resumo · o chuço não pode cair em cima da linha, porque o jogador perde sua vez na brincadeira....
TRANSCRIPT
MULHER, CEGA E DA ROÇA
Zeneide Pereira Cordeiro1
RESUMO:
O principal o objetivo dessa comunicação é relatar a experiência da primeira estudante cega de Pós-Graduação da Universidade Federal do Maranhão, com o objetivo de proporcionar a sociedade civil, aos agentes que trabalham e estudam nessa universidade, uma reflexão sobre acessibilidade enquanto um direito humano. Mostra como uma estudante cega executou uma metodologia de pesquisa segundo a sua especificidade, ao mesmo tempo em que criou inúmeras estratégias que rompessem barreiras atitudinais e comunicacionais. Palavras-chave: mulher cega, políticas públicas, pesquisa
ABSTRACT: The main objective of this communication is to
report the experience of the first blind student of Graduate
Studies of the Federal University of Maranhão, aiming to
provide civil society, the agents that work and study in this
university, a reflection on accessibility as a human right . It
shows how a blind student performed a research methodology
according to its specificity, at the same time that it created
numerous strategies that broke attitudinal and communicational
barriers.
Keywords: blind woman, public policies, research
1 INTRODUÇÃO
Falar da minha experiência de aluna no mestrado em Políticas Públicas na UFMA, é
relatar acontecimentos que nortearam minha inserção e permanência no Programa de Pós-
Graduação em Políticas Públicas - PPGPP, relacionados a minha deficiência, minhas
relações sociais e convicções políticas e sobretudo, significa a reafirmação da das minhas
1 Arte-educadora, graduanda em Ciências Econômicas, mestra em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Maranhão. E-mail: [email protected]
lutas por garantia de direitos sociais individuais e coletivos a partir da minha identidade de
mulher cega2
Nasci com deficiência visual3, num Centro, espécie de vilarejo, localizado entre
Maranhãozinho e Maracaçumé, chamado Vinte, no estado do Maranhão - Brasil. Meus
primeiros anos de vida foram agitados e rodeados de pessoas que me encheram de
“mimos”, presentes4, remédios naturais, banhos de ervas, orações e benzimentos, pelo fato
de ter nascido com aparência “fraquinha”. Todos do Centro que eu morava acreditavam que
eu não vingaria5. Percebiam que havia algo errado em mim, porque eu não respondia os
estímulos visuais que recebia.
Minha mãe seguindo o conselho da minha parteira, me levou em um curandeiro que
logo na primeira consulta identificou que eu era cega. Desde então, comecei tratamentos
caseiros6. Em razão da minha deficiência, com poucos meses de nascida, já ia para a roça
com meus pais. Não frequentei escola na infância.
Para meus pais a escola era um lugar “perigoso”, por estar localizada numa distância
grande de onde nós morávamos e por ser constituída por crianças e jovens que estudavam
diferentes series numa única sala. Por isso, meu pai e meu avó decidiram estudar, para
poderem me alfabetizar em casa7. Foi por meio deles, dentro das roças de arroz e dentro de
um curral que fui alfabetizada pelo meu avô e meu pai. Meus lápis foram gravetos e meus
cadernos o chão.
Tomando como referência o início dessa história de vida, o que esperar de uma
menina que nasceu com deficiência visual e com uma origem tão distante do meio
acadêmico, em um dos programas de pós-graduação mais concorridos do país?
2 INÍCIO DE UMA TRAJETÓRIA
2 Compreendo minha cegueira como elemento definidor da minha identidade, enquanto ser humano. 3 Nasci cega, mas, ainda nos primeiros anos de vida, tive visão parcial, cerca de 5%, apenas no olho esquerdo. Na idade adulta perdi gradativamente o resquício visual e atualmente, sou cega. 4 Nos meus primeiros dias de vida ganhei muitos alimentos, porque não nasci na época da colheita da lavoura: farinha, arroz torrado, jerimum, macaxeira, melão, carnes e capão para que fosse feito pirão. Havia uma certa crença no Centro que nasci de que o pirão era o alimento faz saudável para uma mulher parida, era o responsável por tornar o leite materno mais forte. 5 No interior do Maranhão as pessoas mais idosas falam issso para crianças que nascem prematuras eu com aparência fraca, outra forma de dizer é que “não vai se criar” ou seja, a criança irá morrer prematura. 6 Com remédios naturais, banhos e benzimentos. No lugar que nasci não havia hospital e nem médicos. Uma ou duas vezes ao ano alguns funcionários da SUCAM apareciam para vacinar a população. 7 Aprendi a ler quase que no mesmo momento em que aprendi a falar, meu processo de alfabetização se deu como se fosse uma brincadeira de criança.
