kerry allyne - doce castigo

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Doce Castigo “The Woll King” Kerry Allyne Aquele beijo dentro do carro foi o começo da sua perdição. Odiar e amar ao mesmo tempo era o martírio de Tracey "Saia deste carro, Tracey! Chega de dar espetáculo com o seu amiguinho!" Foi assim que Tracey viu pela primeira vez Ryan Alexander, seu tutor. Para castigá-la, Ryan levou-a para uma fazenda na Austrália. Lá, Tracey sentia-se consumir em fogo lento, sendo obrigada a conviver com Ryan, a quem detestava e, ao mesmo tempo, desejava. O que ele pretendia? Torturá-la? Enlouquecê-la? Ou simplesmente seduzi-la? Doação do livro: Naiad Digitalização: Joyce Revisão: Alessandra Maciel Colaboração: Alice Maria Copyright: Kerry Allyne Título original: "The Wool King" Publicado originalmente em 1978 pela Mills & Boon Ltd., Londres, Inglaterra Tradução: Lúcia de Barros Copyright para a língua portuguesa: 1985 Abril S.A. Cultural Capítulo I Tracey Alexander caminhava impaciente sobre o carpete grosso e macio da saleta, as mãos enfiadas nos bolsos de trás do velho jeans e uma expressão de revolta no rosto habitualmente sereno. Bem, o fato é que não pretendo ir e ponto final declarou com veemência, dirigindo-se à sua meia irmã Lynette, que a escutava apreensiva,

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Doce Castigo “The Woll King”

Kerry Allyne

Aquele beijo dentro do carro foi o começo da sua perdição.

Odiar e amar ao mesmo tempo era o martírio de Tracey

"Saia deste carro, Tracey! Chega de dar espetáculo com o seu amiguinho!"

Foi assim que Tracey viu pela primeira vez Ryan Alexander, seu tutor.

Para castigá-la, Ryan levou-a para uma fazenda na Austrália. Lá, Tracey

sentia-se consumir em fogo lento, sendo obrigada a conviver com Ryan, a quem

detestava e, ao mesmo tempo, desejava. O que ele pretendia? Torturá-la?

Enlouquecê-la? Ou simplesmente seduzi-la?

Doação do livro: Naiad Digitalização: Joyce

Revisão: Alessandra Maciel Colaboração: Alice Maria

Copyright: Kerry Allyne Título original: "The Wool King"

Publicado originalmente em 1978 pela Mills & Boon Ltd., Londres, Inglaterra

Tradução: Lúcia de Barros Copyright para a língua portuguesa: 1985

Abril S.A. Cultural

Capítulo I

Tracey Alexander caminhava impaciente sobre o carpete grosso e macio da

saleta, as mãos enfiadas nos bolsos de trás do velho jeans e uma expressão de

revolta no rosto habitualmente sereno.

— Bem, o fato é que não pretendo ir e ponto final — declarou com

veemência, dirigindo-se à sua meia irmã Lynette, que a escutava apreensiva,

sentada no sofá.

Com vinte anos, três mais do que Lyn, Tracey era o oposto da irmã. Alta e

magra, tinha cabelos castanhos que lhe caíam em ondas largas sobre os ombros,

olhos verde acinzentados, uma boca expressiva e um queixo voluntarioso. Lyn, por

sua vez, tinha estatura abaixo da mediana, cabelos loiros, curtos e lisos, e uma

expressão no rosto arredondado que demonstrava ingenuidade e indecisão.

— Mas, Tracey… temos que ir! É uma das condições impostas pelo

testamento — lembrou Lyn, numa tentativa de fazer a irmã raciocinar com mais

ponderação.

— Maldito testamento! — exclamou Tracey. — Não sei por que faço parte

dele. Afinal, nem sou uma Alexander por nascimento. Acho ridículo ter de me

submeter a um tutor até completar vinte e três anos. Simplesmente ridículo!

— Provavelmente nosso pai achou que precisaríamos de alguém para zelar

por nossos interesses, com tanto dinheiro em jogo. Do contrário, não teria

imposto essa condição. Além disso… papai não gostava de vê-la saindo com seu

chefe — Lyn acrescentou, depois de uma ligeira hesitação.

— Não há nada de errado com Boyd!

— Como não, Tracey? Ele é casado!

— Separado, Lyn, e isso faz uma diferença enorme.

— Boyd tem quarenta e cinco anos! Papai sonhava com alguém mais jovem

para você.

— Sei disso — Tracey sentou-se diante da irmã —, mas acontece que

rapazinhos não fazem meu gênero. Eles me parecem tão… imaturos! Boyd, pelo

contrário, já não é criança e sabe tirar partido da vida. Ele é muito…

— Experimente?

— Não. Acho que adulto é um adjetivo que o classifica melhor — Tracey

falou com firmeza, mas, diante da expressão preocupada da irmã, procurou se

desculpar. — Lyn, eu não devia estar descontando meu mau humor em cima de

você. Sei que não tem culpa de nada, mas não entendo por que papai fez isso co-

migo. Trabalho e me sustento há dois anos, portanto não há nada que justifique a

necessidade de um tutor.

— O dr. Gatehead, o advogado, disse que não temos escolha; se quisermos

receber a herança que papai deixou, teremos que nos submeter às condições do

testamento.

— Ora essa! Nem sou uma Alexander!

— Mas você foi incluída no testamento, Tracey, e existe nele uma cláusula

que não deixa dúvidas: ou nós duas recebemos a herança ou nenhuma de nós!

— E para recebermos qualquer coisa, precisamos aturar esse tutor, esse

primo desconhecido? Não, muito obrigada. Não faço questão de receber nada.

— Não diga isso, Tracey. Sabe que papai pretendia que o irmão dele fosse

nosso tutor, mas, já que titio faleceu, nada mais justo do que seu filho mais velho

tomar o lugar dele.

— Ora, Lyn… tio ou primo, pouco importa. O fato é que por mim os Alexander

podem guardar seu rico patrimônio e seus tutores também. Não estou disposta a

aceitar nem uma coisa nem outra.

— Mas eu não sou tão autoconfiante ou independente quanto você, Tracey.

Iria me sentir muito mais segura, sabendo que continuaria a fazer parte de uma

família e que teria alguém para tomar conta de mim. Para ser sincera, gostaria

muito de ir para Wirrabilla.

Tracey olhou para a irmã com ternura e compreensão. Pobre Lyn! Tinha sido

muito mimada e a morte do pai a afetara demais. Fazia apenas uma semana que

ele tinha morrido e a garota não conseguira ainda se conformar com as mudanças

que seria forçada a aceitar em sua vida.

As duas irmãs e o pai formavam uma família muito unida. Tracey não havia

conhecido seu verdadeiro pai, que morrera quando ela tinha apenas três meses de

vida. Anos mais tarde, porém, ganhara um segundo pai, Ben Alexander, com quem

sua mãe se casara e tivera uma segunda filha, Lynette. Juntos, o casal e as duas

filhas viviam felizes, até que, sete anos mais tarde, a mãe das garotas falecera,

deixando a pequena Lyn aos cuidados do pai e da irmã mais velha, que tudo

fizeram para protegê-la e ampará-la. O excesso de zelo, porém, fez com que Lyn

se tornasse uma criatura insegura e vulnerável, buscando constantemente apoio

em Tracey e no pai.

— Não se preocupe, Lyn — disse Tracey. — Poderá ir para Wirrabilla, se

quiser. Eles vão compreender a situação se você explicar, estou certa disso.

— Você não gostaria de ir, Tracey? Não está interessada em ver como

funciona uma fazenda no interior? Sempre disse que apreciava esse tipo de vida.

— E é verdade, mas não nas condições impostas pelo testamento. Podem ser

ideais para você, pois estará com gente de sua própria família, mas não para mim.

Acho absurda a ideia de ter um desconhecido dizendo o que posso ou não fazer.

— Mas você sabe que papai ficaria feliz se continuássemos juntas!

— Eu também gostaria de ficar com você, Lyn. Mas não estou disposta a

abrir mão de minha liberdade pessoal. Gosto de sair com Boyd e não vejo razão

para que me impeçam de fazer isso.

Lyn baixou os olhos, desanimada.

— Não pense mais no assunto, Lyn — Tracey tentou tranquilizar a irmã. —

Tenho certeza de que vai gostar da fazenda dos Alexander e de Wirrabilla. É

este o nome do lugar onde ela fica, não?

— Isso mesmo. Mas… vou me preocupar com você.

Tracey riu com vontade.

— Talvez isso até seja bom. Pelo menos assim não vai quebrar a cabeça

pensando na maneira como a família Alexander irá recebê-la.

— Tem razão — Lyn concordou, pensativa. — É estranho pensar que papai

fazia parte desse ramo da família Alexander, uma vez que ele nunca falou a

respeito de ninguém, não acha? Talvez ele fosse considerado como uma "ovelha

negra".

— Pode ser, mas, conhecendo papai tão bem quanto o conheci, acho que ele

resolveu se afastar dos negócios da família para construir sua própria vida.

— Mas isso não justifica o fato de ele não ter nem ao menos se

correspondido com os parentes. É estranho descobrir, de repente, que se tem

tios, tias, primos e primas dos quais nunca se ouviu falar.

— Quantas famílias não perdem o contato por viverem distantes, Lyn? Papai

não seria o primeiro caso.

— Mesmo assim, não acha que ele poderia ter falado sobre sua família?

— Bem que eu gostaria de poder lhe dar uma resposta, Lyn, mas sei tanto

quanto você sobre este assunto. É possível que um dia tenham se desentendido

ou… Bem, nada disso importa, a não ser que estamos atadas a esse tal primo.

— É verdade.

Tracey se levantou. Queria tomar um banho morno e deitar. Estava cansada.

— Você… vai sair hoje? — Lyn perguntou, hesitante.

— Hoje, não. Combinei de sair amanhã à noite.

— Mas não vai poder!

— Por que não?

— Porque o dr. Gatehead mandou nos avisar que nosso tutor virá aqui

amanhã.

— Bem, pelo que sei ele vai ficar em Sidnei uma semana, portanto poderá

muito bem vir nos conhecer num dia em que eu não tenha compromissos.

— Mas, Tracey, não se pode dar um jeito de adiar sua saída? Iria me sentir

mais segura com você a meu lado.

— Ora, Lyn, não seja boba! — Tracey exclamou, já impaciente. — Esse tal

tutor… como é mesmo o nome dele? Ryan?

— Qualquer coisa assim.

— Pois é, ele virá aqui apenas para conhecer você, e não para seduzi-la!

Portanto, não há por que ter medo.

— Mas pense bem, Tracey. Mais cedo ou mais tarde você terá que encontrá-

lo. Não acha que será mais fácil se estivermos juntas?

— Sinto muito, Lyn, mas temos entradas para o teatro e não pretendo

perder o espetáculo. Não se preocupe, qualquer noite destas eu estarei aqui para

conhecer esse primo misterioso. Está bem assim?

— Não tenho outra alternativa, tenho?

— A culpa não é minha, Lyn. Esse tal primo é quem deveria ter se informado

sobre nossa disponibilidade de horário. E se tivéssemos planejado uma orgia para

amanhã?

As duas irmãs deram boas risadas e Lyn ficou mais animada.

— Você é impossível, Tracey! Vou morrer de saudades suas. Não quer mesmo

reconsiderar sua decisão e vir comigo para o interior?

— De jeito nenhum! Sou dona do meu próprio nariz e pretendo continuar

assim.

Já passava da meia-noite quando o carro esporte de Boyd parou em frente à

casa de Tracey. Ela notou que havia luzes na sala e se preocupou, imaginando que

Lyn estivesse acordada à sua espera.

— Vou entrar, Boyd. Lyn ainda está de pé. Deve estar ansiosa para me

contar como foi a conversa com o tal primo.

Boyd chegou mais perto de Tracey e deslizou a mão sobre os ombros dela,

até alcançar o pescoço fino e macio. Acariciou a pele suave e sentiu uma onda de

desejo dominá-lo. Puxou-a então para mais perto e apertou-a nos braços,

apoderando-se em seguida dos lábios quentes e sensuais de Tracey. Por um mo-

mento ela se abandonou naqueles braços, mas logo depois tentou se livrar do

beijo que se prolongava demasiadamente. Não era comum o namorado ser tão

expansivo e ela estava impaciente para entrar.

— Não, Boyd… por favor… — Tracey procurou afastá-lo. Mas Boyd parecia

não escutá-la. Afastou com a mão o xale que cobria os ombros frágeis de Tracey

e lhe acariciou a pele vibrante e quente, para depois roçar os lábios no pescoço

macio dela.

— Tracey, minha querida. Desejo você! Gostaria que…

Mas Boyd não conseguiu terminar seu pensamento, pois foram surpreendidos

pelo ruído da porta do carro que se abria rápida e inesperadamente. Sem

entender nada, deram com um desconhecido que se inclinava para dentro do

veículo.

— Você é Tracey Alexander? — o homem perguntou.

O casal estava em choque, ambos assustados com aquela invasão de sua

privacidade. Mesmo assim Tracey balançou a cabeça afirmativamente. O

desconhecido então a segurou pelo braço com força.

— Sou Ryan Alexander, seu tutor — anunciou ele, enquanto a puxava para

fora do carro, até fazê-la ficar de pé, ao seu lado, embaraçada, sem jeito e

furiosa!

— Como ousa agir assim? — ela perguntou, indignada.

— Olhe aqui, seu… — Boyd começou a dizer.

O tutor, entretanto, não se abalou com a reação dos dois e continuou a se

dirigir a eles no mesmo tom calmo e controlado.

— Acho melhor ir embora, sr. Wilcox. Sei que mora bastante longe. —

Tracey ficou irritada. O que Lyn teria contado àquele maldito primo se ele já

sabia até o sobrenome de Boyd e onde ele morava?

— Não vou embora coisa nenhuma! — respondeu Boyd.

— Por favor — Tracey interferiu. — Estou bem. Pode deixar que eu resolvo

este problema. Vejo você amanhã, no escritório.

Boyd hesitou ligeiramente, mas, vendo que Tracey parecia calma e segura,

resolveu concordar. Deu meia-volta, entrou no carro, e saiu segundos depois

ruidosamente.

Sem largar o braço de Tracey, Ryan Alexander a conduziu em direção à

casa, com passos largos e rápidos.

— Entre logo, sua… sua… Você parece uma dessas… dessas mulheres que só

se ocupam à noite.

Tracey teve vontade de esbofetear aquele homem pela insolência, mas

preferiu usar de ironia.

— Você deve falar com conhecimento de causa, porque, provavelmente, é

esse o único tipo de mulher com quem se relaciona!

Preferindo evitar uma resposta à altura daquele comentário mordaz, Ryan

Alexander apertou com mais força ainda o braço de Tracey, e praticamente

empurrou-a até a sala de estar, onde fez com que ela se sentasse, afundada numa

das poltronas.

Não havia dúvidas de que ele era forte e, puxa, como era grande! Tinha os

ombros largos, sua estatura era bem acima da média e não havia em seu corpo

atlético o menor vestígio de gordura supérflua. Tracey observou-o com atenção,

desde os cabelos escuros e lisos, que caíam displicentemente sobre a testa, até

os olhos muito azuis, a pele bronzeada, própria de quem vive ao ar livre, o nariz

reto, a boca sensual e o queixo anguloso. Ele devia ter trinta e um anos… um

pouco mais, talvez.

Intimamente, admitiu que, por mais arrogante e autoritário que ele fosse,

era sem dúvida um homem e tanto! Não seria fácil agir com frieza diante dele.

— Onde está Lyn? — ela perguntou, numa tentativa de quebrar o silêncio e

afastar os pensamentos descabidos numa situação como aquela.

— Já foi se deitar há muito tempo e é o que você também deveria ter feito,

em vez de ficar namorando no carro.

— Se não gostou do que viu, deveria ter virado o rosto para o outro lado.

— Quem se expõe numa via pública, corre o risco de ser observado.

— Ora, deixe de bobagens! Havia um único carro estacionado do outro lado

da rua e ele estava vazio!

— Engana-se, garota. Eu estava dentro dele e pude assistir ao espetáculo

que estava dando.

Atrevido! Tracey gostaria de lhe dar uma boa resposta. Mas não estava

disposta a discutir sobre sua atitude no carro. Afinal, não tinha feito nada

demais e, se ele não tinha gostado do que vira, azar dele!

— Bem, posso saber por que continua aqui, uma vez que Lyn já foi dormir?

Calculei que já tivesse ido embora.

— Devo deduzir, portanto, que está chegando a esta hora da noite porque

tentou evitar um encontro comigo?

Tracey riu com sarcasmo.

— É o que pensa? Que voltei tarde de propósito, apenas porque não queria

vê-lo? Pois fique sabendo que pouco me importa quem você é, o que faz ou para

onde vai. Não tem qualquer controle sobre minha pessoa!

— Não é bem isso que diz este documento que tenho nas mãos — Ryan disse,

tirando do bolso um envelope grande e mostrando-o a ela.

Tracey levantou o queixo, numa atitude de desafio. Tinha chegado a hora de

deixar bem clara sua posição: não sairia de Sidnei!

— Não quero saber desse documento. Não pretendo deixar a cidade para me

enfiar numa fazenda no fim do mundo. Aliás, Lyn já deve ter lhe falado sobre

isso. Não sei por que, então, continua insistindo.

— É hábito da família Alexander tomar conta de seus membros.

— Mas não sou uma Alexander! Não, de verdade!

— Seu nome neste documento prova que está mentindo.

— Então… então vou mudar de nome. Vou me casar com Boyd.

— Quer me explicar como, uma vez que o tal homem tem uma esposa?

Tracey percebeu que ele sabia muito mais do que ela imaginara.

— Boyd está tratando do divórcio — afirmou, tentando aparentar uma

segurança que não sentia. Na verdade, Boyd tinha falado sobre o divórcio, mas

não tomara qualquer providência no sentido de obtê-lo.

— Posso ler em seu rosto que as coisas não são exatamente como você diz.

Pelo que pude presenciar esta noite, aquele homem não está pensando em

casamento.

Ryan estava indo longe demais, invadindo sem limites sua privacidade e

Tracey sentia o sangue ferver nas veias.

— O que faço e com quem ando não é da sua conta! — exclamou com raiva.

— Está se esquecendo novamente do documento que me fez seu tutor.

— Esse papel miserável não vai me impedir de casar com quem eu quiser.

— É o que você pensa. Até completar vinte e três anos, só poderá se casar

com meu consentimento.

— Ah! Meu Deus! Isto deve ser um pesadelo! Não vejo por que precisaria de

sua aprovação para me casar. Isso é um absurdo!

— Entenda de uma vez por todas que eu, Ryan Alexander, fui nomeado seu

tutor e guardião dos bens da família, até que você complete vinte e três anos.

— Não, não e não! Eu me recuso a aceitá-lo como tutor, guardião, ou o que

quer que queira se intitular. Não vou me submeter a essa loucura e ninguém vai

me convencer do contrário. Estamos entendidos?

— Acho que está se esquecendo de Lyn.

— Ela não tem nada a ver com minha decisão.

— Como não? Caso insista nessa tolice de desobedecer às exigências do

testamento, sua irmã perderá o direito à herança. Será que seu egoísmo chegará

a tanto?

— Não se trata de egoísmo. Apenas não compreendo por que fui incluída

nesse testamento. Não nasci uma Alexander.

— Todavia, o testamento diz que ou ambas concordam com os termos nele

expressos ou nenhuma das duas receberá nada.

— Isso é chantagem!

— Mas foi o desejo de seu padrasto.

Tracey refletiu por um momento. Seu pai era contra seu namoro com Boyd,

mas nunca sequer suspeitara de que ele fosse capaz de lançar mão de recursos

tão extremos para impedi-la de continuar aquele relacionamento. Além disso, ele

morrera certo de que ela continuaria a cuidar de Lyn e que nunca abandonaria a

irmã.

— Não concordo com esse testamento e vou dar início a uma ação judicial

para contestá-lo — falou com calma, embora reconhecesse que aquela era uma

ameaça vazia.

— Ninguém pode impedi-la de tentar. Mas me sinto no dever de alertá-la

para o fato de que esses processos levam muitos anos para chegar ao fim. Até lá,

continuarei sendo legalmente seu tutor, não se esqueça disto. Assim, é possível

que, ao invés de esperar até completar vinte e três anos, você acabe tendo que

esperar até trinta e três.

— Ainda bem que é bastante rico para se dar a esses caprichos! — ela disse,

cheia de revolta.

— Realmente, é uma vantagem.

— Vou pedir ajuda a Boyd — arriscou Tracey, sem ter mais o que dizer.

— Pelo que presenciei hoje, não creio que ele esteja disposto a enfrentar o

mundo por você, Tracey. O homem a deseja, isso estava bem claro, mas acha que

terá paciência suficiente para esperá-la por mais dois anos e meio, até que possa

se ver livre de mim?

— Não dê palpites num assunto que desconhece. Não pode dizer como Boyd

vai agir.

— Por que não pergunta a ele amanhã, no escritório? Estou interessado em

saber a resposta dele.

— Acha assim tão impossível que Boyd queira me ajudar?

Ryan caminhou até a lareira, tirou um cigarro do bolso, acendeu-o e deu uma

longa baforada.

— Não é bem isso. É que duvido que ele esteja disposto a ajudar você sem

receber alguma coisa em troca… e é bem fácil imaginar o que ele gostaria de

receber como pagamento por sua generosidade, não acha?

Boyd seria capaz de fazer cobranças desse tipo a ela? Será que imporia

condições para ajudá-la a sair daquela situação absurda? Embora tivesse dúvidas,

Tracey não estava disposta a dar o braço a torcer. O tal Ryan era um estranho e

ela fazia questão de que ele permanecesse como tal.

— Não deve julgar Os outros por seus próprios padrões, sr. Alexander —

disse, agressiva.

— Estou tirando minhas conclusões pelo que vi hoje. Pensando bem, talvez

você já tenha até concordado com as condições do sr. Wilcox.

— Puxa! Você sabe ser realmente insuportável! Primeiro me aparece no

carro, só para estragar uma noite agradável. Depois me arrasta para dentro de

casa e me desfia uma série de regras que devo seguir durante os próximos dois

anos e meio. Finalmente, duvida da minha conduta, fazendo sugestões horríveis

em relação ao meu comportamento! — Tracey exclamou, perdendo a calma

aparente, as faces coradas pela raiva. — Bem, agora que já arruinou meu bom

humor, quer ter a gentileza de ir embora? Não há mais nada a dizer. Além disso,

estou cansada e quero ir para a cama.

Com ironia no olhar, Ryan deu uma última tragada no cigarro e o atirou na

lareira. Depois se aproximou de Tracey, que, instintivamente, recuou. Mesmo

assim, Ryan segurou-lhe o queixo pequeno nas mãos, e ficou observando

longamente aqueles olhos muito verdes, enquanto com o polegar acariciava-lhe as

faces rubras, fazendo-a estremecer.

— Se tivesse chegado em casa mais cedo, não estaria tão cansada, nem teria

essas olheiras profundas, minha querida.

Tracey respirou fundo, com uma resposta àquela provocação na ponta da

língua. Mas Ryan largou-a, subitamente, e se encaminhou para a porta. Tracey o

seguiu como se quisesse se certificar de que ele iria mesmo embora. Ao chegar no

terraço, entretanto, Ryan se voltou para ela com um sorriso maroto nos lábios.

— Ah! Não se esqueça de me contar sobre a opinião do tal Boyd a respeito

do nosso assunto, Foguinho — ele disse, zombeteiro.

— Não me chame de Foguinho! — ela gritou, enquanto Ryan descia

calmamente os degraus para logo depois entrar em seu luxuoso carro e arrancar

ruidosamente.

Assim que o carro dobrou a esquina, Tracey entrou em casa. Fechou a porta

e encostou-se nela, exausta. Precisava de um bom sono para se recuperar de toda

a irritação que aquele homem lhe causara. Apagou as luzes e foi para o quarto.

Mas apesar do extremo cansaço não conseguiu dormir como esperava. Ficou

se debatendo na cama, de um lado para outro, tendo sensações de frio e calor

alternadamente.

Afinal, quando conseguiu dormir, seu sono foi entrecortado por pesadelos

em que Ryan Alexander era o personagem principal.

Capítulo II

Já passava das sete e meia da manhã quando Lyn entrou no quarto da irmã.

— Acorde, Tracey, senão vai acabar chegando tarde no escritório.

Tracey se espreguiçou e rolou na cama, forçando os olhos a se abrirem. Suas

pálpebras estavam pesadas.

— Obrigada, Lyn — ela respondeu, com voz rouca.

Sentia a garganta seca e dolorida. Sentou-se na cama e teve a impressão de

que sua cabeça ia arrebentar de tanta dor.

— Minha nossa! Estou me sentindo péssima! Acho que peguei uma bela gripe.

— Talvez fosse melhor você não ir trabalhar — Lyn sugeriu. As palavras da

irmã, entretanto, evocaram a lembrança dos acontecimentos da noite anterior e

Tracey tomou uma resolução de imediato, saltando rapidamente da cama.

— Nada disso, Lyn. Não posso deixar de ir ao escritório hoje. Tenho umas

coisas para decidir com Boyd.

— Por que não liga para ele e conversa por telefone?

— Não é conversa que se possa ter a distância. Tenho mesmo que ir.

Saiu do quarto, tomou banho e se vestiu. Sentia-se mal, tinha calafrios e a

cabeça lhe doía, mas tinha que reagir para enfrentar Boyd cara a cara, nem que

fosse apenas para provar que Ryan Alexander estava redondamente errado em

seus julgamentos.

Tomou café rapidamente e mal ouviu a conversa da irmã, que falava sobre a

visita do primo Ryan, na noite anterior. Seus pensamentos estavam distantes dali,

sua segurança, abalada.

Depois de se despedir de Lyn, saiu e em poucos minutos entrou num ônibus.

Foi bom poder sentar-se novamente: estava mais morta que viva, os calafrios

cada vez mais fortes, os músculos doloridos. Espirrava toda vez que a porta do

ônibus abria para apanhar um passageiro, deixando um ventinho desagradável

passar.

Finalmente chegou ao escritório, depois de um trajeto de minutos que

parecia ter levado horas. Foi diretamente para sua sala e, mal teve tempo de

guardar a bolsa na gaveta, Boyd apareceu para falar com ela.

— Venha até meu escritório, Tracey. Poderemos conversar sem que nos

interrompam.

Tracey seguiu o namorado até a sala bem decorada e sóbria. Mal Boyd

fechou a porta, se aproximou dela, os braços estendidos, pronto para beijá-la e

abraçá-la. Mas Tracey se esquivou, sentando-se na poltrona de couro em frente à

mesa dele.

— Sinto muito, Boyd, mas não me sinto nada bem — ela se desculpou.

Imediatamente ele se aproximou, sinceramente preocupado.

— Não devia ter vindo trabalhar, Tracey. O que, afinal, aconteceu ontem à

noite?

— Não tem nada a ver com ontem à noite. É que peguei uma gripe muito

forte e devo estar com febre.

— Pobrezinha! — Boyd segurou-lhe as mãos frias. — Não acha que deveria ir

para casa e se deitar um pouco?

Isso era o que mais desejava fazer, mas precisava antes esclarecer a

situação.

— Pensei mesmo em ficar em casa, mas queria conversar com você. Sabe, o

primo de Lyn, aquele homem que apareceu ontem à noite no carro, insiste em

levar minha irmã e eu para sua propriedade rural, em Wirrabilla. Teremos que

ficar sob sua guarda, para cumprir uma das cláusulas do testamento de papai.

Boyd ficou pensativo e foi sentar-se em sua mesa.

— Eu devia ter imaginado que aquele homem ia criar caso. A atitude dele

ontem à noite foi extremamente desagradável. Mas esse é o problema com os

fazendeiros ricos: se acham os donos do mundo, capazes de criar suas próprias

leis. São verdadeiros senhores feudais e esperam que o mundo se curve diante

deles — Boyd apertou os olhos. — Não existe uma maneira de você se livrar dessa

condição estúpida que seu padrasto impôs?

— Não sei. Mas cheguei a dizer que abriria um processo judicial para

contestar o testamento.

— E ele? Como reagiu?

— Tranquilamente. Limitou-se a me informar sobre os altos custos desses

processos e disse que eu deveria saber que vou levar mais tempo para ficar livre

dele com o processo do que se aceitar simplesmente a tutela.

— Compreendo. É bem verdade que ele conseguiria isso, se realmente

quisesse. Os custos de um processo são elevados e a justiça pode se tornar muito

lenta, se a pessoa souber mexer os pauzinhos.

Tracey sentiu que sua última esperança estava se desvanecendo.

— O que posso fazer, Boyd? — perguntou, temerosa. — Não quero sair de

Sidnei.

Ele se inclinou para a frente.

— Talvez eu possa ajudá-la, de alguma maneira.

— Como? Poderia me ajudar a enfrentar o processo?

— Acho que seria inútil. Alexander já a preveniu de como vai agir se fizer

isso. Não acredito que valha a pena arriscar dinheiro num caso que já está

perdido antes de começar. — Calou-se por um momento e prosseguiu: — Não era

essa minha ideia. Estava pensando em… tomar conta de você.

Tracey ficou na expectativa, desejando que as suspeitas de Ryan Alexander

não se confirmassem.

— Como assim? Pode ser mais claro? — perguntou, receosa. Boyd estendeu

as mãos sobre a mesa, para pegar as dela, mas Tracey evitou o contato.

— Bem… moro numa casa pequena — ele começou —, mas tem espaço

suficiente para abrigá-la. Não posso lhe oferecer muito, mas terá sempre um

teto sobre sua cabeça. — Hesitou por um instante e continuou: — Não haverá

compromisso da parte de nenhum de nós dois, mas posso providenciar um lugar

para você viver enquanto decide como agir para enfrentar Alexander.

Tracey recostou-se na cadeira. Agora sua cabeça latejava ainda mais, os

joelhos tremiam e seu corpo estava mole e dolorido. Meu Deus! Então Ryan

Alexander estava certo! Boyd tinha afirmado que não haveria compromisso entre

eles, porém não duvidava mais qual seria o preço que teria de pagar para ter um

teto sobre sua cabeça. Caso aceitasse a proposta dele, sabia exatamente o que a

esperava.

Levantou-se desanimada e encarou Boyd com determinação no olhar.

— Sinto muito, mas isso não daria certo.

Boyd levantou-se apressadamente e foi para junto dela, procurando abraçá-

la.

— Acho que não entendeu direito minha sugestão, querida. Ao lhe oferecer

proteção, estou apenas querendo lhe dar uma oportunidade de se livrar de toda

essa confusão — argumentou, procurando parecer sincero, mas sem conseguir

dissimular um estranho brilho nos olhos.

Como não havia percebido isso antes? Tracey perguntou a si mesma. Boyd

nunca tivera a intenção de se divorciar realmente da esposa e ela tinha sido uma

boba em acreditar que ele faria isso. Levara seis meses para descobrir o que

Ryan Alexander percebera em poucos minutos. Esforçando-se para caminhar com

firmeza, afastou-se de Boyd, lutando para que seu rosto não traísse sua

decepção.

— Vou tirar o dia de licença, Boyd — ela anunciou. — Não estou bem e

preciso de descanso para me livrar desta gripe.

— Tracey… — Boyd murmurou, aproximando-se dela para abraçá-la.

Mas aquele era o fim para eles, e Tracey, depois de se esquivar dos braços

do chefe, caminhou para fora da sala, fechando a porta atrás de si. Foi até sua

mesa, pegou a bolsa e saiu do escritório.

Só na rua é que percebeu que estava começando a chover. Só faltava essa!

