2012. Disponível em: <https://revistas.pucsp.br/index.php/cognitio/arti-cle/view/7767>. Acesso em: 20 ago. 2017

4

filosofia para fundamentar essa rejeição no intuito de evitar que se colocasse

uma crítica pouco fundamentada.

Em uma breve autobiografia intelectual, que denominou “From Absolutism

to Experimentalism”9, Dewey define a conclusão de sua jornada intelectual como

experimentalista, uma crença da centralidade da experiência no processo cogni-

tivo. O conceito de experiência é tema central de obras suas como Experience

and Nature, Art as Experience, Experience and Education e Democracy and Edu-

cation. Dewey proclama no ultimo capítulo de Experience and Education que:

“[..] education in order to accomplish its ends both for the individual learner and

for society must be based upon experience.” 10

Sendo assim, esta pesquisa teve por objetivo desenvolver uma reflexão

sobre o conceito de “Continuum Experimental” na filosofia de John Dewey, to-

mando como ponto de partida o livro “Experience and Education” e o contexto

no qual este conceito se insere na obra de Dewey. Nesta obra de maturidade,

Dewey apresenta os conceitos de Interação e Continuidade como Critérios de

Experiência. O autor ressalta que para ele o conceito de Continuidade é uma das

bases de uma boa teoria da experiência. Em um primeiro momento faremos con-

siderações iniciais acerca do conceito de experiência na filosofia de Dewey e de

que forma os conceitos de continuidade e experiência se inserem na visão natu-

ralista de Dewey.

Assim como para a análise da filosofia de Hegel o conceito de Erfahrung

não pode ser tomado em seu sentido comum na língua alemã, o conceito de

Continuidade em Dewey nos é dado tendo em vista a tradição filosófica e a cons-

trução de sua filosofia como um todo. Faz-se necessária, como uma hipótese

dessa pesquisa, uma análise de sua obra para que se explicite exatamente o

que Dewey entende por critérios de experiência e, dentro destes critérios, uma

explicação acerca do conceito de Continuidade experimental. A ausência do en-

tendimento destes pontos de sua obra incorreria no não entendimento da filoso-

fia epistemológica e educacional deste autor, na medida em que ambas

9DEWEY, John. From Absolutism to Experimentalism. Nova Iorque, Russell & Russell, 1968.

10 DEWEY, John. Experience and Education. 1ª Ed. Nova Iorque: Free Press, 2015. p. 89

5

dependem fortemente do que Dewey chama de filosofia da experiência. A pró-

pria relação entre mente e mundo é descrita por Dewey em “Experience and

Nature” como uma relação de continuidade.

Em Experience and Nature, Dewey nos apresenta uma teoria de monismo

naturalista. A partir dela ele nos aponta a relação entre experiência e natureza e

o que ele entende por continuidade da natureza. Considerando o naturalismo de

Dewey podemos melhor entender como ele pensou em uma continuidade da

experiência e como depois esta continuidade pode ser aplicada à educação. Por

isso, antes de uma análise do Continuum experimental como critério de experi-

ência e suas aplicações educacionais, fizemos uma análise da influência do na-

turalismo para as concepções de experiência e continuidade em Dewey.

Posteriormente, apresentaremos a gênese do conceito de continuidade

experimental a partir de um fundamento instrumentalista, podendo assim estudar

de que forma na obra de Dewey a continuidade é um conceito associado ao

método científico e à previsão do futuro (ou das consequências futuras). Ambas

as considerações no caso se relacionam intimamente à cosmovisão naturalista

de Dewey.

Por fim, depois da análise da gênese naturalista do conceito, tratamos de

maneira mais própria de suas implicações educacionais na filosofia de Dewey.

Discutimos o continuum experimental como critério para avaliar se uma experi-

ência possui ou não valor educativo, bem como a noção de que todas as expe-

riências levam a novas experiências. Considerando essa continuidade das ex-

periências, Dewey postulará que o fim da educação se encontra no crescimento.

Portanto a noção de crescimento está intimamente ligada ao continuum experi-

mental.

Para Dewey, uma filosofia da educação, como qualquer teoria, deve ser

exposta em palavras, em símbolos. Na medida em que é mais do que um plano

para conduzir à educação. Para o filósofo americano, quanto mais definidamente

e sinceramente se defender que a educação é um desenvolvimento interno e por

experiência, mais importante será desenvolver uma noção exata de experiência.

Na conclusão de nosso trabalho questionaremos se em Dewey há essa

noção exata de experiência e de continuum experimental. Se Dewey foi bem-

6

sucedido ao apontar o fim na educação no Crescimento e se de fato a visão de

autor é coerente com sua cosmovisão.

Podemos considerar que para Dewey a relação entre educação e experi-

ência é uma via de mão dupla. Por um lado, a experiência fundamenta a educa-

ção, por outro, a análise da educação nos levaria a um entendimento melhor do

próprio conceito de experiência e da relação da experiência com a natureza.

Para Dewey a rejeição da filosofia e prática tradicional escolar nos coloca

novos problemas, e de forma alguma sua pura rejeição resolve algo. O ponto

central é a relação julgada por Dewey entre educação e experiência pessoal. A

nova filosofia da educação deve estar conectada a algum tipo de ciência empí-

rica e experimental. Por isso também a importância de relacionar os conceitos

com o naturalismo de Dewey. Experiência e educação não são ideias autoexpla-

natórias, é necessário entender o que é experiência para Dewey. Nos atentamos

também para possíveis ambiguidades deste conceito no interior da obra de De-

wey. Vamos analisar que embora Dewey demande uma clareza no conceito,

nem sempre essa clareza é tão acessível na leitura sistemática de sua obra.

A crença de que uma genuína filosofia da educação provém da experiên-

cia não significa que toda experiência é igual ou genuinamente educativa. Para

Dewey algumas inclusive são nocivas do ponto de vista educativo, na medida

em que distorcem ou inibem o crescimento experimental. Uma experiência pode

ser agradável e promover a preguiça, pode não ser cumulativa com outra, sendo

assim a energia dissipada e a pessoa se perdendo em superficialidades. As ex-

periências podem ser vívidas e ao mesmo tempo centrífugas. Determinados há-

bitos malformados, por exemplo quando a pessoa se leva por puro prazer, des-

contentamento ou revolta levam a uma perda do autocontrole.

Parece-nos extremamente valiosa, tendo em vista a formação filosófica

de Dewey, também uma análise da influência da tradição pragmatista na forma-

ção do conceito de Continuidade. Em especial acerca de recepção que Dewey

fez do conceito continuum em Charles Peirce (uma das bases de seu Idealismo

Objetivo). Dewey em determinados momentos chama sua concepção de Prag-

matismo de Instrumentalismo, para a diferenciar de seus antecessores pragma-

tistas. Não obstante, a comparação se faz necessária, na medida em que mesmo

7

as objeções de Dewey são por diversas vezes no contexto da discussão do con-

tinuum colocada pela tradição pragmatista.

A importância do conceito de Continuidade das experiências para a teoria

do conhecimento de Dewey, em particular para relacionarmos mente e mundo e

por fim suas implicações cognitivas também ganham nova luz se considerarmos

a que as experiências se conectam umas com as outras em uma linha de conti-

nuidade e que o fim das experiências são elas mesmas. Discutiremos se esta

auto referência pode ser considerada como um juízo tautológico.

Pensamos assim poder entender com maior propriedade o princípio da

Continuidade ou continuum experimental considerando os vários aspectos sob

os quais o conceito aparece. A importância de tal conceituação pode ser exposta

neste trecho de How We Think:

“Everyone has experienced how learning an appropri-ate name for what was dim and vague cleared up and crystallized the whole matter. Some meaning seems distinct almost within reach, but is elusive; it refuses to condense into definite form; the attaching of a word somehow (just how, it is almost impossible to say) puts limits around the meaning, draws it out from the void, makes it stand out as an entity on its own ac-count11.”

O conceito nos abre uma porta, pois aprender o nome adequado torna

algo vago e difuso em algo claro e ilustrativo na concepção de Dewey. O enten-

dimento do conceito de continuum experimental pode ter esse papel na leitura

da obra de Dewey. Se bem entendido este peculiar princípio da experiência ou

critério de experiência pode nos servir para um entendimento mais claro de sua

obra.

Esse entendimento pode nos levar à conclusão de uma coerência subs-

tancial em sua filosofia, sendo um elo entre a natureza, a educação e a lógica.

Do contrário, se entendermos que o conceito de continuum experimental não se

fundamenta de maneira sólida, que é ambíguo e variável, pode ser um indicativo

de que esses campos não estão bem conectados em sua filosofia e que, por-

tanto, um aspecto essencial desta precisaria ser revisto.

11 DEWEY, John. How we Think. Sunnyvale: Loki's Publishing, 2017. P. 174

8

Se questionarmos a filosofia de Dewey em determinados pontos, esta crí-

tica precisa ser fundamentada em uma atenta leitura de sua obra, evitando-se

assim o ataque a moinhos de vento e procurando uma análise científica. No en-

tanto, o papel do acadêmico pode ser o de assumir uma postura crítica. Dewey,

certamente, não pode ser dado como portador de uma verdade inquestionável

1. Uma concepção naturalista de experiência e continuidade

Dewey aborda o tema do continuum experimental em “Experience and

Education”. Ele introduz essa noção como uma explicação acerca de quais ex-

periências são efetivamente educativas, o que ele chama de critérios de experi-

ência. Ao discutir a melhor forma de educar, Dewey diz que há necessidade de

formar uma teoria da experiência, para que a educação seja inteligentemente

baseada na experiência e não um fomento de experiências sem fundamento. Ele

diz que a verdadeira escola progressista deveria ser baseada em uma cuidadosa

filosofia da experiência.

Que a educação seja dada pela experiência é um pressuposto básico da

filosofia deweyana, na medida em que para Dewey, a experiência é nosso con-

tato com o mundo e nosso canal de conhecimento. Antes de nos atermos mais

especificamente aos significados de continuum experimental e critério de expe-

riência convém analisarmos o que Dewey entende por experiência.

O tema da experiência é vasto e recorrente na obra do filósofo americano,

com várias dimensões, mas para uma compreensão inicial podemos nos valer

do conceito tal como apresentado em Experiência e Natureza. Nesta obra a ex-

periência é apresentada em sua conexão com as ciências empíricas e a filosofia

da natureza de Dewey.

Na filosofia da natureza de Dewey, experiência não é uma coisa absolu-

tamente determinada com começo e fim bem definidos, mas parte de um todo

da natureza, um fluxo de continuidade com o qual interagimos através dos nos-

sos sentidos. Essa noção de fluxo já havia aparecido em William James. Em seu

ensaio sobre o desenvolvimento do pragmatismo Dewey diz que: “Uma delas é

uma reinterpretação da psicologia introspectiva, na qual James nega que as

9

sensações, imagens e ideias sejam discretas, substituindo-as por um fluxo con-

tínuo que ele denomina "fluxo da consciência".

Há uma profundidade na natureza e a nossa cognição e as nossas ações

são uma extensão que adentra esta profundidade. A experiência é como um pro-

longamento nosso em direção à natureza, adentrando com maior intensidade em

suas profundezas. Essa extensão possui um limite indefinido.

A experiência está estritamente ligada aos cinco sentidos, que são o canal

de interação do agente. A interação, relação do homem com a natureza, vai cri-

ando os hábitos biologicamente entendidos. Hábitos são ditos biológicos em con-

traposição à uma noção metafísica anterior de hábitos e considerando a forma-

ção de hábitos como sendo ingênita à natureza. É por meio dos hábitos criados

pela interação que a experiência possui uma relevância nas ações dos sujeitos.

A experiência na filosofia de Dewey não seria um evento esporádico, mas

algo constitutivo da natureza. A Natureza interage com si própria (considerando

que o homem é parte da natureza), e o sujeito nessa interação vai formando

seus hábitos. A separação entre natureza e experiência ontologicamente falando

não existe. Dewey entende que possa ser difícil para nós percebermos essa con-

tinuidade, na medida em que estamos acostumados com o dualismo mente-

mundo. Expõe Dewey em Experience and Nature:

The identification in modern thought of ends

with ends-in view, with deliberate purpose and

planning, of means with deliberately selected

and arranged inventions and artifices, is in ef-

fect a recognition that the teleology of nature is

achieved and exhibited by nature in thinking,

not apart from it. If modern theories have often

failed to note this implication and have instead

contented themselves with a denial of all tele-

ology, the reason is adventitious; it is found in

the gratuitous breach of continuity between na-

ture, life, and man12.

12 DEWEY, John. Experience and Nature. Mineola: Dover Publications, 2000. P. 352

10

Dewey aborda o significado, no discurso não-filosófico, de se ter uma ex-

periência. Nesta primeira fase não podemos considerar a experiência isolando o

organismo individual, o ambiente no qual o ser vivo se move e age é parte inte-

grante da experiência. As reações orgânicas passionais, as reações instintivas,

todas são parte da experiência que antecedem a etapa propriamente cognitiva.

A recepção pelos sentidos dos eventos naturais está nesta primeira fase.

A experiência se relaciona ao viver, podemos chamar a experiência de

vivenciar (o equivalente no alemão da palavra erleben). A vida em si mesma é

integrada, existe uma organização própria da atividade vital que opera em har-

monia com um meio ambiente. Na vida as condições internas e externas estão

integradas. Por isso, estritamente falando, para Dewey, não há na vida separa-

ção entre o interior do organismo e sua exterioridade, a vida orgânica experiência

e a experiência é como uma vivência natural.

Dewey diz que o termo experiência é popularmente utilizado precisamente

por causa da necessidade de se fazer referência decisiva àquilo que é indicado

de maneira imprecisa e imediata. É a necessidade de explicar o entorno com

suas variações próprias ambientais. Nesta fase da experiência, que podemos

chamar de pré-cognitiva, perceberíamos que não há divisão entre sujeito e ob-

jeto, o que experiência não diferenciado do experienciado; a experiência leva em

conta um todo no qual não foram feitas essas distinções. Sujeito e objeto, podem

eventualmente ser separados pelo intelecto, mas na vivência inicial estão unidos

indistintamente. A capacidade cognitiva fará posteriormente a distinção entre as

diversas entidades que foram experiências.

