o caso dos denunciantes invejosos

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O CASO DOS

DENUNCIANTES INVEJOSOS

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DIMITRI DIMOULIS

O CASO DOS

DENUNCIANTES INVEJOSOS

Introdução prática às relações

entre direito, moral e justiça

Com a tradução de texto de LON L. FULLER,

parte da obra The morality of law

4ª edição revista e atualizada

Page 5: O caso dos denunciantes invejosos

O CASO DOS

DENUNCIANTES INVEJOSOS

Introdução prática às relações

entre direito, moral e justiça

Com a tradução de texto de

LON L. FULLER,

parte da obra The morality of law

4.ª edição revista e atualizada

Original da edição The morality of law,

revised edition, p. 245 a 253, Lon L. Fuller,

New Haven and London, Yale University Press, 1969

© 1964 byYale University, revised edition copyright

© 1969 byYale University

1.ª edição- 2003; 2.ª edição - 2005; 3.ª edição - 2006.

© desta edição

[2007]

EDITORA REVISTA DOS TRIBUNAIS LTDA.

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19.02.1998, Lei dos Direitos Autorais).

Impresso no Brasil

[07-2007]

Universitário

(complementar)

Revisto e atualizado até [06-2007]

ISBN 978-85-203-3106-4

Page 6: O caso dos denunciantes invejosos

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO - DIMITRI DIMOULIS ............................................................................. 7

1. Lon Fuller: dos Exploradores de Cavernas aos Denunciantes Invejosos ............................... 7

2. Punir ou perdoar os crimes de uma ditadura? Sobre a “justiça de transição” ...................... 10

3. Direito positivo ou direito justo? .......................................................................................... 16

NOTA EXPLICATIVA - DIMITRI DIMOULIS .................................................................... 25

PRIMEIRA PARTE

O CASO DOS DENUNCIANTES INVEJOSOS - LON L.FULLER .......................................... 29

Primeiro Deputado ................................................................................................................... 35

Segundo Deputado ................................................................................................................... 37

Terceiro Deputado ................................................................................................................... 39

Quarto Deputado ..................................................................................................................... 43

Quinto Deputado ..................................................................................................................... 45

SEGUNDA PARTE

CINCO NOVAS OPINIÕES SOBRE O CASO DOS DENUNCIANTES INVEJOSOS -

DIMITRI DIMOULIS ................................................................................................................... 49

Opinião do Prof. Goldenage ..................................................................................................... 53

Opinião do Prof. Wendelin ....................................................................................................... 61

Opinião da Profa. Sting ............................................................................................................ 67

Opinião do Prof. Satene ............................................................................................................ 73

Opinião da Profa. Bernadotti .................................................................................................... 81

BIBLIOGRAFIA ...................................................................................................................... 89

Page 7: O caso dos denunciantes invejosos

APRESENTAÇÃO1

1. Lon Fuller: dos Exploradores de Cavernas aos Denunciantes Invejosos

Lon Luvois Fuller (1902-1978) nasceu em Hereford no Estado do Texas.2 Estudou

economia e direito em Stanford e atuou como professor de teoria geral do direito, inicialmente

nas Faculdades de Direito de Oregon, Illinois e Duke e, a partir de 1940, na renomada

Faculdade de Direito da Universidade de Harvard, onde trabalhou até 1972.

Fuller publicou muitas obras de direito civil, de filosofia e de teoria do direito.

Deve, porém, sua fama a um breve ensaio intitulado O caso dos exploradores de cavernas.

Esse trabalho, publicado pela primeira vez em 1949, foi lido e comentado por estudantes e

professores de direito em todo o mundo, tendo sido inclusive traduzido para vários idiomas. A

tradução para o português, publicada pela primeira vez em 1976, obteve um considerável

sucesso editorial.3 [pg. 7]

No referido ensaio, Fuller apresenta um caso imaginário. Cinco cientistas ficam

presos em uma caverna sem alimentos suficientes para sobreviver até que o resgate desobstrua

a entrada. Quatro entre eles decidem matar o quinto colega para que possam se alimentar,

sendo esta a única possibilidade para salvar as próprias vidas. Será que eles devem ser

punidos por homicídio doloso?

A história lembra mais o roteiro de um filme do que um sóbrio estudo de filosofia

do direito. Na realidade, Fuller não quer divertir nem apavorar o leitor. Seu objetivo é

provocar uma discussão sobre o que é justo e injusto, ou seja, uma discussão sobre o que é

direito. O autor não oferece uma resposta definitiva. Limita-se a expor várias opiniões sobre

uma possível condenação dos quatro exploradores e nos convida a refletir sobre o caso,

discutindo estas opiniões.

Lon Fuller publicou em 1964 sua mais profunda e original obra, intitulada The

morality of law (A moralidade do direito). Essa publicação causou um grande interesse, tendo

sido comentada pelos mais importantes filósofos do direito e reeditada diversas vezes.4

Nessa obra encontramos uma inovadora análise das relações entre o direito e a

moral. Fuller adotou uma posição moralista, propondo a definição e aplicação do direito

positivo à luz das aspirações morais. Segundo o autor, as normas de conduta e de sanção que

1 Pela leitura crítica do presente volume e pelas preciosas sugestões agradeço à professora Ana Lucia Sabadell e

aos professores André Ramos Tavares e Theodomiro Dias Neto. 2 Sobre a vida e a atuação acadêmica de Lon Fuller, cf. SUMMERS, Robert. Lon L. Fuller. Stanford: Stanford

University Press, 1984. p. 3-13. 3 FULLER, Lon L. O caso dos exploradores de cavernas. Porto Alegre: Fabris, 1999. Nova tradução em:

FULLER, Lon L. O caso dos exploradores de cavernas. São Paulo: Leud, 2003. 4 Utilizamos a 29.ª reimpressão da segunda edição da obra: FULLER, Lon L. The morality of law. New Haven:

Yale University Press, 1969. Sobre os posicionamentos teóricos de Fuller cf. SUMMERS, Robert. Lon L. Fuller.

Stanford: Stanford University Press, 1984; ALDAY, Rafael Escudero. Positivismo y moral interna del derecho.

Madrid: Centro de estudios políticos y constitucionales, 2000.

Page 8: O caso dos denunciantes invejosos

são criadas pelo Estado só merecem [pg. 8] o nome “Direito” quando satisfazem certos

requisitos de qualidade que ele denominou moralidade interna do direito (publicidade das

normas, generalidade, estabilidade no tempo, não retroatividade etc.).

Fuller destacou-se, assim, como um dos principais contestadores do filósofo do

direito Herbert Lionel Adolphus Hart (1907-1992) que sustentava, no mesmo período, as

posições do positivismo jurídico.5

Em A moralidade do direito Fuller incluiu um texto intitulado O problema do

Denunciante Invejoso. O autor informa que utilizou esse texto como material de apoio em

seus cursos de teoria do direito e também como introdução à problemática jurídica,

distribuindo esse mesmo texto entre os alunos de primeiro ano da Faculdade de Direito de

Harvard, onde ele ministrava a disciplina de introdução ao direito.6 [pg. 9]

Fuller apresenta nesse texto um caso que é bastante diferente do caso dos

Exploradores de Cavernas. Durante uma ditadura, muitas pessoas denunciaram seus inimigos

sabendo que os tribunais do país, aplicando a legislação da época, pronunciariam a pena de

morte para delitos que, objetivamente, não eram graves. Após a queda do regime ditatorial, os

denunciantes, que Fuller chama de “invejosos”, foram objeto de execração popular. Ainda que

os denunciantes não tivessem cometido nenhum delito, pois só levaram a conhecimento das

autoridades fatos puníveis segundo a legislação em vigor, muitas pessoas exigiram sua

punição.

2. Punir ou perdoar os crimes de uma ditadura? Sobre a “justiça de transição”

O caso dos Denunciantes Invejosos é imaginário. Foi pensado por Fuller que

possuía um “talento mitopoético”, como observou Herbert Hart.7 Mesmo assim, Fuller

elaborou o caso com base na experiência das ditaduras do século XX e, principalmente, do

regime nazista na Alemanha.8 Essas ditaduras se apresentavam formalmente como Estados de

Direito, possuindo uma Constituição e um sistema de leis não muito diferentes daquelas dos

países democráticos.

Os regimes democráticos que sucederam às ditaduras enfrentaram o dilema que

aponta Lon Fuller no caso dos De- [pg. 10] nunciantes Invejosos: perdoar ou punir os crimes,

os excessos de violência e as injustiças ocorridas durante as ditaduras? Temos aqui um

problema conhecido como justiça de transição (transitional justice).

A justiça de transição se define como “um processo de julgamentos, depurações e

reparações que se realizam após a mudança de um regime político para um outro”.9

5 HART, Herbert Lionel Adolphus. O conceito de direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994; Essays

in jurisprudence and philosophy. Oxford: Clarendon Press, 1983. A polêmica entre Hart e Fuller iniciou-se com

a publicação do seguinte texto: HART, Herbert Lionel Adolphus. Positivism and the separation of law and

morals. Harvard Law Review, v. 71, n. 4, 1958. p. 593-629. A resposta de Fuller encontra-se em: FULLER, Lon

L. Positivism and fidelity to law. A reply to professor Hart. Harvard Law Review, v. 71, n. 4,1958. p. 630-672.

Sobre a controvérsia entre juspositivistas e moralistas em relação à validade do direito injusto, cf. MERTENS,

Thomas. Radbruch and Hart on the grudge informer: a reconsideration. Ratio juris, v. 15, n. 2, 2002. p. 186-205;

HALDEMANN, Frank. Gustav Radbruch vs. Hans Kelsen. A debate on Nazi law. Ratio juris, v. 18, n. 2, 2005.

p. 162-178. 6 FULLER, Lon L. The morality of law. New Haven: Yale University Press, 1969. p. vii.