Ia ficar encharcada para chegar até o ponto de ônibus. Se, pelo menos, ele viesse

logo…

A luz do dia se apagava por trás de nuvens cor de chumbo quando Lyn

chegou em casa, os braços carregados com dois pacotes de supermercado. Assim

que entrou, viu a bolsa de Tracey sobre o sofá e ficou preocupada. A irmã nunca

chegava tão cedo, o que teria acontecido? Foi até o quarto de Tracey e abriu a

porta com cuidado.

— Está acordada? — perguntou, baixinho.

— Agora estou, mas passei o dia todo cochilando.

Lyn aproximou-se da cama e notou que os olhos da irmã brilhavam de febre.

— Vou pedir para que o dr. Hamilton venha vê-la, Tracey — disse,

preocupada.

— Não é preciso, meu bem. Quando saí do escritório passei pelo consultório

dele. O dr. Hamilton me examinou e receitou alguns remédios. Já tomei a

primeira dose e terei que tomar a segunda na hora do jantar. Estou com uma

gripe terrível.

— Quer que lhe traga alguma coisa? Chá ou café?

— Gostaria muito de um chá, por favor.

— Num minuto — Lyn disse solícita, enquanto saía correndo do quarto.

Tracey olhou pela janela e viu que a chuva continuava a cair com intensidade.

Hum… ia ser gostoso tomar um chá quente e voltar a dormir. Percebeu um barulho

de vozes que vinham da cozinha e o riso alegre de Lyn. Com certeza alguma

vizinha tinha passado por lá e estavam conversando.

Estava quase cochilando de novo, quando ouviu a porta do quarto se abrir.

Rapidamente sentou-se na cama, pronta para, tomar seu chá quentinho. Qual não

foi sua surpresa ao dar com Ryan Alexander à sua frente. Instintivamente, puxou

as cobertas até o queixo, procurando esconder o que a camisola transparente

deixava à mostra.

— O que está fazendo aqui? — indagou, sobressaltada. — E ainda por cima

no meu quarto?

Os olhos azuis de Ryan observaram detalhadamente o quarto e sua ocupante.

Reparou nas faces de Tracey, coradas pela febre, em seus cabelos longos e

revoltos, e não deixou de perceber seu gesto de defesa ao puxar as cobertas

para se proteger. Um sorriso leve iluminou o rosto dele.

— Vim lhe trazer o chá — anunciou. — Para ser sincero, queria me certificar

de que estava realmente doente. Pensei que fosse fingimento seu.

— Por que eu deveria fingir?

— Talvez para me evitar novamente.

— Como poderia? Nem sabia que você viria aqui!

— Lyn não tinha lhe dito?

Era possível que sim. Afinal, Lyn dissera muitas coisas durante o café da

manhã, mas sua mente estava ocupada demais com seus próprios problemas para

prestar atenção a outras coisas.

— Pode ser que ela tenha dito — admitiu. — Não me lembro.

— Tinha outras coisas mais importantes em que pensar, não é?

— Outras coisas? Quais, por exemplo?

— Na maneira como Boyd Wilcox agiria para salvá-la de seu monstruoso

tutor.

— Talvez ele não tivesse nenhuma ideia — Tracey disse, evasiva —, ou, quem

sabe, eu poderia sumir quando você não estivesse por perto…

A reação de Ryan foi instantânea. Num gesto rápido, ele agarrou o braço

dela encarando-a ameaçadoramente.

— Aconselho-a a não fazer esse tipo de tolice, do contrário vai se

arrepender muito, entendeu bem?

— Nada poderia ser pior do que a situação absurda em que me encontro —

Tracey revidou, puxando o braço. — Numa coisa Boyd tinha razão: vocês,

fazendeiros ricos, pensam que podem dominar o mundo! Já é tempo de alguém

lhes mostrar que são iguaizinhos aos outros mortais!

Ryan começou a rir, gostosamente.

— E você vai ser esse alguém, não é, Foguinho?

— Não pense que sou uma adversária fácil. Caso ainda não tenha percebido,

vou lhe dizer de forma bem clara: não tenho a menor intenção de seguir suas leis

às cegas, obedecendo a tudo como um animalzinho bem treinado.

— Ora, viva! Pelo que disse, posso deduzir que acabou aceitando os termos

do testamento de Ben Alexander. Então, está pronta para ficar sob minha

guarda, como minha tutelada?

— Tutelada de um fazendeiro caipira! Que bela situação! — exclamou

Tracey, odiando a si mesma por ter se rendido àquela exigência.

— Não venha descontar seu mau humor em cima de mim — disse Ryan com

voz pausada e firme. — Não tenho culpa se seu Romeu não correspondeu às suas

expectativas.

Tracey ficou calada.

— Por falar nisso, que sugestões Boyd Wilcox apresentou, para ajudá-la a

sair dessa situação? Então ele vai apoiá-la em sua luta pela liberdade? Ou teve

outras ideias, um pouco mais picantes, para resolver seu dilema?

— Qualquer que tenha sido a proposta, foi sem dúvida excelente se

comparada ao fardo de ter você como tutor.

— Pois a aconselho a esquecer as propostas daquele sujeito — disse Ryan

ameaçadoramente. — Você está fazendo o possível para ser desagradável, mas

devo avisá-la de que minha paciência está por um fio. Tome cuidado, garota, ou

farei meu tacão de tutor cair pesadamente sobre você!

Aquilo era demais. Como poderia aceitar uma tal manifestação de

autoritarismo? Como aquele homem ousava mandar nela e ameaçá-la, como se ela

fosse uma criança levada? Não, ele não tinha esse direito, mas, de qualquer modo,

seria prudente não se arriscar mais. Dali por diante usaria apenas de ironia e sar-

casmo, que quando bem aplicados atingiam mais fundo do que palavras ásperas.

— Nunca pensei que fosse possível ficar pior do que já estou — Tracey

resmungou.

Ryan endireitou o corpo e ficou de pé. Tracey se impressionou de ver como

ele era alto, forte e musculoso.

— É mesmo? — Ryan indagou, — Então foi bom eu ter prevenido você, não

foi? Do contrário, poderia pensar que seria possível me desafiar e sair impune. —

Ryan deu as costas a Tracey e encaminhou-se para a porta

— Vá para o inferno! — ela gritou, incapaz de conter sua revolta por mais um

segundo.

— Nem precisa me rogar essa praga, Foguinho. Vou conviver com você nos

próximos anos, por isso tenho certeza de que logo, logo irei para lá.

Dizendo isso, Ryan saiu do quarto, não dando tempo para Tracey articular

uma resposta.

O rosto dela queimava de febre e ódio por aquele maldito homem. Será que

ele iria dizer sempre a última palavra? E ela, como uma adolescente idiota, ainda

o achava atraente e sensual! Jogou-se de bruços sobre os travesseiros e

esmurrou-os como se fossem o próprio rosto de Ryan.

Como poderia tolerar viver sob o mesmo teto com aquele ditador? Tinha que

encontrar uma maneira de se livrar de Ryan ou de fazê-lo se lastimar pelo dia em

que aceitara ser seu tutor!

Um sorriso de vitória apareceu nos lábios de Tracey, alegrando seu rosto

antes carrancudo. Sim! Era isso mesmo! Tinha encontrado, afinal, o rumo a seguir!

Ryan Alexander também não gostava da ideia de ser o tutor de uma jovem tão

rebelde! Aí estava a solução! Iria fazer tudo o que pudesse para que ele se

arrependesse amargamente de tê-la como sua tutelada. Ele ia se desesperar por

precisar aguentá-la na propriedade da família e pediria a Deus que fizesse o

tempo passar bem depressa, para que ela logo completasse os vinte e três anos

de idade e saísse de sua vida.

Ryan não a chamara de Foguinho? Pois faria jus ao apelido. Mostraria a ele

que sabia ser rebelde!

Ajeitou-se sob as cobertas. Agora já se sentia bem melhor. Tinha planos

definidos em mente. Faltava somente colocá-los em prática. Bem… pelo menos,

Ryan era uma companhia estimulante. Fizera com que ela se esquecesse até dos

sintomas desagradáveis da gripe e agora precisava ficar forte e bem-disposta

para enfrentá-lo com vigor e segurança.

Mais tarde, Lyn levou o jantar para a irmã.

— Está melhor? — perguntou.

— Acho que sim. Seu primo já foi embora?

— Já.

— Por que, afinal, ele veio aqui hoje?

— Eu o convidei. Tinha falado com você sobre isso hoje de manhã, durante o

café. Lembra-se?

— Estava me sentindo tão mal que não me lembro de nada.

— Não podia prever que você ficaria gripada Tracey, e achei que ia querer

discutir algumas coisas com Ryan, antes de deixarmos Sidnei. — Um sorriso de

serenidade apareceu no rosto da jovem. — Que bom você ter decidido ir conosco!

Pobre Lyn! Acreditava que restava algum poder de decisão à sua irmã,

quando na verdade ela estava indo para Wirrabilla sob coação do despótico Ryan

Alexander.

— Acha que temos alguma coisa para resolver, Lyn?

— Claro! Precisa apresentar o pedido de demissão ao seu chefe, precisamos

resolver o que vamos levar e arranjar tudo para pôr a casa à venda…

— O quê? Que ideia louca é essa?

— Foi sugestão de Ryan, Tracey. Como sabe, ele é o executor do testamento

de papai e disse que, uma vez que não vamos morar aqui, o melhor a fazer será

vender a casa.

— Bem… não concorda que eu tenho direito de dar minha opinião sobre o

assunto?

— Claro, mas… já que não vamos morar mesmo aqui…

— Está certo que não vamos usar a casa nos próximos anos, mas também é

mais do que certo que não pretendo passar o resto da minha vida naquele fim de

mundo, que é a fazenda dos Alexander.

— Ryan é o executor do testamento, Tracey. Por isso a última palavra sobre

o que fazer com a casa será dele, não é?

Tracey sacudiu os ombros, desanimada. Lyn estava certa, também naquele

assunto a decisão cabia a Ryan. Estavam de mãos e pés atados, completamente

entregues à vontade daquele homem.

— Não vai ficar triste se a casa for vendida, Lyn?

— Sei que vou sentir saudades daqui, mas… Ryan me contou tanta coisa

sobre Nindethana que…

— Sobre o quê?

— Nindethana. Esse é o nome da propriedade da família. Significa "nossa".

"Nossa". O nome da propriedade demonstrava claramente o forte

sentimento de posse que Ryan Alexander e sua família pareciam ter em dose

gigante. Só não entendia por que tinham usado a palavra na língua aborígine e não

no inglês, que deixaria ainda mais bem caracterizado quem era o dono daquelas

terras.

— O que foi que Ryan lhe contou? — Tracey indagou, por fim.

O rosto de Lyn se animou, feliz ao pensar que a irmã poderia estar

começando a se interessar pela história dos Alexander.

— Ele falou muito sobre a família. Temos avô, tios, tias e primos. Glen, o

irmão mais novo de Ryan, se casou há pouco tempo. Lembro-me de ter visto a foto

dele e da esposa publicada nos jornais. Uma de nossas tias, Nancy, tem uma filha

de dezoito anos, chamada Carol. Não é ótimo ter uma prima com a mesma idade

da gente?

— É — Tracey concordou, sem animação. — Todos eles moram na mesma

fazenda? Não é gente demais para uma casa só?

— Apenas nosso avô mora em Nindethana com Ryan. Glen mudou-se depois

que se casou e os outros membros da família também moram em casas separadas.

— Pelo que está me contando, suponho que Ryan seja solteiro.

— É, sim — Lyn confirmou, sorrindo.

— Então vamos nos mudar para uma casa onde só vivem dois homens? Vamos

ser as únicas mulheres por lá?

— Não. A governanta, sra. Gray, está sempre lá, assim como as esposas dos

trabalhadores da fazenda.

— Tem muita gente trabalhando para eles?

— Isso eu não sei, não perguntei, mas suponho que sim. Pelo que Ryan falou,

a fazenda deve ser muito grande. Pelo menos para mim, pareceu enorme.

— Sabe quantos alqueires tem?

— Não tenho muita certeza se Ryan falou em dezoito mil ou oitenta mil.

— Sem dúvida deve ter oitenta mil alqueires! — Tracey afirmou com

veemência.

— Como sabe? Você perguntou a ele?

— Não, mas, pela mania de superioridade que Ryan tem, a fazenda dele só

pode ser imensamente grande!

— Não fale assim, Tracey. Ele é nosso primo.

— Ryan Alexander não é meu primo, Lyn. Não tenho outra alternativa senão

aceitá-lo como tutor, mas isso não implica considerá-lo parente.

Lyn achou que era hora de mudar de assunto, e passou a conversar sobre

coisas banais. Depois de algum tempo Tracey voltou a mencionar a partida.

— Quando vamos nos mudar para o interior?

— Ficou marcado para a segunda-feira da próxima semana. Sabe, parece

incrível, mas não vejo a hora de ir.

Tracey ficou mais contente. Pelo menos a irmã aceitava aquelas mudanças

em sua vida com calma e entusiasmo. E ela mesma? Como se sentia?

Ficaria satisfeita em receber apenas uma pequena parcela da herança e

poder continuar em Sidnei, onde já estava acostumada a viver, com seu trabalho

e seus amigos. Seria fácil encontrar um apartamento pequeno para dividir com

uma ou duas amigas, onde poderia levar a vida com calma e liberdade. No entanto,

dali para a frente, não teria a chance de deliberar sobre sua própria vida. Talvez

até seu cérebro regredisse! Afinal, teria um tutor que decidiria tudo por ela.

Um tutor! Só de pensar nisso ficava furiosa. Não era criança, nem débil

mental para precisar de alguém que guiasse seus passos! Só de pensar que o

possessivo e mandão Ryan Alexander iria determinar o que ela podia fazer ou

deixar de fazer, sentia vontade de mandá-lo de novo para o inferno!

Teria que aguentá-lo até completar vinte e três anos! Aquilo era tempo

demais e o ditador já começara a dar suas ordens, que esperava serem

prontamente cumpridas!

Ryan já tinha decidido: partiriam na próxima segunda-feira e nem ao menos

perguntara a ela se teria condições de aprontar tudo até aquele dia. A sorte já

estava lançada e Tracey suspirou, sentindo a revolta crescer em seu peito.

Capítulo III

O dia estava perfeito, o céu azul e sem nuvens, quando tomaram o carro que

os levaria até o aeroporto de Bankstown. Na pista, o avião particular de Ryan, um

Piper Arrow, se preparava para decolar e voar até Wirrabilla.

Em pouco tempo as malas foram colocadas no avião e os três tomaram seus

lugares: Ryan assumiu o controle do aparelho e Lyn instalou-se ao lado dele,

enquanto Tracey sentava-se no banco de trás, para evitar qualquer conversa com

seu tutor.

Ele fez os últimos contatos com a torre e, minutos depois, o avião decolou.

Tracey recostou-se na poltrona e ficou refletindo sobre os acontecimentos dos

últimos dias: a gripe forte, a maneira ditatorial com que Ryan a forçara a

acompanhá-lo, o momento desagradável em que entregara o pedido de demissão a

Boyd e as súplicas dele para que desistisse da viagem e mudasse para sua casa.

Lembrava-se também dos rituais melancólicos do fechamento de sua casa e

do transporte de todos os objetos e móveis para um quartinho que haviam

alugado para guardar esse material. Um dia, quem sabe, voltariam a morar

sozinhas e assim já teriam a casa montada.

Tinha sido doloroso se despedir dos amigos e arrumar as malas. Tomar

aquele avião fora como assinar um documento de renúncia à própria liberdade.

Mas a lembrança que mais abalava Tracey ainda era a da constante presença de

Ryan em todos esses acontecimentos. Ele estivera sempre ali, mandando e deci-

dindo as coisas, com um tal magnetismo e carisma, que já parecia fazer parte

integrante de sua vida e da de sua irmã. Como poderia suportá-lo? Seus vinte e

três anos parecia que não chegariam nunca!

Colocou os óculos escuros para proteger a vista contra a luz intensa do sol.

Olhou para baixo, pela janela do avião, e avistou a grande cordilheira que dividia o

país em duas porções bem distintas. Aquelas montanhas eram enormes e

ameaçadoras. Com toda razão, os pioneiros tinham levado mais de vinte e cinco

anos para ousar transpô-las pela primeira vez.

Os campos lá embaixo eram verdes e bem aproveitados, salpicados com

casinhas e pequenos vilarejos que reverberavam sob o sol forte. De vez em

quando avistava-se um rio maior, mas havia naquela região inúmeros riachos que

ziguezagueavam por entre todo aquele verde. Era um espetáculo bonito de se ver!

Lyn e Ryan conversavam animadamente e Tracey dava graças a Deus por não

ser importunada. O barulho monótono do motor a deixava sonolenta e, sozinha,

podia aproveitar para cochilar um pouco.

— Ali está Bourke — Ryan disse, de repente, apontando para o lado

esquerdo.

Tracey também olhou. Sabia que essa cidade era chamada "Boca do Sertão".

Daí para a frente, estariam sobrevoando o verdadeiro interior, o lugar onde os

grandes fazendeiros tinham seus domínios e seus imensos rebanhos.

Oh! Deus! O que ela iria fazer ali? Era cosmopolita demais para se enfiar no

meio de carneiros e gado, naquele "sertão" onde as propriedades eram enormes e

muito afastadas umas das outras. Nesses lugares, a água era um bem precioso, o

sol inclemente e os carneiros muito mais numerosos que os seres humanos. Onde

ela estava com a cabeça quando concordara em vir? Era tudo culpa daquele

demônio em forma de gente, aquele insuportável Ryan!

A mudança do barulho do motor tirou Tracey de seus devaneios. Notou que o

avião começava a descer. Olhando pela janela, avistou um aglomerado de

construções que formavam um núcleo muito maior do que esperava encontrar. No

telhado de um grande prédio estava escrito em letras grandes e vermelhas:

"'Nindethana". Ali seria seu lar durante algum tempo! Tudo naquele lugar era mais

grandioso do que tinha imaginado.

O avião agora se aproximava rapidamente do solo para segundos depois

pousar macio, como se estivessem sobre um colchão de ar. E espirais de pó

vermelho se levantavam à medida que o avião avançava sobre a pista, até parar

diante de um pequeno edifício, onde ficava o controle do campo de pouso. Ryan

desligou os motores e abriu a porta para que pudessem descer.

Tracey ficou impressionada com o calor. Podia senti-lo através das solas de

suas sandálias e no ar parado.

— Minha nossa, como faz calor aqui! — Lyn exclamou, enquanto se

encaminhavam para o carro, que os esperava logo adiante.

— Tem razão — Tracey concordou. — Vamos ficar vermelhas como duas

lagostas.

— Duvido muito — Ryan interveio. — Pelo menos, você não costumava ficar,

Tracey.

Ela não entendeu o comentário dele, mas, antes que tivesse tempo de

perguntar o que queria dizer com aquilo, uma voz quebrou o silêncio.

— Bom dia, chefe. Como foi a viagem?

— Ótima, obrigado, Doug — Ryan respondeu, olhando ao redor. — Como vão

as coisas por aqui?

— Tudo em ordem, senhor. O velho Justin não deixou que descuidassem de

nada.

Ryan sorriu e apresentou Tracey e Lyn a seu capataz, Doug Horton. As malas

foram colocadas no carro e Ryan sentou-se ao volante com Doug ao lado e as duas

moças no banco de trás. Rodaram por alguns minutos até chegar ao grande portão

de ferro que marcava a entrada da propriedade da família. Doug desceu, abriu os

portões e ficou por ali, enquanto o carro seguia pelo caminho largo, ladeado por

árvores frondosas, que levava até a frente da mansão dos Alexander.

Instantes depois, Tracey se viu diante de uma casa enorme, branca e

espaçosa, cercada de gramados muito verdes. A grama se estendia até o terraço

que circundava toda a mansão. Assim que o carro parou, duas mulheres abriram a

porta da casa e saíram para o terraço, descendo depois os degraus em direção

aos recém-chegados.

Uma delas, de aproximadamente cinquenta anos, se aproximou sorrindo.

Seus cabelos escuros mesclavam-se com os primeiros fios prateados e os olhos

castanhos brilhavam de alegria. Aproximou-se de Tracey e Lyn, tomando-as pelas

mãos, e deu um beijo carinhoso em cada uma.

— Finalmente as filhas de Ben estão aqui! — ela exclamou feliz. — Sou

Nancy Denham, irmã de seu pai, e esta é Carol, minha filha — explicou, apontando

para a moça que estava a seu lado.

Carol e Lyn eram muito parecidas e Tracey ficou impressionada ao ver como

tinham os mesmos traços característicos da família.

— Tiveram um vôo tranquilo? — Nancy perguntou, dirigindo-se a todos, mas

olhando especificamente para Ryan.

— Muito bom, sem problemas — ele respondeu.

— Sim, foi tranquilo, embora eu tenha falado o tempo todo — Lyn brincou. —

Nunca tinha viajado de avião antes e confesso que estava nervosa.

— Mas não tinha razões para se preocupar, minha querida — Nancy

comentou. — Ryan é um excelente piloto. Venham, vamos entrar. Aqui fora está

quente demais! Poderemos conversar melhor lá dentro.

As quatro mulheres e Ryan atravessaram a varanda fresca, repleta de vasos

de samambaias e trepadeiras. Assim que entraram no hall sentiram a

temperatura agradável, graças ao ar-condicionado. O chão de tábuas largas,

encerado e brilhante, era coberto de tapetes persas e nas paredes havia vários

quadros de muito bom gosto, além de um velho relógio carrilhão, que dava um ar

senhorial àquela bela casa.

Foram em seguida para a sala de estar, muito ampla, onde se via uma grande

lareira. Vários sofás e poltronas estofados com tecidos estampados se

distribuíam pelo cômodo, onde havia também uma escrivaninha de madeira

entalhada e cadeiras de balanço, tudo muito bem disposto no ambiente.

Logo que se acomodaram, uma empregada chegou, trazendo uma bandeja

com finas xícaras de porcelana e lindos bules de prata para servir o chá. Nancy

preparou as xícaras e as entregou às convidadas.

— Ainda guardava alguma lembrança deste lugar, Tracey? — a tia perguntou.

— Lembranças? Mas como? Esta é a primeira vez que venho aqui.

— Então Ben nunca lhe contou? Nem Ryan lhe falou a respeito?

Tracey olhou-a sem entender nada. Do que devia se lembrar? Ryan sentou-se

e cruzou as pernas longas e musculosas, antes de se dirigir a ela.

— Pelo jeito não faz a menor ideia do que Nancy está dizendo, não é,

Tracey?

— Eu não acredito! — Nancy continuou. — Será possível que ninguém lhe

falou sobre o tempo em que você viveu aqui conosco?

— Eu vivi aqui? Mas… já estive aqui antes? — indagou Tracey, incrédula.

— Claro! Ficou conosco quando Ben e sua mãe se casaram. Estava com pouco

mais de dois anos quando deixaram a fazenda. Você corria por toda a casa e

Nindethana parecia ser seu paraíso.

— É incrível! — Tracey exclamou, absolutamente surpresa. Seu padrasto

nunca fizera qualquer menção àquele período!

— Fico triste em saber que Ben se afastou de nós a ponto de sequer

mencionar sua família e seu próprio lugar de nascimento para as filhas. — Nancy

calou-se por um instante e continuou: — Também não entendo por que Ryan não

disse nada a vocês. — Ela se virou para o sobrinho. — Não se lembra de como você

e Glen tomavam conta de Tracey? Embora fossem muito mais velhos, costumavam

levá-la aonde quer que fossem.

Ryan riu com vontade.

— E tínhamos outra alternativa, tia? Tracey se recusava a ser deixada para

trás! Desde aquela época já tinha ideias bem definidas sobre o que queria, não é,

garota?

— Não somos todos iguais neste aspecto? — Tracey perguntou, encantada

ao pensar que aquele homem dominador e mandão tinha feito todas as suas

vontades, há algum tempo.

— Pode ser, mas dizem que podemos estragar o caráter de uma pessoa, se

concordarmos em fazer todas as suas vontades — revidou Ryan, sorrindo com

dentes muito brancos, que contrastavam com a pele fortemente bronzeada.

— É… talvez tenha razão — Tracey concordou.

— Ainda bem que estamos de acordo. Agora, se me dão licença, tenho que ir

cuidar dos negócios. Vou falar com Marty e saber como vão as coisas por aqui —

disse Ryan, levantando-se.

— Vá falar com papai primeiro, Ryan — Nancy recomendou. — Ele disse que

queria vê-lo assim que chegasse.

— Vovô não vai descer? — Ryan perguntou, surpreso.

— Só mais tarde. Ele é muito teimoso e transgrediu as ordens do médico. Foi

cavalgar esta manhã. Agora terá que ficar mais algumas horas em repouso.

Enquanto Nancy e Ryan conversavam, Carol aproveitou para contar às primas

o que tinha acontecido.

— Há alguns anos, vovô teve um acidente sério e machucou as costas. O

médico não quer mais que ele ande a cavalo, mas vovô é teimoso e insiste em

fazer o que não deve. Vocês o conhecerão hoje, na hora do jantar.

— Nosso avô parece ser uma pessoa muito determinada — Lyn comentou,

apreensiva.

— É mesmo! E acho que Ryan é igualzinho a ele.

Lyn ficou ainda mais preocupada.

— Vovô é muito… bravo?

— Às vezes, embora hoje em dia ele esteja bem melhor do que era. Mas,

para dizer a verdade, ainda me sinto como um gatinho amedrontado quando estou

perto dele.

— Ryan não tinha dito nada sobre vovô, muito menos que é tão severo assim

— Lyn, comentou, temerosa.

— Não fique assim, mana — interveio Tracey, percebendo que Lyn estava

com medo à toa. — Carol não disse que tanto nosso avô como Ryan só ficam

bravos às vezes? Você se dá muito bem com seu primo, portanto, o que a impede

de se entender igualmente com seu avô? Além disso, acabamos de chegar, e ainda

não tivemos tempo de fazer nada que pudesse deixar alguém furioso.

— Lyn, não quero que me entenda mal — Carol disse, procurando tranquilizar

a prima. — Vovô não é ruim! Acho apenas que trabalhou demais a vida toda e,

agora que Ryan assumiu a direção da fazenda, ele tem tempo de sobra para ficar

reparando nas atitudes dos outros.

As palavras de Carol conseguiram acalmar Lyn, mas por outro lado o

temperamento rebelde de Tracey não se conformava com aquela situação. Só

porque o velho Alexander já não precisava mais se preocupar com a fazenda,

resolvera distrair-se perturbando a vida dos outros? Será que todos os homens

da família Alexander gostavam de ser ditadores? Pois bem! Logo de início iria

mostrar que não estava disposta a viver sob esse regime. Precisava fazê-los

entender que também tinha uma vontade firme e que não iria obedecer a regras

passivamente!

Terminaram de tomar o chá conversando alegremente. Depois Nancy sugeriu

que Carol levasse as moças para conhecerem os quartos que iriam ocupar.

O quarto de Tracey era amplo e arejado. Para ela, tudo naquela casa parecia

excessivamente grande. A mobília era em estilo vitoriano, o carpete em tom

creme muito claro e cortinas esvoaçantes enfeitavam as janelas que se abriam

para a paisagem grandiosa da propriedade.

Tracey guardou sua roupa nos armários e depois tratou de tomar um bom

banho. Escolheu para usar um vestido de linho verde-claro, que combinava com a

cor de seus olhos, e em seguida foi fechar a janela. O sol já estava se pondo e

fazia com que as nuvens ficassem semelhantes a flocos cor-de-rosa.

Saindo dali, foi para o quarto de Lyn, onde encontrou a irmã indecisa quanto

à roupa que deveria usar.

— Ponha o vestido de algodão azul — sugeriu. — Lembre-se de que essa cor

é leve e repousante.

— Tem razão, Tracey. Vou precisar de toda a calma do mundo. Nunca pensei

que fosse herdar um avô bravo e despótico.

— Não se preocupe com isso, querida. Numa propriedade grande como esta,

será fácil evitar a presença dele.

— Tem razão. Este lugar é maravilhoso, não acha?

— Sim… — Tracey respondeu sem entusiasmo. Não queria admitir que

qualquer coisa que fosse de Ryan pudesse ser boa ou bonita. — Também, não é

para se admirar. Na época em que esta casa foi construída, os materiais eram

baratos e a mão-de-obra praticamente de graça. Além disso, os colonizadores se

apossavam de muito mais terra do que lhes era necessária.

— E por que não? A terra estava lá, esperando por alguém corajoso para

utilizá-la. E, depois, que diferença isso faz para você, Tracey?

— Não sei. Acho que me sinto amargurada por ter sido trazida para cá, sem

nem ao menos ter a possibilidade de recusar.

— Mas… Ryan me disse que você tinha mudado de ideia e que queria vir!

— Para ser franca, ele me obrigou a mudar de ideia.

Por um instante Lyn observou a irmã.

— Não gosta dele, não é, Tracey?

Gostar? Não gostar? Aqueles sentimentos pareciam insuficientes para

expressar o que lhe ia pela alma. Em relação a Ryan, tudo tinha que ser extremo.

Amar e odiar. Sim, esses termos seriam bem mais apropriados no caso. Mas não

estava disposta a se aprofundar no assunto.

— Não gosto, não.

— Por quê? Só porque ele se opôs à sua vontade?

— Não é só por isso, mas também porque ele é arbitrário e… convencido!

Tracey poderia acrescentar atraente, dominador, sensual, mas preferiu não

utilizar tais adjetivos em relação a Ryan.

— Pois eu o acho muito simpático — disse Lyn.

— Sem dúvida, contanto que todos sigam suas ordens sem pestanejar. Caso

contrário… tome cuidado, porque nosso tutor não gosta que discutam sua

autoridade. Ele é um verdadeiro posseiro, não só de terras, mas de gente

também.

— Por que o chama de posseiro?

— Porque é isso que ele realmente é. Não foi assim que ficaram com esta

propriedade tão grande?

— Não exatamente, Tracey. Posseiro é aquele que se apropria de terras. A

família Alexander pagou uma taxa ao governo por estas terras. Como vê, Ryan não

pode ser chamado de posseiro.

— Para mim, ele continua sendo, pelo menos com relação às pessoas. Veja o

que fez comigo — Tracey suspirou com raiva. — Um tutor! Era só isso que me

faltava, aos vinte anos de idade!

— Pobre Tracey! Não deve ser fácil para você! Lembro-me de que papai

sempre dizia que você era amante da liberdade.

— Foi uma pena que ele não tenha se lembrado disso quando fez seu

testamento. — Tracey ficou pensativa. — Tenho minhas dúvidas sobre a

existência real dessa tal cláusula.

— Pois saiba que eu mesma a li. Além disso, o dr. Gatehead é advogado de

papai há tantos anos que não teria se deixado enganar.

— Então não tenho outra solução, senão me submeter temporariamente ao

domínio de nosso onipotente tutor.

— Não fale assim, Tracey. Até parece que é uma prisioneira!

— Pois é exatamente como me sinto!

Quando Tracey e Lyn entraram na sala, um homem de aproximadamente

trinta anos estava conversando com Carol e Nancy. Era Marty Bradshaw, o

contador de uma das firmas da família.

— Então vocês são as tuteladas de Ryan? — Marty perguntou, depois que as

duas irmãs lhe foram apresentadas.

— Até parece que não temos capacidade para dirigir nossas próprias vidas,

não é? — Tracey disse com ironia, enquanto apanhava o copo de xerez que Marty

lhe oferecia.

— Não concordo com você — ele contradisse. — Diria até que deviam estar

satisfeitas em poder contar com um homem tão capaz e inteligente para zelar por

seus interesses.

— Financeiramente, concordo, mas… pessoalmente, acho absurdo.

Marty riu.