Portanto, para Dewey a distinção entre sujeito e objeto é puramente uma

distinção feita pelo intelecto, na medida em que no âmbito do ser eles estão

unidos. Essa distinção não é fácil de se fazer em sua obra, pois Dewey procura

evitar a metafísica e, de certo modo, a rejeita. Ao fazer isso, a distinção, como

aparece em Duns Scotus, de entes de razão e entes reais, desaparece. Isso cria

uma confusão, pois em grande medida não há com clareza uma distinção entre

se pensar um objeto real ou não, a diferenciação se daria puramente por meio

biológicos. Todos os pensamentos são reais enquanto estímulos orgânicos, o

que não responde o problema da realitas.

11

Em Dewey não há separação estrita entre o interior do organismo e seu

entorno. A noção mesma de meio ambiente envolve uma integração. Organismo

e meio ambiente estritamente não são distintos. O organismo é o apontamento

de uma parte do meio, não uma entidade distinta. Em seu monismo, tudo é na-

tureza.

Ontologicamente falando, então, o naturalismo de Dewey diz que em úl-

tima instância há uma única realidade, indistinta e esta é a natureza. Na medida

em que há esta unidade, os seres humanos estão absolutamente imersos no

contexto natural sendo parte dele. Como nos diz David Lamberth:

Primeiro, com respeito à ontologia, o natura-

lismo é completamente monista. Isto posiciona

os seres humanos no domínio do conheci-

mento natural, e, Dewey pensa, evita a ques-

tão metafísica insolúvel de como compreender

os seres humanos como compostos de uma

substância ou ordem diferentes (mente, espí-

rito, alma) do que a ordem natural/física. Rela-

cionada a esta virtude há uma segunda vanta-

gem do naturalismo, também na forma de uma

evasão. O naturalismo, Dewey pensa, evade o

quebra-cabeça epistemológico proposto pelo

dualismo putativo da mente e da matéria que

foi tão central para a filosofia moderna. Colo-

cado de forma simples, se o naturalismo está

correto, então os meios apropriados de conhe-

cer o mundo também irão pertencer direta-

mente a conhecer os seres humanos, desde

que tomemos 'conhecer' naturalisticamente13.

Uma ideia essencial para entender a conexão entre experiência e conhe-

cimento é uma noção que aparece em Reconstrução em Filosofia, que sofreu

grande inspiração dos comentários de William James sobre psicologia, a ideia

de uma psicologia baseada na biologia. Esta é uma das primeiras bases para o

conceito Deweyano de experiência, o qual ele chama de científico. A psicologia

seria inteiramente ligada a fatores orgânicos e naturais. Originalmente a palavra

13 LAMBERTH, David. Pragmatismo e naturalismo: Uma conjunção inevitável. Cognitio: Revista de Filoso-fia, São Paulo, n. 2, 2001. p. 94

12

psicologia deriva da palavra psiche (alma em grego antigo), em Dewey este con-

texto de alma seria substituído for fatores biológicos.

Ao comentar o empirismo de Locke e Hume, Dewey diz que para eles a

experiência é o canal para as operações da mente. A vida mental origina-se em

sensações ou impressões que após serem recebidas individualmente se unem

em conformidade com leis de associação ou lógicas. Formam-se assim as ideias

e o conhecimento seria construído a partir deste conteúdo.

Na interpretação de Dewey, para estes empiristas antigos a mente seria

totalmente passiva quanto à experiência sensória, tendo papel ativo somente ao

combinar ideias e sensações. Neste quadro, os sentidos seriam vistos como de-

sempenhando apenas o papel de fundamentos do conhecimento (não de ação

e reação). A mente seria totalmente inerte à experiência sensorial, e apenas

combinaria as ideias e sensações. De tal forma que os sentidos seriam o sempre

o fundamento do conhecimento.

Dewey, no entanto, afirma que o efeito do desenvolvimento da biologia

conseguiu inverter este quadro. De acordo com esta ciência, o organismo não

só se adapta ao ambiente, mas também pode transformá-lo, pois onde quer que

haja vida, há comportamento, há atividade, e para que a vida possa continuar,

necessário se torna que essa atividade seja, a um tempo, contínua e adaptada

ao meio ambiente. Diz o comentarista Caio César Cabral sobre Dewey:

A sensação – Dewey admite – é o início do co-nhecimento, como diziam os empiristas clássi-cos, mas tão só no sentido de constituir “o cho-que experimentado, o estímulo necessário ao investigar e comparar, que eventualmente pro-duzirão o conhecimento” (Dewey, 1950, p. 85). Podemos notar que este é o ponto no qual De-wey encontra a gênese mesma do conheci-mento. Sendo a experiência identificada com o processo vital, e sendo as sensações, como já vimos, tomadas essencialmente como pontos de reajustamento orgânico, desfaz-se, garante Dewey, o suposto atomismo clássico das sen-sações14.

14 CABRAL, Caio César. Dewey e as relações entre natureza e experiência no ato investigativo. Cognitio-Estudos: revista eletrônica de filosofia. São Paulo: v. 12, n.2. 2015. Disponível em: <https://revis-tas.pucsp.br/index.php/cognitio/article/view/22614 >. Acesso em: 20 ago. 2017 P. 174

13

Na concepção de Dewey, a reconstrução ativa do ambiente passa a ter

maior relevância no caso do homem, por ser um ser mais complexo, e tal fato

nos obriga a perceber algumas diferenças em relação ao conceito de experiência

de Locke e Hume. O darwinismo seria um motivo de distanciamento para com

os empiristas antigos, sendo necessária uma filosofia mais ativista considerando

esse processo de adaptação. Dewey faz uma inversão e a experiência é conce-

bida como ativa, ela possui um caráter transformador do meio, operando por

interação.

Após essa pretensa revolução, o ato de experienciar se torna uma combi-

nação de recepção e ação transformadora do meio. De acordo com sua capaci-

dade o organismo age no meio transformando-o; por sua vez, o meio modificado

reage sobre o organismo. Há uma troca entre ambos. Esta conexão entre agir e

sofrer constitui aquilo que denominamos experiência. O ser vivente e o meio am-

biente estão em constante interação e modificação mútuas.

As sensações, tal como descritas pelos empiristas, não são absoluta-

mente rejeitadas por Dewey, mas reinterpretadas neste contexto materialista

darwinista. Agora serão pensadas como estímulos e respostas. No caso, ação

mútua entre meio e organismo, em outras palavras, interação e continuidade. As

sensações são concebidas por Dewey como estímulos vindos do meio, nos con-

vocando à ação, a elas se seguem respostas do organismo. Essas respostas

possuem um poder transformador do meio e assim uma função de adaptabili-

dade (a semelhança com a teoria de Darwin é explicita neste ponto).

Para Dewey as sensações não possuem um caráter cognitivo direto, elas

são eminentemente práticas. Aqui precisamos entender que o pensador ameri-

cano fala do processo de interação. Há como se fosse uma via de mão dupla

entre duas coisas (por exemplo homem e meio) e que, no fundo, ontologica-

mente são a mesma (natureza). Podemos retornar ao problema do uno e do

múltiplo e nos perguntarmos como uma coisa pode ser dupla e única ao mesmo

tempo. Em Experience and Nature não aparece essa discussão, exceto na me-

dida que Dewey constata que seleção natural diferenciaria as espécies, o que

não resolve o problema dos universais que inquietava Platão.

14

As sensações são experienciadas como estímulos que geram ações face

à interação do organismo com o meio ambiente. São parte de uma mudança de

direção da ação do ser vivo, fazendo com que o organismo busque reajustar

suas ações às novas condições nas quais está presente. Diz Dewey:

Only as science is seen to be fulfilled and

brought to itself in intelligent management of

historical processes in their continuity can man

be envisaged as within nature, and not as a su-

pernatural extrapolation. Just because nature

is what it is, history is capable of being more

truly known understood, intellectually realized

than are mathematical and physical objects. Do

what we can, there always remains something

recondite and remote in the latter, until they are

restored in the course of affairs from which they

have been sequestrated. While the humanizing

of science contributes to the life of humanity, it

is even more required in behalf of science, in

order that it may be intelligible, simple and

clear; in order that it may have that correspond-

ence with reality which true knowledge claims

for itself15.

Este trecho é interessante pois mostra a transposição do conceito cientí-

fico para o âmbito humano. O real é a natureza, e o progressismo histórico se

realiza na percepção de que se recebe o real por meio da ciência e que há em

última instância uma unidade entre o âmbito histórico e o âmbito natural. Essa

adaptação não é só biológica, mas extrapola esse âmbito (nunca sobrenatural-

mente) para o da experiência humana.

Para Dewey, a verdadeira matéria da experiência são processos adapta-

tivos de ação, hábitos, funções ativas, conexões de ação e reação, coordena-

ções sensoriais e motoras e etc. Os termos usados em Experience and Nature

são bem variados. Tal matéria tem valor vital, prático e histórico, por isso o na-

turalismo materialista é uma das bases indispensáveis para o entendimento do

pensamento de Dewey.

15 DEWEY, John. Experience and Nature. Mineola: Dover Publications, 2000. P. 163-164.

15

Dewey identifica a experiência, para além de funções biológicas vitais,

como interação entre organismo e ambiente, no qual os estímulos do ambiente

fazem com que o ser organizado aja (ou reaja) no sentido de adaptar-se a novas

situações. Este esforço de adaptação produz mudanças no meio e no próprio

organismo. A investigação humana parte desse princípio, este é seu canal de

acesso inicial, mas essa investigação se converterá em planejamento e ação.

Sua teoria da investigação possui um fundamento naturalista e outro empírico,

eminentemente ligado à ação.

Sendo a vida mental e a experiência elementos estreitamente ligados ao

comportamento e à natureza sensorial e motora, Dewey afirma que pensamento

cognitivo tem seu ponto de partida em conflitos específicos na experiência, como

situações tensionais as quais demandam uma solução. Para Dewey, o homem

demanda obstáculos a superar e a luta pela superação desses obstáculos é

parte de sua evolução. Sem propósitos e obstáculos específicos não haveria es-

tímulo para a reflexão; a vida absolutamente cômoda seria irrefletida. O uso da

inteligência aparece na medida em que estão presentes as dificuldades práticas

e da necessidade de superação destas mesmas dificuldades. Como apresenta

Dewey em Experience and Nature:

The brain and nervous system are primarily or-

gans of action-undergoing; biologically, it can

be asserted without contravention that primary

experience is of a corresponding type. Hence,

unless there is breach of historic and natural

continuity, cognitive experience must originate

within that of a non-cognitive sort. And unless

we start from knowing as a factor in action and

undergoing we are inevitably committed to the

intrusion of an extra-natural, if not a supernatu-

ral, agency and principle. That professed non-

supernaturalists so readily endow the organism

with powers that have no basis in natural

events is a fact so peculiar that it would be in-

explicable were it not for the inertia of the tradi-

tional schools. Otherwise it would be evident

that the only way to maintain the doctrine of nat-

ural continuity is to recognize the secondary

and derived character aspects of experience of

the intellectual or cognitive. But so deeply

16

grounded is the opposite16 position in the entire

philosophic tradition, that it is probably not sur-

prising that philosophers are loath to admit a

fact which when admitted compels an exten-

sive reconstruction in form and content.

Para Dewey o pensamento está em uma situação subsidiária em relação

à experiência ativa, na qual aparecem determinados obstáculos e um situação

futura que é se formará a partir da situação presente por meio de uma ação e as

consequências desta ação. A nossa capacidade de investigação identifica esse

processo e nossos pensamentos são intermediários desta passagem, no sentido

de previsão e planejamento. Essa capacidade de prever a situação futura, de

antecipação e, portanto, de influência nela no âmbito da ação é a que pertence

propriamente ao pensamento.

A ênfase no aspecto prático em detrimento do cognitivo deixa uma série

de problemas. Qual o fundamento, por exemplo, da livre deliberação face aos

estímulos? Em Aristóteles não somos obrigados a agir segundo nossas paixões,

possuímos a liberdade de agir segundo o bem, diferentemente dos outros ani-

mais, porém em Dewey não há esta distinção. Propósitos, planejamento e a pre-

visão do futuro são as soluções propostas por Dewey, mas não nos parecem

respostas claras para a objeção de que se nossas ações fossem determinadas

por nossas paixões, perderíamos nossa liberdade.

Em Dewey o ato de pensar nasce com a observação da tensão dos fatos,

que permite o discernimento da situação da experiência. O pensamento delimita

a tensão em questão na situação presente, oferece as possíveis consequências

das ações tomadas. Quanto melhor a previsão, melhores as nossas respostas.

Em Experience and Nature Dewey diz que a observação atenta é de

grande importância, pois ela traz o significado da dificuldade, ou seja, daquilo

que essa dificuldade implica ou significa em experiências subsequentes. O pla-

nejamento e a previsão possuem grande relação com a continuidade das expe-

riências.

16 Ibidem. P. 43

17

Podemos dizer que para Dewey, juntamente com a observação dos sinais

da perturbação presente, forma-se algum tipo de ideia; mas essa ideia significa

planejar, prever algo. O que se encontra já em existência pode ser empregado

como sinal, donde se infira o que provavelmente está para acontecer.

Para Dewey a investigação humana (human inquiry) se baseia tanto no

que está para ocorrer quanto no que já aconteceu. A experiência é também a

experiência do que é passado, e esta por sua vez nos dá a capacidade de pre-

visibilidade do futuro. Seria injusto acusar Dewey de menosprezar completa-

mente o passado, isso de fato não aparece em suas obras, inclusive pela influên-

cia de Hegel. As ações possuem implicações futuras e o conhecimento destas

implicações depende também de um conhecimento do que aconteceu anterior-

mente, no entanto são as presentes situações que determinam o curso deste

futuro. Portanto, sobre o presente repousa o foco principal. Explica Dewey:

A marked breach of continuity in the sequence

of future or ensuing events with what we sup-

pose happened in the past is enough, as a rule,

to make us believe our belief invalid if not im-

aginary. On the other hand, the recurrent fre-

quency with which subsequent events bear out

reliance upon reconstructive temporal judg-

ments gives us pragmatic confidence in their

general dependability. Consequences of the

method in the continuity of inquiry are the

ground upon which data are relied upon when

they themselves are materially inadequate.

