o céu é histórico

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O CÉU É HISTÓRICO ENTREVISTA DE MANOEL DE OLIVEIRA A SERGE DANEY E RAYMOND BELLOUR, COM APRESENTAÇÃO DE PHILIPPE TANCELIN Tradução do francês: Claudia Moraes RESUMO O cineasta português Manoel de Oliveira fala de seus filmes e expõe suas idéias a respeito do cinema em entrevista a Serge Daney e Raymond Bellour. Palavras-chave: Manoel de Oliveira; cinema; história. SUMMARY In this interview conducted by Serge Daney and Raymond Bellour, Portuguese film-maker Manoel de Oliveira speaks of his films and exposes his ideas about cinema. Keywords: Manoel de Oliveira; cinema; history. O nascimento da sétima arte precede em apenas alguns anos o do cineasta Manoel de Oliveira. Sua obra, tão mal conhecida na França, consegue ser por mais de cinqüenta anos uma espécie de vínculo mágico entre os mais diversos e opostos movimentos estéticos do cinema (de Eisenstein a Rossellini), exprimindo ao mesmo tempo uma enorme conti- nuidade da matéria fílmica, tanto no plano do material quanto do dispositivo puramente cênico. Sua obra, sempre desenvolvida com o máximo de cuidado e sem precipitações, apresenta-se primeiramente como a de um documentarista original cujo tema principal é a cidade (Douro, faina fluvial, 1931; Miramar, praia das rosas, 1938; O pintor e a cidade, 1956; Lisboa cultural, 1982; Nice, 1983 etc.). Depois, a partir de 1963, Oliveira se volta para o cinema de ficção. De um a outro desses registros, uma mesma problemática, o interva- lo, ronda e desestabiliza as mais sábias montagens, classificações ou, ao contrário, estilhaçamentos de imagens. Oliveira mobiliza aí todos os seus esforços para que cada plano, pela ausência que o precede, fragilize toda representação em sua pretensão à totalidade, a qual nada é além de aparência ilusória. A escritura cinematográfica valoriza assim as suces- sões-momentos-fragmentos de narrativa que pouco a pouco vão desenvol- Esta entrevista foi realizada em Paris, em abril de 1991, e publi- cada na revista Chimeres, nº 14, inverno 1991-1992. MARÇO DE 1993 79

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O CU HISTRICO ENTREVISTA DE MANOEL DE OLIVEIRA A SERGE DANEY E RAYMOND BELLOUR, COM APRESENTAO DE PHILIPPE TANCELIN Traduo do francs: Claudia Moraes RESUMO O cineasta portugus Manoel de Oliveira fala de seus filmes e expe suas idias a respeito do cinema em entrevista a Serge Daney e Raymond Bellour. Palavras-chave: Manoel de Oliveira; cinema; histria. SUMMARY Inthisinterviewconductedby Serge Daney and Raymond Bellour, Portuguese film-maker Manoel de Oliveira speaks of his films and exposes his ideas about cinema. Keywords: Manoel de Oliveira; cinema; history. O nascimento da stima arte precede em apenas alguns anos o do cineastaManoeldeOliveira.Suaobra,tomalconhecidanaFrana, consegue ser por mais de cinqenta anos uma espcie de vnculo mgico entreosmaisdiversoseopostosmovimentosestticosdocinema(de Eisenstein a Rossellini), exprimindo ao mesmo tempo uma enorme conti-nuidadedamatriaflmica,tantonoplanodomaterialquantodo dispositivo puramente cnico. Suaobra,sempredesenvolvidacomomximodecuidadoesem precipitaes, apresenta-se primeiramente como a de um documentarista originalcujotemaprincipalacidade(Douro,fainafluvial,1931; Miramar, praia das rosas, 1938; O pintor e a cidade, 1956; Lisboa cultural, 1982; Nice, 1983 etc.). Depois, a partir de 1963, Oliveira se volta para o cinema de fico. De um a outro desses registros, uma mesma problemtica, o interva-lo, ronda e desestabiliza as mais sbias montagens, classificaes ou, ao contrrio, estilhaamentos de imagens. Oliveira mobiliza a todos os seus esforos para que cada plano, pela ausncia que o precede, fragilize toda representaoemsuapretensototalidade,aqualnadaalmde aparncia ilusria. A escritura cinematogrfica valoriza assim as suces-ses-momentos-fragmentos de narrativa que pouco a pouco vo desenvol- Esta entrevista foi realizada em Paris, em abril de 1991, e publi-cada na revista Chimeres, n 14, inverno 1991-1992. MARO DE 199379 O CU HISTRICO verarelaomaisforteeamarradaentretextoeimagem,vistoe mostrado. Deste modo, cada plano no se identifica mais a uma seqn-cia, mas a uma cena. Ele desdobra-se como um verdadeiro quadro. Entre dois planos, vigiam e trabalham os buracos, espaos disponveis, incomen-surveis,emdolorosaespera,quepoucoapoucoconstroemanotvel ilusodeumdesenrolarcontnuo(Amordeperdio,1978;Francisca, 1981). Essa problemtica do intervalo liga-se a uma concepo e utilizao do espao cnico que Manoel de Oliveira desloca incessantemente, da cena da vida cena do teatro, da cena do teatro do cinema (Amor de perdio; Le soulier de satin, 1985; O meu caso, 1986). Segundo Oliveira, "para filmar preciso um teatro, preciso criar um teatro"1. Ou seja, um momento de encontros. Entre esses encontros est o desconhecido por todos, aquilo que ningum pode testemunhar e de que entretantocadaumprocuraserespectador.Somostodosespectadores, primeiro da vida, da representao vital (aquilo que a vida