— Não me diga que Ryan trouxe para casa uma feminista!

De fato, nunca passara pela cabeça de Tracey ser feminista, mas achou que

seria interessante provocar o assunto.

— E se eu fosse? Faria alguma diferença?

— Para você, sim.

— Por quê?

— Porque Ryan jamais permitiria que uma mulher assumisse o que ele acha

serem seus direitos. Nem em nome da emancipação feminina!

— É mesmo? — Tracey perguntou. Disfarçadamente ela olhava Ryan, que

acabara de entrar na sala e parava para falar com Nancy. Ele era, sem dúvida, a

imagem do homem machista e dominador.

Talvez essa fosse uma boa maneira de fazê-lo lastimar-se por tê-la obrigado

a vir para aquela fazenda. Era uma temeridade abrir fogo contra um oponente tão

poderoso, sobretudo em seu próprio ambiente. Mas… o que tinha a perder?

Poderia se tornar tão insuportável que passaria a ser um espinho na vida de Ryan

e ele, talvez, acabasse por mandá-la de volta a Sidnei, feliz da vida por se ver

livre dela. Tracey continuou a conversar descontraidamente com Marty, fingindo

ignorar a presença inquietante de seu tutor.

— No entanto, hoje em dia, os homens já estão entendendo que nem todas

as mulheres estão dispostas a obedecer cegamente ao senhor da casa, não é

verdade?

Marty balançou a cabeça.

— Acho que está se arriscando demais, se pensa que poderá ter sucesso

agindo assim com o chefe.

— Tudo depende da medida que se usa para avaliar o sucesso, não concorda?

Às vezes vale a pena se perder uma batalha para depois ganhar a guerra.

Marty divertiu-se com a ousadia de Tracey e deu boas risadas.

— Qual foi a piada? — perguntou Lyn, juntando-se a eles.

— Sua irmã estava me expondo uma de suas teorias quanto à posição do

homem em relação ao mundo de hoje — Marty explicou de modo ambíguo.

— E isso foi assim tão engraçado? — Lyn insistiu.

— Não o assunto em si, mas a maneira como Tracey o expôs.

Nesse momento uma figura alta e majestosa surgiu na sala.

Bastante idoso e de aparência sofrida, Justin Alexander, o patriarca da

família, ainda mantinha a cabeça erguida, parecendo mais um general que

cumprimenta seus comandados.

Imediatamente, Ryan puxou uma cadeira para que o avô se sentasse. Serviu-

o de uma dose de uísque e fez sinal para que Tracey e Lyn se aproximassem.

— O rei dos carneiros e da lã está nos chamando, Lyn — Tracey murmurou,

pegando no braço da irmã e conduzindo-a em direção ao velho.

Os olhos de Justin, muitos vivos e azuis, como os do neto, pousaram em

Tracey, observando-a detalhadamente.

— Você mudou, menina — ele observou.

— Era de se esperar, não? Já se passaram dezoito anos!

— Tanto tempo assim?

Por um momento, Justin pareceu se transportar para aqueles velhos tempos,

quando ainda convivia com o filho Ben. O que teria causado o rompimento entre

pai e filho?, Tracey se perguntava.

— E você, Lynette — disse o avô, voltando-se para a neta recém-chegada. —

Aceitou de boa vontade ter Ryan como seu tutor e vir morar aqui conosco?

— Sim, sr. Alexander, eu…

— Aqui nesta fazenda ninguém é chamado de senhor, menina — ele

interrompeu, bruscamente. — Chame-me de vovô, ou de Justin.

— Sim… vovô — Lyn respondeu, assustada. Justin Alexander voltou a se

concentrar em Tracey.

— Preferia ter ficado em Sidnei, não é?

Tracey olhou para Ryan com raiva. Decerto aquele arrogante já contara ao

avô.

— Não foi ele quem me disse — esclareceu Justin, reparando no olhar dela.

— Nem precisava. Pode-se ler em seu rosto que não está nada satisfeita com as

circunstâncias presentes.

— Quem estaria contente, tendo um tutor na minha idade? Não estamos

mais no século XVIII!

— Sei disso. Não estou tão decrépito assim. Mas, na nossa família, até os

homens precisam esperar uma determinada idade para cuidar do dinheiro que

recebem como herança. Na verdade, é nosso costume fazê-los esperar atingir

vinte e cinco anos; portanto, se dê por feliz porque com você será somente até os

vinte e três.

— Mas não faço questão nenhuma de receber essa herança!

— Bem… faça ou não, o fato é que ela é sua. Por isso precisa ser protegida

para que nenhum caça-dotes se aproxime de você, querendo casar-se apenas para

se apoderar do dinheiro que os Alexander lutaram tanto para conseguir.

— Não preciso de proteção contra isso. Jamais me casarei com um parasita!

— Nem teria chance de fazê-lo, porque durante os próximos anos Ryan

estará encarregado de cuidar de você.

Tracey não gostou do rumo que a conversa tomou. Não queria desrespeitar o

avô, por causa da idade e da posição dele, mas seu temperamento rebelde estava

prestes a explodir. Por sorte, Justin Alexander deu o assunto por terminado.

— Nancy! — ele chamou. — O jantar ainda não está pronto?

A filha já ia se levantando para ir até a cozinha, quando a empregada

chegou, anunciando que o jantar estava servido.

Por pura intuição, Tracey sabia que o velho Justin não aceitaria ajuda para

se levantar, por mais difícil e demorado que fosse fazê-lo sozinho. Lyn, no

entanto, procurando ser prestativa, estendeu os braços para o avô.

— Pode deixar! — ele resmungou. — Não preciso de ajuda. Não sou inválido!

Tracey percebeu que os lábios de Lyn tremiam e prontificou-se a defender a

irmã contra aquele velho mal-humorado. Mas, percebendo a situação, Nancy

aproximou-se e, passando o braço em torno dos ombros de Lyn, conduziu-a até a

sala de jantar. Quase que imediatamente, Ryan pegou Tracey pelo braço e

seguiram ambos atrás de Lyn e Nancy.

— Ele não precisava ter sido tão bruto com Lyn — Tracey reclamou, os olhos

brilhando de raiva. — Ela só estava querendo ajudar. Por que ele faz questão de

se comportar como um bárbaro?

— E você, por que não pára de agir como mãe de Lyn? — revidou Ryan. —

Deve parar de brigar por sua irmã e deixar que ela mesma tome a iniciativa. Ou

pretende deixá-la cultivar sua insegurança e seu complexo de inferioridade?

— Não diga isso! Eu simplesmente tive que tomar conta de Lyn depois que

mamãe morreu e procurei fazê-lo da melhor maneira possível. Acha que eu

deveria ter ignorado o problema?

— Não use a perda de sua mãe como desculpa para superproteger a garota,

Tracey — Ryan falou com calma. — Também perdi minha mãe, ainda mais cedo do

que Lyn, e nem por isso fui mimado, nem poupado de viver.

— Não fico surpresa com o que me contou. Você é formidável mesmo, não?

Duro como uma rocha, tal qual seu avô. Nenhum dos dois tem lugar para um

coração dentro do peito.

Naquele momento, um barulho de passos chamou a atenção de Tracey.

Olhando para trás, ela viu que Justin Alexander tinha se levantado e estava

poucos passos atrás deles. Não havia dúvidas de que ele ouvira seus comentários

amargos.

— Desculpe… não deveria ter… — ela começou a falar, quando foi

interrompida pela gargalhada potente do velho.

— Você não mudou tanto quanto eu tinha pensado, Tracey — Justin

comentou. — Ela sempre foi rebelde e voluntariosa, não é, Ryan? — continuou o

avô, voltando-se para o neto.

— E também mimada, não é, vovô?

— A culpa é um pouco sua, Ryan, e também de Glen. Foram os primeiros a se

renderem a tudo que esse par de olhos verdes e expressivos lhes pedia — Justin

comentou, sorrindo. — Nunca deixavam de fazer as vontades dela.

— Vou me lembrar disso — Tracey falou, com ar vitorioso. — Ou acha, vovô,

que com o passar dos anos Ryan ficou imune ao meu olhar?

— Espero que sim. Do contrário, ele não será grande coisa como tutor.

— Não se preocupe, vovô. Pelo pouco que pude observar, meus olhos verdes

não têm mais qualquer poder sobre Ryan.

Capítulo IV

A sala de jantar era grande e bem decorada. A mesa estava coberta por uma

toalha de linho branco, que combinava perfeitamente com os pratos de fina

porcelana, copos de cristal e talheres de prata dispostos de maneira

absolutamente correta.

Tracey sentou-se entre Justin Alexander e Marty. A presença

impressionante do avô a inibia um pouco e ela preferiu concentrar sua atenção na

comida que a governanta, sra. Gray, havia preparado.

— Vamos fazer um churrasco no sábado — Nancy anunciou. — Acho que será

uma maneira agradável de apresentá-las ao resto da família.

— Todos estão curiosíssimos para conhecê-las — Carol comentou. —

Principalmente meus dois irmãos. Eles queriam vir conosco para lhes dar as boas-

vindas, mas papai precisava deles na fazenda e por isso tiveram que deixar para

outro dia.

— A família é grande? — perguntou Lyn, interessada. — Virá muita gente

para o churrasco?

— É enorme! Só de parentes mais chegados há cerca de vinte pessoas. Se

considerarmos, então, os primos em segundo e terceiro graus, além dos amigos e

vizinhos, não saberia dizer a que número poderemos chegar. Todos estão ansiosos

para conhecer as Alexander que durante tantos anos estiveram afastadas da

família.

Tracey fingia se concentrar na deliciosa sobremesa à sua frente, mas seus

pensamentos voavam livres. Será que iria se tornar objeto de curiosidade daquela

gente? Eles saberiam que ela viera para Nindethana contra sua vontade, coagida

por Ryan?

Assim que a refeição terminou, todos passaram para a sala de estar, onde

seria servido o café. Pouco depois, Ryan e Marty saíram juntos, enquanto Carol e

Lyn foram para o terraço, ocupadas em fazer planos para o esperado churrasco

de sábado.

Tracey ficou a sós com o velho Justin e Nancy, que fazia crochê numa

poltrona próxima à lareira.

— É uma pena que não possamos lhe oferecer aqui o mesmo tipo de diversão

a que estava acostumada, Tracey — disse Nancy, erguendo os olhos de seu

trabalho e sorrindo para a moça. — Em geral, temos que nos distrair com

pequenas coisas, como fazer tricô e crochê, ou aproveitar o tempo para a leitura

de um bom livro. Não se esqueça de que há uma ótima biblioteca aqui em casa,

além de um completo salão de jogos. Se você gosta de pingue-pongue, bilhar,

jogos de cartas, xadrez ou coisa parecida, vai encontrar muita distração no salão

de jogos.

— Obrigada, Nancy, mas não se preocupe comigo. Sou bastante auto-

suficiente quando se trata de preencher o tempo.

Por um instante os três ficaram em silêncio. Pouco depois, Nancy olhou para

o terraço e viu Carol e Lyn entretidas numa conversa animada.

— Fico feliz por ver que as duas primas se deram tão bem — comentou,

satisfeita. — Já esperava que isso acontecesse. Elas têm quase a mesma idade e

são até parecidas, não acha, Tracey?

— É verdade. Lyn sempre foi um pouco reservada e difícil para fazer

amigos, mas tenho a impressão de que vai se dar muito bem aqui.

— E com você, Tracey? Não acha que vai acontecer a mesma coisa?

Querendo evitar ser desagradável, Tracey respondeu com evasivas.

— Ainda não sei, Nancy. Estou aqui há pouco tempo e é cedo para dizer como

vou me sentir.

— Mas já se manifestou sobre Ryan, não foi? — Justin entrou na conversa,

com sua voz forte. — Não me parece muito entusiasmada por estar sob a

proteção dele.

Por um instante Tracey baixou os olhos, mas sentia que os dois a

observavam, aguardando sua resposta.

— Bem… sinto muito se fui tão óbvia — disse, por fim.

— Não queria vir com sua irmã? — Nancy perguntou, olhando atentamente

para Tracey.

— Ela não queria vir, porque não estava em seus planos ter um tutor —

Justin apressou-se em responder por ela.

— Mas essa era a vontade de seu pai — observou Nancy, com um sorriso

simpático no rosto ainda bonito. — Ryan está apenas cumprindo a última vontade

de Ben e estou certa de que ele se sairá bem nessa missão. Ele leva muito a sério

esse tipo de coisa.

— Aí é que está — Tracey respondeu com voz firme. — Ele não precisava

exagerar tanto! Já não sou criança e fico indignada quando me tratam como se

fosse. Falei a Ryan, ainda em Sidnei, que desistiria de minha parte na herança,

apenas para não ter que abrir mão de minha liberdade pessoal. Na verdade, não

entendo por que papai estabeleceu a cláusula de que deveríamos ter um tutor. Ele

me conhecia bem e devia saber que eu iria me revoltar contra uma exigência tão

absurda.

— Mas o fato é que ele incluiu a tal cláusula no testamento e deve ter tido

boas razões para fazer isso — Justin acrescentou.

— Talvez… — Tracey disse, sentindo o sangue queimar em seu rosto.

— Foi por isso que ficou com o espírito prevenido contra Ryan? — perguntou

o avô, que não perdia uma reação da neta.

Tracey sentia-se pouco à vontade. Aquele velho parecia ter um sexto

sentido que lhe permitia perceber exatamente o que se passava em seu íntimo.

— Em parte, acho que sim.

— E quanto ao resto? — Justin prosseguiu.

— Será que não podemos parar por aqui? — Tracey pediu, louca para escapar

daquele assunto difícil.

— Como quiser — Justin concordou. — Mas antes gostaria de saber o que

havia de errado com esse homem com quem você andava saindo. Por que meu filho

e meu neto não o aprovaram?

— Nenhum deles o conhecia bastante bem para aprovar ou desaprovar. —

Tracey respondeu exasperada, sentindo um súbito mal-estar dominá-la.

— Eles não o consideraram digno de você — afirmou Justin. — Por quê?

Quero saber.

Tracey ficou em silêncio, e procurou desviar os olhos da figura vigorosa do

avô, mas ele insistiu:

— Vamos, Tracey. Fiz uma pergunta e quero uma resposta.

— Ele era casado — ela revelou.

Nancy suspirou com tristeza e Justin bateu com a bengala no chão, num

gesto que demonstrava sua contrariedade.

— Bem, ele estava separado da esposa — Tracey esclareceu, tentando

melhorar a situação.

— E isso torna a situação melhor? — Justin perguntou com tamanha

veemência, que as duas moças no terraço se viraram para olhá-lo. — Ben estava

mais do que certo ao decidir que você teria um tutor! Ele mesmo era fraco

demais para conter as mulheres de sua própria casa!

Aquilo era demais! Tracey não poderia admitir que aquele velho arrogante

falasse daquela maneira de um homem que tinha sido um verdadeiro pai para ela.

— Meu pai não era um fraco, sr. Alexander. Ele era bom e carinhoso. E, para

sua informação, saiba que as mulheres não são mais controladas hoje em dia! Já

não somos mais um bando de ovelhas submissas e obedientes, conduzidas pelos

latidos insistentes de um cão pastor.

— O cão pastor não late, nem morde — revidou Justin. — Ele apenas guia e

encoraja as ovelhas.

— Tal qual um bom marido deve fazer, não é?

— Não adianta tentar desviar o assunto, Tracey. Ainda estou esperando

suas explicações por ter se envolvido com um homem casado!

— Explicações? Não tenho que prestar contas a ninguém! Faço o que quero

de minha vida e além disso já lhe disse que ele era separado!

— Meu Deus! — Justin explodiu. — Você é igualzinha à sua mãe! Tem o

mesmo tipo de moral flácida. Nunca pensei que meu filho pudesse cometer o

mesmo erro duas vezes!

Por um instante Tracey ficou muda, os olhos arregalados, incapaz de pensar

com clareza. O sangue parecia ferver em suas veias e a indignação crescia cm seu

peito.

— Como ousa falar assim de minha mãe? — perguntou, revoltada. — Nem ao

menos a conheceu direito para fazer juízo de suas ações!

— Como eu gostaria que isso fosse verdade, Tracey! Parece esquecer que

vocês moraram aqui por mais de dois anos, depois que Ben se casou. Infelizmente,

os vínculos matrimoniais nada significavam para ela!

— Isso é mentira! — Tracey gritou, cheia de revolta.

— Depois de algum tempo — continuou Justin, como se não tivesse sido

interrompido — não tive outra alternativa senão mandá-la para fora de minha

propriedade, antes que ela arruinasse minha família inteira. — A voz do velho se

tornou lamuriosa. — Daquele dia em diante, nunca mais ouvi falar de meu querido

filho Ben. Ele se afastou tanto de nós, que nem ao menos sabíamos onde estava

morando. Foi então que o advogado de seu pai contactou Ryan e lhe comunicou a

morte de Ben. Sua mãe foi a causa dessa separação em nossa família. Ela não

tinha princípios, nem moral…

— Papai! Por favor! — Nancy interferiu. — Já falou demais! Isso aconteceu

há muitos anos e a garota não tem culpa nenhuma do comportamento da mãe.

Tracey sentiu o coração apertado. Então Nancy também concordava com a

opinião de Justin? Precisava procurar se lembrar de como tinha sido a vida entre

seu pai e sua mãe, antes da morte dela.

Cenas já esquecidas voltaram à sua mente e recordou palavras ásperas

trocadas por trás da porta fechada do quarto dos pais. As saídas constantes da

mãe, alegando ter um serviço extra para fazer, e a expressão sentida do pai,

sendo deixado só com as duas filhas para cuidar, voltaram à lembrança dela.

Sentiu a cabeça latejar e seus olhos não conseguiam focalizar direito as

coisas. Sim, não havia como negar as frequentes ocasiões em que seu pai parecia

estar desconsolado e infeliz.

Levantou-se com esforço, procurando manter o autocontrole.

— Vão me dar licença. O dia foi bastante longo e…

Deixando a frase inacabada, saiu da sala. Se continuasse a falar poderia

acabar chorando e não queria dar esse prazer ao homem que destruíra sua

confiança no casamento dos pais. Antes de sair dali, ainda teve tempo de ouvir a

voz de Nancy, dirigindo-se a Justin.

— Viu o que fez, papai? — ela dizia, aflita.

— Era inevitável, Nancy. Mais cedo ou mais tarde ela iria acabar

descobrindo — Justin respondeu.

Tracey subiu as escadas correndo. Quando se viu na segurança de seu

quarto, fechou a porta e caminhou até a janela procurando respirar melhor e pôr

os pensamentos em ordem. Mas aquele breve momento de paz foi depressa

quebrado por umas leves batidas na porta. Segundos depois, Ryan entrou no

quarto. Podia-se ler na frieza dos olhos dele e em sua boca contraída que estava

aborrecido.

— Quero falar com você — Ryan disse.

— Sobre o quê? — Tracey perguntou, mantendo-se de costas para ele.

— Sobre o que aconteceu lá embaixo. Ia entrando na sala quando vi você

fugir, parecendo mais um fantasma de tão pálida. Em seguida Nancy me fez sinais

desesperados para que a seguisse. Não quer me contar o que houve?

— Como posso saber por que Nancy quis que você me seguisse? Por que não

pergunta a ela?

Ryan se aproximou e colocou as mãos nos ombros de Tracey, fazendo-a

voltar-se para ele.

— Estou perguntando a você, garota, e quero uma resposta agora mesmo. Já

tive paciência demais com seu comportamento rebelde e sua falta de cooperação.

Embora o contato das mãos de Ryan contra a pele de seus ombros a

deixasse perturbada, Tracey ousou ainda uma vez enfrentar o tutor.

— Pensa que os Alexander podem falar o que quiserem, quando negam esse

direito aos outros? Vocês todos esperam que eu me comporte como uma garota

boazinha e dócil, sem vontade nem chance de pensar, não é? Mas não vou me

submeter. Só estou aqui porque não tinha outra saída. Aliás, você deve ter ficado

muito aborrecido quando descobriu que não poderia trazer Lyn para cá, sem que

eu viesse também!

— Continuo não entendendo nada, Tracey. Seja mais clara.

— Até parece que não sabe de nada! — Tracey disse, disposta a despejar

sua raiva, sobre Ryan. — Já esqueceu que meus pais e eu fomos mandados embora

daqui? Pelo que disseram, minha mãe dava um pouco de trabalho e não era fácil

mantê-la junto com o resto da família. Provavelmente julgaram a filha pela mãe!

Mas, para azar dos Alexander, meu pai os obrigou a aceitar as duas filhas e agora

vocês não têm como se ver livres desse fardo. Ou aceitam as duas ou ficam sem

nenhuma. Que dilema, não? Acho que essa foi a forma que meu pai encontrou para

punir a família pelo que fizeram à mulher dele.

— Você está sendo tola e insensata, Tracey — retrucou Ryan, sacudindo-a

pelos ombros. — Devia ter previsto que iria interpretar a situação dessa maneira!

Será que não confia em ninguém? Nem mesmo em seu pai? Não sabe que Ben

sempre a considerou tão filha dele quanto Lyn? Não entende que ele a considerou

tão digna de receber a herança quanto sua irmã? Você julgou mal as intenções de

seu pai! Mas é bom que saiba que eu poderia muito facilmente ter dado um jeito

de modificar essa cláusula do testamento de Ben, caso quiséssemos apenas

conservar Lyn perto de nós. Como você mesma disse, Tracey, com dinheiro tudo

se consegue.

— Então por que não fez isso? Sabe muito bem que eu preferia ter ficado

em Sidnei e que não ligo a mínima para a herança que um dia poderei receber.

Prefiro ficar sem ela, mas conservar minha liberdade.

— Não vamos perder tempo falando de novo nisso. Seu pai queria muito que

viesse para cá e, além disso… — Ryan sorriu maliciosamente — Justin me deu

ordens expressas para que não voltasse sem você.

— Não posso imaginar que motivos seu avô teria para querer que eu viesse —

retrucou Tracey, intrigada.

— Se não estivesse tão empenhada em lutar contra cada Alexander que vê à

sua frente, chegaria facilmente a uma conclusão.

— A culpa não é só minha. Você mesmo não tem sido muito benevolente e

ainda há pouco seu avô não teve a mínima consideração ao dizer que sou… que

sou…

— O quê?

— Não tem importância — disse Tracey, preferindo não se lembrar das

palavras duras de Justin.

— Pois eu acho que tem, Tracey. Do contrário não teria ficado tão

aborrecida. O que Justin disse que você é?

— Ele me disse algo muito parecido com o que você próprio falou logo na

primeira vez que esteve em minha casa. Pelo jeito, você e seu avô costumam tirar

conclusões precipitadas a respeito das pessoas.

— O que ele disse, Tracey?

— Disse que minha mãe, tal como eu, não considerava o casamento como uma

coisa séria — Tracey contou, esforçando-se para não chorar.

— Você falou a Justin sobre Wilcox?

— Mais ou menos…

Um sorriso aberto iluminou o rosto bonito de Ryan. Contra sua vontade,

Tracey admitiu que seu tutor era um dos homens mais atraentes que jamais vira.

— Vejo que está se divertindo muito com a situação! — ela falou com uma

expressão zangada.

— O que esperava que eu fizesse?

— Que me deixasse em paz para que eu pudesse viver minha própria vida,

sem interferências. Estava muito bem, antes que os Alexander aparecessem com

suas regras e restrições. — Ela calou-se por um instante e em seguida prosseguiu,

num tom malicioso e irônico. — Mas pensando bem… já que todos julgam o pior a

meu respeito, talvez eu deva mesmo seguir as pegadas de mamãe. Afinal, ela

conseguiu que a mandassem embora da propriedade e de volta para Sidnei, não

foi? Talvez eu tenha a mesma sorte.

— Se tentasse se portar assim, apenas conseguiria que Justin lhe

arranjasse um marido decente.

Tracey quase engasgou. Em que século estavam vivendo? Ou será que

naquele lugar, distante de tudo, ainda era costume fazer casamentos arranjados?

Seria essa a explicação para o crescimento das terras daquele pessoal? Fazer

com que os filhos e filhas casassem com a pessoa mais conveniente a fim de

ampliarem seu patrimônio?

— Então foi por isso que Justin insistiu para que você me trouxesse

também? Para que eu fosse usada para aumentar a já incalculável fortuna dos

Alexander? Já não bastava Lyn? Ou existem duas fazendas que Justin quer

incorporar à sua?

Os olhos azuis de Ryan se tornaram duros e frios e Tracey percebeu que

tinha ido longe demais. Mas não estava preparada para a reação que se seguiu. O

tutor segurou-a pelos cabelos, forçando-a a inclinar a cabeça para trás, de modo

que não pudesse evitar de encará-lo.

— Nada disso, sua garota teimosa. Não foi esse o motivo. Em nossa família,

assim como em muitas outras por aqui, a terra é herdada apenas pelos filhos

homens. Um procedimento bem machista, concordo, mas é assim que costumamos

fazer. Portanto, mesmo que se casasse com um fazendeiro, não teria direito

algum às terras dele. Entendeu bem, Foguinho? — disse, soltando-a de repente.

— Então é por isso que dizem que este é um país de homens, não é? As

mulheres são consideradas apenas como cidadãs de segunda classe, facilmente

adquiridas por qualquer punhado de dólares?

— Está enganada, Tracey — Ryan aproximou-se da porta. — Não são de

segunda classe e nunca valem poucos dólares. Mas não desanime, querida. Se

continuar assim, com esse jeito azedo, vai conseguir perturbar a família.

Tracey ficou olhando Ryan sair e fechar a porta atrás de si. A raiva e o

ressentimento que sentia se desvaneceram assim que se viu sozinha. Era a

primeira vez na vida que a tinham chamado de "azeda". Estaria mesmo se

transformando numa pessoa neurastênica e irritadiça?

Horas mais tarde, calculando que todos na casa já se deviam ter recolhido

em seus quartos, desceu até o terraço. Ficou contemplando demoradamente a

paisagem magnífica, banhada pelo luar e ouvindo a brisa murmurar suavemente

entre as folhas das árvores. Com um suspiro profundo, deixou-se cair numa das

poltronas de vime que havia por perto.

Mesmo apreciando aquele espetáculo de calma e beleza, seus pensamentos

continuavam tumultuados. Não saberia dizer por quanto tempo estivera sentada

ali, fazendo silenciosamente um balanço de sua situação atual, de seus

sentimentos e sua vida, quando ouviu um rumor de passos no terraço. Então havia

mais alguém com insônia naquela casa?

— Ainda não se foi deitar, Tracey? — A voz meiga de Nancy chegou-lhe aos

ouvidos.

Tracey levantou-se e sorriu para a tia, que se aproximava.

— Gostaria de falar com você — Nancy disse, sentando-se numa poltrona

próxima à dela, e fazendo um gesto para que a sobrinha se acomodasse.

— Este lugar é absolutamente magnífico, Nancy — Tracey comentou —, e

transmite uma profunda calma. É sempre assim? Normalmente, na costa, essa

calmaria é seguida por uma forte tempestade.

Nancy reparou nas feições perturbadas da sobrinha. Refletiu por um

momento, antes de responder.

— Está tentando insinuar, de maneira delicada, que prefere não conversar

sobre assuntos pessoais?

— Se for, essa será a primeira coisa delicada que consigo dizer desde que

cheguei, não é verdade? Devem estar me achando muito mal-educada e

desagradável. Na verdade, não foi esta minha intenção.

— Não se preocupe em pedir desculpas, Tracey. Nós também não fomos

muito amáveis com você. Depois que papai se acalmou, ele lastimou

profundamente ter dito o que disse.

Tracey mal podia crer que um Alexander se arrependesse de alguma coisa.

Mas, enfim, não queria levar aquele assunto desagradável à frente.

— Pela maneira como reagiu, pude deduzir que não sabia nada a respeito de

sua mãe. Estava certa? — perguntou Nancy, aproximando-se de Tracey.

— Não sei, não tenho muita certeza. Acho que intimamente desconfiava de

alguma coisa. Sabia que mamãe e papai não eram totalmente felizes,

principalmente nos últimos anos, pouco antes de ela morrer. Mamãe estava

sempre saindo e era papai quem ficava em casa comigo e com Lyn. Quando ela

voltava, podia ouvir, invariavelmente, o som abafado das vozes dos dois,

discutindo acaloradamente. Mas, quando se tem nove ou dez anos, não se pensa

muito sobre essas coisas, não é? Além disso, acreditava piamente quando mamãe

dizia que teria que sair à noite para terminar um trabalho extra. Talvez eu

tivesse compreendido melhor as coisas se fosse mais velha na época.

— No entanto, quando papai tocou no assunto, você imediatamente se pôs na

defensiva.

— Foi uma reação instintiva, eu acho. Fiz questão de ignorar a verdade por

tanto tempo, que quando fui obrigada a encará-la fiquei alarmada.

— Posso entender isso, meu bem — Nancy tomou as mãos de Tracey entre as

suas. — Ninguém gosta de descobrir coisas desagradáveis a respeito dos próprios

pais e, quando essa descoberta é feita de maneira brusca e inesperada, tudo fica

ainda pior. Meu pai, por vezes, causa esses desastres. Mas, acredite, ele não teve

má intenção.

— Sei disso. Para ele também não deve ter sido fácil ficar tantos anos

afastado do filho, por causa de minha mãe. — Tracey olhou para Nancy. — Meu

pai, Ben, era seu irmão! Não compreendo como puderam me acolher nesta casa de

boa vontade! Sou a lembrança de tudo aquilo que gostariam de esquecer!

— Não pense assim, Tracey! Nunca! Ficamos muito tristes quando Ben foi

embora. Mas felizmente o tempo ameniza os sofrimentos, e todos nós, inclusive

papai, fomos nos acostumando à ideia de nunca mais vermos meu irmão. Quando o

advogado de Ben comunicou a morte dele, a dor de papai foi amenizada ao saber

que o filho tinha determinado em seu testamento que você e Lyn voltassem para

nossa companhia.

— É isso que não compreendo, Nancy. Está certo que quisessem ter Lyn com

vocês, mas por que eu? Não tenho o sangue dos Alexander em minhas veias. Não

existe, de fato, qualquer parentesco entre nós.

— Tem razão, mas papai sempre teve um carinho especial por você. Ficou

inconsolável quando Ben e Mary partiram, levando a garotinha que ele tanto

amava. Para ser sincera, era o velho Justin quem mais lhe fazia as vontades.

Muito mais do que Ryan ou Glen.

Para Tracey, era difícil acreditar que um dia tinha sido capaz de derreter o

coração daquele velho autoritário. Se fosse verdade, não devia ter sido nada fácil

para ele decidir-se a mandá-los embora de sua casa.

— Mas se papai queria tanto que Lyn e eu voltássemos para o seio da família,

por que não nos trouxe imediatamente após a morte de mamãe?

— Não posso lhe responder com certeza, mas imagino que Ben não quisesse

voltar, uma vez que tinha cortado todos os laços de família, a ponto de nem ao

menos mencionar nossa existência. Meu irmão tinha bom coração e estava

disposto a tudo pela felicidade das filhas; mas era também muito orgulhoso e não

poderia suportar que alguém tivesse pena dele ou lastimasse sua infelicidade. —

Nancy sorriu. — Mas o fato é que Ben quis que vocês duas voltassem para junto

de nós e ficamos muito gratos por essa resolução. Vamos nos deitar agora,

Tracey. Precisamos descansar. Até amanhã, querida.

— Até amanhã.

Tracey voltou para o quarto e se preparou para dormir. Deitou e apagou a

luz, mas sua mente estava conturbada demais para conseguir relaxar o suficiente

e adormecer.