O início da minha escolarização foi em casa, de forma oral e divertida, através de
meus familiares. Após ser alfabetizada, meus pais me matricularam numa escola
multiseriada, a única escola que existia no Centro que morávamos.
Meus primeiros dias na escola não foram bons, em razão da minha baixa visão, não
identificava as imagens das cartilhas e as outras crianças sorriam e faziam piadas. Além
disso, tinha dificuldade na escrita8. Um dia meu avô teve uma ideia “genial”, que foi escrever
o ABC9 numa tábua e depois talhar o contorno, para que eu pudesse conhecer e aprender o
desenho das letras10.
Outra ideia que meu avô teve, foi de desenhar coisas que eu não conhecia e que não
fazia parte do nosso dia a dia (um cacho de uva, morango, etc.) com gravetos ou chuço11 no
chão. Com isso, aprendi a escrever, criava poemas, versus e histórias.
No final da década de 1990, a minha mãe faleceu, e a minha família passou por
diversos problemas financeiros. Meu pai decidiu me enviar para a casa de uma tia avó que
morava em São Luís – MA, que me levou ao oftalmologista12 pela primeira vez. Até aos dez
anos de idade eu nunca tinha feito uma consulta médica. No lugar que nasci não havia
hospital, nem médicos.
Em São Luís, ingressei na primeira série do ensino fundamental aos 10 anos, na
escola municipal Padre Newton Pereira, com três semanas de aula a professora chamou
minha responsável e disse que era preciso eu mudar de série, porque, eu estava
“avançada13”. Fiz uma prova com todos os conteúdos da primeira série, fui aprovada e
avancei para a segunda série. Este processo, ocorreu mais duas vezes. Assim, em um ano,
eu passei da primeira série para a quarta série14.
Nos primeiros anos que cheguei em São Luís, sofri inúmeras violências físicas e
psicológicas. Para fugir simbolicamente dessa situação, criei estratégias, uma dela, foi
imaginar que era outra pessoa, uma poetisa, uma artista, a mãe d’água, personagens que
meu avô criou para eu interpretar na infância. Depois, comecei a frequentar a biblioteca da
escola, porque, além de poder usar a lupa, podia pegar quantos livros quisesse.
8 Não sabia fazer os desenhos de cada letra, pois, as tinha aprendido de forma oral. 9 Cartilha de alfabetização 10 Anos depois, eu descobri que essa produção do meu avô, era uma técnica artística, chamada xilogravura. 11 Um objeto pontiagudo de ferro em que as crianças no interior brincam. Fazem um desenho de um peixe no chão e jogam o chuço entre as linhas. O Chuço não pode cair em cima da linha, porque o jogador perde sua vez na brincadeira. 12 Diagnosticou a causa da minha deficiência visual era glaucoma congênito. 13 Tinha conhecimento do conteúdo ensinado em sala de aula 14 Os primeiros anos da minha educação escolar em São Luís, não foram bons, primeiro porque, a escola era um elemento de segundo plano na casa que estava morando, o essencial era que eu cumprisse com as minhas tarefas domésticas que ela me impôs, segundo porque, eu perdi o contato total com meu pai e com meus irmãos em Maranhãozinho.
Concluí o ensino fundamental e o ensino médio, ao mesmo tempo em que sofria com
inúmeras situações de violência na residência que morava e trabalhava sem carga horária
definida.
Em 2008 após alguns anos sem estudar, decidi prestar vestibular para a
Universidade Federal do Maranhão. Fui aprovada no curso de Educação Artística com
habilitação em Artes Plásticas. Nesse período, eu tinha 5% de visão e para estudar eu
utilizava uma lupa de mão enorme e pesada. Tornei-me a primeira aluna com baixa visão no
departamento de artes da UFMA.