7 HART, Herbert Lionel Adolphus. Essays in jurisprudence and philosophy. Oxford: Clarendon Press, 1983. p. 363.

8 Cf. a análise de casos similares que foram levados a julgamento na Alemanha após a queda do nazismo em:

MERTENS, Thomas. Radbruch and Hart on the grudge informer: a reconsideration. Ratio juris, v. 15, n. 2,

2002. p. 186-205; FREUND, Christiane. Rechtsbeugung durch Verletzung übergesetzlichen Rechts. Berlin:

Duncker und Humblot, 2006, p. 129-134. 9 ELSTER, Jon. Closing the books. Transitional justice in historical perspective. Cambridge: Cambridge

University Press, 2004. p. 1.

Page 9: O caso dos denunciantes invejosos

Dependendo do país e do momento histórico, foram adotadas várias soluções, analisadas em

uma longa série de recentes estudos.10

Em alguns países os responsáveis decidiram “esquecer” o passado, colocando

“um ponto final”. Foi assim concedida uma ampla anistia, ou seja, um perdão geral aos

responsáveis e aos colaboradores dos regimes ditatoriais. Esse foi o caminho seguido em

alguns países da Europa e da América Latina, incluindo o Brasil. [pg. 11]

Em outros países foi decidido processar os golpistas e os responsáveis pelos

males causados durante as ditaduras. Quem foi acusado como colaborador do regime se

defendeu com cinco argumentos básicos:

• o réu simplesmente aplicava o direito em vigor (argumento da legalidade);

• o réu acatava ordens dadas por seus superiores hierárquicos, cumprindo com

seus deveres; não cabia a ele examinar a legalidade das ordens ou as verdadeiras intenções de

seus superiores (argumento do dever legal);

• se o réu não tivesse colaborado aos crimes do regime, teria sido gravemente

punido ou exposto a perseguições junto a seus familiares, algo que ninguém pode exigir de

uma pessoa comum (argumento da inexigibilidade de conduta diversa);

• se o réu não tivesse executado as ordens dadas os ditadores poderiam encontrar

facilmente outras pessoas que teriam atuado da mesma forma ou até com maior dureza

(argumento da fungibilidade);

• a conduta do réu é um verdadeiro detalhe diante das incontáveis atrocidades de

uma ditadura; sua punição significaria simplesmente que se encontrou um bode expiatório

(argumento da insignificância).

Ora, esses argumentos deveriam levar à absolvição de praticamente todos os

acusados, considerando como únicos culpados o restrito grupo dos chefes da ditadura dos

quais emanavam todas as ordens!

A problemática foi tratada na Alemanha em uma ampla jurisprudência após o fim

da Segunda Guerra Mundial, em 1945. A maioria dos tribunais alemães descartou o

argumento [pg. 12] da legalidade do regime nazista com dois argumentos. Em primeiro lugar,

foi considerado que as normas jurídicas que contrariam o sentimento de humanidade e de

justiça não possuem validade jurídica. Em segundo lugar, foi considerado que as graves

violações dos direitos humanos, e principalmente os crimes de guerra e os crimes contra a

humanidade (exemplos: genocídio; perseguição por motivos religiosos, étnicos, políticos ou

de orientação sexual; guerra imperialista), devem ser punidos por tribunais nacionais e

internacionais. Para tanto, foi necessário criar algumas leis penais retroativas, violando o

princípio da legalidade e provocando críticas e reações. Mesmo assim, as estatísticas indicam

que a maioria dos colaboradores do regime permaneceu impune, já que grande parte dos

políticos e dos integrantes do poder judiciário não considerou adequada a punição, em parte

porque tinham simpatias com o regime nazista, em parte porque consideravam preferível

pacificar o país.11

10

Ver a apresentação das soluções dadas em vários países em: KRITZ, Neil (Org.). Transitional justice: how

emerging democracies reckon with former regimes. Washington: United States Institute for Peace Press, 1995. 3

vol.; ESER, Albin; SIEBER, Ulrich; ARNOLD, lorg (Orgs.). Strafrecht in Reaktion auf Systemunrecht.

Freiburg-Berlin: MPI-Duncker und Humblot, 2000-2006, 10 vol.. Cf. as discussões em: ELSTER, Jon. Closing

the books. Cambridge: Cambridge University Press, 2004; TEITEL, Ruti. Transitional justice. Oxford: Oxford

University Press, 2000; MINOW, Martha. Between vengeance and forgiveness. Boston: BeaconPress, 1999;

MCADAMS, A. lames (Org.). Transitional justice and the rule of law in new democracies. Notre Dame:

University of Notre Dame Press, 1997; AMBOS, Kai. Impunidad y derecho penal internacional. Buenos Aires:

Ad hoc, 1999; SMITH, Gary; MARGALIT, Avishai (Orgs.). Amnestie oder die Politik der Erinnerung in der

Demokratie. Frankfurt: Suhrkamp, 1997. 11

GONÇALVES, Joanisval Brito. Tribunal de Nuremberg. 1945-1946. Rio de Janeiro: Renovar, 2001; NINO,

Carlos Santiago. Radical evil on trial. New Haven: Yale University Press, 1998; RATNER, Steven; ABRAMS,

Page 10: O caso dos denunciantes invejosos

Uma situação em parte semelhante verificou-se após a queda do regime socialista

da Alemanha Oriental em 1989 e a incorporação daquele país na Alemanha Ocidental. Os

tribunais ocidentais decidiram sobre centenas de casos de responsáveis [pg. 13] políticos,

militares, juízes, outros funcionários e colaboradores do regime socialista, acusados de terem

provocado a morte, privado a liberdade ou causado graves prejuízos materiais e morais a

opositores políticos.

O caso mais notório foi aquele dos “atiradores do Muro” (Mauerschützen).

Tratava-se de soldados responsáveis pela guarda do Muro de Berlim que separava a parte

ocidental da parte oriental da cidade. Os soldados do Muro recebiam ordem de atirar contra

qualquer pessoa que tentasse passar, sem autorização, para o setor ocidental da cidade de

Berlim. Dezenas de pessoas morreram ou foram feridas na tentativa de atravessar

“ilegalmente” esta fronteira.

Processados após a anexação da Alemanha socialista (DDR), os soldados

defenderam sua inocência alegando que: primeiro, executavam ordens de seus superiores;

segundo, a obrigação de atirar contra quem tentasse fugir do país era prevista em lei; terceiro,

eventual descumprimento dos deveres militares os exporia a duras punições.

Mesmo assim, muitos tribunais da Alemanha Ocidental, incluindo o próprio

Tribunal Constitucional Federal, consideraram que as leis e as ordens dadas nesse sentido

eram nulas. Primeiro, porque eram manifestadamente injustas e, segundo, violavam tratados

internacionais assinados pela Alemanha socialista e assegurando o direito à vida e à livre

circulação das pessoas. Houve assim condenações de soldados e funcionários do regime

socialista.

Esses casos reanimaram o debate acerca da postura do aplicador do direito perante

“leis injustas” e provocaram novas polêmicas entre os estudiosos. Existe um direito superior

ao direito legislado (“direito supralegal”) ou mesmo um direito superior a todo o direito

positivo (“direito suprapositivo”)? O [pg. 14] que ocorre exatamente se esse direito entrar em

conflito com o direito positivo? Alguns juristas aplaudiram a postura dos tribunais alemães

por terem posto a justiça acima do direito em vigor. Outros se mostraram mais céticos,

considerando que seria preferível perdoar. Como podia o soldado que acatava ordens legais

pensar que após uma mudança de regime viria a ser punido por ter obedecido às leis de seu

país? Outros, finalmente, formularam duras críticas contra essa jurisprudência. Sustentaram

que, quando há mudança de regime, os atuais donos do poder querem simplesmente se vingar

de seus adversários derrotados e aplicam uma “justiça dos vencedores” (Siegerjustiz) com o

pretexto de que só eles criam e aplicam o verdadeiro direito, o direito justo.12

Jason. Accountability for human rights atrocities in international law. Beyond the Nuremberg Legacy. Oxford:

Oxford University Press, 2001; HANKEL, Gerd; STUBY, Gerhard. Strafgerichte gegen

Menschheitsverbrechen. Hamburg: Hamburger Edition, 1995; REDAKTION KRITSCHE JUSTIZ (Org.). Die

juristische Aufarbeitung des Unrechts-Staats. Baden-Baden: Nomos, 1998. p. 265-322 e 383-687; MIQUEL,

Mare von. Ahnden oder amnestieren? Gottingen: Wallstein, 2004. 12

Sobre as posições sustentadas na doutrina e na jurisprudência alemã acerca da questão cf,: ALEXY, Robert.

Mauerschützen. Zum Verhältnis von Recht, Moral und Strafbarkeit. Hamburg: Joachim Jungius-Gesellschaft der

Wissenschaften, 1993; ALEXY, Robert. Derecho injusto, retroactividad y principio de legalidad penal. Doxa,

23/197 - 230, 2000; JAKOBS, Günther. Crímenes del Estado- ilegalidad en el Estado. Doxa, 17-18/445-

467,1995; JAKOBS, Günther. Superación del pasado mediante el derecho penal? Anuário de derecho penal y

ciencias penales, 2/137 -158, 1994; NEUMANN, Ulfrid. Positivismo jurídico, realismo jurídico y moralismo

jurídico en el debate sobre “delincuencia estatal” en la antigua RDA. Doxa, 17-18/435-444, 1995; SEIDEL,

Knut. Rechtsphilosophische Aspekte der “Mauerschützen” -Prozesse. Berlin: Duncker & Humblot, 1999;

MARXEN, Klaus; WERLE, Gerhard (Orgs.). Die strafreehtliche Aufarbeitung von DDR-Unrecht: Eine Bilanz.

Berlin: Walter de Gruyter, 1999; FREUND, Christiane. Reehtsbeugung dureh Verletzung übergesetzliehen

Rechts. Berlin: Duncker und Humblot, 2006; DIECKMANN, Hubertus-Emmanuel. Überpositives Reeht als

Prüfungsmabstab im Geltungsbereich des Grundgesetzes? Berlin: Duncker und Humblot, 2006.

