o conceito de campo e o problema do vazio

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115 Cultura Visual: Salvador, N 0 12, Outubro/2009 Para citar este artigo (ABNT): HERNÁNDEZ, M. O Conceito de campo e o problema do vazio na obra cinética de Jesús Rafael Soto. In: Cultura Visual, n. 12, outubro/2009, Salvador: EDUFBA, p. 115-124. O conceito de campo e o problema do vazio na obra cinética de Jesús Rafael Soto The concept of Field and the problem of Emptiness in the kinetic work of Jesus Rafael Soto Mariela Brazón Hernández Resumo A Arte Cinética não acredita na possibilidade de um espaço vazio, neutro ou passivo. A conceituação do contínuo espaço-temporal adotada por esta tendência é a de um ente pleno de energia, dinâmico, percorrido por campos de forças que se expandem e se comunicam entre si. Em particular, um dos seus pioneiros, o venezuelano Jesús Soto, trata o homem como mais um elemento da Natureza, capaz de afetá-la e de ser afetado por suas forças, colocando-o nas suas obras como parte ativa e inseparável dessa entidade, isto é, como um compêndio de matéria e energia que não escapa dos fenômenos que se manifestam no espaço-tempo. Soto insiste em não se distanciar – nem como pesquisador, nem como participante – do Universo que tanto deseja compreender e em não distanciar o fruidor, pois acredita que o ser humano, com seu corpo, seus sentidos, seus movimentos e sua energia, está coligado com o entorno e, como tal, não desfruta de uma localização privilegiada, nem é capaz de enunciar verdades absolutas ou divorciadas do seu próprio ser. Este artigo faz parte das pesquisas da autora sobre as relações entre Arte e Ciência, especificamente os vínculos da Arte Cinética com os avanços das ciências físicas acontecidos nas primeiras décadas do século XX e, em particular, com as teorias relativista e quântica sobre a composição e o comportamento do espaço. Palavras-chave Arte cinética; Arte e ciência; Jesús Soto. Abstract The Kinetic Art does not believe in the possibility of an empty space, neu- tral or passive. The concept of the continuous space-time adopted by this tendency is the one of an entity full of energy, dynamic, traversed by force fields that expand and communicate with each other. In particular, one of their pioneers, the Venezuelan Jesús Soto, treats the human being as an active and inseparable part of Nature, capable of affecting it and of being affected by it, that is, like a matter-and-energy compendium that does not escape from the phenomena manifested in the space-time. Soto insists on not moving away – neither as researcher, or as participant – from the Uni- verse that he wishes so much to comprehend, and also on not moving away the spectator, because he believes that the human being, with his body, his senses, his actions and his energy, is colligated with his surroundings and, as

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    Para citar este artigo (ABNT):HERNNDEZ, M. O Conceito de campo e o problema do vazio na obra cintica de Jess Rafael Soto. In: Cultura Visual, n. 12, outubro/2009, Salvador: EDUFBA, p. 115-124.

    O conceito de campo e o problema do vazio na obra cintica de Jess Rafael SotoThe concept of Field and the problem of Emptiness in the kinetic work of Jesus Rafael Soto

    Mariela Brazn Hernndez

    ResumoA Arte Cintica no acredita na possibilidade de um espao vazio, neutro ou passivo. A conceituao do contnuo espao-temporal adotada por esta tendncia a de um ente pleno de energia, dinmico, percorrido por campos de foras que se expandem e se comunicam entre si. Em particular, um dos seus pioneiros, o venezuelano Jess Soto, trata o homem como mais um elemento da Natureza, capaz de afet-la e de ser afetado por suas foras, colocando-o nas suas obras como parte ativa e inseparvel dessa entidade, isto , como um compndio de matria e energia que no escapa dos fenmenos que se manifestam no espao-tempo. Soto insiste em no se distanciar nem como pesquisador, nem como participante do Universo que tanto deseja compreender e em no distanciar o fruidor, pois acredita que o ser humano, com seu corpo, seus sentidos, seus movimentos e sua energia, est coligado com o entorno e, como tal, no desfruta de uma localizao privilegiada, nem capaz de enunciar verdades absolutas ou divorciadas do seu prprio ser. Este artigo faz parte das pesquisas da autora sobre as relaes entre Arte e Cincia, especificamente os vnculos da Arte Cintica com os avanos das cincias fsicas acontecidos nas primeiras dcadas do sculo XX e, em particular, com as teorias relativista e quntica sobre a composio e o comportamento do espao.