Muitas coisas tinham acontecido e ela não se sentia inclinada a permanecer

em Nindethana. Ainda pensava que, se assumisse um comportamento insuportável,

talvez seu tutor acabasse por mandá-la de volta a Sidnei. Mas… não ia ser fácil

agir de maneira desagradável, agora que sabia que a família toda ficara

sinceramente contente por tê-la de volta. Sobretudo Nancy e… o velho Justin

Alexander.

Capítulo V

— Carol sugeriu que déssemos um passeio a cavalo hoje — disse Lyn ao

encontrar a irmã na mesa do café.

— Há muita coisa interessante para se ver, inclusive como se cuida dos

carneiros — Carol acrescentou, para aguçar o interesse das primas. — Ryan já

está lá no campo com alguns peões.

Ao ouvir aquilo, Tracey sentiu-se tentada a recusar o convite. Não queria

encontrar o tutor. No entanto, ao olhar pela janela e ver o dia radioso lá fora, o

céu muito azul e sem nuvens, não resistiu à delícia que seria sair cavalgando por

aqueles campos intermináveis, o vento no rosto, sentindo os movimentos livres do

animal.

— Vamos então — ela concordou. — Como faremos para chegar lá?

— Podemos seguir ao longo do córrego por algumas milhas, até chegarmos ao

Poço do Diabo. Passaremos pelas antigas minas para depois cortar caminho pelos

pastos e finalmente chegar ao posto avançado de tratamento de animais.

— Poço do Diabo? — Tracey estava curiosa. — Que nome engraçado!

— Em língua nativa, Wirrabilla — Carol explicou. — Foi justamente por causa

do poço que o lugarejo ganhou esse nome. O folclore nativo conta que o Poço do

Diabo é habitado por um peixe que morde.

— É muito interessante! — Tracey comentou, enquanto Lyn fazia uma careta

de medo. — E as minas, Carol? Eram de ouro?

— Não. De opalas. Logo depois da virada do século, houve uma corrida louca

a estas minas. Depois de alguns anos, porém, o pessoal que as explorava achou que

não valiam mais a pena e abandonaram tudo o que já estava construído. Ainda é

possível encontrar cabanas cheias de pedaços pequenos de pedras e muitos poços

meio desmoronados. Quando éramos crianças, gostávamos muito de fazer

explorações nessas velhas minas.

— Esse tipo de lugar parece ter um apelo irresistível para crianças —

comentou Tracey, que adorava ouvir falar sobre lugares antigos.

— É verdade. Uma ocasião tio Richard nos pegou numa dessas aventuras e

ficou furioso.

— Quem é tio Richard?

— O pai de Ryan e Glen. Não pode calcular como ele ficou bravo. Mandou que

eu e meus irmãos voltássemos para casa e fez com que Ryan e Glen passassem o

mês todo verificando e consertando as cercas da fazenda em seus pontos mais

extremos. Nunca mais tentamos repetir a façanha.

Tracey se deliciou com a ideia de que Ryan, um dia, tivesse sido castigado

pelo pai. Saber daquilo fazia com que ele parecesse menos o eterno manda-chuva,

Sempre pronto a comandar tudo e todos.

— Tio Richard já morreu, não é? — Lyn perguntou.

— Sim, há mais ou menos seis anos. Ou talvez sejam cinco, não estou bem

certa. — Carol reparou que a mãe se aproximava. — Não é isso, mamãe? Não faz

cinco ou seis anos que tio Richard morreu?

— Isso mesmo. Foi um caso muito triste. Ele e mais alguns dos peões

estavam nas encostas, tentando debelar um incêndio na mata. O tempo estava

muito seco, há meses que não caía uma gota de chuva, e o fogo prosseguia com

incrível rapidez. Eles tinham acabado de controlar um foco, quando o vento

mudou, soprando na direção deles e levando as brasas. Por mais que tentassem,

não conseguiram escapar.

As quatro mulheres ficaram em silêncio, imaginando a horrível cena dos

homens perdidos no meio do fogaréu, sem chance de sair dali com vida. Nancy

percebeu que o ambiente ficara pesado e tratou de espantar a tristeza.

— Quais são os planos para hoje? — ela esforçou-se para perguntar num tom

alegre.

As três primas logo responderam juntas, cada uma mencionando um lugar

diferente, dentre aqueles que Carol tinha dito que iriam ver. Num instante

estavam rindo animadamente com a confusão de vozes que haviam criado.

— Prometam apenas que ficarão longe dos poços da mina. Lembrem-se de

que a madeira ali está podre e que desmoronamentos são comuns naquele lugar.

Além disso, poderiam se perder facilmente nos corredores escuros e mal

ventilados.

— Prometemos solenemente, mamãe. Acabei de contar às meninas o que

aconteceu da última vez que tentamos desobedecer às ordens.

— O importante não é lembrar isso aqui, mas sim quando estiverem lá.

— Não se preocupe, Nancy — Tracey se adiantou em responder. — Seremos

cuidadosas.

As três moças foram para a cozinha e prepararam um lanche. Depois

seguiram até a cavalariça, escolheram três animais bonitos e altos para montar e

saíram pelos campos. Tracey se deliciava com o barulho dos cascos dos cavalos

contra a terra macia.

Seguiram por campos verdes, até alcançarem o local onde árvores mais

copadas acompanhavam o regato borbulhante que corria por entre pedras,

formando pequenas cascatas e redemoinhos. Finalmente, alcançaram uma

depressão rochosa, que parecia ter se deslocado em tempos imemoriais, sob o

poder de uma força irreprimível.

Chegaram, então, ao Poço do Diabo. Ali desmontaram e desceram

cuidadosamente a escarpa inclinada coberta de pedregulhos, até atingirem um

pequeno lago de águas profundas, abrigado sob a proteção de uma árvore secular

que descia seus galhos até a água.

Lyn foi a primeira a chegar. Ajoelhou-se à beira do lago e colocou a mão na

água, a fim de jogá-la no rosto para amenizar o calor.

— Meu Deus! A água está gelada!

— É sempre assim — Carol disse rindo. — É um choque quando se sente como

ela é fria, não é?

Tracey se ajoelhou ao lado da irmã e colocou também as mãos na água.

— É esquisito mesmo! Sempre pensei que as águas subterrâneas fossem

quentes — comentou, voltando-se para Carol que se juntava a elas.

— Normalmente as águas artesianas e semi-artesianas são quentes, mas

esta é realmente muito fria. Dizem que é porque este lago é fundo demais.

Ninguém sabe sua profundidade exata.

— Tenho medo de coisas sem fundo — Lyn falou, colocando-se de pé e

recuando alguns passos.

— Prefere o azul infinito do céu, não é? — Carol brincou. As três primas

lavaram o rosto e as mãos, beberam a água fresca e pouco depois montaram de

novo para prosseguir em seu caminho. Tracey olhava ao redor, com crescente

interesse. A paisagem era linda e diferente de tudo que já tinha visto. O solo era

muito vermelho, com vegetação baixa e as árvores retorcidas eram cobertas por

uma poeira fina que pairava no ar. Tudo ali era tão grandioso e ermo que ela

sentiu-se pequena e insignificante. Havia naquele lugar uma certa beleza mística e

Tracey deixou-se envolver pelo fascínio daquela paisagem. Incrível! Tinha saído

para o passeio certa de que iria odiar tudo o que visse, repelir qualquer tentativa

de se adaptar ao cenário e, no entanto… lá estava ela com o coração repleto de

um quase estado de graça, tamanha era a grandiosidade e o esplendor daquelas

terras.

— Vocês têm poços artesianos por aqui? Ou semi-artesianos? — Tracey quis

saber. — Para ser sincera, não sei qual é a diferença entre um e outro.

Carol se apressou em explicar:

— Quando se faz um poço e a água sai naturalmente é porque se atingiu um

bom lençol d'água: é o poço artesiano. No semi-artesiano, a água tem que ser

puxada por bombas.

— Há muitos desses poços na propriedade? — Lyn quis saber.

— Não posso dizer com certeza, porque não moro aqui. Mas deve haver uns

nove ou dez, além de duas nascentes naturais e alguns tanques subterrâneos. A

água é indispensável numa fazenda, não se esqueçam disso.

Encontraram um rebanho de carneiros no caminho. Eram centenas de

animais, que andavam com as cabeças curvadas, aproveitando o pasto excelente.

Era uma bela cena!

— Mora perto daqui, Carol? — Tracey indagou.

— Depende de você estar na estrada ou no avião. Nossa fazenda fica perto

da fronteira, em Queensland, bem perto da cordilheira.

— É lá que se cultiva trigo e também se cria carneiros, certo?

— Realmente, é isso que fazemos.

— A propriedade de nossa outra tia também fica para esse lado? — Lyn

perguntou, impressionada com a imensidão das fazendas.

— Não. Vocês vão ver que gostamos de nos espalhar pelo país. A fazenda de

tia Rita fica na parte centro-oeste, em Nova Gales do Sul. Lá existem plantações

de soja, girassol e algodão, de onde se tiram as sementes para a extração de

óleos comestíveis. Mas também criam carneiros.

— Puxa! A família gosta de diversificar, não é? — observou Tracey, cada vez

mais impressionada.

— É a melhor política — Carol continuou. — Desse modo, se uma das

fazendas sofre por causa do clima ou de qualquer outro fator adverso, as outras

podem ajudá-la a superar a crise até a safra seguinte.

— Com isso você quer dizer que todas essas propriedades pertencem aos

Alexander? — Tracey indagou, mal podendo acreditar no que ouvia.

— Claro. Além disso ainda temos a propriedade que Glen e Pamela vão dirigir,

quando voltarem da lua-de-mel, e várias outras menores, mais ao norte de

Queensland. Temos também algumas casas na costa, sociedade numa mina de

safiras, ações de diversas companhias em ascensão e participação em sociedades

nas quais entramos apenas com o capital. A família está metida em tantos e tão

variados negócios, que precisaria de mais tempo para mencionar todos. Querem

que eu continue?

— Não, já basta — disse Lyn. — Estamos convencidas de que a família

Alexander domina uma boa parte do país.

— Não me diga que existem outros ramos de atividade — Tracey exclamou,

sem poder entender como uma só família podia se dedicar a tantas coisas ao

mesmo tempo.

— Claro! Trabalhamos com amendoim, açúcar, algodão…

— Está bem. Chega! — Tracey riu. — Já percebi que os Alexander estão

mesmo metidos em tudo.

Carol inclinou a cabeça para trás, numa gargalhada gostosa.

— Posso propor um desafio a vocês? Vamos ver quem chega mais depressa

ao alto daquele morro, perto daquela árvore alta e retorcida?

— Vamos lá — Tracey e Lyn gritaram a uma só voz, esporeando os cavalos

para que eles saíssem a galope.

À medida que os cavalos seguiam morro acima, deixavam atrás de si uma

nuvem de poeira vermelha, deslocavam pedras pequenas que rolavam morro abaixo

e arrancavam tufos de mato seco. Em pouco mais de um minuto, as três moças

atingiram o local indicado.

Pararam por um momento no topo do morro e Carol apontou para um regato

que corria lá embaixo, por entre árvores, bancos de areia e pedras que brilhavam

à luz do sol forte.

— Ali são as velhas minas — ela disse. — Querem descer? Tracey e Lyn

concordaram imediatamente.

— Tomem cuidado ao descer e quando chegarmos lá embaixo abram bem os

olhos. Há muitos poços que não estão mais sinalizados e, se não ficarem atentas,

correrão o perigo de cair num deles.

Tracey, Lyn e Carol desceram o morro e desmontaram, deixando os cavalos à

sombra das árvores. Em seguida prosseguiram a pé, examinando a boca da mina,

que se abria num túnel e se perdia em meio à escuridão.

Descobriram a entrada de um antigo poço e, muito curiosas, olharam em seu

interior, para ver se encontravam alguma coisa interessante. O calor estava forte

e Tracey abriu um botão de sua camisa xadrez, sentindo a pele úmida pela

transpiração.

— Realmente, tinha que compensar muito, trabalhar nesse calor escaldante

— disse, dirigindo-se à prima. — Foram encontradas pedras de grande valor por

aqui?

— Algumas eram grandes e bonitas, mas não eram opalas pretas, o tipo mais

procurado e valioso. As que se encontravam aqui eram do tipo leitoso.

— Não existe mais nada nessas minas? — Lyn quis saber. — Por isso estão

abandonadas?

— Acredito que ainda haja muita coisa por aí. Muitas vezes se considerou as

minas extintas e, no entanto, em explorações posteriores se encontrou muita

coisa. Mas, naturalmente, não é mais como naqueles primeiros tempos em que as

pedras preciosas eram tão abundantes que nem se precisava procurar muito para

conseguir uma fortuna da noite para o dia. Essas formações rochosas são típicas

produtoras de opalas, mas nunca foram muito exploradas devido à falta d'água.

— Mas… não podiam abrir um poço? — disse Lyn, numa tentativa de

solucionar o problema.

— Quem vai se arriscar a investir um dinheirão na abertura de um poço,

quando não há certeza de encontrar opalas? Além disso, não é certo que

conseguiriam encontrar água.

Aquele lugar era incrível, Tracey pensou. Tão cheio de riquezas bem

guardadas pela natureza! Olhando ao redor, avistou cabanas semidestruídas, onde

um dia trabalhadores tinham se abrigado, para se protegerem contra os rigores

do clima.

— Está gostando daqui, não é, Tracey? — perguntou Carol, chegando perto

da prima. — Não a faz pensar em como eram os homens que viviam aqui? Não tem

curiosidade em saber se eles conseguiram realmente ficar ricos ou se partiram

sem um centavo, tão pobres como quando chegaram?

— É verdade. Acha que ainda se pode encontrar os registros daquele tempo?

— Talvez ainda existam cópias das licenças expedidas. Mas nelas não consta

o nome dos exploradores, nem o lugar onde trabalhavam. Portanto, seria muito

difícil seguir o caminho e a vida de um deles.

— Tem razão. Se alguém se dispusesse a fazer essa pesquisa, levaria anos

procurando e analisando, sem chegar, quem sabe, a um resultado real.

Lyn se aproximou das duas moças.

— Para onde vamos agora? — ela perguntou.

— Vamos ao local onde Ryan e os peões estão cuidando dos carneiros. Se nos

apressarmos, chegaremos a tempo de almoçar com eles. — As primas montaram

em seus cavalos e Carol seguiu na frente, tomando uma passagem estreita, à

direita da mina.

Lyn a seguiu imediatamente e Tracey também, embora não tivesse vontade

nenhuma de rever o primo. Seguiram num trote rápido, atravessaram o regato e

pouco depois avistaram uma nuvem de pó vermelho que se elevava de uma planície.

— Chegamos a tempo! — Carol exclamou, satisfeita. — Vamos abrir a

porteira.

Tracey achou estranho encontrar cerca e porteira num local que parecia

completamente desabitado. Assim que desceram a colina, no entanto, avistou

algumas edificações, perto das quais havia vários homens reunidos, lidando com

carneiros. Cães pastores dirigiam os animais para uma passagem estreita, onde

eles tomariam, necessariamente, uma ducha forte. Carol explicou às primas que

aquele jato d'água banhava os carneiros com uma solução desinfetante, que

impedia que os animais fossem picados por moscas. Depois da ducha, os carneiros

seguiam por um caminho demarcado por cercas, até atingirem um tanque onde

podiam beber água, à vontade.

Uma meia dúzia de homens dirigia a operação, entre eles Ryan, que se

distinguia dos demais por seu porte avantajado, a calça de brim muito justa, o

chapelão grande de fazendeiro na cabeça, protegendo seus olhos do sol.

Por mais que o odiasse, Tracey não conseguia tirar os olhos dele. Havia uma

aura primitiva em torno daquele homem atraente e sensual que a deixava trêmula,

os nervos à flor da pele, incapaz de negar sequer a si mesma o magnetismo viril

que emanava dele.

De longe, Ryan acenou com o braço para cumprimentá-las. Propositalmente,

Tracey se deixou ficar mais para trás. Desceu do cavalo e se encostou na grade,

fingindo-se muito interessada em ver o que faziam com os carneiros. Podia ouvir

Lyn e Carol contando a ele tudo que tinham feito no caminho, e ver os três se

divertindo, dando boas risadas.

Quando se virou, a fim de ir para junto da irmã, encontrou os olhos azuis de

Ryan muito perto dos seus. Não percebera a aproximação dele. Involuntariamente

prendeu a respiração e por um momento o verde e o azul de seus olhos se

encontraram.

— Ainda não se convenceu de que precisa tomar determinadas precauções

por aqui, Foguinho? — indagou Ryan, o rosto sério e os polegares metidos em seu

cinto largo de couro. — Ou se julga melhor e mais forte do que nós e incapaz de

ter insolação?

— Nada disso — Tracey respondeu, passando as mãos por seus cabelos

longos. — Apenas não gosto de usar chapéu. Meu cabelo é grosso e protege

perfeitamente meu couro cabeludo e minha nuca também.

— Mas daqui para a frente vai usar chapéu — Ryan insistiu, sem se deixar

influenciar pelo que ela dizia.

— Não vou! Já disse que não preciso!

— Vai, sim, se quiser sair a cavalo. Vou deixar ordens na cavalariça para que

não selem um animal para você, se não estiver de chapéu.

— Eu mesma posso colocar a sela e…

— Ainda não entendeu, Tracey? Não vou dar permissão para que pegue um

cavalo, se não estiver convenientemente protegida.

— Está ameaçando de me deixar presa em casa, caso não obedeça?

— Não estou ameaçando, nem proibindo. Você é quem vai decidir. Estou

apenas zelando por sua saúde e bem-estar. Se ficar em casa, a culpa será toda

sua. Não sei por que está sempre pronta a retrucar — Ryan disse, tirando seu

chapéu e colocando-o na cabeça dela. — Faça o que quiser depois, mas enquanto

estiver aqui terá que usar esse chapéu, entendeu?

Tracey ficou observando Ryan se afastar, seus ombros largos, as pernas

musculosas, a cabeça erguida. Sentiu uma vontade doida de pegar o chapéu, jogá-

lo no chão e pisar em cima, mas controlou-se. Não podia tomar uma atitude

daquelas diante de homens que estavam acostumados a obedecer à vontade do

patrão. Concordaria com ele, pelo menos por enquanto.

Tratou de se juntar ao resto do grupo. Intimamente, sabia que Ryan tinha

razão. O sol ali era forte demais e naquele momento estava a pino. Todos ali

tinham a cabeça coberta. Mas… não havia mentido quando dissera que sua cabeça

estava fresca e que estava habituada a andar com ela desprotegida.

Quando encontrou a irmã e a prima, as duas lavavam o rosto e as mãos.

— Agora me sinto muito melhor — Carol comentou, bem-humorada. — Vamos

almoçar logo mais. Ryan disse que assim que terminarem com os carneiros virão

todos para cá.

— Enquanto esperamos, por que não vamos ver o que eles fazem com os

animais? — Lyn propôs. — Que tal, Tracey?

Ela concordou. Não tinha mais nada para fazer, mesmo… Para sua surpresa,

porém, logo se interessou pelo trabalho daqueles homens e se juntou à irmã e à

prima, nos risos e nos comentários.

À hora do almoço, sentaram à mesa com Ryan, Doug e mais dois dos rapazes

que lidavam com os carneiros. A conversa fluía fácil e todos se divertiam muito,

contando casos engraçados. Tracey participou da alegria geral, mas não se sentia

muito à vontade perto de Ryan, cujos olhos estavam sempre voltados em sua

direção.

Terminada a refeição, todos se levantaram para ir para fora, mas Ryan

segurou Tracey pelo braço.

— Já preveni Lyn, mas ainda não tive oportunidade de avisá-la, Tracey. Não

quero que saiam a cavalo sozinhas, sem antes me avisarem. A propriedade é muito

grande e é fácil para uma pessoa se perder, quando não conhece bem os caminhos.

Compreendeu?

Tracey tornou a sentir a velha revolta. Ryan parecia interessado na

segurança dela, mas desconfiava que, por trás do zelo, havia o desejo de

demonstrar mais claramente quem era a autoridade por ali.

— E se eu esquecer de avisá-lo? — perguntou com petulância. — Sou um

pouco distraída.

— Então comece a me dar conta de tudo o que pretende fazer. Faça isso

todos os dias e se tornará um hábito.

— Está brincando?

— Não. Falo a sério. Para que nunca se esqueça, é bom se acostumar a falar

comigo todas as manhãs.

— Mas… Nancy me disse que você sai muito cedo!

— É só modificar seu horário de levantar e tudo ficará resolvido.

— Isso não vai funcionar! Posso, de repente, resolver sair e… como posso

saber se vai aprovar ou não, se não estiver em casa para eu perguntar?

— Nesse caso terá que esperar até que eu volte. A disciplina tem que ser o

lema de nossa vida.

— Como pode dizer isso? Você provavelmente nem desconfia o que seja

obedecer a alguém! — resmungou Tracey, furiosa.

Era incrível! As coisas ficavam piores a cada minuto que passava. Só faltava

agora ter que pedir também para andar a cavalo, para ir à cidade, par…

Os pensamentos de Tracey foram interrompidos, ao sentir o rosto de Ryan

muito perto do seu, os olhos azuis frios e ameaçadores sobre ela.

— Não me provoque, Tracey — ele a advertiu. — Posso resolver lhe mostrar

o que é disciplina!

— Então não me provoque também, insistindo para que eu lhe dê conta de

meus atos todos os dias — ela protestou, zangada.

Percebendo, porém, que Ryan continuava inabalável em sua decisão, resolveu

abrandar a situação.

— Está bem, está bem! Já que faz tanta questão, posso lhe avisar quando

pretender sair a cavalo. Mas isso vai ser tudo. Só vou avisá-lo dos meus planos em

relação aos passeios a cavalo… nada mais!

Esperava que o tutor revidasse suas palavras com igual veemência.

Entretanto, para sua surpresa, o semblante atraente de Ryan se abriu num leve

sorriso, que iluminou seu rosto antes tão zangado.

— Chegou à conclusão de que esse é o menor dos males, certo? Mas será que

posso mesmo confiar em sua memória, já que me disse que é tão distraída?

— Claro que sim! Não acabei de afirmar que irei avisá-lo? O que mais você

quer? Um contrato formal, assinado por testemunhas?

— Está bem — Ryan concordou rindo, soltando o braço de Tracey e se

afastando dela, com passos tranquilos.

Por que diabos ele agia assim? Tracey perguntava a si mesma. Seria para ser

desagradável ou para mantê-la ciente de sua autoridade de tutor? Ah! Aquele

homem era insuportável! Atraente c sensual, com um magnetismo que a deixava

atordoada, tinha que admitir, mas ainda assim insuportável!

Vendo que Ryan fora se juntar aos peões, suspirou e foi ao encontro de

Carol e Lyn.

Capítulo VI

Tracey não se afastou da casa pelo resto da semana. Estava tão confusa

sobre as instruções que o tutor lhe dera, que não sabia bem se precisaria da

aprovação dele apenas para sair a cavalo sozinha ou também na companhia de

outras pessoas. Na dúvida, achou melhor não arriscar e ficou em casa. Não tinha

a menor vontade de pedir o que quer que fosse a Ryan.

Sua atitude não passou despercebida. Justin achava esquisito que uma moça

tão bem disposta passasse o dia todo enclausurada em casa.

— Há algo errado com você, Tracey? — ele perguntou um dia. — Por que não

saiu junto com os outros?

— Não estava com vontade — ela respondeu, evasivamente, enquanto

folheava uma revista já bastante antiga.

— Bobagem! Uma amazona tão boa quanto você não perderia a oportunidade

de sair para uma boa cavalgada, principalmente tendo chegado há tão pouco

tempo da cidade grande. Vamos, conte-me. Deve haver outra razão além dessa

pretensa falta de vontade.

Justin sentou-se numa poltrona próxima à dela.

— Por que razão eu iria me apressar? Ficarei aqui mais dois anos e meio,

portanto, terei tempo de sobra para aproveitar as delícias do campo.

— Não se faça de vítima, menina. Você foi muito feliz enquanto morou aqui.

— Eu tinha dois anos naquela época, vovô. Minhas preferências devem ter

mudado um pouco desde então, não acha?

— Mas não para melhor, não é, Tracey?

— Por favor… temos que falar sobre esse assunto de novo? — ela resmungou.

— Peço desculpas por ter sido grosseira, mas, agora, se me dá licença, vou

procurar Nancy para ajudá-la no que for necessário.

— Há empregados de sobra nesta casa e não precisa ajudar ninguém —

retrucou Justin, erguendo a bengala, e colocando-a no caminho de Tracey, para

impedi-la de se afastar. — Por que não fica aqui e me conta sobre o verdadeiro

motivo de não ter ido com sua irmã ver a marcação dos carneiros?

Tracey tornou a sentar-se, mas ficou calada. Aquela revelação poderia ser

perigosa para ela.

— Sua resolução tem alguma coisa a ver com você ter chegado em casa com

o chapéu de Ryan? — o velho arriscou. — Aliás, não sei por que Carol não insistiu

com você para que usasse um. Ela conhece o clima inclemente dessa época do ano

e tinha obrigação de ser mais cautelosa.

— Não foi culpa de Carol, vovô. Ela me ofereceu um chapéu, mas eu respondi

que não precisaria dele. Mas isso não tem nada a ver com o fato de eu não ter

saído com as garotas. Eu apenas não estava disposta a ir, só isso.

Justin recolheu a bengala e por um instante ficou observando Tracey.

— Esse homem com quem estava saindo em Sidnei… sente muito a falta

dele?

— Está falando de Boyd? — Tracey perguntou, surpresa. — Não, não sinto

falta dele, nem estou em casa curtindo a dor de uma separação.

Na verdade, não pensava em Boyd desde que tinha chegado à fazenda.

— Conte-me alguma coisa sobre esse rapaz, menina.

— Sobre Boyd? Não vejo por que deva estar interessado nele!

— Não é nele que estou interessado, mas em você, Tracey. Gostaria de

saber que tipo de homens você admira.

Tracey olhou para o velho, desconfiada. Será que ele estaria querendo

descobrir suas preferências para, de alguma maneira, ligá-la a Ryan?

— Quer saber que tipo de homem me atrai? Bem… ele tem que ser bonito

como um artista de cinema e rico como um magnata do petróleo. Precisa ter uma

ilha particular no Pacífico Sul, e não deve esperar que eu lhe seja submissa.

— Com isso você está querendo insinuar que não é da minha conta, certo,

mocinha?

Pela primeira vez, Tracey achou divertida a companhia do avô. Ele tinha

realmente senso de humor e ela acabou sorrindo.

— Não é exatamente isso, mas acho difícil catalogar uma coisa tão

subjetiva, como o gostar de alguém. Não se pode dizer que se prefere homens

morenos e altos, quando é bem possível que a gente venha a se sentir no céu com

um loiro baixinho. Um dia pensei que tivesse encontrado em Boyd tudo aquilo que

desejava num homem, mas… — ela hesitou, para depois continuar com voz firme —

ele não era a pessoa com quem sempre sonhei.

— Fez essa descoberta graças a Ryan, não foi?

— É verdade. Graças a Ryan!

Tracey e Justin ficaram em silêncio por um instante e então o velho mudou

completamente de assunto. Passou a contar a Tracey sobre a fazenda, que no

início ficara sob a direção de seu próprio avô. Falou também sobre a nova raça de

carneiros Merino que haviam desenvolvido e que tinha se aclimatado per-

feitamente naquela região de calor forte e invernos rigorosos.

Tracey ficou ouvindo Justin contar histórias interessantes relativas a

grandes acontecimentos, como secas, inundações, incêndios difíceis de controlar,

variação no mercado, grandes lucros e perdas significativas… Tão absorvida ficou

nos relatos, que lamentou a chegada de Nancy, anunciando que o almoço estava

servido.

Tinha adorado saber de tudo. Justin relatava os fatos de uma maneira

peculiar e agradável e Tracey chegara mesmo a se emocionar, rir, sofrer e se

divertir com a saga dos Alexander.

No dia seguinte, Carol e Lyn saíram bem cedo, depois de convidar Tracey

para acompanhá-las. Mas, ao ficar sabendo que pretendiam encontrar Ryan,

Tracey recusou o convite, preferindo ficar em casa e observar os preparativos

para o churrasco que iria acontecer no sábado. Foi se afastando até chegar a um

portão de ferro que se abria para o pátio, em volta do qual havia algumas

construções. Atravessou o portão e caminhou até uma delas, que tinha a porta

aberta. Olhando para dentro, viu que era uma espécie de depósito com as paredes

cobertas de prateleiras, repletas de mercadorias variadas, desde peças para

tratores, pás e utensílios domésticos, até roupas e calçados.

— Oi, como vai? — Marty Bradshaw cumprimentou, saindo de um pequeno

escritório que ficava nos fundos da loja. — Veio só para dar uma olhada ou está a

fim de comprar alguma coisa?

— Estava apenas olhando. Mas, já que me mandaram comprar um chapéu,

gostaria de ver se tem algum que me sirva por aí.

— Ótimo. Que tamanho você usa?

— Não faço a menor ideia. Nunca usei nada na cabeça. Não gosto. Mas já que

me disseram que nesse calor é indispensável…

— É mesmo. Veja este aqui. É bem pequeno. Experimente.

Tracey colocou o chapéu, mas ele não entrou além do alto da cabeça, mal

cobrindo seus cabelos.

Marty riu e pegou outro, que desta vez serviu perfeitamente.

— Este está ótimo, Marty. Também gosto da cor. Devo pagar agora, ou…

como é que se faz?

— Não é preciso. Vou abrir uma conta para você. Quando quiser alguma coisa

da loja poderá levá-la, que nós debitaremos em sua conta. Costumamos fazer o

acerto no final de cada mês.

— Está bem, mas não sei como poderei lhe pagar. Estou sem dinheiro.

— Não diga isso, Tracey. Tem sua parte nas ações e também nos lucros da

fazenda e…

— E quanto dá isso?

— Você é mesmo engraçada, Tracey. Nunca procurou saber quanto tem?

A moça balançou a cabeça negativamente.

— Bem, não posso lhe dizer a quantia exata, porque sou o contador apenas

desta fazenda e não sei muito sobre os outros investimentos, que ficam a cargo

de outros contadores em Sidnei. Mas, por alto, posso dizer que a soma das ações

e participações nas sociedades chega à cifra de…

Tracey ficou boquiaberta ao ouvir a quantia que Marty mencionara. Era

incrível! Nunca tinha imaginado que houvesse tanto dinheiro assim no mundo!

Marty prosseguiu com suas explicações, mas Tracey não conseguia registrar

senão palavras esparsas, sem nenhum sentido para ela: a parte de Ben… juntando

juros acumulados durante todos esses anos… em intervalos anuais daqui para a

frente… sem necessidade de trabalhar… etc… etc. Quando o contador parou de

falar, Tracey arregalou os olhos, numa expressão atônita.

— Marty, mas isso é uma fortuna! Jamais pensei que fosse tão grande assim!

— Mas é! — disse ele sorrindo, divertido. — Desde o início os Alexander

tiveram muito tino para negócios e vêm aumentando sua fortuna e ampliando as

propriedades através dos anos. Não sei se aprenderam a agir assim ou se é um

traço inato na família.

Tracey estava em choque. Era muita responsabilidade lidar com uma fortuna

daquelas! Estava assustada em pensar que um dia seria dona de tanto dinheiro.

Embora sempre tivesse considerado Ben Alexander como seu verdadeiro pai, não

estava certa quanto a ter direito àquela fortuna incalculável.

Para disfarçar sua surpresa, Tracey começou a andar pela loja.

— É aqui que você trabalha, Marty?

— Isso mesmo. Naquele escritório. A propósito, gostaria de tomar uma

xícara de café?

— Aceito, obrigada.