This confidence causes us as a matter of rou-

tine to act upon their accuracy without submit-

ting them to special logical tests. The very

cases which superficially viewed give rise to the

belief that recollections of one's past are not

mediated judgments, but are cases of "immedi-

ate or intuitive knowledge," are just the ones

which, when they are closely examined, show

that they are instances of construction of exten-

sive durational sequences of events. Upon the

whole, the trustworthiness of our reconstruc-

tions of personal past experience is so repeat-

edly confirmed by the course of ensuing events

that we come to depend upon them without

18

applying special tests. Only in cases of crucial

doubt do we resort to the latter17.

Neste sentido, a observação é entendida como busca rigorosa, precisa e

metódica de sinais e de provas. Esta busca pressupõe uma atenção especial

aos dados do acontecido.

O instrumentalismo de Dewey pode ser resumido da seguinte forma: A

observação precisa de um caráter científico e prático. Científico pois implica uma

busca rigorosa, precisa e metódica da situação. Prático na medida em que busca

soluções práticas, sendo um instrumento das nossas ações sendo acompa-

nhada pela inferência (termo importante para Dewey, pois se relaciona com a

capacidade de previsão). Dewey ressalta diversas vezes que a experiência de

fato é extremamente prática, sendo de um caráter transformador e agente. O

conhecimento não pode ser dissociado da experiência, ele se dá pela experiên-

cia de maneira biológica inclusive, no entanto ele envolve precisamente essa

previsibilidade prática.

A experiência se dá nas relações como meios aplicados para o fim atin-

gido, da relação de meios e consequências. Crescimento em julgamento e en-

tendimento é essencialmente crescimento na habilidade de formar propósitos e

arrumar meios para sua realização. Esta será a linha de conexão entre a educa-

ção e o instrumentalismo.

Dewey diz em Logic: The Theory of Inquiry que os lógicos dão o nome de

análise e síntese para as operações pelas quais os meios são selecionados e

organizados em relação ao propósito. A atividade inteligente se distingue da ati-

vidade sem direcionamento pelo fato de que envolve meios de análise para a

variedade das condições presentes, em seu arranjo-síntese para se atingir o pro-

pósito pretendido.

Quanto mais imaturo o que aprende, mais simples devem ser os propósi-

tos em vista e mais rudimentares devem ser os meios empregados. A relação de

causa e efeito deve estar presente desde o ponto mais tenro.

17 DEWEY, John. Logic: The Theory of Inquiry. Nova Iorque: Searchinger Press, 2007. P. 226-227

19

Dewey dá três razões em Experience and Education para o método cien-

tífico ser prioritário na educação e na formação das ideias. Em primeiro lugar, o

método experimental das ciências daria mais importância não para ideias como

ideias do que outros métodos. Não há experimento no sentido científico se não

houver uma ideia de direcionamento. O fato de que as ideias empregadas são

hipóteses, não verdades finais, é a razão. Porque ideias são mais rigorosamente

testadas na ciência do que em qualquer outro lugar. Há um exame escrupuloso

das ideias. As hipóteses, diferentemente das “verdades fixas”, devem ser cons-

tantemente testadas e revisadas. Em segundo lugar, ideias ou hipóteses seriam

testadas por causa das consequências que produziriam quando se age sobre

elas. As consequências das ações devem ser cuidadosamente observadas. Ati-

vidade que não é testada nas consequências pode ser temporariamente apro-

veitada, mas não leva a lugar algum, não leva à expansão de ideias. Em terceiro

lugar, o método da inteligência manifestado no método experimental demandaria

acompanhamento das ideias. Sumarizar e revisar constantemente.

Para Dewey o método científico é a única forma autêntica de obter signi-

ficância de nossa experiência de cada dia no mundo que vivemos. A adaptação

do método para indivíduos de vários graus de maturidade é o desafio do educa-

dor. O constante fator da discussão educacional para Dewey é a formação de

ideias, agir sobre ideias, observação de condições, que resultam em organiza-

ção de fatos e ideias para uso futuro.

As impressões estimulam o ser humano a agir e transformar seu meio e

os objetos. Para Dewey, todo ato investigativo origina-se da experiência hu-

mana, mas com experiências ainda indefinidas; surge, portanto, de um fenô-

meno presente e definidor que é o problema prático que se impõe, e que envolve

nossas vivências e o meio ao nosso entorno. Por isso a discussão do método

científico extrapola o âmbito de laboratório para Dewey.

A experiência é concebida por Dewey como concebida vinculada à Natu-

reza. De tal forma que a experiência se identifica com a própria natureza. O du-

alismo experiência e natureza, que Dewey julga estar muito presente em diver-

sos autores, é o foco de seus ataques. Sendo assim, o método científico passa

a ser a grande ponte entre o âmbito que julgamos humano e o âmbito que julga-

mos natural.

20

Dewey julga que para os que separam experiência e natureza, a experi-

ência seria um instrumento de análise do mundo. A experiência seria transitória

perecível e a natureza algo fixo e estático. A experiência, na concepção do pen-

sador americano, é uma forma de interação da natureza. Esta interação possui

um agente, estímulos do ambiente e respostas práticas. A interação orgânica é

a característica primordial da experiência. A natureza não é fixa, mas evolutiva

e a experiência é evolutiva assim como a natureza. A experiência não é estrita-

mente cognitiva; graças à capacidade dos homens de alteração de suas próprias

ações a experiência ganha também uma dimensão cognitiva. Os hábitos e os

modos de agir estariam relacionados à nossa previsão do futuro o que biologi-

camente vai se formando como resposta.

A investigação é a transformação controlada de dada situação. Essa no-

ção de controle ecoa o procedimento de análise científica. A investigação co-

meça com a experiência em seu estado inicial, ainda não tão bem definido, e

transforma essas experiências em ordenações e planos concretos de ação para

a obtenção de propósitos. Do mesmo modo a ciência ganha uma aplicação prá-

tica e tecnológica. O progresso tecnológico se confunde com o progresso no

geral.

Dewey defende um naturalismo que julga perceber o homem em todos os

seus aspectos e que, sendo parte da natureza, possuindo o domínio filosófico e

a inspiração prática, utiliza a natureza para dominá-la. Em eco do antigo projeto

cartesiano de dominação do âmbito natural, porém com roupagem científica in-

dutivista. O filósofo americano diz que a inspiração do sistema naturalista é ne-

cessária para um maior foco nos bens humanos e nas buscas das empreitadas

na terra.

Para Dewey uma correta compreensão da natureza, em especial pelo cul-

tivo do método científico, é fundamental para atender as empreitadas humanas.

A Democracia não pode obter nem reconhecimento adequado de seu próprio

significado, nem realização prática coerente, enquanto o anti-naturalismo operar

para atrasar e frustrar o uso de métodos através dos quais a compreensão de, e

consequentemente a habilidade para guiar, as relações sociais podem ser obti-

das. Na visão de Dewey, um naturalismo bem entendido é passo essencial para

a aplicação da democracia.

21

O sujeito que vivencia a experiência o faz de acordo com a sequência

contínua da própria natureza da qual faz parte. Em outras palavras, a interação

não se dá por um agente externo, mas por um agente que está dentro da natu-

reza. Nesta visão de mundo, dissociar o homem de sua vivência natural seria

pensar em um homem hipotético que de fato não existe.

A situação concreta pressupõe um conflito entre organismo e ambiente. E

a necessidade de superação deste conflito demanda um crescimento pessoal.

Assim o Instrumentalismo naturalista é uma das bases da educação e da conti-

nuidade das experiências. Essa passage de Dewey é ilustrativa:

The primary postulate of a naturalistic theory of

logic is continuity of the lower (less complex)

and the higher (more complex) activities and

forms. The idea of continuity is not self -explan-

atory. But its meaning excludes complete rup-

ture on one side and mere repetition of identi-

ties on the other; it precludes reduction of the

"higher" to the "lower" just as it precludes com-

plete breaks and gaps. The growth and devel-

opment of any living organism from seed to ma-

turity illustrates the meaning of continuity18.

A partir do conflito passa a ser necessária uma hipótese de solução, de-

pois por uma tentativa de constatação e por fim para uma ação sobre esta. O

experimento é a confirmação ou negação da hipótese. É assim que se dá a in-

vestigação humana. Assim como o experimento científico é a base da ciência, a

experiência é a base da educação.

Neste naturalismo de Dewey não há distinção entre mente e corpo. Se-

gundo Dewey isto solucionaria qualquer controvérsia dualista. Se o naturalismo

está correto, então não precisamos nos preocupar em uma fundamentação da

relação mente e corpo, pois ambos são parte de uma mesma substância. Claro

que para aceitar esse juízo o leitor precisa de imediato aceitar o naturalismo ma-

terialista de Dewey, algo que não nos parece auto evidente. Sequer nos parece

claro que um monismo deva ser materialista, na medida em que Schelling, por

exemplo, apresenta um sistema monista com espaço claro para o divino.

18 Ibidem. 23-24.

22

Na visão da experiência de Dewey a experiência não é uma observação

distante e separada dos objetos, na qual os olhamos como se fôssemos externos

à natureza. Há uma continuidade entre mente e mundo e nós a adentramos,

examinando tanto em cognição como em repercussões nas ações nossa vivên-

cia da natureza. Ele tenta conciliar essa continuidade de mente e mundo com

uma concepção darwinista da natureza. Na qual a natureza vai evoluindo de

acordo com uma sequencialidade continua. O homem segue a mesma dinâmica

e experiencia está natureza evolutiva.

Em direta conexão com o campo cognitivo há uma dimensão da experi-

ência que é a do campo prático, da ação. A continuidade das experiências influ-

encia diretamente nossas ações futuras tanto no direcionamento, quanto na di-

mensão. Ser experiência é ser continuidade, e esse fluxo proporciona a altera-

ção dos nossos padrões de ação. Portanto, nossa relação com o mundo não é

de cognição isolada, mas intensa prática.

As coisas na natureza interagindo entre si de certo modo são a própria

experiência, há uma continuidade entre o experienciado e o que experiencia.

Ambos estão na natureza, e ambos interagindo em continuidade constituem a

experiência. A experiência, portanto, não é algo à revelia do que é natural.

Mesmo a experiência do aprendizado, que envolve de maneira mais clara uma

cognição, está dentro deste contexto. Se aprende na natureza e há crescimento

humano assim como há evolução na natureza.

Temos assim a continuidade da natureza. Esta, em evolução – no sentido

darwinista do termo -, possui uma sequência de interações entre organismo e

evolui com estas experiências. O homem, interno a esta natureza, possui uma

continuidade de experiências igualmente. Uma experiência conduz a outra. To-

das as experiências pegam algo das experiências que já passaram e modificam

de alguma forma a qualidade das experiências que acontecerão. Assim nos

aduz Dewey:

Restoration of continuity is shown to do away

with the mind-body problem. It leaves us with

an organism in which events have those quali-

ties, usually called feelings, not realized in

23

events that form inanimate things and which,

when living creatures communicate with one

another so as to share in common, and hence

universalized, objects, take on distinctively

mental properties. The continuity of nature and

experience is shown to resolve many problems

that become only the more taxing when conti-

nuity is ignored19.

Na medida em que há uma continuidade perene na natureza e nas expe-

riências dela, uma experiência inevitavelmente conduz a novas reações e a ou-

tras experiências. A experiência está dentro de um contexto em que a natureza

é entendida como contínua e ela própria funciona em continuidade. O darwi-

nismo dá um framework para Dewey trabalhar sua concepção de continuidade

especificamente aplicada a este campo.

A noção de continuum filosoficamente entendida pode ser remetida ao

fundador do pragmatismo, Charles Sanders Peirce. No entanto, a formulação de

Peirce é muito distante da de Peirce. O continuum em Peirce já considerava a

profundidade matemática de seu pai, que estudou amplamente o problema da

divisibilidade infinita da reta.

Peirce formula uma doutrina do Acaso Ontológico na qual o mundo possui

uma potencialidade fortuita, inerente a si próprio, um modo de ser correlacionado

com irregularidade e assimetria atinentes com o que está imediatamente nos

fatos. Para Peirce a realidade não se reduz apenas ao aspecto da lei, mas existe

uma fonte de liberdade e criatividade inerente à própria lei. Há assim um aspecto

tensional entre regularidade e irregularidade, entre lei e acaso que é, para Peirce,

o que ontologicamente constitui o real.

Essa por sua vez se relaciona coma doutrina do Falibilismo, uma corrente

indeterminista. Para dar suporte ao conhecimento humano, tal doutrina que por

um lado afirma a possibilidade do conhecimento humano sobre o mundo também

o afirmar como que num “continuum” de incerteza e indeterminação, como se as

19 DEWEY, John. Experience and Nature. Mineola: Dover Publications, 2000. P. 7-8

24

próprias leis passíveis de conhecimento estivessem evoluindo, revelando-nos a

insuficiência da concepção ontológica determinista.

Para Peirce continuidade é fluidez, fusão de partes em partes. Devemos

imaginar as coisas continuadas na medida em que o possamos, sem cingir a

realidade. Deve-se supor também uma continuidade entre os caracteres de

mente e matéria, de tal forma que a matéria não seria senão mente que teve

seus hábitos cristalizados. Os fenômenos psíquicos e físicos não são inteira-

mente distintos, todos os fenômenos são de um único caráter sob o ponto de

vista ontológico.

A continuidade representa a categoria fenomenológica da terceiridade de

Peirce quase em perfeição. É generalização, formação de lei e hábito. Há um

fluxo contínuo imposto pela história dos sujeitos que a experiência produz na sua

função de fazer pensar que. A continuidade é o modo de ser de um todo e não

individuais que possam constituir uma pluralidade. Peirce relaciona ainda cres-

cimento, inteligência, generalização e continuum. Na medida em que todos estes

se enquadram na categoria da terceiridade. A ideia de continuidade envolve a

ideia de infinito, uma falta de determinação que vai além da experiência concreta.

Um continuum, na medida em que é continuum não possui partes definidas, o

que quebraria sua continuidade. Nenhuma multidão de individuais pode exaurir

o verdadeiro continuum.

Tempo e espaço são contínuos, porque incorporam condições de possi-

bilidade, e o contínuo é geral. Generalidade e continuidade são dois nomes para

a ausência de individuais. Há ainda uma generalidade na possibilidade. O pos-

sível é parte deste continuum de variações. Um possível junta-se a outro. É a

continuidade do tempo e do espaço que asseguram que Aquiles passará a Tar-

taruga, não os pontos e a somatória das divisões (uma referência ao famoso

problema de Zenão de Eleia). É da natureza do pensamento crescer, e a gene-

ralidade se relaciona com inteligibilidade. O objeto do pensamento, ao se fazer

sujeito do pensamento, impõe os limites de determinação de sua representação.