    Palavras-chaveArte cintica; Arte e cincia; Jess Soto.

    AbstractThe Kinetic Art does not believe in the possibility of an empty space, neu-tral or passive. The concept of the continuous space-time adopted by this tendency is the one of an entity full of energy, dynamic, traversed by force fields that expand and communicate with each other. In particular, one of their pioneers, the Venezuelan Jess Soto, treats the human being as an active and inseparable part of Nature, capable of affecting it and of being affected by it, that is, like a matter-and-energy compendium that does not escape from the phenomena manifested in the space-time. Soto insists on not moving away neither as researcher, or as participant from the Uni-verse that he wishes so much to comprehend, and also on not moving away the spectator, because he believes that the human being, with his body, his senses, his actions and his energy, is colligated with his surroundings and, as

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    such, does not enjoy of a privileged location, neither it is able to enunciate absolute truths or truths divorced of his own being. This article is part of the authors researches on the relations between Art and Science, specifically on the links of the Kinetic Art with the advances of the physical sciences, which took place in 20th Century first decades and, in particular, with the relative and quantum theories about the composition and the behavior of space.

    KeywordsKinetic art; Art and science; Jess Soto.

    O conceito de campo, formulado no sculo XIX pelas cincias fsicas, represen-tou um giro revolucionrio na maneira de compreender as interaes entre os corpos; produziu, conseqentemente, mudanas significativas nos princpios segundo os quais construmos uma determinada representao do Universo.

    No mundo pr-socrtico, os atomistas acreditavam em um Universo onde nfimos corpsculos de matria estariam separados por um vazio absoluto. Aristteles, entretanto, ops-se a seus predecessores, afirmando que o movi-mento era o resultado de aes diretas entre os corpos e que a velocidade dos mesmos dependia da resistncia exercida pelo meio; conseqentemente, os espaos vazios seriam impossveis, pois, caso existissem, os corpos se des-locariam no seu interior com velocidade infinita algo impensvel para os gregos. Assim, apoiada em uma lgica de causas e efeitos, a fsica aristotlica nega a existncia do vazio absoluto.1

    Durante a Idade Mdia, a viso de um mundo pleno, criado por Deus, encon-trou respaldo no pensamento aristotlico um mundo cuja matria preenche cada fenda, e o espao o conjunto de limites que separam uma coisa material de outra.2 A imagem de um Universo no qual o vazio no tem cabida (i.e. uma Natureza que sente horror vacui) difundiu-se com o apogeu da Escolstica.3 Pouco tempo depois, foi retomada a possibilidade de o vazio existir, argumen-tando-se que o vazio infinito seria o real cenrio do Universo. Contudo, a idia no prosperou;4 o modelo aristotlico continuou sendo privilegiado, inclusive depois de Galileu Galilei reforar a postura atomista e defender a existncia de corpsculos mnimos movendo-se no espao vazio. Assim, contradizendo Aristteles, o pai da astronomia moderna considerava possvel, no s a existn-cia do vazio, mas tambm o deslocamento livre de corpos em seu interior. Para Descartes que concebia o Universo como uma entidade infinita onde tudo tinha sido colocado por Deus , o movimento dos corpos podia ser transmitido pelos homens, mas nunca criado ou esgotado por completo. O espao estaria cheio de partculas materiais trocando constantemente de posio e adotando diversas configuraes.5 Cada corpsculo deslocado afetaria a localizao de outros corpsculos, gerando torvelinhos de matria.6 O mundo cartesiano seria, portanto, um mundo cheio de elementos minsculos, imperceptveis para o ser humano e que, em conjunto, pareceriam ser o vazio.7