Entraram numa saleta, onde a temperatura era agradável, graças a um

enorme ventilador preso ao teto. Marty preparou o café instantâneo, que serviu

em duas xícaras, entregando uma a Tracey. Ela sorveu o líquido vagarosamente. O

café estava quente e forte, exatamente a seu gosto.

— Já tinha lhe avisado que não seria fácil lidar com Ryan, não é, Tracey?

Acabou comprando o chapéu porque ele mandou, não foi? Bem, não podia esperar

que ele mudasse da noite para o dia.

— Você não tem alguma sugestão para que eu consiga dobrá-lo? Ao menos um

pouquinho.

Marty riu, descontraído.

— Não comece a pôr minha lealdade à prova, menina rebelde. Só posso lhe

aconselhar a não tentar remar contra a maré, senão vai acabar se cansando muito

depressa.

— Disse exatamente o que eu esperava de você, Marty. Sabia que iria apoiar

seu patrão. Vocês homens sempre tratam de se defender uns aos outros.

Marty riu novamente, antes de tomar um gole de café.

— Marty! — A porta se abriu de repente e Ryan entrou com pressa. — Viu

Tracey por aí? Se ela saiu a cavalo sem me avisar, vou...

Foi então que ele a viu no escritório. Tracey não sabia que espécie de

ameaça ele iria fazer, mas só de olhar o rosto zangado dele pôde calcular como

seria enfrentar aquele homem no auge da fúria. Mesmo assim, resolveu provocá-

lo.

— Você vai... o quê? — perguntou, erguendo o queixo. — Estava pensando em

me mandar para a cama sem jantar?

— Não. Tinha pensado num castigo físico. É bom que se lembre disso no

futuro.

Tracey teve vontade de se rebelar e mandá-lo para o inferno, mas sabia que

seria inútil. Resolveu lançar mão do sarcasmo e colocou a mão na testa, numa

continência militar.

— Sim, senhor. O que disser, senhor! Acha que devo me autodestruir agora?

Ryan enfiou as mãos nos bolsos do jeans e sorriu com ironia.

— Até que não seria má ideia!

Os dois sorriram com a encenação.

— Parece que estamos nos entendendo melhor hoje, Tracey. Vamos partilhar

mais alguma coisa, além do nosso bom humor?

Tracey pensou que ele estivesse se referindo ao café que estavam tomando,

mas Ryan pegou a xícara que ela tinha nas mãos e colocou sobre a mesa. Depois

sentou-se na cadeira onde antes ela estivera sentada e colocou-a no colo sem a

menor cerimônia, segurando-a firmemente pela cintura, para impedir que se

levantasse.

Então era a isso que Ryan tinha se referido! Queria dividir a cadeira com

ela! De fato, no pequeno escritório não havia outro assento disponível e Ryan se

instalava como queria.

Tracey se virou para mostrar seu descontentamento, mas encontrou os

olhos azuis do tutor muito perto dos seus, cheios de divertimento pela situação.

Desapontada, voltou-se para frente, tentando escapar dos braços fortes que a

enlaçavam. Mas foi inútil! Quanto mais lutava para escapar, mais ele a puxava para

perto de seu peito atlético. Impotente, procurou sentar-se bem ereta e se

distrair, ouvindo a conversa dos dois homens.

Num determinado momento, porém, sentiu que Ryan começara a deslizar os

dedos para cima e para baixo em suas costas, em movimentos leves e distraídos,

como se estivesse agindo mecanicamente, como quem afaga as orelhas de um

cãozinho.

Mas aquelas carícias suaves não cessaram e Tracey deduziu que Ryan devia

ter consciência do que estava fazendo. O mais estranho é que ela se sentia

excitada com o deslizar macio daqueles dedos longos.

O que estaria acontecendo com ela? Por que a presença de Ryan a afetava

daquela maneira? Sem dúvida, ele era muito atraente, mas… ela não era uma

adolescente idiota, sonhando acordada só por que um homem a acariciava! Por

que, então, respirava agora com dificuldade, enquanto seu coração batia

descompassado, a pele parecendo queimar sob a camisa de algodão?

"Controle-se, Tracey", ela ordenou a si mesma. "Do contrário acabará se

alegrando por tê-lo como tutor!"

Tinha que dar um jeito de sair dali. A conversa se alongava indefinidamente

e já não aguentava mais ficar no colo de Ryan, excitada, as pernas bambas, o

sangue fervendo.

— Já percebi que vocês dois têm muito o que conversar — disse em tom bem

casual. — Vou deixá-los à vontade e voltar para casa — acrescentou, tentando se

levantar.

— Desculpe, Tracey — Ryan falou. — Não pretendia deixá-la fora da

conversa. Mas, já que estava aqui, queria resolver uns assuntos com Marty.

Espere mais alguns minutinhos e poderemos voltar juntos.

— Não é preciso. Ryan. Não vou me perder.

Tracey levantou-se e, por sorte, viu que Nancy passava ali por perto.

— Nancy está aí e preciso conversar com ela sobre uns detalhes para o

churrasco de sábado — disse rapidamente, antes de se afastar dali, aliviada por

estar livre do contato perturbador das mãos de Ryan.

— Não se esqueça do chapéu — Ryan lembrou.

Tracey virou-se para pegá-lo e naquele momento Ryan olhou para ela, como

se dissesse que realmente tivera vontade de acariciá-la. Mas Tracey estava certa

de que sua excitação também não passara despercebida. Tudo era evidente

demais em seus olhos expressivos. Respirou fundo, murmurou um rápido "obri-

gado" e saiu correndo do armazém.

A casa começou a se encher logo cedo, no sábado. Os convidados, em sua

maioria parentes mais próximos, chegavam de carro ou avião.

O pai de Carol veio junto com os dois filhos: Ross, de vinte e cinco anos, e

Lance, de vinte e dois. Ambos eram muito alegres e simpáticos e cumprimentaram

as novas primas com prazer e animação.

Apesar do calor, as jovens resolveram jogar uma partida de tênis. Foi um

jogo demorado e, quando terminaram, sentaram-se no gramado para tomar

refrigerantes gelados.

Um avião cortou o céu e aterrissou no campo. Carol logo o identificou como

sendo da família de tia Rita.

— Que bom! Tia Rita e Tio Owen chegaram! — ela exclamou. — Frank deve

estar com eles. Vamos encontrá-los, Lyn?

— É mais fácil esperar por eles aqui em casa, Carol — Ross sugeriu. — Vai

levar algum tempo até que eles peguem o carro no campo e venham para cá.

— Tem razão — Carol concordou. — Vamos lhes dar um pouco de tempo.

Noeleen e Dennis também vêm?

— Quem são eles? — Lyn quis saber.

— Noeleen é a irmã mais velha de Frank. Ela é casada com Dennis e têm três

filhos que são uns amores!

— Como podemos saber, Carol? — Ross respondeu depois das explicações. —

Acabamos de chegar! Você, que está aqui com mamãe, é que deveria saber de

tudo. Por que não pergunta a ela? — Ross sorriu com malícia. — Por que está tão

interessada em saber? Ainda precisa da proteção de Noeleen contra a Viúva

Alegre?

— É isso mesmo que ela é! — Carol comentou, fazendo uma careta. — O

corpo do marido ainda nem tinha esfriado e ela já estava aqui, correndo atrás de

Ryan!

— Ora, Carol, deixe disso! — O irmão falou. — Só porque Lana a perturbou

uma vez, isso não quer dizer que ela seja uma mulher má, não é?

— Tenho ódio dela! — Carol retrucou, com raiva.

Tracey ficou surpresa com a reação da prima. Carol não costumava ficar tão

brava, pelo contrário, tinha um temperamento tranquilo e era sempre muito bem-

humorada!

— A Viúva Alegre pode ser muito melosa e sorridente para você, Ross, mas

nem todo mundo pensa do mesmo jeito. Não rosto dela! — Carol repetiu.

— Você tem prevenção contra Lana porque ela se mostrou interessada em

seu adorado Ryan. Sempre idolatrou Ryan e é rapaz de encontrar defeitos em

qualquer mulher que se aproxime dele! Enfrente a realidade, Carol. Ryan não vai

lhe prestar contas, nem ligar para sua opinião, quando quiser estar com uma

pessoa. Quanto a Lana… não acha que está exagerando? Não está criando uma

tempestade em copo d'água, por causa de um comentário feito há muito tempo?

— Não adianta vir com discursos, meu querido irmão. Também não me venha

com essa conversa de que sou gamada por Ryan, porque não é verdade. Gosto

dele, sim… Quem não gosta? Mas, na minha opinião, Lana Renfrew é uma perfeita

vampira e nada no mundo vai me fazer mudar de ideia!

— Não acha que está exagerando de novo? — observou Ross, mantendo-se

calmo diante da explosão da irmã.

— Então vamos mudar de assunto — Lance resolveu interferir. — Que tal se

as meninas derem um pulo em casa e disserem para Frank que o estamos

esperando? Ainda temos tempo de jogar mais uma partida.

Carol levantou-se de um salto.

— Está bem. Vou até lá. Vem comigo, Lyn?

As duas moças, sempre juntas, se encaminharam para casa, enquanto Ross

gritava:

— Se encontrarem Ryan digam-lhe que venha também. Quero ter uma

revanche, depois da lavada que ele me deu na última vez que estive aqui!

Carol fez um sinal afirmativo para o irmão e continuou seu caminho,

acompanhada por Lyn. Ross tornou a sentar-se ao lado de Tracey.

— Carol fica furiosa quando se fala em Lana Renfrew. Nem me lembro mais

por que ficou com tanta raiva dela, mas, cada vez que a família se reúne, Carol e

Noeleen se preparam para atingi-la. Talvez, agora que você e Lyn estão aqui, ela

esqueça essa bobagem e compreenda que não há motivos para não gostar daquela

moça. De minha parte, não tenho nada contra ela e, se por um acaso ela e Ryan

começarem um relacionamento permanente, não quero que Carol fique ressentida.

Ryan é independente demais e nunca permitiria interferências externas em sua

vida.

Tracey apenas ouvia, sem fazer qualquer comentário. Compreendia a

preocupação de Ross com a irmã, mas não achava prudente fazer julgamentos

precipitados. Não conhecia Lana Renfrew, portanto… Todavia, era estranho que

tanto Carol quanto Noeleen se opusessem com veemência à tal viúva.

Algum tempo depois Carol e Lyn voltaram com Frank, um rapaz muito

animado, que logo se dispôs a participar da partida de tênis. Tracey acompanhou-

os até a quadra e não teve mais tempo de fazer conjecturas a respeito de Lana, a

Viúva Alegre. Depois de várias partidas, os rapazes resolveram parar, do

contrário ficariam cansados demais para aproveitar a noite em família. Ryan não

tinha aparecido, embora as moças tivessem deixado recado para ele.

Enquanto se dirigiam para casa, Tracey ficou pensando consigo mesma que

não saberia dizer se tinha ficado satisfeita ou triste com a ausência de seu

tutor.

Capítulo VII

O sol já morria no horizonte quando Tracey se olhou no espelho. Usava o

vestido verde que tinha escolhido para o churrasco. Era uma roupa leve, gostosa

e, além disso, realçava a cor de seus olhos. Tinha a cintura bem marcada e a saia

larga, que lhe chegava até os joelhos. O decote redondo revelava seu colo bonito

e o início da elevação dos seios firmes.

Seria falsa modéstia não admitir que estava muito bonita. Dali a instantes

iria conhecer a família toda e esperava causar boa impressão.

Ouviu leves batidas na porta de seu quarto. Eram Carol e Lyn que entravam,

já prontas para a festa.

— Você está linda, Tracey! — exclamou a irmã. Depois virou-se para Carol. —

Dê uma olhada nela. O que acha?

— Maravilhosa! — a prima concordou com sinceridade. — Será que vai sobrar

algum rapaz para nós?

— Parem com isso! — Tracey exclamou rindo. — Desse jeito vão me deixar

tão inchada de orgulho, que sou capaz de não conseguir passar pela porta. Já vi

que estão prontas e eu ainda não.

— Não, mesmo? — indagou Carol, olhando-a com admiração. — Consegue

ficar ainda mais linda do que já está?

— Não posso ir a uma festa sem sapatos, não é? — disse Tracey, apontando

para os pés descalços. — Também falta prender o cabelo. Quero fazer um coque.

— Ah, Tracey! Deixe-o assim como está — Lyn pediu. — Fica tão bem com os

cabelos soltos!

— Lyn tem razão — Carol concordou. — Assim está ótimo!

— Está bem. Seguirei a opinião de vocês.

Calçou as sandálias de saltos altos que combinavam com o vestido e deu mais

uma boa escovadela nos cabelos, que lhe caíram em ondas suaves e sedosas sobre

os ombros.

— Acha que a festa vai ser animada, Tracey? — Lyn perguntou.

— Sem dúvida. Pela quantidade de gente, parece mais uma festa de

casamento.

Carol achou graça no comentário.

— Diz isso porque não esteve presente no casamento de Glen e Pamela.

Tinha tanta gente nesta casa, que foi necessário colocar as mulheres para dormir

nos quartos e os homens tiveram que se ajeitar nos sofás das salas e também na

varanda. Foi a única maneira de acomodar a todos.

— Puxa! — exclamou Tracey, olhando-se mais uma vez no espelho, satisfeita

com sua imagem. — Bem, vamos, garotas. Se temos que enfrentar a multidão, é

melhor descermos.

A casa estava repleta lá embaixo, os gramados iluminados por lâmpadas

coloridas, as mesas compridas preparadas para o churrasco e o cheiro gostoso de

carne na brasa abrindo o apetite dos convidados. Justin logo chamou as netas e

se encarregou de fazer as apresentações. Eram tantos os nomes e as fisionomias

novas, que Tracey concluiu que seria inútil tentar gravá-los na primeira vez!

Guardou, porém, a noção de que a maioria daquelas pessoas fazia parte da

família. Foi apresentada a tia Rita e tio Owen, ao irmão mais velho de Frank,

Kent, e à sua noiva, Sherry. Ficou encantada ao conhecer Noeleen, outra de suas

primas, seu marido Dennis e muitas outras pessoas.

Quando as apresentações terminaram, reparou no serviço irrepreensível dos

empregados, nos copos que tilintavam, no barulho constante da conversa e na

decoração bonita da casa e dos jardins. Foi então que avistou a figura imponente

de seu tutor. Ele se distinguia dos demais, não apenas por seu porte avantajado,

mas também pela personalidade marcante.

Reparou, então, na mulher que estava ao lado dele. Só podia ser Lana

Renfrew. Observou-a melhor. Lana devia ter uns trinta anos e sua beleza chegava

quase à perfeição: o rosto oval, o nariz pequeno e a boca insinuante. Seu corpo

escultural era valorizado pelo vestido vermelho e justo que se amoldava às suas

curvas, como uma luva. Lana não era muito alta. Tinha o cabelo negro preso no alto

da cabeça e a pele clara parecia intocada pelo sol inclemente daquela região. Sem

dúvida, ela faria a alegria de qualquer fotógrafo!

E poderia ser de outro modo? Ryan se conformaria com algo menos que a

perfeição? Parecia bem próprio dele se encantar por uma mulher daquele tipo!

Nesse momento, Tracey reparou em Carol a seu lado e em seu rosto sério e

zangado. Notou, então, que a prima também olhava na direção de Ryan e Lana.

— Ela que não venha com desaforo desta vez — disse a garota — porque

senão… sou bem capaz de… de… Nem sei de quê!

— É isso que ela faz? Diz coisas desagradáveis? — Tracey indagou.

— Mais que isso. Lana faz questão de me ridicularizar. Mas faz isso de uma

maneira pretensamente doce e suave, como se realmente estivesse procurando

ser útil e amigável. Finge estar interessada em meu bem-estar, mas lembra que

estou um pouco gorda, ou que a cor que estou usando não me fica bem, ou que meu

cabelo ficaria muito melhor se fosse crespo… coisas desse tipo, entende? Se

fizesse os comentários em particular, eu nem me incomodaria tanto, mas ela faz

questão de falar em público! Por isso, sempre acabo me sentindo diminuída! — Ela

respirou fundo. — Odeio essa megera, Tracey! E o pior é que sou obrigada a

encontrá-la em todas as festas da família, que não são poucas. Ah! Como gostaria

de fazê-la passar pelo mesmo que eu, nem que fosse uma única vez.

— Por que a convidam, Carol?

— Não sei se a convidam ou se é ela que aparece. Mas o fato é que é a viúva

de Philip Renfrew, o melhor amigo de Ryan, que morreu num acidente de pólo. Não

sei se é verdade, mas ouvi dizer que ela se casou com Philip por puro capricho,

uma vez que não conseguiu conquistar Ryan. Agora, porém, acho que está tendo

mais sucesso.

— Ross parece achá-la simpática.

— Claro! Lana é um doce com os homens! Ela só é absolutamente insuportável

com as mulheres. — Carol olhou de relance para o avô, que estava a pouca

distância delas. — Não sei… mas acho que vovô conhece Lana muito bem e não se

deixa levar por seus encantos. Talvez por já ser velho, Lana não tenha interesse

nenhum em se fazer cativante e simpática com ele.

— Justin se manifesta contra ela?

— Não, ele não faz comentários, porque se Ryan decidir ficar com ela…

Somente eu e Noeleen é que declaramos guerra à Viúva Alegre!

— Pelo jeito está querendo que eu me junte a vocês.

— Não tem outra alternativa, Tracey. No minuto em que Lana a vir, passará

a considerá-la como rival e não hesitará em destilar seu veneno em cima de você.

Portanto, querida prima, bem-vinda à guerra!

Naquele momento Justin se juntou às duas netas e logo tratou de

apresentar Tracey a Lana Renfrew.

— Não sei se você se lembra de Tracey, Lana — Justin começou a dizer —,

mas como é bem mais velha que minha neta talvez se recorde de que ela morou

aqui durante alguns anos.

Tracey estremeceu com a falta de tato de Justin. Ele teria dito aquilo de

propósito? Mas Lana não se embaraçou, e respondeu com um toque de

divertimento:

— Claro que me lembro da garotinha que estava sempre atrás de nós e que

Ryan tinha que levar junto a toda parte, para evitar que ela fizesse uma cena!

Tracey entendeu perfeitamente bem que, com aquelas palavras, Lana

declarava que ela tinha sido um estorvo. A mulher continuou falando, mas agora

dirigia-se a Ryan.

— Eu o admiro pela resignação com que aceitou essa nova responsabilidade

extra, querido — disse, referindo-se evidentemente à tutela das primas.

— Uma família deve se preocupar com seus membros — Ryan respondeu,

olhando para Tracey.

— Concordo plenamente, meu querido — Lana respondeu.

Tracey constatou que Carol tinha razão e resolveu aliar-se a ela e Noeleen,

em sua guerrinha contra Lana. Também sabia usar de ironia e era isso mesmo que

iria fazer agora.

— Pensamos do mesmo jeito, Lana. Também acha insuportável quando

estranhos dão palpites em sua vida? — perguntou com a cara mais inocente do

mundo.

Lana piscou nervosamente, sem conseguir esconder a raiva que estava

sentindo. Virou-se para Ryan e falou com voz muito doce:

— Sua tutelada está querendo dizer que preferia que não tomassem conta

dela, querido. Talvez ela sinta falta das festas alucinantes às quais essa nova

geração da cidade está habituada.

— Exatamente — Tracey apressou-se em dizer, com os olhos fixos em Ryan.

— Como se pode esperar que uma jovem viva sem orgias semanais, bebidas fortes

e maconha para aquelas viagens fantásticas? — Olhou então para Lana, fingindo

surpresa. — Como descobriu? Tenho que confessar: sou uma viciada!

Ryan deu uma gargalhada gostosa.

— Duvido que alguma vez na vida tenha visto maconha, Tracey, que dirá ter

experimentado! Não conseguiu enganar ninguém com essa conversa louca, ou…

talvez… apenas vovô, que está horrorizado.

Ryan segurou o braço de Lana e ambos se afastaram. Tracey estava

desapontada. Que espécie de tutor era esse, que deixava que uma pessoa de fora

a chamasse de estorvo, sem defendê-la? E também por que não deixara que ela

retribuísse ofensa com ofensa? Lana Renfrew não era nenhuma perfeição. Podia

ter um belo exterior, mas era má e venenosa como uma aranha.

Mas talvez tivesse encontrado uma maneira de aborrecer seu tutor. Quem

sabe tentando atingir a Viúva Alegre ela atingiria também Ryan?

Seus pensamentos foram, entretanto, interrompidos por Justin, que se

aproximou dela com uma expressão preocupada no rosto. Ele queria saber se ela

estivera mesmo brincando quando afirmara aquelas barbaridades para Lana. Não

foi fácil convencer o velho de que tudo não passara de pilhéria. Até Lyn teve que

endossar as palavras de Tracey.

— Por que brincou com uma coisa tão séria? — Justin perguntou. — Queria

que pensássemos que você era realmente assim?

— De jeito nenhum, vovô. Falei apenas num impulso, porque estava zangada

com os comentários de Lana.

— Não gostou dela, não é, Tracey?

— Não — ela respondeu, sem rodeios.

— E você, Lyn? Qual é sua opinião?

— Achei-a muito desagradável — Lyn admitiu.

— Então estamos todos de acordo, porque também não suporto aquela

mulher — Justin confessou, com um brilho nos olhos azuis.

— Por que nunca disse isso antes, vovô? — Carol indagou, mimada por contar

com o avô como aliado. — Durante todos estes anos e eu Noeleen temos lutado

sozinhas e você nunca nos disse nada sobre seus sentimentos em relação a Lana.

— Vocês duas estavam se saindo muito bem e não precisavam de minha

ajuda. Além disso, estou velho demais para me meter nessas brigas. Vocês,

jovens, têm mais força e disposição para a luta. Mas lembrem-se de que conto

com a vitória dos Alexander.

As três moças riram entusiasmadas, chamando a atenção de alguns

convidados que estavam mais perto. Ryan olhou para elas com curiosidade e Lana,

com ar de desprezo.

Tracey e Carol deram o braço ao avô e foram, ao lado de Lyn, tomar seus

lugares à mesa. Ali havia de tudo: churrasco de boi e de porco, saladas variadas,

pratos de frios e queijos, e muitas outras coisas, tudo numa incrível fartura,

capaz de alimentar a todos por uma semana. Havia também diversos carrinhos

cheios de sobremesas de dar água na boca.

— O que vai querer, Tracey? — Ross perguntou. — Um pouco de cada? Posso

pegar para você!

— É demais, Ross, obrigada. Pode deixar que eu mesma me sirvo.

Todos se acomodaram nas mesas. Em sua maioria, aquelas pessoas faziam

parte da família Alexander. Além deles, só amigos mais chegados. A refeição foi

animada, repleta de conversas e risos.

Tracey e Lyn, que não estavam acostumadas a essas reuniões familiares,

acharam formidável.

Quando todos terminaram de comer, a sra. Gray e suas ajudantes puseram

logo tudo em ordem. Ross e Lance ligaram o som bem alto e uma música moderna

e agitada se espalhou pelo ar, convidando os mais jovens a dançar.

Vários casais se animaram e a sala se transformou logo numa pista de dança,

onde todos se movimentavam ao som do ritmo contagiante.

Quando a primeira seleção de discos terminou, Ross colocou música

romântica. As exclamações de alegria partiam agora também dos mais velhos; que

logo se levantaram para dançar.

Tracey estava sentada, ouvindo a música suave, enquanto alguns pares saíam

para trocar beijos no terraço. Por todo lugar havia pessoas que se reuniam em

grupos para conversar.

De repente notou Ryan e Lana andando pelo gramado. Sentiu raiva daquela

mulher glamourosa que se insinuava para Ryan, o braço possessivamente colocado

em torno do dele.

— Não fica enjoada de ver essa caça-maridos toda langorosa, tentando

conquistar Ryan? — Carol, que se aproximara da prima, perguntou.

Noeleen veio se juntar às duas.

— Por que não dá um jeito de separá-los, Tracey? Devia convidá-lo para

dançar.

— Não posso fazer isso! — exclamou Tracey, divertindo-se com a sugestão.

— Claro que pode! — afirmou Noeleen. — Ele não é seu tutor? Quem tem

mais direito do que você?

— Não é isso — Tracey respondeu com calma. — Não devo pedir para dançar

com ele. Deveria ser exatamente o contrário, não?

— Que bobagem! — disse Noeleen, chegando mais perto. — As mulheres já

conseguiram se igualar aos homens. Recebem os mesmos salários e pagam os

mesmos impostos, portanto, têm os mesmos direitos e oportunidades que eles.

Vamos, Tracey, faça uso desses direitos e convide Ryan para dançar. Só quero

ver a cara de Lana!

— Então por que não o convida você mesma, Noeleen? Vai poder ver mais de

perto a reação dela.

— Eu iria, se tivesse certeza de que causaria algum efeito, mas… Acha que

Lana me consideraria como concorrente? Sou prima direta de Ryan e, além disso,

casada e com dois filhos. Não, estou definitivamente fora do páreo. Mas com

você é diferente, Tracey. É a única que não é realmente parente dele. Não acha

que tenho razão, Carol?

— Claro que tem! Vá lá, Tracey. Peça para dançar com Ryan.

— Não! Já imaginaram se ele se recusar?

— Ryan não faria isso! — Noeleen afirmou.

— Claro que não! — disse Carol, confirmando as palavras da outra.

Mesmo assim Tracey não ficou convencida. Talvez Ryan não acusasse a Carol

ou Noeleen, mas a ela…

— Deve haver outra pessoa nesta festa a quem possam pedir a mesma coisa

— Tracey lembrou. — Nem todas as garotas solteiras aqui presentes são

parentes, não é?

— Tem razão — Carol concordou. — Mas nenhuma é tão bonita quanto você.

Tracey suspirou. Bem que queria ver a reação de Lana se convidasse Ryan

para dançar, afastando-o por uns momentos. Mas não tinha coragem. E se ele

recusasse? Por outro lado, se não reagisse contra Lana, ela teria certeza de que

poderia fazer c dizer o que bem entendesse para a tutelada de Ryan, recém-

chegada. Ia deixar que isso acontecesse? Não! De jeito nenhum!

— Está bem — Tracey concordou. — Vou falar com Ryan. Mas, se ele

recusar, não sei o que vou fazer! Provavelmente me enfiarei num canto e morrerei

de vergonha!

— Não tenha receio — Carol falou para incentivá-la. — Ele não faria isso.

— Vá depressa, Tracey, antes que mudem os discos — Noeleen aconselhou.

— Lana não vai se impressionar se os vir dançando separados. Tem que aproveitar

a música lenta e romântica.

Tracey procurou reunir toda sua coragem. Respirou fundo e se levantou,

caminhando na direção de Ryan e Lana. A distância entre ela e o casal parecia

enorme e tinha a impressão de que se movia em câmara lenta, o que lhe dava

tempo de sobra para observar Lana. A viúva se inclinava sorridente para Ryan,

mas, ao perceber que a atenção dele se voltara de repente em outra direção,

acompanhou seu olhar e deu de cara com Tracey, contraindo o rosto, numa

expressão zangada. Ryan não tirava os olhos da tutelada, embora seu rosto fosse

insondável.

Tracey sentia o estômago doer, as pernas tremerem, mas foi em frente. Já

tinha avançado bastante e agora não ia recuar. Aproximou-se sorrindo,

balançando os cabelos com o movimento de seu andar e engoliu em seco, antes de

falar com Ryan.

— Posso ter essa dança?

— Está pedindo minha permissão ou me convidando?

Tracey teve vontade de mandá-lo para o inferno, mas a expressão de

desagrado no rosto de Lana impediu-a de fazer isso. Afinal, não era esse seu

objetivo, perturbar a Viúva Alegre?

— É um convite, claro — declarou, passando a língua discretamente pelos

lábios, numa atitude provocante. — Aceita?

— Como poderia recusar? — disse Ryan, pedindo licença para se afastar de

Lana.

A viúva falou algo, mas Tracey nem saberia dizer o quê, pois estava aliviada

demais para ouvir qualquer coisa. Pelo menos, Ryan não recusara seu convite, o

que já era uma vitória.

Foram até a pista de dança. Quando Ryan a abraçou e começaram a dançar,

Tracey teve a sensação de estar flutuando no ar. O calor das mãos dele contra

seu corpo, através do tecido fino de seu vestido, a deixava excitada. Era um

contato perturbador, que a confundia, impedindo-a de pensar claramente.

— Espero que não tenha se aborrecido por eu tê-lo convidado para dançar —

Tracey quebrou o silêncio. — Ou preferia que não tivesse tomado a iniciativa?

Ryan a apertou mais nos braços.

— Claro que não — ele disse. — Quem poderia resistir a seu sorriso

cativante? Precisa saber que sou tão suscetível a seus encantos quanto qualquer

outro homem.

Tracey não conseguia acreditar no que Ryan dizia. Ele era charmoso e devia

estar apenas se divertindo às suas custas. Mas nem por isso deixava de ser

gostoso ouvir o que aquele homem atraente dizia.

— É mesmo? Posso acreditar nisso? — perguntou, olhando-o de maneira

insinuante.

Ryan levantou a mão e segurou o rosto dela. Tracey sentiu suas reservas se

derreterem ao ver-se tão próxima daqueles magníficos olhos azuis.

— Não sei o que está pretendendo, Tracey, mas devo admitir que tem muito

jeito para conseguir o que quer.

— Por que acha que estou… pretendendo algo?

— Não está?

— Não! — ela afirmou, procurando ser convincente. — Você gosta de pensar

mal de mim!

É isso que está tentando fazer? Corrigir essa impressão?

— Hum… talvez…

— O que vai fazer então?

— Por que não tenta descobrir? — desafiou-o, baixando os olhos de maneira

provocante.

Um sorriso muito branco iluminou o rosto sério de Ryan.

— É o que vou fazer. Mas enquanto isso não vou perdê-la de vista, porque o

feitiço pode virar contra a feiticeira e assim descobrirei tudo com maior

facilidade.

Tracey ficou calada. Os últimos acordes da canção romântica puseram fim

àquele momento de intimidade, mas Ryan não soltou a mão dela.

— Estamos perto do aparelho de som, portanto vamos trocar os discos —

Ryan cruzou a porta que dava para a sala de som e entrou, levando Tracey

consigo. — Que tipo de música devemos tocar agora?

— Acho que todos gostam de música romântica. Que tal mais uma?

— De acordo. Escolha uns discos nesta pilha, enquanto recoloco os que já

foram usados nas capas.

Tracey separou alguns sucessos românticos do momento, que Ryan depois

colocou na vitrola.

— Vamos voltar para o salão? — ela perguntou.

— Para que tanta pressa? O chão desta sala é mais liso e melhor para

dançar.

— Mas… e os outros convidados? Podem querer falar com você e…

— Duvido muito — Ryan olhou fixamente para ela. — O que aconteceu,

Tracey? Seu plano não está funcionando como pretendia?

— Não… não tenho plano nenhum, já disse.

Sentia-se pouco à vontade. Enquanto estavam dançando à vista dos outros,

tinha conseguido ser provocante e desinibida, mas ali… sozinhos… na sala

aconchegante e pouco iluminada, era muito diferente!

— Estava apenas tentando fazer as pazes com você e… — ela se

interrompeu, embaraçada.

— E… o quê? — ele insistiu.

— Mais nada, mas já que não está disposto a aceitar minha proposta de paz…

— falou e encaminhou-se para a porta, aliviada por ter encontrado uma desculpa

para escapar dali.

Ryan, entretanto, foi mais rápido que ela.

— Não vá embora ainda, sua feiticeira! — exclamou, fazendo-a voltar-se

para encará-lo. — Quero que fique sabendo que, daqui para frente, se tiver algum

plano nesta cabecinha, é bom lembrar-se de que estou disposto a fazer parte do

jogo.