sabe represen-tardelamesma).Oteatrorepeteestarepresentao e o cinema filma o espetculo. O grande mistrio para o cineasta a criao desse teatro que permite filmar, isto , a criao de um verdadeiro movimento de expanso graasaoqualpoderemosverclaramenteoqueocerceamentodas palavras, dos gestos e das imagens quando so reunidos, coagulados dentro de uma nica perspectiva: o reforo do poder da representao. Contra tais embaraos escombros de imagens, de palavras interme-dirias que invadem e ocupam os ocos, os vazios dos encontros de modo a dar a iluso da vida pela simples agitao, precipitao consumidora, preciso criar um teatro de ocos, um teatro de calma que abre os espaos intermedirios, os libera, e l colocar a cmera. Oliveira se inscreve assim nesses interstcios de planos. Ele os ocupa, dilata-os at a abertura de uma verdadeira cena outra, cena intervalar, onde se coloca a questo do poder dasimagensedesuaestabilidade.Atravsdessacenadeafastamentos entrearepresentaoteatraleoespetculocinematogrfico,Oliveira incitaoespectadoraapreenderomovimentodeumaoutradessas representaes, levando-o a criar sua prpria cena de testemunha espec-tadora, que ele conduz em seguida para a projeo sobre a tela de cinema. O cineasta facilita tal movimento atravs da multiplicao de planos fixos e pela amputao sistemtica das imagens intermedirias e das ligaes entre as cenas-quadros... O espectador constri o tempo do seu olhar (O passado e o presente, 1971; Amor de perdio; Os canibais, 1988). Mais do que manter o espectador na iluso devoradora de que o visvel equivale a que alguma coisa sempre esteja ocorrendo, que algo acontea, Oliveira prefere cultivar aquilo que chamamos injustamente de "tempos mortos": a inquietao profunda, a ebulio permanente e desenferrujan-tenaqualelenossubmerge.Assim,graaseliminaodasimagens ligantes, o espectador pode se dar conta de que aquilo que a cmera no consegue reter, o buraco negro no qual ela absorvida por instantes, nada mais que este invisvel real que trabalha cada imagem e a torna to (1) Lardeau, Y., Ph. Tancelin e J. Parsi.ManoeldeOliveira.Ed. Dis-Voir, 1988. 80NOVOS ESTUDOS N 35 ENTREVISTA DE MANOEL DE OLIVEIRA A SERGE DANEY E RAYMOND BELLOUR sensvel para ns, na medida precisa de nosso embarao em nos perceber-mos, em nos movermos na agitao de superfcie que prope geralmente o cinema de sobre-representao espetacular. Tal tempo livre e no morto para o espectador aquele do movimento do pensamento, da reflexo quando se promete e se apresenta o entre-visto dascoisas,oentre-outro-vervivosensvelondesedesfazemosplanos totalizantesdarepresentao(Omeucaso;Oscanibais).Otempodos intervalos que Oliveira prope para o espectador o tempo do testemunho quesomosempermanncia,tempodoqualnosaberamosescapar, porque "viver representar"2, ou seja, ser atazanado, trabalhado, agitado at o ponto de "refazer o que se viu, o que aconteceu, o que nos impressiona, porque a memria nos escapa"3. Em face do afastamento do criar e do viver que constantemente nos ameaa,aderimosquilopeloqualtudochega,quilocujapresena lembraqueascoisasestoemviasdesedecidiremnovamente,dese inventarem no emaranhado das frgeis representaes. No cinema de Oliveira, a testemunha espectadora convidada a se perguntar: o que vim testemunhar? Para que fui chamado a testemunhar a mais uma representao? O que um olhar que resiste, um olhar rebelde s sobre-imagens? O cineasta cuida desses olhares de testemunhas espectadoras. Entre cada plano-cena, plano-quadro, um simples letreiro narrativo (ou s vezes onegro)bastaparamostrarquaiscomplacnciasdeimagens,quais negligncias de instantes nos ameaam de cegueira. A maior prova disso talvez o mau conhecimento, to bem difundido, da obra desse grande cineasta contemporneo cuja paixo sem dvida um "menos" de imagens, como se fosse urgente aumentar nossa visibilidade entre duas vistas: uma teatral, a outra cinematogrfica. ...Urgnciadevisibilidade,sim,paratestemunharohomemcomo idia,nosentidosartrianodo homem teatral, um homem antecipante-vidente-falante em seu drama de no saber fingir, de no mais querer saber iludir. A partir da cena intervalar dessa visibilidade frgil e fugaz, Oliveira cria um teatro das Artes, com todas as disciplinas reunidas. Pretende nele ir ao encalo, para nosso grande prazer, de uma experincia esttica de resistncia vaga devorante das representaes sem espessura onde se dissolve o ponto testemunho do mundo real. (PH. T.) (2) Idem, ibidem. (3) Idem, ibidem. Sebemcompreendi,ManoelqueriaconversarcomGillesDeleuze sobre o tempo no cinema. Portanto, farei a ele a pergunta de sua pergunta. Que perguntas ele gostaria de fazer para algum como Deleuze sobre o assunto do tempo? O que seria preciso saber? MARO DE 199381 O CU HISTRICO O tempo me inquieta muito... O tempo est numa relao ntima com ocinema.Osfilmessoguardadosemcaixasesetornamobjetosque podemosolharindependentementedetodaidiadetempo,independen-temente do prprio tempo em que foram feitos. Mas quando os projetamos, eles tm uma durao, eles falam no tempo, como a msica, como a