No primeiro semestre, ganhei uma bolsa permanência na universidade. Morei na
casa feminina de estudante da UFMA. Até o presente momento, sou a única aluna com
deficiência visual que morou na residência estudantil da UFMA15.
Em 2010, iniciei uma pesquisa bibliográfica sobre povos indígenas isolados no
Maranhão. Entretanto, em decorrência de inúmeros problemas que existiam na casa de
estudante, perdi toda esta pesquisa. Em decorrência do trabalho que estava desenvolvendo
no projeto de pesquisa e extensão, realizei uma pesquisa sobre cultura popular para a
conclusão do meu curso de graduação16 e deixei a ideia de fazer uma pesquisa sobre povos
indígenas para outro momento.
Em 2016, decidi, retornar meus estudos, e fazer um curso de mestrado. Interessei-
me em realizar uma pesquisa sobre os Awá.
Awá é a autodenominação do povo indígena de contato mais recente no Maranhão
que habita uma região conhecida como pré-amazônia maranhense, na fronteira entre os
estados do Pará e Maranhão, em três terras indígenas, T.I. Caru, T.I. Alto Turiaçu e T.I.
Awá. Estão organizados em quatro postos indígenas: o P.I. Guajá, P.I. Awá, P.I. Tiracambú
e P.I. Juriti. É um termo que significa homem, pessoa ou gente . Receberam a denominação
de “Guajá” ou “Awá-Guajá” dos povos não indígenas com quem tiveram os primeiros
contatos. São falantes da “língua awá, afiliada ao tronco linguístico tupi.
Iniciei a construção do objeto a partir dos relatos do meu avô sobre contatos que ele
estabeleceu com o povo Awá no Maranhão, assim, que chegou no município de Bom Jardim
– MA, vindo de jati, um município do Ceará.
Em razão da minha pouca visão, quando criança, eu sempre estava próxima de um
dos meus familiares e quase que diariamente eu os acompanhava no trabalho na roça.
15 No segundo semestre, do curso de Artes na UFMA, entrei para o Projeto de Pesquisa e Extensão PET-Conexões que me possibilitou a oportunidade de ministrar inúmeras oficinas e palestras e, mais uma vez, fui a primeira aluna com deficiência visual a ingressar nesse projeto. 16 Ver Cordeiro (2014).
Meu avô, era um contador de causos17, conhecido por todos os moradores do
povoado em que nós morávamos. Foi por meio dele, e principalmente no percurso da nossa
casa até a roça, que ouvi as primeiras histórias sobre os Awá. Seus enredos, envolviam
elementos reais, fantasias e crenças. Na sua descrição os Awá, ora, eram gente braba, sem
aldeia, sem terra, violenta, ora, eram gente inocente, mansa, coitados, etc. Eram
justamente, essas contradições na descrição dos Awá que aguçavam meu interesse em
conhecer a história desse povo e ao mesmo tempo descobrir minha relação de parentesco
com eles. Ver Cordeiro (2019).
Partindo dos relatos do meu avô, iniciei uma intensa pesquisa bibliográfica e
documental sobre os Awá, a partir da seguinte metodologia: primeiro fiz uma leitura contínua
através de um vídeo ampliador (lupa de mesa) ao mesmo tempo em que gravava. Segundo,
criei séries organizadas de mapas e árvores genealógicas mentalmente, transformei artigos,
livros e relatórios antropológicos em histórias.
Assim meu objeto de estudo foi construído a partir da compreensão de pontos de
vista diversos, incluindo, minhas experiências, vivências e compreensão empírica individual,
construídas socialmente e historicamente, a partir de um elemento central que é a minha
condição e identidade de pessoa com deficiência visual, repleta de histórias em que
realidade, fantasia, crenças e misticismo conduziu minha infância e conduz a minha vida
cotidiana nos dias de hoje. (CORDEIRO, 2019).
3 O VER CEGA! INGRESSO, PERMANÊNCIA E CONCLUSÃO NO MESTRADO EM
POLÍTICAS PÚBLICAS
Em 2017, ingressei no curso de mestrado do Programa de Pós-Graduação em
Políticas Públicas. O início das aulas provocou novas formas de reorganização, em meu
âmbito familiar.