Dizendo isso, Ryan inclinou a cabeça e se apossou dos lábios de Tracey, sem

dar a ela uma chance de escapar.

Um turbilhão de emoções contraditórias envolveu Tracey. Os lábios de Ryan

não pediam. Exigiam! E o mais estranho é que, em vez de ficar revoltada e tentar

afastá-lo, ela correspondia ao beijo com igual disposição. Num esforço supremo,

conseguiu afastar o rosto e escapar daquele contato alucinante. Mas sua

liberdade não durou muito. Ryan logo passou a mão entre seus cabelos longos e,

segurando sua nuca delicada, beijou-a novamente. Tentando resistir ao apelo

daquela boca que explorava a sua, Tracey colocou as mãos no peito de Ryan. O

gesto, que visava a afastá-lo, entretanto, logo se transformou em carinho.

— Ryan, meu querido, você demorou tanto que pensei que estivesse com

problemas. — A voz melosa de Lana soou aos ouvidos do casal.

Contra vontade, Ryan abandonou os lábios de Tracey e seus braços baixaram

sem realmente soltá-la.

— Não é nada que eu não dê conta, obrigado — ele respondeu à viúva.

Tracey interpretou aquelas palavras como uma tentativa de ridicularizá-la.

Num impulso, ergueu as mãos para atingir Ryan no rosto, mas ele segurou seu

pulso em pleno ar, movendo a cabeça de um lado para outro, negativamente.

Tracey ficou confusa e desconcertada. Começou a se encaminhar para a porta da

sala. Queria se ver longe dali.

— Tracey! Não sabia que estava aqui — Lana falou, como se só agora a visse.

— Pensei que tivesse ido se esconder num canto qualquer, depois do papel

humilhante que fez ao convidar Ryan para dançar. — Ela pousou a mão no ombro

de Tracey, numa atitude falsamente protetora. — Não se incomoda por eu falar

com tanta franqueza, não é? É para seu próprio bem. Sei que na cidade grande se

usa esse tipo de liberdade, mas aqui no campo não estamos acostumados a que as

moças tomem a iniciativa. Não quer que os outros formem uma ideia errada a seu

respeito, não é?

Tracey aguentou firme, mas sua mente já estava maquinando uma maneira

de se vingar das palavras fingidas de Lana.

— Não, claro que não. Felizmente, não preciso me preocupar com isso,

porque tenho um tutor formidável que me ensinou alguns dos costumes básicos

desta região. Em todo caso, concordo que devo tomar mais cuidado, pois não sei

realmente até onde vão chegar essas demonstrações. — Tracey olhou para Ryan

de forma significativa, para depois se afastar com calma e dignidade.

A voz de Lana a seguiu e ainda pôde ouvir o que ela dizia:

— Tutor formidável? Ensinar os costumes básicos da região? Não sabe onde

vão chegar essas demonstrações? O que ela quer dizer com tudo isso, Ryan? O

que aconteceu entre vocês dois, afinal?

Um sorriso de ironia e satisfação apareceu no rosto de Tracey. Tinha

conseguido seu objetivo! Queria ver o que Ryan iria fazer para se livrar daquela

situação dúbia.

Caminhou com firmeza, sentindo-se leve, agora. Atravessou o gramado e foi

se juntar ao grupo de Carol e Lyn que estavam rodeadas de rapazes.

Bem feito para Ryan! Teria que engolir agora uma gota de seu próprio

remédio!

Capítulo VIII

Tracey afastou as cobertas e levantou-se da cama. Olhou para o relógio e

suspirou, aliviada. Não estava atrasada. Daria tempo para fazer o que queria.

Rapidamente tomou banho e se vestiu, colocando jeans e camiseta. Prendeu

os cabelos num rabo-de-cavalo firme e não se maquilou. Arrumada assim, parecia

ainda mais jovem, quase uma menina.

Pegou o chapéu, pois não pretendia estragar tudo por causa de uma coisa tão

mínima, e saiu do quarto. Atravessou o terraço com passos decididos e se

encaminhou para as cavalariças.

Logo encontrou Glory, a égua que tinha montado há poucos dias. Deu a ela

uns torrões de açúcar e afagou-lhe o focinho reluzente. Depois sentou-se para

esperar. Ficou relembrando, então, os acontecimentos que tinham se seguido à

sua dança com Ryan.

Tinha voltado para junto de Lyn e Carol, que a aguardavam com ansiedade

para saber como ela tinha se saído. Contou tudo em detalhes, exceto a cena do

beijo. As duas adoraram, dando boas risadas. Então Carol revelou que havia

ouvido Lana combinar com Ryan um passeio a cavalo para a manhã seguinte.

Era por isso que Tracey estava ali. Queria ir com eles e atrapalhá-los o

máximo que pudesse.

Além de uns parentes mais íntimos, apenas Lana tinha ficado hospedada na

casa dos Alexander. O objetivo das moças era procurar fazer com que ela se

sentisse tão mal, que decidisse encurtar sua estadia na fazenda.

Glory, enterrando o focinho nos bolsos de Tracey, tirou-a de seus devaneios.

Tinha sentido o cheiro da maçã que ela havia trazido. A moça deu uma dentada na

fruta e entregou o resto para a égua, que a mastigou com prazer.

Pela centésima vez Tracey olhou na direção da casa, já cansada de esperar.

Mas desta vez não foi em vão. Viu Ryan, muito à vontade, vestindo jeans e uma

camisa aberta no peito, e Lana, com um conjunto de montaria tão sofisticado que

faria inveja a qualquer campeã de hipismo.

Levantou-se para esperá-los. Precisava primeiro pedir permissão a Ryan para

acompanhá-los. Não sabia como se sairia daquela vez, depois dos acontecimentos

da noite anterior.

Assim que os dois entraram na cavalariça, Lana apertou os lábios,

visivelmente contrariada por encontrar Tracey ali. Ryan, entretanto, não esboçou

qualquer reação.

— Vai a algum lugar em especial, Tracey? — Lana perguntou.

— Gostaria muito de ir, mas ninguém mais vai sair a cavalo esta manhã. Acho

que estão cansados por causa da festa. Como não tenho permissão para sair

sozinha… — ela deixou a voz morrer numa sugestão que deixava clara suas

intenções.

— Então por que não vem conosco? — Ryan convidou.

— Ora, Ryan! — Lana apressou-se em mostrar o quanto aquela ideia a

desagradava. — Tracey vai achar nossa companhia muito aborrecida, querido.

Talvez, em outra ocasião…

— Não, Lana, pelo contrário — Tracey respondeu, sem rodeios. — Estou

louca para ir passear. Prometo que não atrapalharei vocês. Sigam seus planos, que

eu apenas irei junto.

Lana se virou para Ryan, procurando fazê-lo mudar de ideia, mas ele falou

com voz calma.

— Não temos outra alternativa, Lana. Já que não quero que Tracey saia

sozinha a cavalo…

Sem demora, Tracey levantou-se e selou a égua. Pouco depois os três

saíram, num trote lento. Atravessaram os portões da fazenda e foram para as

planícies, quase nuas. Tracey se manteve na retaguarda. Não queria fazer nada, a

não ser depois que estivessem tão longe de casa que Ryan não pudesse mais

mandá-la embora. Passaram depois para um galope mais rápido e logo a casa ficou

fora da visão.

Daí para frente, Tracey começou a pôr seu plano em execução. Procurava

ficar sempre na frente do casal, levantando o máximo possível de pó. Agia com

fingida naturalidade, como se não conseguisse dominar inteiramente sua

montaria. Esperava apenas que Ryan não desconfiasse que ela era, na verdade,

uma amazona experiente.

Lana tornava-se mais impaciente a cada momento, repreendendo Tracey

continuamente.

— Que coisa horrorosa, garota! Pare de levantar tanta poeira! Não consegue

fazer seu cavalo ficar junto dos nossos? Se não sabia montar, por que veio?

A voz de Lana tornava-se mais aguda e irritadiça a cada nova reclamação.

Tracey se desculpava, fingia procurar obedecer, mas dava rédeas para que Glory

se adiantasse aos outros dois animais.

— Não sei o que está havendo com Glory. Ela está tão irrequieta hoje! —

Tracey disse com voz suave, fazendo com que Glory ficasse na frente do cavalo

de Lana.

— Tire esse cavalo da minha frente! — Lana gritou, já sem paciência.

Ryan cavalgava ao lado da viúva, com uma expressão impenetrável no rosto.

Mas, como ele nada dizia, Tracey continuou com seu plano para perturbar a paz

de Lana.

Horas mais tarde, voltaram para casa. Lana desmontou e prendeu as rédeas

do cavalo num poste. Estava furiosa.

— Obrigada, Tracey, por ter tornado este o pior passeio de minha vida.

Nunca me senti tão suja e empoeirada! — ela vociferou, batendo as mãos na

roupa, para tirar um pouco da poeira vermelha. E saiu correndo para a casa.

Tracey mordeu o lábio para não desatar numa gargalhada vitoriosa. Tinha

conseguido seu objetivo! Sua alegria, porém, durou pouco. Quando olhou para

Ryan a seu lado, notou que ele tinha o semblante carregado.

— Desça já desse cavalo, Tracey, antes que eu a arranque daí.

— O que foi que eu fiz? — ela perguntou, fingindo-se de inocente.

— Fez de tudo. A começar por dizer que Glory estava inquieta. Essa égua é

muito calma e obediente. Ela não age como hoje, a não ser que alguém a obrigue a

isso!

— Mas… mas… por que acha que eu faria isso? — perguntou Tracey, olhando

para o tutor com o ar de menina que estava sofrendo uma punição injusta.

Ao mesmo tempo, porém, seus olhos procuravam descobrir onde o rapaz da

cavalariça estava. Tinha que se livrar da fúria de Ryan.

— Para ser sincero, não quero saber o porquê! — Ryan chegou junto do

animal e segurou as rédeas. — Agora, vai descer ou prefere que eu a tire daí?

— Está bem. Vou descer.

Para sua segurança, Tracey desmontou pelo outro lado do animal, embora

soubesse que estava completamente errada. Mas, quem ia ligar para regras,

quando se sentia ameaçada? Ainda com o cavalo entre ela e Ryan, continuou:

— Bem, já desci. E agora?

— Venha para cá — Ryan apontou para onde ele estava. Tracey balançou a

cabeça negativamente.

— Posso ouvir perfeitamente bem daqui o que tem a dizer.

— Eu não planejava dizer nada — ele ameaçou.

— Você não ousaria! — Tracey exclamou, prendendo a respiração. — Se se

atrever a encostar um dedo em mim, vou… arranhar seu rosto!

Ryan não se impressionou e tentou alcançá-la sob o pescoço de Glory. Tracey

fugiu para a cauda, de onde gritou:

— Vou processar você! Por crueldade física! Não pode…

Ryan passou por baixo do animal e segurou-a, fazendo-a deitar-se no chão.

— Solte-me, Ryan! — ela gritou, tentando se levantar. — Mesmo sendo meu

tutor não tem o direito de… Oh! Seu bruto! Estúpido! — exclamou, sentindo que

Ryan a debruçava sobre os joelhos e lhe dava umas boas palmadas. — Odeio você,

seu monstro!

Ryan a pôs de pé e Tracey passou a mão nos cabelos, o rosto fervendo de

raiva.

— Você é um homem sem sentimentos, um… um…

— Você é uma feiticeira, que merecia exatamente o que recebeu — Ryan

revidou, num tom irônico e divertido. — Eu já a tinha prevenido, não foi? Disse

que não pregasse peças se não estivesse bem certa das regras do jogo.

— Regras? Quais? As que vocês mesmos criam? Bem que Boyd me disse que

vocês, fazendeiros ricos, estão tão acostumados a mandar, que pensam que o

mundo todo tem que obedecer!

— Mais um motivo para que tome cuidado.

— Cuidado? Com quem?

Ryan deu dois passos e segurou Tracey pelos cabelos, mantendo o rosto dela

bem perto do seu.

— Comigo — ele respondeu.

No mesmo instante, soltou-a e se afastou dela, indo para perto do grande

alazão que tinha montado e depois para casa.

Demônio de homem, Tracey pensou. Por que não era velho e de cabelos

brancos, como todos os tutores devem ser? Por que só seu tutor tinha que ser

bonito, atraente, intensamente vibrante e másculo, com uma habilidade incrível

para deixá-la com o coração pulsando descompassadamente e as pernas moles?

Reconhecia que tinha exagerado um pouco aquela manhã, mas… Ele precisava tê-la

tratado como se fosse uma menina de dez anos?

— Quer que eu tire a sela de Glory, srta. Tracey?

— O quê?

Tracey virou-se e viu Tom, o rapaz da cavalariça, à sua frente.

— Não, obrigada — ela respondeu. — Eu mesma posso fazer isso. Mas seria

bom que cuidasse do cavalo que Lana usou.

— Tem razão. A sra. Renfrew saiu daqui tão depressa, que nem me chamou.

Tracey ficou preocupada. Se Tom tinha presenciado a explosão de raiva de

Lana, poderia também ter visto quando Ryan lhe dera aquelas palmadas. Sentiu-se

terrivelmente humilhada. Se alguém mais na casa ficasse sabendo do que aquele

miserável havia feito com ela, seria capaz de… de… odiar Ryan pelo resto de sua

vida!

Com gestos mecânicos, Tracey acabou de tirar a sela.

Foi para casa, mas preferia não ter que enfrentar o olhar de ninguém na

mesa do café. Talvez fosse melhor ir diretamente para o quarto. Subiu pela

varanda e já estava quase chegando às escadas, que levavam ao andar superior,

quando encontrou Justin, sentado numa das cadeiras do terraço. Cumprimentou-o

e ia continuar andando, mas ele a chamou, pedindo-lhe que se sentasse ao lado

dele. Tracey não teve outra saída senão fazer como o avô pedia.

— O que está havendo por aqui hoje? — Justin começou a falar. — Você é a

segunda pessoa que vejo com um ar abalado esta manhã.

— Lana também parecia fora de si?

— Lana? Ela também estava alterada? Não reparei, estava me referindo a

meu neto. Ele entrou em casa com o rosto sombrio como um dia de tempestade.

— É mesmo? — Tracey perguntou, tentando dissimular sua satisfação.

"Ótimo! Era isso mesmo que queria! Imagine então quando Lana fosse

reclamar dela!"

O sorriso reprimido de Tracey e o brilho forte de seus olhos não passaram

despercebidos ao perspicaz Justin.

— O que aconteceu, mocinha? Foi você quem deixou Ryan naquele estado?

— Talvez… Não reparou que eu e Ryan somos como o óleo e a água? Não

conseguimos nos misturar.

— Óleo e água coisa nenhuma! Vocês só não se misturam porque você não

quer que isso aconteça. Não tinha problema nenhum com meu neto quando era

menorzinha!

— Crianças de dois anos não costumam selecionar os amigos, vovô. Agora sou

mais velha e mais esperta.

— Não sei, não. Se pensa que desafiar Ryan poderá levá-la a algum lugar,

está muito enganada — advertiu Justin, olhando para ela com carinho. — Como é

que Lana entra nessa história? Ela se machucou, ou o quê?

— Não houve nada com ela. Apenas chegou em casa um pouco… empoeirada.

— Como foi que isso aconteceu?

— Acho melhor não lhe contar — Tracey disse, com um sorriso maroto nos

lábios.

— Foi por isso que Ryan ficou zangado com você?

— Exatamente. Também, ele fica sempre bravo com tudo o que eu digo ou

faço, não é verdade?

— Ryan não costumava ficar bravo com você de jeito nenhum!

— Vovô, isso já faz tanto tempo! Agora somos pessoas diferentes, adultas.

Duvido que ele ainda sinta prazer em me ter a seu lado, como costumava sentir.

— Você os acompanhou no passeio desta manhã?

Tracey deu uma boa risada.

— Fui com eles, sim, vovô. Mas apenas porque Ryan não teve outra

alternativa senão me levar junto. Duvido que eu seja convidada uma segunda vez.

— Quem é que você decidiu punir, Tracey? Lana… ou Ryan?

— Não sei. Os dois, eu acho.

Justin ficou pensativo e logo aconselhou:

— Não estique muito a corda, Tracey. Se for longe demais, vai ganhar um

inimigo implacável. Não se esqueça de que, no momento, Ryan tem todos os

trunfos na mão.

Tracey reconhecia que isso era verdade. Estava nas mãos de Ryan porque ele

era seu tutor. Mas… ela não seria fácil de domar. Tinha vontade própria e não

permitiria que ninguém manejasse sua vida. Poderia não "esticar a corda", como

Justin sugerira, mas não ia se tornar submissa diante de Ryan, por mais

implacável que ele fosse.

— Dependendo do jogo, os trunfos não significam nada — comentou.

Pela direção do olhar de Justin, Tracey percebeu que não estavam mais

sozinhos. Virou-se rapidamente e deparou com o tutor, que acabara de se

aproximar. Reparando no rosto duro de Ryan, deu razão ao avô: não devia ser

nada fácil ter Ryan como inimigo. Ficou preocupada. Ryan estaria ali há muito

tempo? Teria ouvido o suficiente para saber que ela havia planejado deixar Lana

furiosa?

— De que jogo estão falando? — Ryan perguntou, os polegares enfiados no

cinto largo de couro.

— De jogos de cartas em geral — Justin se apressou em responder pela

garota.

Mas Tracey não estava disposta a contornar a situação. Só em ver Ryan e

lembrar-se de que ele tinha tido a coragem de lhe dar umas palmadas, sentia o

sangue ferver de novo.

— Nada disso, Ryan. Estávamos falando sobre as chances que tenho de

ganhar nossa próxima discussão. Quem sabe você também quer dar um palpite?

— Tracey! — Justin exclamou, num tentativa de fazê-la compreender que

não devia se arriscar tanto.

Mas a neta não lhe deu ouvidos. Estava preocupada demais em observar a

reação de Ryan.

— Suas chances, Tracey? Posso dizer exatamente quais são. Nenhuma! Aliás,

como sempre foram. Nulas! Não sei como ainda não se convenceu. Ou… reconhece

a situação e é por isso mesmo que está pedindo ajuda a Justin?

— Não estava pedindo ajuda a ninguém, porque não preciso! — Tracey falou

alto, fingindo ter mais autoconfiança do que realmente tinha. — Você não é tão

onipotente assim. Aliás, cabe aqui um provérbio que papai sempre repetia: "Não

há cavalo que não possa ser montado, nem cavaleiro que não seja atirado no chão".

— Demorou para mencionar o poder dos Alexander! — disse Ryan rindo, o

que deixou Tracey ainda mais indignada. — Não foi seu namorado que disse que

nós, fazendeiros, fazemos a lei conforme nos convém? Pois isto é verdade! O que

está querendo, Tracey? Dar-nos uma lição?

— Só há uma pessoa aqui que está merecendo uma lição e das boas!

— Eu. Não é isso que quer dizer?

— Adivinhou. Como é inteligente!

— Pois posso lhe apresentar outro provérbio, queridinha. "Um homem

prevenido vale por dois."

— Posso ser sua tutelada, Ryan — Tracey respondeu, aborrecida — mas

queridinha… nunca! Guarde esse termo para usá-lo com pessoas que suspiram por

ouvi-lo.

— Quem, por exemplo?

— Sei lá! — Tracey exclamou, vendo os gestos aflitos de Justin por trás do

neto, pedindo que ela tivesse um pouco de calma. — Deve haver dúzias de pessoas

esperando por essa honra. Principalmente mulheres que não têm outra saída na

vida, senão aceitar o que está disponível.

— Pode ser, mas pelo menos elas não são víboras rabugentas narcisistas que

só se preocupam em perturbar o sossego das pessoas com quem convivem! Vou lhe

sugerir que siga o exemplo delas, Tracey! Você só poderia melhorar!

Dizendo isso, Ryan retirou-se do terraço.

— Quem disse que eu quero melhorar? — Tracey ainda gritou, mas a única

resposta que obteve foi o barulho da porta que batia com força.

Deixou-se cair numa poltrona. Víbora… rabugenta… narcisista! Lembrou-se

daqueles adjetivos com raiva sempre crescente. Se agia como se o fosse, a culpa

era toda dele! O que Ryan esperava? Que aceitasse com calma e resignação um

tutor que não queria e de quem não precisava?

Teve um sobressalto ao sentir a mão de Justin em seu ombro. Tinha se

esquecido completamente da presença do avô!

— Está tentando conseguir o impossível, Tracey — o velho alertou-a, com a

voz cheia de carinho e preocupação. — Conhece o meu neto muito bem e posso lhe

dar um conselho: quando ele fica com aquele brilho estranho no olhar, é sinal de

que jamais se renderá ou se deixará subjugar. Pode acreditar no que lhe digo.

Tracey mordeu o lábio e suspirou profundamente.

— Pois sou igualzinha a ele, vovô. E então, o que vamos fazer?

Na verdade, não havia resposta possível para sua pergunta, nem duas

vontades inabaláveis, duas personalidades inflexíveis que se chocavam, uma

contra a outra. Só o tempo poderia dizer no que isso daria.

Capítulo IX

No final da semana seguinte, todos os convidados deixaram a fazenda.

Apenas Carol ficou, para fazer companhia às primar Tracey sentiu muito ver tia

Rita e os filhos irem embora. Eles tinham sido formidáveis. Além disso, a grande

movimentação na casa havia servido de pretexto para que ela evitasse a proximi-

dade de Ryan.

Lana fora embora há dois dias, mas Tracey ainda tinha nos ouvidos o som

meloso da voz da viuvinha e a lembrança da maneira possessiva com que ela se

despedira de Ryan.

— Vai jantar comigo na próxima terça-feira, não é, Ryan? Prometo fazer

uma comida bem gostosa para nós dois. Um de seus pratos prediletos. — Lana

dissera.

Pouco a pouco a vida foi voltando ao ritmo normal na enorme propriedade

dos Alexander. Tracey passava a maior parte do tempo ao lado de Justin, a quem

aprendera a amar cada dia mais, e também com Marty, no escritório. Evitava a

companhia de Carol e Lyn, porque as duas estavam sempre inventando algum

passeio que acabava, invariavelmente, levando a Ryan, de quem Tracey preferia

manter a devida distância.

Não tinha abandonado seus planos de vingança, mas precisava ser mais

cautelosa agora. Aquele beijo inesperado, assim como as palmadas que Ryan lhe

dera, serviram para lhe mostrar que não adiantava enfrentar o tutor com muita

insistência. Era melhor ir devagar, antes que ela própria saísse ferida.

Nessa manhã, todos trataram de sair logo de casa, porque Justin estava de

péssimo humor. Queria andar a cavalo com as netas, mas era impedido por ordens

médicas. Estava de mal com a humanidade.

Carol e Lyn saíram para cavalgar e mais tarde iriam encontrar-se com Ryan,

para verem a marcação dos carneiros. Tracey não fora com as outras garotas;

mas, para fugir à fúria de Justin, resolveu ir até o armazém ajudar Marty a

fazer o balanço das mercadorias. Estava no alto de uma escada, contando as

camisas que havia na prateleira, quando o ruído de um motor de avião desviou sua

atenção. Quem estaria chegando?

— Tracey! Volte para a terra! — Marty exclamou.

— Desculpe. O que foi mesmo que perguntou? Fiquei distraída porque ouvi o

barulho de um avião chegando. Quem será?

— Está confundindo as coisas, Tracey. O que escutou foi esse ventilador que

está com um barulho esquisito e forte. Preciso ligar para Eddy e pedir que venha

dar uma olhada nisso. Como é, vamos continuar com a contagem?

— Claro. Podemos passar para os jeans agora?

— Por favor.

Durante algum tempo ainda ficaram ocupados com a verificação dos artigos

nas prateleiras superiores e, pouco depois, Tracey desceu da escada para

preparar um café. Ela e Marty estavam precisando de alguns minutos de

descanso.

Ocupada com o açúcar e as xícaras, Tracey tornou a ouvir um ruído de avião.

Estaria imaginando coisas? Foi até a janela e se debruçou a tempo de avistar um

Cessna que levantava vôo. Imediatamente chamou Marty, para que ele viesse ver

também. O rapaz reparou nas cores do avião e logo respondeu:

— É o avião do médico da família. Decerto foi ver algum paciente e resolveu

passar por aqui para conversar um pouco.

— Será mesmo? Quem sabe há alguém doente em casa. Saí de manhã e não

voltei mais para lá.

— Bobagem, Tracey. Não estavam todos bem quando você saiu?

— É verdade, mas de qualquer modo vou verificar, do contrário não ficarei

sossegada. Não se importa, não é, Marty?

— Claro que não. Já está me ajudando mais que o suficiente. Além disso, não

sou seu chefe. Pelo contrário, como membro da família Alexander, você é que é

minha patroa.

— Nunca pensei nisso antes. Mas acho até que vou fazer valer minha

autoridade e dar umas ordens por aqui — Tracey brincou, rindo descontraída.

— Deus me livre! Já vi o que causou a Ryan com suas brincadeiras. Já pensou

quando começar a mandar, então? O que estava pretendendo, Tracey?

Emancipação… ou capitulação?

— Nem eu mesma sei, Marty. Bem, já vou indo.

— Se encontrar Eddy peça-lhe que dê um pulo aqui. Não consegui falar com

ele por telefone.

— Está bem — disse Tracey, enquanto saía para o pátio, sentindo o calor

forte daquele dia.

Chegando em casa, foi direto para o hall, onde encontrou Carol e Lyn. As

duas garotas estavam pálidas e havia sinais de lágrimas no rosto de Lyn.

— Vi o avião e… — começou Tracey, apertando os dedos, nervosamente.

— Foi horrível, Tracey — Carol murmurou. — Estávamos acompanhando a

marcação dos carneiros da nova raça Brahmans, quando de repente um deles o

atingiu!

— Atingiu quem? — Tracey perguntou, com voz alterada.

— Ryan! — respondeu Justin, chegando mais perto delas. — O diabo do

animal voltou para trás e pegou Ryan desprevenido. Essa nova raça é imprevisível

e muito rebelde. Pretendo fazer com que…

Tracey não esperou para ouvir o resto. Atravessou o hall correndo e foi

diretamente para o quarto de Ryan. Seu coração batia com força e suas mãos

estavam úmidas de preocupação. Bateu de leve na porta e entrou no quarto com

determinação.

Imaginava encontrar Ryan às portas da morte e, no entanto, o viu de pé,

diante da gaveta aberta da cômoda, escolhendo uma camisa limpa para vestir. Ele

estava com seu velho jeans, o cinto de couro ao redor da cintura e o torso nu,

forte e bronzeado por causa da vida ao ar livre.

Alívio e raiva se misturaram no sangue de Tracey. Entretanto, o sentimento

mais forte que se apoderou dela foi um desejo incrível de acariciar o peito de

Ryan e brincar com os pêlos escuros que o deixavam ainda mais viril e atraente.

Confusa, tentou justificar sua entrada brusca no quarto.

— Soube que estava ferido!

— Sinto muito desapontá-la, mas o ferimento não foi tão grave quanto

parecia. Vai ter que me aguentar durante vários anos ainda. Quem sabe, de uma

próxima vez, terá mais sorte — ele disse, enfiando os braços na camisa.

Tracey ficou magoada pela maneira fria e sarcástica com que Ryan recebera

sua preocupação.

— É uma pena mesmo! Deveria ter imaginado que meus cuidados seriam mal

recebidos — ela desabafou, virando-se para sair.

Mas Ryan a segurou pela mão.

— Chegou minha vez de lhe pedir desculpas.

Tracey sentia um nó na garganta, mas mesmo assim conseguiu falar.

— Sei que estamos sempre brigando e que eu digo coisas desagradáveis. Mas

nunca pensei ou desejei que sofresse algum dano físico, Ryan. — Ela baixou os

olhos e continuou: — Vi o avião decolar e quando cheguei aqui as meninas disseram

que você…

Ryan colocou o dedo sobre os lábios trêmulos dela.

— Psiu… Não se fala mais nisso.

Mas ela tinha necessidade de externar seus sentimentos.

— Compreenda, Ryan. Não sabia se você estava bem ou mal, mas pelo jeito

do pessoal falar lá embaixo, as lágrimas de Lyn, pensei… pensei… — ela parou,

incapaz de dizer o que tinha temido.

— Eu sei. Eu sei. — Ryan abraçou-a. — Com razão elas estavam assustadas.

Saiu muito sangue do local e elas se impressionaram. Mas o doutor esteve aqui e

disse que não foi um ferimento profundo. A região é muito irrigada e por isso

perdi muito sangue — Ryan apontou para o local do ferimento. — Vê que curativo

enorme? Mas não se preocupe. Vou sobreviver.

— Meu Deus! Você poderia estar morto! — Tracey exclamou, passando os

dedos sobre os arranhões e cortes visíveis sob a camisa aberta.

— Mas me valeu como aviso, Tracey. Não se deve ser imprudente quando se

mexe com gado. Minha mente estava noutro lugar e foi isso que aconteceu.

— Não brinque com uma coisa tão séria, Ryan!

— Sei que é sério — Ryan falou e tirou as mãos de Tracey de seu peito,

fazendo-a sentir-se levemente constrangida.

— Desculpe. Normalmente não sou tão… ousada!

— Tracey, por favor! Não me leve a mal! — pediu ele. — Fiz isso para seu

próprio bem e não porque não goste que você me toque. Nunca se sabe como uma

pessoa vai reagir quando entra em contato com outra. Confesso que sentindo suas

mãos em meu corpo, só consigo pensar em duas coisas: em você e naquela cama.

Portanto, se ficar mais tempo comigo, não sei se serei capaz de resistir a fazê-la

deitar-se nela. — Ryan passou a mão pelos cabelos, exasperado. — É melhor ir

embora, Tracey, porque, se não for…

Mas ela não queria ir embora. Aqueles poucos minutos em que estivera

tocando o corpo de Ryan tinham despertado nela uma vontade tão grande de

chegar mais perto daquele homem, de senti-lo melhor que, timidamente, se

aconchegou a ele.

— Se eu não for… — repetiu, tornando a deslizar a mão sobre os arranhões

no peito de Ryan.

— Tracey, por favor… não sou de ferro! O que está tentando fazer comigo?

— Pensei que estivesse óbvio — ela murmurou.

Sem dizer mais nada, Ryan tomou-a nos braços e a levou até a cama. Depois

se inclinou sobre ela, até que seus rostos ficassem a uma distância mínima.

— Você é uma feiticeira impossível, imprevisível e ilógica, — disse, antes de

se apossar dos lábios dela.

A pressão da boca de Ryan sobre a dela fez com que esquecesse de tudo e

Tracey abriu os lábios para recebê-lo com paixão. Seu corpo vibrava de

ansiedade, sentindo o calor do desejo invadi-la. Levantou os braços e enlaçou o

pescoço de Ryan. Ele a beijava avidamente, enquanto suas mãos percorriam o

corpo dela, sentindo cada curva detendo-se por mais tempo na suave elevação dos

seios rijos. Tracey se abandonou sob a carícia sensual daquelas mãos experientes,

que sabiam como despertar seu desejo.

Houve uma leve batida na porta, que passou despercebida ao casal. Só

notaram que não estavam mais sozinhos, quando ouviram a voz potente de Justin:

— Que diabo está acontecendo por aqui, Ryan? Vim ver como você estava e…

Ryan se ergueu, passando a mão pelos cabelos despenteados, escondendo

com o próprio corpo o de Tracey, que se sentia tremendamente embaraçada com

a situação.

— Estou bem melhor, obrigado — ele conseguiu dizer. Justin olhou de um

para outro.

— Só espero que saibam o que estão fazendo — falou ainda, antes de sair do

quarto, batendo a porta.

Tracey pôs-se rapidamente de pé.