O continuum em Peirce, como evidenciado pelas três categorias fenome-

nológicas, não é nominalista e considera a realidade dos universais. Não há au-

sência de explicação da ordem pois há a lei, nem o determinismo biológico pois

25

há a primeiridade, a liberdade ontológica. A conciliação entre liberdade e o con-

tinuum ordenado, em harmonia com o Ágape e o Eidos, são a marca de Peirce.

Este aspecto foi completamente excluído por Dewey, que por ser nominalista (no

sentido que Peirce emprega), não considera os princípios cosmológicos de har-

monia.

A discussão matemática no século XIX teve intensas repercussões na fi-

losofia, pois o problema dos contínuos em matemática e especialmente a dis-

cussão acerca da reta parece colocar em cheque o conhecimento que julgamos

possuir. Peirce deliberadamente tenta fugir de uma interpretação nominalista da

continuidade, e desenvolve uma profunda teoria para tal. O fundador do prag-

matismo diz que a tentativa dos nominalistas de definir a continuidade como um

tipo de coleção de entes isolados está fadada ao fracasso. Para Peirce, o verda-

deiro continuum é um todo, e a análise quebrada dos elementos do continuum

já fugiria da natureza deste contínuo. Em Dewey não há esta preocupação e a

noção de continuidade nominalisticamente percebida não lhe aparece como pro-

blema.

No entanto a parte de continuum da experiência em Dewey é real? Se ela

é real então ela é real enquanto universal? Se resposta for negativa, então não

deveria existir em Dewey um continuum experimental de fato, apenas uma se-

quência de coisas as quais ele chama de continuum. Se a resposta for positiva,

Dewey precisaria admitir a realidade dos universais para além da linguagem. A

análise da educação e da filosofia precisaria se atentar a esses universais. Não

há como responder este problema na filosofia de Dewey sem cair em contradi-

ções.

Dewey diz que os princípios, sendo eles abstratos, só se tornam con-

cretos nas consequências que resultam de sua aplicação. Por um lado, aparen-

temente há uma semelhança com o Pragmatismo de Charles Peirce. Na medida

em que na filosofia de Peirce, considerando os efeitos que possivelmente pode-

riam ter consequências práticas, a concepção desses efeitos é o todo da nossa

concepção do objeto. Porém, em Dewey esse pragmatismo é derivado da prática

e da biologia em detrimento dos princípios gerais, então há uma diferença subs-

tancial na relação entre princípios gerais e ação prática entre sua filosofia e a de

Peirce.

26

Na ontologia de Charles Peirce a ação requer um fim, este fim é algo

similar a uma descrição geral, sabendo que devemos olhar para os resultados

gerais de nossos conceitos a fim de os compreendermos corretamente, vamos

nos direcionar para algo distinto dos fatos práticos que são as ideias gerais. Ao

criticar a interpretação pragmatista na obra “Will to Believe” de William James,

Peirce diz que as ideias gerais são as verdadeiras intérpretes do nosso pensa-

mento. Esta crítica valeria para Dewey em muitos aspectos. Para Peirce a ação

intencionada traduz-se no propósito racional do conceito. Lembrando que Aris-

tóteles estabeleceu uma relação interessantíssima entre compreensão intelec-

tual, razão prática e causa final da ação.

Para Peirce, portanto, a essência da experiência, no seu “fazer pensar

que”, é o pensamento que a ação veicula. No pensamento de Peirce o que não

pode ser pensado sequer pode ser dito, pois, as relações reais constituem con-

dição de possibilidade para o pensamento. Por isso Peirce considera que se to-

marmos como verdadeiro o nominalismo a mediação cognitiva seria impossível.

Uma concepção cujas consequências não exercem influência concebível sobre

a conduta estaria desprovida da possibilidade de significado.

Então a concepção de continuum em Peirce se difere muito da con-

cepção de Dewey. A de Dewey parece ter uma desconsideração metafísica e

pressupostos cosmológicos naturalistas que excluem os universais e que con-

tradizem a própria realidade do continuum afirmado. O continuum Experimental

de Dewey, se analisado pelo prisma das categorias de Peirce, não parece se

sustentar.

Peirce dá grande ênfase ao caráter intelectual da conduta. A raciona-

lidade do pensamento encomenda-o para um futuro possível. Na fundação do

realismo peirciano está a ideia de uma concepção positiva, a que supõe ter um

objeto real, deve prever o curso futuro da experiência. Sendo este o cerne do

que o autor chama de consequências práticas concebíveis. A instância da ação,

do aqui e agora, revelará se há uma conformidade real com a previsão. O esse

in futuro caracteriza o continuum da significação. A teoria não é um mero salva-

guardar as aparências, mas experiência de um objeto real.

27

Dewey, contra os ensinamentos de Peirce, Platão e Hegel (três auto-

res que foram bastante lidos por ele) parece rejeitar por completo o real quando

este é relativo ao espírito e as universalidades reais nas coisas. Portanto, a pró-

pria noção da realidade objetiva do continuum se torna de difícil defesa.

2. Critérios de Experiência e o Continuum Experimental na Educação

A visão de Dewey é profundamente naturalista e a análise da experi-

ência não foge desse âmbito. Neste experiencialismo naturalista de Dewey não

se procura uma cisão entre uma experiência e outra, mas uma continuidade. As

experiências estão conectadas umas com as outras, elas formam uma complexa

rede de relações em continuidade. Uma experiência leva inevitavelmente a outra

e considerando que elas estão imersas em um contexto próprio de experiências

prévias, percebemos assim que uma experiência depende da outra.

No entanto, embora uma experiência sempre conduza a outra, do

ponto de vista do agente há uma variedade de experiências e nem todas o leva-

rão por um caminho que lhe permita ir em direção a uma profundidade cada vez

maior. O problema educacional aparece no discernimento de quais experiências

ajudam ou atrapalham neste processo de extensão na natureza.

Embora a análise se inicie para esclarecer o projeto da escola pro-

gressista, é importante notar que educativo, neste contexto, não se refere exclu-

sivamente ao âmbito escolar, mas a todos os âmbitos de aprendizado e cresci-

mento humano. Para Dewey, em todas as circunstâncias, o crescimento pessoal

se dá pela experiência. No entanto, nem toda experiência é por si educativa ou

valiosa. Isso ocorre, pois no pensamento de Dewey, nem todas as experiências

possuem igual valor. Se fosse este o caso, bastaria que vivêssemos e utilizás-

semos os cinco sentidos para que todos eficazmente crescêssemos da melhor

maneira.

Algumas experiências podem ser derrogatórias no processo de apren-

dizagem e desenvolvimento. Outras experiências podem impulsionar os indiví-

duos de maneira excepcional. Na visão de Dewey algumas experiências nos

levam a um maior desenvolvimento, outras nos fazem estagnar. Para entender

28

qual possui valor educativo é necessário estabelecer critérios de experiência.

Estes são os critérios pelos quais podemos discriminar as diferentes experiên-

cias percebendo assim o valor de cada uma. Pode-se predicar como educativa

a experiência que atende a estes determinados critérios de experiência.

Os critérios de experiência são determinados princípios que Dewey

considera como os mais significativos para definir uma teoria da experiência. É

por meio destes princípios que podemos julgar se uma experiência é educativa

ou não. Pois estando presentes os princípios, eles alteram o valor da experiên-

cia. Se uma determinada experiência atender aos critérios ela pode ser qualifi-

cada e valorada de forma positiva.

No pensamento de Dewey, os princípios que servem como critérios

de experiência possuem uma dupla significação. Por um lado, eles são atributos

próprios de determinadas experiência, são características que as configuram de

certo modo. Por outro, estes princípios são propriamente critérios de discrimina-

ção das experiências, ou seja, critérios pelos quais julgamos o valor educativo

de uma determinada experiência.

Quanto à primeira significação, podemos fazer um paralelo com o

conceito qualidade. Aristóteles introduziu na tradição filosófica a categoria da

qualidade, que em sentido amplo é aquilo pelo qual dizemos que a coisa é tal.

Sem alterar a substância da coisa, a qualidade faz com que ela seja de tal modo.

Por exemplo, se determinada pessoa possui um hábito (que é um tipo de quali-

dade) de tal forma a direcioná-la para o bem, ela é dotada de uma virtude. A

construção de Dewey e sua visão filosófica são distintas das de Aristóteles, no

entanto, ele chama os princípios de categorias (termo empregado por Aristóte-

les) e se refere aos princípios como “quality of experience”. Guardadas as subs-

tanciais diferenças entre as categorias de Dewey e Aristóteles, os princípios são

como qualidades das experiências.

Se por um lado os princípios são características das próprias experi-

ências, por outro, são os critérios pelos quais as julgamos. Na medida em que

estão presentes percebemos o valor das experiências. São duas as categorias

que Dewey apresenta em “Experiência e Educação” como Critérios de experiên-

cia. A categoria da continuidade e a categoria da interação.

29

Dentre estes princípios, o primeiro a ser trabalho por Dewey é justa-

mente o princípio do continuum experimental. A categoria da continuidade, ou

continuum experimental, é um princípio envolvido em qualquer tentativa de dis-

criminar experiências valiosas educacionalmente. Dewey diz que esse entendi-

mento é necessário tanto para a crítica da educação tradicional como para a

criação de uma nova educação.

Analisando o princípio de continuidade da experiência como critério

de discriminação, Dewey diz que em última instância o princípio se baseia no

fato do hábito, quando hábito é interpretado biologicamente. A característica bá-

sica do hábito é que toda experiência realizada e passada modifica quem age e

passa por ela, e essa modificação afeta, queiramos ou não, a qualidade das ex-

periências subsequentes. Pois agora é, de certo modo, uma pessoa diferente

que as encara.

O princípio do hábito, entendido assim, obviamente é mais profundo

do que a concepção ordinária de hábito como uma maneira fixa de fazer as coi-

sas, embora inclua essa última como um de seus casos especiais. Ele cobre a

formação de atitudes, que são emocionais e intelectuais, também cobre a sensi-

tividade e as formas de encontrar e responder às condições que encontramos

no viver. Deste ponto de vista, o princípio de continuidade da experiência signi-

fica que toda experiência, por um lado, se utiliza de algo do que já foi vivido e,

por outro, modifica de alguma forma a qualidade do que virá.

Todas as experiências influenciam, em algum grau, as condições ob-

jetivas para as futuras. Ao escolher uma profissão, uma pessoa favorece deter-

minados tipos de experiência, distintos dos que poderia ter de outra forma.

Consideremos a questão da continuidade como critério pelo qual se

discrimina entre experiências educativas e não educativas. Para Dewey há al-

gum tipo de continuidade em qualquer caso porque toda experiência afeta para

melhor ou para pior as atitudes que ajudam a decidir a qualidade das experiên-

cias seguintes, determinando certas preferências e habilidades de forma a tornar

mais fácil ou mais difícil para se agir para este ou aquele fim. O princípio de

continuidade é de aplicação universal, mas é só quando notamos as diferentes

30

formas pela qual a continuidade da experiência opera que temos a base para

discriminar entre experiências.

Mas enquanto o princípio de continuidade se aplica a todos os casos,

a qualidade da presente experiência influencia a forma como o princípio se

aplica. Ao falar na criança mimada, Dewey ressalta que o efeito de criar uma

pessoa autoindulgente é contínuo. A busca pelo que é meramente agradável

torna a pessoa adversa a situações que demandam maior esforço e perseve-

rança. Para Dewey não seria incorreto dizer que o princípio de continuidade da

experiência pode operar de tal forma a deixar o indivíduo preso em um baixo

plano de desenvolvimento, criando assim uma limitação em sua capacidade de

conhecimento. Como explicará Dewey em Experience and Education:

We speak of spoiling a child and of the spoilt child. The effect of over-indulging a child is a continuing one. It sets up an attitude, which operates as an automatic demand that persons and objects cater to his desires and caprices in the future. It makes him seek the kind of situation that will enable him to do what he feels like doing at the time. It renders him averse to and com-paratively incompetent in situations, which require ef-fort and perseverance in overcoming obstacles. There is no paradox in the fact that the principle of the conti-nuity of experience may operate so as to leave a per-son arrested on a low plane of development, in a way, which limits later capacity for growth20.

Por outro lado, se uma experiência desperta curiosidade, fortalece a

iniciativa, pode desencadear desejos e propósitos que são suficientemente in-

tensos para carregar uma pessoa para lugares do passado e do futuro. Neste

caso, a continuidade funciona de uma forma muito diferente. As experiências são

forças moventes. Seu valor pode ser julgado apenas considerando o fundamento

que é a direção pela qual a experiência se move. Podemos ilustrar com uma

ideia colocada por Dewey, que é a de que o processo educativo abre portas para

novos tipos de experiência. Nas palavras do próprio Dewey:

As we have seen, there is some kind of continuity in any case since every experience affects for better or

20 Ibidem. P. 20

31

worse the attitudes which help decide the quality of further experiences, by setting up certain preference and aversion, and making it easier or harder to act for this or that end. Moreover, every experience influ-ences in some degree the objective conditions under which further experiences are had. For example, a child who learns to speak has a new facility and new desire. But he has also widened the external condi-tions of subsequent learning. When he learns to read, he similarly opens up a new environment. If a person decides to become a teacher, lawyer, physician, or stock-broker, when he executes his intention he thereby necessarily determines to some extent the en-vironment in which he will act in the future. He has rendered himself more sensitive and responsive to certain conditions, and relatively immune to those things about him that would have been stimuli if he had made another choice21.

Na visão de Dewey, crescimento, ou crescer sob o ponto de vista do

desenvolvimento, não é crescer apenas fisicamente, mas intelectual e moral-

mente, é uma exemplificação do princípio de continuidade. Dependo das expe-

riências das quais participamos, a qualidade das nossas futuras experiências vai

se formar de determinado modo, de acordo com as vividas anteriormente.