fala... muitodiferentedoquadro,quefixo.Ocinema,pordefinio, movimento. E para mim, o movimento tempo. o que pensa Deleuze de certa forma. Mas ele preferiu dividir a histria do cinema, o pensamento do cinema em dois grandes momentos, mesmofazendodiversoscruzamentosentreeles.Oprimeirogrande momento o da "imagem-movimento"; no segundo momento, que preva-lece hoje h pelo menos quarenta anos, a imagem-movimento se supera em direoauma"imagem-tempo".Masestaclassificaonoapenas histrica, antes de tudo esttica e filosfica. Sim...Massimplificandoascoisaspelomenosparamim, podemosdividirotempoemtempocinematogrficoeemtempo cronolgico (histrico). So dois tempos distintos. Podemos ter tambm um tempo psicolgico que defronta-se ao tempo cinematogrfico. Durante muito tempo pensei que o cinema era antes de tudo um olhar, mas um olhar que ora olha, ora cessa de olhar. V-se esta porta, entrev-se a rua... dirige-se para a rua... d-se alguns passos pela calada, o travelling acompanha...Olha-separaoalto,eixovertical,trintaps...Tem-sea impresso de um fluxo contnuo, mas na verdade no bem assim que isto acontece.Pois,nessepercurso,certas coisas me interessam mesmo e outras no: efetuo ento uma espcie de sntese que vai construir o tempo de outra maneira. Ns olhamos, por exemplo, esse espelho do lado da porta, mas por no sei qual associao de idias passamos pela porta fechando os olhos,semv-la.Eisasntese.Estetambmoprincpiomesmoda montagem,dadecupagem.Reunimostudooquequeremosguardar, operamosummododeconcentraodetempo.Vamosdiretamentes coisas que queremos ver e deixamos as outras de lado. Freqentemente eu me pergunto se o que ns deixamos de lado no tem realmente importncia; eporquerelegamosaosegundoplanoaquiloquetalvezdevssemos guardar... Certos filmes indianos so assim, muito longos. Vi um que no fundo no me interessava, mas que pouco a pouco conseguiu atrair minha ateno graas a uma srie de pequenas coisas que, primeira vista, nada me diziam. Ora,levaremcontaessaspequenascoisas,decertamaneira,tornar complexo o tempo no interior do cinema. Na vida, por exemplo, quase igual.Pode-sedividir nosso tempo pessoal em tempo cronolgico (digamos histrico), em tempo biolgico (que autnomo) e em tempo psicolgico. Considero que o cinema est "na histria", em tudo o que se passa no mundo, em tudo o que exterior. O cinema a cmera que se pe no ombro comoumfuzilparaircaa.Segostamosdealgumacoisa,atiramos... Adiante, recomeamos. Caamos num espao que, para ns, tambm o tempo, o tempo da descoberta. Olhando ou andando nesse espao histrico, 82NOVOS ESTUDOS N 35 ENTREVISTA DE MANOEL DE OLIVEIRA A SERGE DANEY E RAYMOND BELLOUR surpreendemoscoisasque so imediatamente presentes e que, por isso mesmo, j so do passado. Da a grande importncia da memria e do livro, e de tudo que permaneceu. O que no permaneceu desaparece, ou s fica na recordao. Posso falar do reservatrio de memria que tenho em mim. O que exprimimos mais ou menos interessante segundo a qualidade desse reservatrio que cada um traz na sua cabea. Uma das formas de dizer que o cinema sempre foi mais permeado pelo tempo seria ressaltando que ele tem estado cada vez mais preocupado com a questo da sua memria, de sua prpria memria, como a do mundo em geral. Acho que sim. Porque o cinema trabalha com a vida de uma forma muito concreta, enquanto a literatura trata as coisas no abstrato. Quando quero filmar um copo, preciso que um copo seja colocado em frente cmera, enquanto na literatura eu digo "um copo", e pronto. "Um copo sobre a mesa", e basta. No cinema, isto no suficiente. "Um copo sobre a mesa" vai acarretar enormes problemas de escolha: que copo, que mesa?... Mas na literatura preciso dizer: "h um copo" ou "havia um copo" ou "haver um copo" . J a h os tempos, e portanto a escolha de um tempo. Certo,masfaloaquidoconcreto.Poisnoaabstrao,mas precisamente esse concreto que nos leva ao tempo. um copo de tal sculo, ou um copo de hoje, ou um copo de ontem posto aqui hoje, sobre uma mesaqueesta,agora...umjogoaomesmotempocomplicadoe concreto. O copo talvez seja do sculo XVII, mas se o utilizamos hoje, no a mesma coisa... isso o que eu chamo de histrico no cinema. E isso no tem nada a ver com o realismo. Algum me objetou: "Voc faz filmes de poca, com figurino, decorao; muito realista!". No, no realista, histrico! Pois se conhecemos precisamente os objetos ou as roupas de uma poca,nosabemosnadaemcontrapartidadosgestos,dasposturas,da maneira de falar das pessoas daquele tempo... Podemos nos desviar um instante para um cineasta que apresenta muitos pontos em comum com os seus, Eric Rohmer? Acho que ele tem uma teoria muito rigorosamente realista do tempo no cinema. Para os filmes cujaaosepassaantesdainvenodocinema,antesdosculoXX portanto, a nica coisa a fazer inspirar-se em modos de representao da poca. Em La marquise d'O, no se inventa um naturalismo qualquer do sculo XVIII, inspira-se em Greuze. A o cinema que ontologicamente realista s realista no que parte de Greuze, que no o . Idem para as iluminuras da Idade Mdia em Perceval le Gallois. um