Page 11: O caso dos denunciantes invejosos

O texto de Fuller discute a rica e complexa temática da “justiça de transição” e

pode ser de grande utilidade para os [pg. 15] estudantes de direito.13

Com efeito, o problema

dos Denunciantes Invejosos permite refletir sobre uma questão de particular importância,

analisada nas aulas de introdução ao estudo do direito e, com maior profundidade, nos cursos

de filosofia e de teoria do direito. Trata-se da relação entre direito, justiça e moral.

3. Direito positivo ou direito justo?

Em tomo da definição da justiça e da moral se desenvolvem intermináveis

controvérsias.14

Mesmo assim, a maioria dos doutrinadores modernos considera que a questão

da justiça se confunde com a questão da moral. A moral estabelece os comportamentos

'justos”, ou seja, os comportamentos adequados e aceitos em determinada sociedade. Nesse

sentido, a moral impõe aos membros da sociedade determinados padrões de comportamento,

seguindo o critério do justo. Por sua vez, a pessoa que é moralmente correta deve fazer o justo

adotando regras de comportamento conforme o ideal da justiça social.15

[pg. 16]

Em palavras mais simples, a moral se identifica com a justiça no campo jurídico

porque nunca aquilo que é imoral pode ser considerado justo, nem aquilo que é visto como

injusto pode ser considerado como moralmente correto.

Dessa maneira, um dos principais problemas da teoria e da filosofia do direito

envolve as relações entre o comportamento legalmente imposto (ou permitido) e o

comportamento que é considerado moralmente justo. O que deve acontecer quando uma

norma jurídica se revela injusta porque contraria as opiniões da sociedade sobre o correto e o

adequado? O que deve fazer o intérprete do direito quando as normas em vigor levam a

resultados injustos ou inaceitáveis? O que deve ocorrer quando o direito do passado passa a

ser considerado como injusto ou imoral? Deve ser punido quem criou e aplicou esse direito

tido como injusto?

Muitas vezes constatamos um forte descompasso entre os mandamentos do

legislador e a solução que é considerada justa pelo intérprete do direito ou pela maioria da

população.

Em primeiro lugar, o descompasso pode ser devido às insuficiências do legislador.

Isso ocorre quando o regulamento genérico não se ajusta a um caso concreto16

ou quando a

evolução social tomou insatisfatório o próprio regulamento.17

[pg. 17]

13

No Brasil foi realizado um limitado debate sobre a validade de leis criadas pela ditadura militar e, em particular,

da Lei 6.683 de 28.08.1979 que concedeu anistia para todos os crimes de natureza política cometidos durante a

ditadura. Cf. os artigos de Fábio Konder Comparato, José Carlos Dias e Hélio Bicudo em: TELES, Janaína (Org.).

Mortos e desaparecidos políticos. Reparação ou impunidade? São Paulo: Humanitas, 2001. p. 55-63, 65-67, 69-72,

77-79, 85-87. Uma profunda análise encontra-se em SWENSSON Jr., Lauro Joppert. Anistia penal. Problemas de

validade da lei de anistia brasileira (Lei 6.683 de 1979). Curitiba: Juruá, 2007 (no prelo). 14

Cf. as referências em DIMOULIS, Dimitri. Manual de introdução ao estudo do direito. São Paulo: RT, 2007.

p. 104-118, 130-155. 15

DAUCHY, Pierre. Moral. In: ARNAUD, André-Jean (Org.). Dicionário enciclopédico de teoria e de

sociologia do direito. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 506-508; JESTAZ, Philippe. Le droit. Paris: Dalloz,

2002. p. 33; KOLLER, Peter. Theorie des Rechts. Eine Einführung. Wien: Bühlau, 1997. p. 255-316; ATIENZA,

Manuel. El sentido del derecho. Barcelona: Ariel, 2003. p. 173, 184; ALEXY, Robert. La institucionalización de

la justicia. Granada: Comares, 2005. p. 22. 16

Exemplo: o legislador pune o furto mesmo quando o valor da coisa é pequeno (art. 155, § 2. o, do Código

Penal). Devemos considerar que comete esse crime mesmo quem furta um objeto de valor ínfimo, por exemplo,

um chiclete?

Page 12: O caso dos denunciantes invejosos

Em segundo lugar, o descompasso entre o legalmente imposto e aquilo que é

considerado justo pode ser devido a uma legislação que protege os interesses políticos e

econômicos de determinados grupos sociais, prejudicando a maioria da população.18

Finalmente, esse descompasso pode ser devido ao exercício do poder por

governos autoritários que oprimem os direitos fundamentais da maioria. Esse é o caso das

ditaduras do século XX, que causaram injustiças e discriminações por meio de leis e decisões

administrativas.19

Os problemas não terminam por aqui. Mesmo quando as decisões do legislador

parecem justas e adequadas, encontramos na sociedade opiniões divergentes sobre o exato

conteúdo das leis. Todos concordam, por exemplo, que o homicídio é um ato de extrema

gravidade e o legislador atuou corretamente quando o tipificou como crime. Não há, porém,

acordo geral sobre a pena adequada. Cada vez que a mídia noticia um homicídio grave, uma

parte das autoridades políticas e dos cidadãos pede uma punição muito mais dura do que

aquela prevista pela lei penal, existindo, inclusive, propostas de introduzir a [pg. 18] prisão

perpétua e a pena de morte, ambas vetadas no Brasil pela Constituição Federal de 1988 (art.

5.º, XLVII).

Segundo uma outra opinião as penas criminais não resolvem os problemas sociais;

impõem aos condenados inúteis sofrimentos, não ressocializam e, muitas vezes, o meio

carcerário transforma o condenado em criminoso profissional. Por isso, sustenta-se que,

mesmo em caso de crimes graves, seria necessário aplicar penas alternativas, priorizando a

reeducação dos infratores. Seria também necessário oferecer apoio às vítimas e, sobretudo,

aplicar políticas sociais para diminuir a marginalização de certos grupos da população, que

em última instância, é o que propicia ações violentas e desesperadas. Nessa perspectiva, o

único que não resolve os problemas e os conflitos é a punição.

Constatamos, assim, que em muitos casos o sentimento de justiça encontra-se em

descompasso com as previsões legais. Isso pode decepcionar quem inicia o estudo do direito,

tendo o desejo de atuar para que a justiça triunfe e para que os conflitos sociais sejam

resolvidos da melhor forma possível. Esse desejo de justiça é louvável, mas não pode ser

realizado na vida real. Vivemos em sociedades complexas, em que se constatam contínuos

conflitos entre interesses e ideologias. É impossível encontrar soluções que satisfaçam a

todos: a solução que é considerada justa (e agradável) por determinadas camadas da

população recebe, necessariamente, as críticas das demais...

Isso não deve causar estranheza, já que as leis são editadas após negociação

política e votação nas casas legislativas, existindo uma minoria que “perde” e, portanto, tem

seus interesses prejudicados. O legislador deve sempre decidir. E decidir [pg. 19] significa

escolher entre opiniões contrárias, descontentando uma parte dos cidadãos.20

Nesse sentido, sempre haverá um descompasso entre o direito em vigor (direito

positivo) e as opiniões de cada pessoa ou grupo sobre a justiça. O problema torna-se mais

agudo quando a aplicação de uma lei não só desagrada alguns, mas se revela claramente

injusta ou inadequada. O que fazer, por exemplo, quando uma ditadura priva os cidadãos de

suas liberdades, quando um governo conservador cria leis que discriminam os negros ou as

17

Exemplo: o art. 124 do Código Penal, em vigor desde 1940, pune o aborto mesmo quando for realizado a

pedido de uma gestante que enfrenta sérios problemas psicológicos, financeiros etc. e não pode criar o filho. Em

nossos dias, as autoridades do Estado praticamente deixaram de perseguir quem realiza aborto em tais condições. 18

O mais conhecido exemplo é a legislação tributária, criticada por distribuir os impostos de forma injusta. Essa

crítica é pertinente, já que, no Brasil, os trabalhadores assalariados assumem a maior parte da carga tributária. 19

Exemplo: o Ato Institucional 5, de 13.12.1968, que conferiu ao Presidente da República o poder de “suspender

os direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo prazo de 10 anos e cassar mandatos”, quando isso estivesse “no

interesse de preservar a Revolução” (os militares denominavam a ditadura de “Revolução”). 20

O verbo “decidir” provém do latim decido, que significa cortar. Quem decide toma uma posição definitiva no

conflito de interesses e de opiniões. “Dá um corte” e põe um termo às controvérsias.

Page 13: O caso dos denunciantes invejosos

mulheres ou, ainda, quando um governo, na tentativa de enfrentar uma verdadeira ou suposta

“crise econômica”, corta os benefícios sociais dos trabalhadores, aumentando a miséria?

Diante desses problemas os filósofos do direito adotam duas posições principais:

alguns optam pela “tese da separação” entre o direito e a moral; outros consideram que existe

uma forte relação entre o direito e a moral, abraçando a “tese da conexão”.21

A tese da separação encontra-se nas abordagens positivistas. O positivismo

jurídico afirma que o direito é um fenômeno normativo diferente das obrigações morais.

Quando o operador do direito interpreta as normas jurídicas, não deve [pg. 20] levar em

consideração as exigências morais. Deve interessar-se exclusivamente pelas normas que

possuem validade dentro do sistema jurídico, fundamentando-se na Constituição e nas demais

normas criadas pelas autoridades estatais. Em outras palavras, o direito em vigor deve ser

aplicado de forma rígida, sem que o operador jurídico se deixe influenciar pela sua opinião

pessoal ou mesmo pela opinião da maioria da sociedade sobre o correto, o justo e o adequado.