Poderia se objetar dizendo que o crescimento pode tomar várias dire-

ções, como por exemplo um ladrão que cresce no crime, portanto precisaríamos

definir a direção para a qual se destina o crescimento. No entanto, para Dewey,

ninguém duvida que se possa crescer em ofícios ruins, mas do ponto de vista do

crescimento como educação, a questão é se o crescimento nessa direção pro-

move ou retarda o crescimento em geral. Se essa forma de crescimento cria

condições para um maior crescimento, ou se cria condições para o fechamento

da possibilidade de crescimento em outras direções. Só o desenvolvimento, na

linha em particular que conduz ao crescimento contínuo, responde pelo critério

de experiência e nos indica um crescimento.

Temos assim que a experiência educativa é a que conduz ao cresci-

mento e que por sua vez é a que possui grande interação e que proporciona a

continuidade experimental, que permite novas experiências cada vez mais

21Ibidem. P. 21

32

profundas. De forma que a profundida da experiência é determinada por seu

fluxo de continuidade.

O princípio de continuidades da experiência educativa requer um de-

senvolvimento ordenado em direção à expansão e organização dos conteúdos

para o crescimento da experiência. É essencial que as experiências apresenta-

das tenham sempre objetos e eventos novos, mas que sejam sempre intelectu-

almente relacionadas com as experiências passadas. Que haja um avanço feito

no sentido de articulação de fatos e ideias.

É papel do educador escolher experiências que possam expandir a

cognição e as ações futuras, adquirindo assim sempre novas experiências. Ele

deve apresentar as experiências que já teve não como posses fixas, mas como

instrumentalidade para a abertura de novas demandas sobre os poderes exis-

tentes de observação e o uso inteligente da memória.

Para Dewey, a correção no crescimento deve ser sempre levada em

consideração, não importa se é o ensino universitário ou o maternal. O educador

pela própria natureza do seu trabalho é obrigado a ver o seu trabalho em termos

do que ele consegue, ou falha em conseguir, para um futuro no qual os objetos

estão ligados com os do presente. Aponta R. W. Hildreth:

Dewey famously argues that the end of education is growth. Th is basic idea, widely criticized and often misunderstood, rests on a series of more complex ar-guments about the nature of education, human expe-rience, and social life. First, Dewey understands edu-cation as the reconstruction of experience. As such, there is an intimate and inextricable relation between a person’s life experiences on one side and educa-tional methods, content, and ends on the other. We learn by gaining a better sense of the meaning of pre-sent experiences and by increasing our ability to direct future experiences. Second, we grow when learning opens up opportunities for future growth and thereby enables us to continue our education. In this sense, there are no ends outside of the processes of educa-tion; it is its own end. Third, as a result, Dewey con-sistently rejects any move to impose ultimate or

33

external ends for education. To do so would violate Dewey’s experiential conception of education22.

Para o pensador americano, as condições da presente experiência

são a origem dos problemas. O crescimento depende da presença de dificulda-

des para serem superadas pelo exercício da inteligência. Essas condições e a

sua relação com o indivíduo constituem a interação. A interação é o encontrar

do indivíduo com o meio concreto. Ecoa de algum modo a adaptação darwinista,

mas em Dewey é tomada em sentido filosófico e experimental. Para Dewey es-

tamos em constante interação com o meio ambiente e constantemente procu-

rando superar as dificuldades que este meio nos apresenta.

A palavra interação, que acabamos de empregar, significa o segundo

grande princípio para entender e interpretar a força e função educacional. Ele dá

direitos iguais aos fatores internos e objetivos. Qualquer experiência normal é

um encontrar destes dois. Juntos eles são o que Dewey chama de situação. Os

dois fatores devem ser levados em consideração na análise das experiências.

Dewey dirá que os indivíduos estão inseridos no mundo, por isso as

concepções de interação e situação são inseparáveis. Uma experiência sempre

é o que é em razão de uma troca entre o indivíduo e seu meio, seja um meio

imaginário, antigo ou atual. Logo, mesmo o contato com conhecimentos passa-

dos é, em última instância, interação.

Os princípios de continuidade e interação não são separados um do

outro, eles se cruzam e se unem. Dewey diz que são como os aspectos longitu-

dinal e latitudinal da experiência. Diferentes situações sucedem uma a outra.

Mas como o princípio de continuidade carrega uma experiência para outra, um

indivíduo passa por situações que lhe proporcionam a chance de se expandir ou

contrair. Ele não vai para outro mundo, mas para aspectos diferentes do mesmo

mundo. O que ele aprende de conhecimentos e habilidades em uma situação se

torna um instrumento de entendimento e ação efetiva em situações que se se-

guem.

22 HILDRETH, R. W. - What Good Is Growth? Reconsidering Dewey on the Ends of Education - E&C/Educa-

tion & Culture 27 (2) (2011): p. 28

34

O processo continua assim como a vida continua, de outra forma sem

continuidade e interação, o curso da experiência seria desordenado. Se na vida

pessoal não conseguirmos ligar experiências passadas com as sequentes, o fa-

tor individual, que é parte indissociável da experiência, estaria dividido. Um

mundo dividido é causa de uma personalidade dividida. Dewey diz que quando

uma personalidade chega a certo grau de divisão, a pessoa se torna insana.

Uma personalidade bem integrada só existe quando as sucessivas experiências

estão bem integradas uma com a outra. Só se pode construir algo, se um mundo

de objetos relacionados for construído.

Na concepção de Dewey, continuidade e interação são princípios em

união ativa um com o outro e nos dão a medida para a significância educativa e

valor de uma experiência. A preocupação direta e imediata do educador é com

a situação na qual a interação ocorre.

O indivíduo que participa da experiência é o que é em dado tempo.

Dentre as várias circunstâncias de sua vida, é no estado específico do momento

que o indivíduo vive determinada experiência. O fator interno da interação não

depende do educador, somente o fator das condições objetivas que pode ser, de

alguma forma, objeto das ações que o educador faz no intuito de expandir as

experiências. Condições objetivas é um conceito amplo, abarcando para Dewey

desde o passado, o imaginário, até à dinâmica escolar. Dewey enxerga essa

visão de crescimento como uma alternativa à uma visão puramente histórica e

uma de puro mecanicismo materialista. Para ele de algum modo ambas estão

certas no geral e ele tenta conciliar as duas. Sobre esta dinâmica, Dewey afirma:

The reality is the growth-process itself; childhood and adulthood are phases of a continuity, in which just be-cause it is a history, the later cannot exist until the ear-lier exists ("mechanistic materialism" in germ); and in which the later makes use of the registered and cumu-lative outcome of the earlier or, more strictly, is its uti-lization ("spiritualistic teleology" in germ). The real ex-istence is the history in its entirety, the history as just what it is. The operations of splitting it up into two parts and then having to unite them again by appeal to causative power are equally arbitrary and gratuitous. Childhood is the childhood of and in a certain serial process of changes which is just what it is, and so is maturity. To give the traits of either phase a kind of

35

independent existence, and then to use the form se-lected to account for or explain the rest of the process is a silly reduplication; reduplication, because we have after all only parts of one and the same original history; silly because we fancy that we have accounted for the history on the basis of an arbitrary selection of part of itself23.

O princípio de continuidade em sua aplicação educacional significa

que o futuro deve ser levado em consideração em cada caso do processo edu-

cacional. Dewey dirá que essa ideia é facilmente mal-entendida por se pensar

que ao absorver determinados conteúdos os pupilos estão prontos para as cir-

cunstâncias do futuro. Em certo sentido toda experiência deveria ser preparatória

para outra futura mais profunda e de maior qualidade expansiva. Esse é o próprio

sentido de crescimento, continuidade e reconstrução de experiência. Dewey diz

que é um erro supor que a mera aquisição de conhecimentos específicos como

geografia e aritmética sejam por si uteis para o futuro. Em My Pedagogic Creed,

o autor explica:

I believe that there is, therefore, no succession of studies in the ideal school curriculum. If education is life, all life has, from the outset, a scientific aspect; an aspect of art and culture and an aspect of communi-cation. It cannot, therefore, be true that the proper studies for one grade are mere reading and writing, and that at a later grade, reading, or literature, or sci-ence, may be introduced. The progress is not in the succession of studies but in the development of new attitudes towards, and new interests in, experience. I believe finally, that education must be conceived as a continuing reconstruction of experience; that the pro-cess and the goal of education are one and the same thing24.

Nesta visão, não existe matéria boa em si mesma, independente-

mente do estágio de crescimento da pessoa. É só na continuidade das

23DEWEY, John. Experience and Nature. Mineola: Dover Publications, 2000. P.275. 24DEWEY, John. My Pedagogic Creed: Also, the demands of sociology upon pedagogy by Prof. Albion W. Small. Ann Arbor: University of Michigan Libraries, 2011. P. 10

36

experiências e nas necessidades do presente momento que um conteúdo pode

ser tido como bom. Dewey considera que uma falha em levar em consideração

as necessidades e capacidades dos indivíduos é a origem da ideia de que certos

métodos e certas assuntos são intrinsecamente bons para a disciplina mental.

Não existe valor educacional no abstrato, a continuidade das experiências se

concretiza com experiências. Em Dewey, a noção de que o contato com alguns

fatos e verdades possuam um valor educacional em si mesmas é a razão pela

qual a educação tradicional tenha feito tantos materiais estáticos e sem vida. O

material educacional não estaria acompanhando a continuidade experimental e

as variações individuais.

O filósofo americano diz que quase todos que se lembram de sua

época de escola não conseguem entender de que forma poderiam ter aprovei-

tado os conhecimentos recebidos durante este período. Para ele é sortudo o que

não descobre que para progredir intelectualmente precisa desaprender muito do

que aprendeu na escola. Um dos problemas que causam esse mal-estar é o

isolamento das matérias. Os poucos conhecimentos recebidos foram segrega-

dos e desconectados das condições reais da vida. Só uma visão do todo dos

conhecimentos como um continuum poderia resolver estes problemas. A natu-

reza é única, não um conjunto de divisões isoladas. É contrário às leis da expe-

riência que esse tipo de aprendizado deva ser considerado uma preparação au-

têntica.

Em Experience and Education o ensino colateral é apresentado como

uma formação de atitudes duradouras (contínuas), de gostos e podem ser mais

importantes do que uma aula de soletrar, pois essas atitudes são fundamental-

mente o que conta no futuro. A atitude mais importante que pode ser formada é

o desejo de continuar aprendendo, esta seria para Dewey a aplicação mais direta

do princípio da continuidade. Por isso algumas pessoas com pouca escolari-

dade, mas com muito “common sense” podem ter melhores condições de viver

com a capacidade que possuem e de aprender com as experiências que vão

vivenciando. Dewey diz que não vale a pena aprender a escrever se uma pessoa

perde sua alma (o diz em sentido metafórico), pois perde a apreciação pelas

coisas valiosas.

37

Para Dewey, quando a preparação para um futuro hipotético é o fim

último, as potencialidades do presente se sacrificam por suposições futuras. A

cadeia de continuidade será rebaixada se não houver sequencialidade. Quando

isso ocorre, a preparação para o futuro é perdida ou distorcida. A ideia de usar

o presente simplesmente para o futuro contradiz a si própria, pois o futuro será

inevitavelmente o presente em algum momento. Então Dewey defende uma es-

pécie de educação para o presente momento.

Na sequência de sua construção isso significa que se deve devotar

tempo para que as condições das experiências atuais sejam valiosas. Ao invés

de inferir que não importa a experiência presente, contanto que seja aproveitada

a conclusão, deve-se concluir exatamente o oposto. Na visão de Dewey não se

pode ir para um extremo ou outro, o presente afeta o futuro e o passado afeta o

presente. Escreve Dewey:

In the earlier forms of experience the causal relation does not offer itself in the abstract but in the form of the relation of means employed to ends attained; of the relation of means and consequences. Growth in judgment and understanding is essentially growth in ability to form purposes and to select and arrange means for their realization. The most elementary ex-periences of the young are filled with cases of the means-consequence relation. There is not a meal cooked nor a source of illumination employed that does not exemplify this relation. The trouble with edu-cation is not the absence of situations in which the causal relation is exemplified in the relation of means and consequences. Failure to utilize the situations so as to lead the learner on to grasp the relation in the given cases of experience is, however, only too com-mon. The logician gives the names "analysis and syn-thesis" to the operations by which means are selected and organized in relation to a purpose25.

Para o filósofo americano os princípios da nova educação, em si mes-

mos não resolvem nenhum dos problemas da prática das escolas progressivas.

Ao invés disso eles colocam novos problemas que para ele precisam ser traba-

lhados a partir de uma filosofia da experiência. Os problemas não estão nem

25 DEWEY, John. Experience and Education. Nova Iorque: Free Press, 2015. P. 60

38

sendo reconhecidos, muito menos resolvidos. Para Dewey as novas escolas ten-

dem a não valorizar nenhuma matéria, proceder como se toda orientação de

adultos fosse uma invasão da liberdade pessoal e como se a relação entre pas-

sado e futuro significasse que o passado não tem lugar na educação. Esses

pontos ilustram o que é uma teoria negativa em contraposição a uma teoria po-

sitiva fundada em uma teoria da experiência e suas potencialidades educacio-

nais. A crítica é extremamente válida, mas Experience and Education não apre-

senta o que claramente é uma teoria baseada na experiência.

Qualquer teoria e prática é dogmática para Dewey se não for baseada

em um exame crítico de seus próprios princípios. Segundo ele, essa oposição

toma a forma do contraste entre a educação tradicional e a progressiva. O sis-

tema novo de educação é por si uma crítica à educação antiga. A crítica é posta

da seguinte forma: O esquema tradicional é uma imposição de cima e de fora.

Ele impõe padrões adultos e objetos e métodos aos quais os pequenos não es-

tão preparados. Há um grande vão entre as capacidades dos jovens e sua forma

de conduta. Essas imposições estão além de sua capacidade e por isso são

impostos, embora bons professores mascarem essa imposição. A diferença en-

tre um padrão e outro é tão grande que impede a participação dos jovens nesse

processo. A continuidade é justamente um desses importantes princípios a se-

rem observados nesta reformulação do sistema educacional.

Um problema que se poderia colocar é que o princípio de continuidade

se fundamenta na sequência de experiências, e estas por sua vez não são claras

o suficiente para entendermos o que seria essa filosofia não dogmática. A filoso-

fia não dogmática precisaria, por exemplo, pressupor o materialismo? Para De-

wey sim, se entendermos a integração entre sua filosofia da natureza e sua filo-

sofia da educação. O pressuposto do materialismo, no entanto, não é questio-

nado em sua obra. Neste sentido, não nos parece claro porque o materialismo

não cairia no dogmatismo que ele acusa.

