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O castigo e a queda dos gigantes andinos Adriano Rodrigues de Oliveira Resumo: Na presente comunicação analisamos a apropriação de um mito “andino” à narrativa dos cronistas europeus que descreveram os acontecimentos da América Hispânica em meados do século XVI. Conforme consta nos relatos de Agustín de Zárate e Pedro Cieza de León, a região andina seria habitada em um passado remoto, muito anterior a chegada dos espanhóis, por homens cruéis e soberbos, de aparência monstruosa e desmesurada. Zárate e Cieza de León, teriam obtido essas informações dos velhos incas, que as guardavam da memória recebida de seus antepassados. No imaginário europeu, o gigantismo remete ao mundo antigo e medieval, e na crença de indivíduos desmesurados, insolentes, pecadores e vorazes. Portanto, interessa-nos perceber, como o mito "indígena" se transformou, ao ser incorporado no âmbito do imaginário colonial quinhentista. Assim, nas narrativas dos referidos cronistas, esses gigantes pré-hispânicos foram demudados em pecadores e praticantes do pecando nefando contra a natureza, a sodomia (homossexualidade). Palavras-chave: Mito. Imagens. Imaginário. Gigantes. Considerações iniciais: os gigantes no imaginário europeu O mito dos gigantes remonta ao imaginário do mundo antigo, quando as primeiras sociedades humanas, desenvolveram a crença na existência de certos humanoides de estatura colossal e dotados de grande força física. Em quase todas as culturas onde essas lendas foram concebidas, ainda quando localizadas em contextos espaciais e cronológicos distintos, essas criaturas desmesuradas foram descritas ou retratadas como grandes agentes portadores do caos, extremamente cruéis, selvagens e rompedores da ordem vigente. No livro intitulado, América Mágica (2000), os historiadores Jorge Magasich e Jean-Marc de Beer observam que: Doutorando em História pela UNESP/Assis. O estudo que resultou nessa comunicação originou-se de pesquisas durante o desenvolvimento da tese e contou com o financiamento da CAPES.

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  • O castigo e a queda dos gigantes andinos

    Adriano Rodrigues de Oliveira ⃰

    Resumo: Na presente comunicação analisamos a apropriação de um mito “andino” à

    narrativa dos cronistas europeus que descreveram os acontecimentos da América

    Hispânica em meados do século XVI. Conforme consta nos relatos de Agustín de Zárate

    e Pedro Cieza de León, a região andina seria habitada em um passado remoto, muito

    anterior a chegada dos espanhóis, por homens cruéis e soberbos, de aparência monstruosa

    e desmesurada. Zárate e Cieza de León, teriam obtido essas informações dos velhos incas,

    que as guardavam da memória recebida de seus antepassados. No imaginário europeu, o

    gigantismo remete ao mundo antigo e medieval, e na crença de indivíduos desmesurados,

    insolentes, pecadores e vorazes. Portanto, interessa-nos perceber, como o mito "indígena"

    se transformou, ao ser incorporado no âmbito do imaginário colonial quinhentista. Assim,

    nas narrativas dos referidos cronistas, esses gigantes pré-hispânicos foram demudados em

    pecadores e praticantes do pecando nefando contra a natureza, a sodomia

    (homossexualidade).

    Palavras-chave: Mito. Imagens. Imaginário. Gigantes.

    Considerações iniciais: os gigantes no imaginário europeu

    O mito dos gigantes remonta ao imaginário do mundo antigo, quando as

    primeiras sociedades humanas, desenvolveram a crença na existência de certos

    humanoides de estatura colossal e dotados de grande força física. Em quase todas as

    culturas onde essas lendas foram concebidas, ainda quando localizadas em contextos

    espaciais e cronológicos distintos, essas criaturas desmesuradas foram descritas ou

    retratadas como grandes agentes portadores do caos, extremamente cruéis, selvagens e

    rompedores da ordem vigente. No livro intitulado, América Mágica (2000), os

    historiadores Jorge Magasich e Jean-Marc de Beer observam que:

    ⃰ Doutorando em História pela UNESP/Assis. O estudo que resultou nessa comunicação originou-se de pesquisas durante o desenvolvimento da tese e contou com o financiamento da CAPES.