filme onde no h cu, porque as iluminuras no faziam muito caso dos cus. Mas tudo muda quando se trata do sculo XX, que o sculo do cinema, ou seja, o sculo do qual o cinema a memria. Voc j se fez esta pergunta? E para osperodosemqueosnicostestemunhosquetemossopictricosou arqueolgicos, como voc os resolveu? MARO DE 199383 O CU HISTRICO Quandocomeoumfilme,precisoinventar-meumateoriaparticular, para meu uso pessoal. Tenho necessidade de ter uma teoria e, curiosamente, paracadafilmeencontroumateoriadiferente,queseadaptaaomeu propsito. Non, ou a v glria de mandar colocava justamente a questo levantada por Rohmer; eu tinha uma determinada idia do histrico que eu queriarespeitarquaseintegralmente.Comaajudadeespecialistase historiadores,estudeieseguioscronistasdaspocassobreasquaiseu trabalhava. E nisso me ative. Gosto muito deste ponto de vista. a pura verdade... Mas Daney, evocando Rohmer, se referiu a uma documentao pictrica. E voc fala de cronistas, de coisas escritas... Acho que quando se parte da escrita, no caso dos cronistas ou do que literrio,oresultadomaisrigoroso.maisdifcil,eportantomais interessante. Ao contrrio, tudo que pictrico, ou seja as roupas, as armas, omobilirio,tudoquesepodeverreproduzidonumquadro,todosos vestgios reais daquilo que foi, tudo isso de uma natureza mais evidente, mais facilmente apreensvel. Certo, trata-se tambm do histrico. Mas nos meus ltimos filmes procurei principalmente a objetividade. Como se pode ser objetivo? A objetividade consiste em estar prximo do acontecimento, daquilo que se passou; num filme, se aproximar dos cronistas, das pessoas que relataram o acontecimento. a nica maneira de ser objetivo. tambm uma forma de escapar da nossa tendncia de impor aosacontecimentosumalgicapessoal.EmNonnomeremetiaum cronistanico,masprocureioquepodiahaveremcomumemtodosos cronistas que li. Por outro lado, recorri a diferentes escritores que estavam emsituaodeinvenoeimaginaoemrelaoaessesperodosda histria, e segui-os porque acho que a fico complementar histria, ela nos ajuda... A histria enquanto tal, muito pura, tambm muito limitada. Nessesentido,Nonse encontra em oposio, ou contraposio em relao aos filmes histricos americanos. Estes comeam por no respeitar o quadro histrico da poca; os cronistas so eliminados em proveito de uma composioimaginriasadadiretamentedacabeadodiretoroudo cengrafo. Eles alteram os quadros de poca vontade e segundo o que imaginamseromaisagradvel.Chegamaopontodeimaginaros movimentoseaspalavrasdospersonagenshistricos.umamentira completa! Esses filmes se tornaram uma mentira a partir do momento em que, num cinema que ia rumo ao tempo, continuaram a acreditar apenas no movimentoestemovimentoquetemsidofundamentalmenteoda Amrica, assim como do cinema que se mexia com ela. o que se chama "imaginao". isso, a imaginao. Mas o meu problema o seguinte: at onde pode ir o rigor de um filme digamos, "de arte" se ele reduz desse modo o efeito histrico? 84NOVOS ESTUDOS N 35 ENTREVISTA DE MANOEL DE OLIVEIRA A SERGE DANEY E RAYMOND BELLOUR mais complicado do que isso. Sim, mais complicado. No digo que isso seja bom ou mau. Digo que esta uma caracterstica, e aquela uma outra. Quanto a mim, atualmente, oriento-me em direo a uma busca do histrico, e portanto a uma busca da objetividade. Parto de textos histricos, porque so mais slidos. Se eu prprio os escrevesse, no encontraria nenhuma resistncia. Partindo dos elementos que j existem, que nos foram legados como trao do passado (ou mesmo partindo de uma fico, uma fico que j ultrapassou a fico por um efeito de ptina do tempo), o que se faz toma um valor histrico. O lado psicolgico, o lado biolgico, o lado viso social de uma poca, o ladoartedahumanidadesedecantametornam-seentooquepode neles haver de permanente na humanidade. Desse ponto de vista, o que aconteceu h um, dois ou trs sculos, podeacontecerexatamentedamesmamaneirahoje,apstodasas revolues culturais. Mas h "tempo" e "tempo". O que voc acabou de descrever o tempo como arqueologia: preciso levar em conta os traos materiais que nos che-gam do passado, as informaes, relatos, objetos etc. o problema de qualquer cineasta que faz o que na Frana chamamos de um "film costumes" [filme de poca, literalmente, filme de vestimentas]. Confesso que gosto muito dessa ex-presso porque ela bem concreta. Ela diz que o que se visa no a histria, mas um certo "efeito de passado", e ela no impede que se pense que as vesti-mentas so feitas tambm (e talvez principalmente) para se disfarar. Pode-se no gostar de que o cinema americano tenha sempre transformado tudo em Amrica, do povo hebreu ao califa de Bagd, passando pelos ndios Sioux ou a Revoluo Francesa, mas a est a sua fora, a fora do carnaval democrtico americano, o disfarce histrico de um povo sem histria. Mas ns, pobres euro-peus e os portugueses mais que muitos outros!, ns temos uma histria muito longa. E nosso problema menos o tempo arqueolgico dos bibels do que o tempo vivido das crenas. a durao e a necessidade, para fazer apa-recer a durao, de inscrev-la