Nesse período, eu sofria com crises constantes de inflamação nos olhos e oscilação
da visão, além disso, não conseguia controlar a pressão. Essa situação afetava diretamente
minha mobilidade. Facilmente, eu perdia a noção de localidade e atenção. Por isso, durante
dois meses meu esposo me levou para a universidade e ficava esperando até o final das
aulas. Todos os dias nós éramos os primeiros a chegar na sala de aula. Ele me levava até a
sala e descrevia onde estavam localizadas as cadeiras e como era a arquitetura do PPGPP.
17 História que narra fatos verídicos ou não, contada de forma engraçada e lúdica.
A intenção dele era que eu conseguisse me adaptar aquele espaço, para ter uma
mobilidade com autonomia e segurança. Infelizmente isso não aconteceu em todo o primeiro
semestre.
Os primeiros meses de aula no curso foram muitos difíceis, minha participação era
péssima por falta de acessibilidade atitudinal e comunicacional. Como estratégia para sair
dessa situação, busquei conversar com o corpo docente e pedir a ementa da disciplina com
antecedência. Mas, isso não foi suficiente, para que eu pudesse acompanhar as disciplinas.
Na medida em que o tempo passava, minha situação ficava ainda mais difícil. Minha
deficiência além de não ser compreendida pelo corpo docente e nem pelos discente, minha
condição passou a ser naturalizada por todos. Com isso, não havia nenhuma preocupação
das pessoas videntes, que estavam inseridas no curso, em me oferecer um mínimo de
acessibilidade.
Durante as apresentações de aulas e seminários em raros momentos houve
descrição de imagem e do conteúdo dos slides. Em nenhum vídeo que passaram em sala
de aula nunca houve a audiodescrição, principalmente, no primeiro semestre. Além disso,
era obrigada a ouvir comentários ofensivos e preconceituosos de colegas da turma, que
temiam fazer algum trabalho comigo, por terem medo de eu prejudicar o grupo, sem dúvida,
isso foi a pior das barreiras que tive que enfrentar e o fator determinante para eu pensar em
desistir do curso.
Compreendo que as barreiras atitudinais e comunicacionais intensificam o processo
de exclusão das pessoas com deficiência na universidade e na sociedade. No meu caso em
específico, essas barreiras nuca formam rompidas completamente, durante minha
permanência no curso de mestrado em políticas Públicas, mas, sempre lutei enquanto
mulher cega, para que me fosse garantido esse direito, não como um favor prestado a mim,
mas, como um direito humano inalienável, indispensável para a minha permanência e
participação na universidade e em todos os âmbitos da sociedade.
Um dia, no final de uma daquelas aulas em que eu nunca entendia nada, uma colega
da turma me falou, “não precisas ficar angustiada em ler e entender todos os textos,
ninguém aqui entende tudo”. Depois vamos tomar um café e conversar sobre isso. Na
semana seguinte, fui para a aula, já com uma motivação, nesse dia teve divisão de
seminário, então, convidei essa colega para fazer equipe comigo. Combinamos um encontro
na minha casa para estudarmos e organizamos o seminário. Quando estávamos estudando
lhe contei como estava minha situação no curso, meu grau de dificuldade e o que me
prejudicava. Com sua ajuda, comecei a falar com os colegas da turma, pedindo ajuda e
colaboração para que as aulas ficassem mais acessíveis.
Sem dúvida, pedir ajuda para a turma, foi a melhor atitude que tomei durante meu
curso de mestrado. Conquistei amizades e ganhei militantes e defensores da acessibilidade
e dos direitos da pessoa com deficiência.
No segundo semestre, perdi meu resquício visual. Após, ficar cega total, aquelas
pessoas que haviam se tornado minhas amigas no início do semestre me auxiliaram durante
meu retorno ao curso, principalmente, com as pretas18, com elas aprendi a ser uma ativista
dos direitos humanos e perdi o medo de participar de mobilizações na rua. Aprendi a me
reconhecer e me empoderar enquanto mulher cega.
Nas vésperas das eleições de 2018, carreguei a bandeira e vesti a camisa da
democracia e fui para a rua. Alguns dias depois, apareceu uma foto minha com um cartaz
pedindo respeito para mulheres com deficiência em diversas regiões do Brasil e do mundo.