  • A afirmação do gigantismo das primeiras gerações do mundo possui a sua

    lógica. A criação da terra, dos oceanos, da abóbada celeste e dos seres que os

    povoam deve ter sido uma obra incomensurável; em consequência, aqueles

    que, de um modo ou de outro, participaram dela, ou que, simplesmente,

    viveram nesses tempos, foram forçosamente seres igualmente desmensurados,

    dotados de força extrema, tanto física quanto espiritual, e de uma estatura

    condizente com a grandeza da época e das obras que então realizaram

    (MAGASICH-AIROLA; MARC DE BEER, 2000, p. 259).

    Na Bíblia, especificamente no Antigo Testamento, diversas passagens dão conta

    que os gigantes habitavam a terra antes e após o grande dilúvio. Em ambas as eras,

    constituíam-se de indivíduos soberbos, astutos e cruéis, além de grandes desafiadores do

    poder divino. No livro do Gênesis, encontra-se a seguinte descrição: “Havia naqueles

    dias, gigantes na terra, e também depois, quando os filhos de Deus entraram às filhas dos

    homens, e delas geraram filhos; estes eram os valentes que houve na antiguidade, os

    varões de fama” (GÊNESIS, 6, 4).

    Sem dúvidas, o gigante bíblico mais famoso foi Golias, um arrogante guerreiro

    filisteu que vestia capacete de bronze e couraça de escamas e media seis côvados e um

    palmo de altura (pouco mais de 2,80 m). Ao afrontar os hebreus com “sua astúcia e

    soberba”, foi derrotado no campo de batalha pela sabedoria do jovem pastor Davi, que

    antes de feri-lo com a funda e decapitá-lo com sua própria espada, proferiu as seguintes

    palavras: “eu venho a ti em nome do Senhor dos Exércitos, o Deus dos exércitos de Israel,

    a quem tens afrontado” (I SAMUEL, 17, 45).

    Contudo, foi no imaginário da Grécia Antiga, que a narrativa do embate entre

    deuses e gigantes se imortalizou, através da mítica batalha denominada Gigantomaquia.

    Em Metamorfoses, o poeta latino Ovídio (43 a.C. – 18 d.C.), narra que os solícitos

    gigantes ousaram a conquista do céu, e chegaram até o topo do Monte Olimpo empilhando

    montes sobre montes. Tomado de grande ira, Zeus atirou um raio furioso do alto de sua

    morada eterna, sacudindo as montanhas e fazendo despencar seus colossais oponentes

    (OVÍDIO In PREDEBON, 2006, p. 180.)

    Pseudo-Apolodoro, em sua obra intitulada Biblioteca, descreve que Gea, a Mãe-

    Terra, teria se unido a Urano e dado origem a esses seres titânicos, indivíduos

    insuperáveis em força e tamanho e de aparência monstruosa, visto que possuíam pelos

    grossos e escamas de dragão nos pés. Tentaram conquistar o Olimpo atirando carvalhos

    e pedras ardentes, mas foram derrotados e exterminados pelas setas de Hércules, a

  • sabedoria de Atena e o poderoso raio de Zeus (APOLODORO, 1985, p. 52-53). Em

    termos gerais, as moradas desses seres colossais do mundo grego eram as cadeias

    montanhosas e vulcânicas, os lugares mais inóspitos, ásperos e rochosos possíveis

    (LÓPEZ, 2015, p. 7).

    Na Idade Média, o famoso bispo de Hipona, Santo Agostinho (354-430 d. C.),

    afirma que esses gigantes foram criados para demonstrar a fraqueza corporal e a perfeição

    do poder de Deus na Terra (AGOSTINHO, 1990: Livro II, p. 229). Em sua obra intitulada,

    A Cidade de Deus, o religioso adverte: “Ali viveram os famosos gigantes que houve no

    princípio, homens de grande estatura [...] Deus não os escolheu, nem lhes deu a senda da

    ciência, e pereceram, porque careceram da sabedoria, e pereceram por sua estupidez”

    (Ibidem, p. 210-211).