    1 ARISTOTLE. Physics (IV, 6-9).

    2 WERTHEIM, M. Uma histria do espao de Dante Internet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 73.

    3 PADOVANI & CAS-TAGNOLA. Histria da Filosofia. So Paulo: Melhoramentos. 1993, p. 230-231.

    4 WERTHEIM, M. Op cit., p. 77.

    5 ROSSI, Paolo. O nasci-mento da cincia moderna na Europa. Bauru: EDUSC, 2001, p. 205.

    6 Ibidem, p. 206-7.

    7 WERTHEIM, M. Op cit., p. 108.

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    Meio sculo depois, Newton deu o passo fundamental para o abandono defi-nitivo do modelo aristotlico, ao afirmar que o Universo no era nada mais do que um conjunto de corpos interagindo entre si, e que essas interaes dar-se-iam no s pelo contato direto, mas tambm distncia, atravs do espao vazio. Um dos seus enunciados mais revolucionrios sustenta que at corpos que no se tocam exercem foras mtuas. Newton estabeleceu relaes entre essas foras, as massas dos corpos envolvidos e a distncia que os separa. Seu principal problema foi explicar como funcionavam essas foras de atrao, visto que seu modelo no partia de pressupostos mecanicistas como ocorria na teoria dos choques sucessivos de Descartes. De fato, o fsico ingls nunca chegou a dar tais explicaes, provocando desconfiana de pesquisadores que qualificaram seu trabalho como pouco objetivo por tratar de foras impalp-veis e invisveis a teoria newtoniana da ao distncia parecia entrar em contradio com o que mostra a experincia cotidiana: que um objeto se movimenta quando outro o empurra, o puxa ou o choca, ou quando induz de maneira direta algum cmbio no seu estado fsico. Contudo, e apesar das incgnitas, o sistema proposto por Newton resultou bastante satisfatrio para a grande maioria, sendo abraado, durante mais de duzentos anos, como o melhor modelo para explicar as leis mecnicas da Natureza, devido sua co-erncia interna e preciso.

    Michael Faraday deu, no sculo XIX, o passo decisivo na formulao do con-ceito de campo e, conseqentemente, na recolocao do problema do vazio, ao afirmar que todo ponto de um sistema fsico age sobre os pontos do seu entorno. O campo eltrico seria assim uma forma especial da matria, com raio de ao limitado. Seguidamente, James C. Maxwell compreendeu que as foras magnticas e as eltricas podiam ser vistas como manifestaes de um mesmo fenmeno: o eletromagnetismo. Ao modelar matematicamente o comportamento dos campos, Maxwell deu-lhes algo mais que uma definio, permitindo que se calculassem suas variaes no tempo em funo do deslo-camento no espao, de maneira anloga a como Newton descrevera o compor-tamento dos corpos materiais quase dois sculos antes.

    As definies e axiomas, que Newton construra, referiam-se a corpos e seus movimentos; mas com Maxwell, os campos de fora pareciam ter adquirido o mesmo status de realidade que os corpos na teoria newto-niana.8

    O modelo de Faraday e Maxwell se imps, no sem dificuldades. Prevalecia naquele tempo a idia de que a luz possua natureza ondulatria e, como qualquer onda, deveria propagar-se atravs de algum meio material. Partia-se de uma analogia que logo se revelaria equivocada entre ondas eletromag-nticas e ondas sonoras; analogia que se estendia tambm ao conceito de campo, equiparando a natureza do campo eletromagntico dos campos de fora transmitidos em corpos deformados elasticamente. O meio que suposta-mente seria o condutor da luz e demais ondas eletromagnticas, tratado desde

    8 HEISENBERG, W. Fsica e filosofia. Braslia: UnB, 1999. p. 136.

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    o sculo XVII 9 nos crculos cientficos pelo nome de ter, era, na verdade, um ilustre desconhecido, pois ainda no incio do sculo XX quase nada se sabia de sua constituio interna. Como explica Lvy-Leblond, o enigmtico ter apre-sentava caractersticas estranhas, visto que, por um lado, deveria ser rgido, para que seus corpsculos pudessem reagir com extrema rapidez e transmitir a luz, e ao mesmo tempo deveria ser leve e fluido, para poder penetrar em todo tipo de matria e estar em toda parte sem ser percebido.10 Apesar das tenta-tivas, os experimentos para detectar sua presena sempre falhavam, e ainda tiveram que transcorrer alguns anos para que a situao fosse explicada.