Os partidários do positivismo jurídico lembram que, em cada sociedade, existem

muitos sistemas de regras morais e muitas opiniões divergentes sobre o justo e o correto. Isso

significa que se o direito fosse aplicado conforme a opinião de cada intérprete, teríamos um

verdadeiro caos, sendo destruída a segurança jurídica.22

Cada um aplicaria o direito segundo

sua visão subjetiva. Os positivistas pensam que, quando o direito se revela injusto ou

inadequado, a solução está na sensibilização do legislador e na luta política para que sejam

reformadas ou abolidas as leis injustas ou inadequadas.

A tese da conexão entre direito e moral caracteriza as abordagens moralistas.

Seus partidários entendem que o operador do direito deve harmonizar os preceitos morais com

as normas jurídicas, já que a finalidade do sistema jurídico é encontrar em cada caso uma

solução justa e aceita pelos membros da sociedade. Segundo essa visão, o direito não é

simplesmente um conjunto de normas criadas pelo legislador, mas integra os mandamentos

morais aceitos pela sociedade. [pg. 21]

A abordagem moralista chega a duas conclusões. Em primeiro lugar, sustenta que

uma norma jurídica é válida somente quando respeita os princípios básicos da moral. Em caso

de forte contradição entre a norma jurídica e as exigências de justiça, a norma deve ser

considerada inválida. Esse é o moralismo da validade, que faz depender a validade de uma

norma jurídica de sua concordância com as exigências básicas da moral.

Em segundo lugar, os moralistas sustentam que o direito deve ser interpretado em

conformidade com os preceitos morais. Fica a cargo do intérprete e, sobretudo, do juiz a

harmonização das normas em vigor com as exigências da moral e com os ideais da justiça.

Esse é o moralismo da interpretação que propõe interpretar e aplicar as normas jurídicas

segundo exigências morais.

Existe, também, uma terceira abordagem sobre o direito, que é conhecida como

realismo jurídico.23

Os realistas concordam em um ponto fundamental com o positivismo

jurídico. Admitem que a aplicação do direito não constitui assunto da moral, mas depende da

21

Proponho assim a classificação das teorias jurídicas em função da posição adotada no debate sobre as relações

entre direito e moral. Para uma apresentação da distinção entre positivismo e moralismo jurídico, cf.

DIMOULIS, Dimitri. Positivismo jurídico. São Paulo: Método, 2006. p. 85-165. Para uma análise das escolas

jurídicas com base nessa distinção, cf. SABADELL, Ana Lucia. Manual de sociologia jurídica. São Paulo: RT,

2005. p. 19-46. 22

A segurança jurídica é uma característica importante dos sistemas jurídicos modernos que prometem a

aplicação das normas de forma coerente, evitando surpresas e descompassos na prática do direito. Cf. LUNO,

Antonio-Enrique Pérez. La seguridad jurídica. Barcelona: Ariel, 1994; DIMOULIS, Dimitri. Positivismo

jurídico. São Paulo: Método, 2006. p. 196-199. 23

Sobre essa visão cf. MICHAUT, Françoise. Realismo jurídico americano. In: ARNAUD, André-Jean (Org.).

Dicionário enciclopédico de teoria e de sociologia do direito. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 667 -670;

SABADELL, Ana Lucia. Manual de sociologia jurídica. São Paulo: RT, 2005. p. 36-38.

Page 14: O caso dos denunciantes invejosos

vontade de quem tem o poder para impor determinada decisão. Ao mesmo tempo, os realistas

criticam a tese positivista tradicional, segundo a qual o juiz deve simplesmente aplicar as leis.

Na opinião dos realistas, os juízes possuem ampla liberdade de decisão: aplicam o direito

conforme suas opiniões pessoais, recebem influências do meio social no qual vivem e também

são influenciados pela situação social e política do momento histórico. [pg. 22]

Os partidários do realismo jurídico sustentam, pois, que direito é aquilo que os

juízes consideram como direito, não se vinculando nem pela suposta justiça, nem pela vontade

do legislador, que muitas vezes é formulada de maneira abstrata e obscura e impossibilita a

aplicação objetiva da norma.

Os doutrinadores e os filósofos do direito discutem com paixão sobre esses

problemas, existindo uma contínua polêmica entre os partidários das várias abordagens. Essas

controvérsias podem parecer muito abstratas e de difícil entendimento para quem inicia o

estudo do direito. Justamente aqui está o grande mérito do texto de Lon Fuller sobre os

Denunciantes Invejosos que traduzimos em seguida. Em vez de se limitar a análises teóricas,

Fuller apresenta um caso concreto em que a aplicação do direito positivo leva a resultados

injustos.

O caso dos Denunciantes Invejosos é um dos assim chamados “casos difíceis”

(em inglês: hard cases). A solução não pode ser dada pela simples aplicação de uma norma

jurídica. É necessário fazer uma profunda reflexão que envolve o problema da definição do

direito em suas relações com a moral e a justiça.

Através da apresentação de várias opiniões sobre o problema da punição dos

Denunciantes Invejosos, Fuller introduz o leitor em um debate teórico e filosófico,

convidando-o a elaborar sua própria solução. Esse exercício permite refletir sobre a definição

do direito, sobre suas funções na sociedade e sobre os caminhos que permitem sanar possíveis

injustiças, causadas pela aplicação do direito.

Para responder a essas questões não existe nenhuma “receita” pronta e certa. Cada

um possui a liberdade de formar a própria opinião. [pg. 23]

DIMITRI DIMOULIS

Page 15: O caso dos denunciantes invejosos

NOTA EXPLICATIVA

A primeira parte do livro compreende a tradução do texto de Fuller. Ele apresenta

o caso dos Denunciantes Invejosos e elabora cinco diferentes propostas de solução. Na

segunda parte do livro, incluímos cinco novos pareceres sobre o mesmo caso, todos de nossa

autoria.

A idéia de redigir novos pareceres sobre um problema formulado por Fuller não é

original. Nas últimas décadas, vários autores de língua inglesa se prestaram ao exercício de

estudar o caso dos Exploradores de Cavernas, propondo novas análises. A Stanford Law

Review publicou, em 1980, três novas opiniões sobre o tratamento dos Exploradores

homicidas, de autoria de Anthony D' Amato.1 Em 1993, sete estudiosos apresentaram na

George Washington Law Review suas opiniões sobre o mesmo caso, tendo modificado alguns

dos dados originais.2 Peter Suber publicou em 1998 um livro sobre o caso dos Exploradores,

[pg. 25] tendo redigido nove pareceres.3 Finalmente, a Harvard Law Review, que tinha

publicado em 1949 o texto original de Fuller, convidou em 1999, na ocasião do

qüinquagésimo aniversário desta publicação, seis juristas para redigir novos pareceres,

publicados com uma introdução de David Shapiro.4 No total, foram redigidos nos últimos

anos 24 pareceres sobre o caso dos Exploradores de Cavernas, acrescidos aos cinco pareceres

originais de Fuller.

Curiosamente, ninguém até o presente momento fez o mesmo em relação ao caso

dos Denunciantes Invejosos, não obstante o grande interesse que este estudo suscitou entre o

público especializado.5

Em nossa opinião, a elaboração de novos pareceres, como os cinco que foram por

nós redigidos e que se encontram na segunda parte deste livro com os nomes de cinco

imaginários professores de direito, se justifica pelo mesmo motivo que levou muitos

estudiosos a fazer uma “revisão criminal” do caso dos Exploradores de Cavernas.

A particularidade do texto sobre os Denunciantes Invejosos é a retomada da antiga

controvérsia sobre a validade e a [pg. 26] moralidade do direito, tema este que permite a

realização de uma ampla discussão. Isto é o que nós tentamos fazer, por meio da inserção de

novos pareceres.

N as últimas décadas foram realizadas novas abordagens dos problemas clássicos

da teoria e da filosofia do direito. Mesmo os adeptos de antigas correntes de pensamento,

como o positivismo e o moralismo jurídico, enriqueceram suas argumentações, tendo

publicado novos estudos e formulado novas propostas. Os nossos pareceres propõem soluções

do caso dos Denunciantes Invejosos a partir de abordagens teóricas que encontramos em

recentes obras de filosofia e teoria do direito, sobretudo na Alemanha e nos Estados Unidos.

1 D' AMATO, Anthony. The speluncean explorers - Further proceedings. Stanford Law Review 32/467-485,

1980; cf. D' AMATO, Anthony (Org.). Analytic jurisprudence anthology. Cincinnati: Anderson, 1996. p. 21-35. 2 CAHN, Naomi; CALMORE, John; COOMBS, Mary; GREENE, Dwight; MILLER, Geoffrey; PAUL, Jeremy;

STEIN, Laura. The case of the speluncean explorers. Contemporary proceedings. George Washington Law

Review 61/1.754-1.811,1993. 3 SUBER, Peter. The case of the speluncean explorers. Nine new opinions. London: Routledge, 1998, p. 35-107.

4 SHAPIRO, David; BUTLER, Paul; DERSHOWITZ, Alan; EASTERBROOK, Frank; KOZINSKI, Alex;

SUNSTEIN, Cass; WEST, Robin. The case of the speluncean explorers: a fiftieth anniversary symposium.

Harvard Law Review 112/1.814-1.923, 1999. 5 Duas obras didáticas em língua espanhola apresentam o caso dos Denunciantes Invejosos, limitando-se a

reproduzir os argumentos apresentados por Fuller: NINO, Carlos Santiago. Introducción al análisis del derecho.

Barcelona: Ariel, 1983. p. 18-27; ATIENZA Manuel. El sentido del derecho. Barcelona: Ariel, 2003. p. 96-99.

Page 16: O caso dos denunciantes invejosos

Após ter lido as dez diferentes opiniões sobre o caso dos Denunciantes Invejosos,

o leitor terá entendido que nada é pacífico no campo jurídico. Sempre existem controvérsias,

não sendo possível encontrar uma única resposta certa nem uma solução simples e justa, como

poderia pensar quem ingressa na faculdade de direito.

A comparação das opiniões redigidas por Fuller com aquelas que elaboramos

meio século depois indica que os estudiosos do direito fizeram progressos, oferecendo novas

respostas às questões clássicas da filosofia e teoria do direito.