    Ao analisar a imagem grotesca do corpo em Rabelais, Mikhail Bakhtin (2010)

    enfatiza que, ao final da Idade Média, os gigantes eram figuras obrigatórias das diversas

    festas populares, do repertório de feira, das procissões de carnaval, da festa do Corpo de

    Deus e afins (BAKHTIN, 2010, p. 300). Ainda segundo Bakhtin, nesse mesmo contexto,

    “[...] diversas cidades possuíam, ao lado dos ‘bufões’ da cidade, os ‘gigantes da cidade’,

    e mesmo uma ‘família de gigantes’, designados pela municipalidade e destinados a

    participar em todas as procissões durante as diversas festas populares” (Ibidem).

    Como bem destacou María Isabel Rodríguez López (2015), o Renascimento

    artístico e cultural provocou um retorno das representações iconográficas da

    Gigantomaquia, ilustrada pelos artistas quinhentistas a partir de padrões muito bem

    definidos e pré-fixados (LÓPEZ, 2015, p. 19). Assim, na arte em voga nesse período, os

    deuses gregos ocupam estrategicamente o topo das gravuras, se apresentam sempre bem

    armados e vestidos e em perfil de vitória. Zeus ou Júpiter, no centro superior da imagem,

    é retratado atirando um raio sobre seus oponentes gigantescos, que estão assustados, em

    posição de queda, armados de pedras e pedaços de paus e com os corpos totalmente

    desnudos (fig. 1).

    À época das viagens exploratórias à América, os gigantes contavam ainda com

    alta popularidade dos romances de cavalarias. Nesse gênero literário, eles apareciam com

    frequência na condição de antagonista principal do cavaleiro e herói da trama, sendo que

    muitas vezes podiam ser representados na condição de criaturas selvagens, monstruosas,

  • soberbas e idólatras (PADILLA, 2016). A respeito do estilo cavaleiresco e sua influência

    no imaginário dos viajantes e cronistas da América Espanhola, Heloisa Costa Milton

    (2000) destaca que:

    Os romances de cavalaria funcionaram, portanto, como provedores de

    imaginação e elevaram à esfera mítica a figura do guerreiro merecedor de

    fama, fortuna e nobreza por seu esforço individual, resultado da conjunção de

    valores tais como honra, romantismo, coragem, exaltação mística, ambição e

    paixão pela aventura (MILTON, 2000, p. 159).

    Fig. 1. A Queda dos Gigantes. Perino del Vaga (artista), 1539-1549. Cortesia do The Metropolitan Museum

    of Art. Disponível em: https://images.metmuseum.org/CRDImages/dp/original/DP836849.jpg. Acesso em:

    24 de julho de 2022.

    Os gigantes sodomitas

    Assim como outros mitos clássicos, transladados e transformados nas terras

    americanas pelo imaginário europeu quinhentista, o tema do enfrentamento entre deuses

    e gigantes, ganhou forma na narrativa dos cronistas espanhóis que estiveram

    pessoalmente na América Andina e descreveram os acontecimentos da conquista e

    dominação espanhola nessa região. Um dos relatos mais emblemáticos desses

    desmedidos entes pré-hispânicos, encontramos em Historia del descubrimiento y

    https://images.metmuseum.org/CRDImages/dp/original/DP836849.jpg

  • conquista de la provincia del Peru, obra escrita entre 1544 e 1550 pelo administrador real

    e cronista espanhol, Agustín de Zárate (1514 - 1585). De acordo com Zárate:

    Próximo a esse cabo [Santa Elena], os índios da terra dizem que habitaram

    uns gigantes, cuja estatura era tão grande quanto quatro estados de um

    homem mediano. Não disseram de que parte eles vieram; mantinham-se das

    mesmas comidas dos índios, especialmente pescado, porque eram grandes

    pescadores; eles iam pescar em balsas, cada um na sua, porque estas não

    podiam levar mais, seria como navegar três cavalos em uma balsa; venciam o

    mar em duas braças e meia; divertiam-se muito de encontrar tubarões,

    golfinhos, ou outros peixes muito grandes, porque teriam mais para comer;

    cada um comia mais que trinta índios; andavam nus, porque tinham

    dificuldades de fazer os vestidos; eram tão cruéis, que sem causa alguma,

    matavam muitos índios, de quem eram muito temidos... (ZARATE, 1968, p.