    Em 1905, Albert Einstein deixou claro que a existncia do ter era uma su-posio desnecessria, e que acreditar nele no afetava os resultados das equaes que descrevem os processos eletromagnticos. Conseqentemente, o ter passou a ser ignorado e, desde ento, a explicao para os fenme-nos eletromagnticos mudou radicalmente, fortalecendo-se a idia de que os campos se propagam no vazio. Nessa propagao, eles no empurram nem chocam com nenhum meio subjacente, mas se dispersam. A ao dis-tncia, que Newton no soubera justificar, passou a ser explicada como uma cadeia de expanses: um corpsculo gera um campo (contnuo e com certa extenso) e este, por sua vez, se propaga, afetando outras partculas que ge-ram campos sucessivamente.

    [...] um campo um objeto contnuo e extenso, definido em todos os

    pontos do espao, e que a se propaga globalmente. Ele no tem nem

    forma nem feio prprias, e sua configurao dada por suas condies

    nos limites. [...] um campo (fundamental) no tem apoio, nem meio de

    propagao, existe por si mesmo, no vazio espacial.11

    Mas os avanos na teoria de campos no se detiveram por ali. Abordada da nova perspectiva quntica, a matria, outrora rgida e densa, passou a ser vista como uma estrutura penetrvel e divisvel. Descobriu-se que o espao interat-mico est pouco povoado e que o mais tangvel dos corpos fsicos no sua matria, mas sim suas manifestaes energticas. Segundo a Teoria Quntica, foco de interesse e referncia constante de Jess Soto , a dualidade partcu-la-campo seria insustentvel. Em seu lugar, ganhou fora o modelo segundo o qual as partculas no so nada mais do que excitaes dos campos, ou, com outras palavras, pacotes de energia que aparecem e desaparecem a veloci-dades extremamente altas. No pequenssimo mundo quntico, no tem senti-do a idia de campos propagando-se de maneira contnua em um vazio inerte, mas sim a de um espao interatmico que, embora sendo predominantemente vazio, est em contnua atividade. Falamos ento de um vazio dinmico, no qual acontecem constantes intercmbios energticos.12

    Jess Soto, como a maioria dos artistas cinticos, foi um defensor entusiasta da imagem sustentada pela cincia contempornea de um espao pleno; uma entidade que no pode ser tratada como um palco vazio e inerte.

    9 HUYGENS, C. Treatise on Light. Chicago: Universi-ty of Chicago Press, 1912 (1690). (Disponvel em: http://www.gutenberg.org).

    10 LVY-LEBLOND, Jean-Marc. O pensar e a prtica da cincia. Bauru: EDUSC, 2004, p.108.

    11 Ibidem, p.110.

    12 MENEZES, L. C. A matria, uma aventura do esprito. So Paulo: Livraria da Fsica, 2005, p. 91.

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    Lo ms importante es demostrar que el espacio es fluido y pleno, por-

    que siempre se le ha considerado, como en el Renacimiento, como un

    sitio donde pueden ponerse cosas, ms que como un valor primigenio y

    universal.13

    Para este artista, uma das finalidades da obra de arte seria revelar os fen-menos que acontecem nesse espao, sem cindi-los do espao mesmo; mais ainda, revelando o espao mediante as energias que o ativam, inundam e percorrem. Da sua insistncia em afirmar que no existe o vazio absoluto, aquele Nada do qual tambm duvidavam Aristteles e Descartes. Nesse sentido Soto aponta: A realidade existe por todo o lado e enche o universo. No existe vazio. Em lado nenhum.14

    Entretanto, apesar da negativa em comum, as divergncias entre o ponto de vista de Soto e as posturas aristotlica e cartesiana so considerveis, visto que o artista fala de um mundo cheio, mas no de matria, e sim, predomi-nantemente, de vibraes, energia e movimento. O halo de imaterialidade presente nas explicaes dadas pela cincia quntica sobre o comportamento da Natureza, incentivou o artista a valorizar os espaos vazios nos quais, at pouco tempo atrs, parecia no acontecer nada. Tanto para os cientistas do sculo XX quanto para Soto, cada ponto de um sistema fsico est povoado de aes em potncia. Assim, a idia do vazio ausente e inativo, que se interpe silenciosamente entre os fenmenos, passa a ser substituda por uma idia de campo dinmico de aes. O vnculo entre matria e energia mais forte do que supunham os fsicos clssicos. Como demonstrado pela cincia atmica, entre os modelos de um Universo ocupado plenamente por matria ou por energia no h tantas contradies como poderamos supor.