no poo sem fundo da reconstituio do passa-do. este abismo que os americanos necessariamente ignoram e com o qual ns, europeus, necessariamente nos confrontamos. Rossellini, em La prise de pouvoir par Louis XIV, prope uma soluo... A est um filme prximo do que eu quero fazer. Eis a objetividade! Ou melhor, "objetalidade". , talvez... Quando digo objetividade quero dizer: matar a subjetivida-de do artista. isto que preciso fazer! Porque ela sempre sobrevive. Ento, preciso encontrar qualquer coisa que a mate! Este o perigo: a persistncia da subjetividade! Como filmar a durao na medida em que ela , tambm, passado? H algumas solues clebres, mais ou menos elegantes ou convincentes. Em La Marseillaise, a soluo Renoir est prxima do "gestus" brechtiano. MARO DE 199385 O CU HISTRICO a cena em que Lus XVI come tomates pela primeira vez na corte e acha esse novo legume muito interessante. Ele tem razo, s que a Revoluo estrondeia e ele no a v. desse duplo presente, em que um a verdade irnica do outro, que brota o sentimento de uma durao histrica mais interrompida, esburacada. Vimos o sistema Rohmer h pouco. H o sistema Rossellini, prximo de Renoir, que consiste em s filmar acontecimentos vividos como "primei-ras vezes" por seus prprios atores. Mas h solues muito diferentes, mais esquizides. Penso naquele filme estupendo que o Ran de Kurosawa. Nele, oautorfazoexatocontrriodeRohmerealcanaaseumodoum sentimento de durao vaga, terminada. H uma cena no comeo entre os filhos do rei aparelhados em suas armaduras; eles discutem e h de repente planos de cu que ocupam a tela toda com suas nuvens. Essas imagens nada representam na tradio japonesa, elas so mesmo raras (ou se tornaram raras depois do fim do cinema mudo, depois de Murnau ou Dreyer) na tradio do cinema; elas impedem toda reconstituio, toda tentativa de fazercomose,ecriamumsentimentobastantedilacerante,muito japons,doefmero puro, eterno. Cito estes exemplos porque me vm cabea. Haveria outros. Ento, ser que Manoel de Oliveira no , neste aspecto, o mais complicado de todos? Porque a sua idia mostrar que a sculos de distncia os mesmos gestos podem voltar e trazer com eles uma durao em espiral, circular, como em certas histrias de Borges. Circular no, em espiral. Um fio permanece um momento, mas j no mais o mesmo momento... No vi esse filme, Ran, mas gostei muito do quevocdescreveu,objetivo!Ocu,queexistedesdesempre, absolutamente histrico! muito bonito isso, vou colocar num prximo filme! [Risos] Cada qual com o cinema (arte realista) deve inventar o tempo, mas "o tempo no tempo". Seja uma durao que perfurada por um evento (o tomate de Renoir). Seja um evento que a prpria durao (a nuvem de Kurosawa).TalvezRaymondBellourpoderia,naausnciadeDeleuze, nos lembrar o que este dizia da "imagem cristal"? Gostariadeacharasimagenscertaspararesponderavoc.Sou cineasta, e passar da imagem palavra o meu limite... pretender explicar-me num terreno que no o meu. Minha dificuldade, pois, imensa... Assim,norespondereidiretamente.Estouhabituadoaotermo histrico, vocs j compreenderam o que entendo por isso. Histrico no quer dizer que seja do passado: mesmo do presente. Histrico significa queestamosmetidosemumaespciedemistura,aculturauma mestiagem, no existe uma cultura pura. Portugal complicado... Para o tempo tambm, existe uma espcie de mestiagem. Somos hoje os mestios do nosso passado. Cada um tem a sua cor, sua mestiagem. Cada grupo, cada povo tambm. Assim, quando recupero o passado, abordo necessariamente o presente. o caso de Non, que feito de tudo o que no se pode esquecer, que constitui verdadeiramente a nossa identidade. 86NOVOS ESTUDOS N 35 ENTREVISTA DE MANOEL DE OLIVEIRA A SERGE DANEY E RAYMOND BELLOUR Poder-se-ia fazer uma observao um pouco formal a partir de um ponto que me apaixonou quando vi Non. Isso se relaciona idia de uma teoria por filme. Os livros de Deleuze so tambm uma teoria por livro. Na maioria dos seus filmes antes de Non, de diferentes maneiras, voc inclinou-se a eliminar o contracampo. Estou falando por alto, mas sente-se claramen-te a presena constante de diversas estratgias, diversas teorias, que tendem a eliminar ou a minimizar o dispositivo clssico do campo/contracampo. EmNon,acoisafascinantequeocontracampo,queumdos sustentculos para toda tentativa de renovao do cinema, foi reformulado demodocompletamentediferente.Tem-selumnovocontracampo, nunca visto antes. Isto irrompe na primeira cena, desde a primeira cena, em Angola, quando os soldados discutem longa e apaixonadamente no caminho que atravessa a floresta (seria preciso fazer aqui uma descrio detalhada das posies dos personagens, que se falam de costas a maioria das vezes, e dos contrapontos entre som e imagem). Pode-se perguntar se trazer de volta o contracampo de uma forma to nova e macia correspon-de ao fato de que o filme inteiro como um imenso campo/contracampo entre o presente e o passado, tambm muito novo. issorealmenteocontracampodeNon.Hospresenteseos passados.Quandoeleestinequandoestoff.Porqueooffo contracampo