— Sinto muito, Tracey. Deveria ter me lembrado de trancar a porta.

— Não tem importância. Aliás, acho que foi ótimo Justin ter aparecido,

porque poderíamos… nós dois…

Já não conseguia coordenar os pensamentos, porque Ryan tornara a se

aproximar dela. Precisava continuar falando para impedi-lo de agir. Esperava que

ele não pedisse desculpas pelo que tinha feito, porque aí então sua humilhação

seria total.

— Espero que fique bom logo e…

— Pare com isso, Tracey!

— É melhor eu ir embora. Preciso encontrar Eddy e lhe dar um recado de

Marty.

— Tracey! — Ryan exclamou num tom de súplica. Ela tapou os ouvidos com as

mãos.

— Por favor, não diga nada! Não quero ouvi-lo! — disse, enquanto abria a

porta, para depois sair correndo para seu quarto.

Quando se sentiu em segurança, sentou-se na cama e segurou a cabeça

entre as mãos. Que maneira esquisita de descobrir que estava apaixonada! Não

tinha sentido somente desejo físico por Ryan. O que sentia era algo muito mais

forte e profundo!

Como iria conseguir conviver com ele durante os próximos dois anos, sem

revelar seu segredo? Fechou os olhos, exasperada, mas isso só serviu para fazê-

la recordar a pressão dos lábios de Ryan sobre os seus, o calor daquele corpo

másculo e de músculos rijos, que ela tocara com tanto carinho!

Permaneceu imóvel durante alguns minutos. Só então se levantou e se olhou

no espelho. Viu os olhos sombrios e marcados pelas lágrimas. Não ia deixar que

Ryan percebesse o que realmente sentia. Do contrário, ele teria total domínio

sobre ela e não podia permitir que isso acontecesse. Era preferível que Ryan

pensasse que tudo não passara de uma reação instintiva entre um homem e uma

mulher, que se vêem numa situação favorável.

Para complicar ainda mais as coisas, havia Lana. Já bastava Ryan ter uma

mulher pendurada em seu pescoço, enviando-lhe olhares lânguidos e cheios de

promessas. Ele não precisava de outra!

Depois de lavar o rosto com água fria e pentear o cabelo, sentiu-se

razoavelmente bem para voltar ao escritório e dizer a Marty que não tinha

encontrado Eddy. Havia guardado seus pensamentos mais íntimos num

compartimento escondido de seu cérebro e era lá que eles iam ficar. Respirando

fundo, saiu para o corredor e começou a descer as escadas.

— Tracey!

Ela não teve outro jeito senão virar-se e enfrentar o tutor.

— Precisamos conversar, Tracey — Ryan propôs.

— Não há nada a dizer. Não quero ouvir desculpas, nem vou permitir que se

repita o que aconteceu há pouco. Prefiro esquecer. Assim, tudo ficará muito mais

fácil para nós dois.

— Acredita mesmo que pode fingir que nada aconteceu? Pode jurar que não

vai acontecer de novo?

Tracey estremeceu. Tinha que procurar ser bem convincente, senão correria

o risco de se ver na mesma situação outra vez. Mesmo agora, era difícil ficar sem

abraçá-lo, sem acariciar os cabelos escuros e macios de que tanto gostava. Se

amolecesse, não conseguiria repeli-lo, isso era certo. O melhor seria ficar

afastada da tentação que Ryan representava para ela. Tinha que fingir.

— Não seria impossível esquecer, Ryan. Já me livrei das lembranças que

guardei de Boyd. Por que não posso esquecer você também? Talvez eu tenha

mesmo puxado a minha mãe e goste de variedade. Por que deveria ficar atada a

um homem só quando o mundo está repleto de homens atraentes?

— Já está pensando na próxima conquista, então?

— Não pensei em você como uma conquista, mas confesso que prefiro casos

de amor passageiros.

Ryan deu uma gargalhada sonora e Tracey se surpreendeu: não esperava por

esse tipo de reação.

— Quer dizer, então, que entre todos os amantes que teve, nenhum a

satisfez?

— Se continuo sozinha, é porque nenhum foi aquilo que eu esperava, não é?

— E agora? Quem planeja conquistar? Marty?

— Por que não? É um bonito homem.

Ryan ficou zangado.

— Deixe de fingimentos, Tracey. Você se interessa tanto por Marty quanto

eu. Está usando a imaginação para se fazer passar pelo que não é. — Ele riu. —

Pensa que sou imaturo e inexperiente? Acha mesmo que um homem não sabe se

uma mulher é vivida ou não? Você correspondeu a meus carinhos porque a tomei

de surpresa e não teve como se controlar, e não devido à sua vasta experiência

com homens.

— Agi com esperteza, Ryan — arriscou. — Alguns gostam do tipo inocente.

— Tenho certeza absoluta de que nunca conheceu um homem, Tracey. Estou

disposto a entregar esta propriedade e todos os bens que possuo para a primeira

pessoa que encontrar, caso você consiga me provar o contrário.

Tracey procurou uma maneira de deixá-lo em dúvida.

— Se eu disser que já dormi com um homem, não poderá provar o contrário.

Ryan deu uma gargalhada, para depois segurar o rosto dela entre as mãos.

— Existe uma maneira muito fácil e gostosa de provar que está mentindo.

Quer que eu lhe mostre?

— Não! — Tracey exclamou, afastando-se dele, a cabeça cheia de

pensamentos contraditórios. — Não quero que me mostre nada, Ryan, a não ser os

telhados de Sidnei, quando me levar de volta para lá. Por que insiste em me

manter em Nindethana? — perguntou, desesperada. — Por que não admite de uma

vez por todas que aqui não é meu lugar?

— Você ainda não percebeu que é?

— Ryan… Você quer ter sempre a última palavra!

— Tenho que agir assim com você, Tracey, ou não conseguirei manter minha

sanidade mental.

Tracey o encarou, os olhos suplicantes.

— Deixe que eu vá embora, Ryan. Vai ser muito melhor, para nós dois!

— Esqueça isso, Tracey. Vai ficar aqui enquanto for minha tutelada e não se

fala mais no assunto.

— Você é um demônio, Ryan! — ela exclamou, enquanto lágrimas teimavam em

escorrer de seus olhos. — Que mal lhe causei, que me faz pagar com tanto rigor?

— Não é castigo nenhum Tracey. Apenas acho você uma companhia tão

agradável, que gosto de tê-la por perto.

Tracey sentiu-se derrotada. Sabia que não adiantaria pedir, exigir, suplicar,

ameaçar… No entanto, havia uma última chance e lançou mão dela.

— Antes de ir embora, Nancy nos convidou para passar uns dias com ela. Eu

poderia ir, com Lyn e Carol?

— Por quanto tempo pretendem ficar lá?

— Um mês? — ela tentou.

Ryan olhou para ela, como se tentasse ler no fundo de sua alma.

— Está bem. Pode ir por um mês. Quando quer partir?

Tracey respirou fundo, satisfeita com sua pequena vitória.

— Quando achar melhor.

— Está bem. Na quarta-feira, então. Estarei mais folgado nesse dia e

poderei levá-las de avião. Está bem assim?

Tracey sorriu, contente por ter conseguido um tempo de trégua, e Ryan

passou os dedos pelo rosto delicado dela.

— Acha que esses dias vão resolver alguma coisa? Não acredita no velho

ditado que diz "quanto maior a distância, maior a saudade?"

— No entanto, existe outro que diz "longe dos olhos, longe do coração", não

é verdade?

— Está bem, Tracey. Ganhou seu mês de férias. Mas é só um mês, lembre-se

bem.

— Já sei. Depois desses dias vai retomar as rédeas, não é? Seria tão bom se

eu pudesse esquecer isso!

Sem provocá-lo mais, desceu as escadas. Se esperava que Ryan mantivesse a

permissão de deixá-la viajar, o melhor seria não forçar muito a situação.

Lyn ficou radiante com a notícia de que iriam para a casa de tia Nancy.

— Vai ser uma delícia! — Carol comentou. — Agora é época de colheita e

sempre fazemos uma grande festa quando ela termina, para comemorar os bons

resultados.

— A família inteira costuma comparecer? — Tracey quis saber, já

preocupada com a possibilidade de ver Ryan de novo.

— Depende dos afazeres de cada um, mas todos fazem o possível para ir. Os

amigos e vizinhos sempre comparecem e olhe que eles são uma turma

divertidíssima!

Tracey suspirou, aliviada. Pelo menos, teria um mês inteiro para ficar longe

de Ryan e isso seria muito bom. Teria tempo para pensar. Lyn e Carol insistiram

para que fosse com elas contar a novidade ao avô. Ela concordou, mas cheia de

receios, temendo que Justin fizesse comentários sobre o que havia visto aquela

tarde. Felizmente, porém, ele se limitou a falar sobre a viagem programada.

Chegaram a Santinwood, a casa de Carol, a tempo de almoçar. Ross foi

buscá-los no campo de pouso e os levou de carro para casa.

Tracey e Lyn se extasiavam com a paisagem. Tudo ali era completamente

diferente do que tinham visto na fazenda de Ryan. A terra era mais escura, quase

preta, as árvores de um verde mais profundo e brilhante, o sol mais ameno e o

céu igualmente límpido. Mesmo assim, Tracey não se identificou tanto com essas

terras quanto com Nindethana. Já sentia falta do sol inclemente, da poeira

vermelha, das árvores retorcidas… Almoçaram numa sala grande e ensolarada.

Ross e Lance faziam o possível para que elas se sentissem logo à vontade. Quando

a refeição terminou, todos passaram para o terraço, onde iriam tomar café.

— Não pode mesmo passar a noite aqui, Ryan? — o pai de Carol perguntou.

— Não, mesmo, Clive. Desta vez é impossível.

Tracey se perguntou se ela seria a causa da pressa de Ryan. Se era costume

ele pernoitar em Santinwood quando ia para lá, ela devia ser a razão daquela

mudança.

— Mas estará aqui para a Festa da Colheita, não é? — Nancy quis saber.

— Claro que sim! — Carol se adiantou em responder. — Não é mesmo, Ryan?

— Vocês vão ter que me desculpar — Ryan disse depois de olhar para

Tracey. — Mas este ano não vai ser possível; a menos que a festa coincida com a

volta das minhas primas.

Tracey agora tinha a certeza de que era a causa daquela decisão. Talvez

Ryan também não quisesse mais vê-la.

Todos ficaram aborrecidos com a perspectiva da ausência de Ryan na Festa

da Colheita e daí para frente a conversa foi menos animada. Pouco depois, Ryan

anunciou que estava na hora de partir. Tracey ficou preocupada. Tinha que falar

com Ryan antes que ele fosse embora. Não queria sentir remorsos por ser o

motivo do não comparecimento dele a uma festa de família.

— Não precisa deixar de vir só por minha causa! — ela comentou baixinho,

assim que teve uma chance.

— Pediu um mês de férias e conseguiu. Por que está reclamando agora?

— Não sabia que nesse meio tempo iria haver essa festa à qual você nunca

deixa de comparecer.

— Virei nos próximos anos.

— Não é só isso, Ryan. Todos pareceram tão desanimados, que estou me

sentindo até mal por ser a causa involuntária de tanto aborrecimento.

— Quer que eu reconsidere minha decisão, para você se sentir melhor? —

ele perguntou, irônico. — Pensei que fosse exatamente o contrário! Achei que

estava tentando me evitar!

— Por mim, não faço a menor questão de tornar a vê-lo. Pensei apenas em

sua família. Se não fosse tão sarcástico, já teria entendido o meu ponto de vista.

— Está querendo dizer que espera que eu volte atrás em minha decisão só

para evitar que você sinta remorsos? Nada disso, Foguinho! Estou ansioso por

estas quatro semanas em que ficarei livre de brigas e recriminações juvenis. O

que mais desejo agora é voltar à antiga paz e às companhias femininas mais

adultas, para as quais sou sempre bem-vindo.

Tracey mal podia acreditar na reação que aquelas palavras provocavam nela.

Sentia ciúme… um ciúme que machucava seu coração causando-lhe uma dor

profunda. Mas ela não quis deixar de revidar as palavras de Ryan.

— Sorte sua! Só não esqueça de dizer a essa companhia feminina tão

adorável que já deitou mais alguém em sua cama.

Ryan segurou os pulsos dela com força.

— Pare com isso, garota, ou sou capaz de… de estrangular você! — ameaçou,

soltando em seguida o braço dela como se não suportasse o contato com aquela

pele macia.

Instantes depois, ele já entrava no carro que o levaria ao campo de pouso.

Tracey ficou olhando, até que o carro sumisse na distância, enquanto esfregava

os dedos sobre as marcas vermelhas que o tutor deixara em seu pulso.

— Já começou a me ferir, Ryan — disse a si mesma.

Capítulo X

As semanas em Santinwood foram muito agradáveis, cheias de atividades, e

o tempo esteve perfeito. Tracey não cansava de se admirar com as coisas

diferentes que via.

A colheita era uma atividade incessante e ela acompanhou todo o processo.

Viu a colheita dos grãos, com máquinas enormes, e depois os viu serem

transportados e guardados em silos que mais pareciam um prédio com muitos

andares. De lá, na época certa, os grãos seriam encaminhados para o porto, para

serem exportados.

Acompanhou também o trabalho com os carneiros. Soube que a maioria dos

machos eram encaminhados aos frigoríficos para corte. Só ficavam os melhores,

que eram utilizados para reprodução. As fêmeas serviam para produção de lã e

como matrizes. Só quando já estavam velhas é que eram levadas para o

matadouro.

Aproveitando o bom tempo, também faziam longos passeios a cavalo, através

dos campos férteis. Jogavam tênis, cartas, faziam piqueniques, nadavam num lago

próximo, ou visitavam amigos.

Os dias passavam rapidamente, alegres e movimentados, mas as noites…

esse era o período que Tracey mais temia. Pareciam não ter fim e era nessas

horas solitárias que ela pensava em Ryan, em Nindethana. Procurava analisar seus

sentimentos e reconhecia que, embora Ryan estivesse longe fisicamente, não

estava fora de sua mente, de seu coração.

Tudo a fazia pensar nele. Por vezes, o sorriso de Ross lembrava o de Ryan,

ou uma observação casual fazia com que mencionassem o nome dele. Sempre que

ouvia o barulho de um avião, erguia instintivamente os olhos, procurando ver se

era Ryan que voltava.

Embora ele tivesse afirmado categoricamente que não viria para a Festa da

Colheita, intimamente Tracey tinha esperanças. Gostaria tanto que ele viesse!

Morria de vontade de vê-lo, ouvi-lo, de gozar sua presença!

O ciúme de Lana continuava a corroê-la como um ácido. Não podia pensar que

Ryan estivesse com ela, muito menos vivendo momentos de suave intimidade com

aquela mulher.

Sentia falta até mesmo das discussões que tinha com Ryan. Embora sempre

saísse perdendo, sabia pelo menos que ele estava ali, perto dela.

Na última semana que passou em Santinwood, Tracey teve a oportunidade de

participar da Festa da Colheita. Foi, sem dúvida, uma reunião excelente, animada,

alegre e, segundo a opinião geral, um sucesso.

Todos os amigos e vizinhos estavam presentes e a casa ficou repleta de

gente jovem. Tracey, Lyn e Carol dançaram muito, conheceram outras pessoas e

se divertiram a valer. Mas, no fundo de seu coração, Tracey não estava feliz.

Sorria e conversava, dançava e participava das brincadeiras, porém seu pensa-

mento voltava constantemente para Ryan. Pena que ele não estivesse ali! Aí então

tudo teria sido perfeito!

Finalmente, chegou o dia de voltarem. Lyn insistiu com Nancy para que

deixasse Carol ir com elas, e a tia acabou concordando.

Tracey aprontara as malas com antecedência, para que tudo estivesse

pronto quando chegasse a hora de partirem. Desde cedo ficou olhando para o céu,

ansiosa por ver o avião de Ryan. Quando o avistou riscando o céu, correu para

dentro de casa e ficou esperando.

Pouco depois Ryan entrou. Tracey sentiu o coração se aquecer, vendo a

figura máscula e atlética do tutor. Ele era mesmo atraente e inspirava completa

segurança! Ryan cumprimentou a todos de um modo geral, sem dar atenção

especial a ela, conversando muito mais com os outros membros da família.

À tarde, deram início à viagem de volta. Lyn, cuja autoconfiança se

fortificava a cada dia, sentou-se na frente com Carol. As duas conversaram com

Ryan o tempo todo. Contaram tudo que tinham feito naqueles dias em Santinwood.

Tracey sentou-se no banco de trás, imersa em pensamentos.

Quando viu o telhado pintado de vermelho, indicando que tinham chegado a

Nindethana, seu coração se alegrou. Estava em casa! Era engraçado. Tinha

precisado ficar um mês longe dali para compreender como gostava daquele lugar.

Justin ficou muito contente por ver as netas de volta. Fez muita festa e se

mostrou sorridente e amável. Ryan, no entanto, quase não falava com Tracey, a

não ser quando absolutamente necessário. Era horrível! Ela foi ficando triste e

apática, passando boa parte do tempo sozinha em seu quarto.

Já se tinham passado dez dias desde sua chegada, quando Carol veio avisá-la

de que Justin queria falar com ela.

— Finalmente a encontrei, Tracey. Vovô quer falar com você, mas não sabia

onde estava. Tem descido sempre tarde para o café da manhã!

— Ando um pouco preguiçosa e tenho dormido um pouco mais. — Tracey

tentou se justificar.

Mas não era verdade. Procurava descer atrasada para evitar a presença de

Ryan. Ele andava tão indiferente, que seu coração doía.

— Então vá falar com ele. Vovô está no escritório.

— Está bem, Carol. Obrigada. Já vou descer. Sabe do que se trata?

— Não faço a menor ideia. Lyn e eu combinamos ir até a mina de opalas para

tentar nossa sorte. Quer vir conosco? Podemos esperar até que termine de falar

com você.

— É melhor vocês irem sozinhas, Carol. Posso demorar com ele e, além disso,

tenho que escrever algumas cartas para umas amigas de Sidnei. Farei companhia

a vocês outro dia.

— Está bem. Até mais tarde, então.

Tracey tomou seu desjejum rapidamente e depois foi para o escritório de

Justin.

— Entre e feche a porta — o velho pediu. — Precisamos conversar e aqui

estaremos à vontade, sem sermos interrompidos.

Tracey ficou apreensiva. O avô parecia tão solene! Sentou-se diante da

grande mesa, por trás da qual Justin tinha se acomodado.

Ele parecia pouco à vontade. Levou algum tempo ajeitando uns papéis sobre a

mesa, passou a mão pelos cabelos e por fim limpou a garganta, antes de começar a

falar.

— Eu… bem… Estive conversando com Ryan sobre você — Justin começou,

hesitante, e Tracey apertou uma mão contra a outra, nervosa. — Ele… isto é, nós…

decidimos que, considerando todos os fatos, você estará melhor se permitirmos

que… que faça tudo à sua maneira.

Sobre o que Justin falava? O que queria dizer com "considerando os fatos"

e "à sua maneira?"

— Desculpe, vovô, mas não estou entendendo o que quer dizer.

— Apenas que pode ir embora daqui! — ele falou, zangado. — Pode voltar a

morar em Sidnei, se é o que deseja.

Realmente era, até bem pouco tempo atrás. Mas agora tudo havia mudado. E

o incrível acontecera! Queria ficar, mas Ryan queria que ela se fosse! Mas não

podia demonstrar o que sentia! Ryan ia se divertir às suas custas se dissesse que

tinha mudado de ideia.

— É exatamente o que quero, vovô — ela respondeu, friamente.

— No entanto, lembre-se de que Ryan continua sendo seu tutor. Terá que

prestar contas a ele de sua vida e de seus atos. Espero também que se mantenha

em contato regular conosco. Não vou deixar que a família de meu filho suma

novamente de minha vista.

— Vovô… sinto muito! — Tracey estendeu a mão para segurar a do avô. —

Prometo que escreverei uma vez por semana — falou com sinceridade.

— Não precisa tanto, Tracey. Sei que terá outras coisas com que se

preocupar. Uma carta por mês será suficiente.

— Não vou esquecer, vovô. Prometo.

Nesse instante a porta se abriu e Ryan entrou. Tracey ficou ereta na

cadeira, perdendo sua espontaneidade.

— Tudo resolvido? — ele indagou, olhando diretamente para o avô.

— Nem tudo. Ainda há alguns pontos a serem acertados.

Justin indicou uma cadeira para que o neto se sentasse.

— Não vão precisar de mim para acertar os detalhes — disse Ryan,

dirigindo-se agora a Tracey. — Partimos amanhã, às oito da manhã, está bem?

Tracey ficou surpresa. Tão depressa assim? Ryan devia estar ansioso para

se ver livre dela!

— Não sei se dará tempo! Preciso fazer contatos em Sidnei para arranjar

um apartamento! Com a venda da casa, fiquei sem lugar para morar e preciso ver

se encontro alguém com quem dividir as despesas…

— Não precisa se preocupar com nada disso, Tracey. Já ajeitamos tudo —

Ryan respondeu com calma. — Você vai residir no Hotel Goodman, enquanto for

minha tutelada.

— Hotel Goodman?! Mas não posso ficar lá! É muito caro para mim!

— Tem o suficiente para isso, Tracey. Não se esqueça de sua herança. O

espólio vai arcar com todas as despesas!

— Mas… não quero…

— Foi minha ideia, Tracey — Justin explicou. — Quero ter certeza de que

está morando num lugar bom, que está sendo cuidada e que posso me comunicar

com você todas as vezes que quiser. Se for morar num apartamento, hoje estarão

aqui, amanhã ali, e vou acabar perdendo contato com você.

— Compreendo seu ponto de vista, vovô, mas prefiro…

— Por favor, Tracey, concorde. Para me deixar feliz. — Justin pediu. — Sou

antiquado e não gosto que mocinhas fiquem morando sozinhas, sem qualquer

proteção. Ficarei mais sossegado se souber que está num hotel como o Goodman.

Como poderia recusar? Era bom saber que alguém se interessava tanto por

ela. Pelo menos Justin se preocupava com seu bem-estar, porque Ryan a tratava

como se já não fizesse mais parte da família.

— Está bem, vovô. Vou ficar no Goodman, se isso o deixa mais tranquilo.

— Ótimo! — Justin exclamou, recostando-se na cadeira e dando a conversa

por terminada.

— Vamos então, Tracey? — Ryan falou, abrindo a porta para que ela

passasse.

Ambos atravessaram o hall em silêncio. Tracey já se dirigia para o quarto,

quando Ryan a deteve. Por um instante, ela pensou perceber uma expressão de

preocupação e carinho nos olhos azuis dele. Mas foi só por um breve instante.

Quando Ryan falou, sua voz soou gélida e distante.

— Tenho um compromisso importante amanhã na cidade. Por favor, esteja

pronta na hora certa para que não haja atrasos.

A velha rebeldia encontrou ocasião para se manifestar.

— Jamais me atrasaria, Ryan. Estou tão ansiosa por partir quanto você para

me ver pelas costas. Fique certo de que já me encontrará pronta, esperando,

quando resolver sair.

Ergueu o queixo com orgulho e foi para o quarto, caminhando com passos

firmes.

Com dor no coração, começou a fazer as malas. Era incrível que tivesse

chegado àquela casa com tanta revolta, para sair dela com sofrimento e tristeza.

Tinha aprendido a gostar daquele pedaço de sertão, de Justin com seu mau

humor, de Carol com seu gênio alegre e de Ryan… Ia ser muito difícil deixar tudo

para trás!

Depois de guardar suas coisas, foi contar a novidade à irmã e a Carol. Para

sua surpresa, elas já sabiam de tudo. Talvez Justin, ou Ryan, as tivesse avisado.

Lyn estava triste com a perspectiva de não conviver mais com a irmã.

Entretanto, aceitou a situação com boa vontade. Mais uma vitória para Ryan.

Tinha conseguido que Lyn se tornasse independente dela e pronta para aceitar a

vida conforme ela se apresentava. Ver a irmã aceitando pacificamente sua par-

tida, foi mais um golpe para o coração sofrido de Tracey.

Na manhã seguinte, fiel à sua promessa, Tracey estava pronta no hall, quinze

minutos antes que Ryan aparecesse. Quando chegou o momento das despedidas,

ela fez força para não chorar. Era estranho, mas sentiria falta de todos ali,

principalmente de Justin, com quem tinha se dado tão bem.

— Tem certeza de que não quer ficar? — o velho perguntou ainda, com os

olhos ligeiramente úmidos.

Tracey se ergueu nas pontas dos pés e beijou a face enrugada do avô.

— Não posso, vovô. Você sabe que não posso!

Beijou Carol e Lyn e rapidamente correu para o carro, antes que começasse

a chorar de verdade.

Como já esperava, a viagem foi feita quase que em completo silêncio. Ryan

falava apenas o necessário, ao que ela respondia com monossílabos. No avião, a

mudez foi total; Ryan com a atenção voltada para os comandos, ela fingindo

cochilar.

Quando chegaram ao aeroporto, Tracey se preparou para descer. Viu então

que as malas eram postas num carro de aluguel e propôs:

— Se está atrasado para seu encontro, pode deixar que eu tomarei um táxi.

Sei me virar muito bem por aqui.

Ryan apenas a segurou pela mão e a fez ir depressa para o carro, onde

fechou o porta-malas com violência.

— Entre — ele ordenou, abrindo a porta. — Quando estiver com muita

pressa, eu aviso.

— Está combinado! — Tracey respondeu, entrando no carro e ficando com os

olhos num ponto à sua frente, numa tentativa de ignorar a presença de Ryan a seu

lado.

Ele saiu do estacionamento e seguiu pela estrada que levava ao centro da

cidade. Cruzaram um bairro de subúrbio e Ryan olhou para Tracey, muito sério, as

sobrancelhas franzidas.

— Deve se sentir em casa no meio disto — disse, indicando as casas

apertadas, quase sem jardins.

Tracey tinha vontade de lhe dizer uns desaforos, mas só de lembrar que

aqueles eram os últimos momentos que passaria com ele perdeu toda a disposição

de criar caso. Sentia as lágrimas contidas queimarem seus olhos, ameaçando

transbordarem a qualquer instante.

— Sinto muito… — ela disse.

— Sente pelo quê, Tracey? Por fazer parte deste ambiente ou por ter-se

tornado rabugenta outra vez?

Magoada com as palavras de Ryan, ela voltou a dar vazão à sua

agressividade.

— Que diferença faz? Por que não se concentra em dirigir e cala a boca,

Ryan? Quanto mais depressa chegarmos ao hotel, melhor!

— Que progresso! Parece que estamos de acordo neste ponto! É isso

exatamente o que quero.

Depois de atravessar o trânsito da cidade, chegaram ao hotel Goodman. Era

um prédio bonito e bem cuidado. Entraram no saguão, os pés afundando num

tapete grosso e macio, onde móveis estofados formavam ambientes suntuosos e

distintos.

Os Alexander deviam ser hóspedes costumeiros do hotel, porque o gerente

logo se apressou em recebê-los, cheio de mesuras e amabilidades. Acompanhou-os

depois até a suíte destinada a Tracey, para ver se tudo estava a contento.

Tracey nunca se vira antes no meio de tanto luxo. A suíte era enorme, com

dois quartos, uma sala grande e dois banheiros. Ela se sentia pequena em meio a

tanta grandiosidade. Ia ser estranho morar num lugar tão sofisticado, depois de

passar anos trabalhando o dia inteiro num escritório do centro, como simples

secretária.

Mesmo sabendo que por causa de sua herança não precisaria mais trabalhar,

pretendia arranjar um emprego. Seria uma maneira de se ocupar e ter a

companhia de amigas de sua idade. Além disso, não precisaria tocar no dinheiro

que o pai lhe deixara, porque não se sentia no direito de recebê-lo.

— Está satisfeita com os aposentos, srta. Alexander? — O gerente indagou.

— Muito. É… é até…

— Está tudo bem, sr. Thomas — Ryan se apressou em falar. — Se minha

prima precisar de mais alguma coisa, ela lhe pedirá. Gostaria que a atendesse da

melhor maneira possível.

— Sem dúvida nenhuma, sr. Alexander. Ela vai se sentir como se estivesse

em sua própria casa — garantiu o gerente, enquanto se afastava, todo sorrisos.

Tracey se aproximou do janelão da sala, abriu a cortina e olhou a vista. As

águas azuis do porto brilhavam sob o sol da primavera. Podia ver aqui e ali

algumas velas brancas de veleiros que circulavam pela baía. Olhou para a esquerda

e avistou a Ponte Harbour, a Casa da Ópera, as paredes do Palácio do Governo.

Em seguida abaixou os olhos e viu a rua lá embaixo, onde as pessoas pareciam

formiguinhas apressadas. Respirando fundo, virou-se para encarar Ryan.

— Deve querer ir embora agora.

— Daqui a pouco — ele respondeu, estendendo para ela um catálogo do hotel.

— Aqui constam todos os serviços que terá à sua disposição, inclusive refeições

nos aposentos e detalhes sobre o salão de refeições, o Bistrô, a Rotisserie, etc.

Se ainda precisar de mais alguma coisa, não se acanhe e fale com Thomas. Ele é

muito prestativo.

Tracey balançou a cabeça, concordando.

— Compreende que, como seu tutor, tenho que estar a par do que faz,

certo? Portanto, precisamos nos manter em contato.

Mais uma vez Tracey limitou-se a balançar a cabeça. Sentia um nó na

garganta, que lhe tornava difícil falar.

— Não vai esquecer de escrever? Justin ficará desapontado se você falhar.

— Escrevo, sim.

Que pena que Ryan também não ficasse triste e preocupado se ela não

mandasse notícias!

— Bem… então está tudo em ordem. — Ryan suspirou, para depois segurar o

queixo dela entre as mãos. — Se quiser ter namorados, assegure-se primeiro que

eles não sejam casados, está bem? Não se esqueça de que Nindethana estará lá,

esperando você, caso resolva fazer alguma bobagem.

Tracey estava tão magoada e triste, que achou que a melhor maneira de

lidar com aqueles momentos finais seria reagindo.

— Eu sei. Nindethana é como uma espada suspensa acima de minha cabeça,

certo? Não devia falar desse jeito, Ryan. Aquele é um lugar maravilhoso!

— Então suas objeções não eram contra a casa ou a fazenda, não é? Queria

se livrar de mim, de seu tutor. Não suportava minha presença. Pois deixe que eu

lhe diga uma coisa. Também não morria de vontade de estar com você, Foguinho.

Você não foi uma companhia muito agradável, sabe disso, não é?

Tracey engoliu o nó que se formara em sua garganta diante daquelas

palavras tão duras. Soltou-se das mãos dele e respondeu com agressividade:

— Sei muito bem de tudo isso, Ryan. Você já fez questão de me dizer antes.

Agora, se não se incomoda, gostaria de guardar minhas coisas e me acomodar por

aqui. Portanto… — Ela fez um gesto indicando a porta de saída.

Ryan não disse mais nada. Apenas saiu, batendo a porta com força. Assim

que se viu sozinha, Tracey correu para o quarto e se atirou na cama, soluçando

sem parar.

Embora desta vez tivesse dito a última palavra, não se sentia triunfante nem

feliz. Apenas desesperada, porque não ia mais ver Ryan.

Capítulo XI

Tracey empurrou o carrinho com o café da manhã. Tinha se habituado a

fazer as refeições na suíte. Durante os dois meses em que estava morando no

Goodman, tentara algumas vezes descer para almoçar e jantar no enorme salão

de refeições. Mas acabara desistindo. Sentia-se absurdamente solitária,

sentando-se sozinha em uma mesa, enquanto as outras estavam tão cheias e

alegres.