Finalmente, para quem deseja acompanhar o debate contemporâneo, incluímos no

presente volume uma lista bibliográfica, na qual o leitor encontra referências a obras das

últimas décadas que estudam o problema da definição do direito em suas relações, nem

sempre harmônicas, com os ideais da moral e da justiça. [pg. 27]

DIMITRI DIMOULIS

Page 17: O caso dos denunciantes invejosos

PRIMEIRA PARTE

O CASO DOS DENUNCIANTES

INVEJOSOS1

1 Texto traduzido, por Dimitri Dimoulis, do original inglês: Lon L. Fuller, The morality of law, New Haven, Yale

University Press, 1969, p. 245-253 (Appendix: The problem of the grudge informer).

Page 18: O caso dos denunciantes invejosos

Você foi triunfalmente eleito como Ministro de Justiça de seu país, uma nação de

aproximadamente vinte milhões de habitantes. Já no início de seu mandato, você enfrentou

um grave problema, que será descrito em seguida. Antes de tudo deve ser apresentado o

contexto no qual surgiu esse problema.

Seu país teve o privilégio de viver, por muitas décadas, sob um regime pacífico,

constitucional e democrático. Infelizmente, há algum tempo começaram os problemas. A vida

normal foi interrompida por uma profunda crise econômica e por graves conflitos entre

grupos que seguiam diferentes linhas econômicas, políticas e religiosas. O salvador da pátria

apareceu na figura do chefe de um partido político ou sociedade que se autodenominava

“Camisas-Púrpuras”.

Em uma disputa eleitoral marcada por sérios conflitos e irregularidades, esse

Chefe foi eleito Presidente da República e seu partido obteve a maioria das vagas na

Assembléia Nacional. O sucesso eleitoral desse partido ocorreu em razão de uma campanha

com promessas insensatas e falsificações engenhosas e com a intimidação física causada por

patrulhas noturnas de Camisas-Púrpuras, motivo pelo qual muitos adversários do partido não

tiveram coragem de votar.

Quando os Camisas-Púrpuras chegaram ao poder não tomaram nenhuma

providência no sentido de revogar a Constituição do país ou de reformar algumas partes da

mesma. Deixaram igualmente intactos o Código Civil, o Código Penal e os códigos

processuais. Tampouco foram tomadas providências oficiais para demitir funcionários

públicos ou afastar juízes de seus cargos. Continuaram as eleições periódicas e os votos [pg.

31] eram contados de forma aparentemente honesta. Apesar disso, o país vivia sob um regime

de terror.

Juízes que contrariavam os desejos do governo eram agredidos e assassinados. Ao

Código Penal foram dadas interpretações perniciosas para permitir o encarceramento dos

adversários políticos. Foram estabelecidos regulamentos secretos, conhecidos somente entre

os altos escalões da hierarquia partidária. Foram também editadas leis que criminalizavam

retroativamente determinados comportamentos plenamente legais.

O governo não respeitava as obrigações impostas pela Constituição, pelas antigas

leis ou mesmo por suas próprias leis. Todos os partidos da oposição foram desmantelados.

Milhares de opositores políticos foram assassinados, seja nas prisões, seja em ondas de

repressão noturna. Foi concedida anistia geral a favor de todos os acusados “que cometeram

atos para a defesa da pátria contra a subversão”. Essa anistia permitiu a libertação de todos os

presos que eram membros do partido dos Camisas-Púrpuras. Entre os beneficiários da anistia

não estava ninguém que não fosse membro deste partido.

Os Camisas-Púrpuras adotaram uma política que permitia flexibilidade na ação.

Algumas vezes agiam como partido político “nas ruas”. Outras vezes atuavam por meio dos

aparelhos estatais que eles mesmos controlavam. A escolha do método de atuação era questão

de pura conveniência. Quando, por exemplo, o restrito grupo da diretoria do partido decidiu

aniquilar os ex-socialistas republicanos, membros de um partido que fez uma última e

desesperada tentativa de resistência contra o novo regime, criou-se uma controvérsia sobre o

método que seria mais indicado para confiscar as propriedades desse partido. [pg. 32]

Uma facção dos Camisas-Púrpuras, que parecia estar sob a influência de

concepções pré-revolucionárias, queria realizar este confisco por meio de um regulamento

que declarasse os bens do partido confiscados por ter este cometido ações criminosas.

Outros queriam alcançar o mesmo resultado, obrigando os proprietários a doarem

seus bens sob a ameaça de armas. Essa facção criticou a solução do regulamento, dizendo que

provocaria comentários desfavoráveis ao partido. O Chefe optou pela solução da ação direta

do partido, acompanhada por um regulamento secreto que ratificou sua legalidade,

confirmando os títulos de propriedade obtidos pelo emprego de violência física.

Page 19: O caso dos denunciantes invejosos

Agora os Camisas-Púrpuras foram derrotados e se estabeleceu de novo um

governo democrático e constitucional. O antigo regime deixou, porém, alguns problemas

particularmente espinhosos. A responsabilidade de resolvê-los recai sobre você e seus colegas

do governo. Um desses problemas é conhecido como caso dos Denunciantes Invejosos.

Durante o regime dos Camisas-Púrpuras, muitíssimas pessoas, movidas por

inveja, denunciaram seus inimigos pessoais ao partido ou a autoridades governamentais. Entre

as atividades que foram objeto de denúncias estava a crítica ao governo formulada em

discussões particulares, a escuta de estações de rádio estrangeiras, o relacionamento com

notórios vândalos e baderneiros, o armazenamento de saquinhos de ovos em pó em

quantidade maior do que a autorizada, a omissão de informar a perda de documentos de

identidade no prazo de cinco dias etc.

Dada a situação do Poder Judiciário nesse período, qualquer uma dessas infrações,

se fosse comprovada, poderia [pg. 33] levar à aplicação da pena de morte. Em alguns casos,

as condenações à pena capital foram autorizadas por regulamentos de “emergência”. Em

outros casos, foram impostas sem tais regulamentos, por meio da decisão de juízes

regularmente nomeados em seus cargos.

Após a derrota dos Camisas-Púrpuras, formou-se um movimento de opinião que

exigiu a punição dos Denunciantes Invejosos. O governo interino, que antecedeu o seu,

contemporizou a decisão. No entanto, o assunto tornou-se um problema político explosivo e a

decisão não pode ser mais postergada.

Em decorrência disso, sua primeira iniciativa como Ministro de Justiça foi estudar

o problema. Você pediu a cinco deputados para refletirem sobre o caso e apresentarem suas

opiniões em uma conferência. Nessa conferência, os deputados tomaram sucessivamente a

palavra, fazendo as seguintes ponderações.

Page 20: O caso dos denunciantes invejosos

PRIMEIRO DEPUTADO

Não tenho a menor dúvida de que nada pode ser feito em relação aos chamados

Denunciantes Invejosos. As denúncias versavam sobre fatos que realmente eram ilícitos, isto

é, contrários às regras estabelecidas pelo governo que, nessa época, exercia o poder do

Estado.

As sentenças de condenação das vítimas dessas denúncias foram pronunciadas em

conformidade com os princípios legais então vigentes. Esses princípios apresentam tamanhas

diferenças em relação aos nossos, que podemos considerá-los como detestáveis. Mas isso não

impede reconhecer que tais leis estavam vigentes no país.

Uma das principais diferenças entre o direito daquele período e o nosso está

justamente no fato de que o nosso reconhece ao juiz uma liberdade de decisão muito menor

no âmbito penal. Para nós, o respeito a essa regra (e às suas conseqüências) é muito mais

importante do que o respeito à reforma introduzi da pelos Camisas-Púrpuras no direito de

herança, segundo a qual para a redação de testamento são necessárias duas e não mais três

testemunhas. Sem dúvida alguma, a norma que reconhecia ao juiz uma liberdade de decisão

quase ilimitada no âmbito penal, nunca foi oficialmente promulgada. Foi aplicada, de forma

tácita, na prática. Mas o mesmo vale em relação à regra contrária - por nós aceita - que

restringe muito a discricionariedade dos magistrados. [pg. 35]

A diferença entre nós e os Camisas-Púrpuras não está no fato de que eles

formaram um governo sem leis. Isso constituiria, aliás, uma contradição nos termos. A

diferença é de natureza ideológica. Ninguém acha os Camisas-Púrpuras mais repugnantes do

que eu. Devemos, porém, reconhecer que a fundamental diferença entre a filosofia deles e a

nossa está no fato de que nós permitimos e toleramos a expressão de pontos de vista

divergentes, e eles tentaram impor a todos o próprio código monolítico.

Nosso sistema de governo considera que o direito é flexível, capaz de expressar e

alcançar distintas finalidades. O ponto principal do nosso credo é que qualquer objetivo,

devidamente incorporado nas leis ou nas decisões dos tribunais, deve ser provisoriamente

aceito, mesmo por aqueles que o rejeitam categoricamente. A esses últimos deve ser dada a

oportunidade de conseguir um reconhecimento legal de seus próprios objetivos, por meio de

eleições ou no âmbito de um novo processo judicial.

Os Camisas-Púrpuras fizeram o contrário. Simplesmente descumpriram as leis

com as quais não estavam de acordo, e nem mesmo se deram ao trabalho de revogá-las. Se

tentarmos, agora, fazer uma triagem entre os atos desse regime, anulando determinados

julgamentos, invalidando certas leis ou considerando como produto de abuso de poder

algumas condenações, estaríamos fazendo exatamente aquilo que mais rejeitamos na atuação

dos Camisas-Púrpuras.