Para Dewey aprender não significa aquisição do que já está incorpo-

rado em livros e na cabeça dos mais velhos. O que é ensinado não pode ser

pensado como sendo essencialmente estático. Nem ensinado como um produto

acabado com pouca importância dada para como foi construído ou as mudanças

que podem ocorrer no futuro é um processo de uma sociedade que julgava que

39

o futuro seria como o passado. Não se cogita a possibilidade de que possa haver

aspectos imutáveis e aspectos mutáveis em convivência com o que é ensinado.

Para Dewey a opressão de cima é oposta à expressão e cultivo da

individualidade, a disciplina externa é oposta à atividade livre a aprender de tex-

tos e professores, aprender pela experiência, em oposição a aprender para o

futuro, seria tirar o máximo das oportunidades presentes ter contato com um

mundo em transformação. Considerar o conhecimento como fixo e petrificado

seria para Dewey uma violação da atenção ao princípio de continuidade. Em

nossa concepção o fato de julgarmos a música de Mozart como possuidora de

um valor em si não é uma opressão, mas uma constatação de algo transcen-

dente. A alegação de opressão não parece excluir a perenidade.

Para Dewey, todos esses princípios são por si mesmos abstratos, o

que inclui a própria continuidade enquanto puro critério de experiência. Eles se

tornam concretos só em suas consequências, que resultam de sua aplicação.

Como eles são distantes tudo depende de sua interpretação e aplicação. Para o

filósofo americano a filosofia da nova educação pode ser boa, mas a diferença

dos princípios abstratos não decidirá como isso se desenvolverá na prática.

Existe sempre o perigo sempre de constituir não positivamente, mas negativa-

mente. Sendo um efeito do que rejeitou ao invés de uma construção própria.

Dewey diz que a unidade fundamental da nova filosofia é encontrada

na íntima e necessária relação entre experiência e educação. Se isso for verda-

deiro, então uma abordagem positiva e construtiva depende de uma ideia correta

de experiência. Qual seria exatamente essa correta ideia de experiência, nova-

mente não nos aparece com clareza.

Quando o controle externo é rejeitado o problema se torna o de achar

os fatores de controle que sejam inerentes à experiência. Do fato de que a auto-

ridade externa deva ser revisada, não se segue que toda autoridade deveria ser

rejeitada, mas que se deveria encontrar uma fonte de autoridade mais eficaz. Se

para Dewey a educação antiga era baseada em imposições, não se segue que

as habilidades das pessoas maduras não são de valor diretivo para os mais ima-

turos. Ao contrário, basear educação em experiência pessoal pode significar um

contato entre maduro e imaturo mais intenso do que o que existia na educação

40

tradicional. O problema é como esse contato pode ser estabelecido sem o prin-

cípio de aprender por experiência pessoal. A solução deste problema demanda

para Dewey uma profunda filosofia do significado de experiência pessoal. Aduz

Dewey:

To “learn from experience” is to make a backward and forward connection between what we do to things and what we enjoy or suffer from things in consequence. Under such conditions, doing becomes a trying; an ex-periment with the world to find out what it is like; the undergoing becomes instruction – discovery of the connection of things. Two conclusions important for education follow. (1) Experience is primarily an ac-tive–passive affair; it is not primarily cogntive. But (2) the measure of the value of an experience lies in the perception of relationships or continuities to which it leads up. It includes cognition in the degree in which it is cumulative or amounts to something, or has meaning26.

Desta forma a experiência seria algo bem mais orgânico (no sentido

de integração relativa à natureza) do que cognitivo, ao menos na concepção de

Dewey. O livro Experience and Nature revela que este comentário é em grande

parte uma referência a David Hume e os empiristas britânicos no geral, os quais

ficaram para o filósofo americano aquém de uma teoria da experiência correta.

Em um segundo momento, verificamos que a estipulação do valor das experiên-

cias por sua vez envolve a cognição apenas na medida em que possui signifi-

cado.

Para Dewey a maior maturidade do educador, devido a sua maior vi-

vência de experiência, o põe em uma posição para avaliar cada experiência dos

jovens de uma forma qualificada, algo que os menos maduros não conseguem

fazer. É papel do educador ver a direção para a qual a experiência está indo.

Não há razão em ser mais maduro se, ao invés de usar o insight maior para

ajudar a organizar as condições de experiência dos imaturos, o educador jogá-

lo fora. Na filosofia deweyana, o educador deve buscar experiências que estejam

26 DEWEY, John. Democracy and Education: an introduction to the philosophy of education. 1ª ed. Nova Iorque: Free Press, 1997. P. 164

41

em conformidade com o princípio da continuidade, ele guia as experiências para

que uma se conecte a outra.

Na visão do autor uma falha em considerar a força movente de uma

experiência de tal forma a direcionar seu rumo significa uma deslealde ao prin-

cípio da experiência em si mesmo. A deslealdade opera em duas direções. Por

um lado, o educador falha no entendimento que ele deveria ter tido de sua pró-

pria experiência passada. Por outro, também é infiel ao fato de que todas as

experiências humanas são em última análise sociais, que envolvem contato e

comunicação. Para Dewey a pessoa madura, falando em termos morais, não

possui o direito de privar o jovem de entendimento “simpatético” das experiên-

cias dadas a ela.

Nós vivemos e morremos em um mundo que é o que é em grande

medida pelo que foi feito e descoberto pelas gerações prévias. Quando este fato

é esquecido, a experiência é tida como algo que ocorre simplesmente no corpo

e mente individuais, sendo que as fontes externas originam experiências.

Ordinariamente tomamos esses fatos por garantidos. Para Dewey o

modo pelo qual o educador pode direcionar experiências, sem entrar em impo-

sições, é justamente o uso do entorno. O uso do meio para construir experiências

valiosas. Desta forma ele pode proporcionar a continuidade passado-presente.

O entorno pode criar uma linha experimental que assegure maior continuidade e

interação.

Para Dewey a educação tradicional não tinha que enfrentar este pro-

blema. A professor não tinha necessidade de se conectar com as condições fí-

sicas, da comunidade e a realidade histórica e econômica. Um sistema baseado

na experiência precisa ser fiel a isso. As condições externas não devem ser ser-

vas dos desejos imediatos dos jovens, mas justamente ordenadas de tal forma

que um tipo particular de estados internos seja desenvolvido.

Os dois princípios de continuidade e interação como critérios de ex-

periência são tão intimamente ligados que o professor não vai conseguir criar

condições para conduzir a atividade comunitária e organização que exerça con-

trole sobre os impulsos individuais pelo mero fato de estarem engajados em pro-

jetos comunais. É necessário planejamento prévio. O controle das ações

42

individuais é afetado pela situação toda na qual o indivíduo está envolvido que

eles dividem e da qual são partes interativas.

A capacidade para tal atividade intelectual marca um grande desen-

volvimento quando continuada por um longo período. Os períodos silenciosos

são importantes para os jovens, mas eles são períodos de genuína reflexão

quando são seguidos de períodos de maior ação e são usados para organizar o

que foi ganho em períodos de atividade. A liberdade de movimento é importante,

como ficaria evidenciado pelo uso das mãos. Os gregos já haviam postulado a

relação entre um corpo saudável e uma mente saudável. A liberdade de que

tratamos é a liberdade de executar ações exteriores como meio para a liberdade

de juízo e o poder de levar à execução fins deliberadamente escolhidos. Para

Dewey não há atividade inteligente que não se conforme à relação entre intera-

ção e continuidade, e ela é inteligente na medida em que o indivíduo possui es-

ses princípios conscientemente em mente.

A quantidade de liberdade externa necessária varia de indivíduo para

indivíduo, tende a decrescer com a maturidade. Neste contexto, o educador pre-

cisa estar atento para a quantidade de liberdade individual como meio de cres-

cimento necessário em cada fase.

Segundo John Dewey o caráter social da educação se dá na medida

em que se dá pela interação. Essa qualidade é realizada no grau em que os

indivíduos formam um grupo comunitário. O professor não pode ser excluído

desse processo e como a pessoa mais madura ele possui uma responsabilidade

peculiar a de conduzir as interações e as comunicações que são a própria vida

do grupo como comunidade.

O papel do professor é ver as ocasiões que podem ser proveitosas do

ponto de vista da experiência e aproveitá-las. Na medida em que a liberdade

reside na operação da observação inteligente e juízo pela qual um propósito é

desenvolvido, o guiar do professor de exercitar a inteligência dos pupilos é uma

ajuda para a liberdade. O professor, assim, pode dar continuidade às experiên-

cias que os alunos vivenciam. O conceito de liberdade aqui possui uma imensa

relação com fazer os seus desejos e impulsos, só há a resguarda de que não os

43

imediatos, mas os mais profundos e planejados. Há um certo utilitarismo por trás

desta noção de propósitos.

O adulto pode exercitar sua sabedoria sem uma imposição externa

por sua maturidade. De um lado ele deve julgar quais tendências habituais são

criadas e quais tendem para o crescimento contínuo e quais o prejudicam. Ex-

periência não ocorre simplesmente dentro de uma pessoa. Ela certamente

ocorre neste âmbito por influenciar o desejo e o propósito. Para Dewey toda ex-

periência genuína possui um lado ativo que determina em certa medida as con-

dições nas quais o objeto é obtido. Na visão do pensador americano, a diferença

entre civilização e barbárie é, em certa medida, uma diferença das condições

objetivas deixadas para que as experiências subsequentes aconteçam. O autor

utiliza o exemplo das estradas, ferramentas e da tecnologia em geral.

Os planos e projetos educacionais deveriam estar comprometidos a

formar e adotar uma filosofia da experiência. A importância dessa teoria se mos-

traria pelos dois princípios, o da interação e o da continuidade. Dewey diz que a

necessidade dessa teoria abstrata se justifica porque tentativas práticas em de-

senvolver escolas e projetos educacionais estão fadadas a desenvolver incon-

sistências e confusões, a menos que sejam guiadas por uma concepção de ex-

periência. Diz Dewey em Experience and Education:

The principle of continuity in its educational applica-tion means, nevertheless, that the future has to be taken into account at every stage of the educational process. This idea is easily misunderstood and is badly distorted in traditional education. Its assumption is, that by acquiring certain skills and by learning cer-tain subjects which would be needed later (perhaps in college or perhaps in adult life) pupils are as a matter of course made ready for the needs and circum-stances of the future. Now "preparation" is a treacher-ous idea. In a certain sense every experience should do something to prepare a person for later experi-ences of a deeper and more expansive quality. That is the very meaning of growth, continuity, reconstruc-tion of experience. But it is a mistake to suppose that the mere acquisition of a certain amount of arithmetic, geography, history, etc., which is taught and studied because it may be useful at some time in the future, has this effect, and it is a mistake to suppose that acquisition of skills in reading and figuring will

44

automatically constitute preparation for their right and effective use under conditions very unlike those in which they were acquired27.

Para Dewey ninguém negaria que o bom e ordinário cidadão é sujeito

a uma grande quantidade de controle social e que grande parte desse controle

não é sentido como envolvendo restrição de liberdade pessoal. Até o anarquista

teórico, cuja teoria o compromete à ideia de que o controle do estado e do go-

verno são mais, acredita que mesmo com a abolição do estado outras formas de

controle social continuariam. Sua crença no anarquismo possui implícita a

crença de que com a abolição do estado formais mais naturais de controle social

permaneceriam.

Sem tomar essa crença extrema, Dewey nota alguns exemplos de

controle social que ocorrem na vida do dia a dia, e depois olhar para seus prin-

cípios subjacentes. Crianças no intervalo jogam jogos, esses jogos envolvem

regras que ordenam sua conduta. Sem regras não há jogo. Se uma disputa ocor-

rer, há uma forma de lidar com isso via regras, se não o jogo acaba.

Existem certas características de controle óbvias para as quais julga

que o autor julga que mereçam atenção. A primeira é que as regras são parte do

jogo, a pessoa pode não perceber pela sutileza, mas está submetida as imposi-

ções externas. Em segundo lugar uma pessoa pode ficar nervosa com o rompi-

mento das regras, mas ela está assim tacitamente aceitando as regras. Em ter-

ceiro lugar, a condução do jogo é razoavelmente definida. As regras possuem a

sansão da tradição e do precedente, um elemento de convenção é forte. Há o

desejo de imitar os mais velhos. Os mais jovens só mudam as regras quando os

mais velhos as mudaram eles mesmos. Explica o autor:

The point of this distinction between play and work may be cleared up by comparing it with a more usual way of stating the difference. In play activity, it is said, the interest is in the activity for its own sake ; in work, it is in the product or result in which the activity termi-nates. Hence the former is purely free, while the latter is tied down by the end to be achieved. When the dif-ference is stated in this sharp fashion, there is almost

27 Ibidem. P. 20

45

always introduced a false, unnatural separation be-tween process and product, between activity and its achieved outcome. The true distinction is not between an interest in activity for its own sake and interest in the external result of that activity, but between an in-terest in an activity just as it flows on from moment to moment, and an interest in an activity as tending to a culmination, to an outcome, and therefore possessing a thread of continuity binding together its successive stages28.

Os jogos podem, portanto, exercer para o autor a função de elo entre

as experiências. Ao falar de jogos, falamos da presença de fator de convenção.

A contraparte disto na escola é a questão das maneiras, especialmente a edu-

cação e a cortesia. Os modos variam de acordo com as épocas e os lugares.

Isso provaria que há um grande fator de convenção. Não há grupo que não pos-

sua um código de maneiras, por exemplo sobre a forma de cumprimentar as

pessoas.

A conclusão geral a que Dewey chega é a de que o controle das ações

individuais é afetado pelo todo da situação na qual os indivíduos estão envolvi-

dos, da qual eles participam. Mesmo em um jogo competitivo há uma participa-

ção no dividir da experiência comum. Aqueles que participam não sentem que

são parte de um controle, ou sujeitos à vontade de uma pessoa externa superior.

Os jogos ilustram o controle social de indivíduos sem violação da liberdade.

