o caso judge
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O caso Judge
Desde a sua criação em 1875, a vida da Sociedade Teosófica (ST) tem sido
marcada por alguns episódios turbulentos. O caso Coulomb foi um desses
momentos marcantes, pois acabou por estar na origem do famigerado relatório
Hodgson (1885), que denunciaria Helena Blavatsky como uma fraude. Levou
100 anos até que a verdade fosse reposta, tendo as conclusões desse relatório
do investigador da Sociedade de Pesquisa Psíquica de Londres
sido invalidadas.
O momento de controvérsia que se sucedeu trouxe repercussões de cariz
permanente, e é conhecido pelo caso Judge.
Recentemente foi disponibilizada na internet uma comunicação de Brett
Forray, intitulada "Thorns and Roses: Approaching Difficult Theosophical
History” [Espinhos e Rosas: Abordando a Díficil História da Teosofia], que
aborda a polémica em torno deste caso.
Video da palestra de Brett Forray
Forray descreve este episódio que decorre entre 1891 (após o falecimento
de Helena Blavatsky) e 1896 (ano em que William Quan Judge morre) como
uma Guerra Civil dentro da Sociedade Teosófica.
Helena Blavatsky (HPB) morre a 8 de Maio de 1891 em Londres, sem deixar
claro quem lhe sucederia. Claro que Olcott, o seu parceiro mais próximo
desde a fundação da ST em 1875, continuaria a assegurar a parte organizativa
e burocrática, mas seria necessário alguém para substituir HPB como “alma”
da Sociedade Teosófica. Assim, acordou-se que a liderança da Secção
Esotérica passaria a ser bicéfala com Judge e Besant no mesmo patamar.
Helena Blavatsky
Depois já de alguns episódios de tensão, em Fevereiro de 1894 Judge é
acusado por Besant (após sugestão de Olcott) de forjar cartas dos Mestres.
Estes Mestres, são os patronos e inspiradores da fundação da ST e não mais
do que seres humanos mais avançados que têm certas capacidades
desenvolvidas. Uma delas permitia a precipitação de cartas, em resposta a
questões colocadas ou então a dar instruções para determinados
procedimentos. Embora isto pareça algo fantasioso, existe um sem número de
provas da sua existência, especialmente no período em que se corresponderam
com Alfred Percy Sinnett (entre 1881 e 1885). Caso isto fosse uma fraude,
poder-se-ia dizer que Helena Blavatsky era alguém com sérias perturbações
psiquiátricas, pois na sua correspondência pessoal, por exemplo com o
próprio Sinnett, refere-se várias vezes aos Mahatmas. Mas esta questão dos
Mahatmas é muito extensa e teria de ser tema de um outro post (até pela
necessidade de distingui-los das fantasias dos Mestres Ascensos e das
canalizações, uma verdadeira praga que começou já quando Blavatsky era
viva…).
Henry Steel Olcott
Segundo a acusação (Besant), o Comité Judicial da ST deveria apreciar a
queixa contra Judge, ao que este redarguiu que segundo os estatutos isso não
poderia suceder. O Comité Judicial concordou com Judge, ficando assente que
numa Convenção que teria lugar em breve na Europa, ele deveria dar
explicações sobre o assunto e se chegar a um entendimento.
Uma das pessoas que não ficou satisfeita com este desfecho foi Walter G. Old,
chamado de “vagabundo astral” por HPB devido às suas saídas nocturnas
frequentes para aquele plano, e que mais tarde se viria a tornar famoso pelos
seus livros de astrologia, adoptando o pseudónimo Sepharial. Old, que estava
do lado de Besant e Olcott estimularia a publicação de artigos anti-Judge na
imprensa britânica usando documentação que Olcott lhe havia confiado, isto
durante o Outono de 1894.
Walter G. Old "Sepharial"
Judge foi pressionado a dar satisfações, mas recusou-se, apesar de Besant ter
renovado as acusações. A 3 de Novembro, publica uma circular intitulada “By
Master’s Direction” [Por orientação do Mestre], onde diz que Bramânes
(elementos da privilegiada casta da sociedade indiana não estrangeira) e Annie
Besant estavam sobre a influência de magos negros e aponta o dedo a
Chakravarti, um indiano que tinha fortíssima influência junto de Besant na
altura. Isto obviamente enfureceu Besant, que desencadeia um processo para
expulsão de Judge, cujos apoios estavam principalmente na América do Norte.