    Interessa-nos aqui sublinhar uma das afinidades mais relevantes entre o espao tal como concebido por Soto, e o espao ativo e mutvel descrito pela Fsica Quntica: em ambas as abordagens cita-se a instabilidade como caracterstica essencial do espao. Bohr e seus seguidores construram o edifcio terico que permitiu descobrir e manipular em laboratrio partculas subatmicas at en-to impossveis de imaginar; muitas delas com uma vida extremamente breve, ao fim da qual retornam a um estado puramente energtico. Este ir-e-vir entre uma existncia material e um fluir imaterial passou a ser visto desde ento, tanto na arte quanto na cincia, como uma qualidade intrnseca da Natureza. Vale lembrar, nesse sentido, as palavras de Soto: A concepo plena e els-tica do espao, o seu estado modulvel em perptua transformao, torna-o inatingvel. O espao est numa relao de interdependncia com a energia que o modula.15

    muito provvel que as leituras das teorias de Heisenberg, efetuadas por Soto, tenham lhe permitido estabelecer, ou quando menos fortalecer, sua postura sobre este assunto. De igual maneira, o fato de se encontrar em um ambien-te frtil para o intercmbio de idias e experincias, foi certamente um fator

    13 Soto apud JIMNEZ, A. Conversaciones con Jess Soto. Caracas: Fundacin Cisneros, 2001. p. 70.

    14 SOTO et alii. Soto: Retrospectiva. Porto: Fun-dao de Serralves, 1993, p. 145.

    15 Ibidem, p.156.

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    decisivo para construir sua prpria teoria. Lembremos que, na mesma poca, vrios artistas desenvolviam pesquisas sobre a constituio do espao, das quais Soto foi testemunha:

    Nos anos sessenta assiste-se a um florescer de artistas conceptuais pr-

    ximos da filosofia [...]. Estes caminhos no esto muito afastados das

    preocupaes caras cincia contempornea sobre a incerteza no conhe-

    cimento da estrutura microscpica. Sempre aproximei esta angstia essen-

    cial da concepo de vazio em Yves Klein, da de cheio em Arman, e da

    determinao de Lucio Fontana, quando este cria, com as suas laceraes,

    o espao pluri-dimensional na bidimensionalidade da tela.16

    No processo de abordagem do espao pleno e ativo, as conversaes de Soto com Yves Klein foram certamente estimulantes. Soto costumava reconhecer o posicionamento do artista francs como muito diferente do prprio, o que no impediu que destacasse a transcendncia das pesquisas do colega. Graas a fontes historiogrficas, sabemos que Soto conheceu o trabalho de Klein no Festival de Vanguarda de Marselha (1956), onde foi impressionado positiva-mente por uma das telas monocromticas:

    Fui imediatamente convencido de que aquilo era uma proposta importan-te. Posto que, desde minha chegada na Frana, havia uma espcie de cli-ma propcio para o monocromo, poderamos mesmo dizer que estvamos espera daquele que teria a coragem de faz-lo. Ningum ousava.17

    Apenas um ano depois, o artista venezuelano retirava-se do Salon des Ralits Nouvelles ao saber que o jri havia rejeitado uma monocromia de Klein por consider-la carente de composio.18

    A exposio Le Vide (1958) deu a Soto uma nova oportunidade de entrar em contato com a obra de Klein e de conferir a trajetria iniciada nas telas monocromticas. Nesse ano, Soto conheceu pessoalmente o artista francs, apresentado por um amigo comum, Jean Tinguely. a poca em que o ve-nezuelano estreita relaes com os artistas que protagonizariam o Nouveau Realisme, e durante a qual o prprio Soto comea a pesquisar com elemen-tos densamente matricos. Ele, como Klein, aproveita nessa etapa as possi-bilidades que oferecem os grandes pla-nos de cor uniforme, para criar profun-dezas insondveis, adimensionais, que no seu caso dialogam com espaos in-tensamente vibratrios (Figura 1).19

    Quase dez anos depois de entrar na cmara vazia de Klein, Soto cobre

    16 Ibidem, p.151.

    17 PIERRE, A. Cronologia, In: Soto. Paris: Jeu de Paume, 1998, s.n.p.

    18 DORGEVAL, D. Lhis-toire du Salon des ralits nouvelles de 1946 1956. (Disponvel em: http://www.realitesnouvel-les.org).