Em uma família ordenada, o ponto é mais claro ainda. O espírito de

grupo que estabeleceria a ordem, não haveria imposição de um indivíduo. A fa-

mília possui um papel de assegurar a continuidade das experiências e os princí-

pios da educação apresentados se aplicam aos pais. O controle é social, mas os

indivíduos são parte da comunidade, não estão fora dela. Sobre a dinâmica so-

cial também se aplica a questão da continuidade, na medida em que ela é con-

tinuidade de interação estendida e em sequência de experiências. Quanto me-

lhor a interação social, maior sua extensão e continuidade.

28 DEWEY, John. How we Think. Sunnyvale: Loki's Publishing, 2017. Pg. 164.

46

Dewey não diz que a autoridade, digamos dos pais por exemplo, não

pode intervir e exercer controle direto em certas ocasiões. Mas o número de in-

tervenções de controle neste contexto é pequeno em comparação às situações

em que todos participam. O mais importante é que a autoridade em questão,

quando exercida em uma casa bem regulada ou outro grupo comunitário, não se

manifesta como mera vontade pessoal. A boa autoridade do professor ou pai é

ordenada para o bem comum. Podemos questionar o que Dewey entende por

bem comum, na medida em que ele nega um bem transcendente. Não obstante,

a observação nos parece bem válida.

Na visão de Dewey em uma escola bem ordenada o principal fator

para controle dos indivíduos são as atividades trabalhadas e as situações nas

quais essas atividades são mantidas. O professor reduz ao mínimo as situações

em que o professor precisa exercer sua autoridade em um nível pessoal. Quando

necessário, falar e agir firmemente é feito em interesse do grupo, não como exi-

bição de poder pessoal. Isso é o que diferencia entre a ação arbitrária e a que é

justa. Não é necessário que a diferença seja formulada em palavras, tanto os

jovens quanto os professores sentem a diferença. O número de crianças que

não sentem a diferença (mesmo que não possam articular e reduzir a um princí-

pio intelectual) entre ações que são motivadas por poder pessoal e desejo de

ditar uma ação pelo interesse de todos é pequeno. Dewey diria até que os jovens

são mais sensíveis que os adultos a esses sintomas em alguns casos. Eles de-

sejam muito deixar que alguém seja um líder se sua conduta adicionar experiên-

cias de valor ao que estão fazendo, enquanto ressentem tentativas de ter suas

condutas diretamente ditadas.

Quando a escola não é um grupo de comunidade unido por uma par-

ticipação em atividades comuns, o professor se veria forçado a um controle direto

sobre os alunos. Consequentemente, as condições normais de controle estão

ausentes. O professor tenta manter a ordem, ele o faz porque a ordem é dever

do professor, ao invés de residir no trabalho dividido por todos.

Dewey faz uma análise à luz da experiência do ofício do professor. O

princípio de que o desenvolvimento de experiências advém por meio de

47

interação quer dizer que a educação é essencialmente um processo social. A

qualidade se dá no grau em que indivíduos formam grupos de comunidade, é

absurdo excluir o professor destes grupos. Como o membro mais maduro, o pro-

fessor possui a responsabilidade pela condução das intercomunicações que são

a própria vida do grupo.

Para Dewey, o educador deve criar planejamentos mais inteligentes

com espaço para a liberdade individual. Ele deve investigar as capacidades e

necessidades de um grupo particular de indivíduos e criar situações nas quais

eles possam ter experiências que lhes proporcionem conhecimentos que satis-

façam suas necessidades. Elas devem ser flexíveis o suficiente para permitir o

desenvolvimento da individualidade da experiência e firmes o bastante para o

contínuo desenvolvimento do poder. Explica Richard Rorty:

Dewey put a new twist on the idea that if you take care of freedom, truth will take care of itself. For both the original Platonism of the right and the inverted Plato-nism of the left, that claim means that if you free the true self from various constraints it will automatically see truth. Dewey showed us how to drop the notion of ‘the true self’ and how to drop the distinction be-tween nature and convention. He taught us to call ‘true’ whatever belief results from a free and open en-counter of opinions, without asking whether this result agrees with something beyond that encounter. For Dewey, the sort of freedom that guarantees truth is not freedom from the passions or sin. Nor is it freedom from tradition or from what Foucault called ‘power’. It is simply sociopolitical freedom, the sort of freedom found in bourgeois democracies. Instead of justifying democratic freedoms by reference to an account of human nature and the nature of reason, Dewey takes the desire to preserve and expand such freedoms as a starting point — something we need not look be-hind29.

A concepção de liberdade em Dewey, vista pela lente de Rorty, é a

liberdade da democracia liberal. A liberdade sociopolítica. Essa parece ser um

ponto de partida para o desenvolvimento destas teorias. Por um lado, pareceria

ser a liberdade de ter experiências, por outro a de realizar propósitos. No primeiro

29 RORTY, Richard. Something to Steer by. London Review of Books, v. 18, v. 12, 1996. P. 3

48

caso essa liberdade nos parece sem fim e no segundo uma forma nova de utili-

tarismo.

Segundo o filósofo americano é possível ter um planejamento prepa-

ratório feito de forma tão rígida e inflexível intelectualmente que resulte em uma

imposição adulta, que não é menos externa por parecer respeitar a liberdade

individual. Mas isso não decorre do princípio envolvido. A utilidade do conheci-

mento maior do professor é justamente para organizar atividades que conduzam

à atividade comunitária e ao controle dos impulsos individuais pelo mero fato de

estarem engajados em projetos comunais. As atividades comunitárias e o con-

trole dos impulsos devem permitir que as experiências subsequentes sejam va-

liosas educacionalmente por favorecerem o continuum experimental na medida

em que melhoram a interação.

Para Dewey a humanidade possui a tendência de pensar por opostos

extremos. Uns consideram que a educação é desenvolvimento de dotes natu-

rais, outros que é um processo de superação da natureza por meio de hábitos

adquiridos por pressão externa. Um exagero interno, outro externo. Dewey con-

sidera os princípios gerais como sendo fundamentais, e alerta que tudo acaba

dependendo da aplicação que será dada a esses princípios. Há uma crítica bem

pertinente ao pensamento extremista, uma simplificação grosseira que não re-

solve os problemas educacionais, mas que cria a ilusão de que porque determi-

nado educador aderiu a uma das pontas do espectro os problemas estão resol-

vidos. Este educador pode, no entanto, estar fazendo o contrário do que pensa

estar fazendo.

Por isso Dewey diz que uma filosofia da educação baseada na ideia

de liberdade pode se tornar mais dogmática do que a educação tradicional com

a qual se revoltou. Mesmo que esteja correta a filosofia educacional, no âmbito

prático há o imenso risco de uma pessoa aderir a determinadas condutas não

por uma construção positiva da filosofia, mas por pura reação. Dewey inclusive

atribui ao simplismo de pensamento que muitas das novas escolas não valori-

zem em nada o direcionamento dos adultos e que tomem o passado como sendo

irrelevante no processo de aprendizagem. Isso ocorre para o autor por racioci-

narem negativamente e não positivamente, desenvolvendo propósitos, métodos

e um teoria da experiência e suas potencialidades educacionais. Esta crítica nos

49

parece extremamente pertinente. Para Dewey, no entanto, as imposições das

escolas tradicionais limitavam ao invés de desenvolver moral e intelectualmente

os estudantes. Ele diz que os princípios não resolvem nada por si mesmos.

Experience and Education dirá que o problema da escola tradicional

não é e a falta de experiências, mas a forma de conexão das experiências. O

livro diz que não seria suficiente insistir na necessidade de experiência ou em

atividades que incentivem a experiência. Tudo depende da qualidade da experi-

ência.

O autor dirá que um fator fundamental para criar uma experiência é o

poder e os propósitos dos que são ensinados. Na educação antiga se agia como

se os propósitos fossem desejados por si mesmos, independentemente de des-

pertarem uma resposta de qualidade nos indivíduos. A noção de liberdade em

Dewey cai em um paradoxo. De um lado ela pode ser desejada por si mesma, o

que seria afirmar o valor de um conteúdo em si. De outro, ela é meramente con-

veniente, o que torna o projeto da democracia liberal e social instável e as bases

para preferi-la limitadas.

Um propósito genuíno começaria com um impulso. Já a obstrução da

execução imediata de um impulso se converte em um desejo. Nem o impulso

nem o desejo constituem por si mesmos um propósito. O propósito seria uma

visão do fim. Ele envolve previsão das consequências que resultarão de agir

sobre um impulso. Previsão das consequências envolve a operação da inteligên-

cia. Ele demanda, em primeiro lugar, observação das condições objetivas e cir-

cunstanciais, pois os impulsos e desejos produzem consequências não por si

mesmos, mas por sua interação ou cooperação com as condições à sua volta.

Por exemplo, o impulso de andar se dá em conjunção com o chão.

Para Dewey, neste caso, mera previsão, ainda que precisa, não seria

o suficiente. A antecipação intelectual, a ideia de consequências, deve se mistu-

rar com impulsos para adquirir força de agir. Uma ideia assim se torna plano para

que uma atividade seja executada. A ideia de continuidade experimental, para o

filósofo americano, ganharia assim uma relação com a liberdade e com a capa-

cidade de ação.

50

A formação de propósitos seria uma operação intelectual complexa.

Ela envolve a observação das condições do entorno; conhecimento do que acon-

teceu em outras situações no passado sejam nossas ou de outros; juízos que

compõem o que foi observado e traz um significado. Um propósito difere de seu

impulso original por um plano e método no qual se age tendo em vista um futuro

previsto. O desejo intenso que atrapalha os planos não seria de valor educacio-

nal. No entanto, não há nada que diferencie o propósito do desejo ontologica-

mente. São a mesma coisa em graus diferentes.

Dewey dirá que a observação do impulso por si mesma não é sufici-

ente, é necessário entendermos o que ele representa. Temos de inteligir o signi-

ficado do que sentimos. O significado consiste nas consequências que resultarão

quando houver uma ação sob o que foi sentido. A significância do fogo não seria

seu brilho, mas seu poder de queimar quando se toca nele.

Dewey diz que o sistema educacional não pode voltar para trás para

os padrões de uma era pré-científica, deve ir para frente para um maior uso do

método científico no desenvolvimento de possibilidade de crescer, de expandir

experiência. Os limites do método científico, já muito trabalhados por Karl Pop-

per, não são nosso objeto de estudo, mas nos parece que Peirce estava correto

(tendo visto isso em laboratório) em ser cético com relação ao determinismo ci-

entífico. A ênfase do prático não parece suprimir os problemas já apresentados.

Se a intelecção é só a antecipação de efeitos práticos, nos parece que falar em

uma visão de fim não resolve o problema da causa final.

Para Aristóteles toda passagem da potência ao ato (o movimento, no

sentido aristotélico) possui uma causa final. Se tomarmos o ato de aprendizado

como um movimento, na medida em que o aluno possui a potência de aprender

e passa a ter o conhecimento em ato, esse processo possui uma finalidade. Es-

tamos falando de agentes racionais (homens) e de ações conscientes. No âmbito

do intelecto prático, portanto, há uma relação grande entre consciência da finali-

dade e aperfeiçoamento das ações. O bom professor, neste sentido, precisa en-

tender bem os princípios gerais e as finalidades do ensino. Portanto, a busca

pelo sentido do ensino é de suma importância. Em Dewey a impressão geral é

de que não possuímos esse sentido, que o sentido seria a experiência e o

51

conteúdo, a experiência, de forma que não há sentido externo. O fim da educa-

ção seria ela própria, o que indicaria que ela carece de um sentido teleológico.

Conclusão

Para Dewey a experiência não é separada dos objetos naturais, o que ele

rejeitaria como dualismo. Há uma continuidade entre mente e mundo e nossas

experiências estão no âmbito da própria natureza. A experiência é a natureza

interagindo com si própria. A natureza está em constante evolução, tal como ele

julga que Darwin havia percebido. O homem segue essa dinâmica da própria

natureza na qual está inserido. O que justificaria essa unidade tão simplória é o

pressuposto de que não há nada além do material.

Uma experiência conduz a outra, assim como uma ação na natureza pro-

duz uma reação. No âmbito humano uma experiência forma reações, disposi-

ções e situações que gerarão outras. Nossas experiências futuras seriam deter-

minadas por nossas experiências atuais.

As matérias próprias das experiências são processos de adaptação, há-

bitos (biologicamente entendidos), sequencias de ação e reação e assim por di-

ante. Esses conteúdos são essencialmente práticos e parte da natureza. Por isso

em Dewey a filosofia da experiência é eminentemente naturalista. O naturalismo

materialista é quase como um dogma inicial, o qual deve ser aceito para enten-

dermos as conclusões da filosofia da experiência de Dewey.

Toda a investigação humana (human inquiry) parte da experiência. A teo-

ria da investigação de Dewey parte de um fundamentado naturalista e empírico

relativo a ação (que se relaciona ao esforço de adaptação e evolução). A ação

não está separada da experiência na medida em que a experiência é parte da

própria natureza.

Essa experiência para Dewey não é algo absolutamente determinado com

começo e fim bem definidos, mas parte de um todo interno à natureza, um fluxo

de continuidade com o qual interagimos e participamos através dos nossos sen-

tidos. Um conceito que se distancia muito do continuum de Peirce, que por sua

52

vez foi inspirado em Aristóteles e aprofundado com a contribuição original de

Peirce, especialmente em sua fenomenologia.

Em Dewey não há sólida metafísica, nem uma sólida fenomenologia (no

sentido de Peirce). Até porque o sistema de Dewey se fecha de certo modo a

esses dois âmbitos de investigação, reduzindo tudo à experiência e a ação. É

um circuito fechado de experiencialismo.

Para Dewey nossa cognição e nossas ações são nosso caminho de ex-

tensão para adentrar a profundidade da natureza. A experiência é uma extensão

de nós mesmos na natureza com limite indefinido. De modo que para o filósofo

instrumentalista, nós não somos distintos da natureza, o que não resolve e não

explica o problema do uno e do múltiplo, na medida em que não há subsídios

para a multiplicidade face à unidade substancial do mundo.

A experiência começa sempre pelos cinco sentidos, sendo este o nosso

caminho de interação. A interação, que em certo sentido é a relação do homem

com a natureza, vai criando os hábitos biologicamente entendidos. Esses hábitos

(talvez por uma influência do behaviorismo) fazem com que as experiências re-

verberem nas ações dos sujeitos. Em uma relação bem mecânica vão se criando

experiências continuas e, portanto, educativas para Dewey.