Tornei-me ativista dos direitos humanos e iniciei uma campanha com o lema: Resista como
uma Mulher Cega!19 . Esta campanha foi uma forma que criei para identificar minhas
reivindicações individuais ao mesmo tempo em que participava de reivindicações coletivas.
Nesse contexto, intensifiquei minha investigação científica. Descobri que minha
pesquisa era a primeira sobre a política de contato executada com os Awá. Políticas de
contato são políticas públicas de proteção aos povos indígenas isolados, com o objetivo de
tira-los de seus territórios tradicionais e assentá-los em aldeias20, trata-se de um processo
semelhante ao que ocorreu na época da invasão do Brasil.21
4 METODOLOGIA CEGA
Percebi que pelo fato de eu estar cega, seria necessário, criar novas estratégias e
metodologias de estudo para conseguir realizar a escrita da minha dissertação. Empenhada
18 Mulheres negras feministas que se tornaram minhas amigas e companheiras. Facilitaram a acessibilidade, me apoiaram emocionalmente e psicologicamente e tornaram meus dias mais alegres no curso. 19 Essa campanha se tornou um projeto com o objetivo de defender direitos individuais e coletivos por meio de palestras, oficinas, formações e performances. É constituído pela criação de um site/ blog, elaboração de um livro, camisetas e canecas. É um projeto executado principalmente, por colaboradores e voluntários. 20 O termo aldeia decorre dos aldeamentos criados pelas missões que no período colonial realizavam os descimentos de índios das matas para aldeá-los nas missões. Oliveira (1998) analisa esse processo como territorialização, quando famílias indígenas, de diferentes línguas, foram atraídas para os aldeamentos, sendo sedentarizadas e catequizadas. 21 Ver Cordeiro (2019).
em procurar meios que resolvesse essa situação, passei um semestre sem frequentar as
aulas, me matriculei apenas, em elaboração da dissertação.
Fiz reabilitação e treinamento de mobilidade com ajuda de colegas da turma e que
são videntes. Reaprendi coisas simples do dia a dia, como: andar, comer, vestir, falar, etc.
Passava mais de doze horas diárias em frente a um computador para aprender a ler e
escrever com leitores de tela, quando não conseguia utilizar alguns recursos no computador,
utilizava o celular.
Duas semanas após ter ficado cega, eu já sabia, andar apenas, ouvindo sons do
corpo do meu guia, me adaptei rápido com a bengala e aprendi a escrever três vezes mais
rápido do que quando tinha baixa visão e além disso, bastava ouvir uma vez qualquer
mensagem que decorava. Senti-me que tinha ganhado uma espécie de superpoderes e que
a ausência de visão era um ato libertador22 . Outra convicção positiva que passei a ter
depois que fiquei cega, foi que eu não poderia escrever da mesma forma que uma pessoa
que enxerga e que por isso, precisava de métodos e técnicas que se adequem as minhas
necessidades específicas. Como até hoje nenhum teórico desenvolveu uma metodologia de
pesquisa específica para pessoas cegas. Decidi, realizar minha pesquisa a partir do
reconhecimento de que sou uma pesquisadora com condições e necessidades especiais e
diferenciadas de todos os demais e, que minhas experiências e vivências, desde a infância,
em sala de aula, de leitura e escrita, eram fundamentais, para a criação de um modo próprio
de realização de pesquisa.
O meu processo metodológico se deu a partir de uma construção e reconstrução
contínua, de técnicas, recursos e procedimentos metodológicos em decorrência da minha
condição e identidade23 de mulher cega. Tomei como referência a concepção da objetivação
participante desenvolvida por Bourdieu (1989, p. 51)24.
No início da investigação, percebi que minha aproximação com o objeto de estudo,
facilitou-me na criação contínua de novos procedimentos metodológicos. Em diversos
momentos, parecia-me que escrevia a história dos meus antepassados, e, portanto, a minha
própria história. Assim, relacionei categorias teóricas com memórias e experiências que
vivenciei na infância, sobre a história do povo Awá a partir da criação de mapas mentais.