Reconheço que a tarefa de realizar o programa que proponho será árdua e

sofreremos fortes pressões da opinião pública. Deveremos, também, tomar as medidas

cabíveis para evitar que as pessoas façam justiça com as próprias mãos. Acredito, no entanto,

que o caminho que estou indicando é o único que permitirá fazer triunfar, a longo prazo, as

concepções sobre direito e governo nas quais acreditamos. [pg. 36]

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Page 22: O caso dos denunciantes invejosos

TERCEIRO DEPUTADO

Considero muito suspeitos os raciocínios que se baseiam em dilemas. Não é

adequado admitir que o regime dos Camisas- Púrpuras estava completamente fora da lei, nem

considerar que todos os seus atos merecem ser classificados como atos de um governo

respeitoso da lei. Sem dúvida alguma, os meus dois colegas apresentaram argumentos

poderosos contra essas duas posições extremas, demonstrando que ambas levam à mesma

conclusão absurda, ou seja, a uma conclusão moral e politicamente inaceitável.

Quem reflete sobre o assunto de forma não emocional percebe claramente que

durante o regime dos Camisas-Púrpuras não tínhamos uma “guerra de todos contra todos”.

Abaixo da superfície política continuavam a ser realizados muitos atos que fazem parte da

vida humana normal: celebravam-se casamentos, bens eram vendidos, redigiam-se e

executavam-se testamentos.

Essa vida normal enfrentava os habituais contratempos: acidentes de automóvel,

falências, testamentos nulos, panfletos difamatórios publicados na imprensa. Uma grande

parte da vida normal e dos contratempos, igualmente normais, não foi afetada pela ideologia

dos Camisas-Púrpuras. Os problemas jurídicos relacionados com esses assuntos eram tratados

pelos tribunais daquele período de forma muito semelhante ao período anterior e ao atual. Se

quiséssemos declarar como [pg. 39] privado de fundamento legal e nulo tudo aquilo que

ocorreu sob o regime dos Camisas-Púrpuras, criaríamos um caos intolerável.

Por outro lado, é impossível sustentar que os assassinatos cometidos nas ruas

pelos membros desse partido, sob as ordens de seu chefe, eram atos legais, simplesmente

porque o partido conseguiu controlar plenamente o governo e seu chefe tornou-se Presidente

da República.

Se devemos condenar os atos criminosos do partido e de seus membros, seria

absurdo legitimar todos os atos avalizados pela autoridade do governo, já que esse governo

identificou-se completamente com o partido dos Camisas- Púrpuras. Por essa razão, devemos

fazer algumas distinções, como acontece na maioria dos problemas sociais. Devemos intervir

nos casos em que a filosofia dos Camisas-Púrpuras penetrou na administração da justiça,

afastando-a de suas finalidades e procedimentos habituais.

Em minha opinião, devemos considerar como uma das perversões da justiça o

caso daquele homem que se enamorou de uma mulher casada e provocou a morte do cônjuge,

denunciando-o por um delito totalmente trivial, como o fato de não informar as autoridades da

perda de seus documentos de identidade dentro do prazo de cinco dias.

Esse denunciante cometeu homicídio, segundo a definição do Código Penal que

continuava em vigor no momento da denúncia, já que os Camisas-Púrpuras não procederam à

sua revogação. Esse homem causou a morte de uma pessoa que impedia a satisfação de sua

paixão ilícita. Utilizou os tribunais como instrumento para realizar suas intenções criminosas,

sabendo que os tribunais satisfaziam com presteza qualquer [pg. 40] ordem política que os

Camisas-Púrpuras consideravam adequada em determinado momento.

Existem outros casos igualmente claros. Mas devo admitir que também há casos

muito menos claros. Não podemos, por exemplo, avaliar com facilidade o caso daqueles

curiosos que observavam a vida dos outros e denunciavam às autoridades qualquer coisa que

lhes parecia suspeita. Alguns desses denunciantes não atuavam com a finalidade de se livrar

das pessoas denunciadas, mas com o desejo de prestar serviço e agradar o partido, de diluir

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SEGUNDA PARTE

CINCO NOVAS OPINIÕES SOBRE

O CASO DOS DENUNCIANTES

INVEJOSOS

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OPINIÃO DO PROF. GOLDENAGE

Não posso esconder uma certa mágoa pelo fato de o senhor Ministro ter

convidado exclusivamente personalidades políticas na primeira conferência sobre o problema

dos Denunciantes Invejosos, apesar de ser esse um problema exclusivamente jurídico.

Sabemos que as pessoas não têm uma boa impressão sobre os juristas. Na Idade

Média, o povo alemão dizia “advogados, cristãos malvados” (Juristen, böse Christen) e o

próprio Lutero repetiu muitas vezes essa frase. Em nossos dias, devemos ouvir críticas duras e

até piadas sobre a moralidade e a capacidade dos juízes e dos advogados.

Tenho, porém, a certeza de que o senhor Ministro não excluiu os profissionais do

direito por preconceito ou antipatia. A decisão inicial de consultar os políticos foi ditada por

considerações práticas. Nós, juristas, temos a tarefa de estudar e aplicar o direito, mas não o

criamos. As normas jurídicas são estabelecidas por aqueles que exercem o poder político.

Isso é realmente estranho. Confiamos a construção de casas a arquitetos e

engenheiros, pedimos ao contador para fazer a declaração do imposto de renda e quando há

vazamentos chamamos o encanador. Por que as leis são feitas pelos políticos, ou seja, por

pessoas sem preparação técnica para essa tarefa? Alguém pediria conselhos médicos a um

comerciante pelo simples fato de este ter sido eleito deputado federal? Por [pg. 53] que o

mesmo comerciante deve ser considerado idôneo para a elaboração das leis, podendo

inclusive opinar, como foi o caso dos cinco deputados, sobre o delicado problema jurídico dos

Denunciantes Invejosos?

Essa situação é o resultado histórico das grandes revoluções ocorridas nos séculos

XVIII e XIX, quando vários povos do mundo, liderados pela classe burguesa, decidiram

abolir o monopólio jurídico dos juízes e advogados, considerando que o direito deveria ser

criado pelo próprio povo, por meio de seus representantes.

Assim sendo, os juristas perderam a oportunidade de utilizar seus conhecimentos

para elaborar as regras que organizam o convívio social. As opiniões e a experiência dos

professores e dos operadores do direito parecem não valer mais nada. Devemos nos alinhar à

vontade do legislador e aplicá-la sem questionamento.

A última batalha foi travada no começo do século XIX pela escola histórica do

direito, liderada pelo grande jurista alemão Savigny. Todos sabem que Savigny, em um

escrito de 1814, defendeu um direito que seria baseado nos costumes e nas tradições

particulares de cada povo e elaborado nas obras dos juristas e não em códigos criados pelos

políticos.

Savigny não conseguiu impor suas opiniões e os juristas aceitaram a derrota.

Ensinamos, hoje, nas nossas faculdades, o direito criado pelos políticos. Não ensinamos a

técnica de redação de leis nem tratamos dos problemas de seu conteúdo. Com as famosas

palavras que usou em uma publicação de 1848 o Promotor de Justiça alemão Julius von

Kirchmann, o operador do direito foi escravizado pelo direito imposto pelo legislador e

tornou-se um verme que se nutre de madeira podre. [pg. 54]

Os problemas cruciais da justiça social e os conflitos políticos em tomo da

elaboração das leis não despertam mais interesse nas faculdades de direito. São examinados

em poucas aulas de sociologia e de filosofia do direito perante alunos desinteressados, que só

querem saber quais são as últimas reformas do processo civil e quais as recentes leis sobre a

biotecnologia e a proteção ambiental.

Page 29: O caso dos denunciantes invejosos

Por isso, a decisão do Ministro foi certa. Ele consultou os políticos que trabalham

como legisladores, já que eles decidem sobre o direito. Porque então essa consulta não foi

satisfatória e o Ministro decidiu recorrer a nós, simples estudiosos do direito?

A resposta é evidente. O tratamento que merecem os Denunciantes Invejosos é

uma questão de aplicação do direito. As denúncias foram feitas segundo o direito em vigor e

os tribunais aplicaram sanções previstas pelas leis da época. Por isso, a avaliação das referidas

denunciações depende da interpretação do direito que estava em vigor naquele período. Antes

de pensar em fazer uma nova legislação, devemos examinar se o direito em vigor permite

reagir de forma adequada, satisfazendo o sentimento de justiça da maioria da população que

está indignada com os Denunciantes Invejosos.

Permitam-me fazer, inicialmente, uma leitura jurídica das propostas dos

deputados, explicando aquilo que propuseram esses senhores, leigos na ciência do direito. Em

seus discursos encontramos três propostas:

a) Deixar impunes os Denunciantes Invejosos (opinião do primeiro, do segundo e

do quinto deputado).

b) Criar uma legislação retroativa, definindo quem deve ser considerado como

Denunciante Invejoso e quais as sanções merecidas (opinião do quarto deputado). [pg. 55]

c) Perseguir por homicídio quem fez a denúncia para se vingar ou se livrar de

uma pessoa e não castigar quem denunciou por convicção política ou por simples covardia

(opinião do terceiro deputado).

Essas propostas são fundamentadas, por sua vez, em três diferentes argumentos

jurídicos:

a) Todas as leis em vigor durante o regime dos Camisas-Púrpuras devem ser

consideradas válidas, pois a norma que entra em vigor de forma correta não pode ser anulada

retroativamente. Para quem aceita essa posição, os Denunciantes atuaram de forma legal,

seguindo o direito vigente. Esse argumento permite propor três diferentes soluções: o primeiro

deputado constata o caráter legal das denunciações invejosas, propondo a impunidade; o

quarto deputado considera que estes atos não eram puníveis quando foram cometidos, mas

devem ser castigados, hoje, após a criação de uma lei retroativa; o quinto deputado propõe

tolerar os linchamentos e a vingança popular, já que os atos dos Denunciantes não podem ser

definidos de forma satisfatória por meio de uma lei retroativa.

b) Durante o regime dos Camisas-Púrpuras não houve direito válido, já que o

regime era profundamente injusto, renegando a idéia mesma de justiça. A situação era

parecida com aquela de uma selva. Punir um Denunciante Invejoso não é menos absurdo do

que punir um animal selvagem porque devorou um outro (segundo deputado).

c) Devem ser consideradas inválidas somente aquelas normas do regime dos

Camisas-Púrpuras que não se conciliam com os ideais da justiça. Os Denunciantes [pg. 56]

aproveitaram-se de uma perversão da justiça durante esse regime e por isso devem ser

castigados (terceiro deputado).