A passagem do inteligível para o sensível, a mediação e a lei, quase de-

saparecem (quase, pois, se desaparecem por inteiro o pensador sequer conse-

guiria fazer esta construção) acusadas de dualismo mente e mundo. Não há,

com clareza, uma explicação razoável para a rejeição deste dualismo, exceto o

fato de tomar o materialismo como pressuposto. Não há nada na teoria darwi-

nista que nos garanta o materialismo, mas há uma escolha de Dewey interpretar

ela materialisticamente.

Não há como em Peirce uma refinada relação entre lei e cristalização de

hábitos, nem como em Aristóteles uma refinada relação entre forma e matéria,

entre alma e corpo. Há a matéria e dogmaticamente (somos obrigados a empre-

gar este termo, considerando a ausência de questionamentos dos pressupostos)

o mundo do espírito e das essências não inquieta Dewey. Que eu reconheça

uma cadeira nunca antes vista como cadeira e formule raciocínios a partir de

percepções das essências seria por uma memória biológica e associação

53

linguística, o que não resolveria o problema, na medida em que esta explicação

não dá conta do universal, da mediação e do caráter da capacidade de repre-

sentação.

Na visão de Dewey o pensamento que nasce dessa relação de experiên-

cia permite o discernimento das experiências e previsão do futuro. Essa previsão

pode servir para direcionar as experiências de tal forma a nos dar uma maior

profundidade na sequência das experiências. O entendimento das experiências

passadas nos ajudaria na previsão do que acontecerá no futuro, o que por sua

vez, nos ajuda a formular propósitos. Esses propósitos podem ser bem formula-

dos ou mal formulados, mas no fundo nada mais são do que nossa necessidade

de autossatisfação. A noção de propósito em Dewey é especialmente utilitarista

e sua ética em última instância termina em relativismo na medida em que as

virtudes são necessárias apenas para realizar os propósitos e para dar continui-

dade à evolução social (inevitável) e natural da continuidade das experiências.

O bem não é o fundamento da ética Deweyana.

O continuum experimental é continuidade própria das experiências. Na

filosofia de Dewey ele pode ser entendido de dois modos. Por um lado, seria

como uma qualidade de todas as experiências. Todas as experiências são con-

tínuas, uma leva a outra e uma experiência atual é parte de um fluxo na qual elas

ocorrem em continuidade.

Por outro lado, podemos entender o continuum experimental como um

critério de experiência. Neste contexto o continuum experimental seria como um

critério pelo qual julgamos as experiências. Se uma experiência nos assegura

maior crescimento, essa experiência possui valor educativo. O crescimento é o

meio e o fim da educação. O crescimento associado à evolução natural opera

quase como um circuito fechado que se bastaria por si mesmo.

Se tomarmos o continuum experimental como critério de experiência, por

ele julgaremos as experiências e este juízo permite ao educador criar meios que

proporcionem determinadas experiências que assegurem uma continuidade

maior. Experiências que levem a outras experiências e, portanto, ao cresci-

mento.

54

Este crescimento, por sua vez, é baseado no hábito biológico pois toda

experiência realizada e passada modifica quem age e passa por ela, e essa mo-

dificação altera a qualidade das experiências seguintes. Há uma ênfase nas con-

sequências práticas e na ação, o que direciona o continuum experimental para

o instrumentalismo de Dewey.

Por isso julgamos a educação não pela sua veracidade ou pela sua qua-

lidade, mas por critérios de experiência. Podemos julgar as experiências que te-

nham ou não valor educativo. A experiência com valor educativo não passa de

uma experiência que gera mais experiências (somando-se a interação). Ela não

é valiosa por nos mostrar a verdade, ela é valiosa por gerar mais de si mesma.

A educação em Dewey não possui causa final determinada, essa causa seria a

extensão à natureza, mas a natureza é o objeto (só há natureza) e, portanto,

teríamos uma proposição tautológica.

Parece-nos que a noção de continuum experimental em Dewey é indis-

pensável para o entendimento de sua filosofia. Esta noção parece servir como

uma espécie de elo de ligação entre a filosofia da educação, a filosofia da natu-

reza e o instrumentalismo. Na medida em que essa noção nos parece tomar

como conclusão seus próprios pressupostos (o naturalismo, a experiência e a

evolução), nos parece que fica difícil sustentar uma boa unidade neste ponto da

filosofia de Dewey.

O continuum instrumental é substancialmente diferente do sinequismo de

Peirce. Sendo concebido de maneira inteiramente naturalista e com uma ênfase

menor na idealidade e cognoscibilidade que muito provavelmente se encaixaria

na crítica de Peirce ao nominalismo, por tender a excluir a realidade dos univer-

sais. Com uma ênfase menor na realidade da lei, da possibilidade e da existência

a filosofia de Dewey educacional tenderá a rejeitar que os conteúdos possam ter

um valor em si mesmos.

Em última instância a noção de experiência em Dewey parece repousar

em uma tendência nominalista e cientificista, expressa em seu naturalismo. Esse

materialismo é fortemente influenciado por uma noção evolucionista que parece

transportar para o âmbito do progresso histórico e da educação (crescimento) a

noção de evolução darwinista.

55

O próprio fim da aprendizagem é de algum modo vazio, pois o fim é o

crescimento e a boa educação é a que proporciona mais experiências. A expe-

riência é meio e fim da educação, mas não há uma finalidade clara para as ex-

periências exceto a de extensão na natureza. O que impediria este fim de ser

vazio aparentemente seria a noção de que a natureza evolui, no entanto, essa

evolução não parece ter um direcionamento, um propósito e nem um término. A

natureza materialisticamente concebida morre em si mesma. Nossos propósitos

são estritamente estabelecidos por nós mesmos e não resolvem o problema,

ficamos sem um fim último e o progresso social parece rumar para parte alguma.

Em Dewey a vida humana nos aparece sem uma causa final clara. Que

Dewey seja um defensor da liberdade e da democracia parece atenuar para seus

leitores uma implícita declaração de falência do aprendizado real. Os intérpretes

de Dewey parecem apreciar a democracia liberal, mas esta parece mais uma

pedra de apoio para a evolução natural do que um projeto baseado na dignidade

humana.

Que Dewey fale tanto em liberdade e pareça ecoar uma visão mecanicista

do homem, com um psicologismo de reação pode parecer estranho ao leitor. De

fato, a conciliação entre liberdade e determinação biológica não apareceu em

nossos estudos. De algum modo, somos obrigados a concluir que sem uma ex-

plicação plausível simplesmente estaríamos diante de uma contradição.

Parece bastante sensata a noção de aprendizado pela experiência, mas,

sem uma referência aos universais, ao Agathon, em última instancia a preferên-

cia de Dewey por um “learn by doing” parece indicar mais uma crença na morte

do conhecimento clássico do que um amor próprio pelo humanismo. O filósofo

americano diz em Experience and Education que a liberdade é boa por gerar

mais experiências. A experiência é o verdadeiro fim e o fim é o meio, o que no-

vamente nos remete a noção de que não há fim.

Grande parte da crítica de Dewey à metodologia antiga educacional é vá-

lida, talvez com alguns exageros, mas é justo que queiramos uma experiência

efetiva e não experiências vazias. É extremamente interessante o anseio por

metodologias ativas. Porém, no continuum experimental de Dewey o que torna

as experiências significativas é apenas o fato de que elas geram mais

56

experiências. Portanto, o sentido da coisa seria a própria coisa e retornamos à

tautologia da experiência e a ausência de sentido.

A metodologia tradicional pode ser em alguns aspectos pouco dinâmica.

No entanto, não há sentido em relacionar a crítica da educação tradicional com

noção de que os conteúdos não podem ter valor em si mesmos. Platão havia

nos estabelecido com sua reflexão dos universais uma forma de sairmos de nós

mesmos, de termos um fim objetivo para a educação e para a vida. A princípio a

mudança nominalista em Dewey poderia parecer uma revalorização do homem

como um ser sem amarras, mas na verdade tudo isso se reporta a uma visão

naturalística de experiência e evolução com certa tendência determinista. Com

a morte dos universais morre o propósito autêntico e estamos fadados a viver

sob os desígnios de uma natureza que evolui para parte alguma.

Isso cria uma série de contradições na noção de experiência, na medida

em que ora ela é descrita como um fenômeno natural, ora como o fundamento

da aprendizagem. Nos parece que no fundo a experiência é uma mistura de vá-

rios conceitos agrupados. A experiência e o continuum experimental parecem a

projeção de uma teoria cientifica na dinâmica social humana. O que parece no

fundo uma forma de acobertar o que de fato é a visão de que a educação não

leva em última instância a parte alguma. Em um mundo materialista e nominalista

o fim desaparece e se confunde com o processo. O continuum experimental cria

a ilusão de que há um fim para o processo educacional, mas em no final ele é

apenas uma qualidade do próprio processo.

Na medida em que não há em Dewey uma separação entre o real, os

entes de razão, as imagens, a mediação e etc., não há como distinguir com cla-

reza o que entendemos por real. Uma alternativa seria enxergar no autor um

realismo ingênuo, alternativa que salvaria uma certa noção de realismo, mas se-

ria facilmente questionada com a leitura da tradição filosófica. Ficamos com uma

apologia do método científico e com uma certa presunção de sua veracidade.

Essa seria a base do instrumentalismo. A experiência de laboratório de Peirce o

fez concluir pelos limites da ciência, em Dewey essa crítica não é tão presente.

Ambiguamente, o continuum experimental é uma qualidade da experiên-

cia e um critério. Isso ocorre pois no fundo, nossos pensamentos são de algum

57

modo determinados pela natureza. O bom critério educacional é o de gerar mais

de algo que não entendemos com clareza, mas que é inevitável, pois em última

instância se reporta à única coisa que existe, que é a natureza. Evidentemente,

nos parece muito difícil aceitar essas premissas sem cair em contradições. pois

o objeto e o sujeito deste conhecimento são o mesmo. Se ambos se confundem,

um não poderia ser o fundamento do outro, o que seria argumentar em círculos.

Rejeitando esta premissa, não seria possível adotar a filosofia educacional de

Dewey. Teríamos que aceita a experiência como o próprio processo educacional

e seu fundamento como este mesmo processo (o mesmo vale para a interação

natural).

A continuidade da experiência em Dewey é mais parecida com uma me-

cânica relação de ação e reação do que com um aprendizado orgânico. A ênfase

na ciência e no instrumentalismo também encobrem um certo ceticismo episte-

mológico. De algum modo, quando não estamos reagindo (behavioristicamente),

estamos procurando prever os acontecimentos futuros e os processos da natu-

reza, nunca procuramos as coisas em si ou a realidade em sentido metafísico.

O continuum em Dewey nos faz retornar aos paradoxos de Zenão. O pro-

blema de alguns eleatas era, segundo Platão no diálogo Parmênides, o de se

conceber um continuum nominalisticamente. O mundo físico é o uno, fora desse

uno não há nada e estamos nadando na mesma coisa tentando chegar nela

mesma. Essa mesma coisa é o monismo naturalista. O problema de Zenão sub-

siste: por que não supor que as transformações não seriam ilusórias? A Teoria

das Ideias platônica é aparece como resposta nos diálogos. Em Peirce isso se

resolve pela relação entre as três categorias e pela dinâmica de Ágape e Eidos.

Em Dewey não me parece haver uma solução para este problema.

Eu sou natureza e a experiência é natureza. Ambos somos o mesmo fluxo.

Como posso diferenciar a mim mesmo de minhas experiências? Não há como

fazer esta separação em sentido ontológico, portanto a separação é mais lin-

guística do que real. Sendo assim o que me garante uma objetividade das expe-

riências? Nada. Assim caímos em Dewey em uma indesejada indefinição, e De-

wey mesmo diz que a política, a arte e a educação demandam uma noção clara

de experiência.

58

O bem social é quase como um salto de fé cega (talvez alguma relação

com a Congregational Church que frequentou na juventude). Devemos lutar pela

democracia liberal social porque ela é a expressão do progresso histórico, mas

sequer conseguimos subsídios para diferenciar nós mesmos das outras pessoas

e nós mesmos de nossas experiências. A distinção entre forma e matéria aristo-

télica e as categorias de Peirce fariam essa distinção, que não ocorre em Dewey.

Em um primeiro momento a noção de evolução e progresso social podem

parecer encantadoras para o leitor de Dewey. No entanto, o leitor deve ser per-

guntar qual o fim deste processo. Em Hegel é o Espírito Absoluto, que Dewey

excluí por ser materialista. Ora, para onde ruma então este progresso? Para

onde ruma a natureza? O que nos garante que há evolução e não apenas uma

sequência sem sentido? Em Dewey não há uma resposta clara. Se nos respon-

dessem que a democracia liberal socialista ou social, caberia perguntar o que

nos garante isso ou porque isso deveria nos trazer satisfação enquanto fim. Por-

que esses sistemas nos permitem mais experiências? Mas este era o pressu-

posto, não pode ser o fim. Se respondermos que não há fim, a educação e a

filosofia se tornam vazias.

Que uma experiência leve a outra em certo sentido é uma obviedade. No

entanto, no coração da noção de continuum experimental está o fato de que uma

experiência é apenas este ato de levar a outra de si própria, não é a sinfônica

evolução do Cosmos de Peirce, mas uma sequencialidade de cadeias de ação,

reação e adaptação. O materialismo de Dewey não é um pressuposto auto-intui-

tivo e seu evolucionismo também não. Sem um télos, um fim, o evolucionismo

mesmo parece também tautológico, os sobreviventes são os mais adaptados e

eles são os mais adaptados por serem os sobreviventes (ecoando uma crítica

de Karl Popper).

Acreditamos assim que a noção de continuum experimental em Dewey

contém uma série de ambiguidades e que não parece nos levar a um fundamento

sólido para a educação, para o conhecimento, ou para a filosofia política. Consi-

derando a educação, a noção de aprendizado pela experiência melhor funda-

mentada em Edith Stein ou na Ética de Aristóteles. Estes autores parecem ter

considerado os universais no processo educacional, evitando uma descrição

sem sentido externo da educação. Considerando a tradição pragmatista, as

59

noções de evolução e de Continuidade, a filosofia de Charles Peirce apresenta

uma alternativa bem mais sólida e metafisicamente fundamentada.

60

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