tambm. Sim,masmesmonascenasnopresente,emAngola,htodoesse trabalho que parece to novo, nesse dilogo dos soldados. o contracampo apesar de tudo, e no contudo o contracampo tradicional. Um outro contracampo foi inventado l, visualmente... Talvez se trate de um outro tipo de contracampo, mais perto do da pera, por exemplo. Como no seu filme Os canibais. Mas existe, um espao off na pera? No sei... Nofilmequeacabeideterminar,retorneiaocontracampo.Sou perseguido pelo cinema dos anos 20! H longas cenas... H uma longa cena dequasequarentaminutosdeummesmodilogoentreduaspessoase outros personagens secundrios que so acessrios. Senti desde o comeo que seria sistemtico demais fazer um campo/contracampo clssico. Como euestavamecansandodoprocedimento,acheiumasoluodurantea filmagem e no durante a montagem. Ela me veio enquanto dirigia e me lembrava do que Deleuze diz a propsito do filme dos Straub sobre Czanne, queocinemaum"blocodeimagem-durao".Estaidiade bloco me seduziu bastante e, utilizando-a, dividi a cena em blocos. A cena a mesma, mas h evidentemente tempos dramticos, e cada tempo dramtico constitui um bloco no mesmo espao, sempre o mesmo espao, mas dividido em vinte blocos. Fiquei muito contente. Quando filmava, eu no sabia qual seria o terceiro bloco no momento em que terminava o primeiro. Tudo me veio paulatinamente, no prprio trabalho, segundo as sugestes ou o cenrio. Quando me cansava, encontrava uma outra coisa e assim por diante... Isso tornava-se tambm uma diviso do tempo... MARO DE 1993 87 O CU HISTRICO isso, esta acumulao de blocos, que produz uma profundidade de tempo. Quandoinventoparamimumateoriaparafazerumfilme,eua imponho a mim mesmo; sigo-a ao p da letra, seno mereo a priso como qualquer um que no respeitasse a lei! Como o cinema para mim algo de muito concreto, posso filmar aquela lupa sobre a mesa ou cada um de ns, com a condio de que tudo isso permanea como estava. No posso, ao filmar vocs, gravar o que pensam. No posso filmar o sonho de algum quandodorme.Recuso-meafaz-lo.Eunofilmariaopensamento,a conscincia, o sonho, a voz off da imaginao. Isto seria falso! O monlogo no teatro no garante a verdade do pensamento; a nica verdade que ele dito efetivamente! Eu me imponho regras e as sigo: no seja sentimental, no seja dramtico, seja distante, racional, o mais fsico possvel, lgico, tudo isso. No momento em que filmo, esses limites se tornam minhas armas. Desculpe-me,masnosetratadeumavelhatcnicacristque consiste em se impor leis para melhor sucumbir ao prazer de transgredi-las? Um jeito de ter mais prazer ainda? No, no, no, no, no. uma viso bastante sria do cinema. por isso que gosto muito dos filmes dos Straub. Eles tm um rigor extraordinrio. Notrapaceionofilme,masfaotudooquepossvelfazersem trapacear. E ao mesmo tempo temos s vezes a impresso de que "a trapaa" tem odireitodeexistirpositivamente,deserporinteiroumblocopreciso, exterior ao resto do filme. Em Non, por exemplo, o episdio de Cames como a presena de uma vez s de tudo o que o resto do filme ignora ou nega. Mas no trapacear! histrico, mitolgico! A mitologia uma trapaa. Ou melhor, ela pde virar uma trapaa ao se separar da histria. Masnosepode"filmar"amitologia!comoossonhos,uma mquina abstrata, uma caixa preta! No! Ela to verdadeira que Cames pde imagin-la no seu "Canto dcimo" d'Os Lusadas! Vou explicar-lhes exatamente o procedimento. O filme tem aparen-temente um carter negativo; ele s fala de derrotas, e isto uma coisa muito mal vista em Portugal, ao menos por alguns... ...Se algum fizesse isto na Frana, iria preso. Alsia, Bouvines, Waterloo, Dien Bien-Phu! Mas toda a histria de Portugal que est l! E esta histria, tal como vocs vem no filme, contada por um grande historiador, Oliveira Martins, que a dividiu em duas partes. A primeira uma parte luminosa, que comea com a fundao da nao e que vai, num crescendo, at as Grandes 88NOVOS ESTUDOS N 35 ENTREVISTA DE MANOEL DE OLIVEIRA A SERGE DANEY E RAYMOND BELLOUR Descobertas. Todas as portas que se abrem para outras direes que no as que vo nos levar s Grandes Descobertas so sistematicamente fechadas. A parte luminosa uma linha reta que se encaminha diretamente para essas Grandes Descobertas como para o destino divino oferecido aos portugue-ses, devido posio geogrfica do pas, ou devido sua pequenez... uma coisa inacreditvel, irreal as Grandes Descobertas! Eis um pas muito pouco povoado, um pas muito pequeno e pobre que subitamente se levanta!Anobrezaquerconquistarterrasparatravarrelaes,fazer comrcio, ser a mais forte. esta toda a sua vocao. Mas em Os Lusadas, o coroamento dessa epopia, desse movimento para frente em linha reta uma derrota! No uma posio de fora finalmente adquirida por uma classe, mas uma vitria para a humanidade inteira! Ejustamente"Ohinodeamor"queengrandecertudoisso,ao conceder a esses pobres marinheiros a Imortalidade e o Reconhecimento... o nico momento de utopia realizada do filme, seu momento sim em certa medida. Dessas Grandes Descobertas portuguesas, tudo o que nos resta hoje de verdadeiro, de