    19 As imagens citadas neste artigo so usadas com fins estritamente acadmicos.Figura 1: Vibracin Azul Cobalto (1959).

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    com pletamente o teto da Galeria Denise Ren (Paris) com incontveis varas de metal e elabora seu primeiro Penetrvel. Mesmo sendo to diferentes os cami-nhos de ambos os artistas, factvel reconhecer pontos de encontro significa-tivos na abordagem do vazio: neles claro o desejo de trabalhar com as ener-gias invisveis da Natureza, por meio de manifestaes essenciais da matria, levada por Klein a uma elementar profundidade cosmognica, e transformada

    por Soto em uma intensa atmosfera vibratria. Enquanto Soto ativa o espao, enchendo-o de vibraes, Klein o despe, esvaziando-o de todo rastro material, para que dele reste a essncia do seu poder gerador.

    Nos Volumes Virtuais integrados arquitetura (Figura 2) e nos Penetrveis aprecia-se claramente o tratamento dado por Soto ao problema da pleni-tude do espao. Neles, o artista parte da premissa de que o espao est ali, cheio e ativo, mas que sua presena passa despercebida. A obra de arte permitiria, ento, tornar visvel e at palpvel esse espao, com todas suas caractersticas essenciais: dinamismo, transparncia, leveza e fluidez. Neste sentido, Soto comenta:

    ...enchi o espao com a idia de torn-lo perceptvel, que no continue vazio, que se torne to importante como a arquitetura. [...] Sente-se que se pode solidificar o espao deixado pela arquitetura, como o resto do prdio. Ele se torna presente (sic). Para mim, que adoro o espao livre, no era necessrio, mas h pessoas que no se apercebem dele e desta forma tornamo-lo vlido...20

    Varinhas metlicas e tubos plsticos colocariam em evidncia, segundo Soto, algo que existe, mas que no chegamos a perceber com o simples olhar; e, para isso acontecer com a maior objetividade pensa o artista , importante inter-ferir o menos possvel na natureza do ente revelado, isto , do espao. No caso dos grandes Volumes Virtuais, o fato de Soto no fixar as peas rigidamente, preferindo pendur-las relativamente livres, mas conectadas entre si, contribui para que o conjunto ganhe uma mobilidade coesa e sutil ao acompanhar as correntes de ar e outras foras que circulam invisveis. Esses Volumes no so encapsuladores, e sim sensores abertos que captam e respondem s mu-danas ambientais, e, sobretudo, multiplicadores e transmissores daquilo que constitui esse espao a uma escala quase inaprecivel: a vibrao pura.

    Ao tender essas cortinas tridimensionais, que so os Volumes Virtuais e os Penetrveis, Soto repete, em essncia, o procedimento construtivo da sua obra Rotation (1952) (Figura 3), na qual pontos e pequenos segmentos de reta so organizados em rede e ressaltados, induzindo um movimento, no caso rotatrio. De maneira anloga, e em escala monumental, varas metlicas e tubos seriam as prolongaes perceptveis, no espao, de vrtices e arestas de uma retcula de base. A fluidez do espao tridimensional ocupado por tais prolongaes manifesta-se, ento, no balano e vibrao das mesmas. Soto parte de uma grade que traa mentalmente em um determinado domnio (bi ou tridimensional) aparentemente vazio, para depois, a partir desse sistema

    Figura 2: Volume Virtual Banco Real do Canad (1977).

    20 ABADIE & SOTO. Con-versa de Soto com Daniel Abadie. In: Soto: Retros-pectiva (Catlogo de ex-posio). Porto: Fundao Serralves, maio-jul. 1993 (1983). p. 144.

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    de coordenadas imaginrio, dar presena a pores desse espao. O dinamismo, que o artista supe presente de modo potencial, se manifesta nos movimentos e nas vibra-es dos elementos destacados.

    Para evitar possveis leituras subjetivas, Soto escolhe formatos que considera universais. Contudo, esses enormes paraleleppedos se estendem em dimenses to amplas que por momentos difcil reconhec-los como uni-dades formais definidas. Na escala menor dos Penetrveis (Figura 4), a transparncia e a flexibilidade dos componentes plsticos colaboram com a fluidez do conjunto, sem

    que por isso se diluam os limites da forma. Eis uma das caractersticas melhor trabalhadas nesse tipo de obra: falar do espao sem imobiliz-lo em uma forma especfica, e ao mes-mo tempo sem abandon-lo mais livre amorfia.