    10).1

    Zárate esteve pessoalmente no Vice-Reino do Peru no ano de 1544, quando

    ocupou o cargo de contador da Real Hacienda e teve contato com as principais

    autoridades incas dessa região (TEODORO, 1991, p. 131-132). Segundo afirma, as

    informações sobre esses antigos brutamontes andinos eram de conhecimento dos

    “naturais” da terra, que as teriam obtido da memória herdada de seus antepassados. Os

    incas não teriam recebido os devidos créditos por propagarem essas notícias, até que os

    próprios espanhóis testemunhassem os resquícios da existência remota desses gigantes ao

    encontrar diversos ossos de tamanho colossal em um vale nas proximidades do cabo de

    Santa Helena (ZÁRATE, 1968, p. 10).

    As criaturas descritas por Zárate são extremamente vorazes, haja visto que seu

    apetite desenfreado exigia uma quantidade de alimentos superior ao ingerido por trinta

    índios reunidos. Essa fome insaciável é um dos aspectos mais acentuados do gigantismo

    na literatura clássica, revelando, por tabela, a característica mais marcante do corpo

    burlesco – a bocarra escancarada e devoradora desses gigantes (BAKHTIN, 2010, p. 296).

    Conforme aponta Bakhtin, metaforicamente “é a boca que tem o papel mais importante

    no corpo grotesco, pois ela devora o mundo” (Ibidem, p. 277).

    1 Tradução nossa: Em espanhol: “Junto a esta punta, dicen los indios de la tierra que habitaron unos

    gigantes, cuya estatura era tan grande como cuatro estados de un hombre mediano. No declaran de que

    parte vinieron; mantenianse de las mesmas viandas de los indios, especialmente pescado, porque eran

    grandes pescadores; a lo cual iban en balsas, cada uno en la suya, porque no podian llevar mas, como

    navegar tres caballos en una balsa; apeaban la mar en dos brazas y media; holgaban muchos de topar

    tiburones o bufeos, o otros peces muy grandes, porque tenian mas que comer; comia cada uno mas que

    treinta indios; andaban desnudos por la dificultad de hacer los vestidos; eran tan crueles, que sin causa

    ninguna mataban muchos indios, de quien eran muy temidos” (ZARATE, 1968, p. 10).

  • Relato semelhante pode ser encontrado nas páginas da Crónica del Peru, obra

    publicada em Sevilha em 1553, de autoria do cronista espanhol Pedro Cieza de León

    (1518-1554). Cieza de León chegou ao Peru na condição de soldado no ano de 1547, para

    servir no exército de Pedro de la Gasca – bispo e diplomata espanhol responsável pela

    pacificação do Peru durante as rebeliões de Gonzalo Pizarro (PEASE In: DE LEÓN,

    2005, p.11-12). Em sua crônica, descreveu em pormenores a estatura, os costumes e a

    aparência desses antigos gigantes andinos, forasteiros que vieram povoar essas terras

    causando grande incômodo nas populações locais:

    Os nativos contam pelo relato que receberam de seus pais, que ouviram desde

    muito tempo, que vieram do mar em umas balsas de juncos semelhantes a

    grandes barcas, uns homens tão grandes, que tinham maior estatura do joelho

    para baixo que um homem comum em todo o corpo, mesmo que este fosse de

    boa estatura, e que seus membros estavam em conformidade com a grandeza

    de seus corpos deformados, e que era coisa monstruosa de ver as cabeças,

    pois eram grandes, e tinham cabelos que chegavam até as costas. Os olhos

    eram tão grandes que pareciam pequenos pratos. Afirmam que os gigantes

    não tinham barbas, e que uns se vestiam de peles de animais, enquanto outros,

    andavam nus, e não traziam mulheres consigo (DE LEÓN, 2005, p. 150-151).2

    Segundo o que complementa Cieza de León, esses grandalhões chegaram no

    cabo de Santa Helena e cavaram uns povos descomunais em rocha viva. Eram homens

    gananciosos e vorazes, pois pescavam todos os peixes do mar com suas redes e aparelhos

    gigantescos. Cada um comia mais do que cinquenta indivíduos de estatura normal e, o

    alimento que sobrava, era todo pisoteado e destruído. Assim, desaforavam

    impiedosamente os habitantes locais, violentando e matando suas esposas (DE LEÓN

    2005, p.190-191).