Tentara então ir ao Bistrô e à Rotisserie, mas lá, num ambiente menor e

mais aconchegante, sentira-se ainda mais só. Vários homens desacompanhados

procuravam se aproximar, ao vê-la sozinha, provavelmente na esperança de

garantir uma boa noitada. Tivera que ser muito firme para se livrar dessas com-

panhias indesejadas.

Daí para frente, passara a fazer as refeições invariavelmente em seus

aposentos. Era melhor assim. Na verdade, a solidão seria sua companheira aonde

quer que ela fosse e, além do mais, sentia-se segura na suíte.

Olhou para o relógio. Eram ainda oito horas. Ótimo! Teria tempo de sobra

para se vestir e chegar ao trabalho às nove. Havia arrumado um emprego numa

firma de importação e exportação que ficava próxima do hotel. Assim, podia ir a

pé, saindo dez minutos antes.

Tracey recostou-se na poltrona. Para ela, aquele era um dia especial! Estava

completando vinte e um anos de idade. Agora era legalmente maior e responsável

por seus atos: uma adulta! Era costume das pessoas comemorar essa data, por

ser tão significativa. Ela, no entanto, passaria seu aniversário sozinha, tra-

balhando como se aquele fosse um dia como outro qualquer e sem ninguém para

lhe dar os parabéns e abraçá-la com carinho. Talvez Lyn lhe mandasse um cartão,

ou, quem sabe, a família ligasse à noite. Esperava apenas que não ignorassem

aquela data por completo, só porque agora ela morava sozinha em outra cidade.

Suspirou profundamente e caminhou até o janelão da sala. Lá embaixo, a

cidade já fervilhava. Pessoas entravam e saíam dos edifícios e carros

congestionavam as ruas. Por que tinha querido voltar para aquele lugar maluco?

Quantas vezes não se vira pensando na calma do interior, no silêncio das tardes

quentes, cortador apenas pelo canto dos pássaros ou pelo balir dos carneiros?

Ouviu que batiam na porta. Devia ser Daryl, o garçom, para retirar a bandeja

do café.

— Pode entrar — ela disse, sem se mover.

Como a porta não foi aberta, resolveu se levantar. Talvez fosse o carteiro

trazendo um telegrama de Lyn. Ansiosa, atravessou a sala e abriu a porta. Mal

podia crer no que seus olhos viram.

— Ryan! Você por aqui! — exclamou.

Lá estava ele, encostado contra o batente, mais irresistível do que nunca, o

rosto muito bronzeado contrastando com o branco da camisa aberta no peito, as

pernas musculosas moldadas pelo jeans justo e bem talhado.

— Não sabe que dia é hoje? — ele perguntou, com um sorriso.

Dizendo isso, passou por ela, que continuava boquiaberta e imóvel.

Acomodou-se numa poltrona e só então Tracey lembrou-se de fechar a porta.

— É sexta-feira, mas…

Ela não conseguia pensar direito. Tinha ficado tão surpresa em ver Ryan, que

seus pensamentos pareciam estar de cabeça para baixo.

— Isso mesmo — Ryan disse, aproximando-se do carrinho e pondo a mão no

bule de café para sentir se estava quente. — Pode ligar para a copa e pedir que

tragam mais café? Estou louco para tomar uma xícara e gostaria que me fizesse

companhia.

Voltando de repente à realidade, Tracey apanhou o telefone e fez o pedido.

— Não me diga que esqueceu que hoje você atinge sua maioridade — Ryan

exclamou.

— Ah! É isso! Para ser franca, não dou muita importância a essas datas. Não

pretendia comemorá-la.

— Não combinou de sair com algum rapaz?

— Não.

— Mas a família acha que deve festejar este dia e que para isso precisaria

de companhia.

— É por isso que está aqui?

— Exatamente.

— Mas… e se eu já tivesse feito outros planos? A viagem é muito longa para

arriscar vir sem ter certeza.

Um brilho divertido surgiu nos olhos de Ryan.

— Achamos pouco provável que fosse sair com alguém. Nas duas noites em

que Justin ligou, você estava em casa. Além disso, vovô conversou com Thomas e

ficou sabendo que você nunca sai à noite e que raramente recebe alguém aqui.

— Justin tem usado o gerente para me espionar? Cada movimento meu é

anotado para depois ser comunicado a Justin?

— Não é bem assim, Tracey. Vovô só estava preocupado com você.

— Então por que não me perguntou diretamente o que queria saber?

— Ele não ficaria sossegado. Você poderia mentir.

A chegada do garçom com a bandeja do café impediu que Tracey

respondesse imediatamente. Mas ela estava indignada, e assim que o rapaz saiu,

retomou o assunto.

— Sendo assim, a família sentiu pena de mim e resolveu mandar você para

me fazer companhia nesta data tão importante. Muito obrigada, mas fez essa

viagem em vão, pois não preciso de ninguém para comemorar meu aniversário!

Levantou-se e andou pela sala, tentando conter sua raiva e desapontamento.

Esperava que Ryan lhe desse uma resposta ríspida, à qual ela estaria pronta

a revidar. Como isso não aconteceu, virou-se para encará-lo e deu com ele

servindo-se, tranquilamente, de uma xícara de café. Ela colocou as mãos na

cintura, numa atitude de protesto.

— Ouviu o que eu disse, Ryan?

— Não quero discutir com você no dia de seu aniversário.

Tracey ficou ainda mais irritada com aquela resposta calma e indiferente e

foi sentar-se no sofá, diante de Ryan.

— Repito: fez essa viagem em vão. Não preciso de companhia.

— Mas eu estou aqui e não vejo razões para continuar discutindo. Por que

não vai se arrumar para sairmos? O tempo não pára de passar e já perdeu

minutos preciosos deste dia tão importante.

O coração de Tracey cantou em secreta alegria, ao pensar que iria passar o

dia inteiro na companhia de Ryan. No entanto, como deveria agir para ocultar

seus verdadeiros sentimentos? Como se controlar, se estava feliz ao lado do

homem que amava?

— Vamos, Tracey. Não perca tempo! — Ryan pediu.

— Não posso ir, Ryan. Hoje é sexta-feira e tenho que trabalhar. Não posso

tirar folga, sabe disso.

— Não se preocupe, Tracey. Já está tudo arranjado.

— Não posso brincar com trabalho, Ryan.

— Por favor, Tracey. Não pode entender uma coisa tão simples? Disse que

não precisa ir, porque seu patrão já está avisado.

— Como? Mas o que está havendo?

— Nada de mais. Apenas seus empregadores já sabem que não vai trabalhar

hoje.

— Falou com o sr. Whitehouse? Já o conhecia?

— Não. Avisei o chefão, R. J. McCarthy. Não trabalha para R. J. McCarthy,

Importação e Exportação?

— Meu Deus! Até isso o sr. Thomas chegou a contar? Estou sendo realmente

vigiada! Bem… e daí?

— Acontece que McCarthy é meu avô materno. Justin, Glen e eu somos os

outros sócios da firma.

Mais uma vez Tracey foi tomada de surpresa. Tinha que admitir que Ryan

sabia como surpreendê-la. Agora estava explicado por que encontrara aquele

emprego com tanta facilidade. Embora estivesse sozinha em Sidnei, continuava

sob as asas protetoras da família Alexander.

— Vocês me deixaram vir para esta cidade, mas foi tudo uma farsa, não é?

Continuam tomando tanta conta de mim, como se eu estivesse ainda em

Nindethana! Só falta você me dizer que também são os donos deste hotel!

— Temos apenas metade das ações — Ryan admitiu, sorrindo ligeiramente.

— Por que tudo isso, Ryan? Concordei em ficar aqui, escrevi, conforme tinha

prometido. O que mais querem de mim? Por que precisam me fazer de boba, me

espionar e cuidar de mim como se eu fosse uma garotinha? — Tracey tinha os

olhos úmidos. Levantou-se e deu as costas para Ryan. Não queria que ele

percebesse o quanto estava abalada.

Mas, no instante seguinte, ele estava ao lado dela, segurando seus ombros e

fazendo-a voltar-se para encará-lo.

— Não fique aborrecida, Tracey. Justin fez isso para seu próprio bem. Pelo

menos, ele imaginou que estava agindo da melhor forma. — Puxou-a para junto de

si, encostando o queixo nos cabelos longos e macios. — Nem pode imaginar como

Justin ficou apavorado com a possibilidade de perder o contato com você. Ele não

teve a menor intenção de deixá-la infeliz, pode acreditar.

— Mas agora vou ficar constrangida para enfrentar o pessoal do escritório.

— Ninguém sabe de nada por lá, a não ser o próprio R. J. Não creio que ele

vá espalhar a notícia.

Ryan viu duas lágrimas saltarem dos olhos de Tracey e rolarem por seu

rosto. Aproximou-se mais e com os lábios procurou secá-las. Tracey já não podia

pensar. Era maravilhoso sentir o carinho de Ryan, seu toque divino, os lábios

quentes… Só com muito esforço, conseguiu falar:

— Foram injustos comigo. Eu… eu…

Não pôde continuar, porque os lábios de Ryan se uniram aos seus, apossando-

se de sua boca e do que restava de sua vontade. Como um gemido de derrota,

Tracey entreabriu os lábios deixando que sua boca fosse explorada pela língua

experiente de Ryan. Abraçou-lhe o pescoço, encostando o corpo ao dele, sentindo

o coração derreter, desfrutando de cada segundo de prazer que aquele contato

lhe proporcionava.

Entregou-se sem reservas ao calor daquele beijo, seus sentimentos

expostos, demonstrando claramente o que sentia por ele. Já não pensava mais.

Tudo no mundo perdera a importância, só queria gozar a delícia de estar tão

junto de Ryan!

De repente, um pensamento cruzou seu cérebro enevoado. Estava

confundindo tudo! Ryan não a beijava por gostar dela, mas sim por pena de vê-la

triste e chorando! Soltou-se dos braços fortes dele e passou as costas das mãos

sobre os olhos, numa tentativa de secar suas lágrimas.

— Desculpe, Ryan. Estava aborrecida e não me controlei. Mas, como você

mesmo disse há pouco, hoje é minha maioridade e já não sou uma garotinha que se

consola com alguns beijos de simpatia.

Ryan sorriu, seus dentes muito brancos iluminando o rosto bronzeado.

— Um beijo sempre ajuda, não importa qual seja o problema — disse rindo,

ao vê-la ficar vermelha. — Não quer ir se arrumar para sairmos?

— Nem sei mais se quero, depois de saber de todos os truques que usaram

comigo!

— Vamos sair, sim, Tracey! Precisamos comemorar seu aniversário.

Ela resolveu concordar. Já estava quase chegando à porta do quarto, quando

se virou para Ryan.

— Aonde vamos?

— Hoje é seu dia, portanto você escolhe.

Ela pensou por uns minutos.

— Bem, o dia está maravilhoso. Que tal irmos à praia? Estará mais vazia

hoje do que num fim de semana.

— Ótima ideia! Então, apresse-se.

Tracey entrou no quarto. Por um instante percorreu o armário, indecisa, sem

saber exatamente ò que usar. Finalmente escolheu uma saia e uma blusa de

decote redondo, que deixava os ombros à mostra. Calçou sandálias sem salto,

escovou bem os cabelos e passou um mínimo de batom, apenas para proteger os

lábios contra o sol. Olhou-se no espelho. Estava um pouco sem cor, a roupa toda

branca. Pegou uma faixa verde-esmeralda e colocou na cintura. Agora, sim! Até a

cor de seus olhos tinha ganhado mais realce!

Tomaram o carro e seguiram a estrada que levava ao litoral. Conversaram

alegremente durante o trajeto e deram boas risadas. Tracey estava decidida a

aproveitar bem o dia, colocando seus ressentimentos e dúvidas de lado… pelo

menos nesse dia, que prometia ser tão bom!

A manhã estava radiosa, o céu muito azul, o sol quente, mas sem exageros.

Pararam numa praia quase deserta, onde estenderam toalhas na areia. Depois

foram caminhar à beira d'água, sentindo as ondas lamberem seus pés. Chegaram

então a umas pedras onde se sentaram, em silêncio, apreciando o mar azul e

profundo.

Como era bom estar junto de Ryan! Pena que não pudesse passar o resto da

vida ao lado dele, nessa camaradagem gostosa, sem brigas, nem discussões! Ele

era uma companhia deliciosa… quando queria! Sabia conversar sobre os mais

variados assuntos, contava casos interessantes, sempre sorrindo, os olhos azuis

muito doces e suaves.

Finalmente voltaram para o carro e foram para o centro, almoçar.

Escolheram um restaurante nas Rochas, o lugar onde a cidade de Sidnei tinha

nascido, junto ao porto e à ponte Harbour. O restaurante ficava num prédio

antigo, ainda da época da colonização. Embora tivesse passado por muitas

reformas, conservava seu aspecto original e Tracey se sentia transportada para

uma outra época.

Sentaram-se a uma mesa de canto, próxima a uma janela que se abria para o

mar. Comeram ostras frescas com molho tártaro, acompanhadas com vinho

branco bem gelado. Enquanto esperavam que o segundo prato fosse trazido,

Tracey ficou pensativa. O tempo estava passando tão depressa! Logo chegariam

ao fim daquele dia de sonho! Seria tão bom se pudesse ficar mais algumas horas

com Ryan! Mas era provável que ele quisesse voltar para Nindethana antes do

anoitecer. Tinha que se conformar. Ergueu os olhos e encontrou os de Ryan fixos

em seu rosto.

— Sabe que ficou com o nariz queimado de sol?

Ela riu, pondo a mão no nariz.

— Deve estar vermelho, mas não está doendo. Acho que pareço um camarão!

— Está apenas rosado, mas mesmo que estivesse pior, ainda assim estaria

muito bonita.

Tracey sorriu e baixou o olhar, feliz com o elogio.

— Em que estava pensando, Tracey?

Então ele tinha percebido que ela estava distante dali, a mente voltada para

seus sentimentos?

— Bem… — ela ficou confusa para explicar. — Estava me perguntando se

pretende voltar para casa ainda hoje.

— Já quer se livrar de mim? Está sugerindo que eu vá embora? Não tinha

planos de voltar hoje.

— Claro que não! Só estava pensando…

Ryan segurou as mãos dela sobre a mesa.

— Por que não me conta exatamente o que pensou? Ficará mais fácil assim.

— É que… tivemos um dia tão agradável, ficamos juntos sem discutir

nenhuma vez e… e… gostaria que ainda faltasse bastante tempo para o dia acabar.

Os dois ficaram em silêncio. Tracey teve medo de que sua sugestão não

tivesse sido bem aceita. Retirou as mãos e cruzou-as sobre o colo, pronta para

ouvir uma recusa.

— Gostei de ver que falou a verdade, Tracey. Sua sinceridade merece um

prêmio, não acha? — Dizendo isso, Ryan tirou do bolso uma caixa de veludo e a

entregou a ela. — Feliz aniversário!

Tracey apanhou a caixa com mãos trêmulas.

— Um presente? Para mim?

— Claro, é para você, sim.

Tracey tirou o fitilho e abriu a tampa com cuidado. Seus olhos brilharam ao

ver a peça magnífica.

— Ryan… obrigada! É maravilhosa! Para ser franca, é a coisa mais bonita que

já vi em minha vida!

Era uma pulseira de ouro, finamente trabalhada em sua parte central, onde

um fio de platina formava o nome "Tracey".

— Não vai usá-la? — ele perguntou, ao ver que ela fechava a caixa.

— Não combina muito com o que estou vestindo — ela disse, apontando para

a roupa simples de algodão. — Mas prendo usá-la hoje à noite, com um vestido

marav… — ela se interrompeu, corando violentamente. — Isto é… se você…

— Isso mesmo, Tracey. Quero ver essa pulseira em seu braço esta noite. Já

tinha feito planos de ficar por aqui. Afinal, seu aniversário só termina à meia-

noite, certo?

Tracey ficou feliz com a chegada do garçom trazendo o prato principal.

Assim, pôde se ocupar com os talheres e disfarçar um pouco o brilho de

felicidade em seus olhos.

Passaram o resto da tarde explorando aquela área da cidade. Andaram por

ruas calçadas de pedras que ainda datavam da época dos escravos e puderam ver

a marca de seus dedos nos tijolos feitos a mão. Visitaram também o chalé

Cadman, construído no início do século XIX, a casa mais antiga da cidade, que

tinha sido transformada em museu. Foram a diversos armazéns antigos, onde

havia exposições de artesanato local. Viram coisas lindas em cerâmica, couro,

arte nativa, além de artífices que demonstravam sua perícia na arte de soprar o

vidro e fazer velas. Seguiram por ruas tortuosas, de braços dados, reparando nos

pequenos detalhes de uma época que já não existia mais.

Tracey estava muito feliz quando' voltou para o hotel, no final da tarde. Não

sabia a razão da mudança de atitude de Ryan para com ela, mas também não fazia

questão de saber. Ele estava lá, com ela, irresistível, amável, carinhoso e só isso

importava.

Foi para o quarto se trocar. De repente, bateram na porta. Seria Ryan? Ele

estava hospedado naquele hotel e poderia querer lhe dizer alguma coisa. Correu

para a porta e abriu-a com um sorriso amplo.

— Lana!

Ficou zonza ao ver a viúva no corredor.

— Não vai me convidar para entrar?

Tracey gostaria de bater a porta e trancá-la para nunca mais ver a Viúva

Alegre em sua frente. Mas sabia que não podia agir assim. Era melhor se manter

fria e educada.

— Entre. Quer sentar-se?

Lana entrou na sala, com seu jeito característico de andar, o corpo perfeito

realçado por um vestido preto colante. Parecia pronta para uma noite agradável e

divertida. Tracey deixou que ela se acomodasse para depois sentar-se frente a

ela.

— Em primeiro lugar, parabéns pelo aniversário — Lana falou, embora não

houvesse alegria nenhuma em sua voz. — Espero que tenha gostado do presente

de Ryan. Perdi muito tempo procurando alguma coisa que fosse adequada a você.

Os homens são tão desajeitados para essas coisas, não é? Precisam sempre de

ajuda!

Tracey sentiu-se gelar. Então Ryan não tinha escolhido seu presente? Ele

perdia todo o valor, se fosse assim. Para ela, o peso do ouro nada significava, mas

sim a lembrança em si.

— Achei muito bonito, obrigada.

— No entanto, não foi só para isso que vim vê-la — Lana fez uma pausa. —

Bem, não sei como lhe explicar, sem deixá-la magoada…

Tracey ficou na expectativa. O que viria agora?

— Você sabe, Tracey, Ryan tem o coração muito mole e não teve coragem de

lhe dizer… por isso vim falar em nome dele. Compreendo que está comemorando

sua maioridade e que essa data é muito importante na vida de todos nós, mas…

não acha, Tracey… que está pedindo demais, quando espera que eu e Ryan

mudemos nossos planos para esta noite, só para podermos incluí-la neles?

Tracey abriu a boca, pronta para retrucar, mas Lana não lhe deu tempo.

— Afinal, vim com Ryan e já dei bastante tempo para que ele ficasse com

você. Acho que agora seria um gesto bonito de sua parte desistir de sua saída

para nos deixar mais à vontade.

Tracey apertou as mãos, uma contra a outra. Era por isso que Ryan estivera

tão amável o dia todo? Por que sabia que passaria a noite com Lana? Era

inacreditável! Tinha feito papel de boba! Demonstrara claramente a Ryan que

queria ficar mais tempo com ele e… Que idiota! Gostaria que o chão se abrisse e

pudesse sumir para sempre!

Mas logo o sangue começou a ferver em suas veias. Agora estava realmente

zangada. Por que Ryan agia assim com ela? Achava que era uma tonta? Pois bem!

Daria a ele uma noite da qual jamais se esqueceria.

— Sinto muito, Lana, mas não vou desistir de nada — ela disse. — Ryan foi

categórico quando disse que meu aniversário só acabava à meia-noite e pretendo

ficar com ele até lá. Além disso, ele gostou muito de minha companhia.

— Você sempre foi precoce, não é, Tracey? Desde pequena, esteve atrás de

Ryan. Não mudou nada! É igualzinha à sua mãe… Está sempre correndo atrás de

todos os homens que encontra pela frente!

Tracey notou que Lana perdia a compostura. Ótimo! Assim podia continuar a

falar o que queria.

— Não corro atrás de qualquer um, não, Lana. Você parece se esquecer de

que para se estar junto de um homem é preciso que os dois queiram.

Os olhos de Lana fuzilaram Tracey.

— Escute bem, sua bastarda. Não aguento mais…

— O que foi que disse? De que me chamou?

— Disse que era bastarda, filha ilegítima… chame como quiser. Mas o fato é

que sua mãe a teve sem ser casada. Parece que só você não sabia disso.

— Mentirosa! Meu pai morreu pouco depois de eu nascer!

— Não. Morreu até antes para você, uma vez que nunca a reconheceu como

filha.

Tracey estava com os músculos contraídos, lutando para se conter. Sua

vontade era voar para cima de Lana e arrancar aquele sorriso cínico de sua cara

arrogante.

— Você tem uma mente doentia, Lana. Se pensa que vou ficar chocada e

facilitar seus planos para hoje à noite, está muito enganada. Foi um esforço inútil.

— Pois posso lhe afirmar que…

— Não vai dizer mais nada, Lana. — Tracey foi para a porta e abriu-a,

esperando que a outra saísse. — Até logo. Não torne a voltar aqui, se não quiser

que eu chame o gerente para jogá-la na rua.

Lana teve que passar bem depressa para que a porta não batesse com força

em suas costas.

Assim que se viu sozinha, Tracey perdeu o controle e soluçou

convulsivamente. Foi para o quarto, pegou a mala e começou a tirar as roupas das

gavetas, sem olhar direito o que fazia, a vista turva pelas lágrimas amargas que

desciam por seu rosto.

Ryan e Lana que fossem para o inferno! Não queria mais saber deles, nem de

ninguém daquela família. Essa era sua oportunidade de escapar e não iria perdê-

la. Poderia sair pela escada dos fundos e quando Ryan descobrisse que ela não

estava mais lá seria tarde demais.

E quanto ao que Lana dissera? Seria mesmo ilegítima? Não teria um pai

reconhecido? Que bobagem! Por que se preocupar com isso? Não seria a primeira,

nem a última criança nascida de uma aventura de amor. Já não existia mais essa

bobagem de filhos ilegítimos. Todos eram filhos e ponto final. Além disso Ben

Alexander sempre fora o pai que ela amara. Ele tinha lhe dado nome, carinho,

proteção e amor. Que mais uma pessoa poderia querer?

Mesmo procurando raciocinar com lógica, sua raiva não diminuía. Lana é que

tinha escolhido seu presente! Nunca mais iria usá-lo! Devia ter adivinhado que

havia um plano por trás da atitude amável e descontraída de Ryan. Ele só estava

cumprindo a obrigação de lembrar seu aniversário, mas depois queria mesmo era

jantar com Lana! E ela… tão boba… achou que estavam começando a se dar bem!

Seu único consolo era que nunca mais daria a Ryan a chance de fazê-la passar por

idiota.

O ruído estridente do telefone a arrancou de seus pensamentos. Chegou a

dar uns passos para atendê-lo, mas parou. Não queria falar com ninguém! Não ia

atender. Era como se não estivesse mais ali.

Foi até o banheiro, reuniu seus artigos de toalete e jogou na mala junto com

as roupas. Nem sabia o que estava levando, mas isso não importava. Só queria se

afastar dali. Lembrou-se de pegar dinheiro e procurou na gaveta da cômoda a

caixa onde guardava suas economias e o talão de cheques.

Estava tão distraída, reunindo seus pertences, que não reparou quando a

porta da sala se abriu.

— Tracey! Por que não atendeu ao telefone?

Ela se virou para encontrar os olhos de Ryan, espantado ao ver a mala sobre

a cama, cheia de roupas e pertences. Embora Ryan já estivesse de barba feita e

os cabelos molhados do banho, vestia roupas esportivas.

— O que está acontecendo por aqui, Tracey?

— Vou embora e não conseguirá me impedir.

— É o que você pensa! — Ryan disse, segurando o braço dela.

Mas Tracey conseguiu soltar-se e correu para o outro lado da cama.

— Saia daqui, Ryan. Não quero vê-lo nunca mais! Pensou mesmo que eu ia

aceitar sair com você e sua Viúva Alegre?

— Do que está falando, Tracey?

— É possível que eu seja ilegítima, mas não sou estúpida, Ryan!

— Quem lhe disse isso? — Ryan indagou, intrigado.

— Faz alguma diferença como fiquei sabendo?

— Faz, e muita.

— Não vejo porque, já que todo mundo sabia do fato, menos eu.

— Não seja boba, Tracey.

— Por que acha que vou mudar agora? Você não me fez de idiota o dia todo?

Primeiro bancando o acompanhante ideal e depois pensando que eu… — Ela

suspirou, correndo para a porta do quarto. — Nada disso importa mais. Vou

embora!

— Não vai a lugar nenhum, Tracey! — Ryan falou segurando-a com força. —

Agora, acho melhor começar a me explicar o que houve.

— Você sempre tem respostas para tudo, Ryan. Deve ter para isso também.

Ela torceu o braço e conseguiu se afastar. Mas Ryan tornou a alcançá-la e

foi pressionando-a até que as pernas dela encontraram a beirada da cama, onde

acabou caindo. Ryan prendeu o corpo dela sob o peso do seu.

— Você é impossível, Foguinho!

Ryan se apossou dos lábios dela. Mesmo furiosa, Tracey não pôde deixar de

sentir a doçura daquele beijo e logo começou a corresponder. Seus pensamentos

desconexos sumiram, deixando apenas lugar para a sensação maravilhosa daquele

contato alucinante em sua pele, que queimava sob as mãos de Ryan. Ele deslizou os

lábios até o pescoço macio de Tracey, fazendo-a vibrar de desejo. Ela arqueou o

corpo, procurando ficar mais junto dele. Murmurou palavras ininteligíveis, mas

cheias de prazer e entrega. Novamente Ryan voltou a beijá-la longamente.

— Tracey, minha querida, você me deixa louco… de amor! Sabe que amo você,

não é?

Ela mal podia crer em tanta felicidade. Ryan a amava! Mas não, não podia ser

verdade…

— Ryan! Como pode dizer isso? Acha mesmo que eu aceitaria ficar em

segundo plano?

— Em segundo plano? De quem está falando?

— De Lana. Ela esteve aqui e me disse coisas muito duras; inclusive que seu

plano inicial era de sair somente com ela e que eu estava atrapalhando tudo.

— Acreditou mesmo que eu quisesse isso?

— Por que não? Lana até me contou que foi ela quem escolheu meu presente

de aniversário!

— Aquela mulher está ficando doida! Lançando mão de tudo para ver se

consegue alguma coisa comigo! Acha mesmo que eu precisaria de ajuda para

escolher um presente para você? Nada disso! Há muito tempo sei o que quero

para você, meu bem. — Ryan segurou o rosto de Tracey e beijou-lhe os olhos, o

nariz pequeno, os lábios doces. — Não estou interessado em Lana ou em qualquer

outra mulher, a não ser em você, Tracey. Nada do que ela disse é verdade.

Tracey suspirou. Ryan dizia a verdade. Podia sentir que ele a amava tanto

quanto ela o amava.

— Quer se casar comigo, minha querida? — Ryan perguntou, subitamente.

Os olhos de Tracey se encheram de luz.

— É o que mais quero na vida! Amo você demais, Ryan!

Ele a abraçou com ternura, beijando os lábios que agora se abriam

confiantes para recebê-lo.

— Tracey, se soubesse o quanto sofri com nossa separação! Desde que pediu

para ir a Santinwood que venho tentando dominar meu sofrimento por ter que

ficar longe de você.

— Não pode ter sido tão grande assim! Não foi sua a ideia de me mandar de

volta para Sidnei? Já estava gostando de Nindethana e preferia ter ficado lá,

mas percebi que sua decisão já estava tomada.

— Precisei fazer isso por causa de Justin. Desde que nos viu aquele dia em

meu quarto, ele passou a discutir comigo, dizendo que eu não agia como um

verdadeiro tutor. Achei que o melhor seria mantê-la afastada por algum tempo.

Tive esperanças também de que se sentisse muito solitária aqui e que pedisse

para voltar para casa, para Nindethana.

— Por isso me instalaram num hotel, não é? Somente para que eu morresse

de saudades de uma vida familiar!

Rindo, Tracey puxou a orelha de Ryan, como se assim pudesse castigá-lo.

— Deu resultado, não deu? — ele perguntou.

— Sabe que sim — ela respondeu, chegando mais perto, abraçando-o e

oferecendo os lábios para um beijo.

Eles se acariciaram, gozando aqueles momentos de doce intimidade, em que

podiam dar vazão aos sentimentos que por tanto tempo haviam reprimido e

ocultado.

— Você e Justin ainda estão estremecidos? — ela perguntou depois de

algum tempo, quando Ryan já estava sentado na cama.

— Se é que ainda resta alguma animosidade, vai desaparecer assim que ele

souber que você vai se tornar um membro permanente da família. É o que ele mais

desejava…

— Fico impressionada por ele gostar tanto de mim, Ryan. Justin nunca se

incomodou por eu ser filha de mãe solteira?

— Que diferença faz, Tracey? Não importa quem era seu pai, porque no

minuto em que pisou pela primeira vez na fazenda, bem pequenininha, todos a

consideramos como um de nós! E você já era de fato uma Alexander, mesmo

naquela época, porque Ben já a havia adotado como filha. Sabe como somos,

Tracey. Se é nosso, não deixamos escapar.

Ryan olhou para o relógio.

— Estamos atrasados. Vai ser uma pena você chegar tarde à sua festa de

aniversário. Como vou explicar a Justin?

— Festa? Justin? Não estou entendendo!

Ryan riu com gosto.

— Pois é. Parte da família está lá embaixo, esperando para lhe dar um

abraço de parabéns.

— É verdade? Carol e Lyn também vieram?

— Também, além de Nancy, Clive, Ross, Lance, Noeleen e Dennis…

Tracey estava atônita. Era muita felicidade para um dia só!

— Todos vieram especialmente para meu aniversário?

— Exatamente. Só não contavam é que a festa também fosse para

comemorar nosso noivado!

— Ryan! — Ela riu feliz. — Você é incrível!

— Somos uma família unida, sabe disso, não é? Que melhor ocasião para nos

reunirmos, do que na comemoração de sua maioridade e também na promessa de

que Nindethana vai ter uma dona?

— Assim meu coração vai explodir de tanta alegria, Ryan.

— É bom ir se acostumando. Prometo que nossa vida vai ser repleta de

momentos felizes.

Mais um beijo foi trocado, como se para selar aquele juramento.

— Se não descermos logo, Justin é capaz de subir para saber o que houve,

Tracey. Não vamos assustá-lo de novo, como naquele dia em meu quarto, não é?

Tracey riu, mas tratou de separar depressa a roupa que iria usar.

— Vou me vestir também — Ryan disse. — Posso deixá-la, com a certeza de

que ainda estará aqui, quando eu vier buscá-la?

— Não vai se livrar mais de mim, Ryan!

— Não me tente, Tracey, ou posso até esquecer a festa lá embaixo e ficar

aqui com, você.

Tracey empurrou-o para fora, os dois rindo, absolutamente descontraídos

agora.

— Logo estarei pronta, Ryan. Preciso apenas de quinze minutos.

— Está bem. Vou me trocar e daqui a pouco virei buscar minha noiva, para

levá-la ao encontro da família.

— Nossa família, Ryan.

— Sim, Tracey. Nossa, como Nindethana, como tudo mais que teremos. Nada

mais será só seu ou meu, mas nosso. Só assim conheceremos a verdadeira

felicidade.

FIM