    Sem dvida, uma das principais con-seqncias da teoria de campo e da valorizao dos espaos vazios fei-ta pelos cientistas, foi dar um sentido imaterial s interaes fsicas entre os corpos. Do novo ponto de vista, os objetos, inclusive os mais slidos,

    exercem foras cujo alcance passou a ser explicado no mais em funo do contato direto, e sim pelo grau de sensibilidade de certas regies do espao aos fenmenos que ocorrem no entorno. Embora seja certo que, na maioria dos casos, nossos sentidos no conseguem apreciar diretamente campos eltricos, magnticos ou gravitacionais, tam-bm verdade que os campos se revelam a partir de seus efeitos lembremos, por exemplo, um punhado de limaduras de ferro se reorganizando ao longo das linhas de for-a de um campo magntico: linhas que no so o campo, mas a evidncia do mesmo.

    Com Soto, a presena do campo se mostra de maneira bastante direta. Ele abre mo

    Figura 3: Rotation (1952).

    Figura 4: Penetrable (1972).

    Figura 5: Grande Sphre de Soul (1988).

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    de agentes intermedirios, repetidores dos efeitos do campo, e atinge o fruidor com aquilo que considera mais imaterial: a vibrao e a pulsao. Em certas obras, Soto recorre intencionalmente esfera, figura geomtrica imponente, para criar sensaes expansivas de campos energticos, pelo fato de a prpria forma esfrica remeter a entidades que se dilatam e respiram no espao (Fi-gura 5). A presena das esferas de Soto to intensa, que virtualmente tudo o que est colocado na mesma sala, ou que se movimenta em seu entorno, fica sujeito sua influncia, manifestando-se no ambiente algo que bem poderamos denominar de campo cintico. Em casos como esses, o objeti-vo do artista parece ser apontar para a atividade energtica potencialmente contida na matria da obra e liberada no ato da fruio. Como explica Paulo Venancio Filho:

    Os trabalhos de Soto parecem estar ininterruptamente ligados a uma

    corrente de energia que est em tudo e em todos, plena e constante. E

    essa energia se manifesta para ns, sobretudo visualmente, mas procura

    tambm se expandir por todo o espao simultaneamente.21

    O discurso de Soto est centrado, menos na descrio ou definio do espao, e mais na sua fenomenologia, isto , na possibilidade de apresent-lo como uma experincia, alm do mais, ativa e consciente. O artista no quer que o fragmentemos ou delimitemos volumetricamente, e sim que o vivenciemos a partir da nossa imerso em uma parte desse Todo; uma parte adimensional, aberta, pulsante e at certo ponto abstrata. Da sua opinio sobre o vis con-ceitual de sua obra mais famosa: el penetrable no es ni siquiera una obra, es ms una idea del espacio, que puede materializarse en cualquier situacin y a cualquier escala... si fuera posible, podras incluso hacerlo cubrir el plane-ta entero, eso no tiene importancia.22 Essa idia de espao permitir-nos-ia, portanto, entrar em contato com uma realidade fsica de outra maneira inaces-svel aos nossos sentidos e, em boa medida, ao nosso entendimento. RefernciasARISTOTLE. Physics. Adelaide: University of Adelaide, 2004. (Disponvel na pgina web: The University of Adelaide Library Electronic Texts Collection http://etext.library.adelaide.edu.au/a/aristotle/a8ph/).

    DORGEVAL, D. Lhistoire du Salon des ralits nouvelles de 1946 1956. (Dis-ponvel na pgina web : Ralits Nouvelles http://www.realitesnouvelles.org).

    HEISENBERG, W. Fsica e filosofia. Braslia: UnB, 1999.

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    Sobre a autoraMariela Hernandez doutora em Artes Visuais (Escola de Belas Artes UFRJ). Mestre em Artes Visuais (Escola de Belas Artes UFRJ). Bacharelado em Histria da Arte (Universidad Central de Venezuela) e em Cincias da Com-putao (Universidad Central de Venezuela). Professora Adjunta da Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia. Linhas de pesquisa: arte latino-americana, arte cintica e relaes entre arte e cincia. E.mail: [email protected]