    O trágico fim desses sujeitos insólitos, qualificados como desumanos e

    atrevidos, foi narrado pelos cronistas espanhóis em um dos maiores exemplos de

    apropriação/mutação de um mito no âmbito do imaginário colonial do Novo Mundo, uma

    vez que da condição de cruéis, vorazes e selvagens, foram transformados em “grandes

    pecadores sodomitas”. Cieza de León observa que:

    2 Tradução nossa: Em espanhol: “Cuentan los naturales por relación que oyeron de sus padres, la cual

    ellos tuvieron y tenían de muy atrás que vinieron por la mar en unas balsas de juncos a manera de grandes

    barcas unos hombres tan grandes, que tenía tanto uno de ellos de la rodilla abajo como un hombre de los

    comunes en todo el cuerpo, aunque fuese de buena estatura, y que sus miembros conformaban con la

    grandeza de sus cuerpos tan deformes, que era otra cosa monstruosa ver las cabezas, según eran grandes,

    y los cabellos que los allegaban a las espaldas. Los ojos señalan que eran tan grandes como pequeños

    platos. Afirman que no tenían barbas, y que venían vestidos algunos de ellos con pieles de animales, y otros

    con la ropa que les dio natura, y que no trajeron mujeres consigo” (DE LEÓN, 2005, p. 150-151).

  • Depois de alguns anos, os gigantes estavam ainda nessa região, e como não

    tinham mulheres, e as naturais não combinavam com eles por sua grandeza,

    ou porque era vício entre eles por conselho e indução do maldito demônio,

    praticavam uns com os outros, o pecando nefando da sodomia, tão gravíssimo

    e horrendo. E na qual, usavam e cometiam publicamente e abertamente, sem

    temor de Deus e pouca vergonha de si mesmos. E todos os nativos afirmam,

    que Deus nosso senhor não se prestando a esconder pecado tão ruim, enviou

    o castigo de acordo com a gravidade do pecado. E assim dizem que, estando

    todos juntos envoltos em sua maldita sodomia, veio fogo do céu terrível e muito

    assustador, fazendo muito barulho, do meio do qual saiu um anjo

    resplandecente com uma espada afiada e flamejante, com a qual, com um só

    golpe, ele matou a todos, e o fogo os consumiu, e não restou senão alguns

    ossos e caveiras que, para memória do castigo, quis Deus que permanecessem

    sem serem consumidos pelo fogo (DE LEÓN, 2005, p. 151).3

    Como podemos perceber, no relato do cronista espanhol, duas personagens do

    imaginário judaico-cristão assumem definitivamente o protagonismo da narrativa, Deus

    e o Diabo, que travam uma batalha acirrada pelas almas desses pecadores: de um lado, o

    Diabo é a figura que induz os homens a praticar o pecado nefando contra a natureza; do

    outro, Deus, não podendo tolerar tamanha insolência, envia o castigo de acordo com a

    gravidade da iniquidade cometida pelos seres terrenos. De todo forma, na variante

    europeia do “mito andino”, sodomia e gigantismo convergem de tal modo, que os gigantes

    se transformam em seres extremos, duplamente inaceitáveis.

    Nesse sentido, são seres monstruosos, deformados e desproporcionados e,

    portanto, irregularidades que se encontram fora do curso normal da natureza. No

    imaginário europeu quinhentista as anomalias eram atribuídas a dois fatores principais:

    Tanto Deus podia criá-las para demonstrar suas maravilhas na terra e o alcance do seu

    poder sobre o mundo terreno, quanto o Diabo, através de suas muitas artimanhas, podia

    corromper a alma, o corpo e a saúde dos homens, provocando deformações e anomalias

    congênitas (PARÉ, 2019, p. 21-22).