Quais desses argumentos e soluções são corretos? Para decidir devemos tomar

posição sobre um lancinante dilema: Pode existir um direito injusto?

Pelo menos desde a Roma antiga o direito sempre se identificou com a justiça.

Nos séculos II e III d.C. os jurisconsultos romanos Ulpiano e Celso afirmavam que o termo

direito (ius) provém do termo justiça (iustitia). Na opinião desses autores, o direito é a ciência

que distingue o justo do injusto: iusti atque iniusti scientia. Em outras palavras, o direito é a

arte do bom e do équo: ius est ars bani et aequi.

Nada diferente dizia, quase quinze séculos depois, Rugo Grotius, quando, no

início de seu famoso livro Direito da guerra e da paz, publicado em 1625, definia o direito

como regulamentação do comportamento humano que obriga a fazer o justo.

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OPINIÃO DO PROF. WENDELIN

Escutando o discurso do colega Goldenage, pensei que me encontrava em uma

das faculdades medievais descritas pelo historiador Jacques Le Goff. Nelas os professores

organizavam as temíveis disputationes sobre problemas jurídicos, debatendo com paixão

perante um público de professores, bacharéis, alunos e curiosos. Por meio da retórica e da

habilidade no manuseio dos argumentos, os debatedores tentavam derrotar os adversários e

convencer o auditório. Naquela época os juristas se sentiam donos do direito e da verdade;

resolviam as questões polêmicas pensando que existia uma solução certa, contida nos

sagrados textos jurídicos e religiosos.

O colega Goldenage, apoiando-se em autores contemporâneos, como Paolo Grossi

na Itália, que sentem saudades do poder do jurista medieval, sustenta que existe o justo e o

injusto. Para reconhecê-los bastaria escutar a voz da consciência e, principalmente, confiar

nos pareceres do jurista sábio que punirá os injustos e protegerá as vítimas.

O colega omitiu a parte mais interessante da história. Os juristas medievais, que se

consideravam apóstolos da justiça e se sentiam todo-poderosos, foram, com toda a razão,

acusados de bárbaros e inumanos pelos autores do iluminismo. Na realidade, os juristas

medievais eram fiéis servidores de reis autoritários e de latifundiários vorazes, que oprimiam

e exploravam o povo, mantido na superstição e na ignorância. [pg. 61]

O iluminismo destruiu o mito do jurista como anjo da justiça. O problema é que o

iluminismo difundiu um novo mito. Aquele que fala do legislador iluminado, escolhido pelo

próprio povo para fazer leis racionais, simples e claras, que todos possam entender e aplicar

automaticamente. Santa ilusão que encontramos, por exemplo, no opúsculo Dos delitos e das

penas de Cesare Beccaria, publicado em 1764 e até hoje estudado nas faculdades de direito.

O século XX abalou essas certezas. As ilusões da justiça e da verdade que não

foram destruídas pelas guerras e pelas ditaduras, acabaram sendo desmontadas pelas reflexões

de grandes filósofos. Estes comprovaram que não existem critérios para distinguir o

verdadeiro do falso. A nossa linguagem é parecida com a areia movediça do deserto. Os

significados das palavras são instáveis e múltiplos e dependem do entendimento das pessoas

que se comunicam em determinado momento.

Tudo é relativo e mutável. Alguns pensam que o significado dado às palavras

depende do interesse dos poderosos, que denominam “verdadeiro” aquilo que lhes convém.

Outros sustentam que tudo depende do aleatório, do acaso. Outros dizem, finalmente, que o

entendimento das palavras é influenciado pelo papel social que a pessoa exerce em

determinada situação.

Não fui convidado para analisar as correntes de pensamento que sustentam a

incerteza e a mutabilidade da comunicação humana. Considero, porém, que a consciência

desses dados fundamentais tira a esperança de que alguém poderá encontrar um dia a verdade,

separar o justo do injusto e fixar o sentido das normas jurídicas.

A única verdade é que não sabemos nada; não existem certezas. Mas o

ordenamento jurídico não pode viver com a [pg. 62] contínua incerteza. O Poder Judiciário

deve resolver os conflitos com determinação e presteza para pacificar a sociedade. Mesmo se

os filósofos nunca encontrarem uma resposta satisfatória à pergunta “o que é vida”, os

tribunais devem decidir se o aborto provocado por uma mulher deve ou não ser punido. Não

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OPINIÃO DA PROFA. STING

Escutei meus colegas e li os pareceres dos deputados. Todos dissertaram com

erudição e paixão sobre o problema, analisando vários aspectos e desejando propor a melhor

solução. Confesso que esses pareceres me causaram um profundo mal estar.

Os deputados e os meus colegas que tomaram a palavra são homens. O mesmo

vale para o Ministro, para o Chefe dos Camisas-Púrpuras e para todos os dirigentes de sua

quadrilha que se tomou governo. Sabemos também que quase todos os Denunciantes

Invejosos eram homens.

Onde estão as mulheres? N as discussões sobre os Denunciantes Invejosos

encontrei uma única referência à mulher. Trata-se daquela mulher casada, cujo admirador ou

amante denunciou o marido para que este fosse preso, condenado e executado e a mulher

caísse em seus braços!

Muito bem! Quando dois homens querem uma mulher eles entram na disputa.

Quem sai vencedor ganha a mulher-objeto como presente. Diante desse caso, os senhores

deputados e professores tiveram uma única preocupação. Saber se o suposto amante deve ou

não ser punido. Em outras palavras, a pergunta foi se é legal e justo aproveitar-se de uma lei

para conquistar uma mulher causando a morte de seu marido.

Sabemos que as nossas leis escritas não discriminam mais as mulheres. Graças às

lutas das próprias mulheres o [pg. 67] direito deixou de privilegiar abertamente os homens.

Utiliza uma linguagem neutra, estabelecendo os mesmos direitos e obrigações para todos.

Mas, na realidade, o direito continua exprimindo uma ideologia machista e defende os

interesses dos homens que querem sujeitar as mulheres ao seu poder. O direito funciona como

instrumento do poder masculino, como instrumento do patriarcado.

Esse direito masculino permite aos homens terem acesso ao trabalho e ao corpo

das mulheres. A mulher ganha menos do que o homem no mercado de trabalho, mesmo

quando executa as mesmas tarefas. A mulher trabalha de graça em casa, arruma, prepara as

refeições, cuida dos filhos, do marido, dos pais e sogros. O direito não se opõe a essas

situações escandalosas e, freqüentemente, trata a mulher como objeto que pertence ao homem.

O espaço privado, onde vive a família, é protegido como “asilo inviolável”. O

povo diz que nas brigas entre homem e mulher ninguém deve se meter. O mesmo pensam a

polícia e o Poder Judiciário que deixam as mulheres abandonadas à violência dos homens. O

homem pode estuprar, maltratar e humilhar sua companheira, como se isso fosse seu direito.

Quase nunca será punido, porque o direito protege a vida privada. Mesmo nos países onde as

feministas conseguiram reformar o direito no sentido da proteção da mulher, os aplicadores

não fazem quase nada para conter e punir a violência masculina.

O homem quer, ao mesmo tempo, proteger sua propriedade. Quando alguém, na

rua, estupra ou maltrata “sua” mulher, a lei protege sua propriedade “particular” e pune o

agressor, que utilizou a mulher-objeto sem o acordo do “proprietário”.

Alguém pensou que mais de 95% dos presos são do sexo masculino? Isso

acontece porque a mulher fica confinada em casa, submetida ao controle e às punições dos

homens. Quando [pg. 68] se rebela é considerada “louca”, sendo enviada aos psiquiatras. Mas

não devemos achar isso estranho. O direito é criado por homens para garantir seus direitos e

para punir aqueles que agridem a propriedade de outros.

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OPINIÃO DO PROF. SATENE

A professora Sting apresentou um violento requisitório contra o sexo masculino.

Seduzida pela própria retórica, esqueceu de se referir a um episódio que é crucial para tratar

com serenidade, ponderação e coerência o problema dos Denunciantes Invejosos e que

também oferece um importante argumento a favor da solução que gostaria de propor.

Sabemos que, muito antes da ditadura dos Camisas-Púrpuras em nosso país, a

Alemanha vivenciou a barbaridade do período nazista. Após a restauração da democracia

naquele país, um tribunal enfrentou o caso da esposa Denunciante. Uma mulher que tinha um

relacionamento extraconjugal decidiu se livrar do marido denunciando-o por ter criticado, em

conversas particulares, o governo de Hitler. O marido foi condenado à morte e após um

indulto parcial foi mandado para a guerra, sendo incorporado em uma unidade militar na qual

serviam criminosos em condições particularmente duras.

Essa mulher utilizou-se do direito para se livrar do marido, ou seja, fez

exatamente aquilo que a professora Sting considera como típico dos homens! Não vou

discutir a fundamentação da análise feminista do direito. Interessa aqui avaliar a solução dada

ao caso da esposa Denunciante.

O tribunal alemão que julgou o caso após a queda do regime nazista decidiu que

os juízes que condenaram o marido à pena de morte não mereciam punição, por terem

simplesmente [pg. 72] aplicado o direito em vigor. Ao contrário, a esposa deveria ser

condenada por ter causado a detenção ilegal de seu cônjuge. O tribunal considerou que essa

denunciação contrariava a lei moral e o sentimento de justiça de qualquer ser humano decente.

Concordo com essa última posição. Não interessa se o autor da denunciação é

homem ou mulher, idoso ou jovem, branco ou negro. Só interessa saber se seu

comportamento constitui uma violação do direito.