histrico esta parbola mitolgica! O que nos resta alm disso?Notemosmaisumcentmetrodeterra.Nadamaisnospertence. Felizmente, por sinal! isso que bonito! Assim resta uma memria encantada, e preciso um modo particular defilm-la,decont-la,quedevediferirdosoutrosmomentos por esta mesma razo... Evocaraepopiadetodasessasbatalhasganhas,istonomuito importante.Oqueoverdadeiramenteoresultado,ouseja,as Descobertasquederamaconheceraomundoessasterrasnovas,esses novos cus. Ns s tomamos a riqueza para restitu-la e nos reencontrarmos sem nada, para voltar ao ponto de partida. precisamente a que, segundo Oliveira Martins, comea a segunda parte da histria de Portugal, a parte sombria, que se prolonga at hoje. Non no traz nenhuma soluo e no contm nem condenao nem aprovao. Ele faz perguntas: O que aconteceu? O que nos tornamos? Qual vai ser nosso futuro? Todo esse passado criou uma mitologia prpria, nacional, sebasti-anista. Espera-se o impossvel. isso. A singularidade da questo do tempo, aqui, tambm porque Non o nico filme, acho eu, que fez em um filme a histria de um pas, e de um pas antigo, um dos que fizeram nossa memria europia. Isto que leva a uma relao com o tempo verdadeiramente singular. Mas o tempo realmente, no o conhecemos! Para conhec-lo, preciso chegar a seu fim, ao fim dos tempos. Sim, mas deve-se sobretudo capt-lo de um s golpe. Talvez seja possvel porque se trata de um pequeno pas, ou de um grande cineasta. MARO DE 199389 O CU HISTRICO Nem uma coisa nem outra. a prpria virtuosidade do cinema que est em questo, isto , as elipses. No cinema, o importante no o que se v, mas o que corre entre as imagens. preciso prestar ateno quilo do filme que fica na cabea. isto que belo, continuar a pensar depois. Durante a projeo, s se v o que trivial. Pode-se mesmo dizer sobre o cinema: isto passa realmente mas no permanece.Ocinema,nestesentido,no. E quando o cinema desapa-rece, permanece o vdeo, e o vdeo sim. Isto, o vdeo, permanece, mas no emns,emnossasmentesecoraes,permanece numa biblioteca, num cofre,esecelebraregularmenteemlancesrituais,comoumprazer armazenado de uma vez por todas, como o episdio de Cames de seu filme. Mas ateno, Serge, no faa confuso! O cinema o pai do vdeo. O videoclip uma espcie de agresso inteligncia, sensibilidade... No. O cinema a fruio de um encontro sempre possvel, de uma navegao, de uma tradio oral. O vdeo o prazer armazenado que no est a cargo de ningum. Gosto das coisas que me tocam, que me impressionam, mas no do que brutal! Essa espcie de loucura desse jogo rpido... No estou falando dos videoclipes. Falo das pessoas que guardam os filmes que gostam, que os colecionam em uma videoteca. E que acabam por se encontrar em face de uma mitologia pessoal a ser gerida. Se como um livro, eu concordo inteiramente... quando sua histria se perdeu (ou incontvel) que um povo (ou um indivduo) se recolhe caixa preta da sua mitologia fundadora. E o quehnessacaixapreta?Momentosondeteriahavido felicidade, uma sada do tempo, um real tocado pelo menos uma vez, sem ressentimento. Sim, verdade. O pedao cantado por Cames o que temos de mais precioso, porque o que ns demos. Ns guardamos aquilo que demos! Porque s se guarda aquilo que se d. No se guarda o que se dilapida. Ento, eu me pergunto freqentemente: o cinema est do lado da ddiva oudadilapidao?Serqueeleefetivamenteguardado,transmitido, mesmo em videocassetes? Acho que no podemos separar um lado de outro. preciso conservar os dois. Cada um com sua funo. Guardar para o prazer dos que viro, e desperdiar para nosso prprio prazer... Mas h um outro problema doloroso: o cinema provm de um processo audiovisual de fixao que se destri pouco a pouco, comeando pelas cores. E ns que pensvamos que o cinema poderia fixar tudo para sempre! Mas suspeita-se hoje em dia que mesmo o acetato no resiste... preciso pessoas como ns, preciso um pequeno pas que nada alm de 90NOVOS ESTUDOS N 35 ENTREVISTA DE MANOEL DE OLIVEIRA A SERGE DANEY E RAYMOND BELLOUR memria, Portugal, para que se fale do cinema como se falou aqui, como uma resistncia. Isso permanece, permanece... at a exploso final! Querodizerquesevocfosseespanhol,serquevocfariaesses filmes? Ser que estaramos dispostos a conversar todos os trs? Penso que h um destino espanhol mas diria que ele no se parece com o do cinema. O de Portugal sim. Nssomoscompletamentediferentesdosespanhis;mastemos tambmcoisasqueseencontram...VejamoCristodeVlasquez... Vlasqueztemumladoportugus.OsCristosespanhissocrispados, sangrentos,enquantoodeVlasquezdoce.umCristoportugus, sorridente, atencioso, paciente. Sebastianista![riso de Oliveira]. Para voltar ao nosso ponto de partida, o tempo, ser que todos os povos, as velhas naes no tm destinos com um tempo especial, uma temporalidade prpria? Ou apenas alguns entre eles? EPortugal,porexemplo?Quandoosalemes(pensoemSylberberg)se debruam sobre essas questes, eles sentem e causam um frio na espinha. Mas ser que Portugal no est protegido da loucura pelo fato de que ele desde muito tempo como um personagem acalmado, em declnio, mas