    De qualquer forma, ressalta Michel Foucault (2001), as criaturas monstruosas

    são “um fenômeno ao mesmo tempo extremo e extremamente raro [...] o limite, o ponto

    3 Tradução nossa: Em espanhol: “Pasados algunos años, estando todavía estos gigantes en esta parte,

    como les faltasen mujeres, y las naturales no les cuadrasen por su grandeza, o porque sería vicio usado

    entre ellos por consejo y inducimiento del maldito demonio, usaban unos con otros el pecado nefando de

    la sodomía, tan gravísimo y horrendo. El cual usaban y cometían pública y descubiertamente, sin temor de

    Dios, y poca vergüenza de sí mismos. Y afirman todos los naturales, que Dios nuestro señor no siendo

    servido de disimular pecado tan malo, le envió el castigo conforme a la fealdad del pecado. Y así dicen,

    que estando todos juntos envueltos en su maldita sodomía, vino fuego del cielo temeroso y muy espantable,

    haciendo gran ruido, del medio del cual salió un ángel resplandeciente con una espada tajante y muy

    refulgente, con la cual de un solo golpe los mató a todos, y el fuego los consumió, que no quedó sino

    algunos huesos y calaveras, que para memoria del castigo quiso Dios que quedasen sin ser consumidas

    del fuego” (DE LEÓN, 2005, p. 151).

  • de inflexão da lei e é, ao mesmo tempo, a exceção que só se encontra em casos

    extremos...” (FOUCAULT, 2001, p. 70).

    Se no imaginário judaico/cristão o gigantismo violava todos os princípios

    naturais, o mesmo ocorria com a sodomia – o pecado contra natura. Este, compreendida

    todas as relações extravaginais, embora a relação sexual entre dois homens fosse

    considerada o seu ato mais nefando. Constituía-se, tanto de uma violação dos princípios

    morais e éticos, quanto da estrutura da organização familiar tradicional (GRIECO, 2005,

    p. 215). Era, antes de tudo, o pecado que corrompera Sodoma, cidade em que, “o Senhor

    fez chover enxofre e fogo, do Senhor desde os céus...” (GÊNESIS, 19, 24).

    Continuando a narrativa do fogo celeste que consumira os gigantes andinos,

    Agustín de Zárate apresenta uma descrição muito semelhante à de Cieza de León. O

    cronista não faz inicialmente referências a figura do anjo cristão, para concluir na

    sequência, que certamente este fora um castigo divino, tal como o que sofrera a cidade de

    Sodoma:

    Há memória entre os índios, transmitidas de pais para filhos, de muitas

    particularidades desses gigantes, especialmente do fim destes; porque dizem

    [os índios] que veio do céu um jovem resplandecente como o sol, e pelejou

    contra os gigantes, atirando-lhes, chamas de fogo; e assim, os gigantes foram

    recuando a um vale, onde o jovem acabou de matar a todos, por ser, como

    dizem que estas pessoas eram [os gigantes], muito dados ao vício contra a

    natureza, a justiça divina os tirou da terra, enviando algum anjo para isso,

    como foi feito em Sodoma e outras partes...” (ZÁRATE, 1968, p. 10).4

    Os artistas renascentistas não foram de modo algum, alheios à representação do

    tema anunciado por Zárate e Cieza de León. Já na primeira edição da Crónica del Peru,

    impressa em Sevilha, na tipografia de Martín Montesdoca, no ano de 1553, uma

    xilogravura foi inserida para retratar em detalhes o castigo divino que acometeu esses

    pecadores andinos. Na parte mais alta da imagem, envolto em grandes labaredas de fogo,

    encontra-se o anjo celestial, devidamente vestido e apontando uma espada comprida na

    direção dos seus oponentes. Os gigantes, por sua vez, estão assustados e em típica posição

    4 Tradução nossa: Em espanhol: “Hay memoria entre los indios, descendiendo de padres en hijos, de

    muchas particularidades destos gigantes, especialmente del fin dellos; porque dicen que bajo del cielo un

    mancebo resplandeciente como el sol, y peleo con ellos, tirandoles llamas de fuego, que se metian por las

    penas donde daban y hasta hoy estan alli los agujeros senalados; y asi, se fueron retrayendo a um valle,

    donde los acabo de matar todos, por ser, como dizem que estas pessoas eram [os gigantes], muito dados

    ao vício contra a natureza, a justiça divina os tirou da terra, enviando algum anjo para isso, como foi feito

    em Sodoma e outras partes...” (ZARATE, 1968, p. 10).