Num congresso realizado nos EUA (1895), os teosofistas norte-americanos
declaram a sua total autonomia, algo que Olcott considera ser uma secessão.
Annie Besant
Judge morre em Abril de 1896 vítima de tuberculose, sendo sucedido
por Katherine Tingley. Esta passagem de testemunho foi polémica e ainda
depois da morte de Tingley levava a trocas de galhardetes nas revistas e
boletins teosóficos. Algumas lojas permaneceram do lado de Besant, sendo
que por volta de 1900 já se tinham reorganizado formando o que hoje
constitui a Theosophical Society in America (até 1934 chamava-se the
American Theosophical Society), com sede em Wheaton, Illinois, desde 1927.
Segundo Brett Forray, a acusação de Besant a Judge durante a Convenção
Europeia acima mencionada não foi de fraude pura, mas basicamente de
difundir mensagens recebidas psiquicamente, mensagens essas enganadoras,
não se sabendo ao certo quem era o recipiente das mesmas. A inglesa acusou
ainda Judge de imitar a letra do Mahatma.
William Quan Judge
Conforme refere Forray, nos manuscritos das várias cartas consideradas
fidedignas que constam dos volumes das Cartas dos Mestres para A.P.Sinnett
há diferenças de caligrafia, isto porque, como os próprios Mahatmas referem,
muitas vezes são os chelas (discípulos) que escrevem as cartas, recebendo
telepaticamente os ditados dos seus superiores. E podem existir interferências
indesejadas (sendo exemplo o caso Kiddle, onde numa das cartas, depois
reproduzida no livro “O Mundo Oculto” de Sinnett, há um aparente plágio de
um texto de um espírita, situação que mais tarde seria devidamente explicada
pelo Mahatma KH). O argumento de Besant não era pois avassalador.
Na sua exposição, Forray prossegue analisando a obscura relação entre W.Q.
Judge e Katherine Tingley. Praticamente desconhecida no meio teosófico
norte-americano, seria ela a sucessora de Judge, tendo eles mantido uma
relação intensa mas secreta. Sabe-se que Tingley era uma conhecida médium e
que alegava receber mensagens dos Mahatmas e até da falecida HPB.
Alice Leighton Cleather, uma ex-aluna de HPB que se lhe manteve sempre
fiel, diz que foi Tingley quem esteve por trás do texto “By Master’s
Direction” que haveria de espoletar a cisão da ST. Depois de Tingley tomar o
poder, nova turbulência se instalou com a saída intervalada de membros que
haveriam de dar origem a outras organizações, mais ou menos duradouras.
Duas delas ainda hoje existem, uma das quais preponderante: a Loja Unida de
Teosofistas fundada por Robert Crosbie em 1909. A outra é a Templo do
Povo.
Alice Leighton Cleather
Se clicarem aqui, terão uma ideia da árvore que nasceu a partir da Sociedade
Teosófica original. Uma grande confusão, não é?
Ernest Pelletier produziu um volume monstruoso, editado pela Sociedade
Teosófica de Edmonton no Canadá, com cerca de 1 000 páginas, onde tenta
provar que o procedimento de Besant e Olcott para com Judge foi injusto. O
livro intitulado “The Judge Case: A Conspiracy Which Ruined the
Theosophical Cause” [O Caso Judge: Uma Conspiração que Arruinou a Causa
Teosófica] já custou perto de 90 euros, mas recentemente a Sociedade
Teosófica de Edmonton estava a vendê-lo a preço de custo (cerca de 30 euros
para a Europa incluindo custos de correio).
Forray contudo considera que há falta de perspectiva no livro. Katinka
Hesselink (agora mais ligada ao Budismo que à Teosofia) também
se exprimiu no mesmo sentido, tal como Daniel Caldwell, que acusa Pelletier
de alinhamento ao lado de Judge, omitindo informações importantes e
especulando sem fundamento quando não existem referências seguras.
Carlos Cardoso Aveline, um dos líderes da loja luso-brasileira da LUT - Loja
Unida de Teosofistas, tem todos os anos mobilizado um grupo de pessoas para
o envio de cartas para Adyar, sede da Sociedade Teosófica, referindo como
fundamental para o movimento a necessidade da ST Adyar anular a expulsão
de Judge e reconhecer o procedimento errado de então. As respostas da
presidente Radha Burnier têm sido evasivas.