22 Porque eu sempre sofri muito procurando recursos ópticos que facilitasse minha visão e mesmo assim, nunca consegui enxergar nada nitidamente e tinha uma série de problemas de mobilidade. Com a ausência de visão parei de fazer esforço para enxergar. 23 Utilizo essa categoria no sentido genérico, para expressar como eu me autoidentifico e ao mesmo tempo como uma outra pessoa ou um grupo de pessoas me identifica, numa condição diferente das delas. 24 no sentido de requerer uma ruptura das aderências e das adesões mais profundas e mais inconscientes, justamente aquelas que, muitas vezes, constituem o interesse do próprio objeto de estudo, para aquele que o estuda, tudo aquilo que ele menos pretende conhecer na sua relação com objeto é o que ele procura conhecer.
Elaborava frases curtas mentalmente sobre teorias e categorias, além disso, decorei
rapidamente inúmeras citações diretas.
Estudei explorando todos meus sentidos, principalmente, a audição, com base em
um processo de assimilação de informações interligadas, no qual eu relacionava objetos,
lugares e sons que, em determinados momentos da minha vida, eu havia experimentado e
que de alguma forma tinham algum tipo de relação com meu objeto de estudo. Esse é um
processo semelhante com o que Bourdieu (1989) propõe para romper com o senso comum,
isto é, com representações partilhadas por todos, quer se trate dos simples lugares comuns
da existência vulgar, quer se trate das representações oficiais, frequentemente inscritas nas
instituições, e, ao mesmo tempo na objetividade das organizações sociais e nos cérebros.
Pois, o pré-construído está em toda parte.
Em todas as fases da minha investigação, experimentei diversos recursos.
Primeiramente, na pesquisa bibliográfica e documental, utilizei como recurso, um
computador com dois leitores de tela25. Eu alternava o modo de leitura segundo o formato do
documento ou o tipo de leitura. O uso desse recurso, exige muita atenção, porque muitas
vezes o ledor não reconhece muitos tipos de palavras, como: palavras indígenas e alguns
dialetos regionais. Além disso, não lê gráficos e nem reconhece imagens. Para resolver
esse problema, utilizei um gravador de voz do celular, compatível com o word, onde eu
falava as palavras que meu ledor do computador não reconhecia. Após, a palavra ser escrita
em documento formato word no celular eu salvava no meu drive. Em seguida, apenas
copiava e colava a palavra no texto que estava escrevendo no computador26.
Utilizei também, um gravador, onde gravava citações diretas e minhas interpretações
de leituras.
A maior dificuldade durante o processo de investigação e escrita da minha pesquisa,
foi a aplicação da regra gramatical oficial da língua portuguesa e a formatação do texto
segundo as regras da ABNT. Pelo fato de eu não enxergar, a correção de uma simples
palavra, pode levar muitas horas, sem contar que, muitas vezes, o ledor trava, reinicia, o
documento fecha e no pior das situações, uma página ou o documento inteiro é deletado.
Para não correr esse risco, fiz correções no texto, somente, após salvar várias cópias. Para
isso utilizei o gravador do celular compatível com o word. Esse recurso, possibilita a escrita
de uma palavra na maneira em que é falada.
No que se refere a pesquisa empírica, utilizei redes sociais e Skype para realizar
entrevistas e conversas. O uso desses recursos ocorreram por meio de ledores de tela no
25 Utilizo o NVD para leitura e escrita em documentos no formato Word e PDF, uso também, o Dosvox para leitura em PDF e o narrador do Windows 10 para leitura e pesquisa na internet. 26 Fiz esse processo em todas as fases da elaboração da minha dissertação
computador e no celular27. Logo que comecei a realizar as entrevistas, percebi que as
pessoas contavam a mesma história em diversas formas, descobri que isto ocorria, segundo
o momento emocional em que a pessoa se encontrava. Assim, num determinado momento
uma pessoa me narrava uma história em tom de saudosismo e em outro momento em tom
de revolta, acontecia também, dessa mesma pessoa dizer que não lembrava ou não sabia
nada a respeito do que eu estava perguntando.
Para resolver tal problemática, sugeri as minhas entrevistadas28, que quando tivesse
um tempo ou quando se lembrassem de algo referente a minha pesquisa, que me
enviassem um áudio, mas, se preferissem, poderiam me enviar uma mensagem, no dia e
horário que quisessem. O resultado disso foi excelente.