  • de queda e, suas vestimentas rústicas, dão a entender que foram confeccionadas da pele

    de animais. As longas barbas, típicas dos antigos gigantes gregos5, corrobora com os

    relatos “indígenas” de que esses seres colossais eram forasteiros que teriam vindo habitar

    as terras andinas na aurora dos tempos (fig. 2).

    É interessante observar as analogias entre a gravura inserida na Crónica del Peru

    (fig. 2) e a ilustração do tema da Gigantomaquia (fig. 1): ambas obedecem a cânones

    muito bem definidos, na qual os deuses são representados sempre no alto e em posição

    vitoriosa. Por outro lado, os gigantes são pintados sempre na parte inferior da imagem,

    assustados e em posição de derrota. No entanto, a segunda gravura torna-se ainda mais

    emblemática, quando constatamos sua ressignificação no âmbito do imaginário

    judaico/cristão: como podemos perceber, nessa última ilustração, as personagens do

    panteão grego – Zeus e as demais divindades, são devidamente substituídas pelo solitário

    anjo cristão Miguel, que em diversos textos bíblicos aparece descrito como o príncipe dos

    exércitos celestiais (DANIEL, 10, 13).

    Fig. 2. O anjo celeste castiga os gigantes sodomitas. Ilustração que compõe a Primeira Parte da Crónica

    del Peru, p. 153. Publicada em Sevilha no ano 1553, na tipografia de Martín Montesdoca. Cortesia do The

    5 Conforme observa Robert Graves, os gigantes gregos foram descritos e retratados com cabeleira espessa,

    barbas longa e rugosa (GRAVES, 2018, p. 208).

  • Internet Archive: Disponível em: https://archive.org/details/parteprimeradela00ciez/page/n153. Acesso em: 23 de julho de 2020

    Em sua obra denominada, o Significado nas Artes Visuais, o historiador da arte,

    Erwin Panofsky (2014), observou muito bem essa continuidade dos motivos clássicos,

    que ao surgir com novas roupagens, eram transformados em imagens cristãs

    (PANOFSKY, 2014, 67). Em outro estudo intitulado Tomb Sculpture (1964), Panofsky

    definiu esse processo de “mutação” da imagem com o termo pseudometamorfose,

    utilizado para definir: “O surgimento de uma forma A, morfologicamente análoga, ou

    mesmo idêntica a uma forma B, que, no entanto, não mantém relação alguma do ponto

    de vista genético” (PANOFSKY In: BOIS, 2006, p. 13).

    A análise iconográfica e textual do tema abordado na presente comunicação,

    aponta por ora, que um processo similar ocorrera na representação desses gigantes

    andinos. Assim, o artista da ilustração e também os cronistas espanhóis, se valeram do

    tema clássico e dos seus principais elementos, para produzir tanto uma narrativa

    moralista, quanto uma alegoria essencialmente cristã. Nesse sentido, podemos afirmar

    que o mito clássico se transformou em sua transposição à América, ao incorporar as

    prováveis narrativas andinas e agregar a elas rudimentos próprios do contexto colonial

    europeu no Novo Mundo.

    Considerações finais

    A lenda dos “gigantes andinos” deriva do entrecruzamento de dois imaginários

    distintos: de um lado, nota-se os elementos de uma provável narrativa incaica, na qual o

    gigantismo parece ter surgido para explicar um passado remoto e extremamente caótico.

    Do outro, encontra-se a tradição do mito clássico, em que esses seres colossais foram

    historicamente caracterizados a partir de estereótipos negativos, tanto físicos, quanto

    morais: desmesura, monstruosidade, aparência, insolência, soberba e voracidade. Soma-

    se a isso, o fato do gigantismo ter se associado a sodomia (homossexualidade) nos relatos

    dos cronistas espanhóis, transformando-se assim, por tabela, numa fábula moralista

    fundamentalmente cristã.

    https://archive.org/details/parteprimeradela00ciez/page/n153

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