Eis o verdadeiro problema. Não podemos decidir o que é “violação do direito”

sem saber antes o que é o direito. Todos usamos esse termo, mas cada um entende algo

diferente. A maioria dos doutrinadores entende que direito é o conjunto de normas colocadas

em vigor pelo legislador. Outros consideram que o direito está contido nas decisões dos

tribunais. Outros dizem que é direito aquilo que contribui para o progresso social e para a

felicidade da maioria. Não faltam também os cínicos que dizem que o direito é simplesmente

a violência e a ganância dos poderosos transformada em lei. Há, finalmente, juristas que vêem

o direito como manifestação de mandamentos eternos e imutáveis estabelecidos por Deus ou

pela razão humana.

Penso que todas essas definições são errôneas. Nenhuma delas exprime aquilo que

todos nós consideramos, no nosso dia-a-dia, como direito realmente válido. Seguindo os

ensinamentos do professor Ronald Dworkin, afirmo que o direito deve ser definido como

resultado de sucessivas interpretações dos princípios que fundamentam a vida social e são

aceitos pela comunidade.

O primeiro passo da interpretação é dado pelo legislador que cria as normas jurídicas.

Essas normas não são produto de uma “vontade”. O legislador não faz o que ele quer, como [pg.

74] pensam os positivistas, adotando uma posição totalmente ingênua. As leis decorrem da

interpretação dos princípios fundamentais que norteiam a sociedade. Quando a Constituição

proclama a soberania do povo, o respeito à dignidade humana e a liberdade, isso não deve ser

considerado como uma simples vontade do poder constituinte. Os constituintes simplesmente

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exprimem e adotam os princípios e os valores da democracia e da dignidade da pessoa humana

que todos nós aceitamos. Por isso afirmo que as normas jurídicas decorrem de princípios e de

convicções políticas fundamentais, que o legislador interpreta e fixa em suas normas.

O segundo passo da interpretação é dado pelos tribunais que aplicam as normas

estabelecidas pelo legislador. Essas normas são abstratas e não oferecem automaticamente

uma solução. Mas o juiz não é um tirano que pode decidir a seu bel-prazer, como parecem

dizer os realistas, adotando uma posição cínica.

Para encontrar a solução adequada, os juízes devem interpretar as normas legais

de acordo com os princípios e os valores que estão em sua base. Ou seja, os juízes recorrem

novamente aos princípios fundamentais para encontrar a solução correta. Nessa oportunidade,

os juízes podem mesmo corrigir leis que se revelam contrárias aos princípios fundamentais.

Nenhum legislador consegue estabelecer de uma vez por todas a solução certa, nem pode

prever todos os casos que se apresentarão no futuro. Fica a cargo do juiz concretizar, atualizar

e até corrigir as normas legais.

Permitam-me citar um exemplo. Uma portaria do Ministro da Educação exige para

a aprovação dos estudantes universitários uma freqüência mínima de 75%. Este regulamento

não [pg. 75] foi feito ao acaso, nem simplesmente porque tal foi a vontade do Ministro.

O regulamento procura conciliar os dois princípios que regem a matéria. A

obrigação de presença, que é necessária para o aproveitamento do aluno, e a possibilidade de

ele faltar em casos de doença, acidentes e outros imprevistos da vida familiar e profissional. O

regulamento parece, à primeira vista, razoável. A experiência de sua aplicação demonstrou,

porém, que em alguns casos era necessário introduzir modificações.

A necessidade de garantir o aproveitamento escolar, sem ignorar os imprevistos

da vida, obriga a aprovar um aluno que, apesar de só ter freqüentado 65% das aulas devido a

uma grave doença, conseguiu uma excelente nota no exame final. Inversamente, seria justo

reprovar o aluno que esgotou o número de faltas permitidas sem nenhuma justificativa e

obteve nota mínima nos exames.

Percebemos, assim, que a criação do direito não termina com a edição de uma

norma. Os juízes resolvem casos concretos e imprevisíveis no momento da criação da norma,

por meio de sua aplicação criativa, sensível e inteligente.

Não vivemos no império dos caprichos do legislador. Vivemos em uma sociedade

civilizada, solidária e fundamentada em princípios que dão sentido à vida social. Cada vez

que for chamado a decidir, o juiz deve seguir esses princípios. Isso ocorre quando as decisões

do Judiciário satisfazem algumas exigências.

Em primeiro lugar, as decisões devem ser fundamentadas de forma detalhada e

com argumentos racionais que possam ser aceitos pela maioria das pessoas. [pg. 76]

Em segundo lugar, as decisões devem ser coerentes com aquilo que foi

anteriormente decidido em casos parecidos. Nada impede que o juiz inove. Mas, nesses casos,

ele tem a obrigação de justificar a nova solução. Com efeito, a interpretação do direito parece

com a redação de sucessivos capítulos de uma novela por autores diferentes. Cada um escreve

aquilo que considera adequado. Mas a novela não pode ser caótica. Todos devem respeitar sua

trama e seu estilo, introduzindo inovações somente quando for absolutamente necessário.

Em terceiro lugar, as decisões sobre um caso concreto devem ser coerentes com

aquelas que o mesmo juiz tomou no passado. O juiz que hoje dá preferência ao princípio da

liberdade e amanhã ao princípio da igualdade, alegando que ambos encontram-se no

ordenamento jurídico, se expõe a uma contradição que invalida seu trabalho.

Resumindo: interpretar o direito de forma criativa e responsável significa oferecer

aos cidadãos soluções racionais, convincentes e coerentes. Significa, antes de tudo, dar o

sentido mais adequado às palavras utilizadas pelo legislador para fazer jus aos princípios que

norteiam o convívio social.

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OPINIÃO DA PROFA. BERNADOTTI

Os colegas Goldenage e Satene repetiram aquilo que desde décadas sustentam em

dou tas publicações e brilhantes conferências. Peço vênia para expressar minha plena

discordância. Os colegas dizem que somos membros de uma comunidade política, tendo

valores comuns nos quais devem se fundamentar as leis e as futuras decisões do Judiciário.

Dessa forma, adotam a opinião do jusnaturalista francês Michel Villey, segundo o qual o

aplicador do direito não deve cumprir as ordens do Estado, mas interpretar os textos de forma

que permita encontrar a solução “justa”.

Para falar em “justo” devemos ter valores aceitos por todos. Mas quais foram os

valores comuns a brancos e negros nas sociedades escravocratas do século XIX? Onde está a

comunidade de valores e interesses entre os pobres e os ricos nos países do terceiro mundo,

onde, ao lado de mansões luxuosas, encontramos favelas que abrigam centenas de milhares de

desesperados? Onde está a comunidade entre os homens e as mulheres, uma vez que ô direito

funciona como instrumento de sujeição do gênero feminino, como bem indicou a colega Sting?

Os juristas raramente tratam desse problema e, às vezes, querem ocultá-lo. Um

exemplo deu o professor Satene. Fala do justo e do correto, esquecendo as enormes diferenças

de mentalidade e interesses entre pessoas e grupos. Como se isso [pg. 81] não bastasse, o

referido professor fez uma crítica superficial e equivocada à professora Sting, que mostrou o

caráter machista do direito, ou seja, sua parcialidade. O professor Satene não quer admitir que

o sistema jurídico, quase sempre, toma o partido dos mais poderosos: dos brancos, dos ricos,

dos homens.

Na realidade, não temos nenhuma comunidade de valores e interesses. Temos

exploração, violência, discriminação e opressão. Qual é o papel do direito na sociedade? Os

meus colegas moralistas fecham os olhos diante da realidade ou consideram que os poderosos

e opressores violam o “verdadeiro” direito. Isso não passa de um sonho. Na realidade, os

opressores e exploradores simplesmente aplicam o direito em vigor. Se o direito permite

pagar um salário de fome, por que deve ser punido aquele que paga esse salário?

Por que então castigar pessoas invejosas que, afinal de contas, denunciaram fatos

reais e por que perseguir os juízes que puniram os infratores, seguindo o direito em vigor?

Eles simplesmente aplicaram o direito, tal como faz qualquer respeitada família que paga um

salário mínimo à sua empregada doméstica ou especula na Bolsa de Valores.

Foi dito que os Denunciantes Invejosos instrumentalizaram o direito para se

vingar de inimigos pessoais. O professor Satene baseou-se nisso para apresentá-los como

autores de homicídios e seqüestros, adotando teorias de doutrinadores conservadores como

Claus Roxin. Quem utiliza esse argumento esquece que o nosso direito é um direito formal.

Avalia aquilo que a pessoa faz e não examina o porquê faz. Quem pensou em matar seu

concorrente e não o fez porque tinha medo da pena pode ser um indivíduo moralmente

desprezível. Não deixa de ser um cidadão respeitoso da lei, já que o direito simplesmente [pg.

82] pune o homicídio, sem se interessar pelos desejos e os pensamentos das pessoas.

Isso é uma característica de todos os ordenamentos jurídicos modernos que se

fundamentam na separação entre o direito e a moral. O direito moderno não exige que a

pessoa seja um “bom cristão” ou um “bom pai de família”, como acontecia no direito

medieval que pouco distinguia entre as regras jurídicas, as obrigações morais e os

mandamentos religiosos. Hoje o Estado avalia as ações e omissões das pessoas

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BIBLIOGRAFIA

As obras contidas nesta bibliografia permitem ao leitor estudar com maior

profundidade o problema da definição do direito em suas relações com a justiça e a moral.

Além disso, incluímos na bibliografia as referências completas, das obras citadas

nos “pareceres” dos cinco professores, assinalando-as com um asterisco.

As opiniões dos jurisconsultos romanos Ulpiano e Celso, mencionadas nos

“pareceres” dos professores Goldenage e Wendelin, encontram-se no Digesto de Justiniano,

disponível na internet <http://webu2. upmf-grenoble.fr/Haiti/Cours/Ak/Corpus/d-01.htm>.

A decisão da Suprema Corte da Argentina sobre a nulidade das leis de anistia,

mencionada no parecer da professora Sting encontra-se em:

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