Radha Burnier, presidente da ST Adyar
Alguns autores referem que esta disputa entre Besant e Olcott marcou as
dissensões que seguiram nas organizações teosóficas, que em grande medida
replicaram esta “guerra”.
Às vezes também me pergunto até que ponto vale a pena investir na
investigação deste assunto. Parece-me, pelos elementos que disponho que
nunca haverá evidências completamente claras de quem estava certo. Judge
parecia efectivamente o elemento mais preparado para continuar o trabalho de
HPB (conforme prova o descarrilamento da ST durante a presidência de
Besant, com a promoção de um novo salvador da humanidade, na pele de
Krishnamurti e das fantasias leadbeaterianas que conflituavam com os
ensinamentos de Blavatsky/Mahatmas), mas poderá ter tido um momento de
fraqueza e ter tentado contactar os Mahatmas através de uma médium
(Tingley). Seria estranho que assim fosse, até porque Judge escreveu textos
avisando sobre o perigo deste procedimento, mas o testemunho muito credível
de Alice Cleather deve ser levado em conta.
Katherine Tingley
Cleather, infelizmente só é lembrada quando os partidários de Besant querem
atacar Judge e vice-versa. Tendo sido crítica dos dois, não fez muitos amigos,
mas os seus livros estão disponíveis na Internet (ver aqui) e transparece da sua
escrita uma honestidade e uma devoção à causa teosófica extraordinárias.
Alguns sugerem que Besant usurpou o lugar a Judge, mas se é assim, porque
os Mestres dirigiram uma carta a Besant em 1900, onde embora a critiquem
pelo caminho que tinha traçado para ST, nem mencionam o assunto?
Não tendo por isso, nenhuma posição definitiva sobre o assunto, devo dizer
que aprecio bastante a escrita de W.Q. Judge. Ele redigiu uma das melhores
introduções à Teosofia, no seu livro publicado em 1893, intitulado “Oceano
da Teosofia” e que foi traduzido para português por Carlos Cardoso Aveline.
Muitos dos textos de Judge podem ser encontrados numa compilação em três
volumes, intitulada "Echoes of the Orient", elaborada por Dara Eklund, que
estão disponíveis gratuitamente aqui.
Carlos Cardoso Aveline
Não sou grande fã da literatura deixada por Besant (muita dela, senão toda
influenciada pelo Bispo Leadbeater), talvez com excepção de “A Sabedoria
Antiga”, embora não sei até que ponto incluirá distorções face aos
ensinamentos de HPB. Na altura pareceu-me um bom livro, mas quando o li
não estava tão ciente das diferenças entre a Teosofia original e a neo-teosofia.
A política deste blog é dar elementos aos leitores para que investiguem e tirem
as suas próprias conclusões, e neste post e sobre este assunto foram já dados
elementos suficientes para isso. Começando por esta palestra de Brett Forray,
passando pelo livro de Pelletier e críticas ao mesmo e ainda pela consulta de
mais informação que pode ser encontrada na internet (como alguns artigos
publicados na revista Fohat e no site de Daniel Caldwell) é possível se inteirar
melhor deste assunto. Que isso consumirá algum tempo é certo; que vai valer
a pena, isso é que já não posso garantir.
Depois do caso Judge, o último episódio marcante foi a negação em 1929 por
parte de Krishnamurti do seu papel de novo Avatar, o que acabou por
evidenciar o falhanço da presidência de Annie Besant e das ideias defendidas
por ela e por Charles Leadbeater. Desde esse acontecimento, a popularidade e
influência da(s) Sociedade(s) Teosófica(s) têm decaído de ano para ano.
Krishnamurti em jovem
Refira-se por fim que falámos aqui só dos episódios mais relevantes, mas
outros conflitos menores sucederam, mesmo dentro da Sociedade de
Pasadena, como por exemplo durante a presidência de Arthur L. Conger, onde
um grupo de teosofistas se afastou vindo a formar o chamado grupo de Point
Loma, que ainda hoje existe e que está por trás da recente edição dos
“Comentários da Doutrina Secreta”, que compila os relatos de algumas
sessões de esclarecimento dadas por Helena Blavatsky ao seu grupo selecto de
alunos sobre a sua magnum opus.
Publicado em http://lua-em-escorpiao.blogspot.pt em 2 partes a 19 e 25 de agosto de 2012