com uma boa memria do que ele deu (e perdeu) durante o percurso? Algumas vezes penso que Portugal como o Cristo doce, paciente e resignado de que acabei de falar. Tem esse ar de bode expiatrio. No realmente revoltado. Os portugueses so submissos ao seu destino, ao desespero. Portugal um pas onde no se tem demasiadas iluses; o povo desconfia de todos os grandes personagens que prometem grandes coisas... Antes da fundao da nao, viu passar os vikings, os romanos, os rabes, os fencios que chegaram pela costa, os godos; todos eles passaram, arrasaram tudo, mas as razes profundas permaneceram e tornam a brotar como ervas daninhas. Existe uma certa resignao, mas tambm uma desconfiana em face das grandes promessas, das grandes coisas, do que no chega nunca... Para expulsar os rabes, Portugal tornou-se um pas cristo durante as cruzadas. O primeiro rei, durante a primeira batalha, teria dito aos soldados que,duranteanoite,oCristo,comosestigmas,teriaaparecidoaelee anunciado: "Irs ganhar a batalha". uma viso de verdade ou um truque para impelir os soldados a avanar? Seja o que for, a bandeira portuguesa guarda aps isso cinco estigmas. Ento o cinema tambm pode filmar os sonhos? No! No sonho, vida... No meu ltimo filme, imaginei um sonho a partir de alguma coisa que no existe, ou que existe, no sei bem; enfim, eu o fiz. Fiz com cores e som. MARO DE 199391 O CU HISTRICO Explicam-me logo depois que no sonho no h nem cores nem som. Mas era um sonho cinematogrfico! importante, esse sonho, no meu prximo filme. E que filme possvel ainda se fazer quando j se abordou a histria de seu prprio pas? Depois da suma de Non, qual ser o seu prximo filme? H um monte de filmes a se fazer fora da histria! H as pessoas que vivemmargemdahistria,hosseusdramas.Ofilmequeacabeide terminar (A divina comdia) como o prolongamento disso. uma coisa universal.Retomeitextosmuitoantigospararefletirsobreacivilizao ocidental, judaico-crist. Ainda assim uma comdia! Uma divina comdia! Voc no tem vontade de filmar a sociedade portuguesa de hoje? Fico extasiado de ver os filmes dos americanos com gim por toda parte, ecoca-cola; o que eu traria de novo em relao a eles? Eu s faria uma espcie de filme americano portuguesa! Naltimaaldeiadofimdomundopode-severnatelevisostrip-teases, cenas de amor chocantes tais como se vem em Paris ou em qualquer outro lugar. Mas as pessoas no esto preparadas e isso uma agresso para mentalidades diferentes das nossas. Tudo est nivelado na civilizao ocidental, que era uma civilizao greco-romana e depois greco-crist at a Invencvel Armada Le soulier de satin. Depois, o poder sobre o mar passou para os ingleses. A apario damquinaavaporagravouestatendncia.Acivilizaoocidental mediterrnea,quetinhamuitaespiritualidade,tornou-seumacivilizao anglo-sax, do pragmatismo e do resultado imediato. Ela domina o mundo at o Oriente. No Japo, a mesma coisa. Mesmo o cinema. Por toda parte amesmacoisa!Omesmoplano,travelling,panormica,dafricaao Japo. Apenas o teatro, por enquanto, escapa a essa normalizao. preciso salvar o teatro para salvar o cinema. Linumjornalquesediscutiaareformadalnguaportuguesa indexando-aaobrasileiro.Obrasileirosetornarialnguaoficial. verdade? E se , o que voc acha? Os brasileiros so 100 milhes, ns somos 10 milhes. Com os pases de expresso portuguesa na frica e na sia, somos cerca de 200 milhes. O problema salvar a lngua. H alguns anos, passei uns filmes na Universidade de Marselha. Havia l professores que ensinavam portugus, mas no graas aos portugueses, e sim aos brasileiros. preciso escolher: ou se perde a pureza da lngua, ou seperdeaprprialngua.OportugustambmalnguadoBrasil,de Moambique etc. As condies locais modificam a lngua (penso em todos os italianos que vivem no Brasil, por exemplo). ProjeteinoBrasilmeuprimeirofilmedefico,Aniki-Bobo.As pessoas no entendiam nada! Depois, passou Acto de primavera, que se 92NOVOS ESTUDOS N 35 ENTREVISTA DE MANOEL DE OLIVEIRA A SERGE DANEY E RAYMOND BELLOUR situa no sculo XVI e est escrito na lngua do sculo XVI. Eu havia pedido para colocar legendas em portugus para pass-lo em Portugal j que, entre ns,ningumentendianada.NoBrasil,todomundocompreendia!Os brasileiros falam um portugus arcaico... um problema grave que preciso resolver com muita sabedoria e compreenso. Agora vou responder s perguntas que vocs no me fizeram. A propsito do cinema, Duhamel dizia que era uma coisa estpida, feita para gente iletrada. E, pensando nisso, eu disse a mim mesmo que se poderia tambm tentar fazer um cinema inteligente. OutradasminhasrefernciasKafka. Algum lhe perguntou suas impresses sobre o cinema. Ele respondeu: " rpido. pa! pa! pa! pa! pa!". Para ele, no se tinha nem mesmo tempo de pensar no que se passava. Essas duas observaes tocaram-me muito. Elas me levaram a fazer um outro tipo de cinema, um pouco mais refletido, um pouco mais interior, um pouco mais profundo... Agradeo a vocs. Peo desculpas pela fraqueza das minhas respostas. Prefiro fazer filmes. Novos Estudos CEBRAP N 35, maro 1993 pp.79-93 MARO DE 199393