Recebi muitos áudios e mensagens. Com o áudio compreendi os relatos e sobretudo
a forma de como os relatos eram feitos. Através de suas vozes, entendia em uma única
mensagem, muitos e diferentes significados. Outra vantagem, foi que eu podia ouvir,
quantas vezes quisesse, algo, que não seria possível, por meio de ligações telefônicas,
porque o teor e a “essência” da mensagem mudam de acordo com as emoções e situações
em que a pessoa se encontra no momento.
Para entrevista pessoal utilizei um gravador de voz, durante a entrevista direcionei
minha atenção para a forma em que o corpo do meu entrevistado falava, concentrei-me em
perceber seus gestos e a entonação da sua voz, com o objetivo de perceber em quais
situações ele demonstrava mais emoção, insatisfação, suas opiniões e convicções a
respeito do tema da entrevista. Assim, quando estivesse ouvindo a gravação da entrevista,
lembraria do modo em que ela foi feita, isso, facilitaria minha compreensão e escrita.
Por diversas razões (tempo escasso, limitações da deficiência visual e financeiras)
não fiz pesquisa de campo.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O reconhecimento de que a minha cegueira é um aspecto definidor da minha
identidade e condição, foi essencial para meus posicionamentos políticos, sociais e
intelectuais na universidade. Definiu e traçou o percurso da minha investigação científica e
do meu “lugar de fala” no Programa de Pós-Graduação em Políticas - PPGPP
27 Utilizo o TalkBack e o @voice. 28 Ver Cordeiro (2019). (Fontes de Pesquisa).
Minha ausência de visão me proporcionou inúmeras experiências emocionais e
sensoriais durante a realização da dissertação. Quando comecei a escrever, em várias
ocasiões, sentia-me mergulhada nas memórias da minha infância, onde ouvia a voz do meu
avô narrando sua história de como chegou ao Maranhão, dos indígenas com quem
estabeleceu contato e como encontrou minha avó.
Transportava-me ao passado, de modo que eu sentia o cheiro da terra, os
chuviscos29 no meu corpo, no caminho de volta da roça para casa na boquinha da noite30, o
cheiro das ervas usadas pela minha avó durante a preparação de banhos, sentia a energia
de muitos e muitos benzimentos31 que recebi, por ser considerada uma criança doentinha e
ao mesmo tempo “especial”. Ouvia risadas no alpendre32 de minha casa no Centro, após as
histórias contadas em que realidade, fantasia, crenças estavam presentes em todos os
acontecimentos.
Foram essas experiências vividas, ainda na infância, sobretudo, no que diz respeito
a crenças e cultura de um povo da roça, que pude desenvolver estratégias que
possibilitaram eu concluir o curso de mestrado em políticas públicas. Muitas dessas
estratégias, foram postas em prática desde minha infância, quando fui inserida na educação
escolar.
No início de 2019, concluí meu mestrado em políticas públicas, antes do prazo final.
Essa conquista se deu, tal como, eu vivo desde o dia em que nasci, com o auxílio e rodeada
de pessoas...
29 Chuva fraca é também chamado de sereno no interior do Maranhão 30 Como é chamado o início da noite no interior do Maranhão. É também, o momento que trabalhadores rurais voltam da roça para suas casas. 31 No sentido genérico significa o ato de rezar sobre uma pessoa, pedindo o afastamento de todos os males ou uma cura específica. 32 Um tipo de varanda.
REFERÊNCIAS
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Lisboa: Difel, 1989. CORDEIRO, Zeneide Pereira. Os awá e o mundo dos karaiw. (Dissertação de mestrado).
Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas – UFMA, São Luís, 2019. CORDEIRO, Zeneide Pereira. Bumba-meu-boi da Maioba: desenhos e bordados.
(Monografia). Departamento de Artes – UFMA, São Luís, 2014. O grande dia! Disponível em: https://resistacomoumamulhercega.home.blog/2019/03/15/o-
grande-dia/?preview_id=74&preview_nonce=1c18b54e02&preview=true. Acesso em: 19.03.2019. 17h. Resista como uma mulher cega!: Disponível em:
http://resistacomoumamulhercega.home.blog. Acesso em 20.03.2018. Às 20h.